Editoria de Ciência - Correio Braziliense [ Vitor Sales ]

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Ciência

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15 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, sábado, 22 de agosto de 2015

Coleção deseres bizarros I

Tubo de ensaio

Uli Westphal/Divulgação

magine ter de desenhar um elefante baseado apenas em antigos relatos de alguém que viu o animal poucas vezes. Era esse o desafio de ilustradores medievais europeus, que recebiam a missão de retratar esse e outros bichos de terras distantes. O resultado? Um verdadeiro exercício de criatividade. O paquiderme às vezes assumia a forma de um cavalo com tromba, podia ganhar bolinhas por todo o corpo e até se parecer mais com um ser bizarro cujo rosto apresentava uma trombeta. Desenhos imprecisos como esses ganhavam o imaginário das pessoas, transformando-se, para elas, na real aparência do elefante e de outros bichos existentes na África e na Ásia, diz o historiador alemão UliWesthal, que decidiu investigar a evolução da forma do animal para os antigos europeus. “O elefante medieval clássico tinha um focinho em forma de trombeta, orelhas do cão, pernas e corpo de um cavalo, vaca ou cabra, e dentes salientes acima de sua mandíbula inferior, como um javali”, descreve o especialista em um artigo publicado recentemente no Journal of Comparative Zoology. Grande parte dos equívocos eram motivados pela obra Naturalis Historia. Concluída em 77d.C., essa enciclopédia era um longo tratado, que ia da geometria à zoologia, feito por Plínio, o Velho, célebre naturalista romano. Quando as fronteiras de Roma se expandiam muito além da capital, Plínio teve a chance de observar algumas vezes animais exóticos, como zebras e girafas, mas também se baseou nas histórias que ouvia. Com a queda do império, esses bichos deixaram de chegar à Europa, e relatos orais e, principalmente, obras como a de Plínio, passaram a ser as principais fontes dos ilustradores. Foi o naturalista romano, por exemplo, que difundiu as crenças de que elefantes tinham medo de ratos e que avestruzes enterravam a cabeça no chão diante de algum perigo. Sobre o elefante, o cientista romano contou também so-

Pesquisadores mostram a forma como artistas medievais europeus retratavam animais como elefantes e rinocerontes. Baseados em relatos orais e obras da Antiguidade, os ilustradores cometiam erros grosseiros, como incluir trombetas na anatomia dos bichos

Batalha Antes de Plínio, Aristóteles contribuiu para a fama do elefante ao narrar o confronto entre Alexandre e Darius, primeira batalha com o uso de elefantes contra tropas europeias. O pensador grego descreveu a fisiologia do animal, incluindo seu intestino, e também criou o mito de que o elefante era um bicho muito casto e fiel. Posteriormente, Plínio copiou a maior parte dos escritos de Aristóteles e acrescentou histórias de que a besta era tão forte que suportaria em suas costas torres com 60 soldados.

bre o uso do animal para transportar mantimentos e soldados. O que aconteceu a partir do isolamento europeu, conta Westhal, foi uma espécie de brincadeira de telefone sem fio ilustrada. A falta de conhecimento e o pouco rigor científico deram origem a uma imensa variedade de representações do elefante, às quais eram misturadas partes anatômicas de outras espécies e até de bichos de estimação. A necessidade de fazer cópias à mão — a prensa só seria inventada em 1445, pelo alemão Johannes Gutenberg — tornava tudo ainda mais bizarro. A religião também colaborava. Como a maioria dos ilustradores e compiladores eram monges, animais, e até bestas mitológicas, ganhavam características morais, o que ajudava na doutrinação dos fiéis. O leão e o unicórnio, por exemplo, eram símbolos de nobreza.

Rinoceronte A trajetória do elefante não é um caso isolado. O leão-marinho, por exemplo, foi descrito como um cão com pés de ganso e pele de enguia. Os pássaros-do-paraíso, que chegavam empalhados e sem

Imagem clássica de um elefante, feita na Idade Média: trombeta, orelhas de cachorro e presas de javali

Inimigos mortais Trustees of the British Museum/Divulgação

A gravura do rinoceronte feita por Albert Dürer foi impressa acompanhada do seguinte texto: “No ano de 1513 depois do nascimento de Cristo, no dia 1º de maio, para o poderoso rei de Portugal, Emanuel, em Lisboa, foi trazido da Índia um animal vivo. Ele é chamado rinoceronte. Ele está representado aqui com toda sua forma. Tem uma cor como a de uma tartaruga pintada. E é recoberto com escamas grossas. E é do tamanho do elefante. Mas tem pernas mais curtas e é quase invulnerável. Tem um chifre forte e pontudo sobre o nariz. Ele começa a aguçá-lo sempre que está perto de pedras. Este animal estúpido é inimigo mortal do elefante. O elefante fica muito amedrontado com ele quando se encontram. O animal corre com sua cabeça abaixada entre as pernas da frente e chifra o elefante no estômago e o estrangula, e o elefante não pode afastá-lo. Como o animal é tão bem armado, o elefante nada pode fazer contra ele. Dizem também que o rinoceronte é rápido, impetuoso e esperto.”

pernas à Europa, eram tidos como aves que viviam sempre no ar e nunca pousavam. Outro caso interessante foi estudado pelo brasileiro Roberto de Andrade Martins, que refez a trajetória do primeiro rinoceronte levado aoVelho Mundo após a queda de Roma. O mamífero serviu de modelo para a primeira gravura da espécie, feita em 1515 pelo alemão Al-

brecht Dürer. Naquela época, período das grandes navegações, os europeus deixavam o isolamento medieval e viviam um período de descobertas, que incluíam a chegada de animais e até povos considerados exóticos à Corte. O rinoceronte foi um presente de um sultão indiano a Afonso de Albuquerque, segundo governador da Índia portuguesa. O bicho aca-

bou enviado ao monarca lusitano dom Manuel I. Ao recebê-lo, o Venturoso Manuel, como era conhecido o rei, quis logo verificar a antiga lenda de que rinocerontes e elefantes eram inimigos mortais. Ao colocar os dois bichos frente a frente, o elefante fugiu em disparada, quebrando a grade de ferro que o prendia. Os especta-

dores concluíram que os relatos eram verdadeiros, como mostra o texto publicado com a gravura de Dürer (ver quadro). Apesar do esforço em seguir com fidelidade os relatos de quem havia visto o animal de perto, Dürer desenhou um bicho com escamas e cor de tartaruga, imagem que passou de geração em geração. Somente do século 18, cientistas puderam observar como de fato era a anatomia desse mamífero e reparar os equívocos. Já o animal presentado a dom Manuel I teve um fim trágico. Tempos depois, cansado da novidade, o rei o despachou como um presente ao papa Leão X. Houve, porém, um naufrágio, e o mamífero morreu no acidente. Antes disso, os relatos de viajantes, como Marco Polo, faziam crer que o rinoceronte era um cavalo com um chifre na testa. “Ele aparecia às vezes em textos religiosos, confundido frequentemente com o unicórnio e associado a citações do Antigo Testamento. O rinoceronte tinha sido descrito de forma sumária (e, muitas vezes, incorreta) por autores da Antiguidade como Ctesias, Aristóteles, Agatharchides, Plínio, o Velho, e alguns outros”, conta Roberto Martins.

Fatos científicos da semana

Bernard Gomez/Divulgação

Nasa/Divulgação

» SEGUNDA-FEIRA, 17

» QUARTA-FEIRA, 19

A MAIS ANTIGA FLOR

BOATO DESMENTIDO

Cientistas da Universidade de Indiana descobriram o que pode ser a mais antiga flor de que se tem notícia. A Montsechia vidalii (foto) crescia debaixo d’água onde agora fica a Europa moderna. Ela não tinha pétalas e dava uma única semente. Estima-se que os fósseis achados agora tenham entre 125 milhões e 130 milhões de anos, de acordo com um estudo publicado na revista Pnas, da Academia de Ciências dos Estados Unidos. “Isso de ‘primeira flor’ é tecnicamente um mito, como o ‘primeiro humano’”, esclareceu o paleobotânico David Dilcher, principal autor do estudo. “Mas, com base na nova análise, sabemos que a Montsechia é mais antiga que a Archaefructus (sinensis)”, afirmou, referindo-se a uma planta aquática similar, encontrada na China. Os fósseis da Montsechia vidalii foram detectados na região dos Pirineus, entre Espanha e França.

O Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa emitiu um comunicado no qual desmente boatos, divulgados pela internet, de que um asteroide gigante se chocaria com a Terra e destruiria grande parte das Américas na segunda metade de setembro. “Não há nenhuma base científica — nenhuma evidência — de que um asteroide ou outro objeto celeste atingirá a Terra nessa data”, declarou o gerente do Projeto de Objetos Próximos da Terra, Paul Chodas. O laboratório explicou que todos os asteroides perigosos conhecidos têm menos de 0,01% de chance de impactar o planeta nos próximos 100 anos. “Se existisse algum objeto grande o suficiente para fazer esse tipo de destruição em setembro, teríamos visto alguma coisa agora”, garantiu.

AGULHADAS CONTRA A HIPERTENSÃO » TERÇA-FEIRA, 18

A UM PASSO DO VÍCIO Adolescentes que experimentam cigarros eletrônicos têm duas vezes mais chances de mudar para os cigarros convencionais comparados àqueles que nunca utilizaram os aparelhos, de acordo com uma pesquisa da Universidade de Southern California, publicada na revista Jama. A descoberta oferece algumas das mais fortes evidências até agora sobre a conexão entre cigarros eletrônicos e o hábito de fumar, disse Nancy Rigotti, especialista em análises sobre tabaco do Hospital Geral de Massachusetts e autora de um editorial que acompanha o estudo. “O cérebro dos adolescentes parece ser especialmente suscetível a se tornar viciado à nicotina quando exposto”, disse Rigotti.

Pacientes com hipertensão tratados com acupuntura experimentaram queda na pressão sanguínea que duraram até um mês e meio, disseram pesquisadores do Centro de Medicina Integrativa Susan Samueli, da Universidade da Califórnia em Irvine. O trabalho, publicado na revista Medical Acupuncture, é o primeiro a confirmar que a prática ancestral chinesa é benéfica para tratar hipertensão moderada e pode reduzir o risco de doenças cardiovasculares. O efeito foi observado apenas quando os médicos utilizaram agulhas. A eletroacupuntura, na qual estímulos elétricos são utilizados no lugar do instrumento tradicional, não trouxe benefícios, disse o artigo.

» QUINTA-FEIRA, 20

METAS DE EMISSÕES O comissário europeu para o Clima, Miguel Arias Cañete, convocou vários países, entre eles Brasil e Índia, a apresentarem rapidamente suas metas para reduzir as emissões de carbono, ante a iminência da Conferência Mundial sobre o Clima de Paris (COP-21), em novembro. Cañete lamentou que as discussões técnicas estejam ofuscadas pelas discussões políticas e pediu que isso mude urgentemente. O comissário, contudo, considerou um progresso que 56 países, que representam 61% das emissões globais, já tenham apresentado seus objetivos de redução de dióxido de carbono. “Nós temos de ter uma ideia clara de esforço conjunto antes do encontro em Paris para saber onde estamos em relação ao objetivo de impedir um aumento da temperatura acima dos 2°C”, conclamou.

ROBÔ CIRURGIÃO Dois cirurgiões de um hospital francês transplantaram um rim, extraído de uma doadora viva, em uma única sequência executada exclusivamente por um robô cirúrgico. Em um comunicado, o Hospital de Rangueil, de Toulousse, afirmou que essa intervenção é inédita no mundo. A extração renal seguida de transplante foi feita por via vaginal e envolveu duas irmãs. O procedimento foi realizado em julho, mas só agora se divulgou a cirurgia. De acordo com o responsável pelo transplante, Frederico Sallusto, a doadora voltou para casa dois dias após a operação, e a receptora, depois de quatro dias.

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