ENSAIO POESIA, SOM E IMAGEM: UMA REALIDADE PRESENTIFICADA NOS NOVOS TEMPOS DA REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA *Maria da Conceição de Araújo
A poesia se alimenta da imagem que se mostra num aparecer que se torna parecente (BOSI, 2004), numa pulsão que emerge de um mundo primário submerso, localizado no inconsciente de onde brotam força e sentido (parafraseando Freud), num grito que se faz ouvir pela materialidade do discurso poético. Tal discurso se materializa nessa emersão de sentires a tomar espaço no mundo fora. Então, o fazer poético se ergue pela imagem e pelo som, imagem-grito. A poesia é o grito da alma escondida nos recônditos do poeta, onde momentos ou partes deles se instalaram. A voz que clama, exclama, proclama se concretiza na palavra-som, representação da imagem-mundo retida no percurso da existência do poeta. É nesse universo de imagem-som da poesia que me colocarei através desse ensaio que, por sua natureza, me permite divagar sobre uma temática em que me exponho, como em areia movediça, pelo fato de estar “ensaiando” meu pensamento que não se constitui uma verdade absoluta. Até porque, tal verdade não existe. Ela é sempre relativa. Lançarei meu olhar especialmente sobre alguns poemas de um jovem poeta ainda desconhecido, Walter Costa, que publicou um livro intitulado Entressafra 89, o qual pode ser encontrado no seu blog de mesmo nome. Nessa obra o autor apresenta uma poesia que se aproxima de um fazer-poético (re)novo, o qual vem se visualizando através das mídias disponibilizadas pela era da informatização, caracterizada pela rapidez, pelo instante, pelo agora, nos levando a um estar constante em movimento, numa brevidade de tempo e espaço nunca antes visto, o que, de certa forma, nos reporta às vanguardas modernistas, principalmente o futurismo, que por sua vez, nos leva ao movimento concretista enquanto forma, cujo propósito se volta para a fragmentação da palavra, desintegração dos vocábulos, atomização do discurso, exploração sonora, “processos que visam a atingir e a explorar as camadas materiais do significante (o som, a letra impressa, a linha, a superfície da página; eventualmente, a cor, a massa)”. (BOSI, 2004). Voltando a um tempo bem lá trás, sabe-se que a origem da poesia nos remete a um momento da vida do homem quando a voz-som era praticamente o único veículo
através do qual a palavra se tornava presente. Mas bem antes disso, o som precedera à grafia. Como diz Guillermo Cabrera Infante, romancista, contista e ensaísta cubano, num artigo traduzido por Sérgio Molina, publicado na Folha de São Paulo (30/12/2001), referindo-se ao ato de contar histórias:
O conto é tão antigo quanto o homem. Talvez até mais, pois podem muito bem ter existido primatas ancestrais que contavam contos feitos inteiramente de grunhidos, que são a origem da linguagem humana: um grunhido, bom; dois grunhidos, melhor; três grunhidos já são uma frase. Assim nasceu a onomatopéia e com ela a epopéia. [...]
E eu diria: assim nasceu a fala que tornou ato o que existia em potência, como possibilidade de comunicação, a oralidade. De lá para cá, dá-se um pulo que me lembra aquela significativa imagem do filme 2001 Uma Odisseia (1968), quando um primata arremessa para cima um osso de outro animal e esse osso se transforma, na imagem seguinte, numa nave espacial, mais ou menos no mesmo formato do osso, representando a passagem do mundo primitivo para o futuro (uma transposição de tempo extremamente radical). Pois bem. De lá para cá muitos acontecimentos sucederam. Estamos no século XXI. No decorrer da história humana, desde seus primórdios, os grunhidos se transformaram em sons inteligíveis e comunicativos de significados que conferiram ao homem o poder da fala. Essa fala que representa a oralidade em que se percebe “o corpo falando, a voz, o rosto da pessoa que fala e o corpo de quem ouve”. Numa oralidade em que se incluem “os gestos, a cor, os cheiros, enfim, tudo o que pode ser visto e percebido.” (ALMEIDA, 2001, p. 10). Logo, uma oralidade que se faz imagem, que se torna real, total. Como diz Resende (2012): “a palavra vocalizada guarda a marca do corpo que a produziu enquanto som: a voz é a parte do corpo e o corpo está presente na voz onde quer que ela seja percebida.” Essa presentificação da palavra oralizada nos concede uma certa proximidade maior com o real imagem-som, característica desses novos tempos. Um tempo que incita o fazer rápido, porque a engrenagem da vida segue girando numa velocidade que, quem não acompanhar, poderá ser preso por ela (a engrenagem). É desse tempo o jovem poeta, Walter Costa, nascido e criado na era da
cibernética, quem inteligentemente, dela se aproveitou para produzir e veicular o seu livro, comprovando o que foi dito antes sobre as várias mídias por onde tendem a passar a poesia contemporânea. Quem quiser ler Entressafra 89, é só entrar no seu blog e lá está a obra completa. Basta “clicar” em cima e ir passando as páginas. O leitor entrará num universo em que som, imagem e tecnologia caminham de braços dados, numa composição, cuja estética fica entre o Concretismo e o dinamismo do mundo contemporâneo. Além do mais, seu livro está em vias de se disponibilizar em áudios com fundo musical, a ser veiculado pela internet. Alguns poemas já foram, inclusive, gravados na mídia auditiva, como: O senhor vazio existencial (p. 47), Três de Março (p. 52) e A moral é o título (p. 74). Por ser impossível mostrar o áudio de tais poemas, através desse trabalho escrito no programa microsoft word, me deslocarei para o universo imagético-visual, de outros poemas de Costa, como Homenagem a Drummond (para ser lido todo em um fôlego só) *, em que o autor passeia pelo Concretistmo, onde se vê a preocupação com o significante no que tange ao campo topográfico (abolição do verso) e ao campo morfológico (desintegração do sintagma), além do fonético (repetição de sons). (BOSI, 2004). A palavra parece perder a sua natureza de palavra e se faz canção, cujo ritmo se acelera a cada linha escrita para ser lida em um fôlego só; não há tempo para estanques; é a velocidade, é o movimento que se impõe. Drôm Drôm Drôm-u-ôm Drôm Drôm Drum Drum Drum-u-u-u-(ressonante) Drum Drum Drummmond (ressonante) * (Eu só consigo um fôlego por parte).
N’outro momento, a brincadeira e o humor oswaldianos se fazem perceptíveis, através da palavra-som em Eu sou o teco-teco repeteco (Pensamos iguais porque agimos iguais), mas a ideia implícita do mundo contemporâneo onde o poder se estabelece pelo midiático (plin plin da televisão), pelo capital (shop, compra do comércio), pela indústria cultural imbecilizada (pocotó que nos reporta à “eguinha
pocotó”, “música” que invadiu rádio e televisão durante um tempo, mas que, felizmente, como tudo que não é sólido, se desmanchou por aí) também se presentifica.
Plin plin Shop Shop plin plin pop Popará pocotó Pirarapó pipapararapó Compra compara Compra colompra Colombo compra Pratos patos tortos
Cháááá_xi_para Txiiitupsiiiplinton AAaaaaaiuta Zsrssssrrrzzzzzuuuiiiisss Ufffhhh xiuxixáchu Rá Rá Rá quero ver você fazer isso sem errar.
Em Poema da corrosão, a imagem se mistura com as palavras e quebra o efeito do sentido inicial do poema, num deslocamento dadaísta onde o nexo se ausenta e dá vez ao grito que emerge do sentir-poético, que não necessita de esclarecimentos, pois ele apenas é. A realidade parece se corroer para que surja outra menos ácida, menos dor. Então vem uma outra voz que se distancia da primeira não apenas pelo sentido, como também, pela ausência de sentimento.
O sentir-poético de Walter se estende e se presentifica através das mais variadas materialidades, com marcas sonoras e imagéticas, antenando-se à contemporaneidade. Essa tendência de colocar a poesia em palavra-som-imagem também é visível em vídeos, como algumas campanhas publicitárias que se utilizam da poesia para divulgar e vender seu produto, logicamente com interesses mercadológicos, mas possibilitando o sentir-poético tanto de quem produz, quanto de quem recebe. O que não deixa de ser uma herança do Concretismo que, embora não se tenha consagrado, deixou marcas nas artes gráficas e na publicidade. (PROENÇA FILHO, 1995, p. 54). Como diz Falbo, “a capacidade de transcendência da poesia faz com que todos os suportes possam ser aproveitados sem que nenhum possa definir por si só a essência do fazer poético.” A questão do experimentalismo da poesia contemporânea se mostra em performances várias, onde se difunde por meio de vídeo-poemas, intervenções urbanas, canções, coreografia, escultura, quadros, porque “a poesia por ser algo muito maior, não respeita categorizações.” (FALBO, 2010), Segundo Pérez-Oramas, curador da exposição da 30ª Bienal de São Paulo, citado por Resende na Bravo! (2012), hoje a arte, em suas várias denominações, considerando sua “diversidade de recursos e linguagens, se manifesta e se inscreve no tempo, se projeta para o futuro.” E os computadores, televisão, cinema compõem os veículos de integração dessa nova realidade sócio-cultural que tem a imagem-som como elemento básico dessa nova produção artística contemporânea. O jovem poeta Walter Costa caminha nessa direção, se utilizando dos recursos tecnológicos de que lhe dispõe o momento, para construir e divulgar sua obra, como têm feito outros artistas, ligados a outras expressividades. Dessa forma, a poesia, que normalmente não consegue atrair muitos leitores para si, principalmente, quando impressa, torna-se mais presente – o que poderá levá-la a uma maior evidência. É nesse universo do movimento, das novas linguagens em ebulição que o poeta poderá transitar e visibilizar a sua produção. Os suportes midiáticos que veiculam as produções se disseminam. O importante é que, mesmo com todo esse aparato possibilitado pelas novas tecnologias, a essência da poesia se mantenha: o sentir e o fazer-poético, de modo que tal sentir se presentifique na recepção do poema. E assim a poeticidade se mostre em aparencia e parecencia.
* Graduada em Licenciatura em Letras Hab. Inglês pela UPE-FFPNM e FUNESO e especializanda em Literatura Brasileira pela UPE-FFPNM.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Milton José de. Imagens e Sons: A Nova Cultura Oral. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2001. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 42 ed. São Paulo: Cultrix, 2004. _______. O Ser e o Tempo da Poesia. 7 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
COSTA, Walter. Entressafra/89. Recife: 2011. Disponível http://entressafra89.blogspot.com.br/p/visualizacao-e-download-do-livro.html.
em
FALBO, Conrado. A Poesia em Tubo de Ensaio. Revista EITA!, Recife: 2010, ano 3, n. 5.
PROENÇA FILHO, Domício. Pós-modernismo e Literatura. 2 ed. São Paulo: Ática, 1995. RESENDE, Marcelo. Sob a Perspectiva das Estrelas. Revista Bravo!, São Paulo, n. 181, set./2012.