8 minute read

A menina que se inventou artista

Next Article
Apresentação

Apresentação

Nascida em Santos (SP) em 11 de maio de 1949, Elisabete Mendes de Oliveira é filha de militar com dona de casa, criada em um modo de vida simples, informal e praiano. Seu pai, Osmar Pires de Oliveira, era suboficial da Aeronáutica, embora nunca tenha sido para Bete um pai autoritário, mas sim um homem gentil com quem ela construiu uma relação de parceria. Passou para a filha inspirações como a paixão por cinema e música, por Frank Sinatra e Bing Crosby, além de ter sido um pé de valsa que cultivou com a filha momentos alegres de quando dançavam juntos. A mãe, a dona de casa Maria Mendes de Oliveira, legou a Bete inspirações como o fascínio por Elvis Presley, o amor pelo samba, o jeito alegre e festivo. E deixou boas memórias de infância, como a dedicação à natação e o hábito de ir à praia, inspirando a filha a cultivar uma relação profunda e terapêutica com o mar desde cedo. Entre diversas referências e hábitos herdados de cada um, Bete relembra seus pais com afeto, pelas inspirações e oportunidades que potencializaram sua criatividade e curiosidade pela arte e pela vida desde cedo. Como lembra a atriz: “Tenho a impressão de que foi a curiosidade e o bom senso da minha mãe e do meu pai que me botaram para aprender a ler muito cedo, que me levaram à paixão pelos livros. Desde pequena, ficava atazanando meus pais, querendo saber o que era isso e o que era aquilo”. 1 A infância de Bete Mendes reúne vivências e aprendizados entre dois mundos distintos que compõem sua família. De um lado, o mundo simples e rústico de sua família materna, que descendia de indígenas Guarani. E de outro lado, o mundo sofisticado da família paterna, de ascendência portuguesa e francesa. Por parte de sua “avó índia”, como ela a chama carinhosamente, Bete passou uma infância perfumada pelos aromas das receitas caseiras e naturais, das árvores frutíferas no quintal, dos chás de ervas que curavam todos os males, que vinham da sabedoria e das raízes indígenas 1“Bete Mendes: o Cão e a Rosa”, de Rogério Menezes (Coleção Aplausos, 2004, p. 27).

da avó. Com ela, a atriz vivia comendo frutas do pé, ou fascinada nas histórias, nas fábulas e nos contos mágicos transmitidos de geração em geração. Já do lado paterno, cultivou uma relação com a madrinha Jacira, tia do seu pai, que encantava a sobrinha com a atmosfera nobre e culta, cheia de livros, mesa posta e decorada com delicadeza, o comportamento doce e requintado que impressionava a menina Bete – que vinha da família simples e praiana para visitar os tios paternos em São Paulo. Mesmo criada em uma família na qual nenhum parente tinha a arte como ofício, a identificação da Bete criança com o mundo artístico foi um impulso natural, orgânico e repentino. O gosto pelo mundo artístico floresceu muito cedo nela. Uma das primeiras paixões que surgiram espontaneamente foi a leitura, que já fisgava Bete por volta de três anos e meio de idade, iniciada nos jornais e depois ávida por uma variedade de gêneros literários. Em seguida, aos cinco anos de idade, ela se percebeu apaixonada pela música. Ao acompanhar seu pai nas idas ao cinema, inspirada pelo gosto dele por cinema norteamericano, Bete foi desenvolvendo seu fascínio musical a partir de trilhas de filmes como Lili, musical estadunidense de 1953. Ao mesmo tempo, dedicava-se ao canto em todas as oportunidades que podia, nas paradas do Sete de Setembro, nos eventos da escola e em todos os corais para os quais era chamada. Ao longo de seu crescimento, a carreira da jovem no canto se estendeu e se somou a mais uma linguagem artística que fisgou a menina Bete: seu encontro com o teatro. A iniciação nas artes cênicas veio também de forma orgânica, a partir do colégio primário. “Quando fui para o colégio, no chamado primário na época, nós fazíamos encenações teatrais. Eu já comecei um aprendizado cênico sem saber, porque eu era uma aluna aplicada, era muito serelepe e participava de tudo, dos jogos, das festas. Havia muitas festas e nós fazíamos encenações.” A pequena Bete também aprofundou-se ainda mais no canto através de suas aulas de Canto Orfeônico na escola, disciplina que foi implantada como obrigatória nas escolas de ensino regular

Advertisement

brasileiras por volta da década de 1930, por meio de um projeto de educação musical do músico Heitor Villa-Lobos durante sua atuação no governo de Getúlio Vargas, na Superintendência de Educação Musical e Artística. Esse marco histórico da importância da música na educação básica foi vivenciado com alegria por Bete Mendes, que aproveitava as aulas para desenvolver seu talento e envolver cada vez mais pessoas por meio da arte – assim como Orfeu, personagem músico da mitologia grega que inspirou o nome da disciplina, que encantava animais e pessoas com seu cantar. “Villa-Lobos conseguiu colocar o Canto Orfeônico nas escolas, e isso era genial. Nas aulas de Canto Orfeônico, nós desenvolvíamos não apenas a voz, mas a colocação da voz. E também os rapazes, que eram mais tímidos do que nós, acabavam se abrindo para o cantar, então isso era muito bacana. E a gente cantava peças maravilhosas, desde os clássicos até o jazz, passando pela música erudita brasileira, então isso era muito importante na minha formação. Tínhamos vários espetáculos maravilhosos”, conta a atriz. A partir daí, o teatro tornou-se parte fundamental da sua vida. Em 1960, sua família se mudou para o Rio de Janeiro, e ela ingressou no Colégio Mendes de Morais para cursar o ginásio. Esse período foi um marco na vida de Elisabete pelo encantamento e desenvolvimento no teatro. Começou a fazer parte do grupo teatral criado pela professora de História, Regina Carvalhal, que também contava com futuros atores, como Ângela Leal, Miguel Falabella e Bemvindo Sequeira. Assim, Bete foi atravessada pelo teatro, de modo que frequentava bibliotecas e acervos emprestados de amigos para devorar livros de diversas peças teatrais clássicas e fundamentais na história das artes cênicas. Aos doze anos, já lia Dostoiévski e Tolstói, além de todas as tragédias gregas. Por volta de seus 14 anos, escreveu sua primeira peça teatral para o Dia das Mães no colégio: “Eu já era tão ousada que escrevi uma peça para uma comemoração do Dia das Mães do colégio. Eu fazia o texto, era protagonista, fazia tudo na peça. Tinha coleguinhas que interpretavam comigo e fazíamos o espetáculo. Tínhamos vários

espetáculos maravilhosos”. A peça trazia inspirações de Bete em sua própria história, com memórias afetivas da história de sua mãe e de sua avó materna, a quem tanto admirava. Outro momento marcante do seu potencial no teatro, quando ainda era adolescente, ocorreu quando foi escolhida para protagonizar o papel do Pequeno Príncipe, baseado na renomada obra de SaintExupéry, no mesmo grupo teatral do colégio. A seleção para o papel feita pela professora Regina Carvalhal foi para Bete um reconhecimento inesperado, pois acreditava que o papel seria dado a uma amiga loira dos olhos verdes, mas foi ela a selecionada pela professora por conta do jeito ‘moleque’ com que a atriz interpretava o menino principal da peça. De volta para Santos (SP) por conta de uma nova transferência do trabalho de seu pai, passou a atuar no teatro infantil fora do colégio. “Minha primeira experiência em teatro infantil foi uma peça de um autor santista, Oscar Von Pfuhl, que era A Árvore que Andava, eu fazia a coelhinha Naná. Era maravilhoso, a gente adorava o público, adorava tudo, e era uma experiência que já estava me ganhando”, conta a atriz. Essa experiência se somava a uma vida ativa e movimentada, que se dividia entre dias de praia, idas a diversas peças de teatro e mostras de cinema, e vários programas junto aos jovens intelectuais de Santos. A jovem vivia engajada em atividades escolares para as quais se dedicava ativamente, envolvida no grupo teatral do colégio, em grupos de festas e no grêmio estudantil. Nesse período, cursando o Clássico – etapa colegial anterior à reforma que instituiu o Ensino Médio no Brasil –, Bete também já havia começado a trabalhar. Para juntar seus trocados, atuou como secretária de um advogado e dedicava o tempo ocioso no escritório para a leitura e a manutenção de livros antigos. Em seguida, cursou datilografia e atuou como datilógrafa no Sindicato dos Motoristas em Guindastes do Porto de Santos. Em meio ao seu terceiro ano Clássico, a separação dos pais gerou nela o impulso de se mudar para São Paulo. Ela, que sempre se

comportou com certa autonomia e gostava de ser “dona do próprio nariz”, foi para a capital paulista em 1967 em busca de independência e de finalmente viver por conta própria. Com isso, foi transferida para o Colégio de Aplicação, ligado à Universidade de São Paulo (USP), na época um dos melhores colégios do estado. A própria Bete buscou contato com o diretor para solicitar uma vaga na concorrida instituição. No colégio, Bete alavancou sua experiência no teatro e em diversas mobilizações, debates e atividades, fortalecendo o potencial questionador e criativo que já pulsava na atriz. “No Colégio de Aplicação, nós fazíamos roda na classe. Em vez de as cadeiras ficarem enfileiradas, fazíamos um círculo e recebíamos autores e diretores teatrais para debate sobre peças.” Num desses debates, o encontro com o diretor teatral Ademar Guerra, convidado para a atividade escolar, marcou a trajetória de Bete. De tanto que a jovem ia ao teatro assistir à peça dirigida por Guerra, seu rosto foi para ele familiar, o que levou a uma conversa com desdobramentos imprevisíveis: a partir dali, Bete foi convidada para o teste de um papel em A Cozinha, de Arnold Wesker, para o qual ela foi selecionada, e teve sua primeira oportunidade como atriz profissional.

This article is from: