Crônicas de Anarquinópolis

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CRÔNICAS

DE

NTO

O

APA-DEFU CA E O P A V A , O BONEC


André Luiz Cabral é apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Que nos desculpe Belchior, mas não haveria versos mais adequados do que os seus para descrever o autor deste livro. André Cabral é jornalista e teólogo de formação. Atua há mais ou menos 15 anos no jornalismo impresso e, há 7 edita o jornal Expresso Regional, em Macaé-RJ. Foi neste jornal, que começou a escrever crônicas semanais sobre Anarquinópolis. História esta que deu origem ao livro que você tem em mãos. Além de jornalista, teólogo e escritor, André também é um péssimo cantor e um terrível adversário da balança…




crônicas

de

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ANDRÉ LUIZ CABRAL

crônicas de

1º EDIÇÃO

MACAÉ ANDRÉ LUIZ CABRAL 2015


Copyright© 2015 André Luiz Cabral Direitos dessa edição reservados e protegidos pela Lei 9610 de 19.08.98. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, exceto por escrito, da editora.

Impressão e acabamento: Gráfica Jep Edição: André Luiz Cabral Diagramação, projeto gráfico e capa: Weberth Freitas Ilustrações de miolo e capa: Nilton Magalhães Venda e distribuição: Editora Expresso

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) C555 Cabral, André Luiz. Crônicas de Anarquinópolis: o boneco, a vaca e o papa-defunto/André Luiz Cabral. - Macaé-RJ, 2015. 103f.

ISBN: 978-85-920073-0-0

1. Sátira. Humor . Humor Brasileiro. I. Título. Edição do Autor

www.editoraexpresso.com

CDD 869.7


“O mais bobo aqui desenha uma vaca e tira 30 litros de leite” Júlio César de Barros



AGRADE

CIMENTOS São tantas pessoas que contribuiriam direta e indiretamente para este projeto, que seria injusto mencionar nomes (até porque, poderia esquecer alguém). Portanto, quero antes de mais nada agradecer a Deus, a quem eu devo tudo o que tenho e o que sou. A Ele toda honra e glórias, sempre! A cada amigo, que me ajudou a chegar até aqui,palavras não seriam suficientes. Fica, portanto, o meu abraço. Afago este que darei pessoalmente em momento oportuno. Obrigado!



SUMÁRIO CAPÍTULO 1: O INÍCIO 3 CAPÍTULO 2: TUCANILDO 3 CAPÍTULO 3: A DAMA E O PAPA- DEFUNTO 3 CAPÍTULO 4: A ASCENSÃO DO IMPÉRIO 3 CAPÍTULO 5: A PODEROSA FAMÍLIA PAVÊ 3 CAPÍTULO 6: CAPITAL NACIONAL DA ESGOTOLINA 3 CAPÍTULO 7: PEQUENAS PESSOAS, GRANDES NEGÓCIOS 3 CAPÍTULO 8: A OPOSIÇÃO 3 CAPÍTULO 9: A LENDA DA JUÍZA AFRODITE 3 CAPÍTULO 10: SAULO PAPIS 3 CAPÍTULO 11: O MOTIM DE FILOMENO 3 CAPÍTULO 12: TED 3 CAPÍTULO 13: ASSUNTOS DE FAMÍLIA 3 CAPÍTULO 14: TEMPOO DE ALIANÇAS 3 CAPÍTULO 15: É GUERRA 3 CAPÍTULO 16: O REINADO DE FILOMENO 3 CAPÍTULO 17: PAVÊS VERSUS PAVÊS 3 DICIONÁRIO ANARQUINÊS-PORTUGUÊS 3



O

Brasil

PRE

tem recantos

FÁCIL

O Bfarasil tem ntásticos recantos fantásticos cuja localização geográfica é incerta. Quem já foi à bem-amada Sucupira, do Odorico Paraguaçu, onde o cemitério continua virgem por falta de defunto? Quem já deu uma passadinha por Pasárgada, pra andar de bicicleta, subir no pau-de-sebo, tomar banhos de mar? Estes pedaços de paraíso (ou inferno), sabe-se lá por quê, foram deixados de fora dos mapas. Que injustiça! Não é de se estranhar, portanto, que Anarquinópolis também não figure na lista de municípios catalogados pelo IBGE. Não se sabe ao certo quantos habitantes têm, qual o seu IDH, ou quantos cidadãos recebem mesada para reclamar da vida e chorar a crise. Mas, acredite: este reino encantado é cheio de realidade. Ou seria realeza? Tem os príncipes Tucanildo e Filomeno, os bobos da corte e todo um séquito de (nem tão) fiéis escudeiros, sedentos de um líquido preto e viscoso que move a economia local – uma espécie de galinha dos ovos de ouro que talvez os nobres e seus vassalos estejam matando aos poucos, sem se preocupar com o futuro. Com suas belezas e mazelas, Anarquinópolis é uma delícia! Uma cidade fantástica, que poderia ter saído da mente brilhante de Dias Gomes ou Manoel Bandeira, mas que foi totalmente projetada e construída pelo meu grande amigo André Cabral. Na condição de escriba real (sem trocadilhos), ele se tornou o arauto desse cantinho de mundo, com suas crônicas bem-humoradas.


Conheci o André em 2004, quando desembarquei em Macaé para editar o jornal O Diário da Costa do Sol. O cara chegou chegando, me conquistou com seu texto inteligente e... bingo! Um ano depois queimávamos nossos neurônios na montagem do Expresso Regional, veículo do qual me desliguei em 2007, mas que o André, junto com o amigo e sócio Joel Martins Filho, continua cuidando como um pai carinhoso e, às vezes, severo. Foi na página 2 do Expresso, dentro da Coluna do Balthazar, que li os primeiros relatos sobre Anarquinópolis. Durante sete anos, semanalmente, os leitores foram presenteados com um conjunto de crônicas bem-humoradas, relatando tramas e bastidores de uma terra que só poderia mesmo ter saído da imaginação. Pura ficção, lógico! Estranhamente, algumas figuras conhecidas da nossa política não entenderam muito bem a proposta. Incomodaram-se, achando que a carapuça foi feita sob medida para suas cabeças brilhantes. Só que não. Esse reino encantado parece bem perto, mas qualquer semelhança com cidades, estados ou países é mera coincidência.


Devido ao grande sucesso das crônicas, era de se esperar que Anarquinópolis saísse das páginas do jornal e fosse parar nas livrarias. Fiquei profundamente feliz, portanto, ao saber que este trabalho encantador agora vai extrapolar os limites da redação e tornar-se imortal no mundo da literatura brasileira. Espero que Anarquinópolis receba muitos visitantes e, por muitos e muitos anos, seja assunto de conversa tanto nas praças quanto nas bibliotecas. Tenho certeza, caro leitor, que sua viagem a esta terra fantástica renderá lembranças inesquecíveis. Desejo que você se divirta bastante e, se puder, mande lembranças de lá. Quem sabe um cartão-postal. E desejo ao André que continue dando vida a tantos personagens que habitam sua mente privilegiada. Porque Anarquinópolis está crescendo loucamente e precisa de projetos mirabolantes. Quem sabe outros príncipes virão e trarão outras histórias? Prometo acompanhá-las com atenção. E espero que o final seja feliz. Boa leitura! Gustavo Araújo J O R N A L I S TA



Imagine um lugar como qualquer outro. Poderia ser aquela cidade do interior onde sua avó morava, ou mesmo a cidade que você escolheu para viver. Anarquinópolis não existe e ao mesmo tempo é real. Um lugar onde certa vez um líquido preto e viscoso começou a jorrar no litoral e transformou uma humilde vila de pescadores de Bagres na Capital Nacional da Esgotolina. Uma cidade simples, onde a população se contentava em beber Marronzito (uma bebida feita com fluído de radiador, groselha e água poluída) e assistir as emocionantes partidas de AAD (Arremesso Anal de Dardos). Lugar de prosperidade, onde políticos faziam a festa com o dinheiro da esgotolina e alcançavam o estrelato no incrível picadeiro chamado Parlamento. A religiosidade também era um traço forte da sociedade Anarquinopolitana, com o famoso culto à Deusa Teta e as rodas de Curim-ba do Centro Espírita Orixá Garotinho. Porém, o que mais chamava a atenção em Anarquinópolis era a fantástica história da Família Pavê e seus personagens ilustres: Tucanildo e o príncipe Filomeno, o Boneco de Olinda. É através deles que o mundo de Anarquinópolis se descortina e revela um enredo de muitas aventuras, tramoias e cons-pirações. Te convido, humildemente, a embarcar comigo rumo à Anarquinópolis. E, para facilitar o entendi-mento da mesma, publico no final deste livro um dicionário Anarquinês-Português, para que você entenda todos os nomes e termos estranhos deste livro, que estarão em itálico. Portanto, se estiver em dúvida sobre determinada palavra, basta recorrer ao dicionário. Ah, e antes que eu me esqueça: qualquer semelhança de Crônicas de Anarquinópolis com fatos, lu-gares ou personagens


da “vida real” não passará de mera e infeliz coincidência. Portanto, se por ven-tura alguém se identificar e se ofender com esta ficção, peço antecipadamente desculpas. A intenção nunca foi essa. O autor


O INÍCIO

T

udo começou há alguns séculos ,

quando por aqui viviam cerca de 100 índios (ou mais) das tribos dos Tramois e dos Tupi-Gambás. Décadas mais tarde, no início do século XIV, vieram muitos con-trabandistas de Pau-brasil. Como o povo de Anarquinópolis, que na época ainda não tinha este nome, adorava (e ainda adora) um pau, o mercado negro de madeira prosperou. E muita gente vinha na antiga Vila de Anarquinópolis levar pau, ou melhor: exportar a madeira para vários lugares. No século XVII, o rei D. Gordão de Portugal, vendo que muitas pessoas iam para o local contra-bandear madeira, ordenou que a vila se torna-se um principado. Logo, piratas, bandidos, contraban-distas de todo o país migraram para lá. E assim o digno de honesto povo de Anarquinópolis se for-mou… *** Passaram-se muitos séculos. E, há uns 60 anos (mais ou menos), a cidade encontrava-se em estado miserável. Na verdade, somente a sede sobrevivia graças à pesca de bagres e barrigudinhos,abun-dantes no Rio Esgotoé.Já seus distritos,coitados,viviam em extrema miséria.


Convenção de Jacaribe era (e ainda é) o mais miserável deles. Jacaribe era uma vila de mais ou me-nos 200 habitantes, perdida em um vale semiárido. O povo do lugar, portanto, sobrevivia caçando Tartarango. O animal, já extinto, era o resultado do cruzamento da tartaruga do sertão e os calangos daquele lugar. O sabor do Tartarango lembrava galinha, parecia peixe e tinha um leve toque de coe-lho misturado com odor de banheiro de boteco. Toda esta mistura de paladares fazia a carne do bicho ter um insuportável sabor de urina, impossibilitando o seu consumo. Sua pele, no entanto, era uma fonte importante de proteína, muito usada por aquele miserável povo. A pele do Tartarango era muito dura, o que fazia o povo torrá-la sobre a pedra ao sol de meio dia (o lugar era tão quente que nem precisava de fogão) para mastigá-la como se fosse um chiclete de ba-con. Além do réptil havia uma espécie de cacto comestível que, toda vez que chovia na cidade (de dois e dois anos) eles conseguiam fazer uma sopa. Outros distritos do principado era Maconha, famosa pela produção de ervas; Quissapão, Cara de Pus, além da serra dos JardinsChicoPaes, que mais tarde tornar-se-ia o ducado de Glicerópolis. A sede de Anarquinópolis era tão pobre, mas tão pobre que todos os comércios pertenciam a um úni-co homem. Seu nome era Dique Boca Torta, descendente direto dos contrabandistas de Pau-brasil e poderoso patriarca da Família Pavê, uma das mais importantes do principado. Na época, Anarqui-nópolis tinha um regente, mas quem mandava na cidade mesmo eram os Pavês, com bares, hotéis, prostíbulos, fazendas e outros negócios. Dique Boca Torta também era um proeminente jornalista, poeta, escritor, músico exímio jogador de porrinha. Porém alguém de sua família seria ainda mais poderoso e influente do que ele…


S

OrrisO largO ,

cabelos prateados, andar vagaroso, voz aveludada e um caixão lustroso na caçamba da carroça. Foi esta a primeira impressão que a população de Anarquinópolis, teve de Silvozinho Malva-deza, carinhosamente apelidado de Tucanildo. O jovem era um belo e talentoso vendedor de caixões. E veio à cidade, atraído pela taxa de homicí-dios, que crescia exponencialmente devido a disputa de terras entre fazendeiros locais. Logo, a cli-entela para seus caixões era certa. No entanto, quando chegou à cidade, ele logo foi abordado pelo velho e poderoso Dique Boca Torta. Afinal, ninguém vendia nada no principado sem o aval do velho patriarca da família Pavê. Vendo que não teria como desafiar a autoridade do velho — até porque ele estava lá para vender caixões, não usá-los — Tucanildo lhe propôs uma sociedade.


Logo, o comércio de caixões prosperou. E o talento de Tucanildo chamou a atenção do velho Boca Torta, que logo nomeou o rapaz como capataz-chefe, gerente e administrador de seus negócios, entre eles hotéis, lojas e fazendas de gado....


A DAMA E O PAPA-

E

ra uma bela tarde de outono ,

ou inverno (sei lá). Chovia, nevava e fazia sol ao mesmo tempo. Tucanildo estava no balcão da funerária fechando a contabilidade de seu sócio e patrão quando uma moça muito bonita adentrou o local. Ele já ouvia falar da donzela, filha de Dique Boca Torta. Os olhos de ambos se cruzaram e o coração palpitou. Ela, muito elegante de educação refinada, tinha a cultura das mais abastadas damas. E ele, um simples papadefunto vindo da capital em busca de novas oportunidades — e compradores para seus caixões. Na verdade, Tucanildo tinha uma história bastante triste e obscura. Nasceu na capital e, desde cedo, teve que aprender a se virar. Muito novo, perdeu os pais e foi morar com a avó, uma simples e pau-pérrima lavadeira de roupas. Para ajudar no sustento da casa, carregava as trouxas na cabeça pela cidade. Quando tinha 14 anos, sua avó, de 128 anos, faleceu e Tucanildo foi parar nas ruas da capital engra-xando sapatos por alguns trocados. Sem casa, trabalho ou parentes, o rapaz dormia


debaixo das marquises da cidade grande. Aos 20 anos, após arrumar uma confusão com os demais garotos de rua, acabou indo morar no cemitério, onde arrumou um bico como vendedor de rosas para os familiares dos mortos — na verdade, ele conseguia as rosas, roubando-as de outros túmulos. Percebendo a perspicácia e talento do rapaz para os negócios, um famoso bruxo e papa-defuntos da localidade, resolveu convidá-lo para trabalhar em sua funerária e terreiro. Poucos anos mais tarde,Tucanildo prosperou tanto que acabou criando seu próprio negócio de agente funerário itinerante. E foi assim, de cidade em cidade, de morte em morte e de caixão a caixão que ele chegou a Anarqui-nópolis.. *** Os olhares de Tucanildo e a filha do patrão, chamada Carne Pavê se trocaram e jamais se separaram. Foi amor à primeira vista! Mas o casal manteve o romance em secreto com medo das reações de Bo-ca Torta. Porém, nenhum segredo sobrevive


a uma barriga redondinha: Carne estava grávida de seu primogênito, que seria chamado de Tucaninho. Na época, a gravidez de Carne seria um grande escândalo, já que a família era muito católica e a sociedade, na época, conservadora. Para abafar o escândalo, o velho ordenou que a filha fosse morar na capital até ter o filho e, depois, arrumar uma ama de leite para cuidar do menino, em secreto. Tu-canildo discordou veementemente, mas acabou na cadeia, sob a falsa acusação de ter roubado o pa-trão e tentado deflorar sua filha virgem. Mas nem as grades da prisão de Anarquinópolis conseguiriam separar aquele grande amor. E Tuca-nildo acabou fugindo, ficando vários meses refugiado em Jacaribe, comendo tartarangos e cactos silvestres. Quanto ao velho, ele acabou morrendo num trágico acidente: um dos caixões de Tucanil-do caiu, misteriosamente, sobre sua cabeça. Após a morte do sogro, Tucanildo acabou inocentado de todas as acusações. Viajou à capital e bus-cou seu amor de volta. Com ela também veio Tucaninho, o primeiro de três filhos machos e viris que ainda estariam por vir….


A ASCENSÃO DE UM IMPÉRIO

S

uperado o incidente com o seu sogro,

agora morto, Tucanildo reparou que outro integrante da Família Pavê reinava em seu lugar. Acontece que sua esposa, Carne Pavê tinha uma irmã, a bela, frágil e perfumada D. Perseguida. E Debodes, seu marido, era o patriarca de uma velha linhagem de fazendeiros da serra, onde criou o ducado de Glicerópolis. O casamento com D. Perseguida, aliás, foi planejado meticulosamente por Dick Boca Torta antes de sua trágica morte. Como dote, o velho havia recebido 500 cabeças de gado, alguns acres de terra e 500 cabritas virgens. E, desde então, Debodes tornou-se o sucessor natural do patriarcado dos Pavês. No entanto,Tucanildo tinha talentos que seriam mais valiosos do que toda a fortuna de Debodes e de D. Perseguida. Ele tinha uma rara aptidão para a política e um carisma envolvente. Foi assim que ele juntou-se a uma nova onda de políticos que ascenderam após a morte de Boca Torta, entre eles,Velho Moacir e Bico Velho, dois dos grandes líderes da época.


*** Tucanildo, lógico, aventurou-se na política. Porém, a primeira eleição pela qual disputou, não foi exatamente como o planejado. Na verdade, ele teve um desempenho tão ruim, que perdeu a disputa de uma vaga no parlamento local para um ex-comerciante de madeira. No entanto, mesmo com a derrota, a classe política local via nele algum potencial. E, com sua lábia incomparável acabou tornando-se o braço direito do novo governante da cidade, Bico Velho, que acabara de vencer as eleições pondo fim ao reinado dos Pavês, pelo menos por ora. Era uma época bastante próspera na política. Mesmo a cidade ainda sendo muito, muito pobre, havia grandes políticos e representantes para se orgulhar, entre eles,Velho Moacir que conseguira, mais tarde, um feito conquistado por poucos: dar o seu nome a um estádio superfaturado, padrão Fifa. Bico Velho era um governante amado pelo seu povo. Vindo do simplório vilarejo de Quissapão, um dos que ainda eram anexados a Anarquinópolis, o político era o único da história do principado que entrou na política pobre a saiu mais pobre ainda. Na verdade, Bico Velho não queria ouro nem prata. Sua única ambição era ajudar seu distrito a conquistar a independência e, quem sabe, tornarse o primeiro governante de Quissapão. Os objetivos de Bico Velho eram nobres. Para tanto, ele começou a conduzir uma série de obras em Quissapão, já preparando o distrito para viver livre de Anarquinpópolis. Enquanto Bico Velho preparava um principado para chamar de seu, Tucanildo tinha os seus próprios planos e sonhava em chegar ao poder de Anarquinopolis. Convenientemente, sua amizade com Bico Velho alcançava novos patamares, ao ponto dele ser chamado de seu filho.


O reinado de Bico Velho chegava ao fim. E, com toda a confiança de seu patrão, Tucanildo foi escolhido como candidato à sua sucessão. Bico Velho, ainda sonhando em transformar Quissapão, em um principado independente, tratou de candidatar-se ao Parlamento Estadual, onde lutaria pela emancipação. Tucanildo, por sua vez, assumiu o trono em Anarquinópolis jurando lealdade eterna ao seu padrinho político. E assim, sobre o cetro de um expapa-defuntos, renasceria a dinastia da família Pavê, desta vez com muito mais poder do que antes. Afinal, além de astuto,Tucanildo era um homem de muita, muita sorte.


A PODEROSA

A

essa altura, Tucanildo e Dona Carne já tinham três filhos homens, fortes e viris: Tucaninho, Saulo Papis e Adoado. Seu cunhado, o fazendeiro Debodes também se gabava de ter três herdeiros: ElBudan (também conhecido como Shrek), Carluda e Filomeno que, mais tarde, seria conhecido como o poderoso Boneco de Olinda. Apesar da rivalidade entre os pais, os primos viviam em harmonia, e adoravam brincar na Praia da Esgotiba. Lá, eles também conheceram Bonitinho Calças


Quadradas, filho de um proeminente dentista da época. Bonitinho cresceu junto com Tucaninho e seus irmãos. Ao ponto de todos da cidade acreditarem que, na verdade, eles eram parentes. Porém, mesmo sem o parentesco de sangue, de certa forma eles permaneceriam sempre irmanados na vida e na política. *** Tucanildo resolveu empregar toda a família no governo. Até mesmo Debodes, antes adversário ferrenho, ganhou um carguinho. Outra parente que ganhou destaque também foi Tia Omo, que foi nomeada conselheira, pajé e curandeira dos Pavês. Tia Omo, aliás, era uma velha que guardava muitos segredos e, sobre ela, havia diversas lendas. A mais conhecida é de que ela, quando tinha apenas cinco anos, foi jogada na mata pelos pais, após eles se assustarem com sua aparência, que lembrava um ornitorrinco. Sozinha, no meio da mata, Tia Omo sobreviveu graças ao leite de uma doninha, que a criou junto com seus oito filhotinhos. Assim, tomando leite de doninha e comendo arbustos, ela sobreviveu até os 13 anos na floresta, quando foi encontrada por alguns índios da tribo Tramoios. Na aldeia, Omo foi tomada como esposa pelo Cacique e Pajé da tribo. Junto com os índios Tramoios, Tia Omo conheceu todos os segredos místicos da floresta e se tornou a primeira pajé da aldeia. Mas, infelizmente, quando fazendeiros da redondeza invadiram as terras dos índios, acabaram dizimando aquela


riquíssima cultura. Ela, no entanto, sem a sua tribo foi para a cidade e acabou trabalhando numa das fazendas de gado que foram construídas nas antigas terras da aldeia. Na fazenda, a indiazinha acabou conquistando o coração do dono da propriedade que, apesar de a moça não ser mais “pura”, a tomou como esposa e lhe fez 17 filhos. O fazendeiro era primo de Dique Boca Torta. Assim, Tia Omo tornou-se uma digna e civilizada representante da Família Pavê. Mas seus conhecimentos místicos da floresta jamais foram desprezados. Os filhos de Tucanildo também acabaram empregados no governo, a exemplo dos primos, tios, avós e até animais de estimação. Tucaninho, o mais sagaz de todos, ficou encarregado das finanças do principado. Saulo Papis, mais sensível e delicado do que o irmão tratou de cuidar da parte do turismo. Adoado, muito mais sensível e delicado ainda, pediu ao pai um cargo para cuidar das apresentações de balé, dança, e arte do principado. Os sobrinhos de Tucanildo também foram agraciados com alguns carguinhos. Filomeno e Carluda, a princípio conseguiram apenas alguns papéis coadjuvantes no governo. Shrek, irmão mais novo de Filomeno nem se preocupou em arrumar um cargo. Contentou-se apenas com uma mesada que o tio lhe dava toda semana, para ele gastar com festas. Era um fanfarrão. Até Bonitinho Calças Quadradas, aquele vizinho muito amigo de seus filhos, conseguiu um lugar de destaque. A essa altura, Bonitinho estava estudando muito para tornar-se um proeminente médico de cabeça.


CAPITAL

NACIONAL DA

ESGOTOLINA

Q

uando T ucanildo assumiu o trono em Anarquinópolis, a cidade vivia em extrema pobreza. Pratica-mente ninguém ganhava dinheiro por lá. Aliás, somente dois tipos de pessoas prosperavam naquela cidade: os políticos e as suas mães, que faturavam como ninguém na milenar indústria do entreteni-mento adulto. Porém, o destino da cidade estaria para mudar completamente numa bela manhã de domingo (ou sábado, sei lá…). Ninguém sabe ao certo o que aconteceu. Só se sabe que, subitamente um líquido preto, viscoso e altamente poluente começou a jorrar no litoral da região. Pouco depois, descobriu-se que o material nada mais era do que um poderoso


combustível ao qual deram o nome de esgotolina. E, desde então, Anarquinópolis nunca mais foi a mesma… **** Com a esgotolina, gente de todo o país e de vários cantos do mundo veio para o principado explorar e ganhar dinheiro com a nova atividade econômica. Até mesmo uma grande estatal (a EsgotoBrás) e centenas de empresas estrangeiras vieram e fincaram estacas em Anarquinópolis. Junto com elas, também veio o dinheiro em forma de um tributo, chamado esgotoyalties. E o dinheiro dos esgotoyal-ties tornou a família Pavê ainda mais rica e poderosa. No embalo do dinheiro, alguns distritos de Anarquinópolis se assanharam em busca da emancipação. Afinal, agora que o dinheiro estava sobrando, cidades como Quissapão e Cara de Pus reivindicaram sua fatia. E, no embate, acabaram declarando a independência de Anarquinópolis. Após a emancipação dos distritos, Bico Velho, o maior responsável pela ascensão de Tucanildo ao poder foi até ele pedir que o ajudasse a ser o primeiro príncipe de Quissapão. Agora que se tornara um poderoso governante de uma cidade milionária, Tucanildo poderia facilmente retribuir o favor ao seu velho amigo, ajudando-o em seu projeto político. No entanto, Tucanildo não quis ajudá-lo e Quissapão acabou elegendo um fazendeiro local, criador de carneiros, como seu primeiro príncipe. Quanto a Bico Velho, ninguém nunca mais ouviu falar dele.


PEQUENAS PESSOAS,

GRANDES

NEGÓCIOS

C

a riqueza da esgotolina , seria muita injustiça afirmar que apenas a família Pavê enriqueceu. Muitos outros políticos conseguiram também seu lugar ao sol. Muita gente pobre conseguiu enrique-cer do dia para a noite. Um deles foi um humilde comerciante de frangos que conseguiu tornar-se dono das principais fontes de água da região. E não era só ele, houve carteiro se tornando dono de bairro, produtor rural dominando toda uma serra, comerciante de merenda escolar virando grande atacadista, sem contar os modestos proprietários de casebre, que faturaram milhões com desapropri-ações. Dentre todas as fantásticas histórias de sucesso, destaca-se de um mero pescador de tainhas que um dia teve a brilhante ideia de processar Tucanildo. Em um surto de loucura (destes om


que atingem a maior parte dos governantes), o imperador de Anarquinópolis resolveu pintar toda a cidade com as cores do brasão de sua família. Mesmo sem ser advogado, o pescador de tainha viu nisso uma gran-de oportunidade: arrumou um jurista porta de cadeia e processou Tucanildo. O imperador, logica-mente, se indignou. Porém, o Tainha insistiu no processo e, numa épica batalha de Davi contra Goli-as quase derrubou Tucanildo do trono. Vendo que seria difícil dissuadir o pescador pelos meios tradicionais,Tucanildo acabou chamando-o para um acordo. E, do dia para a noite, o pescador se tornou um dos principais ministros da corte, ganhando bilhões. Seu filho mais novo, vendo que o pai faturava alto nas negociatas governamentais, resolveu fundar um movimento estudantil, chamado União Mercenária dos Estudantes Salafrários (UMES). A família inteira se deu bem. Outro que também ganhou notoriedade foi o humilde frentista Ted. Ele tinha uma história interes-sante de superação e, no futuro, quase se tornaria príncipe (esta história veremos mais tarde). Ele trabalhava de sol a sol em um posto de esgotolina ganhando uma mixaria por mês. Mas, mesmo ga-nhando tão mal conseguiu juntar uma grana para ir para o exterior tentar a vida. Não voltou rico de lá, mas, pelo menos, aprendeu um novo idioma e, numa época em que Anarquinópolis estava cheia de gringos, acabou se tornando um proeminente professor de línguas. A garotada o adorava. Com o carisma entre os jovens, o talentoso Ted logo chamou a atenção do velho Tucanildo e, com o apoio do todo-poderoso regente, o jovem professor logo se tornou parlamentar. E, na sua vida, ele jamais saberia novamente o que é dificuldade financeira.


Outro que também ascendeu na vida foi o veterano político Miquinho Matusalén. Na verdade, Mi-quinho já estava na política muito antes do próprio Tucanildo e, de certa forma, já estava rico há muito tempo (considerando que exercia seu ducentésimo mandato parlamentar). Entretanto, na épo-ca em que Tucanildo estava no poder, ele conseguiu algo que valia mais do que dinheiro: uma equipe esportiva para chamar de sua. Porém, ninguém conseguiu enriquecer mais do que o próprio Tucanildo e sua família. Tanto que sua fortuna virou lenda. Uns diziam que ele tinha mansões do exterior; outros que ostentava castelos na Europa. Ainda havia gente que jurava que, na verdade, ele tinha uma grande caixa-forte onde nada-va em um mar de moedas de ouro.


A OPOSIÇÃO

T

ucanildO era pOderOsO, porém

ele estava longe de ser absoluto. Havia muitos adversários ao velho. Um deles era o proeminente médico Dr. Carros Errin, primo da esposa de Tucanildo, D. Carne. O médico foi, durante muito tempo o mais poderoso inimigo de Tucanildo, apesar de ser um parente distante. Ele chegou a ser príncipe de Anarquinópolis por duas vezes, uma delas, inclusive, derrotando o próprio grupo de Tucanildo. Porém, com a ascensão do papa-defuntos ao poder já na era da esgotolina abundante, Carros Errin tornou-se apenas um fantasma do passado. Outra forte oposicionista era a parlamentar federal Beata Irmã Red, ligada ao grupo do ex-governador Erezinho e sua esposa Rosquinha. Na verdade, Beata Irmã nada mais era do que a representante local do maior inimigo externo do príncipe de Anarquinópolis, o próprio governador.


Erezinho e Tucanildo reavivaram, no campo político, uma velha rivalidade entre os principados de Campo do Boi Capaz e Anarquinópolis. Tão grande que, se as cidades tivessem uma força militar própria já teriam declarado guerra. Diz a lenda que a briga começou quando os principados ainda eram habitados por índios. Uma das hipóteses levantadas pelos historiadores diz que tudo começou quando um astuto guerreiro da tribo dos Tramoios, que habitava as terras de Anarquinópolis roubou a mulher do cacique da tribo dos Bois Capazes, que habitavam o principado vizinho. Aí fez-se guerra entre os índios de cá com os índios de lá e o ódio entre os habitantes de ambas as terras jamais cessou. No entanto, há outra versão defendida, isso apenas por alguns historiadores de Anarquinópolis. Diz a lenda que a rivalidade começou quando os índios da cidade vizinha tentaram tomar as terras de Anarquinópolis, por conta das roliças toras de Pau-brasil. E, por gostarem tanto do pau, os índios de lá acabaram tendo a sexualidade questionada pelos locais até hoje. E a “zueira” nunca teve fim… A verdade é que ninguém sabia, ao certo, a origem da rivalidade. O que se sabia, portanto, é que Erezinho e Tucanildo se odiavam com todas as forças.


*** Erezinho cresceu em Campo do Boi Capaz onde casou com Rosquinha, uma simplória vendedora de cosméticos, e teve uma penca de filhos. Naquela cidade, ganhou fama como locutor de caminhão de pamonhas e elegeu-se para o parlamento estadual. Após isso, tornou-se príncipe local e, com o apoio do ex-governador, o velho Brazzola, chegou ao governo do estado. Muitos diziam que Tucanildo sonhava em ser governador e invejava Erezinho. Outros diziam o contrário. Que, Erezinho é que tinha inveja do regente de Anarquinópolis já que a cidade enriqueceu com a esgotolina e sua terra natal continuou na miséria. O fato era que o agora governador de Campo do Boi Capaz sempre tentou derrubar Tucanildo do posto. Foi aí que a parlamentar Beata Irmã Red ganhou notoriedade política, ocupando importantes cargos no governo de Erezinho. Ela quase derrubou Tucanildo do cargo. No entanto, o velho manteve-se no poder por muito pouco. Fato que gerou até uma história muito conhecida na cidade: a lenda da Juíza Afrodite…


A LENDA

DA JUÍZA

AFRODITE

E

que não se sabe se é verdade ou folclore. Porém, muita gente em Anarquinópolis acredita nela. Quando disputou com o regente Tucanildo o direito de governar Anarquinópolis, Beata Irmã Red conseguiu grande apoio popular, sobretudo porque o velho já estava desgastado no poder — esse já era seu segundo mandato como regente da corte. A campanha foi tão intensa que muita gente acredita até agora que Beata Irmã foi a verdadeira vencedora. Pois, afinal, se ela tinha maior apoio popular, como é que Tucanildo levou a melhor nas urnas? É bom lembrar que a população anarquinopolitana há muito sonhava com uma regente mulher no cargo. E, num passado próximo quase elegeu outra líder da oposição, a ex-parlamentar Maricota Gracinha. No entanto, Maricota ssa era mais uma destas histórias


acabou perdendo a eleição devido a uma gafe racista. Em um comício em um bairro da periferia, a então candidata afirmou, nos bastidores, que não gostava de gente com excesso de melanina no corpo. No entanto, esqueceu ela que havia um microfone por perto, e a população, formada predominantemente por pessoas de cor, acabou ouvindo a ofensa pelos alto-falantes. E assim, Maricota se suicidou eleitoralmente... Mas com Beata Irmã era diferente. Ela passou a campanha inteira sem cometer qualquer gafe. Religiosa, tinha uma vida pessoal muito discreta e nada poderia ser usado pelos adversários contra ela. Só o fato de ela ser crente. Mas, naquela época, não havia tantos escândalos ainda envolvendo lideranças religiosas. Mas, no fatídico dia da votação, diz a lenda que Beata Irmã estava liderando com folga a apuração, quando a famosa Juíza Afrodite mandou trancar a sala de apuração e, com sua autoridade, mandou todo mundo embora. A sala foi reaberta mais de meia hora depois e, estranhamente, Tucanildo que perdia a eleição agora estava na frente na apuração sendo declarado vencedor. Claro que tudo isso não passa de uma lenda. O que de fato aconteceu, no entanto, foi que Tucanildo ganhou seu terceiro mandato. Quanto à juíza Afrodite, nunca mais se ouviu falar nela novamente.


SAULO PAPIS

E

ra um rapaz muito educado, o futuro da família Pavê. Logo seu pai, o poderoso Tucanildo resolveu lançá-lo na carreira política. A lei não permitia que Saulo, sendo filho do regente, assumisse imediatamente a coroa. Mas, nada o impedia de assumir um cargo intermediário para, em um futuro próximo, enfim tornar-se príncipe. Para tanto, o velho resolveu chamar o herdeiro para uma conversa séria: — Filho, ta na hora de você assumir uma postura de homem público. Escolhi você para dar prosseguimento ao nosso legado familiar. — Mas, papi! Sou muito novo para isso! Tenho só 40 anos! Chama oTucaninho, ou mesmo o Adoado. Eu, não quero! — Não tem jeito. O Tucaninho já é sócio em duzentas empresas fornecedoras do governo e Adoado é muito sensível para a bruta e mortal arena da polícia.


Sendo assim, debaixo da ordem do pai, Saulo começou a sua caminhada política. Primeiro presidindo a empresa responsável pelos passeios turísticos nos valões de Anarquinópolis, a Valão Tur. Depois, como de praxe na vida de todo político, tratou logo de arrumar uma noiva muito bonita. Afinal, político naquela época só era aceito se fosse muito bem casado, homem com “M” maiúsculo. Assim, como uma festa digna dos reis, Saulo casou com a presença de artistas famosos e show da sua banda preferida, cujo pupilo e xará Saulo Nulo era o vocalista. Após o casamento, as eleições. E Tucanildo não mediria esforços, nem dinheiro para eleger o filho. Mas, naquele mesmo pleito havia outros nomes querendo também disputar o mesmo cargo. Um deles era o intrépido e mercenário radialista Paga Mais Para eu. Paga Mais para Eu era o filho de um poderoso empresário e político da cidade, seu nome era Irritamil Cabreu. Ele fazia parte de uma linhagem de políticos renomados da cidade, e chegou a ser príncipe em sua época, após depor, no grito, o então regente Dudu Frescano. A verdade é que Irritamil era muito rico e talentoso. Fez fortuna na capital construindo quartos secretos onde políticos salientes pudessem passar a noite com suas secretárias. Um negócio que não tinha como dar errado. Além disso, o homem era um talentosíssimo radialista, tanto que com sua fortuna comprou várias emissoras na capital e no interior. Como político, além de príncipe local também tinha conseguido ser eleito para o Parlamento Estadual, de certo ele foi um dos homens mais importantes de sua época em Anarquinópolis.


Mas, mesmo com toda a fortuna, Irritamil relutava em dar dinheiro para seu filho que, por sua vez, não fazia nada da vida. No entanto, para não coçar o bolso, o velho deixou Paga Mais para Eu seguir os seus passos e estrelar um programa de rádio. Assim, o filho playboy poderia ganhar o seu próprio dinheiro. Mas o programa de Paga Mais para Eu era horrível. Mesmo assim, dava muito dinheiro. A voz fina, estridente e irritante do jovem radialista tirava a todos do sério. De modo que os políticos locais começaram a dar dinheiro ao moço para que ele diminuísse a grade de seu programa. Assim, caso não recebesse seu repasse, o jovem e intrépido radialista mantinha o seu programa 36 horas no ar e ainda espalhava carros de som pelo principado propagando sua voz. E sempre algum político, coagido, depositava uma grande quantia em sua conta bancária em troca de uma trégua. Quando mais falava, mais o radialista ganhava para se calar. Era um esquema infalível. Apostando que, na política, teria o mesmo sucesso alcansado com o rádio, Paga Mais para Eu pensou com os seus botões: — Será simples eu me eleger. Vou espalhar 500 carros de


som pelo principado propalando minha voz e prometendo que, caso não seja eleito, não vou parar de falar nunca mais. Era um plano perfeito. Mas ele teria que enfrentar a fúria de Tucanildo e a poderosa máquina que, a esta altura, já estava programada para dar uma grande votação a Saulo Papis. *** Paga Mais Para Eu começou sua campanha com seus carros espalhando a voz irritante e estridente aos quatro ventos. Pensava ele que, temendo ouvir eternamente o terrível som, o povo de Anarquinópolis votaria nele. Porém Tucanildo era esperto demais para deixar o mercenário radialista se dar bem. E, para contrapor a chantagem de sua voz, criou um programa municipal inédito, distribuindo protetores auriculares para toda a população. Pronto! Ninguém mais ouviria Paga Mais para Eu, que acabou perdendo a eleição. E Saulo se tornaria, em breve, o parlamentar estadual mais inexpressivo da história anarquinopolitana.


O MOTIM DE FILOMENO

F

dos três astutos sobrinhos de Tucanildo. Porém, o mais carismático entre eles. Carluda e Shrek, seus irmãos, não tinham talento algum para a coisa pública. Portanto, restou a ele a tarefa de levar à diante a missão de manter a família no centro da política. Filomeno, o Boneco de Olinda iniciou a sua carreira no Parlamento. E, desde sempre, sonhava em ser príncipe. Para que este sonho concretizasse, portanto, restava apenas convencer seu velho tio de que ele era a pessoa certa para o cargo. Mas Tucanildo tinha outros planos. O velho déspota chegara ao seu último mandato bastante preocupado com a sucessão. ilOmenO

era

um


Para tanto, queria decidir entre três nomes, de sua mais alta confiança: Dr. Preto, ministro da saúde local; Maria Errenta, ministra da Educação e o atual presidente do parlamento Saulo Taz. Para que o plano de Tucanildo se concretizasse, entretanto, era necessário garantir a reeleição de Saulo Taz, que presidia o Parlamento local. Isso neutralizaria qualquer força contrária, ou candidato que ousasse se lançar. Mas havia outro plano nefasto se desenrolando nos bastidores. E este plano, tinha como arquiteto dois parlamentares muito espertos: Ted Kruegger e Élio Okay. Ted era um cara muito, muito carismático. Professor de línguas, ele tinha feito sucesso com a garotada.Tanto, que Tucanildo o colocara como seu ministro dos esportes. E ele, com o cargo conquistou uma grande ascensão. Resolveu, com isso, ser candidato ao parlamento federal. Não venceu, porém fez muitos votos. Agora, porém, estava cacifado para ser candidato a príncipe. Sonhava com isso. Mas temia enfrentar um candidato forte. Por isso, sabia que precisava influenciar a eleição do Parlamento pois, o próximo presidente seria logicamente seu adversário. E, entre Saulo Taz e Filomeno, a escolha óbvia seria pelo mais fraco. Ted, quando resolveu criar asas naturalmente se afastou do velho Tucanildo e ensaiou uma candidatura de oposição. Porém, cabia a ele, naquele momento apostar na instabilidade para poder se dar bem. Havia, entretanto, outros nomes do Legislativo também de olho nesta eleição. Esperavam eles conquistar uma carta de alforria e se livrar do domínio do velho Tucanildo. Tucanildo não só mandava no executivo. Tinha um enorme domínio também sobre os parlamentares que eram obrigados a aprovar suas obras faraônicas e fazer vistas grossas para


suas irregularidades. O problema dos parlamentares não era moral. Afinal, eles não se importavam muito para o que acontecia de certo ou errado nos porões do poder. O problema é que os parlamentares, mercenários, sempre queriam mais. *** Os dignos e honestos parlamentares de Anarquinópolis, portanto, resolveram instituir um príncipe para chamar de seu. E, tinha que ser alguém fraco o suficiente ao ponto de ser manipulado, mas de família influente o suficiente para fazer o velho Tucanildo ceder. E quem seria melhor para o cargo do que o próprio sobrinho do velho? Filomeno era o cara! Uma comitiva de parlamentares subiu à serra dos JardinsChicoPaes a fim de conversar com Filomeno, o Boneco de Olinda. O Boneco, a essa altura, já era uma figura superpopular. Havia construído um maravilhoso sítio, carinhosamente chamado de Wonderland. Neste mágico lugar, um sem número de rapazes pobres, carentes e musculosos encontraram abrigo. Filantropo como poucos, ele fazia como ninguém a alegria da rapaziada. Tamanho era o seu coração e sua disposição ao fazer os pobres felizes. Quanto amor! *** Chegaram à serra os parlamentaresTed,Dr.Bigode Branco,Tunico Mineral, Dr. Malfadado Gorduroso, Juiz Malandro, Jorge Jardineiro, Hélio Okay, e tantos outros, dispostos a dizer não ao velho e ao candidato dele à presidência do Parlamento (a essa altura,Tucanildo já havia mandado os parlamentares a reelegerem Saulo Taz).


— Chegou a hora de a gente conquistar o Parlamento. Dizer não ao domínio do velho sobre a gente e mostrar quem é quem manda de verdade por aqui — gritou Tonico Mineral, subindo em uma mesa. A comoção foi geral. Porém, os parlamentares fizeram Filomeno jurar que, quando conquistasse o parlamento e, depois, o principado daria um pedaço do poder, um ministério com “porteira fechada” para cada um. E assim começou a ruína de Anarquinópolis... *** Reunião de emergência convocada por Tucanildo em seu Palácio. Autoritário como era, o velho foi direto ao assunto: — O negócio é o seguinte, vocês vão reeleger Saulo Taz na presidência do Parlamento — ordenou. — Me desculpe, titio, mas eu serei candidato — disse Filomeno, repleto de coragem. Na verdade, apesar do ato corajoso, por suas pernas escorria todo o seu medo. Covardia essa que havia sido expurgada em um ritual macabro... Filomeno jamais teria coragem de enfrentar o velho, se não fosse um ritual feito por Tia Omo, conselheira pajé e curandeira da família Pavê. Nascida na mata,Tia Omo sabia como ninguém fazer os ebôs místicos que poderiam dar coragem a Filomeno.E ela o fez. Cinquenta cabritos malteses, 25 caudas de tartarango, asas de oito casais de morcegas lésbicas, 25 rapazes de tanga… E Zaz! Nascia um novo e corajoso Filomeno, pronto para enfrentar o seu tio. E o Boneco de Olinda realmente o enfrentou, deixando o velho irritado, porém, atônito por jamais se deparar com uma atitude de tamanha ousadia.


Tucanildo, naturalmente, resistiu. Jurou vinganças e maldições, caso os parlamentares continuassem com o motim. Porém, inspirados pela coragem de Filomeno, seus pares no Parlamento resolveram comprar a briga. Mas Tucanildo não se daria por vencido. Temendo uma retaliação do velho, todos os parlamentares coluiados com Filomeno resolveram fazer uma vigília espiritual na serra. Só mesmo o jejum e a oração os fariam resistir à tentação de um ataque financeiro de Tucanildo. Diabólico, o velho mandou posicionar um carro-forte na porta do sítio de Filomeno. Para aguçar ainda mais os sentidos dos parlamentares, o velho ainda posicionou um enorme ventilador (daqueles usados no cinema) para levar o cheiro do dinheiro para dentro do sítio. Devido ao agradável odor das notas novinhas, alguns parlamentares tiveram que ser acorrentados. Tamanha a vontade de sair sítio afora abraçando a dinheirama. Filomeno alugou uma van blindada, e à prova de odores, e levou seus colegas direto para o Parlamento. Era o dia da eleição. E, mesmo com toda a tentação, os parlamentares finalmente o elegeram como novo presidente do Parlamento local. Estava, enfim, pavimentado o seu caminho até o trono do principado. Isso, logicamente, se conseguisse vencer o talentoso Ted e sua proposta quase irresistível de mudança.


TED A

Filomeno e seus 40 aliados na liderança do Parlamento era tudo o que Ted queria. Agora, nada poderia impedir sua ascensão ao trono do principado. Não apenas porque Filomeno era considerado por ele um adversário fraco e instável, e sim porque também havia um acordo de bastidores onde Ted, mesmo sendo agora da oposição levaria alguma vantagem sobre o milionário orçamento do parlamento. Ted era a mudança. E, para encampar a mudança, precisara de um aliado forte. Alguém que aglutinasse as camadas mais populares. Foi aí que ele pensou numa aliança com Dr. Carrão, um proeminente médico das massas, famoso por fazer ligadura de trompa de graça para as mulheres da favela. Era um político conhecido, já havia sido vice-rei e parlamentar estadual. Portanto, uma figura importante da oposição ao príncipe Tucanildo. — Carrão, meu amigo. Façamos um trato. Vamos caminhar juntos, lado a lado nas comunidades. Eu converso com as moças da comunidade e você faz as ligaduras. Assim, antes da eleição faremos uma pesquisa de opinião. Quem estiver na frente, será o candidato a príncipe. Quem estiver em segundo, vira vice — propôs Ted, com a voz aveludada de uma sereia. eleição de


Convencido pela lábia do jovem parlamentar, Dr. Carrrão resolveu seguir com Ted, embalado pelo belo sonho da mudança. Mas, na verdade, o astuto político jamais quis fazer pesquisa alguma. Tinha em mente outros planos. Ted era habilidoso na arte de encantar e, sabia ele, que precisava de um padrinho forte. Foi aí que surgiu uma amizade com o bispo Trivella, um dos líderes das Pequenas Igrejas, Grandes Negócios, organização multibilionária que tinha como líder o proeminente bispo Pedir MaisCedo, seu tio. Trivella tinha o poder e o dinheiro necessário para talvez fazer de Ted o novo príncipe. Logo, um grande culto foi convocado para anunciar sua entrada no partido de Trivella. Naturalmente, Dr. Carrão não foi convidado para a festa, o que o fez sentir-se traído. A festa foi linda, com lideranças políticas e religiosas de toda a região. Ted, já sentia-se o príncipe a essa altura, tanto que começou a receber dízimos das Pequenas Igrejas, Grande Negócios. Mesmo sem nunca ter rezado sequer um Pai Nosso, o agora parlamentar começou a surfar na onda gospel e até chegou a cogitar a possibilidade de virar bispo, caso a carreira na política não decolasse. Oh glória!!! Porém, a única coisa que era maior do que o poder divino das igrejas era a expectativa pelo poder político na bilionária Anarquinópolis. E, ao mesmo tempo que recebia dízimo do bispo, Ted começava uma conversa paralela com alguém que, mesmo não sendo santo, parecia ter um poder maior de fazer o milagre de torná-lo príncipe: o governador Erezinho. Erezinho e sua esposa Rosquinha sonhavam em destronar Tucanildo há muito tempo. Até porque, podre de rico, o regente de Anarquinópolis era o maior aliado e um dos finan-


ciadores da campanha do ex-governador Marmelo Cachaçar que, num passado recente, havia derrotado o próprio Erezinho. Sem falar da rivalidade entre as cidades de Anarquinópolis e Campo do Boi Capaz, terra natal de Erezinho. Erezinho foi apresentado a Ted por Calvanháquio Cláureo. Nascido em Glicerópolis, Calvanháquio era filho da terra, embora ninguém soubesse disso. Fez carreira num banco estatal e chegou ao governo de Erezinho via MãoZão (que no futuro viraria o governador, mas esta já é outra história). Erezinho estava disposto a mais uma vez apoiar a ex-deputada Beata Irmã Red, sua candidata nas últimas eleições. No entanto, Calvanháquio tinha em mente um plano de traição bem arquitetado. E Erezinho estava cansado de perder. Ted foi apresentado como um candidato mais que viável, com chances reais de derrotar o grupo de Tucanildo e acabar de uma vez por todas com o recalque do governador. Mas havia dois problemas no caminho: o primeiro é que Erezinho havia prometido apoio a Beata Irmã. O segundo era o próprio Ted, que já tinha jurado fidelidade ao bispo Trivella e, inclusive, embolsado alguns dízimos de sua igreja. A única solução para todo este imbróglio era a traição. Traição, aliás, era uma língua que Erezinho, o governador, entendida muito bem. Afinal, em um passado muito recente ele havia se tornado governador graças ao apoio do então governador Brazolla, mas o traiu indo para outro partido, de um político famoso do nordeste. Após isso, ele novamente traiu o velho nordestino e entrou em um terceiro partido. Portanto, para Erezinho, trair e coçar era só começar. E assim, Erezinho traiu Beata Irmã Red com Ted, que havia traído Trivella que não havia traído ninguém. E Calvanháquio


acabou se tornando o alcoviteiro desta união extraconjugal. Apaixonado por Ted (ao ponto de Rosquinha ter ciúmes) o governador Erezinho tratou logo de entregar a ele o controle de todos os órgão do Estado em Anarquinópolis. Da delegacia de polícia à Roubatran, todos os cargos passaram a ser ocupados pelo grupo de Ted que, a esta altura se cacifava como nenhum outro ao posto de príncipe. Com o poder dos cargos e a mala do governador, a oposição de Anarquinópolis finalmente teria poder suficiente para enfrentar a poderosa máquina de Tucanildo. Seria este o fim da hegemonia secular da família Pavê?


QUESTÕES DE

FAMÍLIA

T

ucanildo não queria ,

nem a pau (e olha que o pessoal de Anarquinópolis gostava muito) Filomeno como príncipe. Apesar de ser sobrinho de sua amada esposa Carne Pavê ele conhecia o seu caráter duvidoso. Sabia também que, se príncipe fosse, seu sobrinho lotearia o governo e entregaria tudo nas mãos dos parlamentares.Temia que a eleição do sobrinho seria o fim melancólico de tantos anos de poder e domínio dos Pavês. Mas Filomeno ganhava cada vez mais força. O Parlamento de Anarquinópolis era muito forte, com o orçamento turbinado com o dinheiro da esgotolina. Com dinheiro sobrando, Filomeno começou a atender cada um dos cidadãos anarquinopolitanos em seu gabinete legislativo. E dava de tudo (tudo mesmo): dentadura, muleta, pneu, material de construção, remédio...Tudo o que o povo pedia, Filomeno dava de bom grado. Sua popularidade como bem feitor o fez crescer nas pesquisas e superar todos os preferidos de Tucanildo para o cargo.


Para piorar ainda mais a situação do velho, a Família Pavê, antes receosa estava vez mais simpática à ideia de ter Filomeno como príncipe. Tia Omo era a mais animada entre todos. Com o sobrinho no poder, não faltaria dinheiro para seus empreendimentos espirituais. Pretendia ela, junto com o sobrinho, instituir o culto à Deusa Teta. Deusa Teta era uma divindade muito antiga.Tão antiga quanto a própria carteira de identidade de Tia Omo. Ninguém sabe ao certo a origem do culto, ou mesmo a raiz de sua fé. Uns dizem que a deusa era cultuada pelos índios da aldeia onde a anciã cresceu. Outros diziam que, na verdade, era uma entidade cultuada desde os primórdios. Historiadores e teólogos garantem que há traços da deusa nas na cultura de caldeus, fenícios, sírios e cananeus. A entidade era representada por uma enorme vaca dourada com mil tetas. Seu leite, segundo manuscritos muito antigos, tinha o liquor que teria dado origem a todo o universo conhecido. Alguns estudiosos defendem, inclusive, que a adoração a bezerros de ouro descritas como práticas de antigas culturas pagãs naTorá Judaica tem origens no culto à DeusaTeta.Afinal, bezerros são filhotes de vacas... Tia Omo queria muito Filomeno como príncipe. Mas não só ela. Seus irmãos, Carluda e Shrek também sonhavam com isso.


Imagina as festas que Shrek daria com o dinheiro do trono de Anarquinópolis? Seriam noitadas imperdíveis. Sem falar da possibilidade de resgatar seus 80 mil cheques sem fundo na praça. Tucanildo não queria. Mas não teve como resistir à pressão familiar. Para piorar, a união entre Ted e seu adversário Erezinho era um elemento que lhe tirava o sono. — Já pensou se Ted vencer e entregar a administração de Anarquinópolis nas mãos de Erezinho e Rosquinha? Vamos virar uma colônia de Campo dos BoiCapaz — advertiu Tia Omo numas das longas reuniões familiares dos Pavês. — Todo mundo sabe que Filomeno não é a minha escolha. Porém, é melhor elegê-lo do que correr o risco de entregar o poder nas mãos da oposição — entregou-se Tucanildo, prometendo ajudar Filomeno a vencer as eleições. Não antes do sobrinho selar com ele um pacto de fidelidade. — Prometo que nunca vou te trair, tio. Sou homem suficiente para manter a minha promessa — garantiu Filomeno. E assim, sob as bençãos da DeusaTeta e a aprovação sem ressalva da poderosa família Pavê, Filomeno tornou-se o candidato oficial do reino.Tucanildo, no entanto, lá no fundo de seu coração sabia que este seria o início do fim para a sua gloriosa carreira política...


TEMPO DE

A L I A N ÇA S

A

o escolher Ted como seu novo ungido, o

governador Erezinho acabou deixando dois personagens importantes da política de Anarquinópolis fora do jogo. Porém, não totalmente. Numa guerra, tão importante quando aniquilar adversários é a arte de saber jogar uns contra os outros. Neste ofício, Tucanildo era mestre.


Como Ted havia traído Dr. Carrão e Erezinho abandonado Beata Irmã Red,Tucanildo sabia que a antipatia de ambos porTed poderia ser bastante útil. Logo, não fora difícil trazer Dr. Carrão para o barco, oferecendo a vaga de vice na chapa de Filomeno. Com Beata Irmã seria mais difícil. Afinal, por mais que estivesse magoada com Erezinho e Ted, ela ainda tinha seus princípios. Não se aliaria a Tucanildo, seu rival de uma vida inteira, tão facilmente. Mas o velho déspota não tinha o menor interesse de tê-la em seu palanque. Pelo contrário, o que ele queria mesmo é que ela continuasse adversária. E, inclusive, fosse candidata pela oposição. Sua ideia no jogo era clara: com dois candidatos na oposição, o voto da revolta contra o governo se dividiria, facilitando a vitória da máquina. Por isso, o plano não era aliar-se a Beata Irmã, mas fazer o seu dinheiro chegar até ela. Portanto, mandou alguns empresários amigos seus a darem uma injeção de grana na campanha dela, que estava quebrada. A religiosa, naturalmente, sabia lá no fundo que todo aquele dinheiro vinha dos porões do palácio de Tucanildo. Porém, ela era adversária dele, não de seu dinheiro. Desse, aliás, ela se tornara uma grande amiga. Foi assim que o jogo então se definiu: de um lado, pela oposição, veio Ted com todo o apoio e dinheiro do governo do estado, de outro Beata Irmã Red, apoiada indiretamente pelo dinheiro de Tucanildo para atrapalhar o jogo. E, pelo lado governista, é claro, veio Filomeno contando com o dinheiro e a inteligência do tio. Alianças devidamente feitas, só faltava uma questão para definir: quem seria o vice de Ted.


Neste caso, o alvo do candidato da oposição era o mais dividido entre os partidos divididos: o PB (Partido da Boquinha). O PB tem uma história curiosa, não só em Anarquinópolis como também em todo o país. Conta a lenda que, certo dia, enjoado de trabalhar, um metalúrgico resolveu cortar o próprio dedo em busca de uma aposentadoria por invalidez. Após enrolar o dedo decepado em uma toalha branca, viu ele uma forma fálica sobre o pano e teve uma epifania: fundar um partido! Logo, a bandeira e o símbolo do partido ficou uma forma fálica, um dedão sem unha, em uma bandeira manchada de vermelho. A cor púrpura, logicamente, foi em homenagem ao sangue. E o dedão sem unha profetizaria o que o partido faria com os cidadãos do país após tomar o poder. Em Anarquinópolis o PB sempre foi oposição. Sobrevivia, sobretudo, nos porões dos sindicatos locais, onde representantes tribais cultuavam uma figura folclórica, porém bastante controversa: a líder tribal xiita Falsanta Berreiro, professora, líder sindical, pajé, feiticeira e curandeira da antiga etnia xiita dos Ivanistas Ribeirenses. Na verdade, não eram apenas os índios Tramoios e os Tupi-gambás que viviam nas terras antigas de Anarquinópolis. Havia uma outra tribo, a dos Ivanistas Ribeirenses. Eles eram canibais, sanguinários, adoradores de uma entidade muito antiga cuja imagem era a representação de um molusco com barbas (uma coisa tenebrosa). Os Ivanistas foram extintos após uma guerra com os Tramoios e praticamente dizimados. Centenas de anos depois, eis que surge a professora de história Falsanta Berreiro resgatando a cultura antiga e antropofágica dos Ivanistas, atraindo muitos para a sua seita xiita. Seita esta que formou a base dos militantes do PB em Anarquinópolis. Como Tia Omo, anciã da família Pavê era uma digna e conhecida representante da cultura dos Tramoios, os ivanistas reavivaram a antiga rivalidade tribal e juraram vingança contra os Pavês.


Além dos ivanistas, porém, havia uma ala menos radical do partido, formada essencialmente por seguidores de uma outra professora: Maricota Gracinha era o seu nome. Maricota tinha sido no passado parlamentar em Anarquinópolis, na mesma legislatura em que Falsanta Berreiro tinha exercido o seu primeiro e último mandato. Maricota era mais pragmática, inteligente e menos radical que o pessoal da etnia dos ivanistas. Na mesma ala de Maricota havia ainda outros nomes como o do petroleiro Maquiavel Taz e Luluzinho NãoDiz, um dos poucos parlamentares de oposição que existiam naquela época. Ted sabia que era preciso cooptar o PB. Embora não houvesse a certeza se toda esta turma, dividida, tinha algum voto, era preciso reforçar o seu palanque e impedir que o PB migrasse para a candidatura de Beata Irmã Red. Porém, havia um grande problema no caminho: os Ivanistas Ribeirenses. Radicais, eles jamais acatariam uma aliança com o candidato apoiado pelo governador Erezinho (que costumava mandar descer o cacete nos professores grevistas) e sua esposa Rosquinha. Mas, o habilidoso candidato contava com um trunfo: a própria divisão do PB e a simpatia de Maricota Gracinha, sua amiga de longa data, e vizinha na ilha da Cantareira. Logo, como de praxe, foi uma briga imensa dentro do partido. E, apesar da resistência dos Ivanistas Ribeirenses, a ala liderada por Maricota Gracinha, Maquiavel Taz e Luluzinho NãoDiz saiu vitoriosa internamente e conseguiu aprovar uma aliança com Ted. Luluzinho foi indicado como candidato a vice. E iniciou uma tradição local: desde então o PB jamais conseguiria mais nada, a não ser a indicação como vice de alguém. Algo assim, como o Vasco da Gama.



GUERRA É

GUERRA

D

efinidas as alianças ,

chegou a hora da batalha que definiria quem seria o sucessor de Tucanildo no cobiçado trono de Anarquinópolis. De um lado, Filomeno tentava defender o legado da família Pavê e a continuidade de seu grupo no poder. De outro, Ted contava com a ajuda (e a mala) do governador Erezinho para superar a poderosa máquina do principado. Correndo por fora, Beata Irmã Red viria apenas para atrapalhar, ainda rancorosa por ter levado um fora do ex-governador, que resolveu trocá-la por alguém 20 anos mais novo. A candidatura de Beata Irmã, no entanto durou muito pouco. Três comícios apenas para ser mais exato. Como os financiadores ligados ao velho Tucanildo pararam de repassar do-


ações para a religiosa, ela decidiu tirar o time de campo. Não antes de conversar com Erezinho e fazer as pazes com ele para apoiar Ted. Claro que este acordo não saiu nada barato. Ted era carismático e, com o poder da máquina do Estado, a oposição nunca teve uma chance tão clara de vencer as eleições. Mas Filomeno e seu grupo não deixariam por menos. Eles tinham duas armas secretas: a imprensa local, comprometida com o sistema, e o incrível Bureau de Intrigas e Chantagens (BICHA), que faria de tudo para desmoralizar a candidatura da oposição. Mas, numa eleição onde muito dinheiro estava em jogo, uma batalha precisava ser travada antes da guerra: a briga pelo Partido Malandragem e Bundalelê (PMB). Em nível estadual, quem mandava na sigla era o governador Erezinho. Localmente, no entanto, a agremiação estava sob o comando de Zé Praga, político local ligado ao parlamentar estadual Pizzaione, um dos mais mafiosos do estado. Ted, para ter o apoio e o peso do governador em seu palanque, precisava ingressar nas fileiras do PMB. No entanto, Zé Praga como era ligado ao governo municipal, faria de tudo para impedir que isso acontecesse. Zé Praga, aliás, era uma das pessoas de maior sucesso em Anarquinópolis. E tudo, tudo mesmo, devia ao PMB e sua aliança lacaia com Tucanildo. Há alguns anos, o líder partidário chegara a cidade, na completa miséria, empurrando um Fuscão 75 em pedaços. Seu primeiro serviço em Anarquinópolis foi como vice-cambono adjunto de um conhecido centro de candomblé. Limpava as galinhas e o curral dos bodes preparados para a oferenda às entidades. No entanto, como o centro era frequentado por políticos influentes, ele consegui logo chegar-


se ao poder local, com uma grande ascensão financeira em sua vida. Nada de Fusca e galinha de sacrifício em sua vida! Zé Praga virou elite! Portanto, ele lutaria com todas as forças para impedir que seu partido encabeçasse a candidatura de Ted. Mas ele não teve como resistir ao poder do governador Erezinho. E assim aconteceu: Ted se tornou o candidato do PMB, apesar da resistência de Zé Praga. No entanto, mesmo não tendo conseguido barrar o adversário, Zé Praga receberia de Filomeno uma grande recompensa. *** Vencida a fase partidária, chegou o grande momento da eleição em si. Empenhado em eleger seu pupilo no governo de Anarquinópolis, Erezinho montou acampamento no principado e passou a despachar de lá, pessoalmente as questões do estado. Com o objetivo de angariar dinheiro para a candidatura, montou um luxuoso escritório no vigésimo quarto andar de uma torre na zona sul da capital para captar recursos: todos os fornecedores do governo do estado tiveram que doar. Diz a lenda que, apenas este escritório conseguiu arrecadar oito milhões de moedas de ouro. O dinheiro, abundante na campanha de Ted, assustou aos adversários. Ao ponto de os serviços do Bureau de Intrigas e Chantagens (BICHA) serem ainda mais necessários. E, para liderar o BICHA, ninguém seria mais adequado do que o malévolo jornalista e ex-dançarino de lambada Beto Babosa. Para fazer o trabalho sujo do BICHA,Tucanildo foi nas favelas de Canto do Boi Capaz contratar os serviços do ex-dançarino.


Beto, aliás, tinha uma história triste e curiosa. Após um breve (muito breve, aliás) período de sucesso, ele foi nomeado num alto cargo em sua cidade, mas se envolveu em vários escândalos. Até que, numa operação dos Homens de Terno Preto, foi descoberto que ele estava gastando milhões na compra de enormes estátuas de homens nus — foi um escândalo! Artista da vanguarda renascentista, Beto Babosa apenas usava as obras de arte, como inspiração. Porém, mal compreendido, acabou perdendo o emprego, a moral e sendo levado preso, mas conseguiu escapar. Sem o prestígio de outrora, o ex-artista se transformou em um poço de ódio e de mágoa, jurando vingança e batendo em todos os garotinhos. Pronto: estava aí o homem perfeito para o trabalho. E assim Beto Babosa veio para Anarquinópolis, ganhou um salário de 10 mil moedas de prata e se tornou o “homem do BICHA”. Na cidade, o ex-dançarino tratou logo de mostrar a que veio, provocando os mais diversos boatos. O principal foi que o casal de governadores Rosquinha e Erezinho construiriam um presídio na cidade. A “notícia” foi espalhada em uma rádio local (que, convenientemente pertencia à família de Tucanildo). Com medo do presídio, o parlamento local, através de uma proposta do parlamentar Tunico Mineral aprovou uma lei proibindo a construção de qualquer estabelecimento prisional em Anarquinópolis. Mal sabiam todos que a notícia não passava de um boato. Mas nem os boatos do BICHA puderam frear o avanço de Ted nas pesquisas. Foi aí que o inteligente secretário de Subversão Social, Falando ProsPaspalhos teve uma sacada genial: encomendar pesquisas com números mascarados. Embora não exercesse um impacto tão grande na população, as pes-


quisas poderiam abalar o moral do candidato adversário. E, com o moral abalado, talvez o adversário não quisesse mais investir tanta grana na eleição. Além das pesquisas, onde mostrava Filomeno com 124% nas intenções de voto dos eleitores, outra estratégia foi usar muito bem os advogados da corte contra a campanha adversária, sacando a dupla de advogadores mais chata do principado: Mona e Bamby. Pai e filha, a dupla não entendia quase nada de Direito. Porém, com insistência conseguiam entrar com 287 ações por dia. Algo que não surtia muito efeito prático, mas enchia o saco dos inimigos. Acontece que, para combater as pesquisas de Falando e os boatos de Beto Babosa, Erezinho também tinha suas armas. E uma delas era um jornal seu, construído em meio a uma plantação de laranjas. Combatendo fogo contra fogo, Erezinho fazia pessoalmente as manchetes do jornal, e mandava distribuir bicicletas, cestas básicas e até dentaduras para os leitores. Sua tiragem, superior a 50 mil jornais, em muito superava o folhetim governista do jornalista Zé Pires Nas Mãos, que publicava os atos oficiais de Tucanildo. A guerra era acirrada. Tamanha, que os oito milhões de moedas de ouro captadas por Erezinho para a campanha, rapidamente, acabaram. Desesperado, Ted resolveu realizar um karaokê beneficente em sua casa, para mobilizar empresários a fazer doações. Foi neste karaokê que Ted resolveu passar a sua última e derradeira cantada a Erezinho. — Governador, a eleição é no domingo. E não tenho mais dinheiro para campanha. O que eu faço? — indagou, preocupado. — Não se preocupe, Ted. Estou trazendo mais três milhões de moedas de ouro para você gastar no dia da eleição. Vamos


ganhar esta de qualquer jeito — disse Erezinho. Terminada de falar estas palavras, eis que o segurança do governador entrou na sala com dois sacos imensos de dinheiro. Ted, que nunca havia visto tanta grana de uma vez na sua frente, desmaiou de emoção. E ficou a noite inteira beijando o saco [de grana] do governador. Mas não era apenas Erezinho que estaria disposto a gastar muito dinheiro. Tucanildo, craque na arte de comprar votos, também tinha o seu tesouro particular. E resolveu decidir aquela eleição de uma vez por todas. Chamou todos os parlamentares de sua base para uma reunião secreta no sítio de Filomeno, na serra. E, nesta reunião deu as suas últimas instruções para os seus aliados. — Tem muita coisa em jogo neste pleito. Estou sabendo que Erezinho, meu adversário, gastará milhões para eleger seu pupilo, Ted. Mas eu não vou, de jeito nenhum, permitir que isso aconteça. Manda trazer os pacotes — disse Tucanildo, chamando seus seguranças. Foi aí que adentrou a sala, vários homens trazendo uma caixa de papelão rosa e entregando na mão de cada um dos 200 parlamentares, coordenadores e candidatos ao parlamento. — Cada caixa desta tem 200 mil moedas de ouro. Dinheiro suficiente para vocês gastarem nas eleições para ganhar sua vaga no Parlamento e garantir a vitória de Filomeno — instruiu o velho. — Para mim, titio, não terá nenhuma caixa? — Perguntou


Filomeno, que ficou sem pacote. — Não, Filomeno!Todo mundo sabe como é você quando vê dinheiro.Vai querer logo distribuir para a rapaziada da serra — advertiu. Mas nem só de dinheiro seria feita esta eleição. O velho sabia que era preciso bem mais que isso. Foi aí que, um dia antes do derradeiro dia, ele e seu secretário de Subversão mandaram o jornalista Zé Pires Nas Mãos publicar mais uma pesquisa, desta vez mostrando Filomeno com 275% nas intenções de voto. — Será o golpe derradeiro. Duvido que Ted terá coragem de gastar dinheiro no dia, se ele não acreditar que pode vencer — sentenciou o velho. Chegou o derradeiro dia da votação.Ted acordou disposto, feliz, e confiante na vitória. Porém, ao ler o jornal teve um duro golpe. — A pesquisa diz que eu vou perder! Me socorre, Mirabel — disse ele, pedindo que a esposa lhe trouxesse uma dose dupla de Uísque com Frontal. — Calma, Ted, esta pesquisa é mentirosa. Nós vamos vencer — consolou Mirabel, sua esposa. Desolado com a perspetiva de derrota, Ted subiu ao seu quarto, olhou os dois sacos [de dinheiro] do governador e avaliou se realmente valia a pena gastar toda aquela bufunfa nas ruas. Entrou no carro e partiu para sua casa de praia em um balneário próximo. Quanto ao dinheiro, nunca mais se ouviu falar dele… E Filomeno foi eleito o novo príncipe.


FILOMENO, O

PRÍNCIPE

E

ra uma bela manhã de segunda - feira . Filomeno

acordou, olhou para o céu de Glicerópolis, colorido com um estranho tom de rosa bebê purpura. Pensou ser um sonho, mas o barulho no quintal de seu sítio, e os 250 rapazes dançando sem camisa ao som de sertanejo universitário não deixaram dúvida: sim, ele era o novo príncipe! Para a sua posse, em janeiro próximo, ainda faltavam dois meses. Até lá, determinou o príncipe eleito: churrasco todo dia! Enquanto isso, no quarto andar do palácio de vidro, Tucanildo preparava os trâmites da transição. Havia, em seu coração um misto de realização e nostalgia. Estava feliz por ter derrotado Ted e seu tutor Erezinho. Porém, uma preocupação havia em sua cabeça. — E se Filomeno destruir tudo o que construí? Pior, e se ele me trair? — perguntava a seu filho mais velho, Tucaninho. — Pai, não se preocupe com isso. Se Filomeno te trair, você volta depois. Saulo Papis ainda é deputado e você tem um legado a defender. Lembre-se do hospital, do cemitério e do grande “T” construído na entrada da cidade. Duvido muito que Filome-


no consiga superar. E, se ele te trair, a gente tem como sobreviver. Afinal, ficamos 12 anos no poder — consolou Tucaninho. Enquanto Tucanildo realizava os preparativos para sua melancólica despedida, Filomeno montava seu gabinete provisório na serra. Além de escolher os nomes que comporiam seu primeiro escalão, cabia a ele a difícil tarefa de pensar em uma forma de atender os 1.500 garotões carentes que ele prometeu ajudar — era um benfeitor! Chegava perto o momento da posse. E Filomeno tratou logo de escolher seus ministros. Para o Ministério de Catação de Lixo — responsável por contratos milionários, resolveu contratar o próprio pai Debodes, mantendo a tradição familiar de contratar parentes. Para o importante ministério de Subversão Social resolveu contratar o ex-retratista de Tucanildo, o fotógrafo lambe-lambe Vaselino Kodac. Para a secretaria de serra, ninguém melhor do que o coronel Jorge Jardineiro (que já mandava mesmo por aquelas bandas). Para o ministério de Governo, ele precisava de uma proteção espiritual. Foi aí que decidiu contratar Mãe Menininha do Miramar, 24º suplente do Parlamento Local e sacerdotisa do Centro de Curimba Orixá Garotinho. A equipe de governo contaria ainda com outros nomes importantes, como Bigode Branco; o esperto MãoZão da Roubatran e Tainha, que mais tarde despontaria como o mais rico entre os ricos ministros. Filomeno, o Boneco de Olinda, sabia que era preciso dar a sua marca ao seu governo e desvencilhar a sua imagem com a do velho Tucanildo. Porém, sem saber o que fazer, ele teve que começar o governo tocando as mesmas obras prometidas pelo velho.


Uma das obras foi a construção da Linha Rosa, importante trecho que ligaria o nada ao lugar nenhum, custando nada menos do que 50 milhões de moedas de ouro, mesmo valor que Tucanildo investiu na construção das cinco estações de carroça. As estações eram importantes para a cidade, uma vez que as carroças do arcaico sistema de transporte poderiam ficar em lugar coberto e, assim, proteger os burros que as puxavam (e que andavam nela). Porém, a maior obra do governo de Filomeno não seria feita com tijolos, nem pedras. Seria uma obra social. Mesmo não sendo comunista, ele alimentava em seu peito protuberante o mesmo sonho do Presidente Chula, o Filho do Barril: acabar com a fome e a miséria… Entre seus amigos e aliados. Foi aí que ele decidiu criar um megaprojeto social, o Bolsa Garotão, uma linda iniciativa que visava dar um destino melhor aos milhares de jovens carentes e musculosos da serra de Glicerópolis. Assim, Filomeno conduzia o seu governo fazendo de alguns amigos os homens mais ricos do principado, gente que andava de carro de boi, agora era o rei do gado. Gente que antes vendia frango, agora colocava ovos de ouro. Era um governo de prosperidade. Dois anos se passaram do benevolente governo de Filomeno. E, como resultado de tanta bondade, as contas do prin-


cipado foram à bancarrota. Eram tantas festas, churrascos e desapropriações milionárias que nem a fortuna da Esgotolina deu conta de cobrir. Para piorar, o Parlamento Local tinha uma fome sem tamanho e exigia do príncipe cada vez mais grana. Filomeno estava perdido. Para piorar, como esperado, a Família Pavê começou a mostrar claros sinais de desgaste. Tucanildo, agora ex-príncipe resolveu concorrer a uma vaga no parlamento federal. Seu objetivo, claramente, seria ganhar força para retornar ao poder. Logo, a atitude do velho inevitavelmente dividiria a família: de um lado, ficaria a ala do próprio Tucanildo e seus três filhos. De outro, o restante dos Pavês, liderados por Filomeno e pela feiticeira Tia Omo. Mas, por enquanto, Filomeno e o tio ainda eram aliados e seus sorrisos amarelados ainda estampavam as capas dos jornais. Ainda era cedo para dar um pé no traseiro do velho, mas Filomeno tentava uma estratégia mais sutil para frear o seu avanço: lançar um candidato “B” para dividir os seus votos. Foi aí que o Parlamentar Bigode Branco entrou no jogo. Filomeno o instigou a vir candidato ao parlamento federal, dividindo assim, a base de apoio do velho. Pensava ele que, sem os votos totais de Anarquinópolis, Tucanildo fracassaria. Porém, o plano não saiu exatamente como o esperado: o velho triunfou.


A AMEAÇA DE

UM DRAGÃO

A

vitória de tucanildO

não era o maior dos problemas enfrentados pelo príncipe. Com as contas atrasadas e o parlamento ganancioso, estava cada vez mais difícil manter a governabilidade.


Para piorar, das montanhas ocultas da serra de Glicerópolis uma enorme ameaça surgiu prometendo devorar o príncipe e todos os seus aliados. Era um dragão chamado Denúncias. Diz a lenda que o ele é um antigo animal de estimação do próprio príncipe. Na verdade, ele nem era ainda um dragão, era um simples Tartarango quando Filomeno, resolveu abandoná-lo na estrada, sozinho, para morrer. Decepcionado, o animalzinho, que amava Filomeno, saltou para o suicídio no Rio Esgotoé. No entanto, ao cair no rio, sua poluição radioativa provocou uma mutação, transformando o tartarango em um monstro. E assim, contam os antigos, nasceu o Dragão Denúncias. Denúncias era um dragão curioso. Em vez de fogo, de suas ventas saíam labaredas de acusações. E ele começou quente, divulgando os contracheques milionários de nobres integrantes da Família Pavê, como Carluda e Tia Omo que ganhavam, juntas, mais de 30 milhões de moedas de ouro mensalmente. Diante à ameaça iminente do dragão, Filomeno fez o que sempre fazia em momentos de aflição: encolheu-se até a posição fetal, colocou o terceiro dedo médio do pé esquerdo na boca e lá ficou por três dias e três noites. Após sair do estado de choque, o príncipe resolveu chamar seus mais fiéis aliados para encontrar uma solução para o caso. — Vamos chamar o Orelha, Pereba e Zé da Cova. Eles dão um jeito rapidinho neste dragão — sugeriu Tunico Mineral, um dos seus homens fortes no Parlamento. Pacifista, Filomeno logo o dissuadiu da ideia: — Nada disso, precisamos de uma estratégia menos violenta. Se o dragão sumir desta maneira, vão falar que a culpa é da gente — ponderou.


Foi aí que Zé Praga, um de seus mais inteligentes assessores tomou a palavra: — Deixa que eu resolvo o caso, Oh Príncipe! Preciso apenas que o senhor me dê seu cartão e a senha do banco — disse Zé Praga. Sem muita escolha, Filomeno atendeu a Zé Praga que, prontamente requisitou uma reunião com o Dragão. E, pelo menos por ora, ninguém voltou a falar daquele dragão. Afinal, não há Denúncias que resista a um bom dinheiro...


FILOMENO,

O ESPORTISTA

N

A narquinópolis durante o reinado de Filomeno. Passados quase três anos de seu reinado, nosso ditoso Boneco de Olinda ainda estava sem ideias de qual obra levaria a sua marca. Foi aí que, das arenas esportivas surgiu uma luz. Na verdade, o principado tinha uma enorme tradição esportiva, com grandes equipes de vôlei, basquete e até queda de braço. No entanto, o grande destaque na cidade era o AAD (Arremesso Anal de Dardos), uma das modalidades olímpicas excluídas dos jogos de 1924. O AAD consistia em usar a potência muscular da esfincter dos atletas para arremessar dardos de acácia, lubrificados com vaselina, até grandes distâncias. O atleta que conseguisse arremessar os dardos lubrificados a uma distância maior ganhava. A disputa por equipe acontecia através do lançamento sincronizado de dardos, onde era avaliado a distância total atingida e o sincronismo dos arremessos pelos atletas. em tudo ia mal em


Na cidade, havia uma equipe tradicional, chamada Anarquinópolis Esporte. Decadente até então, o time era usado apenas como trampolim político para seu dono, o parlamentar Miquinho Matusalém. Era sustentado, basicamente, com um repasse mensal do governo local e um tímido patrocínio do Marronzito — um refrigerante local feito com fluído de radiador, groselha e água poluída do Rio Esgotoé. Mas tudo mudou quando os bravos e destemidos rapazes do Anarquinópolis Esporte conseguiram um feito inédito: vencer o campeonato nacional da 25ª Divisão do AAD e ascender para a 24ª Divisão, a quase sub-elite nacional do nobre esporte. O feito foi celebrado com pompa e circunstância em Anarquinópolis. A mídia local não falava em outra coisa. Foi aí que Filomeno, oportunista, encontrou a chance de ouro para escrever seu nome na história do principado: — Vou construir um estádio para as emocionantes partidas de AAD! — anunciou Filomeno, em reunião com seus ministros. A comoção foi geral. Afinal, estava aí uma obra útil e necessária para o progresso do principado...


FOGO

CONTRA

FOGO

A

pesar da euforia e comoção provocadas pelos garotos do AAD, a cidade ainda amargava um clima de insegurança devido à crise financeira. Para piorar, a construção do estádio estava consumindo o resto da grana que ainda havia na cidade. Muito religiosos, Filomeno e seus ministros exigiam “Um Terço” dos empreiteiros da obra que, por sua vez, encareciam ainda mais o valor da construção.


Enquanto isso, seu tio, Tucanildo começava a fazer reuniões semanais angariando apoios. Até então, a família permanecia de certa forma unida, mas o velho resolveu colocar o pé na jaca e anunciar que seria candidato nas próximas eleições, contra seu próprio sobrinho. Filomeno desesperou-se com a decisão do tio e estava decidido a fazer de tudo para impedir o seu avanço. Convencidos que estes poderiam ser os últimos momentos de Filomeno no poder, os dignos e honestos representantes do parlamento anarquinopolitano decidiram apertar ainda mais o príncipe. A ideia era aproveitar a festa, enquanto ela não acabasse. Para apimentar ainda mais a história, o temível Dragão Denúncias, convenientemente resolveu aparecer. Ele, que estava sumido há algum tempo, voltou com força total, atirando para todos os lados. Desconfiava-se, inclusive, que era o próprio velho que estaria, desta vez, alimentando o dragão. Mas Filomeno também tinha as suas feras. E era preciso combater fogo contra fogo. Foi aí que Vaselino Kodac, retratista lambe-lambe e digno ministro da Subversão apresentou uma excelente ideia: — Vamos comprar um jornal pequeno, bem garotinho e,


nele, vamos escrever toda sorte de mentiras contra o velho. Vamos jogar nele toda a culpa pelo caos que assola a cidade — sugeriu Vaselino. Sua ideia era válida, já que o jornalista Zé Pires nas Mãos, dono do mais antigo jornal diário da cidade já havia declarado apoio ao velho (seu ex-sócio) e havia um jornal semanal, em ascensão que não deixava o príncipe em paz. Havia nele, inclusive, um colunista mal caráter que escrevia uma crônica mostrando os podres dos políticos locais. O jornal era um bom contraponto a Denúncias e os periódicos de oposição. Criado como arma contra o próprio Filomeno pelo ex-governador Erezinho e seu pupilo Ted, o jornal prosperou por uma época, mas acabou falindo sem o apoio da forte máquina estatal. Foi aí que Vaselino e o esperto articulador Zé Praga resolveram fazer uma sociedade para gerir o jornal. Vaselino estava interessado na possibilidade de usar o jornal para atacar o velho. Já Zé Praga, oportunista como poucos, sonhava com os milhões que eram gastos mensalmente na publicação de atos oficiais do governo. Era um casamento perfeito. E assim foi feito. Mas, se por um lado Filomeno poderia contar com o jornal garotinho, por outro o velho tinha uma


arma bem mais letal: o Bureau de Intrigas e Chantagens (BICHA), liderado pelo jornalista mercenário e ex-dançarino de lambada Beto Babosa. Para o BICHA não era necessário haver fatos ou denúncias concretas. Bastava uma ideia na cabeça e uma caneta nas mãos para inventar as mais terríveis intrigas. E, uma das calúnias históricas do BICHA foi de que Filomeno transformaria Anarquinópolis na Capital Nacional da Pemba, em clara intenção de deixar Filomeno em situação delicada junto aos pastores evangélicos da cidade. Mal sabia ele que boa parte destes líderes religiosos ganhava assessoria do governo. Logo, a estratégia do BICHA não deu muito certo.


A PRINCESA

SÓGRIA,

A FEIA

F

ilomeno tinha tudo para vencer o velho nas eleições

vindouras: um parlamento parceiro (e mercenário), um jornal garotinho e até mesmo um próspero e vitorioso time de AAD. Faltava, porém, algo em sua interessante biografia para rivalizar com o velho Tucanildo: uma família. Tucanildo era o respeitável pai de três filhos, casado há 200 anos com uma única mulher (raridade na política) e admirado por toda a sociedade conservadora de Anarquinópolis. E isso era uma tremenda vantagem. Por outro lado, Filomeno era um solitário errante. Solteirão inveterado, jamais pensou em constituir família. O mais perto que chegara disso foi o ato caridoso de ter adotado um jovem carente e levado para morar em sua casa. Apesar de ser considerado como pai pelo jovem, Filomeno estava longe de ser o chefe de uma família tradicional, nos moldes que a sociedade exigia.


— Chefe,o senhor tem que casar! — determinouVaselino Kodac. — Mas não sou apaixonado por ninguém, aliás, só pela minha obra social de ajudar os garotões carentes da serra — retrucou o príncipe. — Não tem jeito, se o senhor não casar, o velho ganha. E aí, todo o nosso trabalho terá sido em vão — concluiu o astuto ministro da subversão. Foi aí que Filomeno começou a pensar em quem poderia ser a formosa dama que dividiria com ele um enlace matrimonial. Perdeu a noite de sono confabulando a respeito. Até que, pela manhã, finalmente pegou no sono. Sonhou ele que estava num altar grande e reluzente com toda a sociedade anarquinopolitana fitando seus olhos. Até que entrou, pelo altar, a sua noiva. Ele se esforçava, mas não conseguia ver o rosto da sortuda. Mesmo assim, a plateia inteira aplaudia. Ninguém queria saber quem era a moça, só queriam mesmo é que o príncipe casasse. Filomeno acordou. Foi tomar café com seu amado filho


adotivo Malex e comentou com ele sobre o sonho e a necessidade de casar, mesmo sem vontade. — Bom seria se você e mamãe se casassem — disse o jovem. — Mas, sua mãe não é casada? — Perguntou o príncipe — Na verdade não, ela é viúva. — Traga ela para eu conhecer. Quem sabe não seja ela a noiva que eu tanto preciso? — concluiu. E assim Malex fez, marcando um jantar a luz de velas entre sua mãe e o príncipe Filomeno. O nome da pretendente era “Sógria, a feia”. Moça muito pobre da roça, ela sonhava enfim com a oportunidade de mudar de vida. Apesar de seu filho, Malex, ser o preferido de Filomeno, ela continuava à margem da sociedade. O encontro foi lindo. Filomeno ficou tão encantado com a história e a generosidade de Sógria que nem ligou para o fato de seu rosto parecer com uma doninha em crise menstrual. Ele sabia, no fundo de seu coração, que devia pedi-la em casamento. E assim o fez. Filomeno casou com a sua amada Sógria. E os três viveram felizes para sempre...


VAMOS

LEVAR TUDO (VLT)

A

s eleições estavam às portas . E o velho Tucanildo seguia firme com suas reuniões semanais, atraindo uma enorme multidão de 8 pessoas. Para piorar, o ex-diretor do hospital local, Dr. Bonitinho Calças Quadradas começou a colocar as mangas de fora, tentando talvez ser uma alternativa de mudança aos Pavês. Filomeno confiava na máquina, embora ela continuasse emperrada. Porém, para seus aliados mais próximos, ainda faltava um projeto impactante, que levasse a população a sonhar. O estádio municipal, para as partidas de AAD estava com as obras atrasadas e, provavelmente, não seria inaugurado antes das eleições acabarem. Portanto, ela preciso vender uma nova ilusão.


Foi aí que, Zé Praga e Mãozão Da Roubatran apresentaram dois projetos faraônicos que, com o devido marketing, seriam a redenção para o governo de Filomeno. A primeira ideia, apresentada por Zé Praga era mirabolante. Deu ele o nome de “Programa Água de Esgoto” e, segundo ele, acabaria com os alagamentos que assolavam Anarquinópolis. — A ideia é a seguinte, Filomeno: vamos celebrar um contrato bilionário com uma empreita e encher a cidade de buracos e tapumes de obras. Com isso, garantiremos duas coisas fundamentais — explanou o inteligente Zé. — Quais seriam estes benefícios? — indagou Filomeno. — O primeiro seria a ilusão criada pelos buracos e pelos tapumes. A população, enfim, acreditaria que a gente está trabalhando. E a até diria “olha o trabalho aí”. O segundo benefício seria o caixa que a obra nos daria para as eleições, garantindo nosso financiamento de campanha. Filomeno gostou muito, muito mesmo da ideia. Porém, o mais fantástico dos projetos ainda estava por surgir. MãoZão da Roubran, ministro dos transportes era um cara de imaginação fantástica e talento sem igual para fazer negócios com empresas. Foi ele que teve a ideia maravilhosa de acabar com o transporte alternativo da cidade e instaurar o Sistema Irritante de Transportes (SIT), criando em Anarquinópolis o maior monopólio de todo o interior. Agora, ele apresentava um projeto ainda mais megalomaníaco: — Vamos comprar um Trem Subaquático Faraônico Japonês made in Paraguai! — disse, empolgado. — Mas, como vamos comprar um trem, se mal temos uma malha ferroviária para suportá-lo? — indagou o príncipe, em raro momento de lucidez.


—Você é um homem de pouca fé. Eu disse que vamos comprar o trem, mas não que vamos colocá-lo para andar, até porque isso iria contra nossos amigos das empresas de transporte. O que queremos é importar os trens, colocá-los em exposição na beira do valão para que todos vejam. Aí, vamos na imprensa dizer que este trem acabará com a superlotação do transporte público, fazendo o trajeto de norte a sul de Anarquinópolis em apenas dois minutos — explanou MãoZão. Filomeno adorou a ideia: —Aí vamos dizer à população que,se gente ganhar,o trem vai voar! Mas, o melhor ainda estava por vir, continuou MãoZão. — Ainda tem uma parte que eu não contei.Vamos comprar o trem por um valor três vezes maior do que ele vale de verdade e ainda contaremos com uma verba do governo federal. É uma barbada — explanou. — E, qual o nome que você pretende dar ao projeto, MãoZão? — Chamaremos de “Vamos Levar Tudo - VLT”, respondeu o ministro. — Nada mais apropriado! Onde eu assino — decidiu o príncipe.


O MILAGRE DA

DEUSA TETA

C

hegava então o dia da tão temida guerra dos Pavês contra os Pavês. De um lado, Tucanildo vinha com a força de um mandato no Parlamento Federal e embalado pela rejeição ao príncipe Filomeno, que crescia exponencialmente. De outro, Filomeno lutava para manter-se no poder a qualquer custo. E apostava no sucesso dos projetos “Água de Esgoto” e “Vamos Levar Tudo” para reverter sua impopularidade. No meio do fogo cruzado, no entanto, de maneira bastante discreta surgia Dr. Bonitinho Calças Quadradas. Médico bastante conhecido em Anarquinópolis, ele jamais tinha sido candidato a nada. Porém, como uma boa parcela da sociedade não queria reeleger Filomeno, mas também não queria a volta do velho, Dr. Bonitinho apostava na mudança como estratégia. A princípio, nem Filomeno, tampouco o velho Tucanildo deram muita bola para Dr. Bonitinho. Até porque, pensavam eles,


o médico não teria dinheiro para rivalizar com a poderosa máquina controlada pelo Boneco de Olinda ou com a fortuna de Tucanildo. Estavam mais preocupados em dar vazão à raiva e a mágoa que corroía a paz da Família Pavê. Dr Bonitinho, por outro lado, começou a angariar apoios das alas mais esquecidas e obscuras da oposição de Anarquinópolis. Gente como a professora e ex-parlamentar Falsanta Berreiro, líder da tribo Xiita dos Ivanistas Ribeirenses. Também contava com o apoio da juventude e de políticos em ascensão, como Danoninho Fiuk. Além disso, Dr. Bonitinho conseguiu um feito inédito: trazer a elite da cidade para o centro da disputa política. Gente que tinha dinheiro demais e acreditava não ser importante interferir na eleição, agora estava disposta a entrar na briga. Tudo pela derrota dos Pavês. Enquanto Dr. Bonitinho fazia uma modesta campanha de formiguinha, Filomeno e o velho travavam uma verdadeira luta de gigantes. Até o ponto em que Tucanildo chegou a liderar as pesquisas, causando pânico na corte do boneco. No entanto, a alegria do velho duraria muito pouco. Um fenômeno estranho começou a surgir na cidade, com o crescimento de Dr. Bonitinho, um cavalo azarão, nas pesquisas. Logo, os coordenadores da campanha de Filomeno perceberam que, quanto mais o doutor crescia, mais o velho declinava, o que acendeu uma luz na cabeça de todos os especialistas do palácio de Filomeno. — Já, sei o que vamos fazer! Vamos mandar alguns dos nossos fornecedores fazer doações para a campanha de Bonitinho. Assim, ele cresce um pouco mais e divide os votos do velho — disse Filomeno, em reunião com seus coordenadores. — Mas essa estratégia não é arriscada? E, se Dr. Bonitinho crescer demais e ultrapassar a gente — advertiu Zé Praga, que


era entendido nestas coisas de política. — Se acontecer, a gente vai lá e compra ele. Eu garanto que vai dar certo — concluiu Filomeno, todo seguro de si. Mas Zé Praga sabia exatamente do que estava falando. E Bonitinho cresceu mais do que o velho e rapidamente ultrapassou Filomeno, para o desespero de todos. Desesperados, tanto o Filomeno quanto o velho trataram logo de buscar alianças com Dr. Bonitinho, mas foi em vão. O médico, que a princípio não acreditava na vitória, vendo as pesquisas, passou a sonhar com ela. E os empresários, antes incrédulos passaram a fazer fila, querendo doar recursos para a campanha. Embora sem uma aliança formalizada, tanto Filomeno quanto o velho entenderam que não eram mais inimigos, não diretamente. O adversário a ser abatido era agora o próprio Dr. Bonitnho. E o Bureau de Intrigas e Chantagens (BICHA) do velho e o jornal garotinho de Filomeno começaram a, juntos, atacarem o doutor diuturnamente. Publicaram que o médico tinha uma clínica de aborto, que na verdade ele era uma laranja disfarçada e até que havia roubado seringas e luvas do hospital local.Valia tudo para tirar o doutor da briga. Mas Filomeno entendia que, para vencer, era preciso mais, muito mais, e não conseguiria de forma alguma derrotar Dr. Bonitinho sem uma forte ajuda espiritual. Estava na varanda de seu sítio na serra, já contando com a derrota quando, em uma nuvem de fumaça, ao som de agogôs e atabaques surgiu um ser mitológico. — É um fantasma! — apavorou-se o príncipe. — Sou eu, sua anta! — retrucou, do meio da nuvem a lendária Tia Omo, conselheira Pajé e curandeira dos Pavês. A nuvem de fumaça era provocada pelos dois cachimbos que ela fumava ao mesmo tempo. E o som dos atabaques e Agogôs eram


emitidos pelo alto-falante de seu Walkman. Só Tia Omo poderia fazer uma mandinga forte o suficiente para fazer Filomeno vencer as eleições e continuar príncipe. Mas isso teria um custo alto: a própria alma de Filomeno e de todo o povo de Anarquinópolis. Uma das últimas sacerdotisas do quase-extinto culto à Deusa Teta, Tia Omo sugeriu um pacto: daria a vitória ao sobrinho, mas para isso ele teria que fundar uma nova igreja, onde a deusa seria cultuada: a igreja da Divina Ação Superfaturada (DAS). A Igreja teria que ser fenomenal, com a imagem da deusa — uma vaca dourada de mil mamilos — bem no centro de um pináculo de 75 metros. Para sustentar o novo culto, Filomeno teria que extinguir o “Bolsa Garotão” (seu projeto social) e, no lugar criar a Bolsa-DAS, com pelo menos 15 mil beneficiados, todos adoradores da Deusa Teta. Além do efeito espiritual, a Bolsa-DAS criaria um verdeiro exercito de fanáticos que dariam a vida para não perder a Teta. Era um plano perfeito, por todos os aspectos. Chegou o dia da apuração e a vitória de Dr. Bonitinho parecia certa. O velho, coitado, não chegou aos 20% dos votos — um triste fim para quem mandou em Anarquinópolis por tantos anos. Já Dr. Bonitinho liderou boa parte da contagem dos votos,fazendo Filomeno chorar. Mas, do alto do morro de Santa Mama, com um cajado que lembrava o de Arão, Tia Omo bateu por três vezes no chão e a luz e todas as lâmpadas de Anarquinópolis se apagou por sete longos minutos, deixando a todas as pessoas que trabalhavam na apuração, atônitas e confusas.




A luz voltou e, milagrosamente, Filomeno apareceu na frente do adversário, ganhando a disputa por apenas 24 votos. Milagre da Deusa Teta! E Anarquinópolis amanheceu sem saber o que esperar dos próximos quatro anos. A única certeza era de que Filomeno, continuaria príncipe, para alegria de todos os fiéis da Igreja DAS. Quanto a Tucanildo, coitado, restou-lhe descansar em sua luxosa e solitária pirâmide…

FIM!


DICIONÁRIO

ANARQUINÊS – PORTUGUÊS

A

AAD Arremeço Anal de Dardos, principal esporte praticado em Anarquinópolis.

AdoaAdo Filho de Tucanildo, primo de Filomeno. Anarquinópolis Principado litorâneo entrecortado pelo Rio Esgotoé e banhado pelo oceano.Também conhecida como a “Bruna Surfistinha do Atlântico. Maconha Distrito doidão de Anarquinópolis. Famoso por ser o único local do país onde a Maconha era legalizada.

B

Beata Irmã Red Uma das principais líderes da oposição de outrora, foi a maior adversária de Tucanildo Boneco de Olinda Apelido de infância de Filomeno. Começou a ser chamado assim desde o primeiro carnaval em que saiu fantasiado de baiana. Porém, sua alta estatura o fazia lembrar mesmo uma alegoria do carnaval pernabucano.


Bico Velho Príncipe mais honesto da história de Anarquinópolis. Fundador do distrito de Quissapão. Também foi parlamentar estadual Brazolla Ex-governador, foi o padrinho político de Erezinho, mas depois foi traído por ele (mas esta já é outra história). Balthazar Um velho muito assanhado BICHA Bureau de Intrigas e Chantagens, grupo de elite malicioso especializado em difamar os adversários políticos. Era liderado pelo ex-dançarino de lambada e jornalista Bebo Babosa Beto Babosa consultar BICHA

C

Calvanháquio Cláureo Parlamentar estadual, ex-ministro da Agricultura. Mais famoso político de Anarquinópolis que não parecia ser de Anarquinópolis

Convenção de Jacaribe Primeiro distrito a emancipar-se de Anarquinópolis (vide verbete). Muito miserável, a população local sobrevivia da caça Tartarango (vide verbete) e do cultivo de cacto silvestre Cara de Pus Outro distrito de Anarquinópolis. Berço de políticos corruptos e fazendeiros de gado Canto do Boi Capaz Cidade inimiga de Anarquinópolis desde a época tribal, berço do governador Erezinho e de sua esposa Rosquinha


Carluda Irmã de Filomeno Chula, o filho do barril Sindicalista barbudo e semianalfabeto enganou toda a nação e tornou-se rei.

D

Debodes Fazendeiro rico, pai do príncipe Filomeno. Dique Boca Torta Patriarca da Família Pavê, sogro de Tucanildo e avô de Filomeno, o Boneco de Olinda Dona Carne Filha de Dique Boca Torta, esposa de Tucanildo Dona Perseguida Filha de Dique Boca Torta, esposa de DeBodes e mãe de Filomeno Dr Bonitinho Proeminente médico e político. Mais tarde tornar-se-ia príncipe Dr. Malfadado Gorduroso Médico e parlamentar. Foi presidente do Parlamento local por várias vezes, sempre envolvido em escândalos Dr. Carrão Médico e político, foi parlamentar estadual e vicepríncipe por duas vezes. Ficou famoso por fazer ligadura em mulheres carentes. Dr. Carros Errin Primo distante dos Pavês, foi príncipe por duas vezes e o maior pesadelo de Tucanildo. Dudu Frescano Um dos melhores príncipes da história de Anarquinópolis, foi cassado injustamente por sua preferência sexual.


Deusa Teta Divindade muito antiga, era adorada pelos seguidores da Igreja da Divina Ação Superfaturada (DAS). Sua principal sacerdotisa era Tia Omo. Dom Gordão de Portugal Ex-regente e colonizador do país. Foi o responsável pelo decreto real que fundou a Vila de Anarquinópolis

E

Esgotolina Líquido preto, viscoso e altamente poluente cuja exploração tornou Anarquinópolis um principado multibilionário Esgotoyalties Compensação paga pela exploração da esgotolina. Motivo da riqueza de Anarquinópolis e seus políticos. Esgotobras Empresa estatal especializada na extração e refino da esgolotina. Erezinho Político rival de Anarquinópolis e de Tucanildo. Foi prefeito de Canto do Boi Capaz (cidade inimiga do principado) e governador do Estado.

F

Família Pavê Família nobre de Anarquinópolis de onde derivaram vários políticos como Tucanildo e Filomeno Falsanta Berreiro Ex-parlamentar, descendente de índios canibais e líder da facção xiita radical dos


Ivanistas Ribeirenses, que faziam parte do Partido da Boquinha (PB)

G

Glicerópolis Antiga serra dos JardinsChicoPaes, foi elevada à categoria de ducado, após Filomeno torna-se príncipe

H

Hehehe, não tem nada aqui

I

Irritamil Cabrel Radialista famoso, foi príncipe e parlamentar estadual. Pai do irritante radialista Paga Mais Para Eu Ivanistas Ribeirenses Ala radical-xiíta tribal do PB (Partido da Boquinha). Eram liderados sindicalista Falsanta Berreiro

J

Juro que Não há verbete com esta letra

L

Luluzinho NãoDiz Parlamentar local, foi oposição a Tucanildo e vice na chapa de Ted Kruegger contra Filomeno

M

MãoZão da Roubatran Ministro do transporte da corte de Filomeno, enriqueceu por ter 1001 utilidades.


Marmelo Cachaçar Ex-governador da província, principal aliado de Tucanildo na guerra contra o governador Erezinho “MãoZão” Ex-aliado de Erezinho, mais tarde torna-se-ia governador apoiado por NéscioTaMal Marronzito Única bebida fabricada em Anarquinópolis. Miquinho Matusalém Político mais antigo da cidade, dono do time local de AAD Maricota Gracinha Ex-parlamentar, quase foi princesa, mas perdeu a eleição devido sua alergia à melanina. Mãe Menininha do Miramar 24ª suplente do Parlamento Local e líder espiritual do Centro Espírita Orixá Garotinho, foi ministro de Governo de Filomeno.

N

Na na ni na não Não há verbetes com esta letra.

O

O chato é... ...Que não tem verbetes com esta letra

P

Pau Brasil Primeira matéria de exportação de Anarquinópolis. O povo de lá adorava levar pau. Paga Mais Para Eu Radialista de voz fina e irritante. Ganhava dinheiro dos políticos para não falar muito no rádio.


Pizzaione Político, rei do gado e, se escrever mais do que isso, coloco minha vida em risco.

Q

Quissapão Principado vizinho, ex-distrito de Anarquinópolis. Conhecido por ter uma vasta criação de carneiros.

R

Rio Esgotoé Única fonte de água doce (bem, nem tanto) do principado. Roubatran Autarquia de trânsito de Anarquinópolis. Rosquinha Ex-governadora e ex-vendedora de cosméticos, era mulher do governador Erezinho

S

Saulo Papis Única fonte de água doce (bem, nem tanto) do principado. Shrek Irmão mais novo e boêmio de Filomeno

T

Trivella, bispo Senador e sobrinho do bispo Pedir Mais Cedo, das Pequenas Igrejas, grandes negócios Tramoios Índios que habitavam Anarquinópolis nos primórdios. Tupi-Ganbás Outra Tribo que habitava as terras de Anarquinópolis. Tainha Um dos mais ricos integrante da corte de Filomeno.


Tonico Mineral Um dos parlamentares mais ricos de Anarquinópolis. Ted Ex-parlamentar e ex-pupilo do Governador Erezinho, quase tornou-se príncipe, disputando a primeira eleição contra Filomeno. Tia Omo Conselheira Pajé e Curandeira dos Pavês há vários séculos.

U

Uuuu Não tem verbetes com esta letra.

V

Velho Moacir Ex-príncipe e parlamentar de Anarquinópolis. Valão-Tur Empresa presidida por Saulo Papis, especializada na realização de passeios pelo Rio Esgotoé

X

Xiii Não tem verbetes com esta letra

Z

Zé Praga Ex-vice cambono de um terreiro decadente de curimba. Fez fortuna como um dos principais aliados do príncipe Filomeno.

Zé Pires Nas Mãos Um dos jornalista mais antigos da cidade, durante muitos anos teve o único jornal diário do principado. Diz a lenda que era sócio de Tucanildo.


Este livro foi composto com a família tipográfica Gil Sans, criada em 1928 por Arthur Eric Rowton Gill, na Inglaterra.

Impresso na gráfica Jep em papel pólen soft no miolo

e cartão supremo na capa com acabamento em laminação brilho.



André Luiz Cabral é apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Que nos desculpe Belchior, mas não haveria versos mais adequados do que os seus para descrever o autor deste livro. André Cabral é jornalista e teólogo de formação. Atua há mais ou menos 15 anos no jornalismo impresso e, há 7 edita o jornal Expresso Regional, em Macaé-RJ. Foi neste jornal, que começou a escrever crônicas semanais sobre Anarquinópolis. História esta que deu origem ao livro que você tem em mãos. Além de jornalista, teólogo e escritor, André também é um péssimo cantor e um terrível adversário da balança…


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