A Província dos Ursos de Vento
JOSÉ BEFFA
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JosĂŠ Beffa
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A ProvĂncia dos Ursos de Vento
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José Beffa
Copyright © 2017 by José Beffa Editor Vítor Uchôa Capa e Projeto Gráfico Vítor Uchôa Revisão Suellen Mendes Impressão e acabamento: PSI 7 - Soluções Gráficas
[2017] Todos os direitos desta edição reservados à Luva Editora. Rua Garcia Redondo, 68. - 207751-70 Cachambi - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. www.luvaeditora.com.br
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Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.
Ariano Suassuna
Quando as florestas forem destruídas e os animais forem mortos, os humanos devorarão seus próprios semelhantes, porém, alguns não aceitarão esse destino...
José Beffa
PREFÁCIO O NASCIMENTO DE UTOPIAS EM MEIO AO MUNDO DISTÓPICO A leitura de A Província dos Ursos de Vento, de José Beffa, me fez ficar pensando em uma série de coisas, entre elas o nascimento de utopias em meio ao mundo distópico em que vivemos. Para a filosofia, a distopia aparece como um universo caótico que constrói mecanismos de opressão tão violentos a ponto de se tornarem insuportáveis para os sujeitos que vivem nele. É o caso do pool de empresas que constituem o Mercalimento. Qual a solução para enfrentar uma crise mundial de alimentos? Tornar a sociedade canibal e a partir deste prisma, criar uma série de normatizações que fizessem do cidadão que não cumprisse as leis de acordo com essas normatizações, um objeto... Você consegue imaginar o que é estar andando pelas ruas de uma grande cidade em um futuro não muito distante e encontrar máquinas de comida que oferecem como quitute a carne de outro ser humano? Não, não, não... De um ser humano não. De um objeto. É assim que os sujeitos que não se adequam ao novo sistema são chamados: objeto. No universo distópico criado por Beffa, temos a representação maior daquilo que é a lógica da coisificação humana. Não vemos no outro um ser igual. Vemos nele um objeto, passível de ser descartado e de servir de repasto... Nesse ambiente de violência extrema que se constrói a passos largos a partir desta objetificação, crianças recém-nascidas são servidas como iguarias para os milionários que o sistema criou! Algumas pessoas poderiam pensar agora: “nossa, que ideia absurda!”. Pense na lógica do mundo contemporâneo em que vivemos com um pouco mais de calma e nos milhares de crianças que são mortas pelas guerras no mundo, como o conflito que ora 8
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vige na Síria e você verá que a distopia está presente em nossos dias. Nós a assistimos através das páginas da internet, circulando via redes sociais. Nós a assistimos através das nossas televisões. A distopia presente em A Província dos Ursos de Vento apenas carregou um pouco mais nas tintas de distopias que já foram trazidas até nós por obras como Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451. Os discursos totalitários que fazem parte destes textos são considerados obras de ficção. Mas sua sonoridade contém referências que, atualmente, fazem parte do nosso cotidiano. Porém, o livro de José Beffa traz em si uma esperança. Ele apresenta o nascimento de uma utopia em meio ao caos. Um novo cosmos. E ele nasce do amor que envolve Matheus e Amanda e da comunhão que representa neste contexto, a união dos dois. A esperança plantada pela força do amor insiste em fazer nascer um novo universo. Convido você, a compartilhar esta esperança. É simples... Basta virar a página. Márcia Medeiros (A Idade Média Narrada por um Vampiro)
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Capítulo I
Amanhecer de escuridãO
A Província dos Ursos de Vento
Zona do Trabalho. Bairro intrassetorial
O som dos carros causava arrepios na mente de Matheus. Estava sentado na poltrona de sua sala de estar observando o relógio da parede marcar meia-noite. Seu coração estava acelerado e suas mãos tremiam. Sua esposa havia descoberto que estava grávida na noite anterior. Se ele tivesse recebido tal informação nove anos atrás talvez tivesse sido a notícia mais feliz de sua vida. Mas não agora. Não quando o planeta Terra se transformara numa sociedade canibal e o preço da carne de recém-nascidos custava milhões de Críveis no Mercalimento. — Acordado? — indagou Amanda, acendendo a luz e entrando na sala. — É. Não consegui dormir. — Você precisa tentar descansar, pelo menos um pouco. — Eu sei disso, mas não adianta; eu não consigo. Amanda se aproximou dele e o abraçou. — Nós vamos dar um jeito, tenho certeza de que se conversarmos com o Jorge, da secretaria geral, vamos conseguir a autorização. — Você sabe que só dá pra conseguir a autorização com uma antecedência de pelo menos seis meses antes de engravidar. — A gente vai dar um jeito. Eu posso falar com a Beatriz, o irmão dela conhece um cara que trabalha na procuradoria do Estado, talvez eles possam nos ajudar — disse enquanto apertava a mão de Matheus. — E você confia nessas pessoas? Não dá pra confiar nem nos nossos amigos e você quer arriscar sua vida e do bebê com pessoas que nunca viu na vida? Amanda baixou a cabeça, decepcionada. — Nos resta tentar realizar um aborto — disse. — Era nosso sonho ter essa criança quando nos casamos. — Sim, era tudo o que eu mais queria! Mas eu prefiro dar ao meu filho uma morte indolor do que vê-lo se transformar numa sopa pra algum milionário maldito. — Mesmo assim é muito arriscado pensar em aborto, se for descoberto algum indício do procedimento, a sentença é morte no abatedouro. — Eu sei, mas eu não consigo imaginar outra solução. 11
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— Sabe, ontem enquanto estava trabalhando, eu ouvi uns caras gringos, que vieram da Zona do Subemprego, conversarem sobre um lugar que... — Matheus parou de falar assim que ouviu o barulho de sirenes. — A polícia do espelho! — exclamou Amanda. Os dois ficaram em silêncio na escuridão, ouvindo a viatura se distanciar. — Não era nada, fique calma. Amanda continuou a apertar a mão de Matheus. — Como eu ia dizendo, eu ouvi uns caras no trabalho falando sobre um lugar que a gente podia ir... Um lugar em que o Mercalimento não está presente. — Que lugar? — Fora da Ostécia do Sul. — Você quer dizer a Norésia? — Não, ninguém da B-16 conseguiria entrar lá, as leis de imigração deles são absurdas, e você sabe que eles têm aversão a todos que são de classes baixas. Além do mais, é na Norésia a sede do Mercalimento. Eu estou falando de um lugar diferente de tudo isso. — Como assim? — Eu não sei direito..., mas eu não vou deixar você ou o nosso bebê morrerem. — Matheus... — Eu prometo pra você isso. Amanda abraçou Matheus enquanto chorava em seus braços.
Zona do Trabalho. Distrito da Metalurgia pesada.
Matheus acabara de bater o ponto. Ficou acordado a noite toda pensando no dilema que estava vivenciando, porém mesmo assim não chegou atrasado. Os outros trabalhadores colocavam seus aventais e precários equipamentos de proteção. As paredes desgastadas e escuras passavam uma sensação agonizante para ele. No outro lado da sala, avistou Manoel colocando uma moeda numa máquina da Carnemax. — Comendo carne a essa hora? — indagou. 12
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— E tem horário melhor? Comer logo de manhã dá força pra trabalhar o dia todo. — Pode ser... Mas não é estranho pra você? Quer dizer, você pode estar devorando um antigo colega de trabalho. — E todos nós não estamos? Mas eu não quero saber a história da minha comida, apenas seu sabor. — Eu gosto da Carnemax — disse Carlos, entrando na conversa. — Mas prefiro o sabor da Chronos, acho mais picante. — Pois é, eles deviam variar, aqui na Metalurgia só tem máquinas da Carnemax — disse Manoel. Deixando os dois para trás, Matheus colocou seu avental e suas braçadeiras e desceu a escadaria. Eram vários degraus, e quanto mais descia, mais quente ficava. Porém ele já havia se acostumado. Passara os últimos três anos trabalhando na Metalurgia Pesada e o calor não o incomodava mais. Na realidade, o que o perturbava era sua mais recente descoberta. Ter um filho naquele mundo terrível e hostil lhe dava calafrios, ainda mais quando se lembrava de sua infância: um tempo próspero em que não existia a Ambrus Chitogiosis, nem o Mercalimento para se preocupar. Aproximou-se dos equipamentos e começou a soldar o metal. Porém, seus olhos procuravam pelos dois estrangeiros que havia conhecido no dia anterior. A hora passou e não encontrou os homens em lugar algum. Todavia, não desistiu de procurar. Quando o capataz passava para averiguar o trabalho dos operários ele se empenhava no que estava fazendo, para não levantar qualquer suspeita. Quando enfim seus olhos se cansaram, aproximou-se de Manoel. — Você se lembra daqueles dois gringos de ontem? — De quem? — respondeu, sem nem olhar pra Matheus. — Daqueles dois gringos! Eles vieram da Zona do Subemprego, mas acho que eram de algum lugar da Venéstia. — Eu não sei não. Ei, Carlos! — gritou. — O que é? — respondeu rispidamente. — O Matheus tá perguntando sobre dois gringos que estavam aqui ontem, você sabe de alguma coisa? — Gringos? Quem? O Osman e o Tabor? —perguntou enquanto soldava a liga de cobre. — Era um que tinha uma cicatriz no olho esquerdo? — indagou Carlos. 13
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— Esse mesmo! —Deve ser o Tabor. — Sabe onde eles estão? Carlos fitou Matheus nos olhos e disse com a voz um tom mais baixa: — Aqui não. Me encontre perto da lavanderia no fim do expediente. Nós conversaremos lá. Matheus assentiu e voltou ao trabalho, contando as horas e os minutos para o fim do expediente. Assim que o turno acabou, subiu as escadas, guardou seu avental e braçadeiras no armário e correu em direção à lavanderia. Chegando lá, porém, não viu ninguém além dos poucos funcionários que ainda estavam circulando. Encostou-se na parede e se pôs a esperar. Enquanto olhava para uma mesa no canto da sala, notou um antigo terminal de acesso. “Provavelmente abandonado depois da calamidade” pensou. A máquina tinha um aspecto quadrangular. Lembrava as antigas televisões de tubo do século passado. Era um dos inúmeros terminais informativos que costumavam ficar espalhados por todas as cidades. Depois da calamidade, surgiram diversas invasões dos hackers da resistência aos sistemas, contudo para não levantar mais suspeitas, o governo evitou destruí-los diretamente, apenas descontinuando-os em troca de telas mais modernas e seguras. Com o passar dos anos, vários deles foram destruídos por vandalismo, ou furto de peças, mesmo assim não era algo incomum encontrá-los ativos pela cidade. Um deles estava ali: na frente dele e funcionando. A notícia mais recente daquele informativo datava de 26 de julho de 2095, oito anos atrás, a data em que começou o declínio da sociedade global e o fim das Nações Unidas. Ele acessou a notícia e leu seu conteúdo. A calamidade no planeta continua. Milhões de vítimas estão morrendo nas filas de hospitais em todo o mundo. Como foi anunciado ontem em todas as emissoras, a União Europeia decretou calamidade pública e interditou todos os seus portos e aeroportos. Ainda não se sabe exatamente como o vírus é transmitido, porém foi constatado que 99% das espécies animais conhecidas, com exceção da espécie humana, são suscetíveis à transmissão do Ambrus Chitogiosis sem ter tido qualquer contato com a carne contaminada. Por isso recomendamos: Fiquem longe dos animais e não consumam carne em hipótese alguma! O vírus consegue se alojar dentro do organismo humano após a ingestão da carne do animal contaminado e o óbito
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ocorre em até 24 horas após o consumo do alimento! Os cientistas informam, porém, que todos os vegetais, legumes e frutas estão livres do vírus, podendo ser consumidos sem quaisquer problemas; no entanto, com a baixa área de plantio desde o baby boom do novo século, tememos sobre o futuro da humanidade. Esta é a Gazeta dos Patriotas. Em breve traremos novas informações para todos os Terminais Informativos do país. (Alexandre Reinaldo de Oliveira.)
“Parece que esse terminal não recebeu nenhuma notícia depois dessa”, concluiu após perceber que os cabos de fibra ótica foram rompidos, cortando a conexão daquele terminal com a antiga internet global.
Minutos mais tarde, Carlos foi de encontro a Matheus. — Achei que você não ia aparecer nunca. — Desculpe a demora. Enfim, por que você quer saber sobre os gringos? — É um assunto pessoal. Você se importa? — É, me importo sim. Me importo ainda mais porque eles estão trabalhando pro Rafael nos Abutres Insanos. — Os mercenários? — Sim, eles são piores que a polícia do espelho; você sabe disso. — Como eles conseguiram emprego nos mercenários? — Os caras têm treinamento. São muito perigosos. O que me faz pensar no que você quer falar com eles — a desconfiança estava nítida no semblante de Carlos. — Como eu disse, é um assunto pessoal. Preciso apenas falar com eles. — Você ouviu o que eu disse? Os dois entraram pros Abutres Insanos, você não vai conseguir nem chegar perto deles. — Como eles conseguiram entrar pros Abutres? — O quê? — Você entendeu o que eu disse. — Como eu vou saber? Eles devem ter procurado o Rafael. — E como eu encontro o Rafael? 15
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— Você tá falando sério? — Sim, estou caramba! — A vida na metalurgia não pode ser tão ruim assim. — Digamos que eu só estou cansado dessa merda — falou enquanto fitava Carlos. — Vamos, como eu me encontro com o Rafael? — Não vou me fazer de desentendido, Matheus. Eu sei por que você está procurando os gringos. — Que diferença isso faz pra você? — Faz diferença porque eu me importo com você e com a Amanda — pôs a mão no queixo. — Você está procurando pela província dos Ursos de Vento, o lugar que o Osman e o Tabor comentaram outro dia. — Se você sabe algo, por favor, me conte — aproximou-se de Carlos. — Eu não vou contar, porque só colocaria você na direção de uma coisa que vai acabar te matando; e não quero ver você me culpando se alguma coisa acontecer com a Amanda — cruzou os braços. — Isso me faz pensar no motivo de você estar procurando esse lugar. — Isso não importa pra você — apontou o dedo para o homem. — Vai me ajudar ou não? — Sim. Como eu disse, não vai saber nada sobre a província dos Ursos de Vento comigo, mas para que você não diga que eu nunca te fiz nada, vou te apontar uma direção — juntou as mãos. — Você pode encontrar os capangas do Rafael todos os dias perto do antigo hospital central, na Zona do Albergue, lá por volta das dez horas da noite. Convencê-los de te ajudar é problema seu. — Obrigado. — Não tem de quê. Tente tirar essa ideia da cabeça, pois pode acabar te matando. Matheus se despediu de Carlos e deixou a fábrica da Metalurgia Pesada. As ruas escuras eram perigosas, principalmente naquela região da Zona do Trabalho. Era quase onze horas da noite, os mendigos e moradores de rua começavam a procurar abrigos mais seguros. Matheus portava seu cartão civilizacional regularizado, o que o deixava relativamente seguro, mas sabia que aqueles moradores de rua que corriam apressados ao seu redor não possuíam tal regalia. “Estão todos condenados”, pensou. “Não posso deixar que esse mesmo destino caia por cima de Amanda”, refletiu. 16
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Colocou a chave na fechadura e abriu a porta. Sua casa tinha apenas quatro cômodos: um quarto; uma sala minúscula; uma cozinha e um banheiro. Nos fundos, ainda havia um jardim. Sentiu o cheiro dos vegetais e seguiu para a cozinha. Amanda estava cozinhando uma sopa de legumes. Ambos haviam trabalhado o dia todo e se revezavam na hora de cozinhar. Aquele era o dia de Amanda preparar o jantar. Matheus preferia assim. Ele gostava mais do sabor da comida dela do que da dele. — Esse cheiro está delicioso — falou sorrindo, ao abraçar sua mulher. — É uma sopa de cenoura com batata — respondeu com outro sorriso. — Vai ser ótimo! Nenhum dos dois comia carne. Não depois da calamidade. Apesar de existir uma propaganda feroz em relação ao consumo da carne de objetos, nome que era dado à carne humana, ambos preferiam ignorar tal opção. Sobreviviam dos vegetais que cultivavam no minúsculo jardim da casa em que moravam. Os vegetais eram caros e a carne era barata. Eram poucas as pessoas da classe B-16 que possuíam dinheiro para comprar os caríssimos vegetais que existiam no Mercalimento. — Vai demorar um pouco pra ficar pronta. — Tudo bem — disse ele. — Vou esperar na sala. — Vai lá — respondeu ela, dando um beijo em sua boca. Matheus sentou no sofá e ligou seu antigo terminal informativo. Lembrou-se de que usava demais aquele aparelho quando as primeiras notícias da calamidade surgiram. Naquela época, todas as pessoas queriam encontrar respostas para o problema que havia aparecido e ninguém sabia direito o que estava acontecendo. Arrastou o botão virtual até achar a última notícia que aquele terminal recebera. Datava de 9 de agosto de 2095. Alguns meses após a notícia que leu na Metalurgia. O problema da superpopulação encontrará seu desfecho? Durante os últimos trinta anos, a população mundial cresceu em uma proporção inimaginável. A alta tecnologia nos deu, por algum tempo, uma vida tranquila. O planeta era o ambiente perfeito para os humanos: fontes de tratamento de água despoluíram os principais rios do planeta; as cinco principais indústrias de alimento conseguiram transformar a carne bovina num alimento acessível para todos; a medicina atingiu seu patamar mais elevado da história, dando-nos a cura para a maioria das doenças que existiam no começo do século XXI. Afinal, construímos um planeta perfeito. Com a falta de problemas e alto índice de desenvolvimento humano,
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tivemos o Baby Boom do novo século. A população mundial, que contava com 7 bilhões de indivíduos no final do ano de 2016, chegou a 36 bilhões de pessoas. A comida, que antes era acessível, passou a ser racionada. A água potável já não chegava a todos os lares. Os remédios não eram suficientes para toda a população. Na última década, nós começamos a viver uma era das trevas com a falta de recursos. Porém, jamais poderíamos ter previsto que as coisas ficariam ainda piores: toda a fonte de alimento animal perdida para sempre. Alguns teóricos sugerem que as lavouras nos salvarão; porém, outros são mais pessimistas quanto a isso, já que, com o baixo interesse da população mundial em consumir vegetais, fora dado pouca importância para as plantações nas últimas décadas e, se não bastasse isso, as principais zonas vegetais do mundo foram completamente desmatadas para dar lugar às megalópoles. Será que estaremos condenados e a humanidade finalmente encontrará seu fim? Só o tempo responderá essa pergunta. Esta é a Gazeta dos Patriotas. Em breve traremos novas informações para todos os Terminais Informativos do país. (Alexandre Reinaldo de Oliveira.)
“Se as pessoas soubessem sobre a calamidade antes de acontecer, talvez tivessem dado prioridade para a plantação de grãos e vegetais e as coisas seriam diferentes hoje”, pensou. “Depois da calamidade ficou quase impossível investir em lavouras, já que a população cresceu tanto que ocupou quase todos os cantos do planeta. Atualmente, quase tudo é cimento”, refletiu. Desligou o terminal, foi até a cozinha e sentou-se à mesa. — Amor, eu preciso falar algo. — O que foi? — indagou ela, enquanto segurava a panela. — Não espere por mim amanhã depois do trabalho. — O quê? Do que é que você está falando? — Eu... Preciso resolver umas coisas na Zona do Albergue. — Do que você está falando, Math? — desesperou-se. — Nós precisamos resolver esse problema... Você sabe disso. — O que você pretende fazer? — questionou enquanto se sentava na cadeira próxima ao marido. — Nada demais, apenas conversar com algumas pessoas. — Que pessoas? — Olha, só confia em mim. 18
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— Eu não gosto disso. — Por favor, só me deixa fazer isso. Vai ficar tudo bem. — Eu não sei. — Nós nos vemos depois de amanhã, eu prometo — jurou segurando a mão dela. — É bom mesmo. E por favor, me prometa que não vai fazer besteira. — Eu prometo.
Matheus chegou ao trabalho e se reuniu com seus colegas no juramento matinal ao Mercalimento. Após o juramento, voltou para dentro da Metalurgia e bateu o ponto. Colocou o avental e as braçadeiras de proteção e desceu as escadas. Ignorou a presença de Carlos e Manoel. Era mais um dia de trabalho de 14 horas seguidas. Mas tinha em mente que aquele dia seria diferente. Quando o relógio marcasse dez horas da noite ele deixaria a Metalurgia e seguiria para a Zona do Albergue. Matheus sabia que a Zona do Albergue era um dos lugares mais horríveis da Ostécia do Sul. Sua sorte era que morava na fronteira entre a Zona do Trabalho e a Zona do Albergue. Pelos seus cálculos, se apanhasse o trem dos trabalhadores, chegaria ao seu destino em aproximadamente meia-hora. Sua eficiência em soldar os metais nunca fora tão elevada. Estava tão obstinado em encontrar os dois mercenários que trabalhava com voraz determinação. A hora passou e o fim do expediente chegou. Correu para os vestiários e guardou suas braçadeiras e seu avental. Estava prestes a deixar o local quando Carlos o alcançou. — Eu sei o que você está procurando. — Aposto que você sabe — disse sem olhar para o companheiro. — A província dos Ursos de Vento é o lugar para onde todos que acabam tendo algum tipo de problema vão — se encostou na parede, ficando com os braços cruzados. — Você sabe que lugar é esse? — começou a prestar atenção na conversa. — Eu apenas ouvi boatos — baixou a cabeça. — Mas você tinha razão, não é problema meu. Você vai conseguir o que quer com os gringos, boa sorte. — Se você me disser o que eu quero saber agora, talvez poupe algum tempo pra mim — aproximou-se do companheiro. 19
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— Lamento. Falar com você sobre esse lugar só me colocaria em problemas, por isso te apontei uma direção. — Me ajudar não vai te dar uma promoção, não é? — ironizou. — Entenda como quiser — levantou os braços e se retirou. Matheus esperou o companheiro desaparecer no corredor escuro e seguiu em direção ao seu destino. A Estação Novicentro ligava a Zona do Trabalho à Zona do Albergue. No passado era conhecida como Estação da Luz, porém, com o passar dos anos, as paredes brilhantes e claras tornaram-se escuras, as vigas de metal enferrujaram-se, e o chão tornou-se desgastado e sujo. A Zona do Albergue era um lugar que Matheus visitara poucas vezes, considerava aquela cidade um lugar perigoso e traiçoeiro. Assim que chegou à Estação, dirigiu-se às catracas que eram comandadas por desgastados e antigos androides. Posicionou-se no final da fila. À sua frente estava uma mulher, com roupas surradas e olhar abatido. “Talvez seja da B-17 ou B-18, essas pessoas nunca teriam a chance de morar na Zona do Trabalho, pobres coitados”, pensou. Cada uma das pessoas da fila posicionava seu cartão no visor de leitura digital e o androide autorizava a passagem após analisar a situação civilizacional do indivíduo. A mulher que estava a frente de Matheus colocou seu cartão no visor de leitura ótica. Alguns segundos se passaram e o computador emitiu o aviso: Situação cadastral inválida. Cartão clonado. O objeto deve ser destinado ao abatedouro imediatamente.
— Não! Eu sou uma cidadã! Eu sou uma cidadã! — gritou a mulher. — Por favor, aguarde a chegada da polícia do espelho — falou calmamente o androide. A mulher agarrou uma pedra do chão e jogou contra o olho esquerdo do robô, abrindo um buraco e expondo fios e circuitos elétricos. — Temos um objeto descontrolado! Repito: temos um objeto descontrolado! — anunciou o robô. Uma das comportas laterais se abriu, e um batalhão de soldados, todos equipados com armaduras pretas e máscaras que ocultavam completamente o rosto, correram em direção à mulher. — Afastem-se! — gritou ela. 20
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— Usem munição não letal! A carne não deve ser estragada! — gritou um dos soldados. A mulher se pôs a correr para longe dos soldados, porém um grupo de pessoas que estava esperando para embarcar a segurou. — Você não vai escapar, desgraçada! Com o seu peso vai dar uma deliciosa picanha! — disse um homem que a agarrava. — Aqui é a polícia do espelho! Afastem-se do objeto imediatamente! — disse um dos soldados. A mulher foi imobilizada pelos soldados e teve um saco preto colocado sobre a cabeça. Foi escoltada para um camburão preto que estava estacionado na rua da Estação. Matheus observava a situação, indignado com a calma com a qual as pessoas lidavam com aquilo. — Senhor, é a sua vez. Por favor, coloque seu cartão no visor — disse o androide, ainda com a pedra alojada em seu olho esquerdo. Matheus agarrou seu cartão e colocou no visor. O computador analisou e autorizou sua passagem. — O senhor é um cidadão da classe social B-16. O que alguém como o senhor está querendo fazer na Zona do Albergue? — Eu... eu tenho um... amigo que mora lá — quase disse que tinha um parente na Zona do Albergue, mas logo se lembrou que o Androide analisaria seu cadastro e descobriria a mentira. — Tudo bem, pode passar; mas não se esqueça que seu emprego começa amanhã, oito da manhã, então esteja novamente na Zona do Trabalho com no mínimo uma hora de antecedência do início de seu expediente. — Não se preocupe, estarei. O androide abriu a porta da catraca e Matheus entrou no trem. Era uma longa locomotiva cinza. A fumaça que saía do maquinário fez com que tossisse uma ou duas vezes. Entrou na máquina e procurou um lugar para se sentar. Como pertencia à B-16, possuía assento preferencial na parte dianteira. Sentou-se num dos bancos, observando um terminal informativo que estava à sua frente. “Eu me pergunto quando foi que esse terminal foi desconectado da antiga internet global”, refletiu. Ligou o terminal e procurou pela notícia mais recente. Surpreendeu-se que datava de 10 de dezembro de 2085, 18 anos atrás, época em que ele ainda era adolescente. 21
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O futuro será retrô? Os recursos naturais estão escassos e cada vez mais raros e caros. As cidades e construções urbanas tomaram conta de quase todas as áreas naturais do nosso planeta. Em razão disso, as empresas de tecnologia estão encontrando dificuldades para atender à demanda. Com poucos recursos para fabricação dos aparelhos eletrônicos, a resposta está sendo reciclar objetos do passado. Então o leitor não se assuste se, nas principais lojas de eletrônicos, deparar-se com aparelhos televisivos que parecem ter saído do início do século XX, ou smartphones e tablets que parecem mais gambiarras fabricadas no século XIX. Isso será a regra de agora em diante, segundo especialistas da área. O empreendedor e piloto, Aubrey Leonardo, afirma que, reciclando objetos antigos e não se importando com o design arrojado e contemporâneo dos aparelhos eletrônicos, as empresas conseguirão produzir mais, em menos tempo e por um custo menor. Inclusive, as naves modernas que sobrevoavam a cidade com anúncios gigantes estão sendo substituídas por zepelins que fazem a mesma coisa custando metade do preço, já que não existe mais combustível suficiente para fazer todas essas naves voarem. O mesmo vale para os trens-bala e outras tecnologias recentes. Esta é a Gazeta dos Patriotas. Em breve traremos novas informações para todos os Terminais Informativos do país. (Alexandre Reinaldo de Oliveira)
“Eu me lembro daquele tempo. Nós achávamos que o futuro seria lindo e brilhante, pelo menos era isso que a televisão e os filmes mostravam. Se alguém me perguntasse, eu nunca iria imaginar que o mundo se tornaria uma versão ruim, suja e futurista do século passado”, refletiu. Matheus se virou e avistou uma mulher grávida em pé. Logo imaginou que Amanda estaria na mesma situação em alguns meses. “Já que ela passou pela catraca, deve ter autorização pra engravidar”, pensou. Levantou-se e pediu para a mulher se sentar em seu lugar. — Não, muito obrigada — disse ela, visivelmente constrangida. — Por favor, sente-se, eu insisto — falou mesmo sabendo que a mulher recusaria novamente, já que aquele assento era reservado para pessoas da Classe B-16, e proibido para classes inferiores. — Não, eu estou bem aqui — respondeu ela, com um sorriso. Mesmo sabendo que não iria convencê-la a sentar naquele banco, se manteve de pé. Não achava justo uma grávida ficar em pé a viagem toda. 22
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Zona do Albergue. Bairro Novicentro.
O trem havia acabado de chegar ao destino e as pessoas desembarcavam apressadas. Matheus se esgueirava na multidão e procurava a saída da Estação. Saiu pela porta principal e logo procurou um dos terminais de localização para saber onde ficava exatamente o Hospital Central. A tela do velho computador de acesso público era tão antiga que as informações eram quase ininteligíveis. Não existia mais reparação pública, e os objetos eletrônicos a serviço da população estavam abandonados à própria sorte. Com certo esforço, Matheus conseguiu localizar o antigo Hospital Central no mapa da tela e se pôs a caminhar. Segundo Carlos, os homens que conheciam Rafael estariam próximos ao hospital por volta das dez horas da noite. Matheus analisava os relógios dourados, alguns com robustos e sofisticados arcos giratórios sobre o corpo de metal, para garantir que não estava atrasado. Não demorou muito para avistar as paredes rachadas e janelas quebradas do antigo hospital. Na parte da frente alguns moradores de rua se aqueciam com os pneus velhos que pegavam fogo. Era um lugar devastado. O tráfego de carros era proibido em toda a Zona do Albergue, e os únicos veículos que transitavam eram os de autoridades, dos Abutres Insanos ou da polícia do espelho. Além do mais, os habitantes da Zona do Albergue pertenciam, em sua maioria, às classes sociais B-17 ou B-18, não tendo dinheiro parar comprar, sequer, a roda de um veículo automotivo. Continuou andando até avistar cinco homens, com armas de fogo nas mãos, encostados numa parede. — Com licença — falou se aproximando do grupo. — Quem é você? — questionou um dos homens, andando até ele. — Vocês são dos Abutres Insanos? — Por que tu quer saber? — disse o homem. — Eu estou procurando por duas pessoas. — Você ficou maluco, cara? — disse apontando o fuzil para Matheus. — Não! Espera! Eu só quero uma informação! — falou desesperado. — Eu sou um cidadão! Posso mostrar meu cartão pra vocês! — Guarda isso pra polícia do espelho, nós queremos que se foda se você é um cidadão ou não, se você pisar na bola, você é objeto! 23
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— Eu não quero fazer nada de errado, eu juro — argumentou. — Eu estou procurando por duas pessoas que trabalhavam comigo, mas que agora entraram pros Abutres Insanos. — Quem são essas pessoas, e o que você quer com eles? — indagou um dos homens, aparentemente calmo e fumando seu cigarro. — Eles se chamam Osman e Tabor, e eu... — Matheus procurou bem as palavras, não podia entregar a verdadeira razão pela qual estava procurando os dois estrangeiros. — Como eles trabalhavam comigo, eu queria saber o que fizeram pra entrar pros Abutres Insanos, porque eu também queria entrar. O homem que estava fumando deu uma gargalhada. — Então você quer entrar pros Abutres? — falou ainda gargalhando. — Eu... sim, eu quero — falou se odiando pela resposta, mas sabia que se falasse algo muito diferente disso, aqueles mercenários poderiam matá-lo apenas por diversão e fazer um churrasco com sua carne. — Tudo bem — falou o homem, tirando o cigarro da boca. — Vamos levá-lo pra dentro, ele vai ver o Rafael. — Você tem certeza disso, Valmir? — Ele conhece o Osman e o Tabor, então eu não vejo problema com isso. — Que seja. Os homens seguraram Matheus pelos braços e o levaram para dentro do antigo hospital. O interior do edifício era usado pelos soldados mercenários. Caixas de munição, armas e medicamentos podiam ser encontradas espalhadas por todos os lados, além de galões vermelhos, que concluiu guardarem gasolina ao perceber que um deles estava vazando. — Por aqui, me acompanhe. O mercenário levou Matheus até um elevador e ordenou que ele entrasse. — Eu vou te mandar pro último andar, pra sala do Rafael. Quando chegar lá só abra a boca se alguém falar com você, ou estará morto. Entendeu? — Sim, claro. A porta do elevador se fechou. Observou que havia um terminal informativo ao seu lado. Tentou acessá-lo, porém aquele estava quebrado. “Devem ter saqueado pra roubar as peças”, concluiu. Quando finalmente chegou ao último andar, deixou o elevador e se deparou com um grupo de mercenários o encarando. 24
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— Então você é o cara que o Valmir enviou? — falou um dos homens. — Ótimo, carne fresca! Venha por aqui, rapaz! O homem guiou Matheus até uma sala. Abriu a porta e o mandou entrar. Era uma sala oval. Vários seguranças fortemente armados protegiam o homem que estava sentado num trono de ouro. “Com certeza esse aí é o Rafael”, concluiu. Ao lado de Rafael, várias mulheres seminuas estavam sentadas, comendo pedaços de carne e bebendo das mais variadas bebidas alcoólicas. O líder dos mercenários possuía cabelos brancos, uma cicatriz no queixo e um físico invejável. — Ouvi dizer que você quer entrar pro meu grupo — disse Rafael. — Sim, senhor. — Me mostre seu cartão civilizacional. — Aqui está — falou enquanto tirava o cartão do bolso. — Está em dia, como poderá analisar. Rafael pegou o cartão e colocou no visor de seu computador de mão. — Tudo bem, você está em ordem. É da classe B-16, hein? — Sim, senhor. — O que você busca nos Abutres Insanos? — Ação. Uma vida mais agitada. — É sério? — indagou com um sorriso sarcástico. — Ouviu isso, Gabriel? Nós temos um aventureiro aqui! Gabriel se limitou a rir. — Nossa equipe não tem espaço pra aventureiros. A polícia do espelho espera que façamos bem o nosso trabalho, e é isso que fazemos. Você acha que tem o que é necessário pra se unir a nós, rapaz? — Sim, senhor; é por isso que estou aqui. — Muito bem. O que você acha, Gabriel? — Nós perdemos quase um batalhão inteiro naquele conflito contra os dissidentes nublados, talvez um cara a mais não caia mal. — É, talvez. Pelo que eu pude ver no seu histórico você nunca teve problemas com o governo também. — Não, senhor. — Ótimo, eu não costumo contratar gente nova assim, mas talvez eu te dê uma chance, rapaz. 25
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— É só me dizer o que eu tenho que fazer. — Você já pegou numa arma de fogo antes? — Não. — Imaginei que não. O Valmir te colocou pra dentro, então ele vai se encarregar de te ensinar a manusear uma. — Eu agradeço muito. — Mas não se engane, você não está dentro. Vai passar por um teste primeiro. Se não passar no teste, pode voltar pra Metalurgia Pesada que é o seu lugar. — Tudo bem. — Agora siga o Roberto, ele vai te levar para os dormitórios. Fique lá até ser chamado. Matheus assentiu e seguiu Roberto. Voltou para o elevador e saiu no andar dos dormitórios. Vários mercenários o encaravam, porém ele os ignorou e seguiu na direção que Roberto apontou. Entrou no minúsculo quarto e se deitou no colchão jogado no chão. — Espere aí até chamar — falou Roberto, saindo e fechando a porta. “Talvez eu tenha que ficar aqui mais tempo do que falei pra Amanda. Seja como for, é melhor eu me apressar, preciso encontrar Osman e Tabor e perguntar sobre o lugar que falaram”, pensou. “É possível existir um lugar no planeta fora do controle do Mercalimento?”, Indagou para si mesmo. “Preciso descobrir mais a respeito, pelo bem de Amanda”, ponderou. Ao seu lado avistou outro terminal informativo. Tais computadores estavam espalhados por todos os cantos do mundo e eram bem populares antes da calamidade. Indagou-se se aquela máquina ainda estaria funcionando. Apertou o botão e, para sua surpresa, o terminal ligou. A última notícia datava de 16 de fevereiro de 2096.
O fim das Nações Unidas e ascensão do Mercado de Alimentos. Depois de um ano de discussão e debates no Tribunal Internacional de Estado Democrático de Direito, foi deferida a sentença condenatória da Organização das Nações Unidas. Foi alegado que a ONU é responsável por não dar amparo aos países durante os últimos eventos da calamidade. Devido a isso, hoje, dia 16 de fevereiro de 2096, a Organização das Nações Unidas foi decretada extinta, depois de mais de 100 anos de existência. Como resposta a isso, o maior grupo capitalista, o Mercado dos Alimen-
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tos, formado pelas cinco principais indústrias alimentícias do mundo: a Carnemax, Chronus, Venerana, Sentrina e Nercófoga, prontificaram-se a encontrar uma solução ao problema da fome no mundo. Todavia, há aqueles que culpam essas mesmas empresas por terem feito, nos últimos anos, campanhas fervorosas ao consumo de carne bovina, suína e aviária, promovendo um aumento gigantesco das áreas rurais destinadas à criação de gado e de outros animais, e deixando um espaço minúsculo para o cultivo de grãos e vegetais, acarretando uma diminuição significativa da população vegetariana no mundo. Resta saber se o Mercado dos Alimentos conseguirá reverter a maior crise da humanidade e, se conseguir, como fará isso. Seja como for, apenas o tempo responderá essa, e outras perguntas. Esta é a Gazeta dos Patriotas. Em breve traremos novas informações para todos os Terminais Informativos do país. (Alexandre Reinaldo de Oliveira.)
“Eu me lembro daquele tempo. Ninguém sabia o que iria acontecer. As pessoas estavam desesperadas. A minha sorte e de Amanda era que nós cultivávamos nossa própria comida. Se mais gente fizesse isso... Talvez não tivéssemos chegado ao ponto que chegamos”, refletiu. Enquanto tentava encontrar uma posição confortável no desagradável colchão, reparou em um cartaz pregado na parede.
O Mercalimento adverte: Abrigar um Abreviato pode garantir pena de morte no abatedouro. Se você conhecer um Abreviato, não faça justiça com as próprias mãos. Denuncie para a polícia do espelho. Com a sua ajuda, iremos acabar com a existência das aberrações sintéticas na sociedade. Matheus se lembrou do genocídio há alguns anos que ocorrera em Berlim. Centenas de pessoas foram mortas sob a alegação de serem máquinas no corpo de humanos. A caçada aos Abreviatos diminuíra com o passar dos anos, porém cartazes como aquele ainda podiam ser encontrados em diversas partes da cidade. 27
Capítulo II
Abstinência de Justiça
A Província dos Ursos de Vento
Matheus acordou com o barulho da porta se abrindo violentamente. Valmir estava ali, à sua frente, ordenando para que ele se levantasse. — Vamos, tem trabalho pra você! — falou o mercenário. Levantou da cama, esfregou os olhos, e seguiu Valmir pelo corredor. — O que eu vou precisar fazer? — indagou. — Calado, você só fala quando falarem com você. Percebendo que não teria respostas, limitou-se a seguir o homem. Entraram no elevador e saíram no primeiro andar. — Por aqui, vamos nos encontrar com um pessoal lá fora. Assim que deixaram o hospital, Matheus observou os enormes Zepelins, com o símbolo da Mercalimento sobrevoando a Zona do Albergue. Em uma época em que a tecnologia era cara demais, essas máquinas se provavam baratas e práticas para patrulhar as regiões mais pobres dos blocos mundiais. — Você não vai voar num desses, se é o que está pensando — falou Valmir, percebendo que Matheus contemplava os dirigíveis. — Eles são de uso exclusivo da polícia do espelho, então esquece. — Não é isso, é que ouvi dizer que ultimamente estava acontecendo muitos ataques de piratas aéreos. — Sim, vários piratas da Ocerdônia estão vindo tentar a sorte nessa parte da Ostécia do Sul, é por isso que a polícia do espelho está com um patrulhamento ostensivo nos céus. — Você parece entender muito sobre a polícia do espelho — falou, percebendo que o homem não era um simples mercenário. — Eu não trabalhei pros Abutres minha vida toda. Eu costumava ser um engenheiro da polícia do espelho, mas daí fui expulso da corporação. — Se eu não estiver me intrometendo, por que foi expulso? — Você quer mesmo saber? — parou de caminhar e se virou. — Porque eu fui mole. Eu deixei um objeto escapar. Mesmo sendo um engenheiro, eles não me perdoaram. — Quem era esse objeto? — Você quer dizer o que era... — falou, corrigindo Matheus. — Esse objeto já foi um cidadão, era um garoto que costumava morar perto da minha casa. — Deve ter sido difícil pra você. 29
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— Bom, eu aprendi da pior maneira — levantou a camisa e mostrou uma enorme marca de queimadura na barriga. — Eles não perdoam ninguém, eu só não virei objeto porque tenho um tio que trabalha na procuradoria. Valmir fez um sinal para que continuassem a caminhada. Atravessaram a rua e chegaram num comício matinal. — Já fez seu juramento hoje? — indagou Valmir. — Não, eu costumava fazer quando chegava à Metalurgia. — Bom, como um abutre nós não estamos acima da lei — falou entrando no meio da multidão. No palco, um telão exibia uma enorme letra M vermelha de bordas pretas, símbolo do Mercalimento. Dos alto falantes saía a mensagem: “Por um mundo que não falte comida, nem água. Que não falte emprego, nem cama. Por um mundo em que os cidadãos possam existir. Por um mundo em que o Mercalimento acabe com a fome e com a desgraça. Por um mundo em que os objetos saciem a nossa fome. Todos agradecemos ao Mercalimento por nos salvar da calamidade”.
As pessoas que estavam de frente para o palco repetiram a frase, com os braços cruzados na altura da cabeça de modo que os cotovelos ficassem apontados para o alto e os punhos para baixo, criando a figura de uma letra M, o símbolo do Mercalimento. Matheus repetiu a frase e também fez o gesto, já que era uma atividade rotineira para todas as pessoas de todos os blocos do mundo. Findado o comício, as pessoas seguiram para seus empregos e ocupações. — Vamos, temos que chegar à avenida Gandavo, recebemos uma denúncia anônima de objetos se escondendo lá. — Vamos capturá-los? — Sim, estou levando algumas armas de choque na minha mochila. O ideal é não usar armas letais, pra não estragar a carne. O estômago de Matheus revirou, mas continuou seguindo Valmir. As ruas da Zona do Albergue se encontravam em um estado deplorável. “As ruas da Zona do Trabalho eram feias, mas aqui é ainda pior”, pensou. “Nunca vi casas tão precárias... A maioria delas é feita de papelão”, refletiu. “Acredito que esse lugar foi um dos que mais sofreu durante as rebeliões. É uma pena mesmo”, considerou. Andaram mais um pouco e finalmente chegaram a frente de um velho prédio de doze andares. Alguns mercenários já estavam na porta do edifício. 30
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— Eles estão lá dentro — falou Valmir. — Sim, o Rafael mandou esses caras pra dar assistência. Agora vamos, não podemos nos atrasar. Os dois se uniram aos homens armados. — Já era hora. Vamos entrar — disse um dos mercenários. O grupo entrou no prédio e subiu as escadas. Pararam quando chegaram ao quinto andar. Era um andar escuro, com várias salas, todas com as portas destruídas e com entulhos e lixo por todo lado. “Esse lugar devia ser usado como um escritório de tecidos no passado”, refletiu observando os vários manequins espalhados pelas salas. — Muito bem, você espera aqui — disse Valmir, virando-se para Matheus. — Certo. O que eu preciso fazer? — Nada. Só ficar de guarda — entregou-lhe uma pistola. — Uma arma de fogo? Eu nunca atirei na minha vida. — E espero que não precise. Mas, se precisar, atire na cabeça, não queremos estragar a carne. — Tudo bem... — falou, desconsertado. Os mercenários, incluindo Valmir seguiram para o sexto andar, deixando Matheus sozinho ali. Ele começou a analisar as coisas ao seu redor e logo notou a presença de um terminal de informações. Estava aprendendo que os terminais de informação eram bem úteis para entender como o sistema mundial realmente funcionava, já que na data das notícias, ainda não existia a censura mundial. Apertou o botão e o computador ligou. A última notícia datava de 15 de outubro de 2096. O Canibalismo será a salvação da Humanidade? Há alguns meses as pessoas entraram em choque com a proposição da carne humana ser usada como substituto à carne bovina, suína e aviária. Porém, como resposta ao problema da fome e da desnutrição, o Mercado de Alimentos decidiu transformar a teoria em prática. Os criminosos, do mundo todo, foram condenados à morte. Seus corpos, porém, não foram cremados, mas sim levados até frigoríferos espalhados pelos principais centros alimentícios do planeta. A carne de seus corpos fora limpa e preparada. Vários pontos de venda foram abertos nas principais capitais do mundo. Cientistas políticos e filósofos afirmaram que as pessoas não se sujeitariam à prática do canibalismo. Porém, para a surpresa de todos, a abertura desses novos pontos de venda se mostrou um verdadeiro sucesso. Filas gigantescas surgiram
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em todos os novos açougues. A pensadora Maria Paula de Castro afirma que, apesar do repentino interesse das pessoas pelo consumo da carne humana, tal hábito irá ser esquecido com o tempo, assim que novas formas de acabar com a fome no mundo, acarretada pela calamidade, surgirem. Por outro lado, a economia mundial nunca cresceu tanto como nos últimos dias. Pode ser que o canibalismo não seja a norma no futuro, porém, Leonard Willis, um dos representantes do Mercado dos Alimentos, afirmou em recente entrevista: “Graças à prática do canibalismo, a maior parte dos consumidores e cidadãos de bem não irá mais morrer de fome. Ora, ninguém se importa com os criminosos condenados! Eles não consumiam, não faziam o mercado girar, não traziam benefícios para ninguém... Pelo menos agora tiveram alguma função social! Acreditem em nós! O Mercado de Alimentos irá salvar a população dessa grave crise!” Nós, da Gazeta dos Patriotas, esperamos sinceramente que esse não seja o futuro da humanidade. (Alexandre Reinaldo de Oliveira.)
“O Mercalimento enganou muita gente naquele tempo. Mal sabiam aquelas pessoas que no futuro qualquer um poderia ser considerado um criminoso”, refletiu. Das escadas, surgiu um som de passos apressados. “Algum dos mercenários, tomara”, pensou. Porém, para a sua surpresa, um garotinho apareceu na porta do andar. “Quem é ele? Um dos objetos?”, Considerou. A criança, que vestia roupas sujas e rasgadas, imediatamente olhou para a pistola na mão de Matheus e recuou. — Não, espera! — falou ele, guardando a arma. — Eu não vou te machucar. — Você não está com eles? — indagou o assustado garoto. — Eu... — engoliu as palavras. Lembrou-se que ali ele era um mercenário também. Mas matar um menino? Não, isso ele jamais faria. No rosto da criança imaginou seu filho. De jeito nenhum ele poderia entregar aquele menino para os outros mercenários. — Eu estou ajudando eles, mas você pode confiar em mim. O garotinho permaneceu imóvel, olhando para Matheus. Alguns passos foram ouvidos na escadaria. — Droga, eles estão vindo — disse enquanto analisava o ambiente. — Rápido, se esconda dentro daquele armário! Eles não vão olhar ali! 32
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O menino obedeceu e entrou no armário de madeira. Da escada, Valmir apareceu com mais dois mercenários. — Matheus! Um objeto passou correndo por nós! Devia ter uns nove anos. Você viu alguma coisa? — Não. Se ele correu deve estar no andar de cima ainda, porque aqui não passou ninguém. — Ninguém merece! — bradou. — Vamos rapazes, nosso tempo é curto, vamos pegar os objetos que encontramos e levar pro Rafael. — Mas e o objeto menor? — indagou um dos mercenários. — Rafael ordenou que o eliminássemos. —Esqueça! Vamos dizer que ele morreu e nos ocupar com os que já temos! — ordenou Valmir. Os mercenários desceram as escadas, escoltando as pessoas. Matheus fez um sinal que os seguiria e aguardou até que sumissem da vista. Após deixar Luigi escondido no armário, preparou-se para descer as escadas. Pensou por alguns momentos na fala dos mercenários. Retirou a pistola do cinto e atirou no chão. Após isso, desceu pela escadaria. — O que foi esse barulho? — gritou assustado Valmir. — Eu alvejei o objeto infante. — Muito bom, rapaz; achei que teria que dar uma má notícia para o Rafael. — Vamos levá-lo também? — Não, esse nós temos que incinerar. — Pode deixar que eu faço isso — pegou o frasco de querosene da mão de um dos mercenários. — Vão se encontrar com o Rafael, eu vou quando acabar. — Eu gosto dessa eficiência — Valmir sorriu e mandou que os mercenários voltassem para o esconderijo.
Após deixar o prédio, Matheus se juntou a Valmir e subiram até o andar de Rafael. Entraram na sala e esperaram que o líder terminasse de fumar seu charuto antes que pudessem falar. — Senhor, capturamos sete objetos hoje. 33
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— Eram todos os que estavam no prédio? — indagou. — Sim, senhor, eram todos — respondeu, fitando Matheus. — Isso é uma pena. Estamos no fim da semana e só conseguimos vinte objetos, contando com esses sete. No passado costumava ser o dobro. — Senhor, mas no passado a população era muito maior. Existiam muitos objetos que poderiam... — Isso não é problema nosso! — berrou. — A polícia do espelho nos dá a merda de uma meta, então nós temos que cumprir a droga da meta! — Quais são as suas ordens, senhor? — Eu quero cada centímetro dessa Zona investigada! Não deixem nenhum objeto se safar! — Sim, senhor, faremos o possível. — Valmir — bradou o líder dos mercenários. — O objeto em específico, foi eliminado? — Sim, senhor — gaguejou. — Muito bem. Agora saiam da minha frente. Valmir fez um sinal para que Matheus o acompanhasse. Os dois desceram até o subsolo. — O que estamos fazendo aqui? — indagou. — Você vai aprender a atirar — respondeu. O subsolo, que no passado era usado como garagem de carros, agora foi transformado numa zona de treinamento para tiro. Vários alvos de madeira, pneus e outros objetos estavam empilhados. Uma enorme mesa de madeira servia de suporte para vários tipos de arma, desde pistolas até fuzis e submetralhadoras. — Vamos, escolha uma — disse Valmir. — Vou testar a que eu já tenho — respondeu, pegando sua pistola que estava guardada no bolso interno de sua blusa. — Agora você só precisa mirar e atirar. Está vendo aquele alvo? Quero que você atire e o acerte na cabeça. Matheus disparou várias vezes, porém, errando a maioria dos tiros. — Você só vai ter uma chance. E, se errar, ou estragar a carne do objeto, estará morto. Se não for pelo objeto, morrerá por detonar a carne. — Entendi. 34
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— Lembre-se, quanto menos ferida está a carne, mais valor ela tem. Matheus continuou atirando até se acostumar com a pistola. Depois, agarrou um fuzil e disparou. — Cuidado com esse, o recuo é bem maior. — É, estou percebendo — respondeu. — Mas até que você leva jeito, está atirando muito bem para um novato! E lembre-se: sempre mire na parte superior do torso! Seu objetivo é acertar a cabeça! Após várias horas de treino, os dois voltaram para o elevador e subiram até o andar dos dormitórios. — Valmir, com todo o respeito, mas eu prometi pra minha esposa que voltaria pra casa hoje. — Você está nos Abutres agora, rapaz, vai se acostumando com isso, só vai voltar pra casa a cada duas semanas, se der sorte. — Mas... Ela pode acabar achando que alguma coisa ruim aconteceu comigo... Não quero deixá-la preocupada à toa. — Olha só, Matheus — virou-se para ele. — Você pode subir a merda do elevador e dizer pro Rafael pessoalmente que você precisa voltar pra casa. É isso que você quer? Porque se for isso, você vai nos ajudar a bater a meta dos objetos apreendidos. — Não, não foi isso que eu quis dizer Valmir; eu sinto muito ter passado uma impressão errada. — Deixa isso pra lá, eu já estive no seu lugar e sei como é. — Olha, se não for incomodar... Você sabe onde eu posso encontrar o Osman ou o Tabor? — O Osman morreu uns dias atrás, num conflito com uns objetos, mas acho que o dormitório do Tabor é no fim do corredor. Matheus assentiu, despediu-se de Valmir e seguiu na direção apontada. Nos dormitórios os mercenários se reuniam para jogar baralho, beber, se encontrar com prostitutas entre outras atividades. Chegando num grupo de mercenários, próximo à parede esquerda, perguntou pelo quarto de Tabor. — É o próximo à direita — respondeu um deles, sem nem olhar na cara de Matheus. Deixou o grupo e entrou no quarto, se deparando com o homem deitado no colchão. 35
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— Com licença, você é o Tabor? — Quem quer saber? — indagou o homem, sem nem abrir os olhos. — Eu me chamo Matheus, eu trabalhava na Metalurgia pesada. — Você também trabalhou naquele inferno? — disse abrindo os olhos. — Sim, mas resolvi vir pra cá também. — Meus pêsames. Entrar pros Abutres é atestado de óbito, meu irmão é a prova disso. — O Osman era seu irmão? Eu sinto muito. — Não precisa, eu já superei o fato dele ter se transformado em comida. — Ele era um objeto? — indagou com espanto. — O que você acha que acontece quando um cidadão morre? — Ah, bem, me desculpe. — Enfim, o que você quer? Matheus fechou a porta e se aproximou de Tabor. — Lá na Metalurgia eu ouvi vocês falando algo sobre um lugar... Um lugar que o Mercalimento não exerce influência. — Você ficou maluco? — falou se levantando. — Se alguém ouvir, você morre. — Bom, era você que estava falando sobre isso lá na Metalurgia. — Fale baixo! — Eu só quero saber sobre esse lugar. — Por que você quer saber sobre isso? — Digamos que pelo mesmo motivo de você também ter demonstrado certo interesse nesse lugar. — Olha só, falar sobre esse lugar é pena de morte aqui. — Eu já sei disso, caramba; mas eu quero saber que lugar é esse! Escuta, eu não vou sair daqui até você me falar. — Como eu posso saber se você não é um infiltrado da polícia do espelho? — O que aconteceria se eu desse com a língua nos dentes? Em qualquer uma das hipóteses você teria o mesmo destino. Melhor acreditar nessa terceira e salvadora. — Droga... — disse baixando a cabeça. — Então? Vai me dizer? 36
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— Esse lugar é um país, o último lugar da Terra em que é proibido o canibalismo. — Um país? — Sim, com milhões de pessoas. — Como nunca ouvimos falar sobre isso? — O Mercalimento ocultou tudo a respeito dessa nação, e falar sobre ela é crime de morte no abatedouro. — Eles fizeram muito bem o trabalho, já que eu nunca ouvi nada a respeito desse país. O Carlos me falou algo sobre esse lugar se chamar província de... — tentou procurar as palavras. — Província dos Ursos de Vento — completou. — Certo, e como eu faço pra chegar lá? — Você ficou louco? Ninguém sabe onde esse lugar fica! Como eu disse, o Mercalimento apagou todas as informações desse lugar da rede! Por que você acha que a maioria dos terminais informativos foram destruídos? — Ainda existem terminais funcionando! Eu encontrei vários! — Sim, mas provavelmente de antes da nova ordem mundial, e a província dos Ursos de Vento foi formada depois da ascensão do Mercalimento. — Será que é possível que algum terminal informativo tenha a localização desse país? — Eu não sei, mas pra descobrir isso você teria que ver todos os terminais do nosso bloco, o que é impossível. — Eu estou checando os que eu posso. — Você é completamente maluco. — Olha, eu não posso te explicar, mas eu preciso dar um jeito de chagar até esse país. Você deve saber alguma coisa sobre esse lugar. — Eu não sei nada! Eu nem tenho certeza se esse lugar existe! — Então como você ouviu falar desse lugar? — Em Nova Cingapura, encontrei um oriental no Mercado do Céu. — Eu nunca fui nessa parte da Ostécia, demora muito pra chegar de trem? — Sim, uns três dias de viagem, já que fica fora do cinturão das Zonas. — Eu preciso do nome desse homem, e do lugar que você o encontrou. — Ele se chama Quon Yin Jing, trabalhava numa loja de tecidos que fica dentro de um dos zepelins comerciais no Mercado do Céu. 37
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— Qual o nome da loja? — O Uniforme do Operário, se me lembro bem. — Ótimo! Muito obrigado por isso. — Olha só, eu vou te avisar com antecedência que ir até lá é suicídio. Quando o Rafael perceber que você sumiu, ele vai colocar todos os mercenários atrás de você. — Eu preciso fazer isso. Posso contar com a sua boca fechada? — Talvez... — falou com um sorriso sarcástico. — Você está tentando me subornar? — Talvez, se me perguntarem fica mais fácil de mentir. — Olha aqui, eu não tenho nada pra te dar, sou da B-16! Mas se eu fosse você, eu ficaria quieto, pois, se me pegarem, vão querer saber de onde eu consegui as informações. —Mas que merda...Só faça o favor de não me entregar quando for pego. — Não se preocupe, não sou delator.
Matheus deixou Tabor e seguiu no corredor até seu quarto. Na caminhada, reparou que havia um terminal de informações preso na parede. “Eu duvido que na sede dos Abutres vá ter alguma informação relevante, mas não custa tentar olhar esse daqui” pensou. Ligou o computador e buscou as notícias. A última datava de 14 de abril de 2097. A reorganização dos continentes e a nova liderança mundial. A notícia mais comentada neste ano, foi a criação de um único governo que controla o mundo todo e a extinção dos países e fronteiras. Devido à aversão das pessoas ao sistema governamental clássico, a maior organização empresarial do mundo, o Mercado de Alimentos, agora chamado de Mercalimento, está liderando essa transição. Os continentes serão divididos em Blocos, e os países serão transformados em províncias desses Blocos. A Europa ocidental e mediterrânea será conhecida como Norésia, já a Europa Oriental e a Ásia serão chamadas de Venéstia. A América do Norte e central serão a Ostécia do Norte e a América do Sul será a Ostécia do Sul. O Oriente Médio e a África ficarão conhecidos como Venália. Os países que foram formados no continente da Antártida serão chamados de Anterdásia. As colônias marítimas serão chamadas
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de Vuzansul, e as cidades aéreas serão conhecidas como Libertália. Fica a dúvida, na mente dos nossos leitores, se um grupo econômico formado pelas maiores empresas capitalistas do planeta realmente conseguirá trazer os benefícios e as garantias fundamentais que a humanidade tanto busca. Um aviso importante: Todos os cidadãos desse antigo país, que agora fará parte da Ostécia do Sul, não se esqueçam de trocar seus documentos pelos novos cartões civilizacionais disponíveis. O Mercalimento afirma que eles serão indispensáveis no futuro. Essa é a Gazeta dos Patriotas e esperamos que todos os nossos leitores se adaptem a essas novas transformações. (Alexandre Reinaldo de Oliveira.)
“Esse Alexandre deva saber alguma coisa sobe a província dos Ursos de Vento, talvez ele tenha feito alguma matéria nesse sentido e enviado para algum terminal aqui na Ostécia”, pensou. ”Agora que tenho as informações sobre a província, não faz mais sentido esperar aqui”, refletiu. Caminhou pelo corredor, evitando os olhares dos mercenários e entrou no elevador. Desceu até o primeiro andar e seguiu na direção da porta da saída. — Onde tu tá indo? Tá em alguma missão? — indagou o mercenário que cuidava da porta. — Sim, recebi ordens para fazer uma ronda na rua da frente. — Ué, mas eu pensei que eram os homens do Marcos que fariam a ronda hoje. — Sim, mas desde o incidente com os últimos objetos, o Rafael quer o dobro de atenção. Mas se você acha que é melhor não, então eu posso subir lá e falar pra ele. — Não, não — respondeu rapidamente. — Eu vou abrir a porta pra você. A luz do sol desapareceu e a escuridão começou a tomar conta da Zona do Albergue. Matheus checou sua pistola guardada na blusa e continuou caminhando. Os enormes zepelins emitiam fortes luzes neon que iluminavam a noite. Multidões andavam apressadas, algumas pessoas corriam para o trabalho noturno, outras simplesmente fugiam da polícia do espelho. A chuva fina caía sobre sua testa e rachava no solo. Ele caminhava lentamente por meio daquela gente apressada. Nos prédios, enormes outdoors de neon anunciavam o letreiro de alguma empresa que fazia parte do Mercalimento. Das casas, vapor saía pelos canos e tubulações. Pra ele, só importava chegar até um certo prédio. 39
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Quando finalmente chegou ao destino, teve seus batimentos cardíacos acelerados. Na porta de entrada estava um mercenário. O homem dos Abutres Insanos estava sozinho guardando a entrada, com as duas mãos ocupadas segurando um fuzil. Matheus se aproximou dele. — Eu achei que o Valmir não ia mandar mais ninguém hoje — disse o homem. — Eu só vim ajudar na ronda, está tudo bem lá em cima? — indagou. — Sim. Nós recebemos uma denúncia, há algumas horas, de que ainda tinha um objeto aqui, daí como nossa equipe estava por perto, resolvemos vir averiguar a situação. — E descobriram alguma coisa? — indagou, observando a faca do mercenário presa no cinto. — Sim, parece que tinha um objeto lá, demos sorte, a carne dos objetos novos costuma valer mais no Mercalimento. Enfurecido, Matheus, agarrou a faca do mercenário e rasgou o pescoço do homem. O soldado caiu no chão, agonizando pela ferida. Matheus aproveitou e pegou o fuzil do combatente e entrou no prédio. Teve calma para averiguar que não estava sendo seguido e começou a subir as escadas. Lembrou-se que a criança havia se escondido no armário do quinto andar. “Ele pode estar lá ainda”, pensou. Subiu as escadas e, quando estava chegando perto do andar de destino, ouviu a conversa de alguns homens. — Eu acho que era só esse objeto, Ulisses. — Você ouviu o fumo que o Valmir deu na gente! Não vamos sair daqui até ter virado esse lugar do avesso! Matheus continuou subindo as escadas e ficou no batente da porta, com o fuzil em mãos, olhando para os mercenários. Eram três homens, todos com fuzis nas mãos. Para a sua surpresa, a criança estava no chão, com os braços levantados, protegendo o rosto. Os soldados olharam para ele. Os fuzis tinham lanternas nas pontas. Os soldados mantinham suas armas apontadas para o chão, indicando suas posições no andar escuro. — Você não é o cara novo? O que tu tá fazendo aqui? — indagou um dos mercenários. — Ué, o Valmir também me mandou... Acabei de falar com o nosso parceiro lá debaixo e ele me disse que vocês também receberam a denúncia — Matheus olhou novamente para o menino e, numa manobra rápida, levantou seu fuzil e atirou contra os mercenários. 40
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— Depressa, precisamos sair daqui! — gritou, estendendo a mão para a criança. — Não! Têm mais deles lá em cima! — respondeu. O barulho de passos apressados podia ser ouvido nas escadas. Matheus jogou seu fuzil no chão e pegou a arma de outro mercenário, que ainda estava com a munição intacta. — Fique atrás de mim! — falou, logo após empurrá-lo para suas costas. O som do disparo havia convocado os demais mercenários. Conseguia ouvi-los aos berros e com suas passadas descendo a escada. A rua talvez fosse o melhor dos esconderijos, não havia mais ninguém lá fora, mesmo assim, apesar de ser a opção viável, não era a mais inteligente. Projéteis são mais rápidos que qualquer humano, e sem saber quantos ainda estavam em seu encalço, não seria surpresa alguma se fosse morto pelas costas. De repente, ouviu as passadas se aproximarem. O barulho ficou mais alto até que um mercenário apareceu no batente da porta. Matheus disparou contra ele, não dando chances para o homem se defender. — Eles estão armados! Eles estão armados! — gritou um dos mercenários logo acima. “Quantos têm lá? Dois? Dez? Duzentos?”, pensou. “Eu nunca vou conseguir vencer todos eles”, refletiu. “Mas eu preciso. Eu preciso”, considerou. Continuou mirando na direção da escadaria. Podia ver a luz do fuzil dos outros mercenários. O medo de morrer lhe dava calafrios. Não era um soldado. Não estava acostumado com aquela situação. “Eu não tenho chance de vencê-los num combate direto”, ponderou. “Se continuar aqui parado vou morrer”, cogitou. Virou-se e olhou ao redor. Avistou as armas no chão e uma velha cadeira atrás dele. Lembrou-se dos manequins que havia avistado mais cedo. Moveu-se rapidamente, para uma das salas e arrastou o boneco até a cadeira. Usou a corrente de um dos fuzis e amarrou a arma na figura articulada. Afastou-se e ficou do lado da parede. Com uma pedra, quebrou a lanterna do fuzil. Pôs-se a esperar. Não demorou muito e um mercenário desceu a escada e adentrou no andar atirando na direção do manequim. Logo, outros dois desceram também e foram averiguar os homens caídos. — São três dos nossos... e... um boneco? Matheus continuava no canto direito da parede, oculto pela escuridão. Quando constatou que não desceria mais ninguém pela escada e aqueles deveriam ser os últimos mercenários, levantou sua arma e despejou toda a munição. Os homens gritaram de susto e de dor quando os projéteis atingiram seus corpos. Ao perceber que estavam caídos no chão, Luigi saiu de 41
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trás da poltrona que havia escolhido para se esconder e correu na direção de Matheus. — Cuidado! — gritou o menino. Um dos mercenários ainda estava vivo e segurava uma pistola. Atirou na direção de Matheus, acertando seu braço. O homem ainda tentou atirar novamente, porém Matheus foi mais rápido e disparou contra o soldado, acabando de vez com a sua vida. — Você está bem? — indagou a criança, percebendo o sangue escorrendo do braço de Matheus. — Sim, estou... Isso aqui não é nada — respondeu. — Vamos, precisamos sair daqui. Os dois deixaram o andar e correram em direção à saída. Após constatar que estava sozinho, abaixou-se para falar com o menino. — Você está bem? — Sim. — Que bom! Seus pais foram levados? — Não... mas eles não podem me ajudar...—disse baixando a cabeça. — Você está com fome? Tem alguma coisa pra comer? — Não... — Toma — entregou uma vasilha de plástico que tinha na blusa. — Tem uns vegetais aí, minha esposa que prepara, acho que vai gostar. O menino devorou o alimento. — Como você se chama? — Luigi. — Muito prazer Luigi, meu nome é Matheus — falou apertando a mão do menino. — Escuta, você tem algum lugar que possa ir agora? O menino gesticulou que não. — Eu... — pensou bem nas palavras. — Eu estou numa situação complicada também. Estou procurando um lugar pra ir. Um lugar diferente disso aqui. Um lugar onde você não será mais um objeto. — Que lugar é esse? — indagou, sem olhar nos olhos de Matheus. — Eu não sei ainda, mas conheço alguém que sabe, e estou procurando essa pessoa. — Se você descobrir... Você pode me levar pra lá? 42
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— Vamos descobrir juntos... — comentou de maneira amistosa, mesmo ainda estando em choque pela inundação de adrenalina em suas veias.— Isso vai ser um problema — disse observando o braço machucado. — Se algum androide ver esse machucado nunca vai me deixar embarcar no trem até que eu explique como consegui levar um tiro no braço esquerdo. — Você quer usar o trem? Eu não posso! Sou um objeto! — disse Luigi. — Mas que droga! — falou percebendo a situação. — Espera, eu tenho uma ideia. — O que é? — Você não vai gostar muito, mas pode ser que dê certo. Luigi encarou Matheus, não entendendo como fariam para embarcar no trem.
Alguns minutos deppois, Matheus desceu as escadas da Estação, observando a chegada e partida dos trens. Olhou para o curativo em seu braço. “Se der sorte o androide não vai reparar” pensou. — Está tudo bem aí? — falou baixinho. — Sim — respondeu Luigi. Luigi se contorcia no interior da mala de rodinhas que Matheus arrastava. “Essa ideia é maluca, mas preciso tirar ele daqui, de qualquer forma. Além do mais, quando chegar à Zona do Trabalho posso pedir pra Amanda fazer um curativo decente em mim”, refletiu. Era mais de onze horas da noite. O último trem estava partindo para a Zona do Trabalho. “Vamos lá, vai dar tudo certo”, pensou. “O androide vai perguntar por que eu demorei tanto na zona do albergue, isso é certeza! Mas vou falar a verdade. Vou falar que estive trabalhando para os Abutres Insanos, mas que não deu certo e precisei voltar pra casa. O Valmir atualizou meu cartão civilizacional e adicionou a informação do meu novo emprego. Vai demorar até que Rafael e os outros descubram o que eu fiz. Vou ter certa vantagem até lá”, considerou. Quando chegou à catraca, o androide pediu para que colocasse o cartão civilizacional no leitor do computador. Matheus obedeceu. — Você trabalha na Metarlurgia Pesada, correto? Por que se ausentou por dois dias? 43
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— Eu estava trabalhando pros Abutres Insanos, se analisar no meu cartão vai verificar que o número de horas está correto. — Perfeito — disse o androide, analisando as informações do computador. — Diga, o que você traz nessa mala? Segundo os dados do computador, você não trouxe mala da Zona do Trabalho. — São alguns itens que eu fiquei encarregado de levar para a divisão dos Abutres na Zona do Trabalho. São... Confidenciais. — Não há nenhum protocolo informando. — Porque é de caráter confidencial, robozinho... Se analisar no meu cartão civilizacional, vai ver que eu trabalho para os Abutres — falou torcendo para que o androide não reparasse no curativo em seu braço. — O senhor tem razão. Peço desculpas, por favor, pode embarcar. Matheus passou pela catraca e se preparou para entrar no trem. — Senhor? — chamou o androide. — Tem alguma coisa errada no seu braço? Percebi que está com dificuldade de movimentar o braço esquerdo. — Essa vida de Abutre, nada além disso — disse sem nem olhar pra trás. Incorporando o personagem mais caricato de sua vida, Matheus sentiu uma onda fria tomar sua espinha. Jurou que o androide se preparava para segui-lo, porém respirou aliviado ao vê-lo dirigir-se até outro grupo de pessoas que também se aproximava para embarcar.
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Capítulo III –
Um caminho para a liberdade