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Apresentação

Apresentação Pequena ode de um fã à musa Bete Mendes, minha amada amantíssima

Meu primeiro encontro com a atriz Bete Mendes se deu há mais de uma década no Festival Guarnicê de Cinema de São Luís-MA. Diante de uma mulher por quem tinha profunda admiração e respeito, fugiu-me a coragem de tentar uma aproximação para declarar todo o meu afeto. Com uma câmera Nikon analógica, fiz algumas fotos mantendo um certo distanciamento, temendo o olhar cuidadoso de Marcão, companheiro de Bete. Os astros tramaram ao meu favor e eis que, através de amigos em comum, estávamos todos sempre à mesa dos botecos ludovicenses. Nasceu, assim, uma grande amizade que se prolonga até hoje. Com raras idas minhas ao Rio e vindas de Bete à capital da Paraíba, onde escolhi viver com os demais Lira, mantivemos contato frequente. Bete entrou em definitivo para a família. Conhece toda a “Lirolândia” (como os amigos nos chamam, inclusive ela), sempre perguntando por cada um nas nossas conversas. A relação de Bete com a Paraíba se estreitou a partir desses vínculos. Mais amigos paraibanos foram se agregando a essa rede de afetos: Heleno Bernardo, Corrinha Mendes (in memorian) e a família Mendes, Marcus Vilar, Ana Sofia Maia e Sandra Elorza, entre outros. Minha admiração profissional por Bete Mendes, a musa “amada amantíssima”, se deu com o filme de Leon Hirszman Eles Não Usam Black-Tie (1981). Antes explico o porquê de chamá-la “amada amantíssima”. Foi um retorno ao carinho expresso nas suas falas, sempre iniciando nossas conversas com “Bertrand, amado amantíssimo”, um afago e tanto. Voltando ao filme, cuja estreia se deu dois anos depois da minha entrada na universidade no curso de Jornalismo e dois anos do início da “lenta e gradual” abertura política no país, ocasião em que tive conhecimento dos horrores da Ditadura Militar no país. Jovem de Cajazeiras-PB, 22 anos, “inocente puro e besta” e crente que “este é um país que vai pra frente” e no “Ame-o ou deixe-o” da ditadura fascista, fiquei impactado com o filme de Hirszman e com

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as figuras dos belos protagonistas (Bete Mendes e Carlos Alberto Riccelli) nos papéis de Maria e Tião. Todavia, foi a trama e o Brasil que estavam na tela que me atordoaram. Maria é uma mulher forte e de forte consciência política do seu corpo e do seu papel nas incontáveis peças da engrenagem desse sistema opressor. Um contraponto perfeito ao belo e alienado Tião. Baseado na peça de Gianfrancesco Guarnieri escrita em 1958, Guarnieri é o líder sindical Otávio, pai de Tião, e corroteirista com Hirszman. Eles Não Usam Black-Tie teve forte impacto no Brasil da abertura política e representou o país no Festival Internacional de Cinema de Veneza, onde recebeu o Prêmio Especial do Júri, o segundo mais importante concedido pelo festival. Bete Mendes já era atriz consagrada pela novela Beto Rockfeller (19681969), da qual tenho vaga lembrança – não tínhamos aparelho de TV em Cajazeiras, ainda um artigo de luxo para pouquíssimos –, e por O Rebu (1974-1975). Sua beleza estonteante povoava o imaginário e o sonho masculino e feminino da época. Também pelo mesmo motivo não assisti a o Meu Pé de Laranja Lima, como muitas crianças em 1970 e 1971, exibida pela TV Tupi. Eles Não Usam Black-Tie foi o tema da minha tímida abordagem a Bete em São Luís. Acredito que ela tenha ficado impressionada pelo fato de eu não ter iniciado nossa conversa falando sobre as novelas de grande repercussão, mas de um filme muito mais difundido entre os cinéfilos. A sensibilidade de Bete está à flor da pele. Presenciei algumas vezes sua emoção aflorar. A primeira vez ainda no prelúdio de nossa amizade num passeio a São José de Ribamar, terceiro município mais populoso do Maranhão. Uma mulher que mendigava, provavelmente reconhecendo a Donana do Araguaia de O Rei do Gado, ofereceu um dos seus filhos para ela criar, sonhando com uma vida digna para a criança. Bete se desmanchou em lágrimas, comovendo a todos nós. A segunda vez aconteceu em Paris, de frente à catedral de Notre Dame. Ela realizava um sonho acalentado há anos de conhecer a cidade. Organizamos uma viagem entre amigos e viajamos em maio de 2008. A razão de sua comoção é que a ativista política e cultural se exilaria na França se não fosse pega pelo aparelho repressor da Ditadura Militar.

O horror daqueles anos de chumbo Bete sentiu literalmente na pele, com sessões de tortura intermináveis. Bete Mendes foi desumanamente sequestrada, presa e torturada no DOI-CODI, em 1970, no paroxístico momento de recrudescimento da Ditadura no Brasil. O famigerado Brilhante Ustra era expertise no terror. É doloroso falar disso, todavia necessário reavivar nossa memória num país onde um capitão covarde e sádico enaltece facínoras e um regime brutal. Um fato excruciante na vida da atriz foi o encontro com seu algoz num evento oficial na embaixada do Brasil em Montevidéu em 1985, momento de distensão e transição do regime militar. O ignóbil Ustra, torturador também de crianças, adido militar do governo Sarney no Uruguai, estava presente no mesmo evento onde Bete Mendes, enquanto deputada federal pelo Rio de Janeiro, era integrante oficial da comitiva. A repercussão negativa foi tamanha, demonstrando que essa ferida aberta jamais cicatrizaria. A amada amantíssima Bete Mendes, muito maior do que seus algozes, figura orgulhosamente na história desses tristes trópicos. Eles, ao contrário, estão na lata de lixo envergonhando as presentes e futuras gerações. Diferente deles, Bete é humana, talentosa, admirada e amada por quem a conhece tanto como figura pública (atriz de teatro, cinema e televisão, deputada federal, secretária de estado de cultura de São Paulo e presidente da Fundação de Artes do Rio de Janeiro) como mulher de caráter, amiga, companheira e irmã. Dormirá, sempre tranquila, o sono dos justos, quer por suas qualidades nobres de ser humano, quer por sua militância política na defesa de valores como justiça, democracia, igualdade social, racial e de gênero que sua prática cidadã e cotidiana tão bem atesta. Mais do que orgulho, sinto-me gratificado de desfrutar de sua amizade amorosa.

Bertrand Lira, cineasta e professor

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