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Ciência
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15 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, quarta-feira, 30 de setembro de 2015
Grupo da Universidade Estadual Paulista se dedica ao estudo das espécies de veados existentes no país e ajuda a traçar políticas de preservação desses animais. Recentemente, os pesquisadores identificaram dois novos gêneros dos bichos
EM DEFESA DOS
CERVOS BRASILEIROS uem assistiu ao filme Bambi pode ter a impressão de que todos os cervídeos têm,quandoadultos,grandes chifres em formato de galhos. Essa imagem, no entanto, não representa o veado característico do Brasil. Apesar de muito graciosas, sete das oito espécies catalogadas no país não apresentam as famosas galhadas. São pequenas, têm pernas curtas e cornos quase imperceptíveis. Há, no entanto, uma triste semelhança entre os animais nacionais e o personagem criado por Walt Disney: como na história de animação, eles enfrentam os perigos da ação de caçadores e da perda de hábitat, entre outras ameaças que põem sua existência em risco. Grande parte do conhecimento que se têm dos cervos brasileiros é fruto do trabalho do Núcleo de Pesquisa e Conservação de Cervídeos (Nupecce), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Jaboticabal. Único grupo de pesquisa nacional concentrado no estudo desses animais, o Nupecce vem traçando, nos últimos anos, o mapa de ocorrência dos bichos e identificando novas espécies, um trabalho fundamental para que elas sejam protegidas. Uma das mais recentes descobertas do núcleo diz respeito à grande diferença entre o veadoroxo (Mazama memorivaga), existente na Região Norte, e o veadocatingueiro (Mazama gouazubira), encontrado no restante do país. Na aparência, os dois tipos parecem ser o mesmo, mas estudos mais detalhados contam outra história.“A partir de uma análise comparativa de cromossomos e de composição molecular, descobrimos que a espécie que ocorre no Amazonas é muito diferente do veado-catingueiro. São tão distintas entre si que constituem dois gêneros”, diz José Maurício Barbanti Duarte, professor que coordena os estudos. Os resultados obtidos com exames laboratoriais foram confirmados em um experimento feito com espécimes que integram o criadouro do Nupecce, que conta com 58 animais de sete espécies. Após promoverem o cruzamento entre o roxo e o catingueiro, os cientistas constataram que o descendente originado era estéril, aumentando a certeza sobre a distinção entre os bichos. Duarte revela que, devido aos estudos, em breve, dois novos gêneros de veados podem ser reconhecidos. “Nesse tempo, também viajamos para as Guianas a fim de comparar os cervídeos de lá com os encontrados na Amazônia brasileira. Vimos que eles são parecidoscomosnossos,mashádiferenças”, conta. Além disso, animais muito parecidos (crípticos) podem ser reconhecidos como espécies distintas.“Nossa comparação indicou que o M. memorivaga poderá ser dividido em três espécies.”
Jorge Morales/Divulgação
Eduardo Cesar/Divulgação
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Esse trabalho de distinção não é nada simples. Isso porque, raramente, os pesquisadores têm contato com os animais livres. Exímios farejadores e donos de ouvidos aguçados, desaparecem na mata antes mesmo de os cientistas conseguirem colocar os olhos neles. Coletar uma mostra de sangue para realizar exames comparativos de DNA, então, nem pensar. A saída é colher, com a ajuda de cães (leia mais nesta página), as fezes dos bichos para a análise, um processo muito mais complexo, pois o material genético deve
No mato, com cachorro Veado-catingueiro, encontrado na maioria das regiões brasileiras: cervídeos sofrem com a perda do hábitat natural
Todo mundo conhece os cães que encontram drogas nos aeroportos pelo cheiro, mas essa não é a única utilidade desses narizes tão apurados. Na literatura científica, a utilização de cachorros para encontrar fezes de animais para análise é cada vez mais recorrente. E até mesmo para encontrar material fecal de baleias que flutua no mar, os melhores amigos do homem entram em ação e direcionam os comandantes das embarcações. Por isso, uma das grandes estrelas da equipe do Núcleo de Pesquisa e Conservação de Cervídeos (Nupecce), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Jaboticabal, é a vira-lata Granada, especialista em encontrar as fezes de veados, tão importantes para o time de cientistas. A cadela foi primeiro treinada pela Polícia Militar, que a ensinou como identificar objetos específicos pelo cheiro. Depois, já convivendo com os pesquisadores, Granada foi a campo e, em uma semana, aprendeu a identificar o material buscado. Quando encontra alguma amostra, a cadela ganha, em agradecimento, uma bolinha de tênis, com a qual gosta de brincar.
Preservação
ser colhido quando os resíduos estão frescos e ainda não foram degradados pela ação de enzimas. Desde 2002, marcadores genéticos que permitem identificar a quais gênero e espécie os conteúdos fecais pertencem foram desenvolvidos pelo Nupecce, que conta com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Com isso, além de diferenciar e descobrir espécies, os cientistas conseguem mapear as áreas de ocorrência dos veados brasileiros, calcular o risco de ameaça a que estão submetidos e fornecer dados que ajudam na elaboração de políticas de preservação e na criação de
áreas de proteção. Hoje, sabe-se que quatro das oito espécies já catalogadas estão ameaçadas, e sobre outras três há dados insuficientes para uma avaliação confiável (veja mapas).
Riscos Atualmente, o principal inimigo dos cervídeos no Brasil é a perda do hábitat natural. Além disso, a aproximação das populações de veados com o gado doméstico favorece a transmissão de enfermidades, como a língua azul e a doença epizoótica hemorrágica, que afetam principalmente bois e vacas. Eles ainda são vítimas da caça ilegal.
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Coleta
Treinada por policiais e cientistas, Granada ajuda a mapear os cervídeos usando o faro apurado
Os cães são outro perigo, pois podem detectar veados e persegui-los por horas. Os cervos são conhecidos pela agilidade e pela reação rápida, ideais para fugir das onças e suçuaranas, que desistem mais rapidamente de pegar uma presa que escapa do primeiro ataque. Cachorros, no entanto, ficam no encalço por horas e, mesmo quando não são pegos, os veados podem morrer em decorrência de uma síndrome causada pela intensa atividade física durante a fuga, a miopatia de captura. As hidrelétricas no estado de São Paulo foram grandes responsáveis pelo acuamento dos bichos nas regiões por onde passa o Rio Tietê. O veado-campeiro
(Ozotoceros bezoarticus), típico da região, se não for visto nos próximos anos, pode ser classificado como regionalmente extinto. “Esses são animais de grande porte. Com o desmatamento das florestas, ficam confinados a espaços muito pequenos. É como colocá-los em uma jaula. Apesar de existir a lei de compensação ambiental, no caso das hidrelétricas, que obriga a reposição do ambiente que foi inundado, a mata replantada demora, no mínimo, 50 anos para crescer. Os animais não podem esperar tanto tempo”, lamenta Lena Geise, professora do Departamento de Zoologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
O núcleo utiliza cães desde 2002, quando o cachorro Apolo, morto em 2007, começou a ajudar a equipe. Os dados recentes em relação à localização do veado-mateiro e do veado-mão-curta foram colhidos com a ajuda de Granada e serviram para definir áreas de conservação dessas espécies. Os resultados foram descritos na tese de doutorado de Márcio Leite de Oliveira, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (EsalqUSP). “Sabendo onde estão localizados e qual o tipo de vegetação que utilizam para viver, podemos fornecer dados para que se protejam essas áreas”, explica o também pesquisador do Nupecce.