Copyright © 2017 by Luva Editora Editor Vítor Uchôa Capa e Projeto Gráfico Vítor Uchôa Revisão Suellen Mendes Impressão e acabamento: PSI 7 - Soluções Gráficas Crédito Ilustrações p.01, 02 (Sandro Boticelli)
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III - A HORA MORTA
101 Vitto Graziano No volume anterior, tivemos o prefácio surpreendente de Fernando Bins, explicando como vendeu as almas de todos os escritores desta série, contudo, neste volume, gostaria de explicar as razões que me levaram a idealizar este belíssimo trabalho, que envolve mais de 50 autores, entre eles, os principais nomes do terror nacional dos últimos anos. Além do apoio ao autor nacional, acredito que devamos salientar que embora muitos releguem o terror ao lado da fantasia, alguns dos relatos transcritos dentre os volumes são reais. Aqui, vocês terão a oportunidade de vivenciar representações fiéis de acontecimentos repletos de carga emocional e que marcaram a vida de seus autores. No meu caso, como evito escrever sobre as minhas experiências espirituais, ainda assim, fiz questão de usar a boneca como símbolo de todo o mal que assombrou a minha infância. Algo tão avassalador que por pouco não me levou irmão, mãe e avó: a maldade do homem. Para alguns, certas maldições não passam de crendices que afetam apenas àqueles que acreditam nelas; contudo, venho informá-los de que a lógica espiritual não funciona dessa forma e até mesmo uma família inocente pode pagar o mais alto preço pela ganância ou frustrações de pessoas mal-intencionadas. Tudo começou quando fomos obrigados – por questões financeiras – a morar num antigo prédio feito por meu bisavô. Até hoje, lembro-me da escuridão daquele local e da negatividade que permeava cada centímetro da construção. Lembro-me também, como se fosse ontem, do meu cinto do Black Kamen Rider e sua luz avermelhada, que me davam um pouco de paz durante as noites insones. Do pavor que sentia quando acordava e meu pai 7
VITTO GRAZIANO não estava mais deitado ao meu lado, uma vez que trabalhava em jornada dupla. Da morte de meu bisavô e do enganoso “até logo” do qual jamais voltou em matéria. Ali, conheci a morte e o mal. Foram quatro longos anos, vivendo numa janela do inferno, sofrendo com aparições de bonecos inexistentes, privação do sono e doenças sem diagnósticos que, no ápice, me levaram ao estado de coma. Alguns podem pensar que talvez tenha sido alguma condições clínica, contudo, como explicar a depressão que assolou todas as mulheres da família, além das duas pneumonias em meu irmão recém-nascido acontecidas no mesmo intervalo de tempo? Como explicar o dia em que precisamos derrubar parte da estrutura por infiltração e encontramos dezenas de ebós emparedados? Quando nos despedimos do edifício, após a venda do último apartamento, e no sótão encontrei, dentre as tralhas dos antigos inquilinos, um livro clichê, não nego, “Magia Negra, Sexo e Sortilégios”? Anos mais tarde descobri que por se tratar de um apartamento antigo, algumas pessoas já haviam ali falecido, como o caso de um senhor cuja a intervenção do Corpo de Bombeiros foi necessária devido ao estado avançado de putrefação. E excepcionalmente na época da nossa chegada, quando ocorreu o primeiro, e único, despejo por falta de pagamentos. Um momento difícil, com direito a ameaças por vias físicas e espirituais, e mau agouros. Será que aquela inquilina foi a culpada? Certamente não saberemos. Mais de vinte cinco anos se passaram. Ainda moro perto do local e algumas vezes, com a permissão dos novos moradores e apoio de antigos vizinhos, retorno para visitá-lo com a desculpa da nostalgia, mas a verdade é que até hoje sinto-me atraído por algo inexplicável. Uma espécie de magnetismo acima da razão. Talvez o mesmo que ainda me faça ouvir dezenas de vozes e topar com raras aparições. Um dom, ou maldição, que não renego. Uma história inacabada. A prova de que resquícios daquela experiência ainda vivem em mim, mesmo que eu me distancie ou busque outra fé. Uma sensação de vazio me consome a cada lembrança. Sinto que algo que me pertenceu ainda está no maldito 101, da Rua Aristides Caire, em frente, a Paróquia de Nossa Senhora Aparecida. 8
Marcos DeBrito
O CHEIRO QUE NÃO VEM DA JANELA Marcos DeBrIto 1
Suas mãos pequenas remexiam o lixo em busca de algo que calasse o ronco do estômago. Não recordava a última vez que teve um prato farto à sua frente. Talvez nunca. O garoto desconhecia o aroma inebriante de uma ceia bem preparada, muito menos o deleite de mastigar uma refeição recém saída do forno. Havia tempo que as ruas eram sua casa e o que estivesse por cima de sua cabeça — fossem nuvens ou estrelas — seu telhado. Cada dia ele empurrava a sobrevivência entre lixeiras, torcendo pelo encontro de sobras mastigadas para saciar a fome. Seu nome, não lembrava. De idade, aparentava ter 7 ou 8 anos, mas o olhar opaco era como o de um adulto abatido por décadas de calvário. Nem o próprio reflexo ele reconhecia direito, pois sempre esteve a esconder o rosto sob o capuz de seu único moletom surrado, encontrado em algum caixote de roupas descartadas que não serviam nem para doação. De olhar daltônico sobre a vida, a alegria das cores não pintavam seu entusiasmo. Tudo que enxergava era a tristeza cinzenta de sua existência oca, incapaz de ser preenchida pela felicidade compartilhada por tantas outras crianças que acordavam com o carinho dos pais. Dentro de sua desgraça particular, aquela manhã havia começado melhor do que muitas anteriores. Ao abandonar o beco que lhe servira para pernoitar na companhia dos ratos que sur1 Atuante no ramo cinematográfico como Diretor e Roteirista, Marcos DeBrito também é autor de três romances publicados. Após carreira premiada como curtametragista, roteirizou e dirigiu o longa “Condado Macabro”. Seu primeiro livro, “À Sombra da Lua”, foi um dos indicados da Rocco ao Jabuti de Melhor Romance em 2013 e seu último, “O Escravo de Capela”, pode ser encontrado em todas as livrarias pela Faro Editorial.
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III - A HORA MORTA giam dos bueiros, fez o desjejum com os restos que encontrou na primeira lata de lixo aberta. As migalhas de pão encharcadas em molho estavam frias de ficarem expostas ao sereno noturno, mas ainda ofereciam um leve gosto dos temperos. O suficiente para que o menino conseguisse fantasiar o verdadeiro sabor da comida. Como um barco intencionalmente à deriva no mar, ele não seguia a agulha de uma bússola. Perambulava por novas vizinhanças a cada vez que o sol expulsava a noite e, pela primeira vez, pisava na calçada daquele bairro. Do outro lado da avenida, um amontoado desorganizado de pessoas chamou-lhe a atenção. Uma feira de rua ocupava o lugar dos automóveis, causando alvoroço com berros de comerciantes disputando os melhores preços. O garoto atravessou a via. Barracas expunham seus produtos frescos em meio ao cheiro de frituras e suor. Para onde olhava, pessoas degustavam as frutas, satisfaziam sua sede com copos de garapa ou mastigavam pastéis oleosos nos mais diversos recheios que o menino jamais sonhara que existissem. Sua barriga implorava pelo que devorava com os olhos. Cogitou até disputar com os cães as folhas pisoteadas das hortaliças que iam ao chão. Ele não se via muito diferente dos vira-latas que rosnavam pelo direto de não morrer de fome. Por onde andava, sempre era tratado como um animal sem dono; invisível até que começasse a incomodar. As contrações furiosas de um estômago revolto fizeram-no perseguir uma oportunidade e seus olhos encontraram o objeto de desejo. Uma barraca ostentava sua colheita bem selecionada com a mais bela das maçãs. Vermelha como o pecado, ela o atraiu para o crime. Salivou ao imaginar o doce da fruta em sua boca e esticou a mão para cumprir a promessa de sua fantasia gastronômica. — Peguei, moleque! — O vendedor agarrou-lhe o braço com força. — Melhor soltar isso agora se não quiser que eu quebre teu braço! 11
Marcos DeBrito O ato de covardia perpetrado por um homem mais velho e corpulento não encontrou a censura de ninguém que presenciava a agressão. Não houve sequer uma única alma que se manifestasse a favor do menor abandonado. Faminto, o pequeno não desistiu do que estava entre os dedos. Como os cachorros, rosnou para intimidar o inimigo que queria privá-lo do alimento. Junto a uma expressão perversa que surgiu no rosto do feirante veio a dor no pulso do garoto. A pressão da mão que o prendia estava mais forte, decidida a executar a pena decretada pela tentativa de furto. — Tem troco pra 50? — interrompeu uma jovem senhora. — Quê?! — afrouxou o aperto, mas não largou o moleque. — Pela maçã do menino. Sem entender as motivações da mulher em ajudar um delinquente, o vendedor mostrou os dentes tortos num largo sorriso desdenhoso e soltou a presa. — Pode levar. Era só pra dar uma lição no pivete. Não gosto de alimentar vagabundo! — Passou a mão no jaleco para limpar os dedos por terem tocado sua pele encardida. — Sai daqui e volta pro teu cortiço, moleque! A moça puxou o garoto para que ele não precisasse escutar mais ofensas e o afastou dos abutres que pairavam sobre a discussão à espera de uma tragédia que agradasse seu senso degenerado de justiça. Enquanto caminhavam para longe, distantes dos olhares que julgavam o menino de rua, a moça tentou uma aproximação: — Não vai me dizer o seu nome? — perguntou com um sorriso, vendo-o abocanhar a fruta como se fosse a única coisa que lhe importava. — Se você tá com medo de falar porque acha que eu sou uma estranha, é só me chamar de tia Ângela.
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III - A HORA MORTA Ainda nada. Guiado pela mão para onde não sabia, ele caminhava ao lado da mulher sem protestar. Só lhe interessava aproveitar o sabor que fuzilava sua fome. Para ganhar a confiança de um animal receoso, nada melhor que o presentear com alimento. E com crianças não era muito diferente. Se para as que nasceram em berço de ouro já bastasse apenas um pacote de caramelos para atraí-las, um menino desamparado se renderia por bem menos. — Posso te levar pra comer uma comida de verdade! — A proposta fez com que ela conseguisse sua atenção. Ainda encoberto pelo capuz, ele ergueu o rosto, interessado na oferta. Ângela parou de caminhar e ajoelhou-se em frente ao garoto para poderem conversar na mesma altura, no intuito de que ele notasse a ternura que ela apresentava no olhar. — Viu? Já até soltei a sua mão. Se quiser, pode ir embora. Eu só acho que um garotinho que nem você não devia ficar na rua. Onde estão seus pais? A pergunta o fez encarar o chão. Não era necessária uma resposta verbal para a mulher entender que o coitado estava sozinho no mundo. Na intenção de ampará-lo, buscou acariciar-lhe o rosto, mas ele se afastou com desconfiança. Seu comportamento era como o de um bicho selvagem: arredio e alerta às possíveis ameaças. Não tivera uma voz autoritária para domesticá-lo, portanto, qualquer movimento que o assustasse poderia fazê-lo ir embora. — Desculpa. Não precisa ficar com medo. Eu só queria... te livrar um pouquinho dessa tristeza — tentou mais uma vez conquistá-lo com amabilidade nas palavras, enfeitadas pelo semblante carinhoso, mas o jovem permaneceu mudo. Ângela colocou-se novamente de pé, mas não estava disposta a desistir. Sabia que não poderia levá-lo consigo, caso ele optasse pelas ruas. Para cativá-lo, ofereceu algo além da refeição: 13
Marcos DeBrito — Eu ia gostar muito que você fosse comigo conhecer as outras crianças. Elas foram lá por causa de um prato de comida e acabaram ficando. Achei que talvez você pudesse se dar bem com elas. Todas têm uma história que nem a sua. Não era uma promessa de moradia. Mas estar sob um teto que pudesse protegê-lo da chuva, com alimento à mesa e na companhia de outras pessoas — ainda mais da sua idade — pareceu-lhe algo que poderia chamar de família. Mesmo que por uma noite. Com o olhar abarrotado de esperança, ele encarou a mulher, que logo percebeu que o havia convencido. Ofereceu-lhe a mão, junto a um sorriso doce, e seus dedos se entrelaçaram. A casa de Ângela não era muito perto. Apesar de não precisarem fazer baldeação, perdeu-se a conta dos pontos de ônibus que ficaram para trás. As paisagens vistas da janela eram desconhecidas ao garoto. O concreto cinza foi perdendo espaço para cores campestres e os prédios não riscavam mais o céu. Estava no subúrbio da cidade, longe das sirenes e fumaça da caótica região central. Ao chegarem à frente da moradia, o menino ficou abismado com o tamanho da construção. Era um sobrado antigo com um enorme quintal que o distanciava dos vizinhos. O manto verde das trepadeiras tomava a residência quase até o telhado e o jardim carecia de melhores cuidados. O pouco das paredes que ficava à mostra exibia lascas soltas de tinta e as janelas de madeira encontravam-se castigadas. Mas nada daquilo importunava o pequeno. Era um lar. Aos seus olhos, parecia o castelo de um conto de fadas. — Tenho que arrumar tempo pra dar uma renovada nessa frente e chamar alguém pra esvaziar a fossa — desculpou-se a mulher, enquanto buscava diferentes chaves na bolsa. — Espero que o mau cheiro dentro da casa não te incomode. O garoto contou três tipos de tranca para a porta ser aberta. Ângela aguardou de fora e acenou para que ele fizesse as honras. Ao entrar, ficou impressionado com a grandeza do salão principal. Os poucos móveis davam a sensação de ainda mais es14
III - A HORA MORTA paço à ampla galeria de pé direito duplo adornada com alguns poucos quadros empoeirados. Retirou o capuz para admirar melhor a altura do teto e aproximou-se da imponente escada que levava ao segundo piso. Se tivesse referência de outras moradias, estranharia a quantidade de teias de aranha nas molduras em madeira que torneavam a casa, e a poeira que dançava sob a luz que a invadia pelas frestas. Mas no que ele reparou foi no silêncio. Não havia risos infantis, nem baderna. O único som que retumbava no casarão era o das fechaduras sendo metodicamente trancadas pela anfitriã, que logo se juntou ao convidado. — Pronto pra conhecer os meninos? — sorriu, convidando-o a segui-la para o andar superior. No corredor estreito que levava aos quartos, o odor desagradável que Ângela havia mencionado começou a incomodar as narinas do jovem, fazendo-o cobrir o rosto. — É ruim o cheiro, né? Não lembro se fechei a janela que dá pra fossa. Mas as crianças nem reclamam mais. Acostumaram. Os dois pararam em frente a um cômodo fechado. Antes de abri-lo, a mulher apoiou carinhosamente suas mãos nos ombros magros do garoto, pôs os joelhos no assoalho diante dele e o mirou nos olhos. — Você não precisa mais ficar sozinho. Se deixar eu te ajudar, prometo que não vai mais passar fome, nem dormir na rua. Aqui tem uma cama que pode ser só sua! É só dizer que quer ficar. O menino queria sorrir, mas não se lembrava como. Conseguiu chorar, pois o fazia com frequência. Mas suas lágrimas estavam diferentes. Elas regavam a esperança, umedecendo o solo árido das desilusões. Quando seus lábios, finalmente, desenharam o que parecia o rascunho de um sorriso, Ângela ficou radiante. — Vem cá! — Envolveu o pequeno em um abraço ardoroso e apoiou sua cabeça perto do peito, deixando-o desaguar. — Não se preocupa, viu? Vai ficar tudo bem... Tudo bem... 15
Marcos DeBrito Ela acariciou-lhe os cabelos desgrenhados e começou a cantarolar, em surdina, uma melodia infantil para acompanhar o afago. Ainda que uma criança estivesse escaldada em desengano, um carinho de ternura maternal seria sempre bem recebido. O garoto não negou o sentimento que o arrebatava. Pela primeira vez, sentia-se amparado. Estava disposto a contestar seu coração castigado — que teimava em lhe dizer que não poderia ser feliz — e agarrar com gana a inédita alegria. Ângela o abraçou com mais força e foi retribuída. Ele, finalmente, havia conseguido controlar o pranto, mas precisava recuperar o ar. O nariz entupido pelo choro já lhe dificultava a respiração e não ajudava deixá-lo encostado na blusa da moça, por mais calorosa que fosse a demonstração de afeto. Quando foi erguer o rosto, sentiu, um pouco acima de sua nuca, a mão pesada da mulher forçando-o para mais perto do corpo. — Shhh... Pode ficar aqui — ela interrompeu o canto por um segundo para acalmá-lo com a voz serena. — Tá tudo bem. O menino segurou o sopro um pouco mais, o quanto pôde, pois era agradável o aconchego do colo. Logo, o pulmão esvaziado começou a implorar e ele tentou forçar a saída. Mas não conseguia. Os braços de Ângela o apertavam junto ao peito, impedindo-o de escapar. As narinas abafadas no tecido, junto ao ranho acumulado de seu pranto, bloqueavam a entrada de ar e o garoto começou a se debater. Desesperado, ele golpeou as costas da mulher com os punhos, mas foi inútil. Sua força não era diferente à de qualquer outra criança e estava praticamente imobilizado pelo abraço. A expressão de Ângela permanecia serena. O amor em seu rosto era sincero. Sem deixá-lo se afastar, murmurava baixinho a canção para que o pequeno repousasse. Aos poucos, o empenho do menino foi perdendo o vigor. Seus golpes eram nada mais que abanadas ao vento e, em seu último
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III - A HORA MORTA segundo, uma convulsão antecedeu o esvaecimento completo do seu corpo mirrado. Sufocado em braços supostamente acolhedores, ele parecia um anjo descansando em uma nuvem do Paraíso. Para assegurar que não despertasse, Ângela manteve o embalo amoroso até que terminasse sua harmonia de ninar. Calmamente, levantou-se com o garoto no colo e abriu a porta do cômodo. O cheiro, então, ficou mais forte. Cobrindo o nariz do pequeno com cuidado, ela deu seu primeiro passo no quarto e buscou a janela. Estranhou que estivesse fechada. Esperou o toque de alguma rajada de vento em sua pele enquanto caminhava em direção à cama, mas não soprava sequer uma brisa entre as paredes. Apesar do odor, aquele era o único aposento bem zelado do casarão. O papel de parede colorido transmitia alegria a quem o visse. Os brinquedos, sobre móveis impecavelmente brancos, garantiam diversão. E os incontáveis bichos de pelúcia nas estantes conferiam à decoração um toque encantador. Ângela queria o melhor para suas crianças e faria de tudo para ficarem com ela. Atribuía a suas gentilezas o fato de ter a casa sempre cheia. De boca aberta e olhos cavados no crânio, o defunto ressecado do mais velho estava sentado tranquilamente na confortável cadeira de balanço ao lado de uma caixinha de música à corda no formato de um lindo carrossel. A mais nova, inchada e com a pele na cor violeta, admirava nas mãos sua boneca preferida como se mal pudesse esperar para ter aqueles mesmos cabelos loiros que tanto desejava. Já o do meio, mais tímido que os irmãos, escondia-se no canto com a cabeça baixa, próximo à cortina, indeciso entre remoer a introversão ou contar as larvas que escorregavam de seu rosto carcomido. O novo membro da família certamente seria apresentado às brincadeiras se não tivesse caído no sono. Mas Ângela, sempre zelosa, não quis privá-lo do seu merecido descanso. A vida na rua 17
Marcos DeBrito era uma rotina exaustiva e poder oferecer o conforto de uma cama para que ele apoiasse as costas, acostumadas ao concreto de uma calçada, era um prêmio que se sentia feliz de poder proporcionar aos jovens que resgatava. Ela o colocou delicadamente sobre o colchão e tirou seu cabelo da frente para lhe beijar a testa com ternura. Sorridente, alcançou a graciosa caixa de música sobre o criado-mudo e girou sua pequena manivela. A melodia de suas engrenagens rompeu o silêncio junto ao alegre giro dos cavalos e o som relaxante ecoou no quarto, serenando o ambiente. Sentindo-se abençoada por ter a confiança de crianças tão comportadas, a mulher quase deixou cair uma lágrima de euforia. Gostaria de ficar mais tempo com elas para ver como seu novo menino se adaptaria, mas precisava dar um jeito no mau cheiro da fossa.
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Augusto de Brito
O BECO DOS SUSSURROS Augusto de Brito 2
Joaquim estava em frente ao beco, ansioso, andava de um lado para o outro. Sua cabeça latejava. Levou os olhos ao relógio de pulso, faltavam dez minutos. Cutucou o bolso e sentiu entre os dedos o pequeno objeto de plástico. Enquanto encarava aquela pequena viela escura, fez um rápido retrospecto dos últimos eventos. Ouro Preto, 15 de junho de 2006, pouco mais de um dia antes. Joaquim havia acabado de chegar ao trabalho. Era advogado, e tinha um pequeno escritório especializado em tributação. Assim que entrou, retirou o casaco e o jogou sobre a cadeira. Seu sócio, Tomás, andava de um lado para o outro. — Que foi? Brigou com a esposa? — perguntou Joaquim. — Pior. — Separou? — Ainda não, mas vou. Joaquim intrigou-se. Até então o casamento de seu sócio, Tomás, andava normal. Mas, antes que ele pudesse perguntar as causas, o amigo se antecipou. — Já ouviu falar no Beco dos Sussurros? Joaquim olhava pela janela, a típica neblina Ouro Pretana vinha descendo do pico do Itacolomi em direção à cidade. — Você sabe que não acredito nessas coisas. 2 Geólogo, de Minas Gerais, publicou em 2016 o romance Devaneio na plataforma Kindle, e participou das antologias “Vampiro – Um livro colaborativo”, com seu conto “Consulta Médica”, e agora lança seu conto “O Beco do Sussurro” na antologia da ”Hora Morta”. Atualmente trabalhando em seu próximo romance.
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III - A HORA MORTA — Pois é, eu também não acreditava. Mas ontem estava caminhando pelo Rosário, e vi o beco. Sabe o que dizem sobre ele? — Sei. Aquela bobagem de que ele revela um fato sobre o próximo dia da sua vida. — Exato. Anteontem eu entrei nele. E não ouvi nada. Já estava dando meia volta quando uma voz... Uma voz dentro da minha cabeça me disse que eu seria traído. Joaquim olhou para o amigo, teve vontade de rir. Não fosse a expressão desolada do sócio, ele teria feito alguma piada. — Traído? Faz-me rir, Tomás. — Você não faz ideia de como essa voz é Joaquim. Eu só sei que ontem fui embora pra casa mais cedo, porque a papelada aqui já estava toda resolvida, e você estava pra Belo Horizonte. E advinha o que aconteceu quando cheguei? Peguei a Samara se agarrando com meu primo, na cozinha! Em reação, Joaquim cuspiu o café nos vidros da janela. — Como é? — Tô falando, Joaquim! Com meu primo! Filhos da puta. Joaquim pensou no que dizer, mas não encontrando nada válido, tentou ser racional. — É só coincidência, Tomás. Pode ser que no fundo você já desconfiasse. Não é possível que você tá levando isso a sério? — Não é? Vá lá você, e me diga o que sente então. No fim do expediente, Joaquim caminhava para casa, morava perto da casa de Tomás, e por conta disso fazia o mesmo caminho. Andava distraído em meio aos lampiões a gás que iluminavam parcamente a cidade em meio à neblina. Estava pensando na conversa que tivera mais cedo, e quando se deu conta estava exatamente em frente ao beco. Olhou para a pequena viela escura, e resolveu entrar. Dali pra frente, ele teria o dia mais caótico de sua vida. Joaquim saiu do beco aturdido com a voz em sua mente. 21
Augusto de Brito “Você vai morrer amanhã.” Tomás estava certo, era inexplicável. Caminhou a largas passadas até sua casa. O barulho dos sapatos, ecoando pelos paralelepípedos, o fazia pensar que estava sendo seguido. Olhava para trás, mas só via vultos de transeuntes em meio à névoa. Estava em frente à casa do vizinho, quando o rottweiler dele veio latir ao portão, como de costume. Como todos os dias, ficou imaginando o que faria caso aquele cão escapasse. Quando chegou em casa, a primeira coisa que viu foi o bilhete que sua esposa havia deixado na geladeira: “Amor, não esqueça de sua consulta com o neuro amanhã.” Consulta? Pro inferno com a consulta. Agora ele tinha preocupações bem mais importantes que suas frequentes enxaquecas. Foi se deitar. Mas não conseguiu dormir. Ficou olhando para o teto e ouvindo o velho relógio de pêndulo balançando. Dum... Dum...Dum...Já haviam se passado duas horas. Apenas duas, e o veredito não havia acontecido. Reforçava em sua mente que era tudo imaginação. Levantou, e resolveu banhar-se. O assoalho de madeira do casarão histórico que morava rangia sob seus pés. Podia jurar ouvir outra pessoa andando pela casa, mas ele estava sozinho. Sua esposa estava viajando a trabalho e só voltaria pela manhã. Foi até a porta de entrada, conferir o alarme. Será que aquela noite alguém tentaria assaltar sua casa? Por garantia, religou o alarme três vezes. Quando foi ao banheiro, e estava prestes a abrir o chuveiro, lembrou-se da fiação que estava soltando faíscas. Desistiu na hora. As casas antigas, costumeiramente tinham paredes de pau-a-pique, facilmente incendiáveis. Desistiu do banho, e resolveu sair para beber. Assim o tempo passaria mais rápido. No caminho para a porta, ele se lembrou do cachorro. Foi até a despensa, pegou um pouco de veneno para ratos, enrolou em uma 22
III - A HORA MORTA bola de carne, e quando estava na rua, atirou aquela mistura para dentro do portão. Ao menos uma preocupação ele eliminaria. Parou na rua Direita, e entrou no Barroco, um boteco clássico da cidade. Pediu um copo de cachaça com mel. Estava bebendo, enquanto olhava para os tipos que estavam no bar aquela noite. Pessoas decentes não iriam beber em plena quinta-feira. Somente os vadios. Ele estava ali por outro motivo. Um sujeito o encarava do outro lado do balcão. O fez por horas seguidas, enquanto ele bebia. Seria ele um cliente antigo, de sua época como criminalista? Insatisfeito? Em meio às doses e neuroses, Joaquim foi até um canto da parede e, disfarçadamente, retirou um pino de plástico do bolso. Dentro havia uma quantidade de cocaína suficiente para um “tiro”. Inalou a substância sobre as costas da mão, fungou e limpou a borda das narinas, e voltou ao balcão. Em pouco tempo a droga fez efeito, amplificado pela ajuda do álcool. Sentiu-se ligado, atento a tudo o que se passava. Quando aquele homem mal encarado levantou para ir ao banheiro, Joaquim o seguiu. Empurrou a pequena porta do banheiro individual, surpreendendo o homem, que urinava. Bateu a porta logo após sua entrada, e imobilizou-o contra a parede. O som alto do bar impedia que as pessoas percebessem o que se passava. — Acha que eu não percebi você me olhando a noite inteira? — Qualé, cara? Tá doido? — Talvez esteja! — Você tá de terno no Barroco, chique, isso chama a atenção! — respondia revoltado o sujeito, com a cara colada à parede. Fora de si, Joaquim empurrou a cabeça do estranho contra a pequena janela do banheiro e depois contra a parede inúmeras vezes. Deixando-o desmaiado e com o rosto todo cortado. Saiu apressadamente do banheiro, passou pelo balcão, deixando uma nota de cinquenta reais, avisando que não queria troco.
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Augusto de Brito E agora? O que faria? O que havia feito? Precisava fugir. Mas não sem antes voltar ao beco. Mas, para isso, ele precisava esperar. Uma das coisas ditas é que não se deveria voltar lá em menos de vinte e quatro horas, sob nenhuma hipótese. Joaquim começou a vagar pela cidade. As pupilas dilatadas vasculhavam as ruas. Via pessoas com garrafas de vinho barato passando por ele, todos o encaravam. Assolado pela culpa, começou a procurar refúgio em vielas menores e pouco movimentadas. Já eram três da manhã, a famosa hora morta, e talvez, por conta disso, ele se ateve ainda mais à veracidade da maldição. — Preciso aguentar apenas até as seis da tarde. Depois eu sumo. Joaquim vagou até que o sol raiasse, mas a permanência da neblina na cidade fez com que o dia amanhecesse com baixa visibilidade. Ele, que odiava tal clima, sentiu-se seguro sob a cerração. Às oito da manhã, faminto, foi até uma padaria. Pediu um salgado, e um copo de café preto e sem açúcar. Ele não podia dormir. Poderia acontecer enquanto dormia. Olhava constantemente para o relógio. Dez da manhã. Naquele momento, ele já estava há mais de vinte e oito horas sem dormir. Faltavam apenas oito para findar o prazo, e concluir que era tudo imaginação. Quanto à agressão no Barroco, ele resolveria depois. Era advogado, e sabia como proceder. Arrumaria um álibi. Por volta de meio dia, procurou um restaurante para almoçar, evitava a aproximação de pessoas. Pediu um prato e ficou aguardando. Tinha a sensação de ouvir seu nome pronunciado em todas as mesas. Estava começando a degustar o frango com ora-pro-nobis, quando se deu conta de onde estava. O dono daquele restaurante havia sido seu cliente há muito tempo, e ele havia conseguido apenas um acordo pouco favorável, o que resultou em uma multa por parte da Receita Federal. Correu os olhos pelo balcão, e lá estava ele. Teria sido reconhecido? Aparentemente não. O dono do restaurante estava no caixa, com os olhos na registradora. 24
III - A HORA MORTA E se estivesse disfarçando? A multa havia sido severa, e Joaquim pouco fez para interpelar na justiça. Rapidamente ele empurrou o prato para frente, a comida poderia estar envenenada! Joaquim saiu às pressas, sem pagar. Enquanto deixava o estabelecimento, um garçom chamou sua atenção, fez menção de segurá-lo. Joaquim golpeou-o com um soco na cara, e fugiu, deixando um alvoroço atrás de si. Correu até os arredores do beco, e se escondeu no confessionário da igreja do Rosário. Inalou mais três pinos de cocaína. Aquele ambiente enclausurado era claustrofóbico, mas ao menos o escondia das vistas. Roeu as unhas, todas. Retirou a gravata que já estava frouxa. Suava copiosamente. Após uma centena de olhadelas no relógio, ele viu que o prazo estava perto do fim. Saiu apressado, e foi para as cercanias do beco. Caminhava de lado a outro, lembrando-se do sussurro. “Você vai morrer amanhã.” — Dez minutos. O tempo era lento. Muito tempo depois ele olhou, e ainda faltavam nove. Mais uma eternidade, e ainda no seis. Cutucou o bolso, e encontrou o último pino. Depois ele poderia ir embora. Cheirou o conteúdo ali mesmo, na rua. Só mais um minuto. Suas pálpebras arregalaram, o coração disparou em reposta à droga, aumentando a circulação. Sentiu uma pontada na cabeça, uma dor excruciante correu por todo seu corpo, e então, um aneurisma congênito que ele não sabia possuir, e que causava as enxaquecas, rompeu-se. A hemorragia cerebral fora fulminante. Ele morrera defronte ao beco. Exatamente vinte e quatro horas depois.
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j. Igor
ABA-ÇORO J. Igor 3 Já havia se passado, e muito, das duas da madrugada, e, pelo que Renato sabia, coisas ruins aconteciam às 3h00. A hora maldita. A hora da desgraça. A hora da besta. A hora de Tudo Aquilo sobre a Santíssima Trindade e o caralho à quatro que as pessoas falavam... Parecia lorota. Renato costumava debochar das lendinhas-urbanas-de-merda que seus amigos contavam, e foi por isso que eles o desafiaram à insanidade que estava por vir.
Eles ainda querem me convencer de que tudo isso é verdade. Verdade ou não, ele decidiu “participar” da brincadeira. Mostrou-se garantido no início, porém, sua coragem foi diminuindo gradativamente, enquanto afundava naquela água fétida e gelada. A desistência seria bem-vinda, mas ele... — GLUB — sumiu por alguns instantes e, com certeza, aquilo ia dar... — Merda! — exclamou ele, tossindo e sem fôlego. Jogou a cabeça para um lado e para o outro, como se chicoteasse o ar com seus cabelos. Boiava só com a cabeça para fora. Ninguém saberia se ele não contasse, mas era melhor manter segredo quanto ao generoso gole de... sujeira. — Conseguiu ver? — gritou alguém da margem do Rio Sorocaba. — Acredita na gente agora? Sinistro, não? Alguns deles riram enquanto Renato se debatia em um nado desconsertado. O arrependimento de ter entrado naquilo por 3 J. IGOR, 1991, cresceu em Sorocaba/SP. Formou-se em Engenharia Mecatrônica pela Universidade Paulista (UNIP), e entre alguns cálculos e outros, escreveu histórias de mistério e suspense. É membro da ABERST desde 2017. Autor Destaque no Wattpad com as obras: O Cúmplice e o Assassino e Como escrever, matar e publicar.
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III - A HORA MORTA puro orgulho estava estampado em seu rosto. Ninguém o ajudou, embora se tratassem como amigos. Ele se virou sozinho, mesmo com espasmos numa das pernas e dores na lateral do corpo. — Vamos embora daqui, agora! — gritou Renato, encharcado de pavor. Cambaleante, ele deixou o bando para trás e, sem esperar, subiu a inclinação à beira do rio, lutando para os pés molhados não escorregarem na grama. Correu por árvores, arbustos e passou pelo cruzamento desértico da Avenida Dom Aguirre sem olhar para trás, seguindo em direção ao Terminal Santo Antônio. Renato andou apressadamente pela calçada serpenteada pelo alambrado enferrujado da antiga estação de trem da Cidade. Pela primeira vez, ele se arrepiou ao observar aqueles trilhos velhos e inativos. Tomou fôlego e virou a cabeça para trás. Viu os vampiros o seguindo, vagarosos, como se estivessem num cortejo fúnebre. A dilatação fazia de seus olhos dois faroletes vermelhos, talvez pela água suja do rio, talvez pelas carreiras de cocaína que deram início àquela tempestade de merda noturna. Renato era a imundície, não pelo fato de estar ensopado de água “batizada”, ou pelo cheiro de bosta em seu sobretudo — agora mais pesado —, mas por não honrar as vestes negras. Começou a esmurrar o alambrado. Góticos não deveriam ter medo. Era proibido temer fantasmas, espíritos, demônios ou qualquer criatura da noite. Aliás, ele próprio se considerava uma criatura da noite. Ele e os amigos eram vampiros da sociedade. Já tinham bebido sangue de verdade; feito rituais satânicos; transado sobre várias lápides do cemitério da Saudade, enfim, pareciam feitos grandes o suficiente para que ele não se borrasse pelo que viu dentro do rio, muito menos travar e chorar contra a própria vontade. Renato se encolheu no chão, coberto pela escuridão da madrugada. Envergonhado, ouviu passos e risadas, eram seus amigos se aproximando. Um deles entrou em seu campo de visão turvo. — Você viu? 27
j. Igor O silêncio dele disse que Sim. O rosto contorcido do índio afogado gritando por misericórdia havia sido real, sensorial demais. E o pior, Renato fora acometido por uma estranha sensação de... conexão.
Uma semana sem sair de casa. O assombro decretou vários dias sem falar com os amigos. A covardia lhe assolava, por isso, decidiu mandar uma mensagem à sua seita dizendo que não era mais digno do bando. Resultado? Alvo de chacota. Curioso e com a mente funcionando, sentou-se em frente ao computador e pesquisou sobre cadáveres de índios submersos em rios poluídos e clamando por socorro. (Claro que ele não digitou isso, mas a busca rendeu alguns resultados, digamos, interessantes.) Os pelos ouriçados eram o que determinavam quais histórias ele leria até o fim. Nunca imaginou que os rituais satânicos o levariam a alguma coisa de verdade. Já exausto de tantas pesquisas, deu de cara com uma lenda que chamou sua atenção. Basicamente a lenda dizia que há séculos existiu uma tribo indígena — a qual viveu na mesma região em que a Cidade de Sorocaba fora, posteriormente, fundada — expulsa do grupo por venerarem um tipo de deus diferente do da cultura comum deles. Traduzindo: adoravam o diabo. A tribo dos rejeitados tivera que se instalar em algum lugar distante, e por alguma razão, os membros escolheram ali. Eles eram fortes, destemidos e até diziam ser possível conviver e interagir com o “desconhecido”. Defendiam a tese de que o mal era apenas uma maneira mal compreendida do bem, e que contatar o inexistente não trazia desgraças. Diziam também que o “além” trazia respostas e não mazelas. Os rituais eram regados a sangue, prazer em grupo, e, até mesmo, transes espirituais. Com o passar dos anos, o grupo de índios exilados cresceu, no melhor estilo “Torre de Babel”, e quando a logística do povoamento fugiu do controle — a ponto de os recursos naturais ficarem escassos —, a multidão de amaldiçoados teve de tomar uma decisão: procurar 28
III - A HORA MORTA um novo lar. Contudo, o Deus Sombrio exigiu o sacrifício coletivo e, durante a peregrinação da tribo, que seguia em busca de novas terras, o ser maligno resolveu abocanhá-los, abrindo uma vala gigante por toda a extensão da trilha, chupando-os pelos pés e mantendo-os ali até que apodrecessem. Depois da leitura, o jovem Renato pegou-se emocionado. De alguma forma — muito bizarra — seu coração disse que ele fazia parte daquilo; e não somente ele, como seus amigos.
Somos reencarnações dos índios traídos pelo próprio mal? “Pare de bobagem” alguém precisava dizer a ele, entretanto, naquele instante eufórico e alucinógeno, tudo fazia sentido (pelo menos) para o rapaz. Portanto, surpreso e ofegante, Renato encontrou algo que confirmou a lenda sobre a tribo amaldiçoada. Para a surpresa geral da nação, não foi num site da deepweb! Mas, a prova de que a lenda era verdadeira estava num dos portais mais simplórios que já visitou na vida. Existia uma urgência sufocante dentro de si em contar aos amigos o que descobriu. Então, largou a tela do notebook nesta última página, agora sem nenhuma dúvida, todo convencido de que eles faziam parte daquele povo traído pelo diabo, e saiu em disparada.
Preciso revelar a eles sobre a nossa origem!
No meio de tanta excitação provocada pelos relatos de Renato sobre a descoberta, não foi difícil de convencer o pessoalzinho de que realmente eram reencarnações daquele povo indígena. Sim, claro, tudo se tornava lógico quando a atmosfera bestial lhes envolveu ali naquela margem escura, sem vivalma, e logo às 3h00! Tomados por uma convicção surreal dada pelas forças da hora maldita, chegaram a um consenso e iniciaram um ritual. Dessa vez foi para contatar os espíritos de seus ancestrais. Portanto, foram até o local onde tudo havia começado... — ou terminado... Tremiam, mas não apenas por conta do frio. Nenhum deles hesitou. A mistura de drogas e álcool formava uma cúpula de 29
j. Igor coragem sobre eles. Só faltava darem as mãos para formar uma corrente humana (suicida). E dessa forma, entraram na penumbra das árvores que cercavam o Rio Sorocaba e, alguns com lágrimas escorrendo pelo rosto, afundaram rumo à morte. Foi aí que a coisa toda aconteceu. Um a um, eles foram agarrados por centenas de mãos cadavéricas e puxados para o canto mais fundo do rio. Impossível contar quantos espíritos amaldiçoados viviam em segredo ali embaixo, entretanto, antes de lhes faltarem o fôlego e de seus pulmões se encharcarem com a poluição em forma de fluído, fizeram parte de uma orgia demoníaca sob as águas que Deus mandara dos céus, séculos antes, para encobrir aquela gente pútrida.
Saiu, no jornal do município, o depoimento de um morador de rua, que afirmava ter visto os jovens entrando no Rio Sorocaba na madrugada do sumiço. A insistência do homem teve de ser considerada, afinal, bons policiais e bons bombeiros tinham de averiguar qualquer suspeita em relação ao sumiço dos treze jovens. Talvez, se o mendigo não houvesse se manifestado com tanta veemência, os adolescentes só seriam encontrados caso o rio secasse antes que os corpos se decompusessem. É claro que os bombeiros começaram as buscas completamente descrentes, afinal, se os jovens/otários tivessem mesmo se afogado, estariam neste momento boiando em algum lugar do Rio Sorocaba e, pelo o que lembravam, nenhum corpo fora encontrado. O choque se espalhou rapidamente. As imagens dos treze corpos (inchados e brancos como um apresuntado de má qualidade) sendo içados do rio, pela equipe de bombeiros, foram responsáveis por madrugadas insones e pesadelos claustrofóbicos. Muitos adolescentes despertavam besuntados em suor, debatendo-se na cama depois de sonhos atormentadores às três da manhã. Ninguém nunca soube o verdadeiro motivo por trás do “Suicídio Coletivo” no Interior de São Paulo praticado por 30
III - A HORA MORTA “Amadores do Diabo”. As pessoas sabiam apenas que os jovens tinham desaparecido sem deixar vestígios, como se o sol os tivesse dizimado pela manhã, até que semanas depois foram resgatados do rio. E só! A polícia chegou a investigar o computador de Renato em busca de alguma resposta, no entanto, não encontrou qualquer pista que levasse à real motivação do “suicídio”. Depararam-se apenas com uma página aberta da Câmara Municipal de Sorocaba sobre a Fundação da Cidade. A qual dizia: “[...] O povoado recebeu o nome de ‘Sorocaba’, denominação que tem sua origem no Tupi-guarani, que significa TERRA (aba) RASGADA (çoro)”.
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