EDIÇÃO 2020 // VOLUME Nº3 // DEZEMBRO 2020
VOZ ACADÊMICA A OUTRA FACE DA CRISE
Os corpos de uma morte anunciada: as implicações avassaladoras da misoginia que sustenta o discurso do Presidente da República sobre a pandemia da COVID-19 p.04
CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA
LAIROTIDE OHLESNOC
CONSELHO EDITORIAL REPRESENTANTES DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA Guilherme Eustáquio Teixeira Souza Marcos Paula de Oliveira Junior Mateus Leme dos Santos Cardoso Melissa Santos Mascarenhas REPRESENTANTES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG Bruna Pereira Frasson Carlos Henrique Jesus de Souza Lucas Henrique Filardi Mendonça Marcelle Stephanie Ferreira Conegundes REPRESENTANTES DOS ÓRGÃOS ESTUDANTIS DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG Eduarda do Prado Ribeiro (Conselho de Representante de Turma - CRT) Lucca Girardi Caumo (Centro Acadêmico de Ciências do Estado - CACE) Victor Hugo Silva Monteiro (Atlética do Direito da UFMG - AAA) REPRESENTANTE DA PÓS-GRADUAÇÃO DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG Fabrício Manoel Oliveira
DIRETOR DE ENSINO E PESQUISA DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA Marcos Paula de Oliveira Junior
MODERADOR DO CONSELHO EDITORIAL DO VOZ ACADÊMICA Guilherme Eustáquio Teixeira Souza E-mail: guisouzats@gmail.com
O Voz Acadêmica é uma produção idealizada pelo Centro Acadêmico Afonso Pena - CAAP
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EDITORIAL Seria injusto, diferentemente do que acha o presidente Jair Messias Bolsonaro, se colocássemos a responsabilidade de todos os recentes fracassos do nosso governo nas questões que tangem a crise da COVID-19. Temos a consciência de que estamos passando por tempos nebulosos e que seria inevitável uma pandemia, de tamanha magnitude, não interferir em nossas relações sociais como também nas atuações governamentais. Está sendo difícil pra todo mundo e sabemos disso. Porém, o caso não é só esse. Fato é que não podemos e não devemos colocar o nosso governante em posição passiva e resguardá-lo das atrocidades que ele mesmo tem compactuado. O Brasil já ultrapassou a marca de 180 mil mortes e se comparado a outros países de condições similares às nossas, esse número é discrepante. Pois bem, sabemos também que não são apenas números, são mais de 180 mil pessoas que perderam a vida. Assim, as inseguranças políticas do nosso país, a nossa falta de referência representativa e a falta de competência dos nossos governantes nos preocupam e nos colocam na obrigação de ajudar os mais vulneráveis e de suprir a carência do caráter assistencialista que um Estado Democrático de Direito, por lei, tem que ter.
OIRÁMUS/LAIROTIDE
Desde o dia 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevou o status de epidemia para pandemia do Novo Coronavírus, as questões políticas no Brasil se agravaram e fizeram com que as questões sociais ficassem ainda mais vulneráveis como também mais evidentes.
Nesse sentido, em face a tantas atrocidades e injustiças, este volume do Voz Acadêmica reúne, em sua maior parte, questões relacionadas ao sistema carcerário brasileiro inserido num contexto de pandemia da COVID-19. Ao ler o jornal, os posicionamentos e diferentes perspectivas dos autores nos fazem pensar criticamente como o governo tem lidado com essas questões, embora não seja novidade que, desde sempre, nossos governantes prestaram de forma extremamente desumana a mínima assistência aos reclusos do convívio sociedade.
__________SUMÁRIO
Assim sendo, o Conselho Editorial compartilha o lugar com nossos colegas para que juntos possamos ter mais VOZ.
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Os corpos de uma morte anunciada, por: Carolina Cury e Natasha Burrel Ribeiro O poder de polícia e a necropolítica, por: César Henrique Silva Diniz O direito penal consegue proteger os bens jurídicos?, por: Samuel Rivetti Rocha Balloute Devanear-me-ei, por: Victor Wallace Domingues de Menezes A crise sanitária é a mesma para todos?, por: Victória Veloso Faraco A derrota., por: João Pedro Pessoa Herthel Silveira De grades abertas para a tortura, por: Victória Maria Corrêa Murta A vulnerabilidade do cárcere brasileiro perante a pandemia, por: Eduarda do Prado Ribeiro e Maria Clara de Oliveira Gomes
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Dois Mil e Dezoito, por: Lucas Perrone Camilo Por que ser contra o encarceramento em massa?, por: Samuel Rivetti Rocha Balloute O cárcere e a pandemia, por: Marina de Souza Pompermayer e Samuel Giovannini C. Guimarães O vírus, por: Rodrigo Antônio Sarmento Manifesto pela descoisificação do mundo (Republicado), por: Gabriela Souza Conrado, Emanuella Ribeiro Halfeld Maciel e e Marina Leonel Pereira Santana Paiva
44 Escapulário (Vozes Malditas), por Lucas Biagio Mamone
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OS CORPOS DE UMA AS IMPLICAÇÕES AVASSALADORAS DA MISOGINIA QUE OGITRA
SOBRE A PANDE DADOS: JUN 2020
Em 24 de março de 2020, foi ao ar um pronunciamento oficial do Governo Federal, feito pelo Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, referente à atual pandemia do vírus SARS-CoV-2. Em meio à transmissão, cogitamos, indignadas, se algum dia o testemunharemos aos gritos confessionais de "sim, eu menti!" . Frente ao cenário de calamidade pública que [1] justificadamente se constituiu no país recentemente, desvelar este que tem recebido a atenção majoritária dos holofotes em decorrência da gravidade, o pronunciamento, para além do sentimento de indignação, desencadeou uma série de reflexões acerca dos milhares de olhos vazios que não pestanejam mais. [2] Ultimamente temos mergulhado fundo, como boa parte dos nossos pares, nas entranhas de debates efervescidos pelas atuais conjunturas do país – interseccionalidades políticas, econômicas, éticas e sociais reverberam por todos os cantos do eu e do nosso –, daí a necessidade (e ousamos dizer, legitimidade) de um desabafo. E, talvez pelo nosso ser mulher, o que tem ecoado mais alto, em nossas arestas, são os gritos das nossas. Compreendemos a vastidão, despida de horizontes, do ser mulher [3] - e, portanto, os nossos próprios horizontes, naturalmente, impõem-se. Em tal pronunciamento, o Presidente da República desconsiderou a gravidade do cenário de pandemia – que já atingiu mais de 7 milhões e 279 mil pessoas, tendo sido letal para mais de 412.040 pessoas no mundo e 37.840 [4] pessoas no Brasil. Essa narrativa, entretanto, não restringiu-se ao pronunciamento em questão: desde o seu retorno da viagem em comitiva aos Estados Unidos, que ocorreu no início de março, Bolsonaro tem se referido, reiteradamente, à chegada do coronavírus e à realidade de colapso do sistema de saúde brasileiro como uma histeria. Em entrevista à CNN, no dia 15 de março, o Presidente chamou de extremismo e histeria as medidas adotadas diante do cenário pandêmico [5]. À BBC, o tom de Bolsonaro não se alterou: mais uma vez, no dia 17 de março, o chefe do Poder Executivo nacional sustenta que há histeria em relação à COVID-19, e que o cancelamento de eventos e fechamento de escolas são medidas ilógicas [6]. Subsequentemente, no dia 18 de março, ele afirma, em entrevista à Globo, que a população brasileira ficou histérica pelo fato de ele ter participado das manifestações a favor do fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional [7]. Dentre todos estes pronunciamentos que têm em comum a alegação de histeria, um chama a atenção: em 17 de março, além de reiterar a narrativa da histeria coletiva, o Presidente da República compara o coronavírus à gravidez. Ele afirma que “vai passar (…); é como uma gravidez; um dia, vai nascer a criança”[8]. Rastrear a genealogia da noção de histeria é tarefa instigante. Ao longo da história da filosofia, da psicologia, da psiquiatria e da literatura, múltiplas acepções foram construídas a partir desse termo. Assim, é possível dizer que uma das características que o termo histeria carrega consigo é a sua polissemia. Contudo, ainda que a sua semântica seja plúrima, a histeria parece apresentar uma característica constante: a questão de gênero.
1 Crônica de Clarice Lispector intitulada "Esboço do Sonho do Líder", publicada em 31 de maio de 1969, no Jornal do Brasil. Cf.: LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. São Paulo: Editora Rocco, 1999, p. 199. 2 Crônica de Clarice Lispector intitulada "Esboço do Sonho do Líder", publicada em 31 de maio de 1969, no Jornal do Brasil. Cf.: LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. São Paulo: Editora Rocco, 1999, p. 199. 3 Fazemos uma ressalva ao recorte: apesar de categorias como a histeria serem utilizadas para desclassificar mulheres como um todo, nós reconhecemos que fatores de raça e classe são determinantes na não homogeneização do espectro do feminino/mulher. 4 Dados atualizados diariamente. Cf.: <https://www.businessinsider.com/china-virus-everything-we-know-deadly-2019-ncov-wuhan-spread-2020-1>. Acesso em 08 jun. 2020. 5 https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2020/03/bolsonaro-chama-de-extremismo-e-histeria-medidas-adotad as-diante-da-pandemia-do-coronavirus-ck7tsl9yw001h01s2j7jncfeb.html 6 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51963247 7 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/18/bolsonaro-histeria-foi-motivada-por-ida-a-manifestacao-e-panelaco -e-manifestacao-da-democracia.ghtml 8 https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-compara-coronavirus-a-gravidez-um-dia-vai-nascer-a-crianc a,70003237265
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MORTE ANUNCIADA: SUSTENTA O DISCURSO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA MIA DA COVID-19 Salientamos que, se teorias tradicionais sobre gênero e sexo apontam para uma rigidez e translucidez destas categorias como representantes de uma ordem natural, estudos contemporâneos sustentam que "o opaco do sexual ganha sua tonalidade por intermédio da linguagem, tendo sua possibilidade e limites marcados muito mais pela cultura do que pela biologia" [9]. Assim, para que possamos investigar o impacto do recurso à tônica da histeria pelo Presidente da República, tanto pelos seus significantes quanto pelos seus significados, é imperativo que discutamos as dinâmicas por meio das quais a questão de gênero se torna central ao uso desta palavra. Dentro da polissemia da histeria, podemos destacar dois usos frequentes. Por um lado, a noção de histeria designa uma ferramenta da psicanálise – e também da psiquiatria – para lidar com o diagnóstico de pacientes que apresentem sintomas psíquicos. Entretanto, devido às peles em que habitamos, optamos por colocar em evidência um outro tipo de uso do termo: o coloquial, vinculado à ideia de um descontrole difuso das emoções. A palavra histeria carrega consigo uma carga semântica fortemente conectada à ideia de expressão da feminilidade. O recurso ao uso coloquial do termo é utilizado como ferramenta de deslegitimação de ações e reações. Ao passo que a histeria psicanalítica é ideogênica [10], podendo assim, estar presente nas múltiplas sexualidades assumidas pelos seres humanos, a histeria coloquial vincula-se fortemente à sua origem etimológica. Voltemos ao passado. À histeria, um substantivo feminino. Foi de Platão, um dos fundadores do que hoje consideramos como a alta filosofia ocidental, a caracterização de que o útero era um animal sem alma [11]. A ideia deste animal, errante e vacilante no corpo humano, consolida-se, em uma das passagens do mito ao logos, na qual a histeria é descrita por Hipócrates como uma doença causada pelos movimentos do útero no corpo – feminino. Não à toa, histeria é uma palavra derivada de hystera, útero. A evolução da ideia de histeria no ocidente perpassa o medievo, dessa vez associada à experimentação do prazer sexual por mulheres e sendo permeada por um caráter revestido da noção de pecado e de uma possível possessão espiritual. Em mais uma incursão humana em busca da racionalidade, a modernidade e os seus desvelos científicos – não nos esqueçamos de que a ciência não é neutra, isenta ou asséptica – trouxeram ao conceito de histeria ares de formalidade. Os primeiros neurologistas e ginecologistas, ainda que dotados de ferramentas capazes de dissecar e analisar um corpo humano como nunca antes fora possível, insistiam na ênfase da histeria como uma característica intimamente vinculada à mulher [12] (AMBRA et al, 2018, p. 293). A absorção de toda essa carga semântica do termo na contemporaneidade demonstra como os discursos médico-científicos não são vazios de cargas valorativas. Antes, são colonizados por estas. Ainda que há muito psicanálise e psiquiatria tenham desvinculado a histeria como uma categoria exclusivamente feminina e a tenham desmembrado em inúmeros outros campos analíticos, a absorção do termo na sociedade atual é perversa para as mulheres.
9 AMBRA, Pedro et. al. A histeria como questão de gênero. In: SAFATLE, Vladimir; JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (orgs). Arqueologias do sofrimento psíquico. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 293. 10 Fenômenos ideogênicos são aqueles em que uma ideia problemática porém reprimida se manifesta como um sintoma corporal. Cf.: Zakin, Emily, "Psychoanalytic Feminism", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2011 Edition), Edward N. Zalta (ed.), Disponível em <https://plato.stanford.edu/archives/sum2011/entries/feminism-psychoanalysis/>. Acesso em 27 mar. 2020. 11 ADAIR, Mark. Plato's view of the Wandering Uterus. The Classical Journal, v.91, n.2, pp. 153-163, 1996. 12 AMBRA, Pedro et. al. A histeria como questão de gênero. In: SAFATLE, Vladimir; JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (orgs). Arqueologias do sofrimento psíquico. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 293.
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Atualmente, não é errôneo afirmar que a histeria representa muito mais do que um simples lugar de deslegitimação. A histeria é um não-lugar; uma categoria utilizada para que o outro seja invisibilizado, relegado ao anonimato. E, como já nos provocava Virginia Woolf, o anonimato é uma categoria para a qual as mulheres são violentamente exiladas em sociedades patriarcais [13].
graves repercussões da doença, são posturas características à performance do arquétipo "homem macho" - aquele resultante de uma combinação de ideais voltados à violência e agressividade, hiperssexualização e/ou objetificação de corpos alheios, disputas de poder e medição de forças, repressão aos sentimentos e à externalização de vulnerabilidades, autossuficiência, dentre tantos outros.
Dito isso, o alto número de casos e mortes decorrentes da doença COVID-19 não é o único que nos tira o sono. O boom global do registro de ocorrências de violência doméstica, o qual tem sido atribuído, por alguns especialistas, à política de isolamento social, reflete uma realidade invisibilizada e grotesca - e aqui começamos a tatear a ferida. A mesma misoginia que causa ojeriza a alguns quando estampa tragédias em páginas de jornais, é aplaudida por esses mesmos quando refletida nos discursos do atual Presidente da República. Histeria. Gripezinha. Resfriadinho. A familiaridade que temos com as ferramentas de linguagem presentes nos discursos proferidos pelo Presidente não é aleatória - refletem as misóginas tessituras sociais basilares da sociedade ocidental.
É isso mesmo, leitor. O patriarcado é um problema de todos porque afeta, em diferentes medidas, todas as esferas da vida pública. A escolha dos signos, sobretudo no processo de elaboração de um discurso do Presidente, devem ser entendidas como propositais. Os significantes são historicamente construídos e, quando empregados sem ressalvas, carregam consigo toda a sua historicidade, a qual envolve o discurso em um determinado arcabouço interpretativo. A dimensão performática do discurso tem potencial de (des)constituir realidades principalmente quando essa narrativa é enunciada por uma autoridade da Lei. No caso em questão, as realidades criadas afetam, em diferentes graus, todos.
Mas, "e daí?" E daí que talvez essa seja uma excelente oportunidade de reconhecer, de uma vez por todas, o alto grau de complexidade da imbricação existente entre pautas identitárias, como por exemplo as feministas, e as político-econômicas. A reiteração nada sutil de determinadas ferramentas de linguagem em discursos do Presidente, as quais consistem, primordialmente, em uso de diminutivos e falsas simetrias, dentre outros recursos de linguagem tipicamente apropriados pelo sexismo, apelam a dicotomias de gênero, arraigadas no inconsciente social ocidental, que associam o forte e o fraco a estereótipos tóxicos de masculinidade e de feminilidade, respectivamente – e é justamente esse o molde do fio condutor das políticas públicas de combate à pandemia. Explicamos: a persistente irreverência às recomendações sanitárias dos órgãos internacionais de saúde, a título de exemplo, a não utilização de máscara em espaços públicos e o desrespeito às políticas de distanciamento social, bem como o constante desdém e descrédito às
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Não há horizonte linguístico que escape às topologias das relações de poder. Ainda que estejamos acostumados a tangenciar formas de poder eminentemente visíveis – um poder coercitivo, negativo, que se impõe sobre nossos corpos –, existem poderes que se deslocam das camadas visíveis aos tecidos mais subliminares da existência humana. Da bruteza ao sensível; do físico para o psíquico. Esse poder capilar, espraiado, invisível, ameaça a própria noção de liberdade. Afinal, como resistir ao poder subliminar? Essa inquietação não perpassa somente a nós. O filósofo Byung-Chul Han também se vê às voltas com tal questão, e destaca que a violência “pode adotar ainda uma forma mais sutil e vir expressa, por exemplo, como violência da linguagem”, que deslegitima, difama e descredencia [14].
13 "De fato, eu me arriscaria a supor que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem assiná-los, foi muitas vezes uma mulher". WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, [s.n.], p. 62. 13 "De fato, eu me arriscaria a supor que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem assiná-los, foi muitas vezes uma mulher". WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, [s.n.], p. 62. 14 HAN, Byung-Chul. Topologia da violência. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 9.
Quando nossas palavras são direcionadas ao mundo, não estamos apenas descrevendo como as coisas são. Antes, estamos determinando e disputando como as coisas devem ser. O saber, o conhecimento, a abordagem sobre sujeitos e objetos, assim, nunca é despida de significados. A formação discursiva não está separada das relações de poder que regulam como lidamos uns com os outros e com as instituições. É uma episteme, um dispositivo discursivo que corresponde a um feixe de relações entre diferentes discursos científicos [15]. Assim, a topologia da violência discursiva é muito mais subliminar do que a da violência coercitivamente repressiva. Mas não menos violenta. Pelo contrário, nas trincheiras dos significados é que a guerra do invisível se desvela. Nesse sentido, podemos pensar que meras palavras ameaçam a democracia? Reiteramos: o uso de palavras em discursos políticos raramente é ingênuo. Nunca são meras palavras. A legitimação de narrativas é cautelosamente construída por meio de expressões e da carga semântica que elas carregam. Parece muito mais palatável que se chame, por exemplo, o desmonte das garantias de seguridade social de reforma previdenciária. Entretanto, não é o que faremos aqui. Em contextos tão dramáticos e delicados, como o que estamos vivendo, é importante chamar a cada coisa pelo seu nome. Somente assim será possível disputar o jogo político que o Governo Federal nos impõe. Essa é a nossa forma de resistir. Discurso de ódio. Um ódio genuíno à população brasileira. Um ódio legitimado por outro, mais subliminar, mas presente no dia a dia de todas nós: a misoginia. Já em 1997, Judith Butler analisava as confluências entre a violência e os discursos de ódio. Para Butler, assim como para nós, o uso de palavras é uma ação no mundo. As palavras que usamos e os recursos linguísticos, sempre tão embebidos de significados, são capazes de manufaturar ódios e disputar paixões. A força das palavras que agridem, e como elas são utilizadas, são a performatividade da construção do abjeto [16] Abjicere. Rejeitar, distanciar, afastar. A abjeção é uma forma radical de negação do sujeito. Ela corresponde às zonas inabitáveis e inóspitas da vida social. Contudo, as zonas abjetas não são raras. Para Butler, são "densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do inabitável é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito" [17]. Um ser abjeto é desqualificado. Algo de si é perdido pela construção linguístico-performática do domínio da abjeção. São existências que conformam em si o que não se deve ser. São condutas radicalmente inaceitáveis. São manifestações inadmissíveis. Vejam bem, as incongruências e descontinuidades da vida. A não linearidade permite que as mulheres sejam tanto o anônimo em nossa história quanto o extremamente visível. O risível. O não crível. O exageradamente histérico. Por meio do recurso à categorização histórica das mulheres no domínio da abjeção, Jair Bolsonaro cria na pandemia da COVID-19 uma categoria de assunção e de acusação [18]. Ao mesmo tempo em que, ao trazer palavras como histeria e termos no diminutivo, o Presidente da República remete no inconsciente coletivo a figura abjeta das mulheres, ele insinua como não devemos ser para sermos gloriosos. Os meios nem sempre justificam os fins: a apropriação distorcida de fatos científicos para atingir determinados objetivos políticos é um movimento ilegítimo. Em um regime que se propõe democrático, a verdade [19] não pode ser instrumentalizada, revisada e/ou ocultada em nome do cumprimento de uma agenda. Quanto à memória social, "antes pecar pelo excesso do que pela falta": não nos esqueçamos dos prejuízos sócio-históricos, por vezes irreparáveis, que ações políticas mal direcionadas provocam nas chamadas verdades factuais - aquelas que aconteceram, mas poderiam não ter sido; narrativas possíveis, não absolutas e, portanto, passíveis de serem negadas. O revisionismo negacionista promete a nós, sociedade, mundos e fundos, "novas verdades" - mas a mescla infeliz de cinismo e desconfiança sem fim, dentre outras mazelas, é tudo aquilo que invariavelmente nos entrega.
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Assim como a maior parte da nação, estamos exaustas e em luto. Declarações públicas deliberadamente permeadas por mistificações [20] estampam, quase diariamente, manchetes em jornais do país e do mundo. Inúmeros retrocessos democráticos podem ser atribuídos ao manuseio dessa ferramenta e técnica, a qual se sustenta (i) na negação de fatos histórico-científicos, (ii) na deslegitimação por meio do descrédito e (iii) em uma retórica típica de uma discursividade misógina. O uso habitual da mistificação contribui para o agravamento de uma crise epistêmica de identidade, sofrida principalmente por instituições científicas e por nós, aqueles que as defendem: acreditamos que a tentativa de (re)construção impositiva de uma verdade, a partir de elementos falsos, deve ser compreendida como um duplo movimento - a violência, intrínseca ao discurso de ódio, relega à zona abjeta da histeria aqueles que contestam as insinceridades. Por sua vez, a tensão de forças, que presta um importante papel na dinâmica democrática, é colocada em risco - sendo, por isso, o patriarcado um problema para todos aqueles que a defendem, uma vez que corrói o campo de ação dos sujeitos por meio da violência imposta.
POR: CAROLINA MARIA NASSER CURY & NATASHA BURREALL RIBEIRO DIREITO UFMG
13 "De fato, eu me arriscaria a supor que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem assiná-los, foi muitas vezes uma mulher". WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, [s.n.], p. 62. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAIR, Mark. Plato's view of the Wandering Uterus. The Classical Journal, v.91, n.2, pp. 153-163, 1996. AMBRA, Pedro et. al. A histeria como questão de gênero. In: SAFATLE, Vladimir; JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (orgs). Arqueologias do sofrimento psíquico. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 293. ARENDT, Hannah. Verdade e Política. Editora Perspectiva. 1967. BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, G. L. (Org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. HAN, Byung-Chul. Topologia da violência. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 9. LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. São Paulo: Editora Rocco, 1999, p. 199. RUI, Taniele. Nas tramas do crack: uma etnografia da abjeção. São Paulo: Terceiro Nome, 2014. TCHAKHOTINE, Serge. A mistificação das massas pela propaganda política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, [s.n.], p. 62. ZAKIN, Emily, Psychoanalytic Feminism. In: ZALTA, Edward (ed.) The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2011 Edition). Disponível em <https://plato.stanford.edu/archives/sum2011/entries/feminism-psychoanalysis/>. Acesso em 27 mar. 2020. ______________________ 13 "De fato, eu me arriscaria a supor que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem assiná-los, foi muitas vezes uma mulher". WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, [s.n.], p. 62. 15Pedro FOUCAULT, palavras e asde coisas: uma das ciências humanas. Paulo: Christian Martins Fontes, 9 AMBRA, et. al. AMichel. histeriaAs como questão gênero. In:arqueologia SAFATLE, Vladimir; JUNIOR, Nelson;São DUNKER, (orgs). 2000. Arqueologias do sofrimento psíquico. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 293. 16 BUTLER, Judith. Excitable speech: a politics of the performative. Novareprimida Iorque: Routledge, 1997. 10 Fenômenos ideogênicos são aqueles em que uma ideia problemática porém se manifesta como um sintoma corporal. Cf.: Zakin, Emily, "Psychoanalytic Feminism", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2011 Edition), Edward N. Zalta (ed.), Disponível em 17 BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, L. (Org.) <https://plato.stanford.edu/archives/sum2011/entries/feminism-psychoanalysis/>. Acesso em 27G. mar. 2020.O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 151-172. 18Mark. Palavras frequentemente utilizadasUterus. por Taniele Rui. Cf. RUI, Taniele. Nas tramas do crack: uma etnografia da abjeção. São Paulo: Terceiro Nome, 2014. 11 ADAIR, Plato's view of the Wandering The Classical Journal, v.91, n.2, pp. 153-163, 1996. 19 Cf.: ARENDT, Passado o Futuro. Paulo: Perspectiva, 1967.Nelson; DUNKER, Christian (orgs). Arqueologias do sofrimento psíquico. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 293. 12 AMBRA, Pedro et. al. AHannah. histeria Entre comooquestão deegênero. In:São SAFATLE, Vladimir; JUNIOR, 20 TCHAKHOTINE, Serge. A mistificação das massas pela propaganda política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
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O PODER DE POLÍCIA E A NECROPOLÍTICA: OGITRA
Uma breve análise a partir da organização social em Senhor das Moscas
“E no meio deles, com o corpo imundo, o cabelo emaranhado e o nariz precisando ser assoado, Ralph chorava o fim da inocência, as trevas do coração humano.” (Senhor das Moscas, 1954)
Na obra o Senhor das Moscas (1954), William Golding relata uma estória fictícia de um grupo de garotos ingleses que, em decorrência de um acidente de avião, fica isolado em uma ilha deserta sem nenhum adulto responsável. Ralph, de forma democrática, é escolhido como líder. Jack, um garoto de personalidade forte, fica descontente por não ter sido escolhido líder, mas inicialmente acata a decisão da maioria. As diferenças de opinião entre Ralph e Jack começam a ficar evidentes, o que faz com que Jack forme um novo grupo, em que ele seria o líder. Apesar de se revelar um líder tirânico e ditatorial, Jack consegue seguidores fiéis, sob o pretexto de garantir a proteção de todos contra um monstro (criado pelo próprio Jack) que rodeava a ilha. Aqueles que não concordaram com o regime imposto por Jack foram caçados e mortos. Senhor das Moscas é uma antonomásia para a barbárie, nos moldes do pensamento hobbesiano de que o homem é lobo do homem, capaz de grandes atrocidades e barbaridades contra elementos da sua própria espécie. De acordo com Hobbes (1651), é comum na natureza humana os mais fortes explorarem os mais fracos, quando deveriam protegê-los. Daí a necessidade de um Estado dotado de instrumentos específicos para coibir injustiças e garantir a paz social.
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Nesse cenário, a autoridade policial, amparada pelo poder institucional da utilização de força quando necessário, seria um importante instrumento de manutenção da ordem estatal. Assim sendo, entende-se que o corpo policial possui a prerrogativa legal de utilizar da violência para pacificar conflitos, desde que operada de forma moderada, proporcional e imparcial. Tais critérios são de extrema importância e devem ser observados pelos agentes policiais, caso contrário o próprio Estado estaria legitimando, por meio de sua soberania, uma política pautada na segregação dos indivíduos que compõem a sociedade. O abuso da autoridade estatal é uma das características da necropolítica, termo cunhado pelo sociólogo Achille Mbembe (2011), para designar modelos de Estado “com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”. O autor parte do pressuposto “que a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”. Assim, pode-se dizer que o protótipo de Estado rudimentar inaugurado por Jack em o Senhor das Moscas é uma espécie de organização necropolítica, visto que ele utilizou da soberania conquistada pelo apoio da maioria dos meninos para perseguir seu rival Ralph e aqueles que o apoiavam. A utilização do necropoder é apresentada na estória em diversos momentos, quando Jack e seus asseclas executam seus rivais, considerados perigosos para a ordem social, por meio do emprego da violência institucionalizada. O tocante da questão é quando a utilização arbitrária da força policial rompe a barreira da ficção e passa a ser utilizada contra aqueles considerados “indivíduos intrinsecamente perigosos”. De acordo com Coimbra e Nascimento (2003), as elites político-econômicas forjam subjetividades sobre o negro e sobre o pobre dizendo o que são e o que deverão ser. Assim como fez Jack em Senhor das Moscas, cria-se um “monstro” que deve ser reprimido pela autoridade competente através da associação preconceituosa entre o negro e a periculosidade/criminalidade. O modelo necropolítico institucionalizado por países como Brasil e Estados Unidos, que associa negros à criminalidade se tornou ainda mais nítido (sim, ainda mais) diante de acontecimentos da última quinzena de maio de 2020. No Brasil, a morte do adolescente negro João Pedro, baleado pelas costas por policiais em São Gonçalo e nos Estados Unidos, a morte de George Floyd, asfixiado por um policial em Minneapolis, explicitam a atuação preconceituosa das autoridades policiais contra os negros. Necessário destacar que nenhuma das vítimas oferecia perigo ou resistência; Floyd foi detido por suspeita de fraude e não se mostrou hostil a abordagem, enquanto João Pedro apenas visitava a casa de seus tios quando foi alvejado pela polícia. É certo que Brasil e Estados Unidos acumulam centenas de assassinatos cometidos pela polícia contra jovens negros da periferia [1]. O que está por trás disso é o racismo institucional enraizado na cultura político-social de Brasil e EUA que espelha os reflexos do longo período de escravidão negra nesses países. A necropolítica vigente deixa claro que o Estado, por meio do poder de polícia, escolhe quais vidas são dignas de proteção e quais não.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: COIMBRA, Cecília M. B; NASCIMENTO, Maria Lívia. A produção de crianças e jovens perigosos: a quem interessa? In: P. C. P. Fraga, & J. A. S. Lulianelli (Orgs.), Jovens em tempo real (pp. 58-63). Rio de Janeiro, RJ: DP & A, 2003. GOLDING, William. Senhor das Moscas (1954). Rio de Janeiro: Alfaguara .1. ed, 2014. MBEMBE, Achille. Necropolítica (2013). 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p. ______________________ 1CARTA CAPITAL, 2019: Racismo institucional leva polícia do Brasil e dos EUA a matar mais negros e pobres
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A vigência de uma espécie de Estado de exceção no Brasil e nos EUA particularmente, muito se assemelha ao rudimentar projeto de sociedade inaugurado pelos meninos perdidos em Senhor das Moscas. Utiliza-se do poder soberano institucionalizado para sustentar preconceitos e combater aqueles classificados arbitrariamente como indivíduos intrinsecamente perigosos. Justifica-se a barbárie por meio do pretexto de manter a ordem social, valendo-se da violência executada por indivíduos igualmente preconceituosos. A predisposição das autoridades policiais em utilizar da violência de forma displicente contra as populações negras demonstra que o Estado falha e garantir a pacificação, nos moldes do modelo social proposto por Hobbes. Nesses Estados impera a necropolítica, viabilizada por meio de uma construção social que segrega indivíduos negros e os trata como propensos à criminalidade. Não há um Estado igualitário quando uma parcela específica da população enxerga a morte e a violência quando confrontada pelas polícia.
POR: CÉSAR HENRIQUE SILVA DINIZ - DIREITO UFMG
11
OGITRA
O DIREITO PENAL CONSEGUE PROTEGER OS BENS JURÍDICOS?
Os bens jurídicos são os “valores relevantes para a vida humana individual ou coletiva” (SANTOS, 2017), tais como a vida, a propriedade e a honra, por exemplo. Aqueles que possuem maior valoração social são protegidos pelo Direito Penal, enquanto os outros são tutelados pelas outras instâncias do Direito (direito civil, direito administrativo, etc.).
Devido a sua importância e tutela pelo Direito Penal, caso haja lesão ou ameaça de lesão a esses bens, o Estado pode se utilizar de medidas mais drásticas para sua proteção, como as penas criminais e as medidas de segurança. Dentre essas, a mais conhecida – e mais extrema – é a pena de prisão.
Destarte, com o intuito de proteger de forma mais ativa esses bens, a pena de prisão é utilizada como punição para aquele que comete um crime (ameaçando ou lesionando um bem jurídico tutelado). Não obstante, o que se observa é que esta dita proteção – apregoada pelo discurso oficial – não se efetiva na prática.
“No Brasil, 136 leis penais foram editadas de 1940 a 2011” (ALMEIDA; GOMES, p. 17). Apesar de todas essas leis, e do recrudescimento de penas para alguns crimes, a violência não diminuiu. O problema é que “nenhuma reação punitiva, por maior que seja sua intensidade, pode pôr fim à impunidade ou à criminalidade de qualquer natureza” (KARAM, 2015)
Em primeiro lugar, é preciso saber que existe uma enorme diferença entre a criminalização primária – aquelas condutas definidas pelo Poder Legislativo como crime – e a criminalização secundária – “a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas” (ZAFFARONI et. al. p. 43), ou seja, as pessoas que são presas porque cometeram algum delito. Dentre o número de delitos que acontecem e o número de delitos que chegam às agências judiciais (polícia, Ministério Público e judiciário), há um enorme abismo.
Disso advém uma característica estrutural do sistema penal: sua seletividade. Devido à sua incapacidade operativa de atuar em todo fato criminoso que acontece, ele opta por atuar naqueles que são mais suscetíveis ao seu poder. Desta forma, na maioria das vezes, o sistema penal atinge aqueles que são mais vulneráveis (política, social e economicamente).
Este fato é comprovado quando se observa os dados do último levantamento oficial que fez análises qualitativas quanto à cor e escolaridade dos presidiários. De acordo com o INFOPEN (2017), 64% dos presos brasileiros são pretos ou pardos e 75% não se formou no ensino médio (o que
é
um
indicador
de
baixa
renda),
indicando
ser
a
maioria
dos
presidiários
brasileiros
composta por pretos, pobres e de baixa escolaridade. O sistema penal atua, então, sobre aqueles que estão mais expostos, deixando praticamente intocados outros tipos de crime, como os do colarinho branco.
12
Outrossim, frustra
tipificar
seu
Thompson
uma
conduta
cometimento.
(1991),
a
De
tampouco
acordo
“criminalização
com
não
inibe,
Desde
a
pessoas
redemocratização, são
presas,
mais
cada
tipos
vez
mais
penais
são
criados e mais se aumentam as penas – tudo
impede ou amedronta os criminosos”. Talvez o
sem
maior exemplo desta afirmação seja a proibição
criminalidade. Os meios de comunicação, por
do comércio de drogas. Apesar de ter uma pena
sua
abstrata
anos),
situação, uma vez que “não há debate, não há
20,28% dos presos brasileiros estão presos por
atrito: todo e qualquer discurso legitimante da
este tipo penal (INFOPEN/19). Além disso, desde
pena é bem aceito” (BATISTA, 2002, p. 4).
relativamente
alta
(5
a
15
ter
vez,
havido
mínima
contribuem
na
diminuição
manutenção
da
desta
a nova lei de drogas, que tornou mais severas as penas para este tipo de crime, o número de
Apesar dos altos índices de encarceramento, da
presos por tráfico cresceu cerca de 339% (entre
demasiada criação de novos crimes e dos altos
2005 e 2013) (D’AGOSTINO, 2015).
índices de reincidência, o discurso da punição penal
Logo,
os
efeitos
preventivos
gerais
não
são
continua
direita,
quanto
observados na realidade. Em outras palavras, a
Teoricamente,
criação de mais tipos penais e o agravamento
consequente
de
número
penas
não
cometimento
intimidam
de
crimes
–
o
delinquente
o
que
no
também
é
de
com à
muitos
adeptos,
esquerda
se
a
(KARAM,
penalização
intensificação
pessoas
tanto
à
2015). e
sua
funcionassem,
cometendo
esse
tipo
o de
crime deveria diminuir, o que não ocorreu.
observado pelo alto nível de reincidência. Desta
maneira,
é
preciso
que
se
tenha
em
Todavia, esses pontos não são discutidos, e o
mente que um mesmo remédio pode funcionar
discurso
muito bem para determinada patologia, e ser
oficial
comunicação
é
de
reforçado massa
–
pelos
como
meios
o
de
rádio,
a
um
veneno
para
outra.
A
pena
de
prisão
televisão e os jornais impressos e eletrônicos. Ao
continua a ser apresentada com solução para
retratar e espetacularizar fatos criminosos de
diferentes tipos de problema, sem contraditório.
forma
Portanto,
maniqueísta,
eles
contribuem
para
a
o
debate
deve
ser
fomentado,
criação de um estereótipo do criminoso. A esse
refletindo-se sobre a real necessidade da pena
estereótipo,
de prisão para diversos crimes, não perdendo de
associam-se
“todas
as
cargas
negativas existentes na sociedade sob a forma
vista
de
Penal: o de ultima ratio.
preconceitos”
(ZAFFARONI
et.
al.
p.
46).
o
mais
fundamental
princípio
do
Direito
Cria-se a divisão entre nós e eles, cidadão de bem e inimigo. Desta forma, todos os problemas sociais podem ser atribuídos a esse estereótipo criminoso, divisões
sem
haver
sociais
e
uma as
reflexão reais
sobre
causas
as da
POR: SAMUEL RIVETTI ROCHA BALLOUTE - DIREITO UFMG
criminalidade.
Por
conseguinte,
materializa:
mais
a
solução
prisão,
apresentada
mais
pena,
se
menos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
garantias processuais. A pena de prisão é vista como uma “deusa alada onipresente (...) que resolve problemas, que influencia a alma dos seres humanos para que eles pratiquem certas ações
e
se
abstenham
de
outras”
(BATISTA,
2002, p. 4). A cada novo problema que surge, a pena de prisão é invocada para resolvê-los: da fraude fiscal ao comércio de entorpecentes, dos crimes
ambientais
aos
crimes
contra
ALMEIDA, Débora de Souza Almeida, GOMES, Luiz Flávio. Prefácio. In: Populismo Penal Midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013. 509 p. BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento Nacional de Informações Carcerárias. Org: Marcos Vinícius Moura. Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2017. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017- rev-12072019-0721.pdf. Acesso em: 19 fev. 2020. BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2019. Disponível em http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen. Acesso em 3 mar. 2020. BRASIL. Lei de Execução Penal. Brasília, DF: Presidência da República. Diário Oficial da União. Brasília, 11 jul. 1984. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 19 de fev. 2020. D’AGOSTINO, Rosanne. Com Lei de Drogas, presos por tráfico passam de 31 mil para 138 mil no país. Portal G1. 24. jun. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/com-lei-de-drogas-presos-por-trafico-passam- de-31-mil-para-138-milno-pais.html>. Acesso em: 4 jun. 2020. KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Blog da Boitempo. 28 jul. 2015. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2015/07/28/a-esquerda-punitiva/>. Acesso em: 27 abr. 2020. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. 734 p. THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro, Revan, 1991. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo: Hucitec, 1978. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro, Revan, 2006. 660p.
o
patrimônio.
13
AMEOP
DEVANEAR-ME-EI Eu pensava, Pensava todos os dias. Todas as horas dos dias. Todos os minutos das horas dos dias. Todos os segundos dos minutos das horas dos dias: Como conseguiria?
Como eu, só naquele espaço, Naquele pequeno espaço, Espaço com poucas oportunidades, Conseguiria aprender? Como conseguiria?
Entre um traço e outro eu enxergava.
Um dia surgiu. Tanto pensei, Tanto mentalizei, Tanto sonhei. O espaço surgiu, Surgiu entre os traços.
Sem me ensinar, a vida me oportunizou. Depois de toda desigualdade, alforriei‐me! Não pensava, por todos aqueles minutos Minha mente escaldava em sentimentos. Então pensei: eu consigo, Eu consigo. E voei!
E pensava sobre o que enxergava. O que todos haviam aprendido? Injustiça natural, Natural injustiça. Uns praticavam e eu só podia imaginar.
‐
Era como eu pensava. Batida por batida, Momento por momento, Instante por instante, Senti‐me vivo.
Só podia devanear me da sensação:
Meu esqueleto poroso e leve, Minha gordura, Minha pele, Minhas penas, Batendo como o coração e acalorando minha imaginação.
Eu me perguntava: Como conseguiria?
Sentia necessidade de estar preparado. E se a oportunidade surgisse, Como conseguiria?
Parei para pensar como consegui. Esforcei‐me o suficiente, pensei. Mas o que adiantava? Não sabia para onde ir, Só sabia voar. Tudo o que na vida pensei! Voltei para os traços. Eu os merecia, Eles me desejavam, chamavam‐me. Para sempre devanear‐me‐ei!
Texto e imagem por: Victor Wallace Domingues de Menezes - Direito UFMG 14
A CRISE SANITÁRIA É A MESMA PARA TODOS
A PANDEMIA NA MINERODEPENDÊNCIA
? OGITRA
Antes de iniciar a discussão propriamente dita, essa autora se apresenta. Estudante da pós graduação em Direito de quarentena, graças ao privilégio de poder exercer a atividade laboral em casa. Durante esse tempo, não posso realizar atividades de campo e comparecer aos territórios para seguir a atividade extensionista e de pesquisa que desenvolvo. Desse modo, perpassam por mim além de dúvidas acadêmicas quanto aos rumos que o governo e as empresas darão para o cuidado e preservação de vidas, quais rumos terão a minha pesquisa e em que tempo (e com qual qualidade) poderei concluir meu mestrado, que se encontra prejudicado pela impossibilidade de aulas presenciais. Portanto, partindo desse local em que escrevo, me coloco também como participante da pandemia, e não mera observadora ou pesquisadora neutra, alheia a esse fenômeno. Para além dessas questões pessoais é que escrevo esse texto, com o fim de publicizar questões coletivas que não podem ser deixadas de lado pela universidade. O Voz Acadêmica tem o papel histórico e social de relatar esses problemas, sobremaneira nesse momento de isolamento social que impede a realização de eventos acadêmicos com a participação efetiva da comunidade discente e docente. Em 11 de março deste ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia pelo novo coronavírus. Isso significou dizer que a doença (COVID-19) já estava espalhada por diversos continentes com transmissão sustentada entre as pessoas. Com isso, diversos países começaram a tomar atitudes para combater o contágio e oferecer tratamento de saúde. Já se previa que mudaríamos nossas rotinas, e que ninguém estaria a salvo. Neste momento, não importava ser rico ou pobre, negro ou branco, jovem ou idoso: todos e todas estariam suscetíveis ao contágio da doença “invisível”. Todo o tempo, é noticiado que “a máscara nos tornou todos iguais” e que “todos tiveram suas rotinas afetadas”. Entretanto, ainda que aparentemente o vírus atinja a população de forma homogênea e indiscriminada, as condições sociais anteriores à crise interferem nos impactos gerados (ou agravados) pela doença. A pandemia não se manifesta de uma única forma, e desejo aqui apresentar uma das narrativas existentes hoje em nosso estado. Essa reflexão se baseia no contato com populações envolvidas em conflitos hidro-socioambientais no contexto da mineração. Especificamente, analisarei a flagrante violação de direitos humanos a que estão sujeitos os moradores de Brumadinho, André do Mato Dentro (distrito de Santa Bárbara), Barão de Cocais e Macacos (ou São Sebastião das Águas Claras, distrito de Nova Lima). A escolha por essas cidades deve-se ao fato de o Programa Pólos de Cidadania, ao qual sou vinculada, já possuir histórico de trabalho e contato nessas quatro cidades. O Pólos é um programa transdisciplinar e interinstitucional de extensão, ensino e pesquisa social
15
aplicada, criado em 1995, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), voltado para a efetivação dos direitos humanos e a construção de conhecimento a partir do diálogo entre os diferentes saberes. Neste ano foi criada a plataforma Áporo para alocar esses projetos desenvolvidos em cidades em contextos de minerodependência. Os extensionistas e pesquisadores do Programa mantém uma relação duradoura nesses territórios, em uma posição de escuta das demandas e dificuldades vivenciadas pelas populações, com diversas ações, entre elas, produção de relatórios que denunciam essas violências de Estado e de mercado vivenciadas, direcionados aos diversos órgãos do Sistema de Justiça. Para além desses impactos causados pela mineração e já mapeados por diversos pesquisadores, desejo abordar o impacto causado pela COVID-19 nessas comunidades. Questiono: como pode-se mitigar de alguma forma os impactos da COVID-19 em territórios já marcados pela vulnerabilidade? Em que consiste a exigência de lavar as mãos para combate ao vírus, quando o rio de uma cidade é contaminado por rejeitos oriundos da mineração? Quando a empresa que minera se apropria das águas e faz sua exploração, em que posição ficam seus trabalhadores? Ao falar de Brumadinho, não podemos ignorar desde já as mudanças que surgiram. As buscas pelos corpos desaparecidos na lama de rejeitos tiveram de ser interrompidas. Em razão do risco de contaminação pelo novo coronavírus, os militares do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais foram forçados a parar o trabalho. Onze pessoas seguem desaparecidas. As famílias e amigos dessas pessoas que perderam sua vida anseiam pelo corpo, para poderem finalmente dizer adeus e fechar um ciclo de luto. Mas isso terá que aguardar, porque uma nova situação emergencial se instaurou na cidade. Além disso, para evitar aglomerações de mais de 8 pessoas, as homenagens aos 272 mortos que eram realizadas todo dia 25, tiveram que ser transmitidas pela internet. O luto, questão tão presente e urgente, foi duramente negado às famílias dos trabalhadores da Vale, que tiveram 20 minutos para realizar velórios com caixão fechado. Quando temos no país uma necropolítica (MBEMBE, 2011) em que trabalhadores são colocados para trabalhar abaixo de uma barragem de rejeitos, que valor tem a vida dessas pessoas? Afinal, a mineradora pôde decidir quem deve morrer e quem deixará viver, simplesmente no ato de decidir a localização da parte administrativa da empresa. Essas vidas vulnerabilizadas, que não são reconhecidas em vida, podem padecer de algum luto quando partem (BUTLER, 2015)? São vidas precárias, e portanto, tão facilmente exterminadas e tratadas como números. Pergunta-se também sobre quem são os responsáveis pelas obras ou pelas licenças ambientais desses empreendimentos. É o capital que determina como ocorrerão os fluxos econômicos, e também as decisões políticas a serem tomadas nas cidades (SANTOS, 1993). A cidade, que deveria servir aos interesses coletivos, termina por curvar-se aos interesses do capital (LEFEBVRE, 2001).
16
Registro: Douglas Magno
Para além de Brumadinho, onde a lama passou, as cidades de Macacos, Barão de Cocais, e André do Mato Dentro entre outras, vivem sob a égide do terrorismo de barragens [1] e da lama invisível. Isto é, as barragens com risco não se romperam, mas como existe o risco e o acionamento de sirenes de alerta, são tomadas medidas em torno do risco eminente, que provocam danos às populações.
co para desviar lama tóxica para o local. O motivo alegado foi evitar uma tragédia no caso do rompimento de uma barragem da empresa na região. Meses depois, as obras foram encerradas repentinamente, porque a Vale ignorou um monte, visível a qualquer um que passe pelo local, bem no meio do caminho entre a barragem e André do Mato Dentro. A obra de emergência fracassou. Mas o que fica disso é o estrago na mata e a indignação diante de uma Em fevereiro do ano passado, os moradores de obra que tentava desviar a lama para atingir [2] Barão de Cocais, especificamente das esse distrito. comunidades de Socorro, Piteiras e Tabuleiro tiveram de deixar suas casas imediatamente, E como sobreviver na pandemia? Os durante a madrugada, após o acionamento de comerciantes locais de Macacos já se viram sirenes. afetados desde que a sirene tocou [3], mais de uma vez, anunciando um rompimento que O alerta de risco de rompimento se deu apenas nunca aconteceu. O turismo no distrito dois meses após a crime de Brumadinho e simplesmente acabou, pondo fim a fonte de pouco mais de 3 anos do desastre em Bento subsistência de vários pequenos empresários. Rodrigues/Mariana. Como se não bastasse, a Para amenizar a situação, a Vale começou a mesma barragem (Sul Superior) entrou em fazer doações diárias em forma de vouchers a alerta máximo (nível 3) fazendo com que, os toda população, o que se tornou uma moeda moradores da cidade deixassem suas casas às local [4]. Com o início da pandemia, esses pressas, em razão do risco iminente. Em busca pagamentos foram suspensos, e foram criadas de local seguro, as pessoas foram abrigadas na diversas exigências para recebê-lo, sob a quadra poliesportiva do município, sem maiores justificativa de isolamento social, contrariando o informações sobre o que estava ocorrendo. acordo que os moradores tinham com a empresa. Isto é, em um momento que até o Para além desse risco, a cidade estava desde o governo federal percebe a necessidade de fim de janeiro deste ano recuperando-se de garantir uma renda básica para os cidadãos, e a enchentes. O período chuvoso teve fim, mas a sociedade civil se organiza para aumentar as situação emergencial, não, uma vez que a doações e as redes de solidariedade, a empresa preocupação agora é com os casos suspeitos decide por reduzir a contribuição que deve aos de COVID-19. Como ficar em casa, quando a moradores. qualquer momento uma sirene pode tocar, e você terá de partir sem saber para qual direção A empresa Vale, responsável pelos dois maiores já que não são feitos treinamentos de auto crimes socioambientais no Brasil, não salvamento? interrompeu suas atividades em meio a pandemia, sob aval do governo federal, que E como confiar nas informações que chegam? considerou a atividade minerária essencial. Em André do Mato Dentro, a justiça autorizou a Logo esta, uma das atividades que causa maior Vale a ter livre acesso às terras todos os injustiça ambiental - desigual distribuição dos terrenos na região do Complexo Minerário Mina benefícios e ônus ambientais. Além disso, esse Gongo Soco, a mais de 60 km de Belo Horizonte cenário não é vivenciado apenas no – ou seja, licença para desmatar e abrir um bur- Quadrilátero Aquífero-Ferrífero, ou mesmo um
1 REVISTA QUADRILÁTERO. O Terrorismo de Barragens como Violação de Direitos Humanos. Disponível em: https://revistaquadrilatero.wordpress.com/2019/05/15/o-terrorismo-de-barragens- como-violacao-de-direitos-humanos/. Acesso em 10 junho de 2020. 2 The Intercept Brasil. VALE APROVEITOU PÂNICO EM MG PARA CONSEGUIR AUTORIZAÇÃO PARA OBRA INVIÁVEL QUE BENEFICIA UMA DE SUAS MINAS. Disponível em: https://theintercept.com/2019/12/02/vale-panico-mg-obra-inviavel/. Acesso em 10 jun de 2020. 3 ESTADO DE MINAS. Centro de Macacos vira cenário de medo e desespero após sirene da Vale. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/02/17/interna_gerais,1031338/centro- de-macacos-vira-cenario-de-medo-e-desespero-apos-sirene-da-vale.shtml. Acesso em 10 jun 2020. 4 EL PAÍS. A cidade que vive sob os efeitos da ‘lama invisível’. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-23/a-cidade-que-vive-sob-os-efeitos-da-lama-invisivel.html. Acesso em 10 jun de 2020.
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mesmo um privilégio às avessas brasileiro. As mineradoras estão aproveitando do momento de crise para prosseguirem e incrementarem suas atividades em todo o mundo, como pode ser acompanhado na Nota Global [5] assinada por mais de 300 organizações de vários países. Além disso, foi publicado um relatório que exemplifica essas práticas de forma mais direta [6], nas Américas, na região do Pacífico Asiático, na África continental e na Europa.
Além das mineradoras seguirem funcionando em total negligência da ameaça real, colocando em risco os trabalhadores [7] e suas famílias, o relatório mostra como os governos estão utilizando a crise para promover mudanças regulatórias que favoreçam o setor, em detrimento da vida das pessoas e do planeta. Pelo exposto, torna-se cristalino como água que ainda que se esteja diante de uma pandemia, que coloca em situação de risco todas as pessoas e países do mundo, existem grupos que sofrem mais para atravessar esse período. Desde antes da pandemia, suas pautas eram de proteção às suas terras, às matas, às águas e garantia de condições básicas de vida. Existem diversas faces nesta crise: enquanto para uns, o #FiqueEmCasa seja uma opção desconfortável, mas que se pode tolerar sem interferência em seus rendimentos, para outros, para sobreviver, não existe essa possibilidade, ou ela é feita a duras penas.
Por
:
Victória Veloso Faraco
Mestrado
-
Direito UFMG
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001. MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018. SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Ed. Hucitee, 1993. __________________ 5 O setor global da mineração aproveitando a pandemia da COVID19: tendências, impactos e respostas. Disponível em: http://emdefesadosterritorios.org/nota-global-o-setor-global-da- minerac%cc%a7a%cc%83o-aproveitando-a-pandemia-da-covid-19-tende%cc%82ncias-impactos-erespostas/. Acesso em 10 jun de 2020. 6 MINING WATCH. Voices Voices from the Ground: How the Global Mining Industry is Profiting from the COVID-19 Pandemic. Disponível em: https://miningwatch.ca/publications/2020/6/2/voices-ground- how-global-mining-industry-profiting-covid-19-pandemic? __cf_chl_jschl_tk__=9a0865d2e400bfae13046d052f686faa740148b7-1591823457-0- AW7TQbaB0zK5- iyVSZm9wpUKnPEwYcFHQ0IqEsKCLGEVCk_M_Fc3V6Tm5dAIW19EiBuWal86LB046yh- bre6CIokd6_JunlARLcIE3ESsnKe4AUMM06WvaMK_JLQPtDEAdy1MXUa9QDf0JEc27dlMNBVSpKe5rRv9AdxVB-jLE1MUnC20cxIJeI1qHllB71qRgQnrVknR9quqPJ3E5uTT- 2dwGEpEyOwd5gP8_Lh7RG9BSkJIPfZ4Vbm1KYFsz4ZYaIVOlfVS3yEJWHlFpkGJTfIz9CNVgyJJP4- lOA9paky5FNQG63a4SsRVklxYgTe3PigUXxYIMm7z6WowNaGqmTdOSw6GCNdNeZeXTMFIN8wWI_a0_SggB PzfKFnEiIOGmKxAsLuvimjYj4YuirDc. Acesso em 10 jun 2020 7 Para maiores informações, consultar: https://observatoriodamineracao.com.br/infeccao-por-covid-19- explode-entre-trabalhadores-da-vale-no-para-e-cidade-entra-em-colapso/.
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Recomendação da casa. O texto desce melhor se acompanhado por duas latas de cerveja
Todo torcedor tem a sua derrota. Aquela, que escorregou de suas mãos. A que você jurou que não ia ver o programa esportivo do dia seguinte. Mas viu, teve que ver, só pra poder assistir de novo aquele lance duvidoso, e se indignar com o comentarista que não concorda com sua opinião. Aquela, que você procura de vez em quando escondido no Youtube. A que, se comentada nas rodas de torcedores, faz todos suspirarem. Aquela, caro leitor, que vem logo em sua cabeça no momento em que você me lê. Nesse momento, leitor, quase consigo te chamar de amigo. Sei o que você sente, sinto sua raiva, a sua mágoa ao descer das linhas. Acredite, me dói escreve-las também. Alguns torcedores podem ter a pompa e o orgulho de dizer que do lado de lá da cidade esse sentimento é mais amargo. Não se engane, arde igual. E eu sei que no fundo você sabe disso. Estou relembrando esses momentos dolorosos ao seu lado, quase amigo, para te tentar fazer entender o valor dessa derrota. Veja bem, não se engane, não quero que a deixe de ter mágoa, mas quero que você entenda sua importância na sua formação como torcedor. Se engana aquele que pensa que o pertencer a uma torcida se constrói nas vitórias. Afinal, qualquer turista pode sentir o êxtase do gol, da vitória suada, aquela do último minuto. Mas só você, torcedor, junto dos seus, pode sentir o frio da derrota. Acredite, aquele desconhecido que comemorou junto contigo também se comove com o silêncio ensurdecedor do ônibus de volta pra casa, mas você meu amigo, você o consegue tocar. É a partir daí que você odeia ainda mais o seu rival. Como podem eles tirar sarro num momento de tanta dor? Como podem eles, LOGO ELES, falarem alguma coisa, se não viram, se não chegaram até lá, se não sentem, se não vibram - e nem nunca vão vibrar- como você? Acredite, você faria o mesmo. É depois dessa derrota, torcedor, é que você reconhece os seus, os entende, os acalma. É com eles que você fica a madrugada inteira remoendo, comentando sobre os “e se” e sobre os erros de arbitragem. É por causa dela que seu sofrimento é coletivo, e é ela a razão dos seus olhos encherem d’água. É por ela que você canta até sua voz falhar por onze marmanjos indevidamente bem remunerados. Por que você sabe a dor que sente caso eles percam, e entende que essa dor não é só sua. Acredite, seria melhor sem ela. Mas não existe futebol sem ela, não existe amor sem ela.
ACINÔRC
A derrota.
Por: João Pedro Pessoa Herthel Silveira - Direito UFMG 19
OGITRA
De grades abertas para a tortura: as prisões brasileiras e a pandemia do COVID-19 1. Do Navio Negreiro ao camburão Desde pequeno geral te aponta o dedo No olhar da madame eu consigo sentir o medo Você cresce achando que é pior que eles Irmão quem te roubou te chama de ladrão desde cedo.(DJONGA, 2019)
.O Estado brasileiro foi fundado a partir do genocídio da população indígena, escravização de negros africanos e de povos indígenas remanescentes para o estabelecimento de poder político e socioeconômico das elites brancas europeias. Quando as pessoas antes escravizadas foram formalmente libertas da condição de escravo não foram incluídas como cidadãos, e sim colocadas à margem. As sociedades que vieram a constituir a chamada América Latina foram as herdeiras históricas das ideologias de classificação social (racial e sexual) e das técnicas jurídico-administrativas das metrópoles ibéricas. Racialmente estratificadas, dispensaram formas abertas de segregação, uma vez que as hierarquias garantem a superioridade dos brancos enquanto grupo dominante. (GONZALEZ, Lélia, 1988, p.73)
As técnicas jurídico-administrativas ligadas à expansão da lógica punitivista foram centrais para consolidar a exclusão dos descendentes daqueles que outrora foram escravizados. Condutas como mendicância e vadiagem [1] foram criminalizadas, bem como aumentou a perseguição a expressões culturais periféricas e ligadas a população negra, como capoeira e rodas de samba, e mais recentemente aos duelos de rap e bailes funk. Outro elemento central na consolidação do encarceramento em massa e extermínio da população negra foi a política de “guerra às drogas”, que na prática é uma guerra contra a população negra e periférica, com recorte territorial e racial de apreensões e operações policiais, que se concentram nas periferias e escolhem pessoas marginalizadas como alvos de revista. As prisões são espaços de violação de direitos por natureza, retirar a liberdade de alguém por si só é um processo violento que só se legitima dentro da lógica de proteção da propriedade e da manutenção do poder por uma classe política e social. Dentro desse contexto, tipificar determinadas condutas, direcionar as operações policiais às periferias, ignorar ilegalidades manifestas em tais operações, bem como estabelecer mecanismos de perpetuação de injustiças são escolhas políticas. Desse modo, não é equívoco afirmar que todo preso é um preso político.
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1 No Código Criminal do Império de 1930 o artigo 295 do referido Código previa a vadiagem como: "não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir, depois de advertida pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente". O artigo 296 tratava da mendicância. Hoje ainda a vadiagem é prevista no artigos 59 da Lei das Contravenções Penais.
2. O (não) acesso à saúde no cárcere Não esqueça os óbitos coletivos de presidiário Que sobe um por dia sob custódia do Estado Pra opinião pública o cortejo tem aceitação Se o CEP do falecido indicar bolsão de exclusão (TADDEO, 2020)
Em Minas Gerais, 40% das unidades prisionais não têm sequer consultório médico [2] , e mesmo nas que possuem, não há efetivo de médicos o suficiente para atendimento nas unidades. Mesmo famílias vulneráveis socioeconomicamente, se vêem muitas vezes obrigadas a arcar com o custo de uma consulta particular para que o familiar preso seja atendido. A falta de disponibilidade de agentes para acompanhar o preso doente para consultas é sintomática, fazendo com que os internos só sejam de fato levados para as Unidades de Pronto Atendimento em casos excepcionais. O confinamento e a superlotação aliados às condições precárias de higiene e acesso à tratamento médico tornam as prisões brasileiras locais de grande proliferação de doenças. Mesmo doenças tratáveis nesse ambiente de negação de direitos acabam sendo consideravelmente mais letais do que entre a população em geral. A tuberculose é um gritante exemplo disso, com meios de transmissão semelhantes aos da COVID-19, de todas as pessoas contaminadas pela doença no Brasil, 11% estão privados de liberdade e 87% dos que estão em liberdade contraíram a doença na prisão [3]. Por mais que as visitas sociais nas unidades prisionais estejam suspensas durante a pandemia da COVID-19, o cárcere tem contato com o mundo externo, ao contrário do que é percebido no imaginário social. Há uma massa de trabalhadores que atuam nas prisões, que utilizam transporte público, mantêm contato com o ambiente externo e acabam por, quando contaminados, levar o contágio para dentro das unidades. Uma vez dentro das unidades, a proliferação do vírus é inevitável. Em meio a esse cenário, a chegada do COVID-19 nas prisões é uma tragédia anunciada.
3. Na contramão das recomendações relacionadas à higiene e limpeza Não tem mas, não tenta a sorte nem se meta Se você nunca chorou pela morte de gente preta E não sabe o que é nascer e não ter berço É inconcebível Igual Machado de Assis num ter verso Ou morrer tentando provar Que é tão ser humano quanto (AMIRI, 2018)
O estado não fornece itens de higiene e limpeza o suficiente para as pessoas privadas de liberdade sob sua custódia, em flagrante descumprimento ao que prevê a Lei de Execução Penal (LEP) [4] . As famílias são quem enviam os kits de materiais essenciais aos seus familiares presos, geralmente durante as visitas sociais. Em Minas Gerais, internos denunciaram que o estado forneceu, em meio à pandemia, três sabonetes a serem divididos entre 25 presos durante o mês de março.[5] 2 Infopen, junho/2019. 3 Disponível em: https://bityli.com/dwd73, acesso em 03 de junho de 2020. 4 No seu artigo 12, a LEP prevê: “A assistência material ao preso e ao internado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas.”. 5 Disponível em:https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/03/24/interna_gerais,1131996/ detentos-cobram-kits-de-higiene-como-vamos-dividir-tres-saboes-para.shtml, acesso em 03 de junho de 2020.
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Desde as suspensões das visitas devido à crise sanitária gerada pelo COVID-19, os presídios proibiram os familiares de levar os materiais de higiene e limpeza presencialmente, estabelecendo que esse envio deve ser feito por SEDEX. Essa exigência gerou vulnerabilidade, é um custo a mais e muitas famílias pararam de mandar os kits por impossibilidade financeira. Outro obstáculo colocado pelo poder público para a entrega dos kits é a exigência de que só poderiam ser enviados por pessoas com cadastro de visitação. Em Minas Gerais, por exemplo, é exigido que haja união estável para que as companheiras visitem, mulheres sem união estável que tentam enviar kits de higiene e limpeza têm os kits devolvidos com a mensagem “namorada não entrega kit”. Mesmo quando os kits não são devolvidos, há denúncias de extravio dos kits dentro das unidades. Nesse contexto, associações de familiares de presos pelo Brasil têm realizado campanhas de arrecadação de recursos para a compra de kits de higiene e limpeza para pessoas privadas de liberdade. Mesmo com a arrecadação, as famílias têm encontrado dificuldade para a entrega, a exemplo do Ceará, onde as doações arrecadadas tiveram que ser devolvidas, pois a Secretaria de Administração Prisional, que outrora tinha autorizado as doações, decidiu de última hora por barrar. Em Minas Gerais, a campanha de arrecadação [6] tem funcionado, apesar de o valor arrecadado ainda ser muito inferior ao necessário para a compra dos kits de todos os internos que necessitam.
4. Os bondes da ilegalidade Sistema ditador de dentro das muralhas Transforma um inocente em mais um, um ser canalha Relatos de tortura e abuso do poder Quebra ele,bate nele,que é pra ele aprender (HANSEN, 2018)
Os “bondes” ou “carrinhos” como são chamados, são as transferências de presos de uma unidade prisional para outra, em grupos, e muitas vezes injustificadamente e sem autorização judicial. As secretarias de administração penitenciárias responsáveis ignoram as garantias da LEP, como a manutenção do direito à visitação, dificultando as visitas quando elas retornarem, pois o deslocamento se torna mais oneroso para as famílias, seja pelo tempo distância, seja pelo preço do transporte. Essa prática durante a pandemia tem gerado medo por parte dos internos e das famílias. Um exemplo ocorreu no Ceará, onde 51 internas que estavam em uma unidade sem casos confirmados de COVID-19 foram transferidas para unidade com surto da doença [7]. Em Minas Gerais, as transferências de presos aumentaram em mais de 60% [8] , mais de 400 presos foram transferidos da Penitenciária Nelson Hungria, na região metropolitana, e a maioria foi para a penitenciária de Formigas, a 200 km da capital. As transferências são injustificadas e configuram abuso de poder.
5. A velha novidade de colocar presos em contêineres
6 Disponível em: https://www.instagram.com/p/CBEURdvpGfu/, acesso em 07 de junho de 2020. 7 Disponível em: https://bityli.com/0yH3A, acesso em 03 de junho de 2020.
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A carne mais barata do mercado é a carne negra Só-só cego não vê Que vai de graça pro presídio E para debaixo do plástico (SOARES, 2002)
O uso de contêineres no Sistema Prisional do Brasil já foi alvo de denúncias na Organização das Nações Unidas (ONU) por violar os direitos humanos das pessoas presas. O caso mais emblemático foi o do chamado “presídio de lata”, localizado no Espírito Santo, onde a temperatura nas celas metálicas chegavam a 50 graus. Tal presídio foi desativado em 2010 depois de determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e, depois disso, outras tentativas de uso de contêineres no sistema prisional foram barradas judicialmente. Recentemente o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), votou sobre o uso de contêineres no ambiente prisional. O argumento utilizado é o de que tais ambientes seriam destinados aos internos com suspeita ou confirmação de infecção por COVID-19, e que seriam respeitadas diretrizes sanitárias. Porém não há na materialidade nenhum motivo para acreditar que essas diretrizes seriam cumpridas. A aprovação desse projeto abriria um precedente para o retorno do uso de contêineres no sistema prisional, principalmente pelo fato que essas estruturas são caras e dificilmente seriam lidas na prática como uma solução meramente paliativa. Coletivos formados por egressos, familiares de presos e organizações de defesa de direitos humanos se uniram contra a aprovação do uso desse tipo de estrutura no sistema prisional e a partir da Agenda Nacional pelo Desencarceramento (AGENDA). Foi articulada a campanha nacional #NãoAosConteineres. Após pressão da sociedade civil, o CNPCP, em votação conturbada [9] , vetou o uso de contêineres no cárcere.
6. A manutenção da injustiça e da tortura Ao levarem em consideração as leis do Brasil oficial, os inimigos dos pobres chegam a conclusão, de que mesmo chacinando gerações e mais gerações de favelados, serão sempre considerados inocentes e absolvidos por seus jurados e juízes. Porém, o mesmo não se pode afirmar em relação aos julgamentos ocorridos nos plenários de compensado e madeirite, apoiados no código penal das sub-pátrias. Todo opressor canalha sente, que existe um mandado de busca e apreensão expedido em seu nome, pela nação dos favelados. Todo opressor canalha sente, que a sua prisão preventiva está decretada, que uma vez preso, não terá direito a fiança ou habeas corpus e que jamais poderá esperar por seu julgamento em liberdade. (TADDEO, 2012)
As rebeliões têm tomado conta de muitas unidades prisionais durante a pandemia do COVID-19. Em vídeo gravado durante a rebelião na Unidade Prisional de Puraquequera, no Amazonas, o interno afirma que o motivo da revolta são as condições desumanas impostas: “sem alimentação, sem remédio, tem irmão morrendo aqui dentro, tá entendendo!?” [10], a resposta do Ministério da Justiça no entanto é no sentido de comprar armamento para coagir as rebeliões [11] e nunca no sentido de escuta das demandas. No âmbito dos estados, as secretarias de administração prisional agem de forma a perpetuar injustiças, com as transferências irregulares, contratos sem transparência de fornecedores que lucram para fornecerem comida podre para os internos e regras descabidas para as visitas, como a exigência de união estável. 8 Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/05/08/interna_gerais,1145658 /transferencias-podem-aumentar-casos-de-covid-19-entre-detentos.shtml, acesso em 03 de junho de 2020. 9 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZYSrLYearLE, acesso em 29 de maio de 2020. 10 Disponível em: https://www.instagram.com/tv/B_sS6iXJd50/, acesso em 03 de junho de 2020. 11 Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-da-justica-quer-verba-contra - rebelioes-e-covid-19-nos-presidios-alem-de-visitas-virtuais,70003296898, acesso em 03 de junho de 2020.
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No judiciário, apesar de o CNJ ter recomendado [12] uma série de medidas desencarceradoras visando a diminuição o impacto da chegada do COVID-19 no sistema prisional, a decisão cabe aos Juízos da execução. Os Juízos em grande parte têm se negando a conceder prisão domiciliar ou liberdade, mantendo grupos de risco, presos provisórios e até presos do regime semiaberto no regime fechado sob justificativas que refletem o descaso de parte desse setor para com as vidas das pessoas presas. Dos cerca de 7.780.000.000 habitantes do planeta Terra, apenas três: Andrew Morgan, Oleg Skripocka e Jessica Meier, ocupantes da estação espacial internacional (...) por ora não estão sujeitos à contaminação pelo famigerado coronavírus. (Desembargador de São Paulo ao negar pedido de prisão domiciliar de mulher custodiada em presídio superlotado.) [13] Se um médico e um enfermeiro podem morrer cumprindo seu dever, por que um preso não pode morrer cumprindo sua pena? (Juíza do Tribunal de Justiça da Bahia.) [14] Alguns fazem a proposta de soltar todos os presos que não tenham sido condenados por violência ou grave ameaça. Estamos falando de todo tráfico de drogas, basicamente. Grande parte dos grandes traficantes foram condenados só por tráfico. E vamos soltar todos os traficantes do país? Não faz sentido. (Ex- Ministro da Justiça Sérgio Moro) [15]
A AGENDA tem buscado formas de enfrentamento a essa política genocida. Já foram inúmeros ofícios enviados, muitos deles sem resposta. Em Minas Gerais, os órgãos competentes se negam a responder os ofícios, as denúncias de tortura só aumentam, há racionamento de água nas prisões, superlotação, transferências descabidas e o tribunal de justiça não abre canais de diálogos com a população civil no que diz respeito a situação prisional. Familiares têm buscado se mobilizar, foi realizado um ato [16] em frente à Assembleia Legislativa para reivindicar o fim da tortura no sistema prisional. A AGENDA vem se reunindo com mais frequência durante a pandemia e acompanhando as denúncias e casos de violações de direito.
por: Vitória Maria Corrêa Murta - Direito UFMG
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMIRI. Perdoar nunca, esquecer jamais. In:TADDEO, Carlos Eduardo. O necrotério dos vivos. São Paulo, 2020. BRASIL. Lei de Execução Penal. Lei n° 7210, de 11 de julho de 1984. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. DJONGA. Had-Trick. In: DJONGA. Ladrão. Belo Horizonte, 2019. HANSEN, MC Luana.Funk da realidade. In:HANSEN, MC Luana. Luana Hansen no estúdio showlivre. 2018. SOARES, Elza.A Carne. In:SOARES, Elza. Do cóccix até o pescoço. 2002. TADDEO, Carlos Eduardo. A guerra não declarada na visão de um favelado. São Paulo, 2012. TADDEO, Carlos Eduardo. Um dia de injúria.. In:Amiri. Um dia de injúria/ Pantera preta. São Paulo, 2018. 12 Recomendação 62 do CNJ. 13 Disponível em: https://bityli.com/XtKnc, acesso em 03 de junho de 2020. 14 Disponível em: https://bityli.com/3m5MC, acesso em 03 de junho de 2020. 15 Disponível em: https://bityli.com/jjG1u, acesso em 03 de junho de 2020. 16 Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/06/04/interna_gerais,1153777/ coronavirus-familiares-de-presos-protesto-transferencias-e-to.shtml, acesso em 07 de junho de 2020.
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A vulnerabilidade do cárcere brasileiro perante a pandemia por: Eduarda do Prado Ribeiro & Maria Clara de Oliveira Gomes - Direito UFMG 2012 OGITRA
O Brasil antes da pandemia da COVID-19 já enfrentava crises, apresentando lacunas profundas em um complexo sistema estatal que falha no compromisso de amparar a população. Ficaram mais expostas tais fissuras frente a pandemia do coronavírus, denunciando a falta de investimentos estatais no setor carcerário e no Sistema Único de Saúde que o assiste, realidade que infere a extrema vulnerabilidade dos custodiados. O Sistema Único de Saúde (SUS), o único amparo público de controle da pandemia no país, e o Sistema Prisional Brasileiro sofrem com a insuficiência de verbas, prejudicando suas funcionalidades. Agravando a situação de carência recursal, em 2016, foi aprovada a Emenda Constitucional 95 que, em síntese, trata do congelamento de gastos públicos por um regime de vinte anos a partir de 2017, como uma tentativa do Estado de controlar o endividamento público (Vairão Junior, 2018). As necessidades da população brasileira já não eram atendidas antes da Emenda Constitucional mencionada acima e, no atual contexto da pandemia do COVID-19, a situação se agravou. Com isso, em março de 2020, a Ministra Rosa Weber do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em favor da suspensão da Emenda 95 para a área da Saúde Pública, cuja restrição orçamentária desencadeou severa decadência infraestrutural. A pauta foi aprovada em maio deste ano pelo STF, objetivando a destinação de verbas e manejos necessários para assegurar à toda a população proteção ao coronavírus, englobando também aquela pertencente ao Sistema Carcerário. Entretanto, tal determinação do Supremo não foi suficiente para proporcionar capacidade plena de atendimento a todo o SUS. Ademais, a eclosão da pandemia atual demanda ainda mais recursos a tal sistema, uma vez que a doença desencadeada pelo coronavírus não possui cura, apenas meios paliativos para os indivíduos acometidos pela enfermidade. No Brasil, de acordo com os dados do Ministério da Saúde, 614 mil pessoas já foram infectadas pelo novo vírus até maio do presente ano, dessas, mais de 30 mil morreram. Além disso, a baixa testagem da população e a carência de um controle público efetivo geram a subnotificação de casos e de óbitos (Prado et al., 2020). Sobretudo, é importante salientar que os testes estão sendo aplicados apenas em casos graves, sendo aqueles considerados leves ou assintomáticos não testados em sua maioria, como mostrado por Ribeiro e Bernardes (2020) em uma nota técnica da Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade Federal de Ouro Preto. A falta de políticas públicas do âmbito Federal e de alguns dos outros níveis governamentais, geram insegurança no contexto atual. Por conseguinte, exaltam-se as vulnerabilidades de determinados grupos sociais, em especial a população prisional brasileira, que habita ambientes com perigosos gargalos estruturais.
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O Cárcere no Brasil Em uma perspectiva de análise superficial ao âmbito do inchaço prisional, é de conhecimento geral de que as penitenciárias não proporcionam os mandamentos de dignidade humana, integração social e reeducação aos condenados. Nesse sentido, em uma realidade ideal e condizente com os preceitos do ordenamento jurídico, aquele que comete delito seria isolado em estabelecimento com condições dignas de existência. Haveria, portanto, o cumprimento de pena individualmente adequada a suas particularidades a fim de que não volte a delinquir e possa ser reinserido à sociedade ao fim do seu cumprimento de pena. A realidade, todavia, é diametralmente oposta àquela positivada em lei. Estipula o Departamento Penitenciário Nacional que, em novembro de 2019, o Brasil possuía população carcerária de 748.009 indivíduos, confrontando a estrutura disponível de apenas 442.349 vagas. Tais dados apontam que o déficit do sistema prisional atinge o número de 312.925 vagas, comparando a capacidade idealmente estipulada e o número de apenados que ocupa tal estrutura. Nesse sentido, constata-se que a superlotação do anteparo carcerário brasileiro é uma realidade gritante, de maneira que o atual sistema não comportaria adequadamente nem mesmo dois terços do número de indivíduos que ele deveria atender. Ademais, é importante grifar que 30% da população presa atualmente cumpre prisão preventiva, ou seja, não sofreu condenação em sentença penal transitada em julgado e, por conseguinte, deveriam ter o direito de enfrentar o processo penal em liberdade uma vez que são presumidamente inocentes. Observa-se, a partir da análise deste dado, que a liberdade passa a não ser a regra no processo penal, o que implica em crescimento exponencial da população carcerária e sobrecarga à estrutura existente. Além dos dados indicativos da superpopulação presa no país, tem-se que 70% daqueles que cumprem pena em presídios, uma vez livres da execução penal, voltam a cometer crimes, segundo estudos realizados pelo Conselho Nacional de Justiça. Nesse ponto, os números são bem claros ao apontar a falência carcerária brasileira, incapaz de tornar a pena justa e humana. A superlotação e a carência estrutural analisadas anteriormente geram consequências extremamente gravosas, dentre elas a crise sanitária nos presídios nacionais. Por esse ângulo, a realidade vivida pelos presidiários é caracterizada por celas lotadas sem condições básicas de higiene, não havendo ventilação adequada ou exposição ao sol. Não há colchões para todos, fazendo com que os presos tenham que revezar entre si para dormir. Em decorrência da falta de espaço, os apenados manuseiam o alimento entre si para chegar a todos os que habitam a cela. Muitas vezes, embalagens de marmitex vazias são utilizadas para que os detentos façam suas necessidades fisiológicas pois não há toalete para todos. Tais narrativas são cotidianas nos maiores presídios do país e além de demonstrarem as condições precárias e desumanas às quais os presos sofrem nesses estabelecimentos, escancaram a propensão a propagação de doenças em tais ambientes. Antes mesmo da pandemia do novo coronavírus, já eram noticiados, anualmente, surtos de doenças respiratórias entre os presos, destacando-se crises de pneumonia e de tuberculose. Ambas são moléstias contraídas pelo ar e possuem alto índice de contágio, e, ante a situação de aglomeração e precariedade como a das celas brasileiras, são facilmente transmitidas aqueles que estão em situação de cárcere.
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Segundo estudos realizados pela FIOCRUZ, em 2017 no Rio de Janeiro, estipula-se que 83% das mortes entre indivíduos em cumprimento de pena são causadas por doenças contraídas nos estabelecimentos prisionais, situação que poderia ser minimizada caso houvesse condições sanitárias mínimas e atendimento médico adequado a esta população. Tal cenário deriva, principalmente, da ausência de consultórios médicos, pois um a cada quatro presídios não dispõe desses. Soma-se a isto o fato de que 48% das penitenciárias não contam com farmácia ou sala de estoque de medicamento e, ainda, 81% desses estabelecimentos não possuem sala de lavagem ou descontaminação em suas estruturas. Depreende-se, segundo os dados fornecidos pela plataforma online de informação do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), que não há amparo a saúde dos encarcerados, sendo raras as estruturas adequadas para tratar e conter doenças que, fora do estabelecimento prisional, possuem baixos índices de letalidade. Nessa perspectiva, fica claro que os gargalos de superlotação, falta de higiene e carência de estruturas de atendimento à saúde nos presídios são realidades que tornam a população carcerária um grupo vulnerável a contração e transmissão de doenças, sendo mais propensa ao óbito em decorrência de tais moléstias. Consequentemente, a situação não é diversa com o novo coronavírus, como será exposto a seguir. O sistema prisional frente a COVID-19 Objetivando-se a prevenção e o controle da expansão do vírus COVID-19 no âmbito carcerário, foi criado pelo DEPEN um Grupo de Trabalho (GT) cujo foco é traçar planos de precaução nos âmbitos Federal e Estadual, contando com a cooperação da Fundação Fiocruz. Assim, o GT montou o plano de triagem para avaliar os indivíduos que acabaram de ingressar no sistema prisional e aqueles que apresentam sintomas dentro de suas unidades. Tal medida almeja identificar possíveis contaminados e, com isso, conter a expansão do coronavírus nas penitenciárias. O referido processo de triagem é conduzido por perguntas sistematizadas acerca de sintomas ou possível contato com alguém contaminado. No entanto, o procedimento adotado não envolve a realização de testes, desprezando prováveis casos assintomáticos, os quais apresentam risco de transmissão análogo aqueles sintomáticos. Nessa esteira, assim como ocorre à população não carcerária, os testes para coronavírus são apenas aplicados aos casos sintomáticos mais graves, afetando a produção de dados condizentes com a realidade. Aponta-se, portanto, um alto número de casos não comunicados às Secretarias de Saúde, sendo um grande empecilho para a contenção das contaminações. Dados obtidos no painel de controle disponibilizado pelo DEPEN alertam que, até o início do mês de junho de 2020, foram confirmados 1.718 casos de COVID-19, 630 suspeitas, e 46 óbitos na população carcerária total. Estes números, por si, já indicam a falha estatal em proteger os presos frente a pandemia, mas podem ser considerados pouco expressivos em relação a população total de quase 760 mil pessoas. Porém, é importante ressaltar que apenas 5.906 testes foram realizados, sendo destes quase 30% apontados como positivos. Este fato confirma a subnotificação resultante da insuficiência de testes de coronavírus realizados em prisões de todo o país.
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A partir do momento em que aproximadamente 93% dos presos em todo o país não foram testados, é impossível obter uma noção clara da situação real de contaminação do COVID-19 nas penitenciárias. Consequentemente, prejudica-se a adoção de medidas realmente efetivas para a tutela desses indivíduos. Desse modo, a falta de dados precisos em um contexto de pandemia leva a insegurança de presos e familiares, que além de não ter apoio estatal, também não tem informações necessárias para se resguardarem. O Grupo de Trabalho indica, ainda, que uma vez que indivíduos sejam identificados como suspeitos ou como portadores de COVID-19, o recomendado é que estes sejam isolados em celas individuais. Nestes casos, os custodiados apenas deveriam ser transferidos às unidades prisionais comuns quando descartado o diagnóstico de coronavírus ou após alta médica. Entretanto, como confirma o departamento de informação da DEPEN, em muitas cadeias não há sequer consultórios médicos e estoque de medicamentos, que dirá espaços destinados ao isolamento e tratamento de indivíduos contaminados. Inexiste, por conseguinte, estrutura capaz de isolar e oferecer acompanhamento médico pleno a todos aqueles que apresentarem sintomas característicos ao coronavírus. Os esforços para combate a pandemia nos presídios são preteridos por fissuras de infraestrutura carcerária, prejudicando a prevenção ao coronavírus. Visto que as bases de controle atuais são ineficientes, as agendas de gestão da COVID- 19, como efeito, são deficitárias. Um exemplo prático de tal insuficiência é a impossibilidade de se aplicar o distanciamento social entre os presos (Sánchez et al., 2020). Presos em contêineres Tendo em vista a expansão dos casos de coronavírus no país e o problema de como tratar e isolar presos infectados, foi enviado o Ofício nº806 redigido pelo Diretor-Geral do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). Tal ofício, enviado em abril de 2020, expõe a necessidade de implementação de ações para o provimento de vagas temporárias e emergenciais em unidades prisionais, propondo a criação de tais vagas por meio de instalações provisórias com estruturas metálicas, uso de contêineres adaptados e outras estruturas análogas. Ademais, o documento apresenta proposta de minuta de resolução para flexibilização das regras da arquitetura penal. Em outras palavras, a proposta consiste em hospedar presos que forem diagnosticados com a nova doença e não manifestem sintomas muito graves em contêineres, semelhantes aos usados na construção civil, de maneira a mantê-los isolados temporariamente nessas estruturas. Além disso, foi apresentada a possibilidade de que presos que integrem grupos de risco também cumpram temporariamente suas penas em tais contêineres, reunindo idosos, asmáticos, hipertensos e outros cuja saúde fosse identificada como mais frágil frente ao COVID- 19. A sugestão foi alvo de manifestação contrária de diversas entidades e órgãos, dentre eles a Defensoria Pública da União e de vários Estados, o IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o IDDD - Instituto de Defesa do Direito de Defesa e a Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/SP. Segundo as considerações feitas pelas referidas entidades, os contêineres ou celas modulares não proporcionam ventilação adequada, água corrente acessível em tempo integral e a delimitação de
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distância mínima de um ou dois metros entre os custodiados, sendo esta uma proposta inviável e ineficaz à tutela da saúde desses. Destacaram ainda, prudentemente, experiências de encarceramento em contêineres já foram repudiadas pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária em outros momentos, como, por exemplo, a ocorrida em 2009 no estado do Espírito Santo. As manifestações contrárias ao Ofício nº806 se pautaram, em um âmbito geral, na incompatibilidade do uso de um instrumento de acondicionamento de carga a fim de abrigar homens e mulheres, diante dos dispositivos constitucionais que asseguram a dignidade humana e a vedação de penas cruéis. Ademais, atentam o risco de se oferecer uma maior flexibilidade a arquitetura prisional, ao passo que pode abrir margem a exposição dos apenados a ambientes mais precários. Em reunião no mês de maio deste ano, o CNPCP vetou o uso de contêineres como abrigo para distanciar presos com suspeita de coronavírus, proibindo a possibilidade apresentada pelo DEPEN. Entretanto, os membros de tal Conselho autorizaram, na mesma ocasião, o uso de estruturas temporárias para cumprir o objetivo de criação de vagas no sistema prisional para tentar conter a expansão do vírus. Esta decisão cria inseguranças sobre as condições em que as referidas estruturas provisórias serão adotadas e qual o prazo em que serão mantidas, gerando alerta para entidades de defesa dos direitos humanos. Conclusão A carência de políticas públicas em prol de criar condições dignas de encarceramento, condizentes com as normas positivadas em lei, faz com que a cadeia no Brasil seja um ambiente insalubre e inadequado ao cumprimento de pena. Consequentemente, a população carcerária é um grupo social fragilizado e propenso a disseminação em massa de doenças, que, uma vez negligenciadas, levam muitos presos ao óbito. Tal realidade se agrava frente ao novo vírus, que possui alto índice de contágio e cuja cura ainda não foi encontrada, uma vez que as medidas propostas para contenção dos danos consequentes do COVID-19 nos ambientes prisionais não obtiveram sucesso, como demonstram os dados recolhidos pelo Departamento Penitenciário Nacional. Destarte, é imperioso que a estrutura prisional seja alvo de medidas realmente eficazes, a iniciar por investimentos governamentais, de modo a reparar as rupturas presentes. Somente assim, o anteparo prisional brasileiro poderá se tornar adequadamente equipado, a fim de atender à exigência de que aqueles que têm sua liberdade privada pelo Estado cumpram suas penas de maneira digna e humana.
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- Olha isso. Jorge tirou os olhos da luminosa tela de seu celular e obedeceu à ordem de Glauber, seu colega de trabalho, que encarava, com uma profunda expressão de contrariedade, as mensagens recebidas em seu WhatsApp. Estavam dentro do elevador, a caminho do estacionamento. - Mandaram no grupo da minha família – e estendeu o aparelho para Jorge. A foto preenchia a engordurada tela do smartphone, e sua baixa definição – os pixels eram visíveis sem a menor necessidade de aumento – devia-se às milhares de vezes em que a imagem fora baixada e reencaminhada por usuários da rede social. Seu conteúdo era o altar iluminado de uma igreja, e um padre, acompanhado de dois coroinhas, ocupava o centro da composição. Aos pés deles, encontravam-se sentadas três mulheres com os seios à mostra, segurando cartazes de protesto. - Inacreditável – a voz de Glauber transmitia uma enorme indignação. – Olha do que as feministas são capazes de fazer. Como aceitar uma coisa desse tipo? São um bando de putas desgraçadas. Inadmissível, imperdoável. Deviam metralhar essas vadias comunistas, matar todas. Suas palavras vieram em cascata, sem pausas entre um e outro termo, como se esse mesmo discurso já tivesse sido proferido antes. E realmente fora, com algumas modificações: há dois dias, Glauber mostrara para o colega de trabalho a imagem de atores da Globo com Fidel Castro, apenas trocando as palavras “feministas”, “putas” e “vadias” do último discurso por “artistas”, “filhos da puta” e “idiotas”, respectivamente. Na ocasião, Jorge notara a evidente falsidade da fotografia, uma montagem tosca e amadora que denunciava, sem esforço algum, a sua falta de verossimilhança. Opôs-se ao colega e prontamente recebera uma enxurrada de perguntas acusatórias: “Então você é esquerdista?”, “Você sabe que esses socialistas querem acabar com as famílias brasileiras?”, “Você quer que o Brasil vire uma Venezuela?”. Assustado, Jorge decidiu não o contestar mais. Percebia que a exposição de fotos e notícias falsas era uma forma de Glauber reafirmar as suas convicções, mostrando ao mundo que estava certo e que havia provas cabais para sustentar o seu ponto de vista. Assim, ele se sentia seguro, forte e inabalável.
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No momento em que Jorge responderia o colega com uma frase genérica e cordial (“Sim, isso mesmo”), a porta do elevador se abriu. Aliviado, despediu-se de Glauber e dirigiuse para seu carro. Em poucos minutos, seu automóvel integrou-se à frenética massa de veículos que percorriam as ruas no horário de fim de expediente. Jorge ligou o rádio e os ruídos insistentes dos motores e das buzinas foram logo substituídos pelas vozes dos comentaristas políticos. Ouvia-os para sentir que estava se informando, que não estava permanecendo alienado; mas na verdade a verborragia dos jornalistas, as desgraças e os escândalos políticos desgastavam-no, e pareciam dobrar ainda mais a sua fadiga. Parou o carro no sinal fechado e pôs-se a observar os demais veículos ao seu redor como sempre fazia. Era começo de outubro, e nos últimos dias grande parte dos automóveis apresentavam adesivos de apoio ao mesmo candidato. A imagem colada nos vidros dos carros era sempre a mesma: um rosto sério, rígido, implacável e inflexível em alto contraste. Sua expressão destoava dos tradicionais retratos de políticos durante campanhas eleitorais, sempre sorridentes, alegres, a simbolizarem promessas de bemaventurança. Promessas que, aos olhos de muitos, não se concretizaram – ou, se foram, acabaram soterradas sob pilhas de escândalos de corrupção, de casos de caixa dois, de pagamentos de propinas, de compras de votos, de desvios de verbas, de lavagens de dinheiro, de crimes de responsabilidade fiscal, de má gestão de recursos, de depósitos suspeitos de quantias elevadas, dentre outros casos que se avolumavam nos telejornais do horário nobre. Agora, a população clamava por ordem e progresso. - Ô filho da puta! – gritou o motorista do carro de trás, buzinando. O semáforo abrira.
por: Lucas Perrone Camilo - Direito UFMG
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Por que ser contra o encarceramento em massa?
Por: Samuel Rivetti Rocha Balloute Direito UFMG
O termo “encarceramento em massa” se refere à prisão de imensos contingentes populacionais. Nasceu nos EUA, quando, a partir da década de 1980, o presidente Richard Nixon inaugurou a guerra às drogas, dando início ao aumento exponencial de presos no país. No Brasil, o encarceramento em massa também é uma realidade. Impulsionado principalmente pela guerra às drogas, a maioria dos que são presos por tráfico portam pequena quantidade de droga (CARVALHO; PELLEGRINO; ALQUERÉS, 2016) e não oferecem perigo concreto à sociedade. Neste contexto, a prisão aparece como solução para diferentes problemas: do tráfico ao assassinato, do furto aos crimes ambientais. Porém, será que o encarceramento – principalmente maciço – é o melhor modo de lidar com a criminalidade? Abaixo estão dez razões que deslegitimam esta afirmação. 1. Porque a prisão é um ato simbólico. Dentre o imenso universo de delitos que são cometidos diariamente, apenas um seleto número chega às agências executivas do sistema penal (polícia, Ministério Público e Judiciário). Na criminologia, a este fato se dá o nome de cifra oculta. Essa cifra oculta existe por diversos motivos, desde à “incapacidade operativa [das agências do sistema penal] ao desinteresse das pessoas em comunicar os crimes dos quais foram vítimas ou testemunhas” (CARVALHO, 2014, p. 174). Dessa maneira, o número de pessoas presas nunca equivalerá ao número de delitos que são cometidos. A prisão é um ato simbólico na medida em que, ao selecionar determinadas pessoas e atos, transmite à sociedade a visão de que o crime é combatido. Enquanto isso, suprime-se o enfrentamento às verdadeiras causas de muitos problemas que são tratados com a prisão. 2. Porque o sistema penal é seletivo. Devido à pequena capacidade de atuar em todos os crimes que acontecem – algo impossível – as agências executivas do sistema penal “devem optar pela inatividade ou pela seleção” (ZAFFARONI et. al., 2006, p. 46). Optando por esta última, elas se guiam pelo estereótipo, e atingem “apenas aqueles que têm baixas defesas perante o poder punitivo” (ZAFFARONI, et. al., 2006, p. 47), e que cometem delitos de fácil detecção (como roubos, furtos e pequeno tráfico de drogas). Com isso, outros tipos de crimes, muitas vezes mais graves, não são alcançados pelas agências. 3. Porque no Brasil a prisão é usada como forma de criminalizar a pobreza e de conter os indesejáveis.
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No Brasil, onde apenas 10% da população concentra quase metade da renda do país (IBGE, 2018), os indesejáveis correspondem à massa de excluídos do emprego, da renda, e de qualquer direito básico. Eles são os principais clientes do sistema penal e das prisões: dos encarcerados, mais de 60% são negros e pobres, e mais de 70% foram presos por crimes contra o patrimônio e relativos à Lei de Drogas. 4. Porque o encarceramento é uma forma de moralismo e de extermínio. Com a prisão, o Estado transmite uma imagem moralista de que “luta contra o crime”. Ao mesmo tempo, o que realmente ocorre é um extermínio “legalizado” da população pobre, altamente encarcerada em prisões com péssimas condições e alto índice de mortalidade. Como exemplo, apenas no Rio de Janeiro a taxa de mortalidade dos presos é cinco vezes maior do que a média nacional (FIOCRUZ, 2019). 5. Porque a prisão é racista. Mais de 60% dos que estão presos são pretos ou pardos, pobres e sem escolaridade (INFOPEN, 2017). Isto não é mera coincidência. Esta parcela da população tem mais chances de ser presa por tráfico de drogas (DOMENICI; BARCELOS, 2019) e menos chances do que os brancos de ser solta em uma audiência de custódia (DINIZ, 2016). Além disso, pretos e pardos são mais de ³⁄ da população mais pobre do país (IBGE, 2019), estando, portanto, mais vulnerável ao poder estatal. 6. Porque prender mais não resolve ou diminui a criminalidade. Desde a redemocratização, inúmeras leis penais foram criadas ou tiveram suas penas agravadas, como por exemplo a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei 11.343/06 – que aumentou a pena para o tráfico de drogas. Igualmente, o número de pessoas encarceradas vem crescendo vertiginosamente – quase dobrando de 2006 a 2016 – sem que se tenha observado diminuição dos índices de violência ou de cometimento de crimes. 7. Porque a prisão é cara e não recupera. Um preso custa em média R$ 2.400,00 aos cofres públicos (LIMA, 2019), e os índices de reincidência oficiais não ficam abaixo de 30% (IPEA, 2015). 8. Porque o preso sai da prisão pior do que entrou. No cárcere, o preso internaliza valores e uma imagem de si totalmente diversa da que vige na sociedade. Logo, “a prisão cumpre uma função reprodutora: a pessoa rotulada como delinquente assume, finalmente, o papel que lhe é consignado, comportando-se de acordo com o mesmo” (ZAFFARONI, 2001, p. 60). No Brasil isso é agravado, pois muitos, ao ingressar no sistema prisional, são obrigados a escolher a qual facção criminosa quer pertencer (ODILLA, 2014). Com isso, por exemplo, um condenado por furto, submetido à prisão e sujeito a estas condições, ao sair tem maiores chances de cometer crimes mais graves. 9. Porque lutar contra o encarceramento em massa é lutar contra o Estado de Polícia. O estado policial é aquele em que o Estado verticaliza as relações sociais, detendo um poder absoluto e arbitrário. De acordo com Zaffaroni (2007): “todo espaço que se concede ao Estado de Polícia é usado por este para estender-se até chegar ao Estado absoluto” (p. 167). Ao se legitimar o encarceramento em massa, aumenta-se o poder estatal e legitima-se o Estado Policial. Por conseguinte, mesmo aqueles que não estão presos são prejudicados, tocando diretamente toda a sociedade. 10. Porque não prender não significa não punir. A pena de prisão só aumenta a violência e os problemas sociais, e não toca nos pontos que interessam para solucionálos. Expropria a vítima, sem prestar-lhe a devida assistência, e se ocupa unicamente em punir o delinquente. Existem inúmeras outros modos de punir uma conduta considerada delituosa, que não perpetuam a violência, e que possuem resultados mais satisfatórios, como as penas alternativas e a justiça restaurativa.
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O CÁRCERE E A PANDEMIA: AS DIMENSÕES CRÍTICAS DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO PERANTE A EMERGÊNCIA DA COVID-19 O cárcere não implica isolamento social, pelo menos não nos termos da Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 que, de acordo com as orientações da Organização Mundial da Saúde, dispõe sobre as medidas para enfrentamento da pandemia. Ao contrário, do estado de insalubridade e superlotação do sistema carcerário, junto aos crescentes índices de transmissão da Covid-19 e à ausência de monitoramento eficaz, decorre um potencial mortífero: a sentença dos presos à pena capital do vírus. Os alvos das estratégias discursivas de hostilização dos presidiários, as quais ascenderam nas eleições de 2018, tornam-se explícitos. Este artigo se desenvolverá em três dimensões problemáticas: a sanitária; a jurídico-política; e a emergência carcerária. Na primeira, destaca-se a vulnerabilidade do sistema carcerário, reconhecido como “estado de coisas inconstitucional” nos termos da ADPF 347, e que no cenário criado pelo Sars-Cov-2 acresce o panorama das violações de direitos fundamentais e humanos dos presos, dos agentes penitenciários e da própria coletividade. Da crise sanitária se desdobra a jurídico-política, seja pela negligência do poder executivo perante as recomendações especialistas, o que agrava o quadro do combate do vírus singularmente nas prisões; seja pela política de morte, que nutre o substrato ideológico do programa de segurança pública que governa o Brasil e vibra aspirações verdadeiramente genocidas. Consequentemente, provém uma emergência no cárcere: um somatório de rebeliões, infecções e mortes ao contexto amplo e já gravíssimo da pandemia. A superlotação dos presídios, a insalubridade e recorrentes casos de violação dos direitos humanos são apenas algumas questões que perpassam a crise carcerária que o país enfrenta, sobretudo, em tempos de uma pandemia instalada pelo vírus Sars-Cov-2. É essa a outra face da crise.
I O Imperial College of London, no dia 08 de maio, apontou que a medida de intensidade de transmissão, no início da pandemia, indicava que cada infectado contaminava de três a quatro pessoas, em média. Transpondo o espectro de análise para o sistema prisional, deve-se considerar que o primeiro caso oficial de contaminação ocorreu no dia 08/04, no Pará, por um detento do regime semiaberto, ao passo que o primeiro caso oficial de morte pelo coronavírus no sistema foi registrado apenas 7 dias depois, no Rio de Janeiro, no regime fechado, o que sinaliza um descompasso no diagnóstico dos contágios; que oficialmente, no dia 19/05, haviam 755 confirmações, 471 suspeitas e 29 óbitos em todo sistema, e somente 11 dias depois (30/05) um total de 1312 confirmações (+557), 947 suspeitas (+476), 42 óbitos (+13) e de que até esta data haviam sido realizados em toda Federação apenas 5046 testes (14,8% do total de presos no sistema), em acordo com o DEPEN; e, por fim, que o Brasil, no dia 10/05 ocupava a 110a posição entre os países com maior número de testes por milhão de habitantes [1] , enquanto já no dia 30/05 ocupava o quarto lugar no ranking de óbitos (28.834) e o segundo no ranking de casos confirmados (498.440) [2] . Leia- se o óbvio: a intensidade de transmissão da doença em uma cela ou presídio superlotado e insalubre é bem maior, tal como as chances de um aumento radical dos óbitos. A realidade dos presídios é drasticamente pior do que mostram os dados. A Rede de Observatórios da Segurança elaborou a relação dos espaços voltados à saúde dos presos e mostrou a insuficiência das estruturas já existentes para a triagem, o isolamento e o tratamento de presos infectados no quadro da situação de alta intensidade de transmissão. São 14 celas de observação para 25 estabe
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1 EXAME. Brasil é o 110o local que mais faz testes de coronavírus por habitantes. Disponível em: https://exame.com/ciencia/brasil-e-o-110o-local-que-mais-faz-testes-de-coronavirus-por-habitantes/. Acesso em: 13 maio 2020. 2 SAMPAIO, Jana. Brasil se torna o quarto país com maior número de mortos por coronavírus. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/brasil-se-torna-o-quarto-pais-com-maior-numero-de-mortos-por-coronavirus/. Acesso em: 30 maio 2020.
lecimentos penais na Bahia; 15 para 36 no Ceará; 16 para 76 em Pernambuco; 12 para 50 no RJ; e 140 para 173 em São Paulo, por exemplo. O DEPEN, na vanguarda da proposição de soluções, encaminhou o Ofício no 806/2020 ao Ministério da Justiça pedindo a suspensão das Diretrizes Básicas para a Arquitetura Penal, em prol do uso de contêineres para isolamento dos grupos de risco. Felizmente, o Ministério da Justiça na Resolução 05/2020 vedou o uso dessas estruturas e similares. Tais questões enfatizam desafio que se impõe na pandemia. II A questão sanitária evidencia a potencialidade que os estabelecimentos prisionais possuem de se tornarem verdadeiras incubadoras do vírus. Considerando o grande afluxo de pessoas e bens nas prisões, no dia 18/03, o Governo Federal editou a Portaria Interministerial no 7 que prevê a suspensão de visitas de familiares e advogados e o isolamento de presos suspeitos ou confirmados com o coronavírus, sendo-lhes disponibilizada a higienização das mãos com água e sabão e, em caso de impossibilidade de isolamento, o uso de marcações no chão para distanciamento de dois metros. No entanto, de nada adianta a adoção de medidas individuais de higiene em locais onde há aglomeração, haja vista a transmissão ocorrer pelo ar, para além do contato pessoal. Assim, em um país em que a taxa de superlotação dos presídios chega à 166%, segundo o estudo “Sistema Prisional em Números” (2018), é completamente inviável que os presos possam ser mantidos à pelo menos dois metros de distância uns dos outros. Diante desse contexto, faz-se necessário discorrer sobre a relação entre o ius puniendi - o direito de punir do Estado - e as políticas de enfrentamento ao coronavírus nos presídios e estabelecimento penais, bem como as medidas tomadas pelo Judiciário, a fim de garantir a segurança e a saúde da população carcerária. A Criminologia Crítica de George Rusche e Otto Kirchheimer (2004, p. 265) trouxe à tona o fato de que frequentemente a política penal é permeada pelo discurso de que existe uma “liberalidade excessiva” que culmina no aumento da taxa de criminalidade, mesmo sem comprovação. Além disso, o medo em face da soltura adquire seriedade no escopo da essência ideológica do programa de segurança pública bolsonarista, que desde antes das campanhas eleitorais erigiu o mote do que seria a política em relação aos presos: “bandido bom é bandido morto”, ou seja: punitivismo ou barbárie. No entanto, a realidade do sistema carcerário demonstra a falência da política de encarceramento no Brasil: a terceira maior população carcerária do mundo e o segundo país mais violento da América Latina, segundo dados da ONU de 2019. O óbvio desinteresse na representação política dos presos, cujos direitos políticos permanecem suspensos enquanto durar a sentença condenatória (art. 15, III, da CR/88), converte- os em alvo preferencial do discurso punitivista, sobretudo quando a opinião pública é nefasta no desprezo e desumanização dos presidiários. Assim, a conjuntura sanitária precária dos presídios e a preconização pelo encarceramento, indicam a hipótese letal da materialização de uma política de morte gritante no discurso. Uma pulsão mortífera disfarçada de medida de contenção do vírus e segurança pública. Não obstante, o CNJ na Recomendação no 62, de 17 de março de 2020 preconizou no artigo 4o a reavaliação das prisões provisórias, priorizando os integrantes de grupos de risco e as pessoas em estabelecimentos superlotados que não disponham de equipe de saúde; as pessoas relacionadas a crimes sem violência ou grave ameaça; além de recomendar a excepcionalidade de novas prisões preventivas. Em matéria de execução penal, o art. 5o apregoa, seguindo as prioridades do artigo anterior, a concessão de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto, nos termos da Súmula Vinculante no 56 do STF que afirma: “a falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso (...)”. Ainda, no inciso III, recomenda a concessão de prisão domiciliar para aqueles que se encontram em regime semiaberto ou aberto, bem como no inciso IV, para os diagnosticados com o vírus, caso não haja espaço de isolamento adequado no estabelecimento penal.
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Na Portaria no 135 de 18 de março, do Ministério da Justiça, há ênfase na recomendação de medidas de isolamento dos presos mediante a suspensão de visitas, inclusive de advogados, além da separação dos presos mediante a suspensão de visitas, inclusive de advogados, além da separação dos presos recém ingressos nos estabelecimentos e dos maiores de sessenta anos ou que tenham sintomas gripais. Ademais, contempla a concessão de prisão domiciliar e a realização de mutirões carcerários virtuais para análise de benefícios pendentes e progressões de regime. Nos termos de um sistema prisional superlotado, esse mero isolamento não se mostra eficiente para evitar a transmissão do vírus. A Prof. Dra. Kátia Melo [3] apresenta um exemplo: o sistema prisional do RJ apresenta escassez frequente de água, o que impede os procedimentos de higiene mais básicos, lavar as mãos, limpar os espaços de convívio, etc., bem como fomenta a transmissão de doenças como tuberculose, meningite e até sarampo. Tal quadro é comum em todo país e requer soluções urgentes como um desencarceramento criterioso, na linha da Recomendação no 62 do CNJ. Em face desse contexto, opta-se pelo destaque do HC 575.495/MG do STJ, impetrado pela Defensoria Pública de Minas Gerais em favor 53 pacientes, que já se encontravam no regime semiaberto, com saídas temporárias e trabalho diário extramuros, e que tiveram todas as suas saídas e visitas suspensas, como se estivessem em regime fechado. O relator aponta constrangimento ilegal dos benefícios já concedidos aos presos e a consonância do deferimento do HC com a supracitada Resolução no 62/2020. Devido à suspensão das visitas, a entrega de alimentos e materiais de higiene foi muito dificultada ou até suspensa. A decisão aponta a superlotação dos estabelecimentos e indícios de violação das condições adequadas de higiene e alimentação, fatores propícios à propagação do vírus. Ademais disso, outros habeas corpus coletivos foram impetrados: o HC no 568.021/CE referente à soltura de presos por não pagamento de pensão alimentícia no estado cearense e o HC no 143.641/SP referente à prisão domiciliar em substituição à provisória, para mães de crianças de até 12 anos, gestantes ou pessoas com deficiência. Até aqui, não se vislumbra a soltura de presos por crimes graves, de violência ou grave ameaça à pessoa. Tais habeas corpus coletivos têm adquirido papel fundamental no desencarceramento como uma das estratégias de contenção do avanço da Covid-19 e na garantia de direitos, visto que, por reunirem casos que de outra forma gerariam inúmeros processos, tornam-se um mecanismo de atenuação da morosidade que aflige o judiciário. No entanto, diante de um sistema que preconiza a legitimação de medidas repressivas, determinado em face das estruturas socioeconômicas (RUSCHE, KIRCHHEIMER, 2004), é improvável que o Estado abra mão de um ius puniendi extremamente repressivo em prol de condições mínimas de vida digna a essas pessoas, mesmo em face de uma situação que condenará grande parte da população carcerária à morte. É necessário que se conserve tal ordem também perante à opinião pública, já que o discurso da “punição máxima” vigora nos espaços de discussão, principalmente nas redes sociais: basta acompanhar os comentários de internautas em jornais e revistas digitais em notícias que veiculam medidas à favor da população carcerária no cenário atual. Como assinalado por Rusche e Kirchheimer (2004, p. 282), “enquanto a sociedade não estiver apta a resolver seus problemas sociais, a repressão, o caminho aparentemente mais fácil, será sempre bem aceito”.
3 MELO, Kátia Sento Sé de. O sistema prisional brasileiro no contexto da pandemia de Covid-19. Disponível em: https://ufrj.br/noticia/2020/04/01/o-sistema-prisional-brasileiro-no-contexto-da-pandemia-de-covid-19. Acesso em: 31 mar. 2020.
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III Essa face da crise, portanto, perpassa as dimensões política, econômica e social, e desdobra- se na não adoção das medidas recomendadas pelo CNJ, na ausência de um projeto do Governo Federal e dos governos estaduais que seja efetivamente capaz de lidar com os problemas inerentes ao sistema prisional brasileiro e que são agravados pela crise. Destaca-se desde as condições de extrema insalubridade e superlotação dos presídios, à situação de vulnerabilidade física e mental dos presos, à ineficácia da adoção de medidas de proteção individual nesses ambientes, até a baixa transparência na obtenção e divulgação dos dados. Tudo isso dificulta a adoção de medidas cabíveis para a efetiva contenção do SarsCov-2 no sistema carcerário e a fiscalização dos órgãos responsáveis pela integridade dos presos e dos agentes públicos. Nesse cenário, houve o aumento dos registros de fugas e rebeliões em vários Estados, desde a adoção dos governos estaduais de proibição de visitas e saídas para trabalho externo no regime semiaberto. Amazonas, São Paulo, Distrito Federal e Goiás são alguns exemplos de Estados em que se registraram essas ocorrências, colocando em risco a vida também de agentes públicos para além dos próprios presos4 . Diante disso, o resultado que se têm é um somatório de mortes causadas tanto pela incidência e rápida disseminação do vírus nesses locais quanto pela violência acentuada e rebeliões. A política de tergiversação do Governo Federal e a ineficácia das medidas adotadas pelos governos estaduais, haja vista os dados cres-centes de contaminação nos presídios indicados anteriormente em face destas, são parte de uma inoperância estatal no sentido de concretizar melhorias efetivas no âmbito do sistema prisional. Em conformidade com a Criminologia Crítica, conclui-se que os sistemas penais dos países periféricos como o Brasil se subtraem a um genocídio em ato (ZAFFARONI, 1998, p. 127). Há mortes em enfrentamentos armados; (...) há mortes de pessoas das próprias agências do sistema penal; há mortes por erro ou negligência (...); há mortes violentas em motins carcerários, de presos e agentes carcerários; há mortes por violência exercida contra presos nas prisões; há mortes por violência entre presos; há mortes por enfermidades não tratadas nas prisões; (...); há mortes... (ZAFFARONI, 1998, p. 128). Se em condições normais os presídios brasileiros possuem cerca de 1,5 mil mortes por ano, segundo dados do “Sistema Prisional em Números” de 2018, em um momento de calamidade pública devido à propagação de um vírus cuja transmissão é favorecida em ambientes onde há aglomeração e insalubridade como os estabelecimentos penais e, ainda, com um sistema de saúde prestes a colapsar devido à rápida expansão do coronavírus e a insuficiência dos leitos de UTI, não adotar as medidas mínimas recomendadas pelo CNJ com vistas à proteção da saúde e da vida dos indivíduos é sentenciá-los à morte.
Por: Marina de Souza Pompermayer & Samuel Giovannini Cruz Guimarães - Direito UFMG
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas. 2a edição. Buenos Aires: Ediar, 1998. RUSCH, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. 2a edição. Rio de Janeiro: Revan, 2004. BRASIL. INFOPEN Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen. BRASIL. CNMP. Sistema Prisional em Números. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/transparencia/relatorios-em-bi/11313-sistema-prisional-em- numeros. ____________________ 4 CALCAGNO, Luiz. Avanço da Covid-19 eleva o risco de rebeliões nos presídios brasileiros. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/05/25/interna-brasil,857949/avanco-da-covid-19- eleva-o-risco-de-rebelioes-nos-presidios-brasileiro.shtml. Acesso em: 25 maio 2020.
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O VÍRUS OTNOC
I – Coletores e caçados O ano era 2222, mas eles não sabiam disso. Eram um pequeno grupo isolado na floresta. Naquela noite um deles perguntava insistentemente para Dimitri a razão de algumas pessoas terem deixado o grupo na noite anterior: _ Dimitri, por que aquelas pessoas foram embora ontem à noite? Nem mesmo Dimitri sabia direito. Ele se lembrava apenas de uma história em que pessoas idosas deveriam deixar o grupo, pois elas estariam contaminadas por “Ele”. Ninguém lhe explicou quem era “Ele”. O certo é que todas as pessoas que fizessem trinta anos deixavam o grupo e nunca mais eram vistas. Porém nesse momento estava mais preocupado com o tempo, pois o frio reduziu drasticamente a coleta de suprimentos. Hoje não seria diferente, teriam que separar o que foi coletado, distribuir a parte de cada um e se preparar para começar tudo no dia seguinte: _ Dimitri, eu vi um animal atacando, matando e comendo outro. Por que ele fez isso? Isso ele sabia. Sempre soube que existem animais carnívoros, alguns chegaram até a atacá-los enquanto coletavam alimentos. Isso foi há muito tempo. Agora eles já têm o domínio do fogo e sempre quando um deles se aproxima é imediatamente repelido. Isso prejudica muito a coleta de alimentos, pois muitos membros da tribo têm que cuidar do fogo e enquanto fazem isso não conseguem recolher alimentos. Dimitri já estava se sentindo velho. Sabia que logo faria a jornada final. Dimitri ainda esse mês faria vinte e sete anos, era o mais velho da tribo. Hoje ele estava especialmente ansioso pois havia cometido um crime. Ele saiu da floresta pela manhã e perambulou pela floresta de pedra, mesmo sabendo que era proibido ir lá. II - Solidão e demência A cada nascer do Sol Vladimir fazia um traço na parede com a sua pequena faca de caçador. Cada vez que ele fazia isso ele amaldiçoava os homens, Ele os culpava por sua má sorte. Sua rotina era sempre a mesma, ele verificava se havia água suficiente, vestia sua roupa especial e caminhava até um dos muitos mercados vazios. Ele sabia que tinha suprimentos para muitos anos, porém não aguentava mais viver isolado. Ele notou que era o único que saia de dia. Nas noites ele escutava barulhos aterradores. Na primeira noite, após ter enterrado a última vítima da peste, ele resolveu olhar pela janela. Lá fora passavam pessoas montadas em animais gigantescos, homens e cavalos com mais de três metros de altura. Na segunda ele não teve coragem, pois a multidão que passava gritava “morte, morte, morte”. Vladimir sabia que iria morrer, mas não seria morto por eles. Essa noite ele colocaria fogo na casa. Antes resolveu deixar mais um registro sobre tudo que sabia. O ano era 2044. A humanidade estava enfrentando o vigésimo quarto ataque de vírus. Esses vírus vinham cada vez mais forte. Começou aniquilando os velhos e os enfermos, até que quase não restaram mais pessoas nessas condições. No próximo ataque eles vinham mais fortes e levavam sempre os mais velhos. O último deles além de matarem a grande maioria da humanidade, deixou os poucos vivos, loucos. O único que não tinha ficado louco era ele. Ele não tinha explicação para esses seres gigantes com mais de três metros de altura, pois nunca os tinha visto antes, mas isso não importava pois eles não o matariam. Finalmente terminou de registrar a sua história. O vigésimo quarto registro que fizera em hologramas; o último. O próximo passo foi colocá-los a salvo do fogo e morrer. EPÍLOGO - Terra Arrasada Dimitri estava com medo, porém excitado, por ter cometido um pecado. Ele se lembrou que saiu floresta pela manhã, entrou na floresta de pedra. Andou sem rumo até parar em frente a uma casa destruída pelo fogo. Ele notou também que aos seus pés havia uma caixa contendo vinte e quatro bolas coloridas. Pegou uma delas, apertou e se assustou com o holograma, pois era algo que não conhecia. Passado o susto apertou a bola novamente e o holograma falou. “No ano de 2020 sofremos a primeira pandemia de Corona Vírus...”
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por: Lucas Perrone - Direito Direito UFMGUFMG Por: Rodrigo Camilo Antonio Sarmento
OTSEFINAM
Manifesto pela descoisificação do mundo Republicado Por: Gabriela Souza Conrado, Emanuella Ribeiro Halfeld Marina Leonel Pereira Santana Paiva - Direito UFMG
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Tem uma coisa bonita na criança que cresce sozinha dentro de casa. Lembro que eu extraía personalidade de todos os móveis da casa. Conversava com os espaços e captava sentimentos naquele lugar que me constituía. Quando não havia escola – apenas o tempo pairando sobre minha cabeça, como as moscas no quintal – a casa era o meu principal lugar de vida e expressão. Eu conhecia bem cada canto e me dava o prazer de encarar as coisas com amizade. Era um tempo sem urgência. Aílton Krenak, do povo indígena Krenak, de Minas Gerais, escreveu esse pequenino livro chamado Ideias Para Adiar o Fim do Mundo. Ele teve a perspicácia de ver que nós, os supostos integrados do mundo social, estamos perdendo a cabeça dentro da própria cabeça. Ainda tô pra conhecer um ser humano sem 1001 pensamentos contra esse mundo pronto que nos foi entregue. Mas o que se faz com um pensamento? Muitos deles se transformam em lâminas, ferem por dentro pedindo pra sair. O Povo Krenak tem um nome para o rio que corre em suas terras, afluente do Rio Doce – Uatu. O rio pra eles não é um córrego que passa acimentado por debaixo das ruas onde eles vivem suas vidas apressadas. O rio é parente, é elemento vivo. Quando a gente passa a ver toda a Terra como coisa, criamos a sensação de que estamos aqui para explorar. A gente é gente. O mundo é outra coisa, é coisa separada de nós. O rio é coisa, a montanha é coisa, Minas Gerais é toda cheia de coisa. E tem gente que talvez, nem gente seja, pelo jeito que o governo de hoje insiste em tratar certas gentes como coisa. O Direito corre fácil em direção do hábito de coisificação da vida As pessoas para o sistema se tornam papéis acumulados em cima da mesa, uma sequência de números de processo, tão grandes que nem a memória guarda. Parece que o tempo, sedimentando os costumes dentro da pele, nos habitua a coisificar o presente que nos foi entregue. A gente cala, aceita, porque deve ser mesmo assim, não? Vamos criando um mundo capaz de subtrair aquilo que seria o &quot;nosso&quot; futuro. Esse é um breve manifesto pela descoisificação do mundo, pela descoisificação do Direito, pela descoisificação do tempo - que nos atravessa, em presentes, pretéritos e um futuro incerto, fragmentado e debilitado pelos nossos escassos esforços. É bonito perceber o mundo como vivo. A gente tenta se permitir sair da cabeça do devorador. Perceber que a visão do mundo como coisa inesgotável que te serve não está, de fato, te servindo em nada. Como Aílton Krenak diz, ou fazemos isso, ou aceitamos a ideia de que a Terra é plana e de que devemos seguir nos devorando.
falando em devorar, não faz muito tempo que o gigante adamastor vem comendo as beiradas de nosso continente, aliás, começou naquele tempo chamado colonizações cá entre nós, o gigante mudou de nome, mas as dentadas continuam ardendo em nossa terra, em grandes bocadas esféricas
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colonizações parte um américo vespúcio, entediado com os privilégios de sua vida de pais comerciantes, fez o que todo jovem classe média alta se propõe a fazer, em meio suas crises existenciais, descobrir o mundo] soberbo e inconsequente, carregando algumas varíolas, gripes pelo mundo afora, não poderia ter previsto que seu nome seria dado a um continente, uma rede de varejo, uma companhia aérea e mais uma série de filmes hollywoodianos. não poderia imaginar, com seu ego sufocante, que, as terras por onde passava não eram nenhum pouco puras, virgens, intocáveis ou qualquer outro estranho adjetivo necessariamente usados em missas católicas para se referir às (sensíveis) mulheres do século era terra e mato habitados, com gente, muito satisfeita de já há tempos terem se auto descobertos. alvaresinho, mimado e gorducho, aprendeu desde criança, em seus estudos particulares em seu castelo de belmonte, que mouros ou qualquer outra raça era inferior a sua. foi mais fácil quando, depois de entediado com os amores, os estudos e a enfadonha vida da nobreza, decidiu adentrar nas terras, como gostava de dizer para si mesmo nunca dantes navegadas] e aquela satisfação lhe dava uma sensação morna entre as pernas, excitante, inquietante, era ele a enfrentar o gigante adamastor. era naqueles momentos que se esquecia da poeira dos navios, do escorbuto dos tripulantes, da falta de dentes que lhe dificultava mastigar, dos fungos no fundo do barco, do fedor de urina que pairava pelo ar, das merdas apodrecendo num canto, daqueles que ficavam loucos e se jogavam nos oceanos, dos subnutridos e delirantes. se esquecia] pero vaz também se esqueceu, por isso quando se referiu aos indígenas, como os verdadeiros selvagens, não havia nenhum remorso em seu espírito moral e cristão. os indígenas tupi guaranis estavam incrédulos com aquele fedor e podridão que descarregava em suas praia. pálidos, alguns azuis, vomitando na areia, os olhos avermelhados, amarelados. não ousaram se aproximar muito, mesmo assim agradeceram a boa vontade, mas não precisavam de ajuda, estavam bem. talvez fosse a língua que dificultou a compreensão ou talvez o estado mental que estavam já os portugueses, porque de alguma forma os gestos dos indígenas virando a cabeça repetidas vezes em negação, as mãos apontando para que voltassem ao barco, gesticulando com os dedos e desenhando na areia para que eles fossem apenas embora, foi entendido como vens, por favor, me coloniza!!
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MALd
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SATIDLAM SEZOV
V Z
ZES
Ditas
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Escapulário
AISEOP
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Ela foi embora mais uma vez Embora sua morada fosse em mim E as promessas fossem um talvez O coração dizia sim Enquanto a mente guardava a sensatez Para não terminar Para não mais chorar Esperar era o combinado Pelo amor aguardado Pois logo íamos separar Por não ficar Me deixou um colar O prometido era assim feito “Guarda contigo uma parte minha sem defeito” Colado ao meu peito O tesouro era um escapulário Na frente, São Jorge Atrás, Nossa Senhora do Carmo A ordem era essa Comigo guardava a peça Da religião ela não era chegada “do Carmo, pra mim, não significa nada Gosto de São Jorge Espero que se recorde” E assim eu amava Quando, por azar, a sorte virava E via do Carmo na frente: tirava Jorge era, para mim, o fiel sinal Que sumia com todo o meu mal O tempo a fora levando O tesouro permanecia Uns dias eu ficava triste Noutros até sorria Em mim, ela persiste Nada alteraria Quando nossa história eu contava O amor emanava
Viva em mim Embora, de vista Ela desaparecia Por mim, bem quista Eu sempre sabia Pelo colar, ainda a sentia Nossa Senhora, por vezes, ressurgia Defronte, estática, como magia O cenário logo me aborrecia Brincavam com a minha empatia? O frio na barriga Não sabia o universo da simpatia? Se encontrasse o santo amigo Na frente, São Jorge Ou a santa inimiga Para que eu sempre recorde Por mais que doesse, do contrário eu fingia Que, um dia, por sorte Não valia a pena sofrer a asfixia Encontrei um amor forte Mas, por azar, por força ou por tempo Que triste! Em algum momento O encanto não seguia mais o conforme Distante, fria e vazia Eu já não sabia Se falava de sua cidade ou de seu nome Por mais que eu lutasse e evitasse Por mais que tentasse e alterasse A santa surgia Como se da magia fosse um passe Com o tempo, passei a entender Visasse a Senhora do Carmo Eu nada ia fazer Fosse vontade dela ou do destino Não ia cometer o desatino De lutar por um amor ameno Sem cor, sem luz, amém, não peno São Jorge para trás? do Carmo não satisfaz? Pois não me incomoda mais Assim permanecerás Outros dias, quando recordo da simpatia Sorrio amarelo, escondo a saudade Olho o escapulário, não minto a verdade Por lembrança ou por curiosidade
Das minhas dores ela nem sabia Olhando pra baixo, a santa eu via
Pudesse esquecer? No fundo, não queria A saudade era tanta Bem ou mal, pelo menos eu sentia Não posso deixar de lembrar Que um dia o presente me fez sonhar: Ao seu lado era onde eu queria estar Que, por fim, seja só um lembrete Das histórias dessa corrente Que amei, que sorri, que viveste Ao meu lado, porque quis E que, como a santa Nas horas que a dor era tanta Também, por vezes, apareceste E também, por seres, fui feliz
Por: Lucas Biagio Mamone Direito UFMG
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O conteúdo desta edição é uma junção de autorias e não representa necessariamente as ideologias do CAAP nem dos membros do Edirorial do Voz Acadêmica 2020
EDIÇÃO 2020 // VOLUME Nº3 // DEZEMBRO 2020
VOZ ACADÊMICA A OUTRA FACE DA CRISE
DIAGRAMAÇÃO
Guilherme Eustáquio Teixeira Souza ORGANIZAÇÃO
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