Voz Acadêmica 4º Vol 2020

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EDIÇÃO 2020 // VOLUME Nº4 // DEZEMBRO 2020

VOZ ACADÊMICA A OUTRA FACE DA CRISE

Literalidade: Uma intersecção entre Camus e a pandemia do Coronavírus

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CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA


LAIROTIDE OHLESNOC

CONSELHO EDITORIAL REPRESENTANTES DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA Guilherme Eustáquio Teixeira Souza Marcos Paula de Oliveira Junior Mateus Leme dos Santos Cardoso Melissa Santos Mascarenhas REPRESENTANTES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG Bruna Pereira Frasson Carlos Henrique Jesus de Souza Lucas Henrique Filardi Mendonça Marcelle Stephanie Ferreira Conegundes REPRESENTANTES DOS ÓRGÃOS ESTUDANTIS DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG Eduarda do Prado Ribeiro (Conselho de Representante de Turma - CRT) Lucca Girardi Caumo (Centro Acadêmico de Ciências do Estado - CACE) Victor Hugo Silva Monteiro (Atlética do Direito da UFMG - AAA) REPRESENTANTE DA PÓS-GRADUAÇÃO DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG Fabrício Manoel Oliveira

DIRETOR DE ENSINO E PESQUISA DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA Marcos Paula de Oliveira Junior

MODERADOR DO CONSELHO EDITORIAL DO VOZ ACADÊMICA Guilherme Eustáquio Teixeira Souza E-mail: guisouzats@gmail.com

O Voz Acadêmica é uma produção idealizada pelo Centro Acadêmico Afonso Pena - CAAP

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EDITORIAL Seria injusto, diferentemente do que acha o presidente Jair Messias Bolsonaro, se colocássemos a responsabilidade de todos os recentes fracassos do nosso governo nas questões que tangem a crise da COVID-19. Temos a consciência de que estamos passando por tempos nebulosos e que seria inevitável uma pandemia, de tamanha magnitude, não interferir em nossas relações sociais como também nas atuações governamentais. Está sendo difícil pra todo mundo e sabemos disso. Porém, o caso não é só esse. Fato é que não podemos e não devemos colocar o nosso governante em posição passiva e resguardá-lo das atrocidades que ele mesmo tem compactuado. O Brasil já ultrapassou a marca de 180 mil mortes e se comparado a outros países de condições similares às nossas, esse número é discrepante. Pois bem, sabemos também que não são apenas números, são mais de 180 mil pessoas que perderam a vida. Assim, as inseguranças políticas do nosso país, a nossa falta de referência representativa e a falta de competência dos nossos governantes nos preocupam e nos colocam na obrigação de ajudar os mais vulneráveis e de suprir a carência do caráter assistencialista que um Estado Democrático de Direito, por lei, deveria ter.

OIRÁMUS/LAIROTIDE

Desde o dia 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevou o status de epidemia para pandemia do Novo Coronavírus, as questões políticas no Brasil se agravaram e fizeram com que as questões sociais ficassem ainda mais vulneráveis como também mais evidentes.

Nesse sentido, em face a tantas atrocidades e injustiças, este volume do Voz Acadêmica reúne diferentes vozes que abarcam questões sociais, econômicas como também sobre as de direitos humanos que estão vinculadas ao contexto de pandemia da COVID-19. Ao ler o jornal, os posicionamentos e diferentes perspectivas dos autores nos fazem pensar criticamente como o governo tem enfrentado esse momento de calamidade pública.

__________SUMÁRIO

Assim sendo, o Conselho Editorial compartilha o lugar com nossos colegas para que juntos possamos ter mais VOZ.

06 Literalidade: uma intersecção entre Camus e a pandemia, por: Marcos Paula de Oliveira Junior e Bruna pereira frasson

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Crônica de ausência, por: Patrícia Cecília Lopes Rodrigues Jurisprudência na busca do cumprimento dos direitos humanos, por: Marina Leonel Pereira Santana Frankenstein, por: Victor Wallace Domingues de Menezes A Economia Popular e Solidária em tempos de pandemia, por: Mariana Rodovalho Guerci A outra janela, por: Pâmela Cirino Fernandes e Stefane Bresser Moreira Batista O grande fechamento, por: Bruno Braga de Castro O empréstimo compulsório em face do estado de calamidade pública decorrente da pandemia causada pela COVID-19, por: Fernanda Quirino Pereira

28 Limitações de direitos humanos em tempos de pandemia, por: Geraldo Vitor de Resende 31 Gêneses, por: João Pedro Pessoa Herthel Silveira 33 Novas ondas provocadas pela COVID-19 e apagar incêndio: desarmonia administrativa, por: Gilberto Pinto Monteiro Diniz

38 Intersexualidade e o direito à identidade, por: Laura Góis Barbosa e Matheus da Silva Gandra 42 Vida, pós pandemia. por: Fernanda Marinho Antunes de Carvalho

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OGITRA

Literalidade: uma intersecção ent 1. Introdução A literatura clássica sempre foi uma forma de analisar a realidade, mas, nos últimos tempos, isso nunca foi tão literal quanto em A peste, obra escrita por Albert Camus e publicada em 1947. O que muitos acreditavam ser uma metáfora para as atrocidades do nazismo, agora em 2020 passa a ser uma representação quase que fidedigna em alguns pontos da realidade circundante. O cenário descrito por Camus em Orã e as situações iniciadas em Wuhan, de tão similares, chegam a parecer até uma tentativa falha por parte do autor de mascarar o próprio nome do local. Por todo o mundo, diante da pandemia de Covid-19, a mudança nas relações interpessoais se demonstra clara e a perspectiva do coletivismo passa a ser algo novo, despindo a individualidade intrínseca ao século da Modernidade Líquida. Para este texto, quer-se escolher como objeto principal de análise a interpretação, à luz do pensamento de Camus sobretudo por meio de sua obra A peste, em primeiro lugar da Moral contra o Absurdo e, posteriormente, do Bem Comum no universo de Orã, para, por fim, utilizando esses conceitos, efetuar uma análise crítica da pandemia do Coronavírus.

2 . O Absurdo e a Moral As coisas têm essência? O real é teleológico? Há na vida um sentido apriorístico? A tradição filosófica do existencialismo é de ruptura. O pensamento ocidental ao longo da sua formação mostrou uma vocação em particular para procurar o transcendente, aquilo que está na forma pura das coisas e dali abstrair sentido e construir a sua metafísica em um real que é racional e que é descoberto pelo sujeito consciente, o qual compreende os fins das coisas, do mundo e de si mesmo. O existencialismo vem virar de ponta cabeça a condição humana. Para essa corrente, viver é assumir a própria liberdade e perceber tanto a potência quanto a possibilidade de perdição desse movimento do ser livre. A antropologia cristã também parte do problema fundamental da liberdade entre salvação e danação que torna o sujeito responsável de si mesmo. Porém, essa liberdade existe em um mundo onde há certamente um Deus que afere sentido ao todo e faz da condição humana objeto de sua razão transcendente que se manifesta no mundo temporal como providência a orientar o mundo ao justo, ao bom e ao belo, a despeito das contradições que as almas confusas dos homens possam gerar.

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Camus e a pandemia re do Coronavírus O existencialismo na sua forma mais profunda, isto é, ateia, rejeita que haja algo que organiza um mundo em um finalismo superior, que torna o real imanente e as pessoas como partícipes num movimento rumo à perfeição e ao progresso. O mundo é, os homens são. Todo apelo transcendente é um apelo: uma tentativa de fazer sentido de um mundo que pode muito bem não ter sentido. Pode ser que de fato haja uma teleologia do real e uma essência aos homens, mas não há meio algum de prová-la e talvez o maior ato de coragem seja assumir as consequências de cindir com a essência. Para o pensamento de Camus, essa constatação se materializa no Absurdo. Vivemos num mundo caótico sobre o qual não temos controle: não controlamos os homens e também não controlamos a natureza. A realização dolorosa de que o caos é e que por trás dele não há uma razão providencial que uniformiza tudo tem um impacto moral tremendo. A natureza é amoral, pois ela apenas existe sem considerar os homens. Os homens são imorais, pois conseguem realizar o justo mas não há nenhum motivo superior que os obrigue, pelo contrário, ser justo se torna um problema tão somente dos homens e insignificante para a natureza. Parece uma constatação deprimente, e de fato o existencialismo pode ser lido desta forma, contudo Camus não é um filósofo do pessimismo e do niilismo. Se o justo não é um fato objetivo e inescapável, mas algo criado como julgamento de valor dos homens, isto é, algo demasiadamente humano na sua contingência, é aí que a potência do ser livre se realiza. Percebendo o absurdo e não caindo em seu abismo, mas pelo contrário, surgindo mais forte dele é que a liberdade se torna verdadeiramente potente, pois se demonstra um tomar de responsabilidade por si e pelos outros. A peste que chega em Orã parece testar aquelas pessoas. Uma doença que surge subitamente, que destrói a vida como todos a conheciam - uma existência alienada dos afetos e do encontro em alteridade com o outro, e, ainda, fechada no individualismo, é substituída pela vida absurda de uma doença que mata fisicamente muitos e mata um lado espiritual de todos. As personagens da história parecem caminhar em direções diferentes. Uns parecem incapazes de sair da sua individualidade e passam a renunciar a liberdade vivendo ou sem abraçar a plenitude da própria dor ou sem assumir responsabilidade pelo coletivo. Outros parecem se render à escatologia, sendo a personagem do jesuíta Paneloux a representação disso, ao assumir que a peste é um flagelo de Deus para punir a imoralidade dos homens e para reduzir a sua salvação a um processo individual de expiação do pecado como experiência atomizada de cada um. Por fim, há o grupo que Camus parece eleger como representantes de seu sistema filosófico, os quais veem que a peste é um problema fático, o qual existe objetivamente porque a doença lá chegou e agora é responsabilidade de todos resolver um problema que atinge à totalidade social.

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O erro do primeiro grupo é negar o mundo e no processo negar a si mesmo; o problema do segundo grupo é constatar a imoralidade dos homens e criar um nexo causal com o flagelo que os assola, cuja resposta também é o individualismo de uma salvação de si e não do todo. A resposta do terceiro grupo é perceber que a natureza é amoral no sentido de que ela é caótica, mas que os homens se tornam imorais no momento em que não agem em conjunto para resolver um problema que é de todos. O momento decisivo é perceber a própria liberdade de agir ou de se resignar, e, mesmo assim, se responsabilizar pela ação - não porque seja heróico fazê-lo, mas tão somente porque é o certo para si e para o todo. O Bem Comum se torna uma questão primordial, portanto, porque é pelo agir em sociedade que se pode superar a causa face a uma problema coletivo, isto é, somente mediante uma racionalidade coletiva. O primeiro grupo não quer nem resolver o problema, nem aparecer na esfera pública. O segundo quer resolver o impasse, mas caí num individualismo e numa negação da razão ao recorrer a fé cega. O terceiro verdadeiramente percebe a responsabilidade com a coisa pública e entende que o único modo de resolvê-la é pela racionalidade política e pelo saber científico. Camus parece, pois, nos apontar que, para lidar com uma pandemia, é preciso perceber o locus da razão e do Bem Comum no agir social de cada indivíduo. 3. O Bem Comum e o problema da ação social Sendo assim, a perspectiva do Bem Comum se evidencia diante do contexto da obra por meio da representação do personagem Raymond Rambert. Em uma situação como a dos demais, de solidão e isolamento, o jornalista parisiense se vê como um elemento estranho ao local, que, além de estar assolado pela angústia do tempo, como todos os concidadãos de Orã, tem ainda o acréscimo do sentimento de exílio territorial. Por esse viés, o Bem Comum é questionado. Seria então uma soma de interesses individuais ou uma unicidade que comporta o sentimento coletivo? Rambert chega a se questionar: se o interesse público é feito da felicidade de cada um, por que sua questão individual não era atendida? A corrente do utilitarismo daria a resposta de que a felicidade consiste na satisfação dos interesses dos agentes morais ou simplesmente na rejeição do sofrimento por parte desses agentes, de forma que a maximização da felicidade seria o ponto central. Nas palavras de Mill, o utilitarismo não é "[...] a maior soma da felicidade do próprio agente, mas a maior soma da felicidade conjunta" e, por isso, é perfeitamente possível que um indivíduo sacrifique sua solução ótima pela proposta do cálculo utilitário que privilegia a felicidade e, portanto, o Bem Comum da maioria. Por outro lado, a corrente utilitarista é incapaz de solucionar dilemas morais que envolvem o autossacrifício por razões afetivas. No contexto da pandemia, a saúde coletiva se torna prioridade, mas a que custo? Ao preço da ascensão da depressão, do sentimento de solidão geral e do resigno ao individualismo? No entanto, a peste nos faz perceber, e Camus é bem incisivo nesse ponto, que nenhuma pandemia é problema de um só, mas sim, a partir do momento que se torna dever de alguns, é problema de todos. Rambert, ao tentar sobrepor suas dores a dos demais, acaba destacando que, ao fim, as lutas não somente são sofridas por alguns, mas por cada um dos homens que se submeteram à peste. Todos, nessa perspectiva, lutavam para que, desta ou daquela maneira, não "caíssem de joelhos" e se resignassem ao sofrimento. A questão sempre foi centrada em impedir que o maior número

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possível de homens morressem ou conhecessem a separação definitiva. Para isso, o único meio era combater a peste de forma global, encarando os problemas individuais como dissabores a serem superados, mas a morte de milhares como algo irreversível. Nesse sentido, a tecnocracia tornou-se evidente e necessária naquela sociedade, onde as políticas públicas impactariam de forma substancial o destino do cosmos. Dar ouvidos aos médicos nunca foi tão efetivo e necessário. Somente a ciência poderia dar um salto de esperança, visto que apenas a medicina conseguiria curar os doentes e pausar o desenvolvimento abrupto e exponencial não apenas da peste em si, mas também da solidão, do medo, da depressão e do individualismo. Só com a contenção da doença seria possível retomar a normalidade e trazer de volta a essência do Bem Comum como felicidade de todos. Ao mesmo tempo em que a peste trazia a reflexão sobre os juízos de valor e o coletivismo, forçando os habitantes à solidariedade, abandonavam-se as associações tradicionais e os vínculos diretos interpessoais, devolvendo os indivíduos à sua solidão. Já não havia destinos individuais, mas uma história coletiva, de sentimentos similares compartilhados por todos, os quais deveriam ser interpretados à luz do Bem da sociedade. O comportamento de medo e revolta era intrínseco ao contexto, mas a solução seria apenas encontrada a partir da abdicação de desejos individuais pela maximização da segurança e da saúde social.

4. De Orã ao tempo presente A coisa mais curiosa de se ler Camus nesse momento é o quão assustadoras são as similaridades entre o nosso momento histórico e aquele da obra. Desse modo, se em outras épocas a leitura d’A peste pareceria uma alegoria ao Nazismo e à ascensão totalitária de maneira tácita, mas muito clara, hoje é impossível ler o texto sem enxergar o século XXI e o sentido paradigmático que a pandemia do Covid-19 consagrou para o ethos do nosso presente. De um lado, isso serve para demonstrar a genialidade do autor ao conseguir compor uma obra de textura aberta o suficiente para receber tantos sentidos hermenêuticos a partir do quem, do onde e do quando do leitor e, de outro, fica constatada a riqueza da pesquisa do autor e seu entendimento acerca dos sentidos sociais de uma pandemia. Ao longo deste pequeno artigo buscou-se demonstrar como Camus consegue em seu livro partir de pressupostos gerais do existencialismo e aplicá-los numa tensão entre Moralidade e Absurdo, além de conectá-los às mudanças de sentido que a primeira assume em função do segundo, para, ao longo desse processo, demonstrar a responsabilidade de cada um consigo e com os demais, explicitando a temática utilitarista. Precisa-se reconhecer a dimensão histórica e humana dos problemas pelo que eles são de fato - algo no tempo e no espaço, com os quais os homens devem lidar, eles próprios, a partir da razão de que a coisa pública nunca é algo só de si mesmo, mas sempre atinente ao outro comigo. A pandemia do Coronavírus transformou a realidade em suas diversas faces: trabalho, educação, política, renda, Estado, mercado e tantas outras. Nesse sentido, o isolamento social, parece, por um lado, apontar para um movimento de individualismo, na medida em que somos obrigados a nos fechar nos templos de nossas vidas privadas, isto é, em nossas casas, e a renunciarmos ao convívio social, que, no geral, nos soa tão comum e necessário, mas, por outro, parece indicar o fato de que ser responsável, nesse momento de caos sanitário, é um ato de racionalidade e de preocupação com o Bem Comum.

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Ouvir a ciência e respeitar as recomendações das autoridades sanitárias é um ato de sensatez tanto do “eu indivíduo” quanto do “eu social”, seja na forma das pessoas comuns ou na forma das pessoas responsáveis pela tomada de decisão política nesse momento de calamidade. Todos têm responsabilidade na prevenção e contenção da doença. Não é fechando- se em si mesmo e caindo na tristeza ou na perda da própria saúde mental que se resolve o problema. Assim como também não é negando a sua parcela de responsabilidade pelo todo e vivendo como se o impasse não batesse à sua porta. Por fim, não é negando a ciência e abraçando misticismos que se supera uma doença. A pandemia nos traz um problema geral cuja solução é mediada pela ciência e pela política, o que nos traz a constatação de que o agir sóciopolítico, para que possa ser considerado moral, depende da consciência de cada um acerca de sua própria liberdade e responsabilidade coletiva. Em um meio social em que as relações estão cada vez mais frágeis e sensibilizadas, como alerta Camus, a pandemia é um ápice para mudança e reflexão. São nesses pontos de ruptura da História em que as transformações se concretizam. Seria muito conformista tomar a peste como uma suspensão da normalidade, mas no plano fático ela cria a possibilidade de se fundar um novo normal. O momentum posto por uma doença pandêmica é justamente o de questionar nossa postura prévia. Os habitantes de Orã de fato não poderiam ser mais os mesmos, e nós tampouco. Se no texto de Camus o status quo do individualismo é chacoalhado por essa modificação, que faz cada um questionar o seu papel no político, no coletivo e na moralidade, ainda que com respostas múltiplas, também a conjuntura do nosso tempo será perturbada. Como nos ensina Bauman, vivemos em uma era de individualismos acentuados como jamais antes e de uma falta de lastro nas relações, as quais se tornam fluidas e sem substância; eis a Modernidade Líquida. Todavia, as crises causadas pelo Coronavírus põe em xeque vários paradigmas de nossa sociedade e mais uma vez a tensão entre responsabilidade moral e agir político se torna basilar no intuito de alcançar o Bem Comum. A pandemia é uma tragédia, mas ela pode ser um convite à moral e à ação pela defesa dos direitos e pelo aprofundamento da democracia, em uma alteridade que privilegia o nós em relação ao eu.

POR: MARCOS PAULA DE OLIVEIRA JUNIOR & BRUNA PEREIRA FRASSON - DIREITO UFMG

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Crônica de ausência Essa minha particular urgência de viver gostando de não saber o que virá transforma tudo em um ultimato de início de um “para sempre” ou de um “nunca mais”, que dificilmente é aceita pelos que juram controlar as oportunidades que a vida oferece.

ACINÔRC

“Depois de um primeiro, os próximos serão sempre os últimos”. Você pode achar que me refiro ao copo da bebida que te acalenta nas noites frias, às mentiras de uma relação vazia que você jurou recomeçar, aos amores que se permitiu viver ou às vezes em que a sua vida não esteve sob controle. Eu fico com a última interpretação.

A gente sabe que nada está sobre controle. Não sabemos qual ou quando será o nosso último ato, mas insistimos em nos surpreendermos quando a vida faz a única coisa se espera dela: acontecer. Sem roteiros. Sem ensaios. A pandemia que nos assola insiste em reafirmar a nossa finitude, fragilidade e total descontrole sobre o nosso futuro. Não sabemos sequer lidar com nossos sentimentos, reféns de uma teimosia psicológica que insiste em acreditar que deveria estar no comando de todas as situações e quando se vê vulnerável e à deriva da sorte, nos confunde até mesmo sobre o que é genuinamente nosso, nossos sentimentos, sobre os quais jurávamos não nos enganar. Quando Camus descreve as relações, vítimas do isolamento da peste na cidade de Oran, é muito fiel ao retratar a soberba humana ao julgar que as despedidas entre os amantes e parentes seriam temporárias, mergulhada em uma estúpida confiança de que não se trataria de um irremediável afastamento. A limitação daquelas paixões avassaladoras e fortes vínculos familiares daqueles concidadãos à trocas periódicas de telegramas dotados de fórmulas feitas fazia com que, com o tempo, as palavras anteriormente ditas com vigor pelo coração perdessem o sentido e com que a única coisa que assertivamente julgassem conhecer bem, qual seja, seus sentimentos, assumissem um novo aspecto desconhecido. Como consequência disso, o desejo irracional de voltar atrás ou de acelerar o tempo para que essas flechas ardentes de sentimentos bons não se perdessem pelo caminho, sem razão de ser, passou a mover os dias dos concidadãos de Oran e também os nossos, pois assim, como eles, encontramo-nos impacientes com o presente, inimigos do passado e privados do futuro. Enganam-se os que acham que nossos meios de comunicação, muito mais desenvolvidos que os daquela época em Oran, tratam de zelar devidamente pelas relações. A mesma dificuldade nos assola ao imaginar com precisão os atos e os gestos dos que se fazem ausentes. O desafio de se lidar é o mesmo. Na vida em comum, aceita-se a mediocridade das relações, já viver de recordações exige um empenho extraordinário do afeto. E em meio à incerteza do tempo, existe também a incerteza do retorno do corpo saudável e vivo que outrora esteve tão perto, já que quanto ao aspecto interno sabemos que nunca mais seremos os mesmos ao voltar para onde estávamos quando tudo isso começou. Se estás a esperar, ao fim dessa crônica, um desfecho agradável e seguro aos corações que desesperadamente buscam se segurar a algum tipo de esperança que os faça sair intactos de tamanha viagem, sinto frustrar-lhe, caro leitor. A única coisa que se pode esperar é viver o desconhecido e, nessa oportunidade, jurar, mais uma vez, ao não perceber o milagre de uma existência misteriosa a cada dia, que essa fora, depois da primeira, a última vez em que a vida não esteve sob nosso controle.

Por: Patrícia Cecília Lopes Rodrigues - DIREITO UFMG

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OGITRA

JURISPRUDÊNCIA NA BUSCA DO CUMPRIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS

Ante o risco aos direitos humanos representado e anunciado pelos governos neoliberais que vêm mundialmente eclodindo, há que se compreender os mecanismos jurídicos internacionais como um condão capaz de assegurar o cumprimento referente à matéria. Nesse sentido, a Corte Internacional

de

Justiça

assegurados,

ao

passo

tem que,

papel na

crucial

codificação

na de

manutenção seu

estatuto,

e

cumprimento

se

encontram

dos

direitos

brechas

que

possibilitam a inércia frente aos descumprimentos dos acordos e tratados.

Para tanto, apresentar-se-á uma crítica ao art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (responsável pela codificação das fontes do Direito Internacional) à luz de uma abordagem histórica concernente às convergências jurisprudenciais no labor dos Tribunais Internacionais contemporâneos, e o conservadorismo evidenciado pela desconsideração das jurisprudências enquanto fontes.

Art. 38 - A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará: a. as convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; b. o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito; c. os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas; d. sob ressalva da disposição do Artigo 59, as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito.

Em síntese, o referido artigo apresenta duas situações problemáticas: a primeira, na alínea “c”, especialmente evidente, é capaz de apontar o viés conservador que tomou a Corte no momento de formação de seu Estatuto. A expressão “nações civilizadas” salienta um conceito primórdio, de uma antropologia arraigada ao eurocentrismo, hoje já - em tese - completamente superada. O início do século XIX foi marcado pelo cientificismo, ao enquadramento antropológico, notado pelo racismo científico, ou darwinismo social, ao qual os corpos sociais eram divididos entre primitivos e civilizados, sempre ambientados a uma “linha de evolução”. Todavia, já no século seguinte, os estudos aprofundaram, e como consequência, a ideia de nações mais ou menos civilizadas cai por terra na ciência antropológica. Apesar de toda essa reflexão hermenêutica, a Corte ainda optou pelo uso da expressão já mencionada. Em contrapartida, alguns juristas consideram a discussão encerrada e optam por ignorar o texto literal, decisão que por óbvio privilegia os países europeus, assim como a cultura eurocêntrica.

Entretanto

é

preciso

compreender

a

dimensão

mais

profunda

da

decisão

linguística:

o

conservadorismo toma espaço. Não cabe a nós promover uma discussão antropológica acerca da conveniência - ou não - da letra do texto, mas é necessário que se busque entender os apontamentos que ele pode nos proporcionar.

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Destarte o primeiro problema identificado, é preciso reconhecer o segundo, apresentado na alínea “d”. Nela estatui-se a jurisprudência como mero “auxiliar”, desclassificando-a enquanto fonte. É sabido que o ideal de Direito Internacional perpassa a coesão e coerência entre as decisões tomadas pelos Tribunais Internacionais, no entanto a letra do texto se apresenta como um um empecilho explícito, uma barreira legal ao quimérico Direito Internacional defendido a fundo pelos próprios internacionalistas, como Cançado Trindade “É de se esperar que, nestes novos tempos, se consolide enfim a aplicação do princípio da jurisdição universal, em meio à expansão da função judicial internacional, na busca da realização do antigo ideal da justiça em nível internacional”.

Infere-se que os dois pontos levantados como problemáticos no corpo do texto do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, nos permitem compreender a dimensão mais profunda das escolhas feitas na criação do Estatuto: o caráter conservador da Corte Internacional de Justiça, tanto étnica quanto juridicamente.

Transparece-se cada vez mais inadmissível a mumificação dos mecanismos e ferramentas do direito, capazes de concretização da universalização dos direitos humanos. Apoiada na globalização, a jurisprudência, enquanto parte de uma jurisdição una, precisa, mais do que nunca, harmonizar-se, uma vez que as relações interestatais, e até mesmo interpessoais, não se limitam às fronteiras estatais. A jurisdição internacional aplicada na solução de conflitos enquanto fonte do direito tem o potencial de simplificar e agilizar as decisões, assim como realizar esse movimento de unificação tão desejado por internacionalistas renomados como Cançado.

Não

que

passar

despercebido

que

tanto

o

princípio

da

jurisdição universal, quanto o da complementaridade, dentre outros, conclamam a uma aproximação maior, se não interação, entre os ordenamentos jurídicos internacional e nacional. Não poderia ser de outra forma, particularmente em nossa era, em que, com crescente frequência, assuntos os mais diversos são submetidos ao controle judicial no plano internacional.

Para além da leitura do corpo do texto do Estatuto da CIJ, deve-se compreender os acontecimentos históricos que foram peça fundamental, tanto para a formação dos Tribunais, quanto para as suas modificações posteriores, em um processo dialógico no qual as vivências mundiais influenciam os Tribunais (e seus movimentos de formação), e os Tribunais influenciam as experiências externas aos juízos. Nesse sentido, os erros e acertos, sob o crivo da razão (não só da jurisprudência, mas também da logística), encaminharam os Tribunais ao que temos hodiernamente, tanto nas decisões, quanto nos mecanismos de garantia dos seus cumprimentos, o chamado “direito de acesso à justiça internacional”.

Como resultado de um processo contínuo de amadurecimento, o Direito Internacional, no prisma dos Tribunais Internacionais, possibilita uma abertura “discricionária” aos julgadores. Todavia, ainda assim é possível perceber os mecanismos de “cruzamento de referências” e “fertilização cruzada”, que, a cada sentença, fortalecem a ideia de um Direito coerente e coeso. Partindo para uma interpretação mais técnica, a jurisprudência resulta da união de esforços das partes ativas e passivas de um processo, na qual os casos (situações pontuais) se tornam causas (conjunções de casos).

Partindo para uma leitura histórica, segundo Maria Cristina Cereser Pezzella e Cristhian Magnus De Marco, a jurisprudência resulta da união de esforços das partes ativas e passivas de um processo, na

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qual os casos (situações pontuais) se tornam causas (conjunções de casos).

Liricamente,

assimila-se

que

a

jurisprudência

possibilita

a

“causificação”

dos

casos.

Portanto, com o recente aumento do “lobby” dos Direitos Humanos, há uma tendência grande de a jurisprudência enquanto fonte do direito significar a integração de um instrumento

progressista

ao

que

pese

a

força

do

discurso

moderno

no

cenário

internacional. Juan Mendez confirma a importância e grandiosidade do grupo de pressão internacional referente aos Direitos Humanos:

O caminho rumo aos órgãos e procedimentos baseados em tratados e judiciais é, evidentemente, o mais difícil. Não há nenhuma razão para otimismo com relação à perspectiva de países voluntariamente abrirem mão de parcelas de sua soberania e permitirem que órgãos externos decidam sobre assuntos de direitos humanos. É por isso que é importante manter

sistemas

de

proteção

que

não

dependam

inteiramente do consentimento dos Estados, mesmo que o seu valor no desenvolvimento de padrões seja em muito diminuído. O objetivo é, contudo, defender e fazer lobby visando a obter tratados e protocolos opcionais com essas características,

e

fazê-lo

intensivamente

e

de

forma

sustentada.

Se parcialmente derrotado o conservadorismo explicitado no artigo 38, a jurisprudência seria peça fundamental para unificar a possibilidade de alcance das conquistas jurídicosociais entre os Estados, além de diminuir a mora quase inerente à jurisdição - não só internacional acerca das decisões e mecanismo de garantia de cumprimento. Nesse sentido, o contexto atual de desmonte das estruturas nacionais capazes de assegurar o cumprimento dos direitos humanos nos leva à necessidade de buscar garanti-lo por meio, inclusive, das instituições de direito internacional utilizando uma jurisprudência coerente e coesa como fonte de direito.

POR: MARINA LEONEL PEREIRA SANTANA PAIVAMENEZES - DIREITO UFMG

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Frankenstein Por: Victor Wallace Domingues de Menezes - Direito UFMG

O exemplar da coleção de Clássicos da Penguin Companhia, 417 páginas, inicia‐se com um texto que apresenta um estudo detalhado feito pelo inglês Maurice Hindle, Ph.D. em literatura pela University of Essex, com uma biografia sobre a autora, apresentando as perspectivas que fizeram Mary escrever a obra, a influência e as interferências do marido da autora e as partes que sofreram alterações durante as republicações. Nesse estudo, o leitor também é apresentado aos pensamentos de filósofos, de cientistas e de outros intelectuais que influenciaram a escritora.

AHNESER

Frankenstein é resultado de um conjunto composto pela intelectual e sentimentalmente defasada educação paterna oferecida à Mary Shelley, devaneios noturnos, conversas sobre a criação da vida e uma crítica impositora à Percy Shelley, marido da autora. Diante desses fatores, surge, durante um verão recluso pelas péssimas condições climáticas na Suíça, a obra que revolucionou a literatura mundial e que coleciona admiradores 200 anos após sua primeira publicação.

O livro conduz o leitor a profundos questionamentos sobre a essência humana e sobre os extremos que lhes cercam, marcando sua autenticidade na construção do cenário pós‐ criação laboratorial da vida e retratando os infortúnios gerados por um ser que foi desenvolvido e lançado à sorte ao mundo. Assim, a busca incessante por conhecimento do jovem Victor, que lhe gera promissor resultado, introduz o terror, elemento que, na trama, não se limita em sanguinário e fantasmagórico como atualmente conhecemos, necessitando de perspicácia do leitor para identificação da constante angústia e apreensão narrada. E dessa forma, a autora foi mesclando o gótico, com pinceladas de terror, de grotesco e de solidão, e a ficção científica, com discussões relevantes da “filosofia natural”, evidenciando influência dos diversos pensamentos dos séculos XVIII e XIX. Narrada na primeira pessoa pelos personagens: Robert Walton, aventureiro que idealiza atravessar o polo norte, Victor Frankenstein, o médico provedor do monstro e a Criatura ‐ também chamada de Monstro, Demônio ou Aquilo – e intitulada Frankenstein ou o Prometeu Moderno – referência ao personagem e ao titã que enganou Zeus e tornou‐se o criador ou o benfeitor da humanidade –, a obra tornou‐se um clássico pela profundidade da narrativa sobre valores humanos, sendo a pioneira nessa mescla de gêneros. Daí em diante, o texto é só surpresas, não sendo parecido com as adaptações cinematográficas voltadas ao público infanto‐juvenil, as quais, entre outras divergências, nomeiam de Frankenstein a Criatura, ao invés de seu criador. Apesar de tudo isso ser fictício, inclusive o médico Victor Frankenstein, com nome inspirado em um castelo de Darmstadt, na Alemanha, os assuntos abordados na obra são frequentemente discutidos atualmente, porém, com novos conceitos e regido pelo termo bioética. Essa é uma boa dica literária àqueles que querem se iniciar com os clássicos ou, apenas, entreter‐se em uma prazerosa leitura.

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OGITRA

A Economia Popular e Solid O termo Economia Popular e Solidária - EPS, em síntese, remete a um conjunto heterogêneo de práticas sociais e econômicas realizadas pelas classes trabalhadoras a partir de sua própria força de trabalho e de meios de produção próprios (Coraggio, 2000). Essas iniciativas têm como objetivo assegurar a reprodução da vida social, muitas vezes pautando-se na solidariedade, na inclusão, na sustentabilidade e na emancipação social (Cattani et al, 2019; Diniz, 2017). Essas formas de produção englobam, por exemplo, ambulantes, catadores de materiais recicláveis, artesãos, agricultores urbanos, produtores artesanais de alimentos e empreendimentos econômicos solidários organizados de forma autogestionária em grupos informais, associações e cooperativas (DINIZ; SILVA; GUERCI, 2020). Na nota técnica “Economia Popular Urbana e o Covid-19: Desafios e Propostas para a Região Metropolitana de Belo Horizonte”, Diniz, Silva e Guerci (2020) promovem uma reflexão sobre os impactos da pandemia do vírus Covid-19 sobre as práticas econômicas desses trabalhadores e suas formas de reprodução. Pensar a EPS no atual cenário de emergência sanitária implica reconhecer que a vulnerabilidade da qual esses trabalhadores padecem precede a quarentena mas se agrava com ela uma vez que junta-se a muitas outras emergências, como a alimentar, a de infraestrutura, a social e a da violência doméstica (SANTOS, 2020). Nesse cenário, algumas das características apontadas na Nota que contribuem para o aumento da vulnerabilidade dos trabalhadores da EPS na RMBH são, o elevado grau de informalidade, o maior percentual de pretos e pardos, a menor escolaridade formal e o menor rendimento em comparação ao total de ocupados segundo dados da PNAD Contínua 2018. (DINIZ; SILVA; GUERCI, 2020). Além disso, as atividades da EPS são dificilmente substituíveis por atividades não presenciais e dependem em grande medida da circulação de pessoas no espaço urbano, nas feiras, ruas, praças e pequenos comércios (DINIZ; SILVA; GUERCI, 2020). Entre os efeitos das restrições impostas pela pandemia, como a interrupção das atividades do comércio, o distanciamento social e a redução da circulação de pessoas nas vias públicas, está a redução do alcance das redes de solidariedade e cuidado que se estabelecem no cotidiano dessas economias (DINIZ; SILVA; GUERCI, 2020). A indicação por parte da OMS para trabalhar em casa e em autoisolamento é impraticável para trabalhadores que ganham dia-a-dia para viver dia-a-dia (SANTOS, 2020, p.17).

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ária em tempos de pandemia Nesse cenário, a Nota aponta para a importância do repasse da Renda Básica Emergencial (Projeto de Lei 698/2020) e de outras ações voltadas para as famílias integrantes da economia popular. Para minimizar os prejuízos e o impacto sobre o rendimento que deve se estender ao período de recuperação econômica, entidades, coletivos e movimentos sociais produziram um Plano de Recuperação da Economia Popular, destinado, sobretudo, à realidade de Belo Horizonte. O plano propõe ações e políticas de curto, médio e longo prazos, elaboradas por meio de estudos acadêmicos, de dados de órgãos públicos e da vivência de trabalhadores da economia popular de Belo Horizonte. O Programa de Extensão Colméia, grupo de estudos, pesquisa e extensão em Economia Popular e Solidária da FACE/UFMG, participou da elaboração do Plano e vem desde março propondo ações de apoio aos produtores da RMBH, especialmente em relação à comercialização não presencial. O grupo desenvolveu um Catálogo Virtual de Empreendimentos da EPS e Agroecologia, que reúne fotos e descrições dos produtos e informações para contato de mais de 70 empreendimentos da RMBH. Posteriormente, iniciou-se uma parceria com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais para a elaboração de uma plataforma que estende a ideia do catálogo ao nível estadual. A repercussão das ações levou ainda à elaboração do projeto “Covid-19 e a EPS: construindo soluções em tempos de pandemia”, que tem por objetivo elaborar conteúdos e uma plataforma de apoio à comercialização online.

Por: Mariana Rodovalho Guerci Relações Econômicas Internacionais UFMG

Referências Bibliográficas: CATTANI, A. D.; LAVILLE, J. L.; GAIGER, L. I.; HESPANHA, P. Dicionário Internacional da Outra Economia. São Paulo: Almedina Brasil, 2009. CORAGGIO, J. L. Da Economia dos Setores Populares à Economia do Trabalho. In: KRAYCHETE, G. et al. (Orgs.). Economia dos setores populares: entre a realidade e a utopia, Petrópolis: Vozes, 2000. p. 91-133. DINIZ, S. C. Do precário ao plural: realidades e possibilidades da economia popular no Brasil contemporâneo. XVII Enanpur. São Paulo, 2017. DINIZ; SILVA; GUERCI; Nota Técnica: Economia Popular Urbana e o Covid-19: Desafios e Propostas para a Região Metropolitana de Belo Horizonte. 2020. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Grupo Almedina. Abril, 2020.

1 Graduanda em Relações Econômicas Internacionais, FACE/UFMG. Bolsista do Grupo de Extensão Colmeia Solidária. 2 Dados da PNAD Contínua IBGE 2018 (DINIZ; SILVA; GUERCI, 2020) 3 Detalhes sobre o plano podem ser consultados por meio do portal da Economia Popular em: <https://www.economiapopular.com.br/.> Acesso em: 17/11/2020. 4 O Catálogo Virtual pode ser encontrado no Blog do Grupo Colmeia em: <https://colmeiasolidariaufmg.wordpress.com/2020/04/02/455/>

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OTNOC

A OUTRA JANELA

Os pontos precisos da máquina de costura da minha mãe me despertam para a outra janela vazia. Não vai acabar nunca. Me lembro do “Oi, como está a quarentena?” colado no vidro, a parede azul clara ao fundo. O quarto de uma garota, da minha idade, que parece ser gente boa. O dia todo penso se o recado é mesmo para mim. Só nos cumprimentamos quando nossas mães param para conversar na rua. Quero responder. Preciso. Marina cursa Engenharia Civil, toca violão, gosta de música alternativa e segura seu cachorro diante da janela. Thor. É pequenino. Acho que ele gosta de mim. Nós até combinamos horários em que formamos pilhas de folhas de rascunho no chão. Falamos sobre livros. Pergunto se ela acha que a Capitu traiu mesmo o Bentinho. “Nunca li, mas deve ter traído, né?” “Não pediram no seu colégio?” “Desculpe, Sr. Direito, mas só li o resumo.” “Quer emprestado?” Acordo no sábado com o barulho da máquina. Minha mãe não saiu nenhuma vez desde que tudo isso começou. Faz parte do grupo de risco. “Vou ficar sozinha hoje” está escrito na janela. Aniversário de casamento dos pais. Penso que os restaurantes estão fechados. Marina diz que um conhecido já abriu o dele escondido. É 19:30 e ela não está lá. Encaro o “Você pode trazer o livro?” Coloco a máscara que minha mãe costurou, toco a campainha e o deixo na porta dela. Há um post-it: “Espero que você goste, além de chegar na conclusão certa haha”. Haha? Estou a um passo de arrancar o papel quando a porta abre. Me afasto depressa. Marina também. Ela é linda. Só conversaria com um cara como eu por força do tédio.

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— Obrigada. — Ela pega o livro do tapete usando uma máscara azul. Vários metros entre nós, conversamos. É ainda mais fácil assim. Adoro aquela voz. Agora tenho seu número e a ouço todos os dias. É assim que percebo que não tem mais volta. Minha mãe até nota que tem algo diferente em mim. Marina já está quase acabando de ler. Está ansiosa. Na manhã passada, não tinha um “Fazendo o quê?” na janela, e nem nessa. Nosso interfone toca. Não esperamos ninguém. Do olho mágico consigo perceber olhos inchados de uma noite mal dormida e de lágrimas acumuladas. A mulher se apresenta como tia de Marina e procura por mim. Diz ser a única da família que não foi infectada. A princípio, eu não entendo o que quer dizer. As palavras se embaralham. “Respirador. Madrugada. Tarde demais. Infelizmente. Marina.” — Este livro é seu? — pergunta com pesar. Afirmo com a cabeça e recolho o exemplar de “Dom Casmurro” de aspecto antigo devido às páginas amareladas. Devo dizer “Meus sentimentos” ou “Meus pêsames”, mas nada disso soa adequado. É impossível acreditar que Marina nunca mais vai aparecer pela janela. — Sinto muito — balbucio, sentindo meus olhos arderem. É o máximo que consigo dizer. Ela se despede à distância, de forma fraternal, e desaparece com passadas largas pelo corredor. Fico paralisado por um bom tempo. Então fecho a porta e giro a chave com força, como se aquele sentimento de perda ficasse trancado ali fora. Volto para o quarto e tenho um sobressalto, o coração chega a errar as batidas. Jogo o livro na cama e me deparo com uma de minhas citações favoritas destacada de leve à lápis, no capítulo XIV. “Os olhos continuaram a dizer coisas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham...” Nesse momento, uma lágrima escorre pelo meu rosto e forma um círculo na página amarelada. Será que ela marcou o que queria dizer para mim? Foi nesse mesmo capítulo que Bentinho descobriu que seu sentimento por Capitu era recíproco. Todavia, percebo nessas mesmas palavras que não haverá um próximo capítulo na nossa história. Sozinho, adormeço com o gosto salgado na boca. Os pontos precisos da máquina de costura da minha mãe me despertam para a outra janela vazia. 68 dias de quarentena. Meus colegas estão se encontrando. Ouço festas em outros prédios. Dessa vez, sinto falta dos latidos do Thor. Não vai acabar nunca.

Por: Pâmela Cirino Fernandes & Stefane Bresser Moreira Batista - Direito UFMG

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O GRANDE FECHAMENTO OGITRA

Por: Bruno Braga de Castro - Direito UFMG Na manhã de mais um dia de quarentena, depois de mais uma noite mal dormida e muita dificuldade de vencer aquele sono paralisante, que não me deixava abrir os olhos direito, pensei sobre o que escrever nesse artigo, artigo esse que venho ensaiando na minha cabeça há dias, mas que, por uma imensa ansiedade e incapacidade de concentração, só tomei forças para escrever hoje. Não tenho nenhum tipo de expectativas sobre isso que está acontecendo aqui, pois, ultimamente, tenho duvidado muito da minha aptidão para traduzir em palavras tudo o que eu estou sentindo e pensando, o que não me impede de tentar. Olhando as notícias importantes nos principais jornais do Brasil e do mundo, como todos os dias faço, me deparei com o que o Fundo Monetário Internacional divulgou para o mundo: atravessaremos uma crise econômica mais grave do que a Grande Depressão de 1929, que, na época, derrubou o mundo humano pelas suas bases, destruindo não só a economia, mas também as subjetividades das pessoas e de certa forma a cultura ocidental, naquele momento encantada com o progresso técnico que o capitalismo imperialista e selvagem proporcionava, mesmo que para poucos, e eufórica com o fim da 1a Guerra Mundial. Pois bem. Diante desse cenário catastrófico, apelidado de “The Great Lockdown”, traduzido como “O Grande Fechamento”, vários pensamentos se amontoaram na minha cabeça. Preso mais ao nome dado a esse contexto histórico ao qual estamos submetidos e à semântica que o conjunto das palavras que o formam carregam do que precisamente aos números alarmantes e preocupantes sobre os imensos prejuízos que esse sistema obsoleto — ainda visto como a única opção de desenvolvimento pela maioria — terá, pensei que as palavras “grande” e “fechamento” poderiam ser transplantadas para outras instâncias da vida humana nesse momento em que somos obrigados a nos isolar do antigo mundo que conhecíamos até meses atrás. Isso porque, como subjetividade, como um indivíduo social e como um cidadão brasileiro, o que a quarentena tem me feito é um grande fechamento. Em mim, com os outros, e por outros. Explico adiante: O Grande Fechamento (em mim) Não saio da minha casa desde o dia 15/03/2020. Fui a uma festa no dia anterior e, mesmo sem conseguir imaginar totalmente tudo que estaria por vir, me despedi do mundo como eu conhecia, me baseando nas experiências de solidão e isolamento que as outras pessoas de outros países já estavam enfrentando. Por incrível que pareça, porém não me dei conta de

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que seria obrigado, por conta de um vírus, a conviver comigo mesmo e com os meus pensamentos durante as 24 horas do dia. Não imaginei, pelo menos conscientemente, que estava me fechando, em mim mesmo, como subjetividade, e em tempo integral. Que estava, de forma compulsória, me deparando com o mais íntimo de mim, sem as distrações dos estudos e da rotina que eu levava antes dessa crise, rotina essa que, mesmo que por alguns momentos, era capaz de adormecer o eu que mora em mim. Os dias foram passando, e, sensibilizado pelas notícias arrasadoras do número de mortos e infectados aumentando, estressado pelos crimes cometidos pelo presidente brasileiro em sua maneira de lidar com a situação calamitosa que o Brasil está e entediado pelo ócio, tenho tido a oportunidade de me confrontar como eu ainda não tinha feito antes, mesmo após anos de terapia. As mesmas listas de músicas e álbuns que eu escutava antes da crise incansavelmente, talvez por tê-los incorporado àquela rotina maçante que hoje me questiono se me faz falta, tomaram outro significado. O álbum da banda O Terno, que antes me tocava pela beleza das letras e melodias, hoje me tocam pela concretude que a música “Tudo Que Eu Não Fiz”, “Pegando Leve” e “Passado / Futuro” tomaram. As reflexões que antes eu fazia sobre meus relacionamentos, minha família, minhas escolhas e a vida que eu queria pra mim, de um dia pro outro foram trancadas em um baú de memórias de um mundo que não existe mais. A partir de agora, as reflexões são dos relacionamentos que eu quero ter, do modo como quero conviver em família e das escolhas que eu ainda vou fazer quando essa pandemia acabar. Talvez eu precisasse dela pra perceber que, com 19 anos de idade, não estava tudo acabado como minha cabeça de um homem de meia idade em crise pensava estar. Por fim, o Grande Fechamento (em mim), paradoxalmente, apesar de estar sendo de certa forma renovador, ele também tem sido destrutivo. Isso porque, devido ao futuro incerto que teremos, todas as novas oportunidades que esse novo mundo nos trará não são inteligíveis no momento, e isso é extremamente angustiante e exaustivo. Tenho me sentindo exausto, mesmo sem fazer muita coisa, pelo menos aparentemente. Tenho mais dúvidas do que respostas, e, se antes da pandemia, em um mundo já conhecido por mim, isso já me causava arrepios, imagina agora, que essas dúvidas sem respostas vagam por um mundo que ainda será (re)construído. A única conclusão que eu tiro dessa divagação é que terei mais longos anos de terapia pela frente. Tanto pelos estragos do vírus, quanto pelos estragos do meu olhar e do meu grande fechamento pra dentro (a gente vê, sente e pensa umas coisas que antes não via, não sentia e não pensava). O Grande Fechamento (com os outros) Nunca imaginei que passar tempo com as pessoas que eu mais amo no mundo, a minha própria família, seria um dos grandes desafios que eu enfrentei nos últimos tempos. Afinal, passávamos tanto tempo ocupados com as nossas próprias rotinas, fazendo viagens à trabalho, estudando até tarde ou encontrando os amigos que gostamos, que um tempo juntos teria tudo para ser uma ótima experiência, mesmo que eu não tivesse criado muitas expectativas quanto a isso, uma vez que, mesmo no mundo velho, já tínhamos nossos conflitos, como qualquer família comum. Pensei que, no antigo mundo que vivíamos, sempre reclamávamos das saudades um do outro e de como muitas vezes não tínhamos

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tempo para reparar nas pequenas coisas uns dos outros, pra conversar sobre assuntos familiares e para nos conhecermos melhor, já que a constante transformação de nós mesmos e a morte são as únicas certezas que temos na vida. O Grande Fechamento com os outros, sendo estes a minha família, me colocaram diante de grandes desafios. O principal deles é perceber o quão diferente deles eu posso ser, o que era algo que já desconfiava. E imagino que o mesmo que tenho sentido fechado em mim, eles têm sentindo fechados neles. Mas, com a intensificação do tempo de convivência, o que era latente e restrito apenas aos encontros em família, se tornou constante e, mais uma vez, catalisado pela angústia e ansiedade diante do novo mundo que ainda não pudemos conhecer. Assim, diversos conflitos internos e externos surgiram, o que me tem feito refletir muito: Como conciliar minhas diferenças, muitas vezes intransponíveis, com as deles? Ainda estou tentando descobrir. Talvez não descubra agora, talvez não descubra nunca. De concreto, o que esses conflitos causaram em mim foi a necessidade urgente de exercitar a minha tolerância e paciência, antes mais frágeis pela possibilidade de me distanciar deles por um tempo caso eu quisesse. Agora, preso com eles, pra onde posso fugir? A conclusão que tiro deste trecho, parte desse desabafo, é que os Grandes Fechamentos talvez estejam me obrigando a conviver com situações que antes, por comodidade, eu apenas enterrava em mim mesmo. Mas, uma vez que fechado em mim e fechado com os outros, tudo o que me resta é viver essas situações, tentando resolvê-las de maneira a aliviar o monte de sofrimentos já trazidos pela própria conjuntura que estamos vivendo. Afinal, o mundo lá fora, fechado também, já está suficientemente difícil para não nos esforçarmos para ficarmos bem no único lugar que, mesmo nos cansando e nos fazendo sofrer, paradoxalmente, é onde estamos mais seguros. O Grande Fechamento (por outros) Não. Não culparei o vírus por esse fechamento, apesar de, essencialmente, ele ser a causa primordial de toda essa destruição que estamos presenciando de nossas janelas. O lockdown causado pelo vírus é necessário para a nossa sobrevivência, no final das contas. Na verdade, essa parte do texto trará como culpado por esse grande fechamento — o que eu chamei de O Grande Fechamento (pelos outros) — o presidente da república, sua equipe e sua base de apoiadores mórbidos. Sim, Bolsonaro é o culpado por estarmos fechados em um país que está indo diretamente ao esgoto. Ele está, nesse momento, nos fazendo de reféns de seus planos genocidas para o povo brasileiro, usando como arma a COVID-19, sua omissão em relação ao SUS e seus incentivos à aglomerações e desrespeito às recomendações da OMS. Basta pensarmos que dois ministros da saúde caíram e que ele, com aval dos seus tutores militares, autorizou, por meio de um protocolo, o uso de um medicamento que mais se parece com veneno para os pacientes que agonizam sem ar nos leitos limitados dos hospitais. Como se não fosse suficientemente obscuro esse cenário, o verme que chamamos de presidente ainda, constantemente, inflama sua horda de homens lobotomizados pela sua ideologia da morte para pedir golpes militares e o fim da democracia brasi-

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leira, construída por meio de muita luta e após o derramamento de muito sangue depois de 21 anos de ditadura militar, que, não custa lembrar, é elogiada abertamente pelo capitão que hoje A carne mais barata do mercado é a carne negra usurpa o Palácio do Planalto.

Só-só cego não vê Que vai de graça pro presídio Desde o início do grande fechamento do Brasil, no início de março, o presidente da república já E para debaixo do plástico (SOARES, 2002)

saiu às ruas diversas vezes, tocando em seus apoiadores, causando aglomerações e, talvez, transmitindo a COVID-19 entre os seus seguidores. Para além de todos os crimes que esses atos configuram, queria, aqui, analisar o bolsonarismo como uma ideologia nefasta, que tem como objetivo o autoextermínio, a destruição do povo e a morte como princípio reitor de todas as ações empreendidas por este homem que chamamos de presidente. Fazendo uma analogia, Bolsonaro representa o Voldemort, e seus seguidores e equipe, os comensais da morte. Quem lembra do “e daí?”, proferido em alto e bom som pelo Bolsonaro com uma frieza incompreensível para qualquer pessoa que não tenha sido capturada por ele? De maneira escatológica, temos um verme que nos governa e todo dia se dedica a atacar inimigos criados por ele, como a China, o seus Ministros da Saúde, o STF, os governadores, prefeitos e o presidente da Câmara dos Deputados. Enquanto isso, corpos se amontoam nos hospitais e cemitérios sem que os familiares dessas pessoas transformadas em números — que Bolsonaro chama de pequenos — possam sequer se despedir, para evitar o contágio pelo coronavírus nos que ainda estão vivos, tamanha a gravidade da crise de saúde que o Brasil e o mundo vivem hoje. Será que os mais de 20.000 mortos que o Brasil tem até o momento são insuficientes para que a mente perversa que comanda o país pare de ser irresponsável?

Lamentavelmente, a resposta dessa pergunta parece ser sim. Em entrevista dada no passado, Bolsonaro vociferou que a ditadura deveria ter feito 30.000 mortos. Diante dessa declaração, talvez esse momento de pandemia esteja sendo a oportunidade perfeita para que o presidente assassine todos aqueles inocentes que ele quer exterminar há anos, uma vez que os estudos demonstram que, caso as orientações da OMS continuem sendo desrespeitadas, o número de vítimas da doença no Brasil pode chegar a casa dos milhões. Assim, submetidos a um plano genocida articulado em torno da abertura do comércio (visto que a economia é mais importante que a vida humana) e do (grande) fechamento do Congresso Nacional e do STF, empreendido por um psicopata eleito democraticamente, e, hoje, apoiado por uma minoria de pessoas que apodreceram junto à democracia brasileira, não há grande fechamento — esse por motivos sanitários — que seja capaz de parar a COVID-19. Para piorar o que já é aterrorizante, as mesmas instituições democráticas atacadas constantemente pelo anti-presidente insistem em se acovardarem e se omitirem quanto à nocividade, igual ou superior que a do coronavírus, do vírus Bolsonaro, que infecta todos os dias os indivíduos, as famílias, e a sociedade brasileira. Todos esses fechados de diferentes maneiras, que, combinadas, são capazes de me colocarem incrédulo e recolhido em pensamentos e sentimentos nada nobres. Sentimentos esses que são apenas sintomas mórbido de uma doença que mata o Brasil: o bolsonarismo. Toda essa breve análise da situação política do Brasil serve para concluir que esse Grande Fechamento (por outros) é, por ser o maior de todos, visto que envolve todo o corpo social, aque

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le que mais me tem feito mal durante o isolamento social e os outros dois grandes fechamentos comentados nesse texto. Isso porque, como indivíduo social e cidadão brasileiro, me sinto constantemente agredido pelo meu próprio presidente, que, com suas ações, colocam em risco a vida dos meus, intensificam a dor de estar fechado em mim e as dificuldades de estar fechado com os outros, já que, além de despertarem em mim sentimentos tóxicos e me tornarem muitas vezes intolerante e impaciente, objetivamente, essas ações atrasam o fim — ou, pelo menos, o relaxamento — da quarentena.

(Foto e legenda por Lucas Landau).

Termino essa parte do texto com uma imagem, capaz de expressar o Brasil de 2020 muito bem:

“Um policial aponta uma arma em direção a casas da favela do Vidigal que jogavam ovos e objetos em carros que participavam de carreata pró-Bolsonaro e a favor da reabertura do comércio durante a pandemia do Covid-19 no Rio”

É isso aí: o policial representa o presidente, que é aquele que deveria estar trabalhando para nos proteger, mas, ao contrário, nos ameaça com o que está em suas mãos para nos matar. Por sua vez, os motoristas da carreata da morte representam os zumbis bolsonaristas que saem pelo Brasil fazendo campanha pelo autoextermínio e os moradores do Vidigal representam o povo oprimido e feito de refém pelos primeiros. O Grande Fechamento (do texto) Para concluir esse texto, me apego em um excerto de Gramsci, que diz: A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem.

Sem nos dar nenhuma resposta, Gramsci é capaz de, no fundo, acender um fio de luz dentro de nós. Interpretando a assertiva, concluo que, apesar de mórbidos os sintomas, um dia eles vão passar e o novo vai nascer. Logicamente, portanto, o Grande Fechamento cessará e o novo mundo nascerá também. Enquanto isso não se concretiza, permaneço fechado em mim, com os outros e, infelizmente, por outros, me perguntando que vida teremos quando tudo isso acabar. Trazendo Gramsci novamente, eu, pessimista da razão e otimista da vontade, me respondo dizendo que o novo que nascerá depende de nós. Basta nos organizarmos pela construção do mundo que queremos para que seja possível, novamente, nos abrirmos como subjetividade, como indivíduos e como cidadãos livres, saudáveis e proativos na reconstrução da humanidade que haverá de nascer após a catástrofe da pandemia. Referências Bibliográficas: DIAS, Marina. ‘Grande paralização’ levará economia global a pior recessão desde 29, diz FMI. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 de abr. de 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/grande-paralisacao-levara-economiaglobal-a-pior-recessao-desde-29-diz-fmi.shtml> Acesso em: 26 de mai. de 2020. BEHNKE, Emilly, SABINO, Marlla, BARCELLOS, Thaís. ‘Não tem que se acovardar com esse vírus’, diz Bolsonaro em live gravada no Palácio do Planalto. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 18 de abr. de 2020. Disponível em: < https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,nao-tem-que-se-acovardar-com-esse-virus-diz-bolsonaro-em-live-gravada-no-palacio-do-planalto,70003275918> Acesso em: 26 de mai. de 2020. JURISTAS, políticos e entidades reagem a nova participação de Bolsonaro em ato antidemocracia. G1, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/03/politicos-reagem-a-nova-participacaode-bolsonaro-em-ato-antidemocratico.ghtml> Acesso em: 26 de mai. de 2020. BOLSONARO, Jair. 1999. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ElBQbueU0tQ> Acesso em: 26 de mai. de 2020. DIAS, Marina. ‘Grande paralização’ levará economia global a pior recessão desde 29, diz FMI. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 de abr. de 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/grande-paralisacao-levara-economiaglobal-a-pior-recessao-desde-29-diz-fmi.shtml> Acesso em: 26 de mai. de 2020. SEM isolamento e ações contra a COVID-19, Brasil pode ter até 1 milhão de mortes na pandemia, diz estudo. G1, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/27/sem-isolamento-eacoes-contra-a-covid-19-brasil-pode-ter-ate-1-milhao-de-mortes-na-pandemia-dizestudo.ghtml> Acesso em: 26 de mai. de 2020.

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O EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO EM FACE DO ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA DECORRENTE DA PANDEMIA CAUSADA PELA COVID-19 Por: Fernanda Quirino Pereira Direito UFMG OGITRA

Na década de 90, o presidente da época, Fernando Collor de Melo, instituiu o empréstimo compulsório e confiscou a poupança da população. A adoção da medida gerou grande impopularidade e críticas ao governo. Atualmente, em face do estado de Calamidade Pública reconhecido pelo Decreto Federal no 6 de 20 de março de 2020, surge o questionamento: caso a União perca a capacidade financeira de enfrentamento do vírus e seus efeitos, poderia instituir o empréstimo compulsório? A resposta é sim. Entretanto, o empréstimo compulsório é dotado de certas particularidades técnicas as quais eu tentarei explorar, não exaustivamente, neste artigo. O empréstimo compulsório trata-se de um tributo previsto constitucionalmente que permite que a União tome certa quantidade de dinheiro, a título de empréstimo, de forma compulsória, ou seja, independente da anuência do contribuinte. É importante ressaltar que o constituinte autorizou a instituição deste tributo apenas em situações excepcionais, sendo seu rol taxativo: Art. 148.CF./88 A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios: I – para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência; II – no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no art. 150, III, b. Parágrafo único. A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição.

Como estabelecido pela norma constitucional, o empréstimo compulsório decorrente de calamidade só é admitido para atender a despesas extraordinárias, ou seja, aquelas não previstas originalmente no orçamento público. Além disso, os empréstimos compulsórios são vinculados, dessa forma, podem ser utilizados apenas nas despesas que lhe deram causa de existir. Cabe ressaltar ainda que, de acordo com o disposto pelo Código Tributário Nacional, o empréstimo compulsório deve ser por prazo determinado, não sendo possível a presunção de que se findará juntamente com o motivo que lhe deu causa e, por se tratar de um empréstimo, a União deverá estabelecer as condições (prazo e forma determinados), de restituição dos valores arrecadados, caracterizando-o como tributo restituível. Art. 15. Somente a União, nos seguintes casos excepcionais, pode instituir empréstimos compulsórios: I - Guerra externa, ou sua iminência; II - Calamidade pública que exija auxílio federal impossível de atender com os recursos orçamentários disponíveis;

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[...] Parágrafo único. A lei fixará obrigatoriamente o prazo do empréstimo e as condições de seu resgate, observando, no que for aplicável, o disposto nesta Lei.”

Embora as previsões de adoção dessa medida sejam de caráter de urgência, a instituição do empréstimo compulsório não é tão simples como podem imaginar uma parte da população brasileira. Atentemo-nos as particularidades do processo legislativo deste tributo. O princípio da legalidade, previsto no artigo 150, inciso I, da Constituição Federal, determina que a criação e majoração de tributos só podem ocorrer por meio de lei. Dessa forma, toda espécie tributária carece de anterioridade legal, garantindo a segurança jurídica. Entretanto, qual lei poderia instituir o empréstimo compulsório? Poderia o Presidente da República instituí-lo por Medida Provisória? Essas são dúvidas recorrentes na sociedade e suas respostas partem da análise dos dispositivos constitucionais. A Medida Provisória é um ato do Presidente da República com força de lei. Não necessita de aprovação anterior do Poder Legislativo para sua efetivação sendo de vigência imediata na data de sua publicação. É utilizada em situações de relevância e urgência. Embora a Constituição Federal preveja em seu artigo 62 a possibilidade de criar e majorar impostos por meio de medida provisória, em nenhum momento a carta magna possibilita a criação de tributos por meio de medida provisória. Perceba, o imposto nada mais é que uma espécie tributária, ou seja, um tipo de tributo. Ao permitir a instituição de novos impostos ou aumento na alíquota deste, a medida provisória interfere apenas em uma das cinco espécies tributárias (impostos, taxas, contribuições de melhoria, contribuições sociais e empréstimo compulsório), não incidindo nos demais tributos. Embora seja instituído em casos de urgência, o Empréstimo Compulsório não pode ser instituído por medida provisória por não se tratar de um imposto e sim de um tributo conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal ao declarar a invalidade da Súmula n. 4181 . Ademais, o próprio artigo 62, em seu inciso III, CF, veda a edição de medida provisória em matéria reservada à lei complementar. A título de mera explicação, inexiste hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, havendo apenas diferença formal e material. As leis complementares versam, obrigatoriamente, sobre matéria especificada pela constituição tendo como propósito explicar, definir e complementar um dispositivo constitucional, sempre respeitando os limites atribuídos pela carta magna sobre a matéria. As leis ordinárias, por outro lado, possuem competência residual, podendo tratar de todos os assuntos que não sejam reservados às leis complementares. Além do exposto, cabe lembrar que a regulamentação da lei complementar é constituída por maior rigidez, pois exige aprovação por maioria absoluta (maioria dos membros) para ter seus efeitos válidos, ou seja, no mínimo, 257 votos favoráveis na Câmara dos Deputados e 41 votos favoráveis no Senado Federal, enquanto a lei ordinária necessita apenas de maioria simples (maioria entre os presentes) para sua aprovação.

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1 A Súmula n. 418, atrelada à Constituição de 1946, declarava que o empréstimo compulsório não era considerado um tributo. Esse entendimento foi alterado após o julgamento do Recurso Extraordinário 111.954/PR, sobre a relatoria do Ministro Oscar Correa, em que o Supremo Tribunal Federal declarou sua invalidade.


Em regra, as leis que criam ou aumentam tributos no Brasil são as leis ordinárias, entretanto, dada suas peculiaridades, conforme disposto no caput do art. 148, o empréstimo compulsório é matéria reservada à lei complementar. Outra peculiaridade é que o empréstimo compulsório não precisa respeitar o período de vacância próprio das leis tributárias. Por seu caráter extraordinário e de urgência o empréstimo compulsório dispensa a anterioridade do exercício e a anterioridade nonagesimal. A anterioridade do exercício é, conforme disposto no art. 150, III, b, da CF, a vedação da cobrança de tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, de acordo com este artigo, um tributo só pode ser cobrado no próximo ano ao ano de sua publicação2 . Dessa forma, caso seja instituído ou majorado um tributo em 2020 ele só poderá ser cobrado no próximo exercício – no próximo ano – em 2021. Entretanto, tal vedação não se aplica aos empréstimos compulsórios decorrentes de calamidade pública, guerra ou sua iminência, conforme previsto no parágrafo 1o do mesmo artigo. Sendo assim, na situação de pandemia reconhecida pelo Decreto Federal no 6, publicado este ano, em que se declara estado de calamidade pública, o empréstimo compulsório, caso seja criado pela União, não precisará aguardar o próximo exercício, será cobrado no mesmo exercício de sua publicação. A anterioridade nonagesimal ou também chamada de anterioridade noventena, trata-se da vedação da cobrança de tributos antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que o instituiu ou aumentou, prevista no art. 150, III, c, da CF. Entretanto, o parágrafo 1o do mesmo artigo dispõe que tal vedação não se aplica aos empréstimos compulsórios decorrentes de calamidade pública, guerra ou sua iminência. Portanto, novamente, na situação de calamidade pública decorrente da pandemia causada pelo novo coronavírus e reconhecida pelo Decreto Federal no 6, não é necessário esperar o prazo de noventa dias para cobrança do imposto. O empréstimo compulsório pode ser cobrado imediatamente após sua publicação. Cabe esclarecer que na instituição de empréstimo compulsório no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, hipótese prevista no inciso II do art. 148, não se aplica as exceções previstas no parágrafo 1o do art. 150. Dado o exposto, podemos concluir que o empréstimo compulsório pode ser instituído em face do Estado de Calamidade Pública decorrente da pandemia causada pelo vírus Sars- CoV-2. Entretanto é uma medida de caráter excepcional, podendo ser adotada apenas para despesas extraordinárias, ou seja, após o Estado ter gasto todos os recursos possíveis para superar a calamidade. Além disso, trata-se de um tributo federal que demanda lei complementar – não podendo ser instituído por medida provisória nem por lei ordinária – e, por seu caráter de urgência, na hipótese de calamidade pública, é dispensado das vedações temporais – tal medida não se aplica para empréstimo compulsório proveniente de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional – impostas aos demais tributos como a anterioridade do exercício e a anterioridade nonagesimal/noventena, sendo, portanto, de cobrança imediata após sua publicação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTINE, Caio. et al. Exame de Ordem: Teoria e Questões – 1a fase. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. 48a ed. Brasília: Coordenação Edições Câmara dos Deputados, 2015. BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei no 5. 172, de 25 de Outubro de 1966. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm. Acesso em: 30 de maio de 2020. BRASIL. Decreto no 6, de 20 de março de 2020 que reconhece a ocorrência do estado de calamidade pública. Brasília: Senado Federal, 2020. BRASIL. Senado Federal. Glossário: Exercício Financeiro. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/glossario-legislativo/exercicio-financeiro Acesso em: 30 de maio de 2020. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 17a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9a ed. Salvador: JusPODIVM, 2017. VILHENA, André. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da natureza jurídica do empréstimo compulsório. Jus, 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44265/o-posicionamento-do-supremo-tribunal-federal-acerca-da- natureza-juridica-do-emprestimo-compulsorio. Acesso em: 30 de maio de 2020.

2 No Brasil, o início e o final do exercício coincidem com o ano civil, iniciando-se em 1o de Janeiro e terminando em 31 de Dezembro.

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LIMITAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS DE PANDEMIA: O I S O L A M E N T O S O C I A L C O M O M E D I D A D E C O M B A T E A O C O R O N A V Í R U S E O S T R A T A D O S I N T E R N A C I O N A I S D E P R O T E Ç Ã O A O S D I R E I T O S H U M A N O S

OGITRA

Por: Geraldo Vitor de Resende - Direito UFMG Resumo: Considerando o atual cenário mundial, notadamente marcado pelos impactos provocados pela pandemia da COVID-19, as discussões acerca das medidas a serem tomadas para reverter o quadro corrente não são apenas possíveis, mas extremamente importantes. Em breve análise serão levantados aspectos fundamentais do Direito Internacional Público e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como as características do isolamento social como ação promovida pelos Estados para combater a pandemia na América Latina, objetivando entender se – e em que medida – direitos humanos podem ser restringidos em tempos de iminente colapso dos sistemas de saúde mundiais. Palavras-chave: Direitos Humanos; COVID-19; Tratados Internacionais; saúde pública. 1 Introdução A crise provocada pela pandemia global do Coronavírus trouxe impactos jamais vistos nos últimos tempos, afetando o globo de maneira imparcial e devastadora. Em um cenário como este é de se esperar que, dada a excepcionalidade da atual situação, as ações dos Estados possuam caráter igualmente extraordinário no intuito de tentar reverter o quadro corrente. Em virtude disso, a temática sobre quais medidas devem ser tomadas no combate à pandemia da COVID-19 enseja fervorosos debates nas mais variadas áreas, notadamente na esfera da saúde, em seu âmbito interno e internacional. Um assunto que tem obtido elevado destaque nas últimas semanas, cujo tema é também o foco deste artigo, centra a atenção na manutenção de direitos humanos frente a pandemia e as consequentes ações dos Estados e organizações internacionais da área da saúde. Dentre estas medidas, a adoção do isolamento social como meio para mitigar a curva de contaminação pela COVID-19, que cresce exponencialmente, tem suscitado o debate acerca da legitimidade e possibilidade de suprimir alguns direitos humanos, como o de liberdade de locomoção, durante a pandemia. Assim, o presente artigo se propõe a continuar o debate acerca da atual conjuntura jurídica e social que norteia as ações de enfrentamento à crise, sob a ótica da preservação e respeito aos direitos humanos, analisando se – e até que ponto – esses direitos podem ser restringidos. Para tanto, a pesquisa baseou-se na leitura e análise de documentos e tratados internacionais que tratam sobre o assunto, em especial o direito humano à saúde [1] e sua aplicação, bem como nas ações promovidas por países latino-americanos para combater a COVID-19. O objetivo deste texto não é esgotar os questionamentos sobre o assunto, tampouco fornecer respostas conclusivas acerca do tema, mas buscar elementos que fomentem o debate e seus desdobramentos no plano concreto. 2 A suspensão de obrigações internacionais e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos

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1 O direito à saúde deve ser entendido, durante todo o artigo, em sentido amplo, abarcando tudo o que é necessário para sua promoção: a prestação estatal de condições de vida adequadas, com água potável, alimentação, serviço de saúde pública acessível a todos. Ademais, levando em consideração as medidas necessárias para compensar questões sociais de minorias representativas, como a população indígena e de periferias.


As obrigações relativas a direitos humanos, advindas da participação em tratados internacionais, delega aos Estados Partes dos acordos o dever contínuo de promover e proteger os direitos humanos em todas as esferas. Excepcionalmente, o próprio acordo admite a possibilidade de suspensão do cumprimento de algumas obrigações em hipóteses nas quais seja colocado a termo a existência da nação. Dado o quadro mundial corrente, fica claro que o campo da saúde se encontra em colapso. Segundo o §1o, artigo 4°, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP); Quando situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam proclamadas oficialmente, os Estados Partes do presente Pacto podem adotar, na estrita medida exigida pela situação, medidas que suspendam as obrigações decorrentes do presente Pacto, desde que tais medidas não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito Internacional e não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social. (AGNU, 1966, art.4o, §1o)

Partindo desse pressuposto, é notável a necessidade de preenchimento de requisitos específicos para legitimar a suspensão do cumprimento de obrigações decorrentes do PIDCP, no intento de fazer valer a primazia dos direitos humanos, exigindo dos Estados Partes do tratado que atuem também de forma negativa, no sentido de se absterem de ferir outras obrigações presentes no Direito Internacional. A possibilidade do art.4o, §1o, toma forma quando aplicada no plano concreto por órgãos legitimados para fazê-lo. A Resolução 1/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denominada “Pandemia e Direitos Humanos nas Américas” [2], traz 85 recomendações especiais destinadas à Estados, organizações e entidades de defesa aos direitos humanos. O documento, que visa auxiliar no combate à pandemia do Coronavírus, traz diretivas pautadas no máximo respeito aos direitos humanos consagrados por meio de tratados internacionais e outras normas do Sistema Interamericano. A Comissão, por meio do documento, delega aos Estados o dever de máximo respeito aos direitos humanos, notadamente o direito à saúde, imprescindível para o pleno exercício de outros direitos inerentes à pessoa humana. Nesse sentido, quando há o claro risco de colapso da saúde em escala mundial, o isolamento social surge como uma das principais respostas de enfrentamento à pandemia, uma vez que retarda os índices de contaminação, preservando a saúde daqueles que não contraíram a doença, e contribui para a reverter a atual saturação dos sistemas de saúde. Logo, a existência de tratados anteriores à pandemia da COVID-19 que possibilitam aos Estados adotarem medidas excepcionais para preservação da integridade da população, bem como a emissão de recomendações por órgãos internacionais legitimados para fazê-lo corroboram a ideia de conciliação plausível entre o devido respeito aos direitos humanos e a premente necessidade de adoção de medidas adequadas. 3 O isolamento social no Brasil e na América Latina As medidas divulgadas por entes governamentais, especialmente da área da saúde, acerca do isolamento social são inúmeras. No Brasil, o governador do Ceará, Camilo Santana, anunciou na quarta-feira (20) a prorrogação do isolamento social até o dia 31 de maio [3] . No Piauí, Wellington Dias estende o decreto de isolamento até 7 de junho [4]. Tal situação se repete também em outros estados do país, assim como no plano internacional. O Equador é um dos países da América Latina mais afetado pela pandemia, possuindo uma das cri2 Interessante destacar que, embora cada uma tenha um objetivo distinto (quer seja de orientar a atuação dos poderes públicos dos Estados ou a vida em sociedade), todas as recomendações da Resolução 1/2020 compartilham de uma preocupação basilar que não deve passar despercebida: a manutenção do Estado Democrático de Direito. De recomendações procedimentais à reconhecimento de grupos minoritários, o documento objetiva implementar um complexo de condutas que não afetam somente as sociedades na crise, mas também a vida pós-pandemia. 3 Sobre o isolamento social no Ceará, conferir: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/05/20/governador-do- ceara-prorroga-decreto-de-isolamento-fortaleza-segue-com-medidas-mais-rigidas.ghtml 4 Sobre o isolamento social no Piauí, ver: https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2020/05/20/governador-do-piaui- prorroga-decreto-de-isolamento-ate-7-de-junho-e-anuncia-medida-na-atencao-basica-de-saude.ghtml

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ses sanitárias mais graves, seguido pelo México que, no último dia 8, alcançou um número aproximado de 30 mil contaminações e quase 3 mil óbitos. O quadro é menos preocupante na Costa Rica, que conseguiu desde o princípio da pandemia identificar os focos de infecção e agir mais rapidamente para conter os índices de contaminação. As principais diferenças existentes entre as situações dos países latinoamericanos no contexto da pandemia são influenciadas, principalmente, pela própria capacidade estrutural de cada um. Sob esse ângulo, é evidente que tamanhas discrepâncias denotam o abismo econômico e social existente entre os países americanos, e que há muito tempo provoca as maiores situações de desigualdade do planeta. Consequentemente, a pandemia tem acentuado ainda mais a vulnerabilidade dos Estados. 4 A restrição legítima dos Direitos Humanos Diante das constatações anteriores e a partir de um ponto de vista estritamente baseado no senso comum, direitos humanos como o de liberdade de locomoção podem estar aparentemente ameaçados, mas na realidade não estão. Limitar temporariamente o gozo de determinado direito, no intuito de proteger outro (no caso em questão, o direito à saúde amplamente consagrado) não significa negligenciar a importância daquele. Nas palavras de Bernardo Gonçalves Fernandes (2019), “trata-se de uma situação na qual é preciso restringir, temporariamente, para desenvolver”. Ou seja, é legítima a relativização da proteção do exercício de determinado direito dentro de um contexto no qual essa ponderação se faz necessária para promover outra garantia que, naquele momento, se encontra sob iminente risco. Dessa forma, para serem legalmente executadas, é indeclinável que as ações promovidas pelos Estados no combate à pandemia sejam fundamentadas em medidas adequadas para combater a crise e proporcionais para aplacar os seus impactos, com os menores danos possíveis à dignidade da pessoa humana. Segundo Willis Santiago Guerra Filho (2000, p.5): “Trata-se do princípio da proporcionalidade, 2 tal como concebido no campo jurídico na tradição germânica, como um princípio, também, de “relatividade” (verhältnismäβig), o qual determina a busca de uma “solução de compromisso”, respeitando-se mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, e procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outro(s), sem jamais lhe(s) faltar minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhes o “núcleo essencial”, onde se encontra entronizado o valor da dignidade humana, princípio fundamental e “axial” do contemporâneo Estado Democrático.” (FILHO, 2000, p.5)

5 CONCLUSÃO Indubitavelmente, a situação provocada pela pandemia da COVID-19 é uma fatalidade que recai sobre todos e gera consequências de maneira não seletiva. Entretanto, as desigualdades sociais preexistentes fazem com que grupos sofram as consequências da crise mais severamente do que outros. Embora restringir direitos seja uma tarefa difícil e que possa provocar mudanças desagradáveis, fazê-lo de maneira temporária, proporcional e adequada não só irá contribuir no combate à COVID-19, como também promoverá a própria proteção e o progresso do Direito Internacional dos Direitos Humanos em tempos de pandemia. A preservação da saúde mundial em um momento no qual se encontra em uma crise sem precedentes é fator suficientemente legítimo para que os esforços coletivos sejam empregados ainda mais no sentido de garantir que esse direito seja plenamente proporcionado à todo ser humano, sem qualquer distinção por cor, sexo, raça, religião, condição social e quaisquer outros fatores que promovam discriminação. Os tempos atuais exigem, mais do que nunca, que as ações conjuntas dos Estados e o Direito Internacional dos Direitos Humanos estejam em pleno arranjo. É uma das principais formas de buscar harmonia para tempos tão incertos. Referências Bibliográficas

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BIERNATH, André. A COVID-19 na América Latina pelos olhos de quem está na linha de frente. Veja São Paulo. Disponível em: https://saude.abril.com.br/blog/tunel-do-tempo/a- covid-19-na-america-latina-pelos-olhos-de-quem-esta-na-linha-de-frente/. Acesso em 20 maio 2020. BRASIL. Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Diário Oficial da União, Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm . Acesso em 18 maio 2020. British Broadcasting Corporation News. Coronavírus: o mapa interativo que mostra as medidas e tipos de isolamento adotados na América Latina. Londres, 28 de abr. de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52248493. Acesso em 2 maio 2020. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017. GUERRA FILHO, W. S.. Por uma teoria fundamental da Constituição: Enfoque Fenomenológico. 2000. Disponível em: https://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/131006d.pdf. Acesso em 23 maio 2020. OEA. Pandemia e Direitos Humanos nas Américas. Washington, D. C.: CIDH, 10 de abr de 2020, 22p. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-120es.pdf . Acesso em 18 maio 2020. OMS. Coronavirus Disease (COVID-19) Dashboard. 2020. Disponível em: https://covid19.who.int/. Acesso em 22 maio 2020. ONU. COVID-19 Pandemic: Humanity needs leadership and solidarity to defeat the coronavirus. 2020. Disponível em: https://www.undp.org/content/undp/en/home/coronavirus.html. Acesso em 19 de maio de 2020. ____. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em 18 de maio de 2020. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 239-258.


GÊNESES Por: João Pedro Pessoa Herthel Silveira - Direito UFMG

OTNOC

Lembro do sentimento de surpresa. Do banco de trás do pálio azul lotado; da mãe nervosa, dizendo que aquilo não era programa de família; do riso orgulhoso do pai, de finalmente ter conseguido o aval da esposa; Da perna manca do tio, espremida entre as confusões e brincadeiras entre meu irmão e eu, que não se aguentavam de energia de moleque; Da estrada, minha maior inimiga, na eternidade que era aquele momento. Milhões de quilômetros separavam a vidinha de um garoto do interior de minas ao maior acontecimento de sua até então complexa existência; o seu primeiro jogo num Estádio de Futebol. Meus cabelos escorriam suor por baixo do boné da sorte do pai, que de tão emocionado, passara ao seu primogênito, como uma herança, o amuleto responsável pelo gol de Elivélton na libertadores de 97. O sol de um dia perfeito de domingo castigava o pálio que se aproximava da estrutura de concreto, onde mais tarde naquele dia vinte e duas pessoas correriam atrás de uma bola. O almoço regado a chips e refrigerante dentro do carro, só causava mais rebuliço na mãe e alegria na gente, que se empolgava a cada repetição do cd player de “uma partida de futebol” do Skank Chegamos, e saímos do carro na maior velocidade que as muletas do tio proporcionavam. A torcida já começava a chegar e as músicas começavam a ser entoadas, me arrepiando toda a nuca. Não entendia absolutamente nada do que significavam, e muito menos, conseguia repeti-las. Me vi paralisado com a quantidade de gente, com a grandeza da esplanada, com tudo. Nos meus olhos de menino, aquilo era o maior lugar do mundo.. Do mais, não me lembro muito do jogo, não tanto como lembro das sensações anteriores, então não faz sentido aqui inventar jogadas e dribles maravilhosos e nostálgicos. Só sei que minha memória “acorda” exatamente aos 88 minutos de jogo.

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Sei que o placar marcava 2x1 para o time rival, e nesse momento, minha mãe dizia para irmos mais cedo para evitar um pouco o trânsito devido à debilidade do meu tio. Não me aguentei. Era muito injustiça. Um domingo desperdiçado. Noites e noites sonhando com aquele momento e saio de lá com uma derrota amarga daquelas? Não, não e simplesmente não. Me sento no concreto em um choro inconsolável. A mãe, com a compaixão que só ela tem, me abraça com força, e explica que aquilo tudo era só um jogo e que nada disso importava. O pai, já frustrado e ansioso para ir, devastado pela derrota como todo fanático, levava meu irmão no colo, seguindo a fila de rostos tristes e desanimados. Foi quando o tio se ergue nas muletas para ver melhor o que está acontecendo a alguns metros mais embaixo. O Estádio se explica em alguns momentos, para aqueles que o conhecem. Não para mim. Silêncio total, cabeças se erguem, calcanhares se firmam, terços se rezam, rádios suspiram. Tento me erguer sobre minhas pequenas chuteiras mas não é o suficiente. O pai, esquece do seu menino e, na total força do hábito, furta o boné que sempre te pertenceu e o afunda na cabeça, mordendo os lábios. Todos os olhos se veem no gramado, menos o meu, que fitava as costas de qualquer estranho na minha frente. É quando a mãe, como todas que só elas, sacrifica sua coluna para me erguer, no momento exato em que o centro avante Fred voleia a bola para o fundo da rede véu de noiva do Mineirão. O resto, senhoras e senhores, é indescritível. Me desculpem a falta de poesia, mas não existem palavras para descrever o que esse momento significa na minha memória afetiva. Sempre que fecho os olhos, tento enxergar essas quatro pessoas, as que mais amo na vida, se abraçando, enlouquecidas, naquela emoção que só um gol no final de um jogo pode proporcionar. Se, algum dos senhores conseguirem ao menos visualizar essa imagem como eu a visualizo perfeitamente, quase vinte anos depois, vão saber o que para mim, é a definição de paz. Não é uma calma pastagem. Não é o silêncio. A definição daquilo que entendo por paz se encontra naquela tarde. No pálio azul que fervia ao sol de domingo. No choro inconsolado de um menino apaixonado. No brilho no olho de cada marmanjo molhado de suor cantando juras de amor a um centro-avante de nome Frederico. Na força da minha mãe. Na inocência e na maturidade do Pai. Na determinação do meu tio. No Abraço do irmão. É aqui, senhores, que respiro calmamente, sento, e digo obrigado.

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NOVAS ONDAS PROVOCADAS PELA COVID-19 E APAGAR INCÊNDIO: DESARMONIA ADMINISTRATIVA Por: Gilberto Pinto Monteiro Diniz - Doutorado Direito UFMG

maestro levou-me à seguinte indagação: por que agentes públicos, em especial gestores públicos, incluídas as respectivas equipes, diante das vicissitudes por que passa o Brasil, ainda

OGITRA

Dia desses, ao assistir à apresentação de uma orquestra sinfônica, a virtuose dos músicos e do

mais nesta quadra, não desempenham suas funções com temperança e harmonia, como uma orquestra sinfônica? Ocorreu-me a reflexão porquanto ações de tais agentes – diferentemente dos atos de músicos e maestro, devidamente planejados e treinados de forma exaustiva –, dão mostras, muitas vezes, de que carecem de melhor, ou de que não têm nenhum, planejamento, treinamento ou preparação. Os desdobramentos da atual e grave crise sanitária ilustram muito bem tudo isso. Com efeito, a pandemia ocasionada pelo alastramento do coronavírus, cujo contágio, segundo infectologistas, ocorre de forma bastante rápida, deixou o mundo atônito e aterrorizado, mormente por colocar de joelhos até mesmo países chamados de primeiro mundo ou desenvolvidos. No Brasil, assim como em outras partes do globo terrestre, diante da chamada primeira onda da pandemia, medidas restritivas de direito, entre as quais aquelas relacionadas à liberdade de ir, vir e permanecer, bem assim de exercer certas atividades econômicas, foram adotadas para tentar conter a proliferação do maléfico agente pandêmico e, consequentemente, evitar que o nosso já combalido sistema de saúde entre em colapso, potencializando o risco de morte de possíveis infectados, em especial idosos e pessoas acometidas de outras doenças. Buscam-se, neste momento, o isolamento social e a desglobalização, o que, em certa medida, parece constituir mais uma das astúcias da razão, considerando que essa pandemia teve como causa, exatamente, fatores ligados à globalização. Medidas que vêm sendo adotadas para tentar debelar a pandemia, muitas de viés eminentemen

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te empírico, mesmo porque pouco se sabe sobre o coronavírus em sua atual mutação e os efeitos da doença que ele provoca, a Covid-19 (sigla em inglês para “coronavirus disease 2019”, doença por coronavírus 2019, na tradução), podem ser denominadas de ações reativas, cujo principal objetivo, no jargão dos administradores, é “apagar incêndio”. As ações reativas, devido à imediatividade, demandam grande esforço de energia e de recursos de todas as ordens. E, raramente, tais ações são capazes de evitar novas ocorrências da mesma natureza, pois atacam os efeitos, em vez das causas desencadeadoras do problema que deve ser solucionado. Ademais, as ações reativas transformam-se em ordem do dia, o que atrasa ou compromete outras ações institucionais relevantes e prioritárias. Nesse particular, até mesmo para manter o intento de preservar a vida e o bem-estar da pessoa humana, não se pode deixar de considerar que a paralisação total ou parcial do exercício de determinadas atividades formais e informais, aliada à reclusão domiciliar das pessoas, ocasionará efeitos deletérios na economia, factíveis de desencadear recessão sem precedentes ou até, o que é mais grave, depressão econômica de ordem não apenas nacional, mas mundial. Então, diante do futuro quadro que se delineia, cuja pintura apresenta tintas de matizes carregados, ou seja, em face das chamadas outras ondas ou consequências que advirão da crise desencadeada pela Covid-19 no plano social, econômico, orçamentário, financeiro, tributário, é inconcebível que agentes públicos, notadamente os gestores públicos, ajam como “apagador de incêndio”. No âmbito da Administração Pública, em vez de ações reativas, impõe-se a prevalência de ações proativas, que decorrem do pensar e do agir antecipado. Isso porque as ações públicas devem decorrer de planejamento efetivo, bem definido e dimensionado. Como sabido, planejar é antever situações, isto é, pensar e desenvolver ações capazes de inibir ou de diminuir possíveis impactos de eventos indesejados, máxime os que colocam em risco a vida ou o bem-estar da pessoa humana. Nesse contexto, nem mesmo a pessoa jurídica pode ser esquecida, em razão de sua função econômica e, acima de tudo, social. Urge que a prevenção e o planejamento estratégico, sobretudo nestes tempos em que os recursos se tornarão ainda mais escassos – quando se deve fazer muito mais e melhor gastando o menos possível –, tornem-se matérias obrigatórias na pauta do administrador público. A prática, aliada a estudos econômicos e financeiros, revela que as ações reativas são mais dispendiosas para o erário, que pode arcar, até, com indenizações, dependendo das consequências do evento danoso. Não podem ser esquecidas, ainda, sequelas irreparáveis de ordem emocional, em alguns casos, originadas das ocorrências cujos efeitos essas ações buscam aplacar ou extirpar. 34


No sistema jurídico pátrio, a propósito, o planejamento é obrigação do gestor público. Os principais instrumentos para a concretude de tal dever estão plasmados na Constituição da República, art. 165, I, II e III. Diplomas infraconstitucionais, especialmente a Lei 4.320/1964 e a Lei Complementar 101/2000, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, também trazem a lume alentado regramento sobre a matéria. A primeira lei estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços públicos. O segundo diploma legal estabelece regras de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Porém, a mera existência de normas legais e até o conhecimento delas por parte de quem as deva cumprir não conduzem, necessariamente, ao agir efetivo, eficaz e eficiente. Na seara da Administração Pública, isso constitui paradoxo, pois a atuação do gestor público, em regra, é vinculada ao que dispõe a lei. Tanto é assim que, neste atual cenário de crise sanitária, a flexibilização de normas legais e de procedimentos, a fim de tornar mais rápida a ação estatal para enfrentamento da Covid-19, vem sendo preconizada, como se depreende, aliás, da decisão monocrática cautelar exarada na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 6357-DF, pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Nessa decisão, válida para todos os entes da federação que tenham decretado estado de calamidade

pública

decorrente

da

pandemia

do

novo

coronavírus,

foi

afastada,

excepcionalmente, a incidência dos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal e 114, caput, e § 14 da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) da União, referente ao exercício financeiro de 2020. É dizer, afastou-se, durante a atual situação de urgência e emergência em saúde pública e do estado de calamidade, a exigência de demonstração de adequação orçamentária em relação à criação e expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento da Covid-19, uma vez que os citados dispositivos legais exigem, para o aumento de gastos públicos indiretos e despesas obrigatórias de caráter continuado, as estimativas de impacto orçamentário-financeiro e a compatibilidade com a LDO, além da demonstração da origem dos recursos e a compensação de seus efeitos financeiros nos exercícios seguintes. Os fundamentos da decisão centraram-se na interpretação conforme a Constituição da República dos dispositivos legais que preveem tais exigências, bem como nos princípios fundamentais de proteção da vida, da saúde e da própria subsistência dos brasileiros afetada 35


ipela gravíssima crise sanitária vivenciada. Como outro exemplo de flexibilização do agir estatal neste momento, a Lei 13.979/2020, instituiu hipótese de licitação dispensável, além daquelas já previstas no art. 24 da Lei 8.666/1993. De acordo com o art. 4o da Lei 13.979/2020, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Medida Provisória 926/2020, a nova modalidade de licitação dispensável deve ser usada apenas e tão-somente para aquisição de bens, serviços, incluídos os de engenharia, e insumos relacionados ao enfrentamento da emergência de saúde pública (caput) e enquanto perdurar o estado de emergência de saúde pública internacional decorrente do coronavírus (§ 1o). Equivale a dizer, a aquisição de bens – respiradores, ventiladores pulmonares, máscaras e outros insumos – e a contratação da prestação de serviços necessários para combater a Covid-19, pela Administração Pública, poderão ser realizadas diretamente, sem a realização de licitação. A Medida Provisória 926/2020, introduziu outras disposições na Lei 13.979/2020, de modo a também deixar mais célere o processo de contratação pública para aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de que trata a lei, como dispensar a elaboração de estudos preliminares, quando se tratar de bens e serviços comuns (art. 4o-C); admitir a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado (art. 4o-D); reduzir pela metade os prazos relacionados a procedimentos licitatórios na modalidade pregão (art. 4o G). Essa flexibilização de normas e procedimentos para emprego de recursos públicos, ainda que as razões que lhe deem fundamento sejam nobres e louváveis, afinal de contas, busca-se preservar o bem mais caro tutelado pelo direito, a vida da pessoa humana, cria ambiente propício para o aparecimento de aproveitadores, àvidos por se locupretarem, às vezes até de forma espúria, à custa do erário. Prova disso é que, conforme se vê no noticiário nacional, começam a surgir denúncias de casos de malversação de recursos públicos que deveriam ser destinados integralmente para enfrentar a pandemia da Covid-19, como aqueles investigados pela Polícia Federal, por meio das Operações Placebo e Apneia. A Operação Placebo tem por finalidade apurar indícios de desvios de recursos públicos destinados ao combate da Covid-19, no Estado do Rio de Janeiro. Por sua vez, a Operação Apneia visa investigar supostas irregularidades em contratos celebrados, por dispensa de licitação, pela Prefeitura de Recife, no âmbito da Secretaria de Saúde, para aquisição de respiradores pulmonares em caráter emergencial, para combate à pandemia da Covid-19. 36


Diante desse cenário, o Tribunal de Contas, como órgão responsável pelo controle externo das contas públicas, embora tenha que ser sensível às adversidades enfrentadas pelos gestores públicos, deve continuar vigilante e não afrouxar a fiscalização, mantendo redobrada atenção para as ações e serviços públicos de saúde, notadamente porque montantes vultosos de recursos estão sendo canalizados para atender o vivenciado estado de urgência e emergência de saúde pública, até mesmo em detrimento de outras áreas ou segmentos da atuação estatal. Para exercer essa função, nos termos do que prescreve o art. 70 da Constituição da República, ao Tribunal de Contas foi outorgada competência para realizar a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Pública, quanto a aspectos relacionados à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas. Nesse sentido, em tempos de estado de urgência e emergência de saúde pública em virtude do coronavírus, o Tribunal de Contas deve priorizar a fiscalização das despesas públicas para enfrentamento da pandemia da Covid-19, aferindo a qualidade dos gastos realizados, mediante a utilização de parâmetros relacionados, sobretudo, à legitimidade (real necessidade do gasto feito) e à economicidade (preço pago e condições das contratações). Em outras palavras, deve-se verificar, especialmente, se as despesas públicas realizadas eram, de fato, necessárias para debelar a pandemia, se as quantidades de bens e serviços adquiridos guardavam correlação com a demanda, se as condições foram favoráveis para a Administração Pública, se os valores despendidos eram compatíveis com os preços praticados no mercado, os quais, em época como a atual, costumam se elevar, em razão da lei da oferta e da procura. Ou seja, a denominada mão invisível do mercado costuma se avolumar, tornando-se verdadeira mão grande. Enfim, em razão de o cenário atual e do porvir afigurar-se bastante preocupante, é passada a hora de o gestor público conscientizar-se sobre a necessidade de a governança pública se materializar por meio de ações proativas estratégicas, formuladas e executadas em conformidade com as peculiaridades e demandas locais, de modo que os resultados sejam efetivos, eficientes e eficazes. Dessa forma, tendo a Constituição e os demais diplomas legais como partitura e o interesse público como maestro, o gestor público poderá enfrentar as adversidades da administração pública, avultadas pela crise pandêmica atualmente vivenciada, de forma racional e estratégica, para gerir da melhor forma possível os recursos públicos sob sua responsabilidade, os quais se tornarão ainda mais parcos. Afinal, a vida ou o bem-estar das pessoas não pode ficar em xeque devido a eventos previsíveis, cujas causas podem ser neutralizadas ou, no mínimo, os respectivos efeitos podem ser atenuados, com o obrigatório, real, necessário e adequado planejamento das ações governamentais. Referências bibliográficas AGÊNCIA BRASIL. Pandemia é maior desafio desde a 2a Guerra Mundial, alerta ONU: para a organização, pandemia pode levar a recessão sem paralelo. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2020-04/pandemia-e- maior-desafiodesde-2a-guerra-mundial-alerta-onu>. Acesso em: 22 de maio de 2020. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2020. BRASIL. Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2020. BRASIL. Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2020. BRASIL. Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2020. BRASIL. Lei no 4.320, de 17 de março de 1964. Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4320.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2020. BRASIL. Medida Provisória no 926, de 20 de março de 2020. Altera a Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para dispor sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2020/Mpv/mpv926.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2020. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. 2. ed. Tradução de Maria Rodrigues e Harden. Brasília: Editora da UnB, 1999. LYNN JR. Laurence E. Gestão Pública. In: PETERS, B. Guy; PIERRE, Jon (Orgs.). Administração Pública: coletânea. Tradução Sônia Midori Yamamoto e Mirian Oliveira. São Paulo: Editora UNESP, Brasília: ENAP, 2010. MAXIMIANO, Antônio César Amaru. Introdução à administração. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1995.

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Intersexualidade e o direito identidade OGITRA

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A intersexualidade pode ser definida como a condição de pessoas que nasceram com características reprodutivas ou sexuais que não correspondem aos padrões típicos de masculino ou feminino. Essa noção de que só existem dois sexos é construída pela sociedade, que aprende desde a mais tenra idade a decodificar o outro, o diferente, como algo inaceitável. A legislação brasileira corrobora com a invisibilidade e a marginalização dos intersexuais, uma vez que é omissa nessa situação e exige dos pais o registro do filho, em seus primeiros dias de vida, indicando principalmente o nome e o sexo. É evidente, o impacto da Lei de Registros Públicos sobre essas crianças, que são submetidas a intervenções médicas, como cirurgias de redesignação sexual e hormonioterapia, para se adequarem ao modelo estabelecido. De fato, a sociedade está condicionada ao padrão binário, o qual classifica os indivíduos em apenas duas categorias: homem/mulher, masculino e feminino. Em razão dessa cultura dividida pelos sexos, a medicina busca soluções para a criança não sofrer e não viver à margem. Há uma tentativa de reparar a situação, afim de que a variação genital não seja mais um problema tanto para os pais quanto para os filhos. O Conselho Federal de Medicina (CFM) permite o procedimento de adequação cirúrgica a partir dos 2 anos de idade no bebê intersexo. O efeito disso é que, em vez de combater o preconceito em relação às pessoas intersexuais e romper com os estigmas, há uma intervenção precoce, não consentida, que pode gerar danos irreversíveis e problemas na idade adulta. Apenas nos casos de a genitália ambígua estar associada a uma disfunção urológica ou a algum outro problema que afete a saúde do menor que as cirurgias deveriam ser priorizadas. O direito brasileiro deve assegurar aos intersexuais, incapazes ou relativamente incapazes, a escolha do sexo que carregarão e a forma como se apresentarão ao mundo. As intervenções cirúrgicas que têm por objetivo a manutenção dos padrões impostos pela sociedade devem ser postergadas até a maioridade civil. Elas, quando feitas durante a infância, representam uma violação de direitos ligados à integridade física e expressão sexual, além da restrição da própria dignidade da pessoa humana. O professor Carlos Roberto Gonçalves conceitua em seu livro Direito Civil Brasileiro: O direito à integridade física compreende a proteção jurídica à vida, ao próprio corpo vivo ou morto, quer na sua totalidade, quer em relação a tecidos, órgãos e partes suscetíveis de separação e individualização, quer ainda ao direito de alguém submeter-se ou não a exame e tratamento médico” (GONÇALVES, 2014, p. 194).

Nesse sentido, é notório que os procedimentos de redesignação lesam tal direito personalíssimo do indivíduo. Por mais que os pais tenham boas intenções, é necessário que a escolha seja preservada ao filho, oferecendo, assim, a possibilidade dele se desenvolver como pessoa livre e autônoma. Devem ser admitidas cirurgias e tratamentos hormonais somente com expressa manifestação de vontade do portador de direito, dado que são irreversíveis e a pessoa estará limitada a sua opção.

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De acordo com portarias de medicina e saúde da ONU cerca de 0,05% a 1,7% dos nascidos do mundo são intersexuais, isto é, uma porcentagem compatível ao percentual de ruivos no mundo, mas, nota-se a falta de informação sobre essas pessoas. Segundo a OMS, existem cerca de quarenta formas diferentes de intersexualidade, alguns, por exemplo, não possuem ambiguidade genital, e por isso, nem ao menos sabem da condição. A desinformação para esses pode não ser determinante para sua vivência, em contraponto, para outros, que são submetidos às cirurgias, gera irreversíveis invasões à sua identidade. A priori, é possível compreender as intervenções cirúrgicas de forma análoga às terapias pelas quais homossexuais e transexuais foram submetidos para se adequarem em padrões preconizados como os únicos corretos. Isso porque, a medicina ocidental, que admite esse tipo de procedimento, considera funcional pessoas binárias, ou seja, homens e mulheres cis gênero. São aceitos apenas aqueles com capacidade de participar de atividades heterossexuais, sendo excludente a variável de prazer ou livre arbítrio. Dessa forma, a adequação das crianças com ambiguidade sexual pode ser reduzida a tentativas de padronizar o comportamento humano. A posteriori, é relevante analisar a conceituação patológica atribuída à condição, haja vista as intervenções, ditas, terapêuticas que médicos insistem em realizar nos intersexuais. O começo do século XIX é marcado pela responsabilidade dos legisladores e juízes no tangente ao “hermafroditismo’’ - termo ultrapassado atualmente, uma vez que não apresenta em sua composição léxica a pluralidade necessária - que, em algumas situações, solicitavam conselhos aos médicos ou padres. A partir de 1930, mantendo o sistema binário de sexo herdado do judiciário, os médicos ganharam prestígio nos assuntos relacionados à sexualidade. Esse marco histórico-jurídico abriu caminhos para a comunidade clínica intervir amplamente no futuro humano. Por isso, a comunidade jurídica deve recuperar o que fora dado à medicina, uma vez que a última não é, por si só, capaz de garantir os valores de dignidade da pessoa humana ao infante intersexo. É imprescindível que sejam feitas mudanças na legislação brasileira para lidar com a intersexualidade. Uma medida válida seria a criação de um sexo neutro, facilitando, dessa forma, o registro público do filho intersexo e garantindo seu reconhecimento como um cidadão de direitos perante o Estado. A sociedade, por sua vez, precisa admitir a existência de pessoas que fluem entre o feminino/masculino e não tratar o quadro como doença. Além disso, as intervenções médicas não devem ser realizadas com base somente no consentimento dos pais, como essa é uma decisão permanente e que afeta toda a vida do indivíduo, ela deve ser suspensa até que a criança atinja a maioridade.

Por Laura G is Barbosa Direito UFMG Matheus da Silva Gandra Direito UFRJ :

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Republicado Referências Bibliográficas: KOYAMA, Emi. Adding the "I": Does Intersex Belong in the LGBT Movement?. Disponível em: http://www.intersexinitiative.org/articles/lgbti.html. Acesso em: 25 de maio de 2020. COSTA, Anderson. Intersex: o que você precisa saber sobre o I em LGBTI+ no Dia da Visibilidade Intersexual. Disponível em: https://www.grupodignidade.org.br/intersex- o que-voce-precisa-saber-sobre-o-i-em-lgbti-no-dia-da-visibilidade-intersexual/. Acesso em: 25 de maio de 2020. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: Saraiva. TURATTI, Marco Antônio. Reconhecimento Jurídico-Social da Identidade LGBTI+. 1ª edição. Appris, 2018.

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Vida, pós pandemia.

Levantar. Esquecer. Crescer. Era tudo o que me pediam: que eu não tivesse medo, que eu fosse forte, que eu acreditasse. Revirava-me toda: como acreditar? As janelas do meu quarto aprisionavam meu coração. As paredes, decoradas com os quadros da minha adolescência, apequenavam-se ante a imensidão do mundo. Estava ali há tantas semanas que já não sabia distinguir o que era meu, o que era medo, o que era eu. As madrugadas eram cada vez mais longas e a parede que me separava dos meus pais anunciava a minha solidão: em um lapso insone, queria tê- los para sempre e, então, dormiria segura. Passaríamos a madruga juntos e seríamos um só até que o dia amanheceria e o sol iluminaria as minhas mais profundas ansiedades. Mais um dia chegara e o sol parecia não se atentar aos problemas da terra: como recomeçar? Tantos de nós tiveram sua jornada precocemente interrompida, mas o tempo teimava em seguir enquanto permanecíamos impotentes, diante da vastidão do acaso. Queria que tudo passasse logo, que a terra acelerasse sua rotação. A cura, a vacina, o fim da pandemia. Era esse o assunto da minha terapia: ontem, em uma sessão virtual, minha psicóloga me dissera que meus olhos já não enxergavam vida, a morbidade era tanta que tudo que eu via era a morte me perseguindo por entre os corredores de minha casa. Ela me garantira: deveria eu avistar o fim da pandemia, o “pós”, a continuidade, o futuro, a esperança que chegaria. Era tudo que queria. Voltar no tempo, refazer escolhas, valorizar a liberdade, a rua, as esquinas, meus cães, minha vida. De repente, tudo era relativo: os amigos, a faculdade, o trabalho, os sonhos, o caminho. O mundo tornara-se um só mas, ainda assim, nos distanciávamos, todos enclausurados. Já não cantava, não escrevia, não sonhava. Também não lia notícias ou morreria de véspera. Todas as palavras tornaram-se pandemia. O mundo era do tamanho da minha varanda e meus livros me lembravam da vastidão do mundo. Era preciso ter esperança, ter fé, perseverança. Me garantiram que haveria vida, pós pandemia.

Por: Fernanda Marinho Antunes de Carvalho - Direito UFMG

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O conteúdo desta edição é uma junção de autorias e não representa necessariamente as ideologias do CAAP nem dos membros do Edirorial do Voz Acadêmica 2020

EDIÇÃO 2020 // VOLUME Nº4 // DEZEMBRO 2020

VOZ ACADÊMICA A OUTRA FACE DA CRISE

DIAGRAMAÇÃO

Guilherme Eustáquio Teixeira Souza ORGANIZAÇÃO

reaproximarvozacademica@gmail.com

E-book: https://issuu.com/vozacademicacaap


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