A Hora Morta - Volume I

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Copyright © 2017 by Luva Editora Editor Vítor Uchôa Capa e Projeto Gráfico Vítor Uchôa Revisão Suellen Mendes Impressão e acabamento: PSI 7 - Soluções Gráficas Crédito Ilustrações p.05 (Dirck Bouts) p.06 (Fra Angélico)

[2017] Todos os direitos desta edição reservados à Luva Editora. Rua Garcia Redondo, 68. - 20775-170 Cachambi - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. www.luvaeditora.com.br



valentina silva ferreira

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valentina silva ferreira

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III - A HORA MORTA

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FERNANDO BINS

PREFÁCIO Fernando BIns1 Sinto muito. Você ainda não sabe. Os autores que participaram dessa antologia tampouco. Mas eu sinto muito. Quando tudo começou, eu estava no balcão de um bar — o que seria clichê, se não fosse essa uma história real. Era meados do primeiro semestre do ano de 2017. Eu dava os primeiros passos no meu novo emprego que, somado ao emprego atual, tomavam cerca de doze; quatorze horas dos meus dias. Incluindo — é claro — finais de semanas e feriados. Estava em um relacionamento saudável com a mulher da minha vida. Recentemente, havíamos adquirido um pequeno apartamento em um bairro calmo e seguro da cidade. Nenhum exame médico apontava qualquer alerta, meu salário cumpria seu propósito e meu futuro parecia não sinalizar qualquer preocupação. Portanto, eu tinha – na época – o que o mundo caracterizaria como uma boa vida. Eu era, aos olhos alheios, um homem de sorte. Mas eu não estava feliz. Afinal, seguia distante o meu grande sonho de ser um escritor reconhecido nacionalmente e emplacar livros atrás de livros na lista dos mais vendidos e dos melhores recomendados pela crítica. E mesmo tendo duas obras publicadas, eu seguia como somente um jovem romancista vagamente citado pelos eventos literários de Caxias do Sul e região. Fato esse que me levava a 1   Fernando Bins é fruto de uma gestação comum; um parto normal e uma infância saudável. Portanto, alimentar o escritor que berrava, dentro do peito, não tem uma boa explicação. E, mesmo assim, doses de cafés, de angústias e sonhos lavraram madrugadas com páginas e mais páginas de literatura.

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III - A HORA MORTA fazer como fazem muitos escritores: colocar a culpa no mercado editorial e na ignorância brasileira. Por conta de minha desilusão diante tal motivo, você poderia dizer que não sei valorizar o que tenho em minha vida. Poderia me chamar de playboy bundinha – você não seria o primeiro. De todo modo, à noite, no balcão daquele bar no bairro São Pelegrino, servia seus propósitos de brindar minha miséria artística. E, como todo momento de foça existencial, o que eu mais desejava era apreciar uma bebida forte. E sozinho. Mas isso não aconteceu. Ele era um barman margeando a juventude, com cabelos crespos e barba rente, magro, de altura mediana e com um uniforme de qualidade duvidosa. — Péssimo dia imagino — sugeriu o barman. Muito embora, pelo seu olhar seguro, aquela declaração parecia ir muito além de um chute ao acaso. — Nada anormal — eu colaborei, tentando ser o mais lacônico possível, pontuando minha deixa com um gole de uísque e solicitando outra dose. Meu objetivo era dar fim àquela tentativa de diálogo e deixar claro que éramos somente ligados por seu exercício profissional. Que aquele balcão que nos separava somente deveria ser transpassado para completar a próxima dose e para pagar a conta, ao final da noite ou da minha capacidade de me manter operante. Mas o barman ignorou minha vontade. — E se pudesse mudar este quadro? O que daria em troca? — Eu daria qualquer coisa, sabe – disse, deixando-me entregar à fantasia de uma carreira literária reconhecida; ao glamour da fama; aos prazeres do topo da lista dos best sellers. – Eu abriria mão de qualquer centavo. Eu... eu...

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FERNANDO BINS — Interessante — o barman disse. E, quando o vi, ele não segurava mais nenhuma garrafa, nem lavava nenhum copo, nem se preocupava em atender qualquer outro cliente. — Meu nome é Fernando, por sinal — disse, estendendo-lhe a mão. — Fernando Bins. — Prazer, Fernando. Chamo-me Mamon. — Mamon? Como o demônio? — eu perguntei quase deixando uma risada escapar. — Não “como o demônio”. O próprio demônio. Você pode pensar que a resposta não teria impacto qualquer sobre uma pessoa sadia. Afinal, eu poderia creditar aquela última deixa a uma brincadeira sem graça, mas minha vontade de rir imediatamente sumiu. Porque, assim que sua mão enlaçou os dedos entre os meus, senti como se todo o meu corpo se inebriasse de um calafrio sinistro. O resto do bar caíra em total silêncio. Os outros frequentadores não estavam mais presentes. A música do sistema de som não mais preenchia os vazios dos copos e da noite. Éramos, então, somente eu e Mamon. — Pois bem, Fernando — ele disse, sorrindo com orgulho. — Acredito que podemos fazer bons negócios nessa mesa de bar. Olhei para o copo em minha mão. — Eu sou real, Fernando — Mamon interrompeu meus questionamentos. — você é inteligente o suficiente para entender o que vim fazer aqui. Digo: o que vim fazer por você. Em tempo, sempre entendi que o cérebro humano necessita de certo intervalo para interpretar uma informação para, somente então, tomar uma decisão. Se estamos à beira de um penhasco mortal e diante uma fera selvagem, mesmo que nenhuma das opções seja favorável, nosso cérebro avalia as possibilidades e assume seu lado. E foi bem assim que meus pensamentos me carregaram, naquele momento. Um demônio, ao compreender minha angústia, veio me oferecer ajuda. Veio com sua salvação. 12


III - A HORA MORTA Mas, é claro, isso com um preço. — Minha alma? — sugeri. — Oh, não — ele me respondeu, divertindo-se com a situação. — Minha alma não lhe é suficiente — compreendi, de imediato. — O que posso, então, que seja mais importante do que isso? — Desejas ser um escritor renomado; reconhecido em ampla escala, correto? — Sim. É o que mais desejo. Mais do que qualquer coisa. — As almas de algumas dezenas de escritores. Fiquei incrédulo. Mamon estava me dizendo que o preço da realização de meu sonho de vida; que o prestígio colossal de minha arte, era a alma de outros tantos como eu. Mas como eu faria isso? — Organize uma antologia. — Como? — eu lhe perguntei. Eu suspeitava o caminho que o demônio ao meu lado no balcão de um bar barato pretendia tomar, mas parecia deveras irreal para prosseguir. Por conta disso, Mamon completou: — Amanhã, o responsável por uma editora entrará em contato com você. Ele é, digamos, um conhecido. E, juntos, vocês lançarão uma antologia em minha homenagem. — Quer que convidemos escritores a falar sobre você? — Não diretamente. Eles falarão sobre a Hora Morta. Ou Hora do Demônio, como eu prefiro chamar. — Três horas da manhã — deduzi. — Muito bem. Vocês receberão contos a concorrer por uma vaga na antologia. Selecionem os melhores e os publique. — Assim, eles o estarão entregando sua alma? — perguntei, com certa hesitação acompanhando o ponto de interrogação. E foi visível que, para mim — embora estivesse conversando com um demônio —, aquela proposta não fazia muito sentido. 13


FERNANDO BINS Mamon, por sua vez, suspirou — quase impaciente —, ao perceber que teria de detalhar algo óbvio. Um gênio da matemática desmembrando teorias exatas impossíveis para um aluno. — Entenda, Fernando — ele falou, virando-se para mim. — Demônios não precisam de autorização registrada em cartório e com testemunhas para levar uma alma. Não somos tão burocráticos quanto vocês, humanos. — Vocês precisam, então... Mas Mamon me interrompeu, completando. — Adoração. Preciso que o humano dedique seu tempo para falar sobre mim. Calei-me. Portanto, eu teria que sacrificar pessoas que, como eu, também travavam a inglória saga do escritor brasileiro. Teria que entregar jovens e adultos; homens e mulher que alimentam a esperança de, um dia, ganharem a vida com suas palavras. Eu teria de condenar outros escritores, em troca de um futuro próspero e brilhante para mim e meus escritos. Esta antologia é o contrato; a confirmação de meu pecado. E, ainda que minha declaração não carregue terror imediato algum, o que está por vir à aura dos escritores aqui selecionados é tão tenebroso que me dilacera o peito; gela-me a espinha. Tudo isso, em troca de fama. Portanto, eu sinto muito. Sinto, porque, ao receber a notícia de seleção para participação na antologia III, eu vendi o que de mais valioso estes escritores a seguir tinham. Eu vendi suas almas.

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CESAR BRAVO

Depois das três César Bravo 2 Um raio iluminou o céu e refletiu seu brilho sobre a cruz dourada da Catedral. Embaixo do teto externo, povoado por afrescos angelicais, uma mulher sentada nas escadas dava mais um trago em seu cigarro e lamentava a chuva que castigava os pedestres desde as sete da noite. A vida de Alva Maria nunca foi fácil, mas prostituição e chuva forte conseguiam deixar sua existência um pouco mais lamentável. Os carros continuavam passando sem diminuir a velocidade, atirando água e lama em todas as direções. Entre as sete e onze da noite, apenas um policial se interessou pelos serviços de Alva — e em vez de pagar, o homem gordo cobrou sua cegueira com cinco minutos de felação. A trabalhadora noturna fez o que ele pediu, então enxugou os lábios e voltou para as escadarias, esperando que nenhuma nova viatura viesse exigir seus impostos. Depois das onze e quinze, dois outros carros. O primeiro de um velho, que tentou pechinchar seu preço. Tão logo Alva o descartou, um segundo apareceu, cheio de adolescentes bêbados que só queriam provocá-la. A chamaram de feia e de vagabunda, disseram que ela é quem deveria pagá-los. Alva estendeu seu melhor dedo e saiu da chuva outra vez. Geralmente voltava para casa mais cedo, com o dinheiro necessário para dois ou três dias, mas não naquela noite. Na Catedral, o relógio andava depressa e já marcava duas e cinquenta da 2  Nascido em 1977, em Monte Alto, São Paulo, Bravo publicou suas primeiras obras de forma independente, e em pouco tempo ganhou reconhecimento dos leitores e da imprensa especializada. É autor e coautor de contos, romances, enredos, roteiros e blogs. Transitando por diferentes estilos, possui uma escrita afiada, que ilumina os becos mais escuros da psique humana. Suas linhas, recheadas de suspense, exploram o bem e o mal em suas formas mais intensas, se tornando verdadeiros atalhos para os piores pesadelos humanos.

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III - A HORA MORTA madrugada. Por toda a rua, aquela umidade farta que afastava os clientes e os trocava por lixo deixava o mundo mais triste. Folhas secas, embalagem de sorvete, um preservativo aberto que lembrava um fantasma. Talvez devesse voltar para casa. Elizeu, seu menino, detestava dias de chuva. Alva sempre odiava deixá-lo para enfrentar noites como aquela, mas o que ela poderia fazer? “Empregos honestos” muitos diziam. E havia algo mais honesto que a prostituição? Havia prova maior de caridade do que fornecer seu corpo para a alegria de outros? Alva voltou a olhar para a Catedral, perguntando-se onde estava o dono míope daquela casa. Da esquina, um vulto surgiu para acompanhar sua sina, usando um sobretudo escuro e dispensando a ajuda de um guarda-chuva. Sua mão direita estava enfiada no bolso, enquanto a esquerda balançava ao lado do corpo. Durante o percurso que o levou até Alva, o estranho diminuiu os passos uma única vez, tentando pisotear um rato que acabou fugindo por uma rachadura no concreto da calçada. Antes que ele chegasse perto demais, Alva tornou a pensar na segurança de sua casa. Por outro lado, também pensou que a sorte nunca tinha um rosto. Noites de chuva costumavam premiar quem resistisse a elas, não era raro que trouxessem homens que, de outra maneira, não se exporiam nas ruas, mesmo dentro de seus carros. O estranho tinha cerca de quarenta anos; molhado como estava, Alva não conseguiria precisar uma idade mais certa — seu palpite estava reduzido a umas poucas rugas e aos fios grisalhos que se misturavam com a barba escura do sujeito. — Muito frio para trabalhar até tarde, não? — Estou acostumada — Alva deu mais um trago em seu cigarro. A maneira que aquele estranho usou para abordá-la e confirmar sua profissão soou agradável e educada, um bom sinal. Desafiando o riso falso da moça, um pingo de chuva escorreu pelos beirais da Catedral, se esticou e mudou de direção. Embalado pelo vento noturno, acabou acertando a brasa do cigarro aceso da prostituta. — Merda. 17


CESAR BRAVO — Pode ficar com um dos meus — o estranho disse e estendeu um tubinho. Ele também acendeu o cigarro, com um isqueiro prateado que parecia valioso. Alva se animou um pouco e aceitou a gentileza incomum. Normalmente os homens só buscavam nela o que não tinham em casa (e isso raramente significava carinho). Eles queriam gritos, um pouco de violência, exigiam os buracos que as esposas negavam. Alguns deles exigiam que ela fizesse coisas em seus próprios buracos. — Vai querer dar uma volta? — Alva perguntou. — Eu não sei. O tempo não parece disposto a colaborar com a gente. E estou sem o meu carro, ele quebrou a uns três quarteirões. — Tem um hotel aqui perto. Não é grande coisa, mas vai servir, se você não for muito exigente. — Na verdade eu sou, sim... Quanto você custa? — Vai querer quanto? — Alva perguntou de volta, satisfeita pelo homem finalmente chegar ao seu ponto. Nada a irritava mais que os rodeios antes de chegar ao “quanto vale sua vagina”. — Tudo. Dinheiro não é problema. Sobre o que diziam da chuva, sim, podia ser a sorte grande arreganhando seus dentes. Mesmo assim, Alva queria ver o resto do rosto dessa vez. Quanto maior o dinheiro, maior a perversão; uma lição que aprendeu bem cedo. — Eu não faço nada muito esquisito — explicou. — Nada de me bater ou pedir que eu bata em você. E não peça para colocar coisas em mim que tenham vindo de um supermercado. — Jesus Cristo, claro que não. Mas eu quero tudo, quero me sentir especial com você. Alva se afastou um pouco para o lado, sem se levantar. — Entendo sua desconfiança, mas posso pagar adiantado. — Dois mil — ela jogou um preço que ninguém pagaria. Aquele homem tinha algo errado. Não era o rosto, não era o perfume ácido, era algo que ele trazia escondido no riso fácil, uma advertência de perigo. 18


III - A HORA MORTA O estranho vasculhou os bolsos e arrancou um maço de notas, fixadas por um grampo dourado. — Pode contar se quiser; tem três mil nesse pacote. Alva apanhou o dinheiro e passou os dedos sobre as notas. Se o homem queria tudo, era o que teria. E ela acabara de conseguir grana para o mês inteiro. — Negócio fechado? — Ele perguntou e estendeu a mão. Depois de apanhá-la, Alva disse ao homem: — Fechado, aberto, como você quiser — ela sorriu, se levantou e baixou a saia de couro, para que não mostrasse a mercadoria para algum espertinho antes de chegarem ao hotel. Foram três golpes. Um na barriga, um no rim esquerdo, um terceiro que sepultou sua vida acertando a nuca. Enquanto o sangue escorria e a alma se preparava para deixar o corpo trêmulo, os ouvidos vibravam ao som das badaladas que anunciavam o horário mais escuro da noite. — Deus, como vocês são burras. O que pensou que significasse tudo? Um boquete? — Em seguida o assassino chutou o corpo de Alva, como quem tenta tirar um entulho do caminho. O homem usou a água da chuva para lavar sua lâmina, depois usou o cachecol do cadáver para secar o metal. — O dinheiro é seu, como combinamos — fez questão de dizer antes de deixá-la.

Do purgatório do desencarne, Alva via a chuva inclemente e ouvia as badaladas dos sinos. Em cada uma delas, sentia sua alma tentando deixar a terra sem sucesso. Ela não tinha mais vida no corpo físico. Não sentia os cortes, a água na pele, ou o odor pútrido que acompanhava a enxurrada carregada dos dejetos da cidade. Três batidas: incompreensão, escuridão, raiva. O que seria de seu filho? Deus, Elizeu só tinha oito anos. Ele não sobreviveria sozinho. Seria adotado ou humilhado? Seria amado? Do alto da Catedral, os sinos se acalmaram. 19


CESAR BRAVO Mesmo sem a pele ou qualquer sensação humana que superasse a visão e a audição, a mulher se levantou. Não tinha mais as roupas, a chuva a transpassava, sua nudez purificada voltara a pertencer aos céus e infernos. Alva ainda podia ver aquele estranho, conseguia enxergar a fumaça de um novo cigarro deixando o vulto perto do fim da rua. Quanto tempo demoraria até alcançá-lo? Conseguiria tocá-lo? Em um teste rápido, Alva chutou o próprio cadáver. As pernas mortas se moveram, os cabelos se agitaram; ela sorriu e correu.

O nome do homem era Pedro Bismarck. Seu motivo para matar? Ter contraído HIV de uma prostituta — ou talvez fosse um pretexto, algo que nunca chegaria a ser uma razão concreta. Ele saía nos dias de chuva, depois da uma da madrugada, quando só as mulheres mais inconsequentes insistiam em ficar nas ruas do centro. Pedro estava feliz, tinha limpado um pouco da sujeira do mundo. Também tinha a consciência limpa, afinal, ele pagou o que devia, exatamente como combinado. Sendo um advogado, Pedro sabia que todo contrato tem letras miúdas, se ela tivesse perguntado, não teria acontecido. Mas não, como toda garota daquela área, ela só pensava no dinheiro, ignorando que poderia enganar outro idiota e infectá-lo com suas doenças. Pedro caminhou mais um pouco e dispensou o cigarro. Estava à frente de uma loja chinesa, onde a estátua de um dragão estendia sua língua perfilada a ele. O corpo banhado pelos néons vermelhos, a alma um pouco mais leve depois daquele cigarro. Alguém vinha chegando às suas costas. Pedro não viu diretamente, mas se interessou quando um cão que se albergava na marquise do mesmo comércio começou a rosnar. Em vez de sentir medo, Pedro ficou maravilhado. No espectro que se aproximava, as gotas contornavam o corpo, resvalavam no invisível, como se aquela imagem fosse uma escultura de gelo. Os seios, a cintura afilada, as pernas bem torneadas. Com um

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III - A HORA MORTA pouco de esforço, Pedro conseguiu ver a região pubiana, onde a água se enroscava e demorava mais a escorrer e cair. — O que é você? — ele sacou a lâmina. Talvez não fosse ruim, apenas uma alma perdida. Mas Pedro também pensou naquele horário, como muitos, ele também ouvira dizer que três da madrugada é o horário mais perigoso do relógio. — Quero seu preço — a voz disse. Não parecia irritada ou algo assim, a Pedro, lembrava a candura de sua mãe. — Se afaste de mim — ele disse e estocou o canivete. Presenciou uma cascata úmida deslizando sobre o espectro invisível, não mais vitrificado, mas irreconhecível e solúvel, tal qual o ar. Pedro girou o corpo em todas as direções, o cachorro começou a latir e correu, desaparecendo na esquina. — Seu preço — a voz insistiu. Não era mais Alva, não mais a prostituta, tudo o que aquela abominação tinha de vida era sua alma materna ofendida. Mas Pedro reconheceu sua origem, era ela. Ciente que enfrentava um perigo que não compreendia, Pedro correu pelas ruas. Sem diminuir a velocidade, ele continuava olhando para trás, onde via pequenas poças explodirem como se estivesse sendo pisadas por aquela coisa. Pedro correu mais um pouco, sem saber exatamente para onde ir. Já estava bem perto de uma agência bancária quando sentiu um golpe arruinar sua perna direita. A pancada seca, bem colocada pela frente, girou tendões e músculos ao contrário. — Me deixa em paz! Você não pode viver, não está certo! — gritou, quando finalmente adquiriu coragem para verbalizar a identidade daquele corpo. — Seu preço — a voz suave insistiu. — Não, eu não estou negociando. — Nesse caso, terei que matá-lo. Pedro se abaixou e checou o joelho, a ponta do osso esbarrava e eriçava o jeans ensanguentado. Talvez fosse melhor repensar aquela negociação. — Por favor, me matar não vai trazer você de 21


CESAR BRAVO volta. Podemos tentar um acordo, tá bom? Mas não vai conseguir nada de mim se me matar. Antes da resposta, a alma escurecida pela ira mergulhou os dedos na carne do pescoço do assassino. Então a puxou para cima, arrancando um filete de carne e cabelos. Pedro gritou, e gritou um pouco mais ao ver aquele pedaço dele sendo dispensado como lixo nas águas turvas da enxurrada que corria pela calçada. — Ainda quer negociar? — a voz perguntou. À frente deles, os vidros da agência bancária começavam a embaçar. Pedro também sentia aquele frio, experimentava a temperatura obscena do que o mundo esconde dos olhos. — Não me mate, eu faço o que você quiser. Tudo o que quiser! Por um breve instante, o eixo do mundo pareceu restaurado. Os vidros perderam o embaçado, a chuva diminuiu, não havia contornos humanos pela calçada. Pedro tornou a se levantar, se escorando no corrimão que margeava o caminho até os caixas eletrônicos. Então ele sentiu algo novo, uma pressão na coluna. Depois do grito, o assassino caiu sobre as próprias pernas. Tentou movê-las, ameaçou tocá-las, mas a dor naquele ponto da coluna não o permitiu ir tão longe. — Precisa confiar em mim! Eu dou o que você quiser! — gritou. — Você não entende? Eu quero viver! Eu mato vagabundas como você, porque sua raça me condenou à morte. — Não, você está vivo. — O que você quer!? Deus do céu, você me aleijou! — Só existe uma maneira de continuar vivo, benzinho. E quero saber se está disposto a contribuir. — Eu faço tudo, qualquer coisa, mas não me mate. Por todos os lados, Pedro ouvia gemidos e sussurros, via frações úmidas resvalando sobre aquela plataforma invisível e de alguma maneira humana.

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III - A HORA MORTA — De agora em diante, você trabalha para mim. Dois mil por semana, sempre aqui, sempre depois das três. Se você não aparecer, vai acordar com seu pênis mastigado. Se você se atrasar, seus braços ficarão mais inúteis que as suas pernas. Eu posso transformar você em um coto falante... — Por quê? Você morreu! O que vai fazer com o dinheiro? O que vai ganhar com isso? A voz carregada de chuva sorriu. Pedro sentiu um novo ardor em sua nuca, implorou para que não perdesse mais um pedaço de pele. Usando os braços, conseguiu se afastar e se arrastar para a marquise da agência bancária. Mas não conseguiria se afastar da voz e de seu novo argumento. — Você agora é minha puta, papai. Putas não perguntam, não sentem, e não negam nada quando o pagamento é justo. Sobre o asfalto úmido, Pedro notava um maço de notas úmidas se afastando em direção à Catedral. A coisa que segurava o dinheiro assoviava e parecia saltar sobre as poças, parecia ter feito um ótimo negócio.

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Águas malditas Valentina Silva Ferreira 3 Despertador maldito que urrava ao meu lado. Dei-lhe um chega para lá e Odete mexeu-se por entre os lençóis. Sentia-lhe o corpo morno da noite e o cheiro de alfazema da roupa de dormir. Eram duas e meia da manhã e a lua ainda beijava as ruas de Santa Maria Maior. Odete perguntou-me para onde ia, que ainda era muito cedo. Disse-lhe que combinara mais cedo com o Juvenal. Ela nem ouviu, deixou-se adormecer. Vesti-me sem demoras e saí, sem olhar para trás, isento de dilações e remorsos. Tinha de o fazer! Percorri a calçada, pisando o chão que me apontava o dedo e olhava, apreensivo. O chão sabia o que eu estava prestes a cometer. O chão sabe sempre tudo. Afinal é nele que pisamos e é ele que recebe as nossas energias e memórias, os nossos segredos e desejos. Avistei o rapaz que entregava o pão de lar em lar, todos os dias, bem cedo. Era órfão e feio, sem namorada e com doenças secretas que lhe davam um amarelado pálido ao rosto - doença de fígado, certamente. Ninguém sentiria a sua falta; ninguém choraria por ele. Tânia era mais importante; eu choraria por ela. Segui o moço, escondendo-me nas penumbras da noite, tapando os ouvidos aos postes de luz que, de cima, chamavam-me de assassino. Ele seria o último daquela promessa. Corri cautelosamente, sem barulhos, sem pisar folhas que estalam, sem atropelar gatos pretos ou cães vadios, sem tropeçar nas ruas mal construídas, sem chocar contra postes, ou paredes, ou carros; cúmplice da noite e ela cúmplice de mim. Surgi por trás, ouvi um cantarolar breve que me confundiu. Quem canta não é infeliz. Porém, o meu instinto foi mais rápido. 3   Autora de Distúrbio (Ed. Estronho, 2011), A Morte é uma Serial Killer (Ed. Estronho, 2012) e Os Loucos também dançam (Flybooks, 2017) . Co-autora em mais de vinte antologias portuguesas e brasileiras. Organizadora da coletânea Insonho - Durma bem! (Ed. Estronh, 2015). Vencedora de prémios literários nacionais e internacionais. Dinamizadora do Projeto Escrita Fantástica.

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VALENTINA SILVA FERREIRA Silenciei a sua boca de bafo podre com uma mão e, com a outra, agarrei-o pelos braços magros, encostei todo o seu corpo ao meu e sufoquei-o o suficiente para que desfalecesse. O pobre esperneou, mas nem tentou gritar. Deixou-se, simplesmente, desmaiar nos meus braços e derreter por mim abaixo, fazendo com que a roupa que envergava parecesse demasiado larga. Agora que penso nisso, acho que ele foi meu comparsa na sua própria morte. Desafortunado, era o mais fraco dos cinco. Nem a tonta da cabeleireira fora tão fácil de sucumbir. Arrastei-o pelas ruas que me conheciam. Elas apregoavam — endiabradas — acusações desmedidas, sem nexo. Ruas tolas, não sabiam que um pai faz tudo pelas crias; não sabiam que um homem sujeita-se às amarguras do inferno para que os filhos se regozijem pela eternidade fora. “Calem-se!” gritei desesperado. “Calem-se!” Eu transpirava uma água gelada e sentia o meu corpo mergulhado numa febre pastosa, que me deixava com tonturas e de raciocínio lento: uma febre de remorsos. Uma luz acendeu, ainda que ao longe. Receei ser descoberto e escondi-me na esquina mais escura, agarrado ao morto que começava a pesar, de olhos vítreos fixos em mim e, no sorriso, um certo tom de ironia. Encarei a casa de luz acesa. Certamente, alguém se levantara para ir à casa de banho. Respirei fundo e reuni toda a coragem que começava a faltar. O pior já estava feito, não tinha o que temer agora. Continuei o meu caminho, arrastando o entregador de pão pelos braços, rasgando a parte de trás das suas calças e deixando-o com um aspecto ainda mais moribundo do que o que já estava. Cheguei, por fim, à Barreirinha e ele viu-me. Agitou-se de emoções contidas ao avistar o quinto corpo; a quinta alma que eu espremia tipo laranja e deixava o sumo espiritual escorrer por entre a podridão da morte. Eram três da manhã, a Hora Morta. Não acredito em Deus. Acredito no mar. Sou pescador e sei do que ele é capaz. Sou pescador e cumpro as ordens do mar. Não pensem que ele é mau. Nem pensem que ele é bom. O mar simplesmente comanda a vida. Reflitam um pouco: Quem dirige as gaivotas que sobrevoam as nossas cabeças? Quem abriga os 26


III - A HORA MORTA raios de sol em manhãs de verão? Quem esconde os braços da lua nas suas profundezas? Quem resguarda os mistérios da vida por entre os corais sagrados? Quem entrega o alimento que nos faz viver mais um dia? O mar, sempre mar, tudo o mar. Ele fala; basta ouvi-lo. E pede também. Pede tudo aquilo que deseja, sem se importar com mais nada. O mar também ajuda, mas não o faz de graça. Não, enganam-se vocês. O mar dá se lhe derem. E eu dei-lhe cinco corpos. Cinco vidas ceifadas ao acaso, que eu escolhi por achar que seria fácil, que ninguém daria pela falta, que ninguém se lembraria de acender uma vela, todos os anos, em sua homenagem. Cinco almas que agora deambulam pelas vias da minha terra, assombrando-me, contando às paredes e ao musgo que dorme na calçada, aos animais e aos candeeiros antigos, que fui eu o raptor, o predador, que foi o meu rosto o último que eles viram. É por elas que as esquinas carpem; que as ripas dos tapassóis bradam e as portas, que abrem e fecham, oram. “Em troca de quê?” perguntam vocês. Pela Tânia, a minha mais nova que, coitada, nasceu com um sopro desgraçado no coração. Tânia, roliça e educada, vivia à beira da morte dia sim, dia talvez e eu, como pai, sofria incessantemente com isso. Odete chorava todas as noites e as mais velhas viviam amarguradas, receando o dia em que Tânia, loura e branca, decidisse não acordar mais. Perguntei ao mar, senhor de mim, de vós e do mundo, o que ele queria em troca se me desse a graça de ter a minha Tânia saudável e ele, sem qualquer vergonha nas ondas, disse-me que queria o sangue de cinco pessoas derramado sobre ele. Não perguntei o porquê, até porque não se questiona nunca os desejos dos deuses. Limitei-me a cumprir. Demorei três semanas; malditas três semanas que custaram a passar, que roubaram o meu sono e invadiram o meu ser de pesares indesejados. Malditas três semanas que me transformaram num homem sem escrúpulos. Às três da manhã. Atravessei o calhau, amigo do mar, e entrei no buraco que secretamente escavara. Cheirava a morte, um misto de sangue pútrido e sal queimado. Um aroma de retrete que me invadia as entranhas e expunha-me ao ridículo de querer vomitar. 27


VALENTINA SILVA FERREIRA Alinhei os corpos, três homens e duas mulheres. Admirei a rapidez que aqueles corpos se tornaram feios. Percebi a razão dos poetas - esses ilustres que eu admirava mas que, na minha ignorância, não entendia - dedicarem-se tanto a esculpir a morte com tamanha dedicação. A morte era tão senhora de nós quanto o era o mar. Ele bramiu e pediu-me por eles. Cumpri mais uma vez. Joguei-os às ondas bravias e vi-as, juro-vos que as vi, engolir as carnes humanas. Três da manhã, mais alguns segundos. A espuma denunciava o apetite voraz, ao mesmo tempo que os calhaus chocalhavam uns nos outros em aplausos exaustivos. Por cima, o Forte de São Tiago admirava-nos insatisfeito, desejoso de contar à Igreja, cujos sinos tocavam as sete horas, que o Ferreira, esse mesmo, o pescador, era um homem cruel que assassinava pessoas e as jogava ao mar. Lancei-lhe um olhar de ódio e ele deixou-se ficar quieto, escondendo-se por entre as nuvens cinzentas que apareciam. Adormeci, febril, por algum tempo. O sol começava a nascer mas o mar, guloso e egoísta, sugava os seus raios juntamente com os corpos, como que os temperando de amena doçura solar. Esse dia seria cinzento para quem ali vivesse; não para mim que teria a minha Tânia, fresca e inocente, a correr pela casa sem medos de cair em fraquejos de adeus eterno. Ao desaparecer dos corpos, a minha mente festejava uma vitória. Eu celebrara um contrato sobre-humano. Eu dera e iria receber. Eu salvara a minha filha. Todos os pais adoram essa melosa sensação de triunfo conquistado. Despedi-me do mar, meu aliado agora, e voei feito louco para casa. Faria amor com Odete, beijaria as minhas filhas, sentaria Tânia no meu colo e explicar-lhe-ia que toda a sua luta não tinha sido em vão. “Sim, filha, poderás correr à vontade. Sim, filha, poderás subir às árvores e viajar com os teus tios e mergulhar na piscina e dar cambalhotas e tudo o que desejares. Sim, filha, estás curada.” Sorri, imaginando todo o discurso vitorioso que eu iria entoar para ela, que sorriria e colaria o rosto pequeno ao meu pescoço. Iria garantir-lhes um futuro risonho e feliz.

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III - A HORA MORTA Começou a chover. Saí da praia, sentindo o sal entranhado em mim, picando a minha pele e amargando a minha boca. Contudo, mesmo desconfortável, saltitava pelas ruas que derramavam lágrimas que eu não entendia. Passei por homens em tabernas que me olhavam com pena; por crianças que cochichavam frases imperceptíveis. Cruzei-me por velhas que baixavam a cabeça em sinal de misericórdia. Pisei flores que murcharam inesperadamente. Percorri caminhos ladeados por paredes que escorriam tristezas e náuseas ocultas. Cheguei a casa, à minha velha casa. Odete deitada sobre a Tânia, que já não parecia roliça e educada, loura e branca, fresca e inocente. Odete gritando, sufocando em ranho, debatendo-se com uma dor desconhecida enquanto Tânia, mórbida e paralisada, jazia no chão, com a boca aberta e os olhos arregalados. Odete transformada num bicho consumido pela raiva; uma mulher que eu não enxergava como sendo minha; uma mulher possuída pelo vazio da maternidade tirada. Tânia, que tantos sonhos carregava, que tantas esperanças guardava e memórias elevava. A minha filha que eu contava levar ao altar e entregar a um homem que jamais alcançaria a sua dignidade; que eu imaginava numa nobre faculdade recebendo o seu diploma de médica. A minha cria mais perfeita e amada; aquela que cumulava todas as minhas fantasias perdidas; a mais sonhadora, a mais lutadora, a mais carinhosa, a mais bonita. Deixei-me cair ao chão e olhei pela janela. Ali estava ele, bailando, saciado e feliz. Um autêntico unhas-de-fome que me atraíra com propostas irrecusáveis, que se denominara de todo-poderoso, prometendo alegrias e sortes, deslindando uma novela de final feliz. O mar, esse tal que se julga o maior, o melhor, o mais rico, que pede, que ordena, que nos seduz com promessas fáceis, permanecia lá em baixo, guardando aqueles corpos nos bolsos das ondas, desenhando no calhau os cifrões das vidas que devorara. Engoli em seco e deixei-me cair. O mar é traiçoeiro e malditas são as águas.

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Y. M. DIAS

a feiticeira do teles Y. M. Dias 4 As cadeiras de madeira foram fechadas e colocadas com cuidado no interior do Bar da Onça. Do lado de fora, os outros estabelecimentos já se encontravam imersos na escuridão, com as portas de ferro abaixadas. Enquanto limpava uma das mesas, Leila xingava em pensamento o último grupo a sair. Os rapazes mal consumiram concentrados no Fla x Flu que passava na televisão. “E ainda deixaram uma merreca de gorjeta” pensou, esfregando o pano com força para tirar o melado do refrigerante que um deles havia derrubado na superfície. Apesar de o futebol ser um chamariz, o movimento nas quartas-feiras não era dos melhores, agravado pelos tempos de crise. Nos fins de semana, mal tinha tempo para pensar, indo de um lado ao outro do bar localizado na Travessa do Comércio, no centro do Rio de Janeiro. De sexta a domingo, não deixava o trabalho antes das 5h da manhã. Seu relógio de pulso indicava vinte minutos para as 3h. “Já estaria em casa se não fosse por aqueles caras.” Ao lado, os colegas de trabalho recolhiam as mesas limpas. — Vai de ônibus? — perguntou Guilherme, passando as costas da mão pela testa úmida de suor. — Hoje não. — Leila pegou o celular do bolso das calças. — Vou chamar um Uber. — Ih, tá com dinheiro? — brincou Milena, terminando de secar um copo e o colocando junto aos outros.

4  Y. M. Dias sempre foi fascinada por histórias sobrenaturais e fantasiosas, mas seu amor pelos livros iniciou ao receber um exemplar de Harry Potter e a Pedra Filosofal. Aos poucos sentiu a necessidade de ir além do que a leitura poderia proporcionar, nascendo assim a sua paixão pela escrita.

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III - A HORA MORTA — Antes fosse. Vocês pegam o mesmo ônibus e eu vou sozinha para casa. — Na tela do celular, a opção de preço dinâmico surgiu, arrancando um suspiro de Leila. — As coisas também não estão muito boas na minha área. — Acabou optando por pagar uma taxa maior, louca para ir embora logo. — Não tá fácil para ninguém, Lelê. — A jovem concordou com Guilherme, voltando a guardar o celular. Ao terminar sua parte, Leila trocou de roupa, ajeitando a bolsinha de dinheiro sob a alça do sutiã. A mochila foi posicionada à frente, onde poderia segurá-la com mais firmeza. O celular passou para dentro da calça, preso contra sua cintura pelo cós das calças. Qualquer cuidado era pouco ao se andar no centro do Rio de madrugada. Como de costume, os três seguiram juntos em direção à Praça Quinze de Novembro e se despediram sob o Arco do Teles, onde Leila havia marcado com o motorista do Uber. O preço que pagaria na viagem poderia fazer falta no futuro, ainda mais com a quantidade de contas a pagar naquele mês. Mesmo assim, não conseguia evitar a sensação de que era a coisa certa a se fazer; desde o momento em que saíra de casa, em Bangu, para trabalhar, sentiu arrepios incômodos que a faziam tremer, os pelos dos antebraços se eriçando e a impressão era de que “não deveria nem ter saído da cama hoje”. Parada na calçada, com uma ou outra pessoa passando, saídas de alguma balada ou barzinho, Leila engoliu em seco a aflição, garantindo para si mesma que não passava da boa e velha paranoia. A fama do lugar também não ajudava. No primeiro dia de trabalho, Guilherme fizera questão de contar sobre a famigerada prostituta Bárbara dos Prazeres, ou Bárbara “Onça”. A alcunha servira de inspiração na hora de dar um nome ao bar. Segundo o colega, Bárbara e seu marido chegaram ao Brasil, saídos de Portugal, pouco antes de um incêndio destruir não só uma parte da travessa como também a aura aristocrática. O que restou foi um reduto decadente para pessoas da pior estirpe, que contrastavam com o oratório de N. Sra. Dos Prazeres, retira31


Y. M. DIAS do pouco depois por moradores dos entornos. Nesse ambiente marcado pela prostituição e demais negócios escusos, Bárbara se apaixonou por outro. Movida por uma paixão avassaladora, assassinou o marido para ficar com o amante. Contudo, a paixão se extinguiu quando a mulher viu todos os seus recursos financeiros serem esbanjados pelo rapaz, que também a traía. Foi então que suas mãos se sujaram de sangue uma vez mais. Em ruínas, sua única opção foi a prostituição. Jovem e bela, o Arco do Teles virou sua fonte de renda. Porém, essas características marcantes não duraram para sempre. Quando a idade chegou, acompanhada de doenças, seus clientes sumiram. Enquanto ouvia a narração dramática de Guilherme, Leila ficou se perguntando quando a fama assombrada do local seria justificada. Não esperava, entretanto, que a situação de Bárbara se tornasse tão tenebrosa. Sem conseguir se sustentar, a alternativa da mulher foi buscar auxílio sobrenatural. Não era difícil encontrar indivíduos em cada esquina a se aproveitar do desespero alheio com soluções mágicas. A intenção da “onça” era recobrar sua juventude a qualquer custo. — A procura custou todas as economias dela — explicara Guilherme, animado com a curiosidade da colega —, mas o dinheiro não era tudo. A Bárbara precisou pagar com a própria alma. A receita da juventude, como algumas pessoas acreditavam, acabou parando nas mãos da mulher. — Ela precisaria de algumas plantas. Nada de mais se comparado com o ingrediente principal. — A parada dramática que o rapaz fizera havia deixado Leila com as unhas no sabugo. — Sangue de criança. Ah, mas não bastava só ser sangue de criança. O menino ou menina precisava estar vivo. Sangue quentinho. Fresco. — E funcionou? — Não conseguira conter a pergunta, franzindo o cenho só de imaginar. — Bem — Guilherme dera de ombros —, dizem que sim. Como se os homicídios do marido e do amante não fossem suficientes, Bárbara se tornou responsável pelo rapto e assassinato 32


III - A HORA MORTA de diversas crianças; umas escravas, outras abandonadas. Sua maior fonte de “matéria-prima” havia sido a Roda dos Expostos, da Santa Casa, onde as mulheres deixavam seus bebês para a adoção. O caos se instaurou no Rio antigo. Pais não deixavam mais seus filhos saírem de casa. Isso não impediu Bárbara de continuar atraindo crianças para o seu casebre, pendurando-as de ponta-cabeça enquanto as abria com uma adaga bem amolada. Sob o gotejar constante do sumo rubro da vida, ela se banhava, esfregando as ervas em sua pele enrugada até a juventude retornar. — Quem precisa de Elizabeth Bathory quando temos Bárbara dos Prazeres, certo? — brincara Guilherme, mas Leila ficara chocada demais para acompanhar seu humor. — Tem gente que acredita que ela morreu em 1830, mas nunca foi confirmado. Talvez ainda esteja por aí... a risada dela pode ser ouvida de madrugada, nas noites sem lua. Leila fixou o olhar ao lembrar-se da narração empolgada do amigo. A história de Bárbara continuava lhe causando arrepios. Era o tipo de coisa que se via em filmes de terror americanos, não no Brasil, e não no local onde trabalhava. Surpreendia-se com a quantidade mínima de pessoas que conheciam a história da mulher que passou de dama portuguesa para prostituta e, por fim, “feiticeira”. “Não é real” pensou, batendo o pé contra o chão enquanto aguardava impaciente, pelo Uber. “Pelo menos não é uma noite sem lua.” Começou a erguer o olhar em direção ao céu quando, de repente, escutou uma risada às suas costas que a fez tremer dos pés à cabeça. Quando deu por si já tinha se virado e encarava a entrada da travessa em busca da fonte da risada. Próximo ao arco, um morador de rua havia se deitado para dormir, envolto de trapos e um saco plástico preto. Leila ouvia os próprios batimentos, graças ao susto, como se alguém tivesse posicionado o coração ao lado de sua orelha. Olhou para o relógio, que havia acabado de marcar 3h da manhã, torcendo para o motorista estar perto. — Não, não ouvi nada — murmurou sem saber se o dizia para si mesma ou para o suposto espírito de Bárbara.

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Y. M. DIAS Antes de se voltar mais uma vez para frente, notou uma movimentação pelo canto do olho; um vulto correndo em direção ao Arco do Teles. Pequeno demais para ser um adulto. A primeira reação de Leila foi se virar, encontrando a mesma imagem inóspita de antes. Então um grito distante. Agudo. Infantil. “E se for mesmo uma criança?” era o seu questionamento enquanto o altruísmo e os instintos se digladiavam para ver quem levaria a melhor. Acabou pegando o celular e discando 190, preparando-se caso precisasse ligar. Apesar do medo implorar para que ela continuasse esperando pelo Uber ali, Leila foi em direção ao arco. Ao botar os pés mais uma vez na Travessa do Comércio, a temperatura caiu de uma maneira quase surreal para um lugar como o Rio de Janeiro, chegando ao ponto do ar deixar os lábios da jovem e se condensar à sua frente. Chegando ao meio do caminho, ladeada pelo casario, voltou a ouvir um grito, que chegou acompanhado de outros; uma sinfonia perversa que não parecia vir de um lugar específico, mas sim de todos os cantos. Leila levou as mãos às orelhas, ao ser envolvida pelo desespero, no momento em que emergiu uma risada que se destacava pelo tom infausto. As sombras ganharam vida, deslizando em direção às paredes e tomando contornos infantis. A jovem se afastou a passos trôpegos rumo à rua, virando-se para fugir e parando antes mesmo de começar. Sob o Arco do Teles, o mendigo fora substituído por uma silhueta de curvas acentuadas, coberta por farrapos que um dia foram um vestido longo. Em pé, o emaranhado de cachos caía até seus quadris enquanto o rosto era uma incógnita. Ela permaneceu inabalável ante a figura abismada de Leila, que se permitiu um breve momento de choque antes de correr na direção contrária. A cada passo dado, mais perto se sentia do arco, correndo no mesmo lugar. Os soluços começaram e as lágrimas desceram pelo seu rosto. A cabeça em plena desordem deixava que a responsabilidade caísse sobre os instintos. Então algo a segurou pelos tornozelos, levando-a ao chão antes de puxá-la de volta ao arco. Leila arrastou suas unhas pelos paralelepípedos até não restar nada além dos dedos em carne viva. 34


III - A HORA MORTA Mal teve forças para ofegar ao ser erguida no ar. Sob o Arco do Teles, de cabeça para baixo, balançava debilmente enquanto lutava para não desmaiar. Através do olhar nublado, notou a figura sombria reaparecer em seu campo de visão com uma adaga em mãos; tão próxima que o hálito pútrido a inebriou. Seu rosto era como uma miragem, oscilando entre a beleza florescente e os vincos da velhice. “Não é real” o pensamento voltou à mente de Leila e, como se pudesse lê-lo, a mulher sorriu pouco antes de passar lâmina afiada na garganta da jovem.

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