Crônicas Distópicas & Conjunturas de Mudanças

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CRÔNICAS DE DISTOPIAS E CONJUNTURAS DE MUDANÇAS 1-O significado do mal estar: desejo purificador 2-Pavimentando um futuro apocalíptico? 3-Caixa de Pandora libera que liberou o “lado negro” do homo sapiens 4-Onde leva a raiva, o desanimo e a tristeza?

1- O SIGNIFICADO DO MAL ESTAR: O DESEJO PURIFICADOR Em um trecho do livro de Vargas Llosa, “A Civilização do Espetáculo”, ao analisar os temas culturais no capitulo inicial sobre a “metamorfose de uma palavra”, comentando vários atores que tratam do tema cultura, destacamos referencias a George Steiner e o “Castelo do Barba Azul”. Suas reflexões ou afirmações permitem repensar o papel da cultura na atualidade e no futuro. Citando Vargas Llosa (pp.15), “Segundo ele (Steiner) depois da Revolução Francesa, de Napoleão, das guerras napoleônicas, da revolução e do triunfo da burguesia na Europa, instala-se no velho continente o grande ennui (tédio feito da frustração, fastio, melancolia e secreto desejo de explosão, violência e cataclismo), cujo testemunho se encontra na melhor literatura europeia e em obras como “O Mal-estar da Cultura” de S. Freud. O dadaísmo e o surrealismo seriam a ponta de lança e a exacerbação máxima do fenômeno. Segundo Steiner, a cultura europeia não só anuncia, como também deseja que venha este estouro sangrento e purificador que serão as revoluções e as duas guerras mundiais. A cultura em vez de impedir provoca esses banhos de sangue”.1 Estas observações de Vargas Llosa sobre as expressões enunciativas os sinais de frustrações, raivas, ódios e desejos manifestado nas diversas expressões da cultura permitem extrapolar para comparações com as tendências fílmicas, literárias e “este clima pairando no ar” de raivas, explosões de ódios, crescente depressão e melancolia. Estas questões que parecem marcar nosso tempo nas relações, na política e convivência, especialmente nos grandes aglomerados urbanos dominada pelas tecnologias de comunicação individualizadas. É necessário prudência.2 2- PAVIMENTADO UM FUTURO APOCALIPTICO? A FSP em junho de 2018, em base a pesquisa em banco de dados sobre filmes (IMDB- ou “Internet Movie Database”) apontou que os filmes longas que retratam o fim do mundo entre 2001 a 2018, totalizando 211, superando todos os lançamentos do século XX que somam 154 filmes. O filtro de pesquisa neste banco de dados foi “end of the world”. Esta produção fílmica e a natureza de muitos diálogos “anti sapiens” devem ao menos provocar interrogações e reflexão sobre as razões desta ânsia de demandas atendida por estes filmes sobre “o fim do mundo”. Uma explicação geral é de que a temática do medo, o receio de guerra atômica, guerras religiosas, terrorismo e o imaginário sobre ataques alienígenas, junto ao esgotamento dos recursos planeta devido ao consumismo que forçam os limites do crescimento ganham cada vez mais plateias e movimentos interessados3. Diversos outros vetores podem gerar este pano de fundo apocalíptico, a presença cotidiana na mídia de atos de terrorismo, mudanças radicais e rápidas no mundo do trabalho gerando insegurança, crescimento demográfico, migrações massivas e refugiados, as questões ambientais climáticas, a desconhecida e os incertos efeitos da engenharia genética aceleram e motorizam as incertezas e angústias. Esta carga de tensões é 1

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Saramago: “Culturalmente, é mais fácil mobilizar os homens para a guerra que para a paz” São indicadores, o elevado grau de suicídio, consumo de medicamentos e explosões de violência nas cidades.

Mais de três milhões de americanos se organizam em “movimentos sobrevivencialistas”.

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referendada e reforçada por eventos que são projetados instantaneamente e globalmente e compartilhado pelas mídias como se estivessem ao nosso lado diariamente incrementando a angustia, gerando impotência e medo que reflete também na fuga e índice de suicídios ou nas reações explosivas de violencias. Por outro lado, cabe destacar que uma peculiaridade que permitiu nossa espécie pontificar é justamente a imaginação futurística, criar futuros imaginados e persegui-los; geralmente projetávamos um futuro utópico positivo (criar um paraíso de virtualidade após a morte, um lugar sem dor e o sofrimento, com festa permanente na walhala dos vikings ou recepcionada por centenas de virgens no imaginário muçulmano). Recordemos que é na cultura e na sensibilidade dos artistas, escritores, poetas funcionam como mensageiros ou “antenas” de boas novas e quem sabe agora “más notícias” ou anunciando um incerto futuro. Artistas como Leonardo Da Vincci, Julio Verne, Mary Shelley com seu Frankstein, o mundo de Isaac Asimov e Star Treck (Jornada nas Estrelas), o Admirável Mundo Novo de Huxley, etc., todos projetando o futuro imaginado e latente. Muitas das questões “que estavam no ar” e “realidade imaginada” terminaram se concretizando. Na atualidade as artes massivas que chegam as maiorias são os audiovisuais, a arte cinematográfica, os jogos virtuais, são estas expressões artísticas fílmicas em número massivo projetam um futuro catastrófico, apocalíptico ou pleno de distopias. Estes artistas mensageiros não estão imaginando e contribuindo com uma “construção imaginada”, alertando para um potencial cenário de futuro? Em um mundo de realidade virtual onde as fronteiras entre o real e o imaginado se tornam diáfanas transformam estas temáticas do “end of the world” em um “quase um real cotidiano” no imaginário coletivo. É como se este imaginado acontecer no futuro já estivesse sendo vivenciado nas projeções imaginadas. A catástrofe se torna como naturalizada. Esta é uma hipótese a explorar sobre os impactos que este movimento de arte audiovisual geram ao “fortalecer esta narrativa catastrófica do futuro”. Não é este o significado desta oferta e demanda de filmes de distopia? Portanto, se o imaginário positivo do futuro tem sido um manancial de criatividade, uma energia impulsora da nossa espécie, como a conquista espacial, a exploração da matriz da vida com a manipulação do DNA, não é de descartar também a geração de uma espécie de “campo ou ressonância morfogênica”4 que contamina e fortalece o conceito de um futuro catastrófico, gerando esta energia coletiva negativa expressada na angustia, melancolia derivando para a fuga ou reações dirigindo-se a um mundo das ilusões virtuais, das crenças e seitas, das drogas destrutivas ou recreativas, incrementando a fuga pelo suicídio. Esta modalidade de “clima psicossocial” não é novidade muitos debates e conceitos já foram abordados nas reflexões de Sigmund Freud, em “O Mal-Estar da Cultura” tendo como referencia outra conjuntura histórica. Sua reflexão teórica, hipóteses e teses podem sustentar a noção de que estamos em um constante embate em busca do equilíbrio, da tranquilidade da paz e do amor, mas convivemos com a violência e a guerra. Temos ligações dinâmicas com as denominadas pulsões originárias de morte e de vida. Será que o paradigma de reflexão de Freud permitiria pensar que a estabilidade e paz não são próprias da vida orgânica ou social, que existe uma dinâmica de constantes arranjos e desarranjos, alcançar um estado de paz e estabilidade só possível na morte? A tese é de que para existir, a civilização esta assentada sobre a coerção e renúncia das pulsões, pois a agressividade seria um traço indestrutível da natureza humana e o controle e inibição das pulsões aponta justamente a evitar ameaça constante de ruina de sociedades civilizadas. Esta dinâmica na organização social estaria em sintonia com a própria dinâmica da 4

Campo morfogênico e ressonância morfogênica é um campo hipotético que explicaria a emergência simultânea da mesma função adaptativa em populações biológicas não-contíguas. A hipótese dos campos morfogênicos foi formulada por Rupert Sheldrake. Aqui registro como uma pista conceitual a explorar nesta perspectiva os efeitos na espécie humana que vive cada vez mais concentrada em grandes urbes.

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natureza da vida orgânica em geral demarcando o destino das civilizações. Assim, a dinâmica da natureza projetada na dimensão social demanda redirecionar a agressividade contra o individuo contra ele mesmo para evitar que exerça em seus congêneres. Neste quadro analítico compreensivo é oportuno destacar o papel da religião, sua contribuição ao equilíbrio social com a tarefa de exorcizar as forças da natureza, nos conciliar com a crueldade do destino (como se manifesta a morte) e nos compensar pelos sofrimentos e privações que a vida comunal da civilização impõe aos homens. Os 10 mandamentos e o sentimento de culpa são ferramentas essenciais da cultura, reforçando laços sociais, relações de amizade e inibindo a agressividade. A arquitetura da civilização repousa sobre a violência e ao Estado é transferido o monopólio da violência. O Estado é o herdeiro do pai primitivo e age contra o individuo a fim de força-lo a integrar a comunidade, em favor do bem comum. Em resumo, a civilização é a dimensão social do combate da espécie humana pela vida em um embate permanente entre eros/vida x morte. 3- CAIXA DE PANDORA QUE LIBEROU O “LADO NEGRO” DO SAPIENS Assim, se para a convivência comunitária a matriz civilizatória da espécie esta calcada na imposição de comportamentos e normas de convivência em comunidade, na supressão e coerção sobre os desejos do individuo, controle dos impulsos agressivos com castigos e punições. O recalque é constante para garantir as relações civilizadas, inclusive com repressão, castigos e exclusão da convivência e isolamento em prisões ou hospícios. A formação e imposição de comportamentos é um processo continuo. Um fator acelerador emerge, há pouco as ferramentas de expressão e comunicação do individuo eram de difícil acesso para a maioria e a socialização civilizada passava por diversas instituições de controle disciplinante, escolas, igrejas, sindicatos, partidos, etc. Agora bem, com novas tecnologias, o advento da Internet, o acesso ao smatphone poderoso e a individualização em “redes sociais” tirou as peias do “controle cultural” dando possibilidade de expressar-se sem coerção e até no anonimato liberando um movimento explosivo multidirecional que poderia por analogia conceitual assemelhar-se a mitologia grega da abertura da abertura da “Caixa de Pandora”. Pandora é a primeira mulher criada por Zeus para Prometeu, ela ganha de presente uma “caixa” e é alertada que ali estariam presos “todos os males do mundo”. Contudo a curiosidade irresistível de Pandora a levou a abrir a caixa, deixando todos os males escapassem, ficando no fundo da caixa um dom, a “esperança”. Nesta nossa reflexão sobre o presente e futuro a internet é a chave que permitiu abrir “nossa caixa de pandora”, deixando escapar quem somos nós mesmos, sem o controle da socialização e coerção social, ao “liberar-se das amarras” que nos controlam, liberamos todos os males recalcados e emerge uma “força” do “lado escuro” da nossa espécie. A discórdia, o desejo da guerra, a inveja, a dor e todas as doenças do corpo e da mente, a calúnia, o boato, agressividade gratuita, pedofilia, o conglomerado da pornocracia, os games, bulling, a tentação de “ser Deus” com o uso de tecnologias invasivas que modificam o DNA, etc., A emergência de vetores selvagem levam territórios a uma regressão civilizatória, refluindo ao tribalismo protetivo ou agressivo. Quem sabe, mais que nunca é necessário cultivar o dom da esperança presa no fundo da “caixa de Pandora” fortalecendo o lado do bem comum contra o lado negro da força e da “tragédia dos usos comuns”. 4-ONDE LEVA A RAIVA, O DESANIMO E A TRISTEZA? Aterrissando no Brasil na conjuntura 2018, na onda do “nada serve” se generaliza a polarização afetiva emocional, o negativo e a raiva liquidacionista do modelo político tradicional. Isto tem muitos alimentadores que geram uma onda de

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mal-estar e desesperança. Esta “energia” que se expande constrói um imaginário coletivo que certamente influi na psique, nos comportamentos e no bem-estar geral da comunidade. Uma comunidade com este perfil de desesperança e medo e raiva termina impactada por uma modalidade de enfermidade social. É aquela grande ennui (tédio feito da frustração, fastio, melancolia e secreto desejo de explosão, violência e cataclismo) que mencionou Vargas Llosa no comentário de Steiner. É neste sentido que vale a pena explorar e refletir com a recente pesquisa do Datafolha de São Paulo na conjuntura pré-eleição 2018. A sondagem introduz uma pergunta e uma escala para medir “estado de espirito” e emoções. A pergunta: “Quando pensa no Brasil de hoje, você se sente tranquilo ou com raiva?”: 68% responderam sentir raiva, entre estes, os mais raivosos com 74% eram os jovens entre 16 e 34 anos. A maioria dos eleitores brasileiros, segundo a pesquisa esta pessimista com o país. Em uma “escala de 6 sentimentos”, todas as avaliações pendem ao negativo superando os positivos: 88% se sentem inseguros no país, só 11% seguros. A tristeza estende seu manto: 79% estão tristes e só 18% felizes. 78% estão desanimados e só 21% estão animados com o Brasil. Entre medo e esperança, 59% sentem mais medo e entre os jovens este índice vai a 63%. Entre os maiores de 60 anos, 45% são mais esperançosos e 54% têm mais medo. Mas outra resposta à sondagem trouxe aquele elemento que restou no fundo da “caixa de Pandora”, a esperança. O certo é que não existe destino traçado, nada esta pré-determinado. Não existe alguém que nos virá salvar desde a “nave mãe”, nós somos donos – até por aí - do destino. Recordando as diretrizes da metáfora real do «Manual de Instruções para a Nave Espacial Terra » de R. Buckminster Fuller. Nossa nave singra o mar cósmico sem ruma conhecido, sem manual de instrução, com buracos no sistema de suporte à vida, com casco avariado e, se passageiros e a tribulação não se entenderem podem naufragar. Walter Tesch - agosto/outubro 2018.

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