ANO II - NÚMERO 2
FEVEREIRO DE 2018 por claudia assaf
Este jornal não reflete opinião do Itamaraty.
Um grande desafio para se viver e superar.
FEVEREIRO
1912
106 anos
DA MORTE DO BARÃO DO RIO BRANCO
p.08
HISTÓRIA EM ARTE
O que escrever quando se perde o pai amado há duas semanas? Confesso, não estava motivada a escrever uma linha sequer. Mas o compromisso, ainda que com projeto de natureza voluntária, sem ganhos financeiros, meu pai me ensinou, é compromisso. Tampouco ele gostaria que eu deixasse de escrever o jornal de fevereiro por causa dele. Assim, aproveitei o gancho da partida de meu pai para pensar em algum tema que pudesse ao mesmo tempo falar nele e ajudar aos ceacedistas que me leem. Então pensei: vou abordar um tema que é a única certeza de nossa vida, mas do qual ninguém quer falar - a morte. Costumo receber emails de candidatos que me perguntam como fazer se um ente amado falecer no Brasil e estivermos servindo no exterior, na China, no Japão, no Oriente Médio, e outras localidades bem distantes? Também gostaria de deixar registrada minha gratidão a toda manifestação de carinho que recebi de vocês quando anunciei a notícia na fanpage do Facebook. Boa leitura a todos!
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Claudia Assaf
“A MORTE DE SÓCRATEs” www.dicasdadiplomata.com.br
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ANO II - NÚMERO 1
O QUE FAZER NESSAS HORAS…
Morte no Brasil de ente amado de diplomata servindo no exterior
Quando ingressei na carreira diplomática, a ideia de perder no Brasil um ente amado quando eu estivesse servindo no exterior sempre esteve presente e me causava certa preocupação.
irmã Vanda Assaf, muito nova, aos 45 anos de idade, de Leucemia, diagnosticada na semana que retornei ao Brasil e que, sete meses depois, lhe tiraria a vida. Agora, em início de 2018, foi a vez de meu pai. Nesses três óbitos, embora tenham trazido profunda tristeza a meu coração, estava muito grata à espirtitualidade por ter me permitido estar no Brasil quando a vez deles chegou, o que não foi o caso com minha tia Dodô.
Minha primeira experiência no exterior durou oito anos, período em que fiz três postos: embaixada do Brasil no Catar, missão do Brasil junto às Nações Unidas e embaixada do Brasil na Arábia Saudita, de onde cheguei de vez há pouco mais de um ano, em 31 de janeiro de 2017. Há candidatos que me escrevem pensando nessa questão, mas o tema morte não é normalmente Quando eu servia debatido, por isso, na Arábia Saudita, à luz da partida de o que me causava meu pai, aproveitei tanta preocupação o gancho para aconteceu: minha falar com vocês a querida tia Dodô, respeito da questão irmã mais velha de e na legislação que meu pai, faleceu rege a licença para alguns dias depois de afastamentos em uma simples cirurgia, caso de óbitos de por causa de um erro entes amados. Você médico. Ninguém que deseja seguir a esperava. Fiz um post carreira diplomática, no Facebook sobre a saiba que a carreira minha impossibilidade poderá nos privar de de ir ao Brasil naquele dia e reproduzo novamente estarmos ao lado de quem amamos quando eles mais o post nesta edição do jornal mensal. Em novembro precisam. Por ser diplomata - o que exige estar no de 2011, quando servia em Doha, faleceu a irmã exterior com frequência - minha dica a você é que mais velha de minha mãe, a queridíssima tia Farha, busque organizar-se para não aparecer apenas no dia a cujo sepultamento também não pude ir. do enterro de seu ente amado. Tente despedir um pouco por dia - o que foi muito importante para nós Já no Brasil, ao longo de 2017 perdi minha avó, dois. Poderá ser desafiante, mas suas relações afetivas mãe de meu pai, aos 103 anos; e a minha prima- serão, de longe, mais importantes que a carreira.
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ANO II - NÚMERO 2
LICENÇA NOJO
O que diz a lei no caso do diplomata? O diplomata é um servidor público federal, e, portanto, tem sua carreira regida pela Lei 8112/90. O artigo 97 da 8112 estabelece que os servidores públicos federais podem ausentar-se do serviço, sem qualquer prejuízo, por oito dias consecutivos em razão de falecimento de cônjuge, companheiro, pais, madrasta ou padrasto, filhos, enteados, menor sob guarda ou tutela e irmãos. É a chamada licença nojo - expressão utilizada para o afastamento do trabalho de servidor ou empregado em razão da morte de um parente. Durante os dias de licença, o trabalhador pode faltar, sendo vedado o desconto de seu salário, estando servindo no Brasil ou no exterior.
estavam gradativamente parando de funcionar. Assim, amparada pelo artigo 81 da Lei 8112/90, obtive a licença por motivo de doença em pessoa da família, e viajei no dia seguinte, segunda-feira, 8 de janeiro. Como meu pai veio a óbito no dia 12 de janeiro, foram computados 4 (quatro) dias de licença por motivo de doença em pessoa da família, de 8 a 11 de janeiro, dias em que fiquei ao lado de meu pai, me despedindo. Em seguida, os 8 (oito) dias consecutivos referentes à licença nojo, de 12 a 19 de janeiro, a contar do dia do óbito.
Se estiver servindo no exterior, é o servidor que deverá arcar com os custos envolvidos da viagem, caso queira gozar os oito dias da licença no Brasil.
Preciso deixar registrado que, embora seja um direito meu ter essas licenças, nos termos da lei, o apoio que recebi de minha chefia, dos colegas e de pessoas que nem me conheciam no MRE foi impressionante e pude ver o valor do carinho nesses momentos de profunda dor.
No meu caso recente, do falecimento do meu pai, era domingo, 7 de janeiro, quando recebi um telefonema de minha irmã avisando que nós, os filhos, precisávamos ir imediatamente para o Rio de Janeiro, para decidir os procedimentos finais a serem tomados nos múltiplos tratamentos a que meu pai estava sendo submetido. Isso porque seus órgãos
O fato de eu estar no Brasil, devo confessar, foi muito importante, porque, mesmo nos meses anteriores, pude me organizar para ir visitá-lo nos finais de semana. Se eu estivesse ainda na Arábia Saudita, nosso convívio final teria sido menos intenso, embora a tecnologia ajudava bastante a nossa interação quando eu ainda estava servindo por lá.
Reprodução da portaria 12, de 17 de janeiro de 2018, do Itamaraty, em que veio publicada a minha licença-nojo.
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HISTÓRIA EM ARTE “A MORTE DE SÓCRATEs”
Jacques-Louis David, 1787 | Pintura em tela, óleo | 1,30m x 1,96 m Neoclassicismo | Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA
A morte de Sócrates, de Jacques-Louis David, é, devido ao tema heroico e às suas formas clássicas, uma obra típica do neoclassicismo. A obra, pintada para um mecenas, mostra Sócrates na prisão, sendo visitado pelos seus discípulos pouco antes de tomar o veneno. O tema da obra foi escolhido pelo patrono de David, mas fica claro o interesse do autor na mistura de coragem e autossacrifício presentes na história do filósofo grego. O gesto e a pose rigorosos de Sócrates fazem contraste direto com os personagens desfalecidos que o cercam. O pintor se utiliza de toques de luz e sombra para ressaltar o movimento, além de banhar o protagonista da cena em uma luz divina.
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HISTÓRIA EM ARTE “A MORTE DE SÓCRATEs” Para realizar a obra, David se inspirou na história de Sócrates, contida no Fédon - um dos diálogos de Platão. Alem disso o pintor consultou eruditos e complementou a obra com interpretações pessoais. Por isso a cena é ambientada em uma sala em estilo romano e o número de discípulos é menor do que de fato ocorreu. Platão, entretanto, é representado na pintura apesar de não ter presenciado a morte de seu mestre.
1. Imagem no corredor O homem encostado na parede do corredor é Apolodro, um dos discípulos de Sócrates. Segundo relatos, Sócrates mandou o discípulo embora porque ele estava transtornado demais diante da morte iminente do mestre. O discípulo foi retratado numa pose de absoluta tristeza.
2. Braço de Sócrates levantado O filósofo passou suas últimas horas debatendo sobre a imortalidade da alma. O dedo levantado indica que há uma esfera de existência mais elevada que o terreno dos mortais. O modo casual como Sócrates segura o copo de cicuta, sem olhar para ele, ressalta também a atitude relaxada diante da morte.
3. Homem sentado O homem sentado com a mão no joelho de Sócrates é Crito, um dos discípulos mais próximos do filósofo. Quando a sentença é anunciada, ele tenta convencer o mestre a fugir.
4. Platão O discípulo mais jovem de Sócrates não estava presente na sua morte, mas é retratado na cena. É um único que reage à tragédia com a mesma dignidade do mestre, sentado imóvel à beira da cama, com o olhar afastado da dramaticidade da cena. Sua cabeça está curvada, imersa em pensamentos, enquanto contempla o destino de seu mestre. >>> Fonte <<< http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2012/02/15/911982/conheca-morte-socrates-jacques-louis-david.html
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PENSAMENTO DO
MÊs
GEORgE BERNARD ShAW
“Enquanto tiveres um desejo, terás uma razão para viver. A satisfação é a morte.”
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ANO II - NÚMERO 2
Texto lindo
FEVEREIRO DE 2018 Advertência: Prepare o lencinho antes de iniciar a leitura.
TODO FILHO É PAI DA MORTE DE SEU PAI Autor desconhecido
Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai. É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso. É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e instransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar. É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela - tudo é corredor, tudo é longe. É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios. E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz. Todo filho é pai da morte de seu pai.
Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes. A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões. Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus. Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?
O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.”
Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.
Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete. E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia. Um amigo acompanhou o pai até seus derradeiros minutos.
No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando ele gritou de sua cadeira:
E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.
— Deixa que eu ajudo.
Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.
Colocou o rosto de seu pai contra seu peito.
Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro.
Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo.
A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.
Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável.
Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo.
Embalou o pai de um lado para o outro. Aninhou o pai. Acalmou o pai. E apenas dizia, sussurrado: — Estou aqui, estou aqui, pai! O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.”
Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2018, dois dias antes.
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FILMES ESTRATÉGICOS
Neste mês não teremos um filme, e, sim, um curto clip com imagens do dia da morte do Barão do Rio Branco, ocorrida em 10 de fevereiro de 1912, há 106 anos.
10 DE FEVEREIRO DE 1912 Os 106 anos da morte do Barão do Rio Branco
SINOPSE A data de 20 de abril comemora o nascimento, em 1845, do patrono da diplomacia brasileira, José Maria da Silva Paranhos Junior (1845-1912), Barão do Rio Branco. Bacharel em Direito, jornalista, deputado, estudioso da História e da Geografia do Brasil, cônsul e diplomata (em um período em que as duas carreiras eram separadas), o Barão do Rio Branco foi o estadista que conduziu processos de arbitragem e de negociação que concorreram decisivamente para o estabelecimento pacífico das fronteiras do Brasil. Atuou como Ministro das Relações Exteriores entre 1902 e 1912, durante os mandatos de quatro presidentes consecutivos. No vídeo, imagens gravadas na ocasião de seu falecimento, em 1912.
FICHA TÉCNICA Fonte: MRE Duração: 5min
Link para acessar o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=d2fGgJvzR1U
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ANO II - NÚMERO 2
POST PUBLICADO EM 17 DE NOVEMBRO DE 2014, NA FANPAGE DICAS DA DIPLOMATA Vida de diplomata... Quando deixamos um posto em remoção para outro, os diplomatas fazem jus a quinze dias de trânsito. Quando deixei a Missão do Brasil em Nova York, em final de julho último, para assumir minhas funções na Embaixada do Brasil na Arábia Saudita, país de onde escrevo, passei meus quinze dias de trânsito no Brasil. Foi uma parada estratégica, especialmente para rever a família, afinal ficaria pelo menos um ano na Arábia Saudita antes das férias - carência temporal necessária para fazer jus a passagem aérea de férias. Em trânsito no Brasil, o tempo foi curto para beijar todos os parentes queridos, e tive de ser seletiva. Mesmo já tendo encontrado com a tia Dodô, irmã de meu pai, em um evento, não sei explicar, fiz questão de fazer-lhe uma visita especial, mesmo que morasse um pouco distante de onde eu ficava e já tivéssemos nos visto. Chegamos um pouco depois do horário combinado, de noite. A tia Dodô não só preparou, com todo carinho, nosso jantarzinho caseiro, super brasileiro, com arroz, feijão e bife, como há muito não comia, mas também atendeu aos caprichos dos meus filhos, fazendo pipoca e tudo mais. O cafezinho, ao final, com o bolo que preparou para a gente, estava inesquecível. Foi uma bela noite. Despedimo-nos com um até breve, já com planos de repetir a visita na minha próxima ida ao Brasil. Semana passada, o Itamaraty me designou para viajar ao Catar, aqui ao lado, para ajudar nossa Embaixada em Doha nos preparativos da visita presidencial. A Presidenta faria parada no Catar a caminho do G20 (Austrália). Missão dada é missão cumprida e lá fui eu. Os primeiros dias foram intensos nos preparativos. No grande dia, 12/11, quando recepcionaria nossa Presidenta na pista do aeroporto, foto deste post, acordei bem cedinho, para me arrumar e tomar o café tranquilamente.
No celular, sobre a cabeceira, mensagens no whatsapp, de minha irmã. Antes mesmo de seguir para o banheiro, decidi ler o que minha irmã me diria: “tia Dodô faleceu”. O chão faltou. A sensação de perder a tia querida estando a léguas de distância e com missão de trabalho a cumprir é muito estranha. Tentei viver o luto ligando para meu pai, que estava muito abalado. Pedi que comprasse a coroa de flores com meu nome e de minha família - forma mais concreta de me fazer representar, o que foi feito. O momento mais esperado da missão aconteceu naquele mesmo dia 12. A Presidenta aterrizou em Doha e a cumprimentei, conforme previsto no protocolo, mas o sorriso na foto era triste, porque sabia que, na minha próxima ida ao Brasil, não mais poderia visitar minha tia Dodô. Assim é também nossa vida de diplomata, servindo no exterior por muitos anos. Sempre tive medo desses momentos, mas eles chegam. Chegam quando menos esperamos. E devemos encarar. Este foi meu segundo momento desta natureza. Não é fácil. Abraços, meus queridos e queridas internautas. Obrigada por me ouvirem. Claudia Assaf
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CARTAS AO CEACEDIsTA arti g o ex c l usi vo aos leitor es d o d ica s da d iplomata
Por Claudia Assaf
ADEus, pAIZINhO. Caros leitores, futuros diplomatas,
Quase fiquei sem editar o jornal do Dicas da Diplomata (DdD) de fevereiro, porque não encontrava forças ou motivações. Isso porque, em 12 de janeiro último, às 4h10min, na cidade do Rio de Janeiro, chegou ao fim a existência física de meu pai, Jairo de Araújo Bastos. Eu estava ao lado dele nos seus últimos cinco dias de vida, porque os médicos nos anteciparam que aqueles eram os dias finais. Acompanhei cada um de seus últimos suspiros. Não foi fácil. Foi triste demais, um sentimento de tristeza diferente de todas as tristezas que eu já havia conhecido, mas, ao mesmo tempo, foi tenro e sereno. Acabava ali dois anos de muito sofrimento. A convivência entre nós, admito, não foi das mais pacíficas, porém rica em aprendizados mútuos. Foi meu herói e meu bandido. Se eu puder resumir em uma palavra o maior ensinamento que dele recebi, essa palavra seria SOLIDARIEDADE. Era capaz de tirar a roupa do corpo para o próximo em apuros. Cada um que falou durante o velório ressaltou precisamente essa qualidade de meu pai, contando um episódio específico em que meu pai lhe estendera a mão.
Meus 15 anos, em agosto de 1986
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Meu pai, com 33 anos, e eu, com 2 anos, em 1973, no parque Ary Barroso, Penha, Rio de Janeiro. Hoje abandonado, o parque Ary Bassoso era o reduto das famílias nos finais de semana no subúrbio do Rio, nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
Crescemos em Vista Alegre, subúrbio do Rio de Janeiro. Havia um mendigo, já um senhor de idade, o seu Ari, que perambulava pelas ruas do bairro de dia. Era final da década de 1970, início da década de 1980, e eu era ainda uma criança com menos de dez anos, quando, um dia, eu estava no quintal brincando, quando vejo meu pai chamar o seu Ari, cujo nome, até então, nem sabíamos qual era: “quer entrar e ajudar a lavar o quintal?”, perguntou meu pai ao mendigo. Seu Ari estava sujo, cheirando mal, barba por fazer, buscava o que comer. Seu Ari aceitou. Antes, meu pai o ajudou a se banhar na mangueira, forneceu sabonete e esponja, deu uma roupa sua para ele se vestir e sentou seu Ari na cadeira num cantinho do quintal.
FEVEREIRO DE 2018
ANO II - NÚMERO 2 Ali, fez-lhe a barba e aparou-lhe os cabelos. Eu, incrédula assistindo à cena, e, confesso, ainda com um certo medo por estar vendo um mendigo dentro de nosso quintal, apenas olhava, ao mesmo tempo que admirava aquele gesto. Ato contínuo, seu Ari almoçou conosco e, em seguida, lavou nosso quintal com muito capricho, cena que se repetiria uma vez por semana por anos a fio, mediante o almoço e um trocado, até que seu Ari não mais voltou. Soubemos que havia falecido. Seu Ari era um amor de pessoa e viu no meu pai o amigo que lhe dera dignidade. Nunca mais me esqueceria dessas cenas, que me inspirariam, em futuro longínquo, a forma como busco atuar na carreira diplomática, em especial no setor consular.
Rio de Janeiro, agosto de 2011, celebrando meus 40 anos de idade. Nesta ocasião eu servia em Doha, o Catar, mas estava no Brasil de férias.
Quando atuei no Setor Consula da Embaixada em Doha (20082012), meu então chefe, atual cônsul do Brasil em Montevidéu, chegou a apelidar-me de “Madre Teresa de Calcutá”, já que, diante de uma emergência consular, ou até mesmo em situações corriqueiras, eu só “sossegava” depois que o problema consular da vez fosse inteiramente resolvido, ainda que, mesmo sem solução legal, eu apenas emprestasse meus ouvidos para o brasileiro conversar. Muitas vezes até, durante a atenção dada ao consulente, surgia alguma solução criativa ao caso, e tudo se resolvia, sem violar leis. Foram muitos casos. Cada um mais especial que outro.
Hoje, sinto que esse meu ímpeto em querer resolver os problemas alheios e, até mesmo, a inspiração para conduzir este meu projeto voluntário Dicas da Diplomata, dedicado a você que me lê, eu tenha herdado dele. Como lhe disse em seus últimos dias, muito obrigada por todo o amor que me dedicou. Dedico esta edição do jornal mensal do Dicas da Diplomata a você, pai. Adeus, paizinho. Sempre te amarei.
Momento em que o corpo de meu pai desce a sepultura, em 13/1/2018, por volta das 14h45min, no cemitério Jardim da Saudade de Sulacap, Rio de Janeiro. 11