Voz Acadêmica 2º Vol 2020

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EDIÇÃO 2020 // VOLUME Nº2 // NOVEMBRO 2020

VOZ ACADÊMICA A OUTRA FACE DA CRISE

Liberdade de imprensa e democracia P.04

CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA


LAIROTIDE OHLESNOC

CONSELHO EDITORIAL REPRESENTANTES DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA Guilherme Eustáquio Teixeira Souza Marcos Paula de Oliveira Junior Mateus Leme dos Santos Cardoso Melissa Santos Mascarenhas REPRESENTANTES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG Bruna Pereira Frasson Carlos Henrique Jesus de Souza Lucas Henrique Filardi Mendonça Marcelle Stephanie Ferreira Conegundes REPRESENTANTES DOS ÓRGÃOS ESTUDANTIS DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG Eduarda do Prado Ribeiro (Conselho de Representante de Turma - CRT) Lucca Girardi Caumo (Centro Acadêmico de Ciências do Estado - CACE) Victor Hugo Silva Monteiro (Atlética do Direito da UFMG - AAA) REPRESENTANTE DA PÓS-GRADUAÇÃO DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG Fabrício Manoel Oliveira

DIRETOR DE ENSINO E PESQUISA DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA Marcos Paula de Oliveira Junior

MODERADOR DO CONSELHO EDITORIAL DO VOZ ACADÊMICA Guilherme Eustáquio Teixeira Souza E-mail: guisouzats@gmail.com

O Voz Acadêmica é uma produção idealizada pelo Centro Acadêmico Afonso Pena - CAAP

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EDITORIAL Seria injusto, diferentemente do que acha o presidente Jair Messias Bolsonaro, se colocássemos a responsabilidade de todos os recentes fracassos do nosso governo nas questões que tangem a crise da COVID-19. Temos a consciência de que estamos passando por tempos nebulosos e que seria inevitável uma pandemia, de tamanha magnitude, não interferir em nossas relações sociais como também nas atuações governamentais. Está sendo difícil pra todo mundo e sabemos disso. Porém, o caso não é só esse. Fato é que não podemos e não devemos colocar o nosso governante em posição passiva e resguardá-lo das atrocidades que ele mesmo tem compactuado. O Brasil já ultrapassou a marca de 160 mil mortes e se comparado a outros países de condições similares às nossas, esse número é discrepante. Pois bem, sabemos também que não são apenas números, são mais de 160 mil pessoas que perderam a vida. Assim, as inseguranças políticas do nosso país, a nossa falta de referência representativa e a falta de competência dos nossos governantes nos preocupam e nos colocam na obrigação de ajudar os mais vulneráveis e de suprir a carência do caráter assistencialista que um Estado Democrático de Direito, por lei, tem que ter.

OIRÁMUS/LAIROTIDE

Desde o dia 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevou o status de epidemia para pandemia do Novo Coronavírus, as questões políticas no Brasil se agravaram e fizeram com que as questões sociais ficassem ainda mais vulneráveis como também mais evidentes.

Nesse sentido, em face de tantas desinformações e crescentes disseminações das chamadas fake news, este volume do Voz Acadêmica faz referência a atuação da imprensa nacional que passou a lidar com ataques e inúmeras tentativas de desmantelamento que, em sua maior parte, disseminadas pelo nosso chefe de Estado. Todavia, veremos a seguir que a imprensa, livre de censuras, é fomentadora do direito fundamental à liberdade de expressão em um Estado Democrático de Direito e que não há imprensa livre sem democracia nem democracia sem imprensa livre. Assim sendo, o Conselho Editorial compartilha o lugar com nossos colegas para que juntos possamos ter mais voz.

__________SUMÁRIO

04 Liberdade de imprensa e democracia, por: Cleber J. Xavier 08 A derrocada do destino manifesto, por: César Henrique Silva Diniz 10 A atualidade de “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, por: Samuel Rivetti Rocha Balloute

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Mais um sobre escrever..., por: Éder Rocha Coura

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Empatia na pandemia, por: Gabriel da Silva Carlos Fonseca

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Tergiversação de quarentena, por: Gustavo Lemes

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Brasil em pandemia e a necessária resistência à banalidade do mal, por: Yan Lucas Martins Amorim

23 Desencontros com Anzilotti, por: Lucas Carlos Lima 25 Manifesto pela descoisificação do mundo, por: Gabriela Souza Conrado, Emanuella Ribeiro Halfeld e Marina Leonel Pereira Santana Paiva

27 Mídia, por: Rodrigo Antonio Sarmento 30 VOZES MALDITAS - Como, por: Clara Gerhardt David

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OGITRA

LIBERDADE DE IMPR Assim como a ciência e as instituições de ensino público, a imprensa jornalística vive um momento em que seu valor é continuamente colocado à prova em relação à democracia e à sociedade. Nesse contexto, destacam-se as iniciativas de agentes políticos em questionar a credibilidade e confiabilidade da mídia, apresentando fatos e opiniões que se contrapõem àqueles veiculados pela imprensa, seja esta alternativa ou tradicional, de maneira a gerar uma relação de antagonismo, pois apregoa-se que a mídia jornalística é eivada de interesses escusos que fazem-na deturpar os fatos e manipular o público. Pode haver certa verdade nessa acusação, mas para analisá-la, é preciso refletir antes sobre o papel e importância da imprensa na democracia, para então se ter uma noção realista de quais são as qualidades exigíveis e os defeitos toleráveis de uma imprensa condigna para com o regime democrático. Em seguida, cabe considerar também o desempenho da imprensa e seus desafios no contexto brasileiro, a fim de verificar como se dá o ofício jornalístico nessa realidade. Por imprensa ou jornalismo, compreende-se mais do que os meios que veiculam a notícia. Se o jornalismo fosse tão somente a mídia (os meios), estaria resumido a mera função instrumental, da qual se valem até mesmo os regimes autoritários. Nestes, o aparato midiático é incorporado pelo Estado, que por sua vez monopoliza o poder da informação, obsta as iniciativas que propõem investigá-lo, silencia os que tentam denunciar atos repressores e não tolera opiniões que divergem do poder vigente. O governo ditador, conforme aponta Afonso Arinos, transforma o trabalho da imprensa em um serviço “paraestatal” (ARINOS apud PEREIRA, 1961, p. 15) para servir à propaganda de apologia ao regime, bem como ferramenta de controle social, pois os desígnios do governo têm precedência sobre o valor da verdade e do direito à informação.

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Sendo assim, junto ao que o jornalismo faz com seus meios, deve haver um desígnio próprio que orienta sua atuação, qual seja, o de servir ao público. Frisese que servir ao público não é agradá-lo – como que-

rem os ditadores –, mas sim desenvolver ações no sentido de esclarecer, investigar e opinar acerca de fatos que devem ser levados ao conhecimento do público. Porque a imprensa opera fundamentalmente para informar a sociedade, não basta que apenas reproduza o que é registrado nos textos dos diários oficiais ou que exponha conteúdo por meio da linguagem tecnicista de acadêmicos e burocratas. Para informar de fato, é necessária uma “tradução”, em linguagem prática e acessível, sobre aquilo que se torna notícia. Por isso dizer que a imprensa esclarece a população sobre o conteúdo na notícia. É essa democratização comunicativa que possibilita a mais diversa gama de receptores da mesma informação compreender, ainda que superficialmente, os termos da questão abordada. Certamente, há nessa tarefa de esclarecimento um relativo grau de subjetividade pela forma como os fatos podem ser noticiados, o que, de certo modo, enviesa a maneira como os recebedores tomam conhecimento e parte na situação. Esse, entretanto, é um déficit de “neutralidade” necessário (e às vezes, inevitável), pois, do contrário, não haveria diferença entre ler um diário oficial e ler um jornal, por exemplo, acarretando uma tautologia que corroboraria para a configuração de uma mídia meramente reprodutora das informações que lhe são fornecidas. Inclusive, as informações oferecidas à imprensa nem sempre são completas e verdadeiras, ou nem mesmo são fornecidas. Daí ser necessário o jornalismo investigativo, o qual possa, legalmente, atuar por seus próprios meios. Em se tratando do Poder Público, tal atividade deve cobrar respostas às questões pertinentes a transparência, concatenar dados e analisar demais ações estatais que porventura contrariem a legalidade e o interesse da sociedade. No âmbito privado, embora haja uma incidência maior dos direitos da personalidade, as investigações devem igualmente zelar para que o público seja informado sobre aquilo que lhe é relevante, tendo em vista que os agentes particulares não estão absolutamente blindados por seus direitos. Em alguns casos, o resultado dessas investi-


ENSA E DEMOCRACIA gações, ao ser divulgado em forma de notícia, por seu conteúdo, relevância ou momento histórico, representa não só informação, mas também denúncia. Nisso, o trabalho da imprensa pode contribuir para além do julgamento da opinião pública, auxiliando até mesmo os órgãos estatais na averiguação de casos e responsabilização de eventuais contraventores. No que tange a função de opinião ou crítica, trata-se de a imprensa formular abertamente o próprio posicionamento sobre as notícias, com vistas a convencer seus espectadores acerca de um determinado viés de opinião. Isto é, exposta uma notícia, aos canais de imprensa deve ser lícito – seja institucionalmente ou por meio de seus jornalistas –, de maneira transparente, formular, defender e convencer a população sobre o porquê de os fatos noticiados merecerem certa interpretação. Isso ocorre, por exemplo, quando são noticiados problemas sociais, seguidos por críticas jornalistas que despertam na opinião popular o sentimento de indignação, anseio por providências etc. Não raro, são essas críticas que provocam, indiretamente, mobilização espontânea da sociedade, quando são expostas situações causadoras de sensibilização popular. As funções até aqui justificadas – esclarecer, investigar e criticar – não são viáveis em regimes autoritários nem em qualquer sociedade que olvide o valor da liberdade de expressão. O trabalho jornalístico necessita de liberdade para existir, sob pena de ter limitada a sua atuação em função de interesses que não o de informar condignamente o público a que se dirige. Daí ser mister atribuir à imprensa o epíteto da liberdade: imprensa livre. Livre para esclarecer, para investigar e para criticar. Mais do que apenas se valer das liberdades oferecidas pela democracia, o ofício jornalístico também cuida de fomentar a democracia constantemente por meio das informações que se tornam notícia, contribuindo para a lúcida formação da opinião popular. Desse modo, servindo ao interesse público, a imprensa serve ao governo do po-

vo, na medida em que os cidadãos são mais capazes de tomar decisões e avaliar os atos daqueles que os governam. Uma vez que a liberdade de imprensa é viável apenas na democracia, e que esta depende do serviço jornalístico para a sua manutenção, ambas são indissociáveis uma da outra. Esse é o real sentido do jargão tão repetido (às vezes demagogicamente): “sem imprensa livre, não há democracia; sem democracia, não há imprensa livre”. Considerando, então, que i) certas informações são de interesse público; que ii) a imprensa se encarrega de atribuir notoriedade (noticiar) a essas informações; e que iii) o ofício jornalístico deve ser livre para exercer suas prerrogativas e cumprir seu propósito, é seguro definir a imprensa como instituição cujos membros exercem a atividade livre de transformar as informações de interesse público em notícia. De fato, a imprensa não é imune a erros, nem isenta de interesses próprios. Ela mesma é responsável por problemas que vão na contramão do razoável exercício da liberdade de expressão, vide o oligopólio midiático e os abusos que o jornalismo eventualmente pratica. Apesar desses defeitos, é demasiado arriscado privar o jornalismo da sua liberdade de atuação, sob o risco, já demonstrado, de se formarem veículos de informação acéfalos e instrumentalizados, à mercê do controle de demagogos que se pretendem imunes à crítica. Junto a esses apontamentos sobre a importância e o papel do jornalismo austero, deve-se ter em conta que a liberdade de imprensa, assim como todo direito, depende de um terreno propício ao seu desenvolvimento. Nesse sentido, analisando o contexto brasileiro da Nova República, é notável a concretização que a liberdade de informação jornalística galgou no plano das prescrições jurídicas, seja no que tange a Constituição Cidadã, seja na reparação judicial de estigmas do período autoritário. Como exemplos, vejam-se o direito fundamental de liberdade de expressão e seu amplo âmbito de proteção constitucionalmente garantidos; a declaração da inconstitucionalidade da Lei de imprensa, de caráter manifestamente punitivista, na

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ADPF 130; e o afastamento da exigência de diploma em jornalismo para o exercício da profissão, no RE 511.961. Não obstante a consagração e o desenvolvimento normativo que cuidam da liberdade de informação e do seu exercício, como parte dos desafios à democracia, o jornalismo austero tem enfrentado contestações envolvendo sua legitimidade. Razão clara para tanto é o fenômeno da polarização política, na medida em que o interesse em ser informado tornou-se mais a busca por notícias que secundem a opinião intransigente e menos a busca pelos fatos e sua totalidade. Essa natural tendência em optar pelo veículo e pela notícia que mais agradem às crenças de seu receptor é fortemente explorada e ampliada nas redes sociais, de maneira que as bolhas virtuais (echo chambers) formadas por algoritmos representam subsídio formidável na formação de militância e eleitorado. A impressão construída nessas bolhas virtuais costuma ser diversa daquilo que corresponde à realidade, na medida em que os usuários têm maior acesso apenas às informações que lhes sirvam para ratificar o próprio juízo, lançando mão de outros fontes de notícia, cujas informações nem sempre são averiguadas, quando não deliberadamente inventadas para enganar. Os emissores que administram essas fontes se dedicam a conflagrar uma disputa de narrativas, na qual as notícias reportadas pela imprensa são contestadas por discursos destinados a refutá-la. Nesse cenário, a fim de arrebatar seguidores, os indivíduos que se valem do novo modus operandi de informação prezam cada vez mais por demonizar a imprensa. Diz-se que esta publica mentiras, que tem interesse em minar a reputação do governante, que quer obstruir as ações do governo, que é contra o povo. Obstrui-se o trabalho de obtenção da informação; incentiva-se o boicote dos canais, a violência contra jornalistas, tudo pendendo para um objetivo final: criar um novo centro de “verdade”, a partir do qual se manipula a opinião pública para tolher a liberdade de expressão, e vice-versa. Por consequência, em face do sectarismo, a imprensa perde, gradativamente, seu espaço como fonte de informação do público, dando lugar a fontes espar-

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lsas, como o perfil político no Facebook e as mensagens de Whatsapp, as quais conseguem obter maior visibilidade que os veículos tradicionais. Os efeitos dessa disruptura no processo de formação da opinião foram patentes nas eleições brasileiras, sobretudo no pleito presidencial de 2018. Mas os impactos se espraiam para além do período de eleição, marcando significativamente o mandato dos governos eleitos. Hoje, com a crise da COVID19, talvez o poder das novas fontes de (des)informação tenha atingido o seu ápice, diante do risco imediato que representam à vida das pessoas. Nesse contexto, destacam-se as iniciativas do Presidente da República em negar a gravidade da Pandemia e endossar ações que vão na contramão do combate à doença, isso amparado sobre as mídias sociais. Assim, além de representar perigo à democracia, a aversão do chefe do Executivo Federal em relação à imprensa e à ciência passa a ser também uma ameaça às vidas dos brasileiros expostos à Pandemia. Para fazer valer o ponto de vista sectário, tanto em relação à Pandemia como em qualquer outro assunto envolvendo o Governo Federal, tem-se empreendido uma verdadeira cruzada contra jornalistas, cerceando o exercício da profissão. Em 2018, a Folha de São Paulo já havia decidido cessar suas publicações no Facebook, afirmando ser a rede social uma plataforma reafirmadora de hábitos e opiniões estéreis, afora os constantes ataques de usuários contra a página do jornal. Agora, em maio de 2020, veículos como o Grupo Folha, a TV Bandeirantes, o site UOl e o Grupo Globo, decidiram por suspender a cobertura jornalística na porta do Palácio da Alvorada, residência oficial onde presidente, diariamente, propala suas polêmicas declarações. Os jornais justificaram a medida ante as agressões verbais do presidente e seus apoiadores, o que tem inviabilizado o trabalho e colocado em risco a segurança dos jornalistas. Tais hostilidades têm sido cada vez mais frequentes, ao ponto de chegarem às vias de fato, como foram os chutes, murros e empurrões desferidos por apoiadores do presidente contra jornalistas do Estadão, na manifestação do dia 03/05.


Essa conivência da Presidência da República para com as agressões vai justamente ao encontro da pretensão do atual chefe do Executivo Federal em governar sem ser criticado nem contrariado, optando por manter seus próprios meios de informação baseados na dinâmica do populismo. Dessa forma, não bastasse o fato de que a circunstancias impossibilitem o povo brasileiro de se manifestar em massa nas ruas (e se contrapor à minoria antidemocrática barulhenta) sem expor sua saúde ao risco do vírus, enfraquece-se a instituição mais capaz de dar voz à insatisfação popular quanto a má condução do país durante as crises. Enfim, para que a democracia não sucumba à vontade de demagogos nem às paixões momentâneas, o papel da imprensa deve ser preservado e estimulado, sobretudo num país onde os patrícios, de maneira jocosa, são constantemente acusados de serem desmemoriados e indolentes para com as ações políticas. A imprensa cumpre o fundamental dever de, quando necessário, condenar publicamente ações ou omissões que firam a lei e os ideais republicanos, sejam esses atos cometidos por pessoas públicas, pelo setor privado ou pela sociedade civil. Nesse sentido, é importante que a relação entre a imprensa e o povo seja razão para que, havendo inércia deste, certos agentes considerem a pressão midiática um fator desmotivador de iniciativas socialmente indesejáveis, uma vez que os jornais são capazes de instigar o descontentamento da população. Tem, portanto, significado inconteste o que a imprensa livre é enquanto instituição constitutiva e fomentadora do direito fundamental à liberdade de expressão num Estado de Direito Democrático. Por isso, vale dizer novamente: não há imprensa livre sem democracia, nem democracia sem imprensa livre.

POR:CLEBER J. XAVIER

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OGITRA

A DERROCADA DO DESTINO MANIFESTO A pandemia mundial causada pelo Covid-19 escancarou o fato de que a política neoliberal que hoje impera soberana na maioria dos países do mundo é ineficaz para o contingenciamento de situações calamitosas. O neoliberalismo foi apresentado ao mundo oficialmente com o Consenso de Washington em 1989, ocasião em que a União Soviética colapsava e os Estados Unidos despontava como maior potência econômica e aumentava suas ofensivas contra países periféricos para finalmente impor o dogma do destino manifesto, isto é; a crença de que os Estados Unidos foi o país escolhido por Deus para controlar o mundo moderno. Países cujos líderes a poucos meses atrás alardeavam aos quatro ventos as supostas benesses do liberalismo e da integração econômica se apressaram em fechar suas fronteiras para evitar a propagação do vírus em seus territórios. Por outro lado, os países que ainda resistem à globalização e às políticas neoliberais apresentaram baixos índices de contágio e de mortes pelo novo Coronavírus e conseguiram controlar a propagação por meio da implantação de medidas restritivas severas e maior preocupação com as perdas humanas do que com as perdas econômicas.

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Os Estados Unidos demoraram a responder adequadamente à pandemia, que por muitas vezes teve seus efeitos minimizados pelo presidente Donald Trump. Na data de 27 de maio, o país havia ultrapassado o número de cem mil mortos em virtude da doença e cerca de um milhão e setecentas pessoas contaminadas. É trágico que a nação mais rica e poderosa do mundo, que possui como principal “estratégia diplomática” a doutrina do destino manifesto seja a mais afetada pelo vírus no planeta. A nação que controlaria todo mundo e espraiaria seus tentáculos por sobre todos os demais países não consegue garantir a efetividade de seu sistema de saúde totalmente privatizado e evitar que um letal microorganismo infecte e ceife a vida de milhares de seus cidadãos.

o governo do presidente Evo Morales na Bolívia e as restrições impostos ao governo Maduro na Venezuela mostrava que os Estados Unidos estava perto de concretizar seu destino. Todavia, a desorganização do Poder Executivo norteamericano bem como a ineficiência do sistema de saúde nacional colocou em xeque “a virtude especial do povo americano e de suas instituições”, conforme prega a doutrina do destino manifesto. Por outro lado, tais aspectos foram mostras claras da derrocada estadunidense da posição inquestionável de maior potência mundial à medida que a importância econômica Chinesa torna-se nítida.

Nesse cenário, não seria nenhum absurdo dizer que os Estados Unidos sairá enfraquecido da pandemia enquanto a China desponta como possível maior potência mundial. O país asiático, considerado como o berço do novo coronavírus, conta cerca de cinco mil vítimas na presente data (27 de maio, 2020). A China, além de controlar a transmissão interna da Covid-19 por meio de seu sistema de saúde gratuito, fornece equipamentos médicos como máscara e respiradores para todo mundo, enquanto o governo Donald Trump atravessa negócios entre a indústria chinesa e países como Itália, Espanha e Brasil na compra de instrumentos de prevenção.

O fenômeno do neoliberalismo que vigia como preceito sacrossanto no mundo moderno pode e deve ser questionado. O fantasma do Estado de bem estar social, em virtude do caos ocasionado pelo novo Coronavírus, agora assombra os herdeiros do Consenso de Washington. De outra banda, o aparente sucesso de países que resistiram à globalização e ao neoliberalismo como a Venezuela (1.211 casos e 11 vítimas), Cuba (1.963 casos e 82 vítimas), Coreia do Norte (0 casos e 0 vítimas), Vietnam (327 caos e 0 vítimas) e até mesmo a China deixa claro que é necessária a presença de um governo atuante que imponha medidas rígidas quando necessário e não sobreponha os interesses econômicos do mercado financeiro aos interesses nacionais e a vida humana.

A fragilidade da doutrina neoliberal, inaugurada pelos economistas estadunidenses durante o Consenso de Washington em 1989, nunca esteve tão exposta. Tendo como base a redução dos gastos públicos, a abertura comercial e o afrouxamento das leis trabalhistas e financeiras a reunião ocorrida em Washington traçou as diretrizes econômicas mundiais para os anos seguintes. Sob o pretexto de modernização da atividade industrial e do sistema financeiro, bem como a redução da pobreza e aumento da capacidade de produção de riquezas o Consenso de Washington escondia a verdadeira intenção norte-americana: cumprir o desígnio divino de expandir o American Way of Life para os demais países, em especial as nações periféricas da América Central e do Sul.

A experiência nefasta com a pandemia está longe de acabar, mas já explicita que não há mais do que se falar em destino manifesto, mão invisível do mercado ou qualquer outra ideia estapafúrdia do tipo. Ideias como renda básica universal e um sistema de saúde gratuito para os norteamericanos não parecem mais tão absurdas assim, visto que o pacote emergencial aprovado pelo Congresso Americano determinou que trilhões devem ser gastos violando as atuais regras do mercado financeiro. Deve-se fortalecer a soberania dos países e garantir que o Estado atue como agente de promoção social e organizador da economia para que a população não se veja tão desamparada em momentos de crise - social, sanitária e econômica - como estes que estamos vivenciando.

A recente eleição de governos de direita no Chile, no Brasil e na Argentina, bem como o golpe contra

por: César Henrique Silva Diniz Graduando em Direito pela UFMG

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A ATUALIDADE DE “RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA”

AHNESER

POR: SAMUEL RIVETTI ROCHA BALLOUTE - DIREITO UFMG

Recordações do Escrivão Isaías Caminha é um romance de Lima Barreto, cuja história se passa no começo do século XX. Conta as memórias de Isaías, um jovem pardo, pobre, residente do interior do país. Aluno dedicado e muito inteligente, ganhou diversos prêmios em sua cidade natal, no interior. Profundamente estudioso, decide ir para o Rio de Janeiro

¹

estudar para ser “doutor” . Recomendado a um deputado, Isaías viaja com a convicção que este lhe conseguiria um emprego, para que pudesse se manter enquanto estudasse. Porém, ao chegar à capital, todos os seus planos se frustram. Não consegue arranjar emprego e tampouco estudar. Quando seu dinheiro estava para acabar e ele perdia as esperanças, um

²

colega que conheceu na cidade lhe consegue um emprego de contínuo

no jornal onde

trabalhava. Desta forma, o livro se desenvolve sobre as impressões que o protagonista tem de seu local de trabalho: os jornalistas, o jornal e seu impacto na sociedade.

Este romance, que muitos consideram autobiográfico, discorre criticamente sobre diversos temas ainda hoje atuais: o racismo, a corrupção, a pobreza, o colonialismo, a bajulação, o sensacionalismo midiático, a superficialidade dos artigos jornalísticos, e o poder e influência da imprensa. Sua principal crítica recai nesta última. O autor expõe o poder que ela tinha de derrubar políticos e alçar outros no lugar. A sua parcialidade, onde o diretor do jornal decidia o que deveria ou não ser publicado. A sua hipocrisia, que se incumbia – por meio de seus

artigos

da

missão

de

“moralizar

a

nação”

ao

mesmo

tempo

em

que

destruía

reputações de acordo com seus interesses. A superficialidade das notícias publicadas, onde “avalia-se a importância do escrito pelo tamanho” (p. 161). Outra crítica bastante presente é sobre o racismo. O protagonista, por ser pardo, enfrenta diversas dificuldades: é preso injustamente pela polícia, recebe tratamento diferenciado pelas pessoas, empregos lhe são recusados.

Utilizando-se de uma fina ironia por toda sua extensão, o livro também possui interessantes reflexões

filosóficas.

Ademais,

um

livro

indispensável

para

se

ter

um

panorama

e

compreender melhor a República Velha. Suas críticas servem ainda hoje para caracterizar a sociedade brasileira: o preconceito de cor não mudou; os jornais ainda possuem força para fazer e desfazer reputações, a mentir de acordo com seus interesses e a se utilizar de notícias sensacionalistas para aumentar vendas; o colonialismo e o eurocentrismo ainda persistem na mentalidade do brasileiro, que valoriza o estrangeiro e despreza o nacional; a pobreza,

mais

do

que

nunca,

ainda

se

faz

presente.

Um

livro

infelizmente

atual,

extremamente analítico e crítico da sociedade brasileira da época.

1 Com este adjetivo, Lima Barreto critica o prestígio que um “doutor”, ou seja, basicamente um bacharel em Direito, Medicina ou Engenharia, tinha na época: maiores prerrogativas, privilégios e direitos especiais. Uma crítica que continua atual. 2 O mesmo que “office boy”. BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 10. ed. São Paulo, Editora Ática, 2009.

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09 MAIS UM SOBRE ESCREVER... É curiosa a motivação de escrever De fato, são muito diversos E às vezes bem dispersos Os momentos que nos levam a exercer Essa paixão pela palavra

Pois há situações despretensiosas Que o lápis age quase com preguiça Talvez em uma palestra massiva Ou em tardes de domingo amistosas O verso um entretenimento Eterno viajante do pensamento

AMEOP

Que no coração se instala

Em momento quase oposto O manuscrito é uma enchente Que de súbito e de repente Descarrega tudo que é encosto Um livramento de todo o peso Um desabafo há muito tempo preso Às vezes tem até endereço Poema milimetricamente moldado Tão zelosamente planejado Como forma de mostrar apresso Por aquele alguém merecedor De nossa intimidade, de nosso amor Mas seja em tédio, lágrima ou riso Um elemento comum se faz presente O papel recebe aquilo que a gente sente. O sentimento incerto se faz preciso A ideia vaga passa a ter forma E até o caos se transveste em norma E hoje não seria diferente Sentimento incerto, ideia vaga e caos Estaríamos entregues aos maus? Não há esperança para a gente? O Poema responde sem se abater: “Enquanto existir, a resistência há de vencer.”

por: Éder Rocha Coura - Direito UFMG 11


OGITRA

EMPATIA NA PANDEMIA A primeira vítima de uma crise é a empatia. Na televisão, prega-se revolução, união, solidariedade. Nas ruas, vigoram os olhares atravessados. Máscara, óculos escuros, fones de ouvido. O isolamento é total. Como se fossem bandanas, mascarados nos tornamos bandidos de faroeste. Na terra sem lei, quem sobrevive é o mais apto, o mais forte, o mais rápido. Quando saímos, saímos já com a mão no coldre, olhos paranoicos de um lado ao outro, analisando o panorama, farejando o duelo para evitá-lo. O toque, símbolo da empatia, foi abolido. O rosto, principal símbolo da identidade, coberto, exilado das terras do toque. Não há carinho sem toque, e mesmo sem toque não há agressão. Mas há algo que agride mais que a negligência? Nos corredores, murmura-se algo que serviria como resposta a qualquer coisa – xingamento, saudação, flerte – não importa. O sorriso é falso. A expressão do momento é a de nojo, que revela o desejo de afastar algo, ou alguém. No interior do elevador, observa-se calmamente as portas se fecharem diante de um vizinho, do lado de fora, com sacolas de compras nos braços. Não se move um músculo, não é necessário palavra – a boca está coberta. O olhar, apenas, já fecha portas. Nos aplicativos de relacionamento criamos uma conta, porque estamos entediados. Em meio aos carentes, aos solitários e aos desesperados, matamos nosso tédio, com o tempo, as esperanças e as vulnerabilidades alheias. Nos aplicativos de delivery, avaliamos – “a entrega foi ótima” – embora não tenhamos visto o entregador. Ele ficou restrito às grades do condomínio. Não importa, ele não nos ameaçou com a sua mera presença. Nas redes sociais, circula um vídeo em que celebridades cantam uma letra sobre uma vida sem possessões, do interior de suas mansões. O tom é dissonante.

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Para alguns, a pandemia é morte – desemprego, perda, fome, ansiedade, depressão. Para uns, é sorte – a bolsa caiu, é hora de investir. Máscaras, álcool em gel e papel higiênico em falta, bolsos cheios. Lucra-se com o desespero. Para outros, é guerra – o poder não deixa vácuo. A política não adoece, só apodrece, e como uma árvore, embora oca e decadente, mantém suas raízes firmes no solo. Em Brasília, nossos representantes discutem reeleição, sob o lamento fúnebre abafado pelas paredes do privilégio. Contrapõe-se economia e saúde, o interesse de uns, com apenas a existência de outros. Fala-se em salvar a maioria, como a manada que deixa os doentes e os caducos para trás, para não atrapalhar o ritmo do resto, e não facilitar o trabalho dos predadores. E os nossos predadores? Crédito, papel moeda e os infames 30%, além de algumas moedinhas. Abandonados pelas instituições, voltamos ao estado de natureza. É o cada um por si. ... Embora na curta história da humanidade civilizada o maior dom atribuído ao Homem seja a racionalidade, a capacidade de refletir sobre si e sobre o mundo em uma consciência própria, que nos tornaria completamente distintos e “evoluídos” perante aos animais, deixamos realmente de sermos seres primitivos? E qual a importância disso frente a uma pandemia? A relação é, infelizmente, maior do que se imagina. Embora o Homem já tenha aprendido por vezes a ver tudo com mais clareza do que na “época bárbara”, ainda está longe de ter-se acostumado a agir do modo que lhe é indicado pela razão e pelas ciências. (DOSTOIEVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo, Cap.1, p.37 É durante uma crise que o primitivismo humano se torna escancarado. Como pitbulls ou cães de caça arrumadinhos com roupinha, enfeites e adornos, toda essa maquiagem se torna obsoleta quando um esquilo atravessa furtivamente a calçada, atiçando os instintos mais predatórios do animal e forçando o dono a plantar uma base desesperadora no chão, contrabalanceando com o próprio peso a fúria do cão por meio da coleira. Do mesmo modo, quanto mais nos aproximamos de uma situação de escassez de recursos ou até mesmo de vida ou morte, mais evidente se torna a impotência das frivolidades da fina película social em refrear os impulsos do bicho homem. Duvidam? Confiram nesse exato momento então, carxs leitorxs, no seu smartphone high tech, fruto do grande dom da racionalidade humana, vídeos de cidadãos de um país “desenvolvido” lutando por papel higiênico num supermercado.¹ Se se tornam bestas e passam a seguir a grande Lei da Selva no meio de um dos maiores centros de urbanização do planeta por um produto cuja demanda não é nem natural, mas socialmente construída, que fariam esses primatas diante de um cenário de vida ou morte, quando restasse apenas um último cacho de banana? Em um dos vídeos, a irracionalidade é tão grande que uma adulta tenta roubar o tão precioso produto de uma senhora de meia-idade. Isso, repito, em um país dito de “Primeiro Mundo”. ² Parece que nem um dos maiores IDHs nos previne de nosso comportamento ilógico.

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Mas o que é, afinal, a tal “Lei da Selva”? E ela realmente ficou na selva quando a deixamos? A “Lei da Selva” é a lei do mais forte, que torna implícita a dominação de todo o restante, mais fraco. É a forma brutal, desigual e mais primitiva que as espécies geraram para ordenar suas “sociedades” frente à dura seleção natural, mediada pela intensa competição interespecífica pelos recursos escassos da mãe natureza. É essa a lei que vigora entre os gorilas, nossos parentes “próximos”, que compartilham cerca de 95% a 99% do nosso querido e especial DNA, legitimando a indisputável autoridade do macho alfa – o “dorso prateado”. Nesta “sociedade”, o macho adulto dominante, podendo pesar até 227 kg, tem a palavra final em qualquer decisão tomada pelo grupo, sob sua responsabilidade até sua morte. Ainda, as fêmeas estão “reservadas” somente para ele, que simplesmente pode destruir com brutalidade sem igual qualquer oposição à sua liderança, e certamente o fará, sob a benção de não ter um pingo de dúvida.³ A mesma truculência, desigualdade e indiferença é comum a outras espécies, como leões, que cometem parricídio, aranhas, que podem comer seus parceiros sexuais, caranguejos, que comem sua própria cria, e louva-Deus, que são canibais, entre muitos outros exemplos. No desigual Reino Animal, não há espaço para empatia. Mas evoluímos, deixamos as selvas e as pradarias e nos sedentarizamos no crescente fértil. Que relação teríamos com esse reino de brutalidade? Nos gabamos de nossa civilização e dos nossos desenvolvimentos, mas nos esquecemos de sua breve história – existimos faz 200 mil anos, mas apenas fundamos civilizações há dez. A famosa imperatriz Cleópatra viveu mais próxima da invenção do primeiro smartphone do que da construção da Grande Pirâmide de Gizé. A antiguidade é mais próxima do que se imagina. E, num sentido evolutivo, mantivemos exatamente o mesmo cérebro que nos guiou durante 95% de nossa história, não civilizada. Heranças dessa realidade na psique, as pulsões carnais e destrutivas hoje são canalizadas em esporte, arte, escrita, mas permanecem fiéis ao seu propósito em seu âmago. Esta última, em especial, também denominada por Freud como “a vontade de ser grande”, permanece em constante atuação na raiz dos desejos humanos, embora sob falso sigilo. À “Lei da Selva”, nossa racionalidade conseguiu apenas transmutar em Leis de Poder. Frente ao desespero da impotência, todos querem poder, ninguém menos, e tudo tem um preço. Para ordenar as disputas, criamos variados símbolos de status, e traçamos requisitos, estéticas e características que tornam uns superiores a outros. E, nesse sentido, mantivemos a lógica hierárquica, substituímos a força pelos poderes e permanecemos em desigualdade – em 2015, no mercado financeiro, 1% da população mundial concentrava cerca de metade de toda a riqueza do planeta, fato que pesquisas recentes demonstram apenas aumentar. 4 Enquanto isso, políticas e modos de sociedade igualitários são frequentemente descartados como utópicos, e de fato, aparentam ser. Se há algo que compartilhamos em especial com nosso passado animalizado, entre muitas outras coisas, é a lógica de sociedade hierarquizada e desigual, conforme estudos recentes indicam.5 Na grande tribo Sociedade, há uns que dominam outros, e viver consiste em ascender nesta escala de dominância, em eterna disputa com nossos contemporâneos. Assim, é possível dizer que, pelo menos de uma certa forma, ainda permanecemos primitivos.

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E se nosso valor como seres humanos nessa enorme tribo é frequentemente atribuído a símbolos de poder – fama, carreira, dinheiro e seus derivados estéticos – nada como uma crise para tocar em nossas feridas existenciais. Com elementos de inestimável importância para nosso tão almejado reconhecimento por outrem sob ameaça, atiça-se o fogo primitivo no âmago de nossos corações, acirra-se a competição intraespecífica e falece a empatia. Como um náufrago que se agarra desesperadamente a uma mala, já inutilizada pelas águas revoltas do oceano, também nos agarramos, com garras e dentes, a nossos privilégios, por menores que sejam, sob o constante medo de proletarização. A reação é majoritariamente inconsciente, é claro, já que a crise mal começou – o pior ainda está por vir. Ela silenciosamente revela, entretanto, a fragilidade de nossa fina película civilizatória. Dessa forma, a brutalidade animal frequentemente está um passo de distância e vivemos quase sem perceber. E esse passo pode ser visto quando assistimos a um protesto em que, sob a pressão constante de ser vítima um tiro de borracha ou granada de gás lacrimogênio, uma multidão espontaneamente se dispersa, seguindo o movimento inicial abrupto de alguém que no calor do momento talvez tenha confundido as ameaças com uma simples pedra, apenas para ver que não havia perigo algum. O efeito manada, desenvolvido por uma vantagem evolutiva em tempos de caça e coleta, continua enraizado em nosso comportamento. O primitivo continua espreitando o que mais há de mais complexo, e sua presa é a empatia. Ademais, se evoluímos, também nos desenvolvemos nos afastando da empatia. Estimase que essa capacidade de entender outro ser humano seja pré-verbal, ou seja, desenvolvida muito antes do surgimento de uma linguagem comum.6 Nesse sentido, humanos modernos muito antes de sua fixação no crescente fértil teriam a capacidade de elucidar as intenções e emoções de um igual apenas com o olhar. De fato, os olhos eram portas para a alma. Não é coincidência que até hoje, quando se trata de comunicação de sentimentos e atitudes, a comunicação seja majoritariamente não verbal – estima-se que 55% da mensagem seja linguagem corporal, 38% entonação de voz e apenas 7% conteúdo linguístico, de acordo com dois estudos realizados por Albert Mehrabian em 1967.7 Entretanto, embora tenhamos resquícios desse passado em termos neuropsicológicos, nosso comportamento mudou. Com o surgimento das cidades, a negligência passou a fazer parte de nossa rotina diária – aprendemos desde cedo, por exemplo, que há pessoas sem moradia, renda fixa, ou qualidade de vida, e que é comum passar por elas todos os dias, sem fazer nada. Além disso, quando deixamos o meio rural para nos fixar no urbano, logo desenvolvemos a “Atitude Blasé”8 , definida como Georg Simmel como a incapacidade de reagir a estímulos com as energias adequadas – diante de constante e esmagadora estimulação por tantas pessoas diferentes, optamos por nos distanciar – a típica indiferença de “gente da cidade grande”. Pela inabilidade de se conhecer todos, em uma aglomeração tão aflitiva, os desconhecidos se tornaram quase invisíveis. Em paralelo, com o advento do meio técnicocientifico-informacional, deixamos de olhar nos olhos, e passamos a nos focar em telas e telinhas. O sentimento de solidão, causado pela falta de relações interpessoais significativas, só aumenta. 9 Passamos a falar não para sermos ouvidos, mas para nos ouvir, e enquanto nosso receptor nos responde, voltamos nosso pensamento à nossa próxima fala, e não o ouvimos. Desse modo, não é incomum ver-se diante de conversas que são exposições monológicas egocêntricas, ao invés de serem interações entre duas almas. Por outro lado, habilidades sociais se tornaram commodity – passaram a ser tema de livros, palestras, fóruns online. Ironicamente, por meio da Internet, nos conectamos a tudo e a todos, porém o empírico sugere que esquecemos de como nos relacionar cara a cara. O resultado? Nos afastamos significativamente daquela forma visceral de empatia, uma velha lembrança do passado.

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No futuro pós-pandêmico, intelectuais preveem explosão de socialização. Eu prevejo repressão de um passado egoísta, pela maquiagem da emoção. A explosão não é pelo outro, mas por si – é o ego que não suporta a própria solidão, e não a empatia que não admite o sofrimento alheio. Mas se existe ainda colegas leitorxs românticxs, recomendo que testem seu romantismo: tussam num elevador, e vejam a face do seu vizinho se dominar pelo medo por sua própria vida, ao invés da preocupação pela sua saúde. Afinal, vertical ou horizontal, que diferença faz? Já estamos em isolamento total. ... Da minha janela, à distância, vejo que alguns policiais já adotaram o afastamento – se antes “mediavam” os conflitos dos moradores de rua com seu toque, agora o realizam com pedaços de madeira ou canos de ferro. Da minha janela, também vejo que algumas vendas não essenciais permanecem abertas. Algumas atraem camburão, cassetete e “três oitão”. Outras, nem tanto. Estranho, não?

Mas da minha janela ainda vejo que esse povo injustiçado, aos domingos, em uma espontânea comoção de assobios, gritos e passos largos, forma uma extensa fila diante de alguns carros – marmitas solidárias são distribuídas, e a alegria é geral. Volto, como de costume, minha atenção para alguma tela, e vejo organizações reunindo doações para os que nada tem. Minha mãe me envia uma mensagem, pedindo por ainda mais links de ONGs para contribuir. Em outra rede social, em meio a tanto caos, uma foto de dezenas de bolsas de supermercado deixadas em uma praça – uma doação da comunidade aos que necessitarem, em Minnesota. Atitudes como essas, ilhas solitárias num oceano de vistas grossas, me fazem pensar que se a empatia é a primeira vítima de uma crise, a esperança vem ao seu socorro. E assim, me sinto preenchido por um sentimento um tanto estranho – o desejo de que minha visão sobre esse outro lado da crise esteja, de fato, equivocada.

POR: GABRIEL DA SILVA CARLOS FONSECA DIREITO UFMG

1. Coronavírus: mulheres brigam por papel higiênico na Austrália e viralizam. UOL, São Paulo, 7 de mar. de 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas- noticias/redacao/2020/03/07/coronavirus-mulheres-brigam-por-papel-higienico-na-australia- e-viralizam.htm. Acesso em 6 jun. 2020. 2. PRIMEIRO MUNDO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Primeiro_Mundo&oldid=58445275. Acesso em: 6 jun. 2020. 3. Gorilla. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Gorilla&oldid=957050177. Acesso em: 6 jun. 2020. 4 Fariza, Ignacio. El País, 2015. 1% da população mundial concentra metade de toda a riqueza do planeta. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/13/economia/1444760736_267255.html. Acesso em: 6 jun. 2020. 5. MORRISON, Robin E. et al. Hierarchical social modularity in gorilas. In: Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, vol. 286, ed. 1906. Publicado em 10 jul. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1098/rspb.2019.0681. Acesso em: 6 jun. 2020. 6. GREENE, Robert. Maestria. Rio de Janeiro: Sextante, 2013. 7. MEHRABIAN, Albert. Silent Messages. Belmont, California: Wadsworth, 1971. 8. SIMMEL, Georg. The Metropolis and Mental Life. 1903. 9. COOMBS, Bertha. CNBC, 2020. Loneliness is on the rise and younger workers and social media users feel it most, Cigna survey finds. Disponível em: https://www.cnbc.com/2020/01/23/loneliness-is-rising-younger-workers-and-social-media- users-feel-it-most.html. Acesso em: 7 jun. 2020.

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AISEOP

TERGIVERSAÇÃO DE QUARENTENA

a quarentena parece não ter mudado muito as coisas por aqui é familiar olhar janela e querer te ver olhar pra baixo e querer tá na rua aqui na frente de casa tinha uma árvore e eu nunca te falei que eu era apaixonado daí, aproveitaram esses dias pra cortar tudo bem que ela tava sutil morta, mas ela tava de pé - e era muito a minha preferida então peguei um toco, tirei uma foto, me apaixonei por um prédio e pensei em você e lembrei que da minha antiga janela só o cacto, a babosa e eu não morremos já nessa daqui só tem marca de mão, sempre tentando segurar esse pôr do sol é só um buraco que fica, sabe? é ter a pia com um ralo tão grande que parece que nem tem pia só que também fica mais que isso se você presta atenção tem uma faixa verdinho pastel que eu acho uma graça

por: Gustavo Lemes - Mestrado em Direito UFMG

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BRASIL EM PANDEMIA E A NECESSÁRIA RESISTÊNCIA À BANALIDADE DO MAL por: Yan Lucas Martins Amorim - Direito UFOP

OGITRA

“...VONTADE DE BEIJAR OS OLHOS DE MINHA PÁTRIA DE NINÁ-LA, DE PASSAR-LHE A MÃO PELOS CABELOS... VONTADE DE MUDAR AS CORES DO VESTIDO (AURIVERDE!) TÃO FEIAS DE MINHA PÁTRIA, DE MINHA PÁTRIA SEM SAPATOS E SEM MEIAS, PÁTRIA MINHA TÃO POBRINHA!” VINICIUS DE MORAES¹

Passados 102 anos desde a gripe espanhola (1918), o mundo deparou-se com nova ameaça microscópica que o fez parar - o “corona vírus”. A doença denominada no meio científico como Covid-19 é causada pelo SARS-CoV-2, que segundo informações do Ministério da Saúde(2) implica em um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves. A moléstia que se iniciou na China e logo alastrou-se para a Europa e América ficará registrada nos anais da história médica como a maior pandemia do século XXI. Em terras brasileiras, já foram confirmados 438.238 casos, destes 195.473 pacientes foram recuperados e o número de óbitos chegaram ao final de maio do ano de 2020 a 26.754(3). Diante desse quadro epidemiológico, nações do mundo inteiro adotaram como medida profilática central o isolamento social. Em razão disso, os índices econômicos de produção caíram, agravando ainda mais, como no caso do Brasil, a recessão. Em notícia veiculada pelo periódico “El País”(4) , o Produto Interno Bruto brasileiro caiu 1,5% nos três primeiros meses do ano e a nação é a segunda em números de casos de Covid-19, ficando atrás somente dos Estados Unidos. Entretanto, o corona vírus não é a única ameaça a rondar as terras tupiniquins. No campo político a extrema direita ganha espaço nos posicionamentos do Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, que trata a pandemia como uma “gripezinha”(5) e que, para seu combate, “quem é de direita usa cloroquina. Quem é de esquerda, tubaína”(6).

Os apoiadores do Presidente fazem marchas por todo o país, ostentando a bandeira nacional, vociferam contra os meios de comunicação e contra todo ideal que seja oposto ao que o Chefe do Executivo apregoa. Do lado de fora do Palácio da Alvorada, o séquito autointitulado “acampamento 300 do Brasil(7)”, movimento que estimula a desobediência civil e apoia Jair Bolsonaro, é escancaradamente a face mais vil do fascismo que se expressa no discurso presidencial. A retomada da economia parece ser mais importante do que a preservação da vida, isto porque, Bolsonaro apregoa que a pandemia pode ser combatida com o uso da cloroquina, medicamento não testado cientificamente; E afirma que fechar a economia foi uma 'desgraça'(8). Além disso, em seus discursos se evidencia uma tendência à prática eugênica, isto porque, a população idosa é a mais atingida pela epidemia, logo não sendo mão de obra ativa, pouco importam os óbitos; É como se expressou quando o Brasil somou 5.017 mortes: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?’ Sou Messias, mas não faço milagre!(9)” 1 Trecho do poema: “Pátria Minha”, composto pelo poeta Vinicius de Moraes entre 1942 e 1949. Disponível em: http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/livros/patria-minha. Última consulta em 29 de maio de 2020 às 12h e 48 min. 2 In: https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca. Última consulta em 29 de maio de 2020 às 13h. 3 In:https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/28/brasil-tem-26754-mortes-por-covid-19-diz-ministerio.ghtml. Última consulta em 29 de maio de 2020 às 13h e 30 minutos. 4 In:https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-29/ao-vivo-ultimas-noticias-sobre-o-coronavirus-e-a-crise-politica-no-brasil.html. Última consulta em 29 de maio de 2020 às 14h. 5 In: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52205918. Última consulta 29/05/2020 às 14h. 6 In:https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/05/20/interna_politica,1149148/mandetta-direita-usa-cloroquinaesquerda-tubaina-juizo-medicina.shtml.Última consulta 29/05/2020 às 14h. 7In:https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2020/05/o-que-e-o-300-do-brasil-acampamento-de-apoio-a-bolsonarochamado-de-milicia-pelo-mp-cka64uws500ub015ndkejl8ww.html. Última consulta 29/05/2020 às 15h. 8 In: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/28/bolsonaro-diz-que-fechar-economia-foi-desgraca-e-quer-voltade-shoppings.htm. Última consulta 29/05/2020 às 15h.

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9 In: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/28/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-diz-bolsonaro-sobre-mortes-porcoronavirus-no-brasil.ghtml. Última consulta 29/05/2020 às 15h.


Temos marcadamente a implementação da necropolítica, objeto de considerações por Achille Mbembe em que “[...] a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder [...](10)”. Globalmente, o governo brasileiro não faz parte de uma lista de mais de 50 países e entidades internacionais que se reuniram para traçar uma estratégia para uma recuperação sustentável do mundo pós-pandemia. O evento, sob comando da ONU, foi liderado pelo primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, e da Jamaica, Andrew Holness. Banco Mundial, FMI e outras instituições também estiveram presentes(11). Os constantes ataques de Jair Bolsonaro à estabilidade democrática, nos seus posicionamentos sobre a pandemia e em relação a política são a expressão máxima do processo de ilegitimidade do governo que remonta ao impeachment da Presidente Dilma Rousseff em 2016, escrevo melhor, “Golpe de 2016”. É a vitória de uma ideologia maior, de uma superestrutura onde o ódio às minorias ganha terreno. É a prevalência do braço atroz do brasileiro, em cujos trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda ganhou espaço(12). Vivemos em tempos sombrios, tempos em que o mal é uma opção política e em tempos como esse nos alerta Hannah Arendt: “[...] Que mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra – essa convicção constitui o pano de fundo implícito contra o qual se delinearam esses perfis. Olhos tão habituados às sombras como os nossos, dificilmente conseguirão dizer se sua luz era a luz de uma vela ou de um sol resplandecente. Mas tal avaliação objetiva me parece uma questão de importância secundária que pode ser seguramente legada à posteridade [...](13)”. Não podemos subestimar a sombra das coisas que já foram. Vivemos em uma sociedade democrática recente, com apenas 32 anos de idade a contar da promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Amargamos 21 anos de Ditadura Civil-Militar e esse fantasma se expressa até hoje nas vozes daqueles que pedem a intervenção das forças armadas. Conforme nos orienta Jerome Kohn, Arendt não queria dizer que o passado como tal fosse irrelevante – ela nunca se cansava de repetir o epigrama de William Faulkner: “O passado nunca está morto, não é nem sequer passado(14)”.

10 Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993. Última consulta 29/05/2020 às 15h. 11 In: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/05/28/brasil-fica-fora-de-coalizao-mundial-para-planejarreconstrucao-da-economia.htm?utm_source=twitter&fbclid=IwAR0sZox8ypDJvzELQlTkIOzwFVejllUMaStoAdLMQWcfr4m0xIP3drU2Ks. Última consulta 29/05/2020 às 15h.

ª Edição. Companhia das Letras. Disponível em: http://www.tecnologia.ufpr.br/portal/lahurb/wp-content/uploads/sites/31/2017/09/HOLANDA-S%C3%A9rgio-BuarqueRa%C3%ADzes-do-Brasil.pdf. . Última consulta 29/05/2020 às 15h

12Vide: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26

13 ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Tradução: Denise Bottmann. Posfácio de Celso Lafer, São Paulo, Companhia das Letras, 2008. Prefácio, página 09.

ª reimpressão. Edição Jerome Kohn. Revisão técnica: Betânia Assy e André Duarte, São Paulo, Companhia das Letras, 2004. Introdução a edição americana. Página 08.

14 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. Tradução de Rosaura Eichemberg. 1

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Outrossim, Bethânia Assy(15) atesta-nos que é inegável que já nos anos de 1950, fazendo uso do termo mal radical, Arendt assinalara o surgimento de um mal na política até então ignorado, que jamais deveria pertencer à política, fora de quaisquer modelos históricos e ideológicos, - a falta de julgamento. O mal radical já deflagara a “abstrata nudez do ser humano”, e o obscurismo que a temida tecnificação e sua decorrente “superfluidade do humano” poderiam causar. Arendt cunharia uma nova cartografia do mal na política, a banalidade do mal, perpetrado por uma compacta massa burocrática de homens perfeitamente normais, desprovidos da capacidade de pensar, de submeterem os acontecimentos a juízo. A banalidade do mal trafegava sob um aterrador comportamento normal e ordinário, tanto na fabricação de alimentos quanto na manufatura de cadáveres, de modo a exceder todas as categorias morais e explodir todos os padrões de jurisdição. Nas obras de Hannah Arendt a capacidade de pensar por si próprio (selbstdenken) não ocupa o lugar de mero suplemento à virtude política, mas, ao contrário, é seu próprio fundamento. Confiar-nos ao mundo significa o processo mesmo de compor e moldar nossa vida por meio de hábitos. O efeito perverso dessa confiança parece ser não só a instrumentalização do mundo, mas, sobretudo, a instrumentalização de nossa habitualidade de pensar, pelo que devemos superá-la por meio do pensamento crítico. Ressalta Bethânia Assy que a fenomelogia arendtiana do “ser do mundo” e não meramente “estar no mundo” visa a uma nova simbologia cultural que leve em conta também uma forma pública de vida. De modo que, ao final, uma parcela considerável da nossa satisfação seria fruto do compromisso com a comunidade na qual vivemos, por meio do reconhecimento da superioridade do cuidado com o mundo e com o bem-estar coletivo sob os caprichos e interesses individuais. O cultivo de sentimentos públicos é fruto do esforço contínuo de levar em consideração os pontos de vista alheios. Não obstante nascermos intrinsecamente entre homens, ainda nos cabe a arte de exercitar a alteridade, de assumir responsabilidade por quem somos, pelo modo como agimos e por que mundo somos responsáveis. Um mal ronda as democracias modernas: a tendência corrente à recusa completa de julgar. No século em que os meios de comunicação de massa estão dispostos de forma ampla ao povo, sobretudo no que diz respeito às mídias sociais, uma nova forma de degradação do ambiente político tem surgido na falta de julgamento – as Fake News, notícias falsas com considerável impacto político e que são replicadas de forma acrítica pelos usuários das redes. Enquanto as forças democráticas e progressistas do Brasil se aglutinam para formação de uma resistência política ao crescente fascismo deflagrado nos discursos de Bolsonaro e de seus seguidores, a Polícia Federal ganha na luta contra as Fake News. Segundo notícias recentes, robôs e perfis falsos que apoiam Jair Bolsonaro caíram cerca de 4% no meio da operação de busca e apreensão da Polícia Federal determinada pelo ministro Alexandre de Moraes em maio desse ano(16) . Tendo em vista a constante banalização do mal na sociedade brasileira, mal que se expressa em ações políticas com vistas à supressão de minorias, os estudos de Hannah Arendt nos são primorosos para a compreensão do “o que”, “como” e “quando” combater. Em primeiro lugar, contra “o que” temos de lutar a filósofa nos alerta que “[...] toda ação realizada por uma pluralidade de homens pode ser dividida em dois estágios: o começo, que é iniciado por um ‘líder’, e a realização, em que muitos participam para levar a cabo o que então se torna um empreendimento comum [...](17) ”.

15 Idem. Introdução a edição brasileira. Páginas 34/35. 16 In: https://www.extraclasse.org.br/geral/2020/05/robos-perfis-falsos-bolsonaro-cairam-operacao-pf/. Última Consulta em 30 de maio de 2020 às 11h.

ª reimpressão. Edição Jerome Kohn. Revisão técnica: Betânia Assy e André Duarte, São Paulo, Companhia das Letras, 2004. Página 109.

17 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. Tradução de Rosaura Eichemberg. 1

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Dessa forma é preciso empreender ações efetivas contra os discursos de ódio de Jair Messias Bolsonaro, e essas ações não encontram impacto jurídico em meras notas de repúdio ao seu comportamento. O “como” lutar deve encontrar seu caminho nas manifestações políticas e mais que isso, nas ações judiciárias empreendidas por partidos políticos com representação no Congresso Nacional perante o Supremo Tribunal Federal, exemplo máximo disso foi a ação de mandado de segurança manejado pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) com vistas a impedir a posse de Ramagem na Polícia Federal(18). O manejo do mandamus deu-se em razão da suspeição de que Ramagem poderia exercer no órgão policial ingerências a fim de beneficiar o presidente Bolsonaro e sua família em eventuais investigações. Sobre o judiciário, nos afirma Hannah Arendt que: “[...] é uma inegável virtude do judiciário seu dever de focar a atenção no indivíduo, e isso até na era da sociedade de massas, em que todos os indivíduos são tentados a se considerarem um simples dente de engrenagem em alguma espécie de máquina – seja a máquina bem aceitada de algum imenso empreendimento burocrático, social, político ou profissional, seja o padrão casual mal ajustado de algum modo levamos a nossa vida. A transferência quase automática de responsabilidade que ocorre habitualmente na sociedade moderna sofre uma parada repentina no momento em que se adentra a sala de um tribunal. Todas as justificações de uma natureza abstrata não específica – tudo, desde o zeitgeist até o complexo de édipo, que indica que você não é um homem, mas função de alguma coisa e, por isso, é algo substituível em vez de alguém - entram em colapso. Não importa o que possam dizer as modas científicas da época, não importa quanto elas possam ter penetrado na opinião pública e com isso também influenciado os profissionais da lei, a própria instituição as desafia inteiramente, e deve desafiálas ou desaparecer. E no momento em que se chega ao indivíduo, a pergunta a ser feita não é mais: como esse sistema funciona?, mas: Por que o réu se tornou funcionário dessa organização? [...](19) “. O “quando lutar” é uma experiência pessoal que Hannah Arendt denomina de solitude, que é um processo que deve ser contínuo, isto é, intermitente e pessoal. É um momento em que a consciência individual dialoga com o maior número de pessoas possíveis a fim de melhor orientar o comportamento, tudo isso ocorrendo na consciência do indivíduo. Assim se expressa a filósofa: “[...] O estar só significa que, apesar de estar sozinha, estou junto de alguém, isto é, eu mesma. [...] essa dicotomia interior em que posso fazer perguntas a mim mesma e receber respostas. [...]Passarei a chamar o modo de existência presente nesse diálogo silencioso de mim comigo mesma de estar só (solitude)[...](20)”. Assim, “[...] se a faculdade de fala distingue o homem das outras espécies animais – e isso é aquilo em que os gregos realmente acreditavam e o que Aristóteles, mais tarde, disse na sua famosa definição, então é nesse diálogo silencioso de mim mesma comigo mesma que a minha qualidade especificamente humana fica provada [...], Sócrates acreditava que os homens não são meramente animais racionais, mas seres pensantes, e que prefeririam abrir mão de todas as outras ambições e até sofrer danos e insultos a perder essa faculdade [...] (21)”.

18 In: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pdt-entra-com-mandado-de-seguranca-no-stf-para-impedir-posse-deramagem-na-pf,70003285514. Última consulta em 30 de maio de 2020 às 11h e 30 minutos.

ª reimpressão. Edição Jerome Kohn. Revisão técnica: Betânia Assy e André Duarte, São Paulo, Companhia das Letras, 2004. Página 121. .

19 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. Tradução de Rosaura Eichemberg. 1 20 Idem. Página 163. 21 Idem. Página 157.

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Vivemos em uma sociedade de massas onde “[...] nada mais é que aquele tipo de vida organizada que automaticamente se estabelece entre seres humanos que se relacionam ainda uns aos outros, mas que perderam o mundo outrora comum a todos eles [...](22) ”. Na visão de Hannah Arendt a forma de recuperarmos um elo comum entre os cidadãos se baseia na busca de exemplos de pessoas do passado, que de algum modo contribuíram para a vida em comunidade. Mas além do processo maiêutico arendtidiano, o homem também deve envidar esforços contra a falta de julgamento pessoal, pois se “[...] mentir como modo de vida não é novidade na política, pelo menos não em nosso século. Teve pleno sucesso em países com um governo de dominação total, nos quais a mentira não era guiada por uma imagem, mas por uma ideologia [...](23) ”. Assim, as Fake News e os discursos antidemocráticos devem ser combatidos proficuamente, sejam nas bases do movimento político como nas tribunas de nossos pretórios. O Estado, em Hannah Arendt, não é produto do pensamento, mas sim da ação. Isto porque, as instituições políticas, ainda que tenham sido superiormente elaboradas, não têm existência independente, estão sujeitas e dependem de outros e sucessivos atos para subsistirem. Devemos resistir a banalidade do mal escancarada nos posicionamentos e atos do Presidente Jair Bolsonaro, seja em face da política como também em relação a pandemia do corona vírus. Pois em seus discursos, o bem estar da economia parece estar acima da vida dos cidadãos. Isto posto, faz-se necessário identificar os crimes cometidos pelo presidente e seus correligionários e responsabiliza-los juridicamente. Como aponta a autora de “As origens do totalitarismo”, “A condição humana” e “Eichmann em Jerusalém”: “[...] Não sei quando o termo ‘responsabilidade coletiva’ apareceu pela primeira vez, mas estou razoavelmente segura de que não só o termo, mas também os problemas que implica, devem a sua relevância e interesse geral aos dilemas políticos, distintos dos legais ou morais. [...] Cabe à grandeza dos procedimentos do tribunal que até um dente de engrenagem possa se tornar uma pessoa de novo. [...] O que estou tentando fazer é traçar uma linha divisória mais nítida entre a responsabilidade política (coletiva), de um lado, e a culpa moral e/ou legal (pessoal), de outro, e o que tenho principalmente em mente são aqueles casos frequentes em que as considerações morais e políticas de conduta entram em conflito [...](24)”. Enquanto não houver responsabilização, paira a pátria em transe, “na corda bamba de sombrinha e sabe que em cada passo dessa linha, pode se machucar... (25) ”. ª reimpressão. Edição Jerome Kohn. Revisão técnica: Betânia Assy e André Duarte, São Paulo, Companhia das Letras, 2004. Página 126.

22 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. Tradução de Rosaura Eichemberg. 1 23 Idem. Tiro Pela Culatra. Página 235. 24 Idem. Responsabilidade coletiva. Páginas 214 a 218.

25 Trecho da canção: O Bêbado e o Equilibrista, eternizado na voz de Elis Regina. Autores: João Bosco e Aldir Blanc.

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DESENCONTROS COM ANZILOTTI por: Lucas Carlos Lima - Direito UFMG 2012 OTNOC

A experiência verdadeiramente única e idiossincrática em relação ao conhecimento jurídico numa faculdade de direito é a cunhagem de um escrito de encerramento. Contudo, o período que acompanha a forja de uma monografia traz a um graduando as mais ricas, fantásticas e traumáticas experiências intelectuais. Semanas de turbilhão sináptico lançam o jovem neófito nas artes jurídicas a questionar não apenas o objeto de estudo. Questiona-se tudo: as escolhas profissionais, os conhecimentos jurídicos, a verdadeira fé, o talento para respirar sem fazer barulho, a capacidade de caminhar em linha reta, se direito era mesmo o curso, se direito internacional me garantiria uma sobrevivência digna; questionava até, sem motivo, a perenemente contestável salubridade dos compostos que são por vezes servidos no Restaurante Universitário. Escrever a monografia pode ser terrível. Os capítulos não mais dialogam entre si. São infinitos processos de leitura, releitura e revisão. Toda vez que o trabalho é relido, algumas frases esvaziam-se de sentido. Envia-se o primeiro capítulo ao orientador. Retorno com correções. Procurar bibliografia. As regras de citação permitem que você cite um livro que jamais abriu; mas seu orientador rememora que não é de bom tom. Vá ao original! Apud não! Sei que o processo pode ser ainda pior com orientadores absolutamente presentes, que querem em verdade escrever a monografia por você ou, absurdamente, que você escreva exatamente do modo que o orientador quer. Mais raro é o orientador que só aparece para o dia da banca. Tece os elogios de estilo e, tão logo após o encerramento da solenidade, retorna ao etéreo. Quase pior que a escrita do trabalho de conclusão de curso ocorre em momento anterior: é a definição do tema sobre o qual escrever. Egos inflados pretendem num primeiro momento reescrever Pontes de Miranda ou Nelson Hungria. Ao final do tristíssimo e metodologicamente criticável primeiro capítulo de “evolução histórica” (‘Sontag revira os olhos’), dá-se conta que não será possível fazê-lo e, então, o salto do doutrinador eminente ao resumista esquematizante parece o caminho óbvio. No processo, há um colega de sala que efetivamente está escrevendo a última contribuição à recente guinada do Bundesverfassungsgericht. Você prefere então solenemente romper relações diplomáticas com essa pessoa. Forças ocultas (sempre elas) levaram-me a escrever sobre a história da justiça internacional e, por conta disso, meu orientador, o professor Arno Dal Ri, indicara-me a leitura da obra do autor toscano Dionisio Anzilotti. Anzilotti é célebre entre os internacionalistas por algumas razões. A principal delas é o papel que desempenhou na construção da primeira formação jurisprudencial internacional como juiz internacional do mais antigo órgão judiciário do ordenamento. A Corte Permanente de Justiça Internacional foi cardinal para desenvolver a ideia de justiça internacional e seus precedentes moldaram diversas áreas do direito internacional. Algumas escolhas da jurisprudência internacional parecem ter vindo, quase que ipsis literis, dos manuais e dos escritos do autor e professor italiano. Anzilotti também era conhecido por expurgar o pensamento jusnaturalista da ciência jusinternacionalista italiana. Não por acaso, grande parte da doutrina italiana de direito internacional se considera “descendente” de Anzilotti. Seu discípulo na cátedra, Morelli, foi também juiz da Corte Internacional de Justiça e formou gerações de internacionalistas recordando as lições de seu mestre. Além disso, foram os escritos de Anzilotti que erigiram a barreira final entre a ordem internacional e a ordem interna, dividindo-os em dois sistemas jurídicos quase herméticos. O modelo brasileiro de incorporação do direito internacional tem mais de Anzilotti do que possa supor nossa vã filosofia. Foi nos escritos de Anzilotti que mergulhei nos anos finais de minha graduação. Foram também eles responsáveis por tolher-me o sono. Em primeiro lugar para compreendê-los. Ter algo significativo a dizer sobre eles em relação ao meu específico objeto de pesquisa era ainda mais excruciante. Não por acaso, numa das noites que meu TCC deixou-me dormir, vi-me diante de uma onírica Corte Permanente de Justiça Internacional; preta e branca como nas fotos, envolta num enevoado típico desses momentos sublimes. Caminhava pelos jardins bem desenhados d’Haia, prostrando-me diante do enorme palácio de uma torre só. Como numa penseira, assim que lá me percebeu, Dionísio Anzilotti veio caminhando em minha direção para receber-me à porta do Palácio da Paz. Sua testa abaloada distinguindo-o dos demais, os bigodes prateados ornando-lhe a face e o bondoso sorriso. Surreal é uma boa palavra para descrever a sensação de ter seu marco teórico caminhando em sua direção numa arena de fumaça e memória de fotos antigas. Seria o equivalente ao próprio Carlos Marques surgir no corredor do segundo andar e rumasse revolucionariamente ao quartel do PET-UFSC. “Mas, doutor Dionísio!”. Eu estava em prantos, era minha grande oportunidade. Há semanas eu não conseguia avançar nas conclusões do meu TCC e tinha dúvidas indecorosas sobre minha capacidade intelectual e se tudo que fizera até então fazia ainda sentido. Conversar com Anzilotti tête-à-tête iria resolver meus problemas. Tentei esboçar um fraco italiano, mas assim

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como minha bibliografia teimava em me contrariar, o velho Dionísio me disse que só falaria em francês. Era a língua da vieille dame. Ali falariam francês. “Non può essere in inglese?”, eu teimei. Anzilotti me flechou com aquele olhar profundamente ofendido que somente um europeu envelhecido sabia lançar. Começamos a conversa. Ele guiava-me por dentro do palácio, galgando os jardins internos do edifício. Os quatro ursos polares da fonte central faziam-nos companhia, atentos às nossas palavras. O francês saía, custoso. Mas Anzilotti não estava sendo gentil. Dizia que minha monografia não tinha um claro problema jurídico. Perguntava-me se meu orientador não ficaria decepcionado com um trabalho tão sem objetivo. O que eu queria ao narrar o nascimento de um tribunal? Como contribuiria eu para a ciência jurídica internacionalista? Indagava pesadamente sobre qual seria a verdadeira contribuição que eu daria com tudo aquilo. Anzilotti nada fazia a não ser verbalizar todas as minhas próprias inseguranças e aflições durante o período de escrita. De que servia toda essa conversa, além da tortura sonambular? “Professore, eu quero entender uma coisa. A Corte Permanente de Justiça Internacional teve um papel fundamental para consolidar o positivismo como metodologia jurídica dominante no direito internacional”, eu dissera, ou provavelmente pronunciara uma versão bem-mais-pobre disso em francês macarrônico, “o senhor acredita que isso se explica por conta do predomínio europeu dos juízes?” Seus olhos faiscaram. Não entendi se era de indignação pela ousadia da pergunta ou algum tipo de elogio. Aquele homem que ludibriara Roberto Ago com um meio sorriso para votar contra ele e contra a Itália na sentença de Fosfatos no Marrocos era indecifrável. Respondeu, não respondendo. “Qual é a sua visão sobre o assunto?” “Ora, professor, eu ainda não tenho uma ideia clara. Eu realmente não saberia responder.” “Qual seria a alternativa, ragazzo?” “Ora, professor, existe o jusnaturalismo do período anterior aos seus escritos.” “Disse bem. Anterior. Está enterrado.” “Mas professor, existiam alternativas ao positivismo pelo senhor advogado, não?” “Alternativas consistentes?”

Era o fim. Daquele ponto eu não poderia passar. Qual era o sentido de encontrar o grande mestre se não poderiam ser colocadas a ele as grandes perguntas que eu não encontrava respostas em seus escritos nem nos livros da época? Minha cabeça fervilhava. Se aquilo era um sonho – naquele tempo, de nada eu tinha certeza – eu provavelmente estaria me debatendo em minha cama na procura de algo inteligente a dizer. Algo significativo a perguntar. Mas o professor notara meu silêncio.

DIONISIO ANZILOTTI

Era o fim. Daquele ponto eu não poderia passar. Qual era o sentido de encontrar o grande mestre se não poderiam ser colocadas a ele as grandes perguntas que eu não encontrava respostas em seus escritos nem nos livros da época? Minha cabeça fervilhava. Se aquilo era um sonho – naquele tempo, de nada eu tinha certeza – eu provavelmente estaria me debatendo em minha cama na procura de algo inteligente a dizer. Algo significativo a perguntar. Mas o professor notara meu silêncio. “Vou contar-lhe, então, o grande segredo do direito internacional. E este não pode faltar em seu trabalho. É a grande lição que a Corte deixou aos nossos dias. Um momento.” Finalmente! Finalmente a viagem com Anzilotti se pagara. Finalmente eu iria ganhar alguma coisa, direto do mestre. Mas noto que Anzilotti parece concentrado em outra coisa. Ele se levanta e se afasta. Seus passos ecoam no chão de mármore do hall do Palácio da Paz. Atravesso as grandes portas de madeira à direita do palácio. Estamos no Grande Salão de Justiça. Os três enormes vitrais sobre as cenas da guerra lançam uma luz amarelada naquele cenário preto-e-branco. Luzes bruxuleantes jorram dos enormes lustres no alto do salão. Ele atravessa o enorme vão atapetado e se aproxima da porta dos juízes apressado. Faz sinal que eu esperasse. Dali em diante, somente os juízes. Ele entra. A porta reabre. Sai o meirinho. “La Cour!”. A Corte retorna, mas Anzilotti não está nela. O professor Arno preside a Corte. É a defesa de minha monografia de final de curso. Ao seu lado, uma professora de teoria do Direito cuja severidade e rigor acadêmico impacta todo primeiranista do Centro de Ciências Jurídicas. Do outro, uma professora de história do direito com quem tive uma discordância acalorada no primeiro período da Faculdade acusando-a de não ter lido o ensaio que eu havia escrito. Ela efetivamente não havia lido, atribuindo nota máxima para a turma toda, inclusive para um colega que colocara uma receita de bolo no meio de seu ensaio. Quando eu disse a ela “professora, há uma receita de bolo dentro do meu ensaio!”, ela disse para si mesma “eu não acredito! Outra vez!” e puxou-o de minhas mãos procurando a tal receita. Com essa frase a turma toda caíra na risada. Por mais que eu dissesse estar brincando, eu ganhara inutilmente a primeira antipatia no corpo docente da Faculdade. Era a pior banca de TCC que eu podia imaginar. Era para isso que Anzilotti me chamara? A sessão se inicia. A historiadora do direito procede à arguição. “Senhor Lima. Li todo seu trabalho com atenção” Mesmo em sonho eu duvidava. Mas ela continuou. “A Corte Permanente de Justiça Internacional teve um papel fundamental para consolidar o positivismo como metodologia jurídica dominante no direito internacional. O senhor acredita que isso se explica por conta do predomínio europeu dos juízes?” Não sei o que responder. Não sei responder às minhas próprias perguntas. O professor Arno me olha decepcionado, como anunciara Anzilotti. A filósofa acaricia o próprio braço, lentamente, aguardando minha resposta. A historiadora sorri, satisfeita. Acordo em prantos. Frustração. Por que o sonho enveredara por esse caminho? Restava a amarga impressão de ter sido ludibriado. Estou ainda indignado com o fato de que Anzilotti não me ajudou no problema de minha monografia e ainda me chamou para uma armadilha. Estou enfurecido com o professor Arno por ter colocado as duas professoras do meu primeiro semestre na minha banca. Meu último ato na Faculdade, assim oficialmente encerrado como um ato de tortura pública no Grande Salão de Justiça! E o pior: Anzilotti não me contara o segredo do direito internacional. Talvez o segredo seja exatamente este, conclui. Esperar que, no acordar do sonho, a resposta se compusesse, relegando à autoridade do passado a tentativa de conclusão. Não fazia sentido. Dois dias depois, ocorreu a defesa de minha monografia. Nenhuma das duas professoras compuseram a banca. Anzilotti também não apareceu. Ele já estava nas primeiras 100 páginas do escrito, mas parte de mim esperava que alguma epifania pudesse fazê-lo aparecer e me revelar o grande segredo do direito internacional, ou pelo menos minhas dúvidas em relação ao meu problema científico. Desencontramo-nos mais uma vez. Eu, que a ele tanto me dedicara, terminara sem resposta.

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MANIFESTO PELA DESCOISIFICAÇÃO

DO

MUNDO

Tem uma coisa bonita na criança que cresce sozinha dentro de casa. Lembro que eu extraía personalidade de todos os móveis da casa. Conversava com os espaços e captava sentimentos naquele lugar que me constituía.

Era um tempo sem urgência.

OTSEFINAM

Quando não havia escola – apenas o tempo pairando sobre minha cabeça, como as moscas no quintal – a casa era o meu principal lugar de vida e expressão. Eu conhecia bem cada canto e me dava o prazer de encarar as coisas com amizade.

Aílton Krenak, do povo indígena Krenak, de Minas Gerais, escreveu esse pequenino livro chamado Ideias Para Adiar o Fim do Mundo. Ele teve a perspicácia de ver que nós, os supostos integrados do mundo social, estamos perdendo a cabeça dentro da própria cabeça. Ainda tô pra conhecer um ser humano sem 1001 pensamentos contra esse mundo pronto que nos foi entregue. Mas o que se faz com um pensamento? Muitos deles se transformam em lâminas, ferem por dentro pedindo pra sair. O Povo Krenak tem um nome para o rio que corre em suas terras, afluente do Rio Doce – Uatu. O rio pra eles não é um córrego que passa acimentado por debaixo das ruas onde eles vivem suas vidas apressadas. O rio é parente, é elemento vivo. Quando a gente passa a ver toda a Terra como coisa, criamos a sensação de que estamos aqui para explorar. A gente é gente. O mundo é outra coisa, é coisa separada de nós. O rio é coisa, a montanha é coisa, Minas Gerais é toda cheia de coisa. E tem gente que talvez, nem gente seja, pelo jeito que o governo de hoje insiste em tratar certas gentes como coisa. O Direito corre fácil em direção do hábito de coisificação da vida As pessoas para o sistema se tornam papéis acumulados em cima da mesa, uma sequência de números de processo, tão grandes que nem a memória guarda. Parece que o tempo, sedimentando os costumes dentro da pele, nos habitua a coisificar o presente que nos foi entregue. A gente cala, aceita, porque deve ser mesmo assim, não? Vamos criando um mundo capaz de subtrair aquilo que seria o nosso futuro. Esse é um breve manifesto pela descoisificação do mundo, pela descoisificação do Direito, pela descoisificação do tempo - que nos atravessa, em presentes, pretéritos e um futuro incerto, fragmentado e debilitado pelos nossos escassos esforços. É bonito perceber o mundo como vivo. A gente tenta se permitir sair da cabeça do devorador. Perceber que a visão do mundo como coisa inesgotável que te serve não está, de fato, te servindo em nada.

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Como Aílton Krenak diz, ou fazemos isso, ou aceitamos a ideia de que a Terra é plana e de que devemos seguir nos devorando. Falando em devorar, não faz muito tempo que o gigante adamastor vem comendo as beiradas de nosso continente, aliás, começou naquele tempo chamado colonizações cá entre nós, o gigante mudou de nome, mas as dentadas continuam ardendo em nossa terra, em grandes bocadas esféricas colonizações parte um américo vespúcio, entediado com os privilégios de sua vida de pais comerciantes, fez o que todo jovem classe média alta se propõe a fazer em meio suas crises existenciais: descobrir o mundo. Soberbo e inconsequente, carregando algumas varíolas, gripes pelo mundo afora, não poderia ter previsto que seu nome seria dado a um continente, uma rede de varejo, uma companhia aérea e mais uma série de filmes hollywoodianos. não poderia imaginar, com seu ego sufocante, que, as terras por onde passava não eram nenhum pouco puras, virgens, intocáveis ou qualquer outro estranho adjetivo necessariamente usados em missas católicas para se referir às (sensíveis) mulheres do século era terra e mato habitados, com gente, muito satisfeita de já há tempos terem se auto descobertos. Alvaresinho, mimado e gorducho, aprendeu desde criança, em seus estudos particulares em seu castelo de Belmonte, que mouros ou qualquer outra raça era inferior a sua. Foi mais fácil quando, depois de entediado com os amores, os estudos e a enfadonha vida da nobreza, decidiu adentrar nas terras, como gostava de dizer para si mesmo nunca dantes navegadas] e aquela satisfação lhe dava uma sensação morna entre as pernas, excitante, inquietante, era ele a enfrentar o gigante adamastor. Era naqueles momentos que se esquecia da poeira dos navios, do escorbuto dos tripulantes, da falta de dentes que lhe dificultava mastigar, dos fungos no fundo do barco, do fedor de urina que pairava pelo ar, das merdas apodrecendo num canto, daqueles que ficavam loucos e se jogavam nos oceanos, dos subnutridos e delirantes. Pero Vaz também se esqueceu, por isso quando se referiu aos indígenas, como os verdadeiros selvagens, não havia nenhum remorso em seu espírito moral e cristão. Os indígenas tupi guaranis estavam incrédulos com aquele fedor e podridão que descarregava em suas praias. Pálidos, alguns azuis, vomitando na areia, os olhos avermelhados, amarelados, não ousaram se aproximar muito, mesmo assim agradeceram a boa vontade, mas não precisavam de ajuda, estavam bem. Talvez fosse a língua que dificultou a compreensão ou talvez o estado mental que estavam já os portugueses, porque de alguma forma os gestos dos indígenas virando a cabeça repetidas vezes em negação, as mãos apontando para que voltassem ao barco, gesticulando com os dedos e desenhando na areia para que eles fossem apenas embora, foi entendido como vens, por favor, me coloniza!!

por: Gabriela Souza Conrado, Emanuella Ribeiro Halfeld Marina Leonel Pereira Santana Paiva Direito UFMG 26


MÍDIA

Propaganda política e manipulação por: Rodrigo Antonio Sarmento - Direito UFMG

AHNESER

Avram Noam Chomsky, conhecido como Noam Chomsky, nasceu em 1926, na Filadélfia, Pensilvânia, Estados Unidos e é considerado o maior intelectual vivo. Ele atua nas áreas de linguística, filosofia e política. É mundialmente conhecido como o linguista que desenvolveu uma teoria revolucionária, a gramática gerativa. Além disso, é também ardoroso crítico da política externa americana. Este é justamente o assunto abordado neste intrigante livro. A partir da capa, onde o nome do autor aparece sobreposto a uma tela de televisor em um canal fora do ar, nós já temos uma ideia sobre o caminho que o autor irá percorrer no livro. Porém, apesar de abordar um assunto polêmico, sua escrita é simples e pode ser lida por diferentes pessoas interessadas no tema. O livro está dividido em duas partes: Na primeira, ele começa perguntando sobre o tipo de mundo e de sociedade que queremos viver. Partindo do que chama a primeira operação manipuladora em 1916, aborda o nascimento e os malefícios da propaganda política nos Estados Unidos, passando também por fatos em outros países, sempre focando na natureza perversa da manipulação política. Apesar desse discurso, ele não é, mesmo que possa parecer até aqui, mais um crítico comunista do sistema político americano. O livro nos choca, pelo menos a alguns, quando nos mostra que somos um “rebanho desorientado”, passivamente em uma zona de conforto, esperando para votar nas próximas eleições, tal como querem as “relações públicas” e os construtores de opiniões. Ele também nos dá pista de como podemos nos contrapor à essa dominação praticada pelos poderosos, ou seja, essa luta ainda poderá ser revertida caso o “rebanho desorientado” passe a pensar e agir diferente nas associações, sindicatos, igrejas e outros grupos sociais. Também, o livro nos mostra técnicas e exemplos usados pelos Estados Unidos em que fica clara a influência da propaganda e dos meios de comunicação, usada para filtrar os fatos que interessam apenas ao governo. Já na segunda parte, somos presenteados com o ponto de vista de um “Jornalista Marciano”. Esse jornalista imparcial, que só existiria fora da sociedade americana e da Terra, teria vindo estudar e se formar em Harvard, na faculdade de jornalismo na universidade de Columbia onde aprendeu princípios morais nobres e elevados passando a acreditar piamente neles. Recomendo fortemente a leitura desse belo livro crítico e de fácil leitura, mesmo para leitores iniciantes. O livro ilustra o ponto de vista do autor sobre sociedade americana manipulada pelos donos do poder, servindo para qualquer parte do mundo ocidental. Noam chomsk, Ebiografia. Disponível em https://www.ebiografia.com/noam_chomsky/. Acesso em 09/01/2017 Mídia-propaganda-politica-e-manipulação–de-noam-chomsky.Disponivel em: http://indiqueumlivro.literatortura.com/2014/07/18/midia-propaganda-politica-e- manipulacao-de-noam-chomsky/. Acesso em 09/01/2017

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SATIDLAM SEZOV

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V


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ditas

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ACINÔRC

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COMO 30


É

como se um caminhão passasse por cima de mim. Como se toda a alegria e autoconfiança que eu lutei para conquistar fossem por água abaixo. De repente é como se toda minha energia fosse drenada e eu me sentisse a pessoa menos importante do mundo. São tantas coisinhas. Tantas coisas que me fazem ser eu e que me envergonham, me jogam pra baixo. Como se eu não merecesse algo. Como se não importasse o que eu fizesse, esse sentimento me perseguiria para sempre. Dói pensar em procurar ajuda para algo que parece insolucionável. Às vezes eu só quero ficar no escuro para não ser vista, para poder ficar à vontade. A cada passo que dou, sinto que existe uma multidão para apontar meus erros. Às vezes eu acho que essas pessoas vão me levantar, mas elas não vão, porque a cada foto minha, tenho vontade de arranhar meu rosto todo, a minha alma toda. Como se algo de ruim estivesse dentro de mim e não me deixasse aproveitar a vida. E essas dúvidas ecoam. O tempo todo. Até quando parece estar tudo bem e calmo, uma tempestade surge e torna meu dia frio e nublado de novo. Talvez seja por isso que eu goste tanto de dias chuvosos e frios. Eu não consigo ver um ponto positivo e me sentir bem sobre ele, mostrá-lo para o mundo. Eu quero me esconder. Quando as pessoas me perguntam se estou bem, eu gostaria de falar que sim. Mas a cada pergunta dessas, mais para baixo eu fico. Como se elas fossem inquisições, tentando reiterar o fato de que não, eu não estou bem. E quando eu digo que tenho ansiedade, eu sinto um desconforto. Às vezes porque tratam isso como se fosse a pior coisa do mundo. Às vezes porque não dão atenção. Acho que no fundo eu só quero uma mão estendida. Alguém que me faça sentir especial. Mas quando essa pessoa aparece, eu sei que não passa de um momento, de alguém que eu vou incomodar. Ele nunca entendeu. O outro achou que fosse brincadeira. O terceiro pensou que eu fosse um porto. Só que eu sou uma canoa velejando pelo mar da vida. E tem dias em que uma gota de chuva cai no oceano e faz um tsunami. E eu não sei que prece fazer para que os deuses me protejam dessa fúria da natureza da minha cabeça. As mensagens dele, tarde da noite, me faziam sentir que alguém se importava comigo. Mas agora eu não sei mais. Não sei como alcançá-lo. Eu nem mesmo sei se ele está bem. Só queria poder mais uma vez poder ouvir sua voz, às 10pm, de pijama, conversando e rindo. Mas hoje eu estou tão longe desse lugar e da nossa casa. Hoje eu estou tão longe de você e da sua alegria. Você me dizia para eu ficar calma. Tanto que eu estranhava quando você não estava calmo e ria até me preocupar. Mas você sempre afastou esses sentimentos como um mestre. E hoje eu não me sinto amada. Os matches e os sexts não se comparam à nossa irmandade. Mesmo o fato de a minha mãe sofrer por mim não me ajuda. Hoje estou tão longe das batidas divertidas de outrora. Das letras felizes. Das melodias floridas. Hoje, Matheus, eu estou longe de você. E longe de me sentir especial. Eu espero que você pelo menos esteja se sentindo um pouco especial, porque eu penso em você.

por: Clara Gerhardt David - Direito UFMG

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O conteúdo desta edição é uma junção de autorias e não representa necessariamente as ideologias do CAAP nem dos membros do Edirorial do Voz Acadêmica 2020

EDIÇÃO 2020 // VOLUME Nº2 // NOVEMBRO 2020

VOZ ACADÊMICA A OUTRA FACE DA CRISE

DIAGRAMAÇÃO

Guilherme Eustáquio Teixeira Souza ORGANIZAÇÃO

reaproximarvozacademica@gmail.com

02

E-book: https://issuu.com/vozacademicacaap


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