A Fotografia Romântica de Marc Ferrez The Marc Ferrez romantic photograph Sheila Cabo Geraldo Professora do Departamento de História da PUC-Rio Doutoranda em História: Universidade Federal Fluminense
Resumo Marc Ferrez (1843-1923) selecionou imagens que correspondem à visão oitocentista da cidade, segundo uma concepção pictórica romântica. Suas fotografias, em especial as paisagens e panoramas do Rio de Janeiro, concentram o seu foco na liricidade que os pintores, especialmente os paisagistas estrangeiros do século XIX, difundem da cidade.
Abstract Marc Ferrez ( 1843-1923) selected images which had correspondence with the romantical eighteen-century vision of the city. His photographs, in special the Rio de Janeiro landscapes, had the same lirical sense that the foreing nineteen century painters spread of the city.
Palavras-chaves: Fotografia; romantismo; arte Key-words: Photograph; romantism; art
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O apelo da máquina. Fotografar, como ato corriqueiro e mundano que conhecemos, é decorrente das facilidades das engrenagens modernas, hoje até um pouco ultrapassadas, já que fotografar neste final de século XX corresponde a uma maior massificação pois envolve focos por foto-sensores, regulagem de diafragma e velocidade não mais automatizados, mas informatizados.
Mas se o desejo de fotografar é contemporâneo do choque da automatização moderna, mesmo sem se poder falar sobre as imagens das primeiras experiências como instantâneas, já que os procedimentos das reproduções em daguerreótipos chegavam a requerer vários minutos de exposição, é fato que este desejo está ligado a um apelo de apreensão do instante, uma atração pela fração de segundo, que tem sido crescente desde que a fotografia passou a utilizar as modernas máquinas portáteis e automáticas, ainda no século XIX, o que tornou o ato fotográfico mais amplamente acessível, dispensando conhecimentos técnicos específicos (1888). Sem dúvida, antes mesmo da automatização, impõe-se ao homem, junto com a fotografia, a noção de tempo como velocidade. O apelo que a a nova técnica de reprodução exerceu desde sua criação diz respeito, enfim, à vontade deste homem do tempo fugaz de perpetuar o efêmero, já que por si o instante se perde. Assim é que, podemos concordar com a idéia de que o click da máquina fotográfica, porque correspondente à permanência do que necessariamente é transitório, esteja
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impregnado de um outro desejo; o de colecionar a realidade enquanto imagem: ainda uma tentativa de domínio do tempo.
Como imagem, a fotografia inexoravelmente carrega de sua gênese algo de novo, ou seja, a reprodução automática do real. Tem, por outro lado, algo de reacionário, no sentido de apegado à uma tradição autoritária, que é a maneira como é percebida. A imagem fotográfica, porque derivada da máquina, em sua aderência ao mundo mecânico, e portanto ao mundo do progresso científico, foi recebida como aquela que seria capaz de transmitir de maneira simples e direta, com informações fidedignas e pormenorizadas, o que se pretendia guardar. Esta percepção está ligada à idéia de que a realidade possa dar origem à uma imagem que lhe seja fiel, quando, modernamente, sabe-se que tanto o conceito de real, quanto de imagem, incluem aqueles que os produzem, seja como conceito, seja como fato. A fotografia, portanto, não dispensa a mente humana em sua formação. Se a imagem fotográfica é um registro, e como tal capaz de se transformar num comprovante das variações e mudanças no espaço e no tempo, por mais que o fotógrafo tenha em mente fazer uma imagem-espelho da realidade, o objeto fotografia não pode prescindir do olho que está por trás da câmera. Desta maneira, paralelamente à discussão sobre a pertinência de um olho individual, de um olho de fotógrafo-artista no século XIX, há sempre que se pensar a imagem fotográfica como uma experiência de mundo, o que remete, sem submeter, o olhar fotográfico à cultura de uma época
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e lugar; e como novíssima possibilidade de ordem plástica, aos fatos artísticos compreendidos como fenômenos de cultura. Assim é que a fotografia de Marc Ferrez, que se destaca na passagem do século XIX como fotógrafo-paisagista, direciona a reflexão para a relação automatização/imagem, no que esta envolve necessariamente a cidade do Rio de Janeiro como campo geográfico e de experiências estético-culturais.
Fig. 1. Foto 1. Marc Ferrez: Pão de Açúcar. 1880.
Romantismo , natureza e paisagem Sabemos que a compreensão de natureza a partir da cultura do iluminismo já não é senão aquela que diz respeito a uma imagem da natureza. A imagem corresponde à natureza como se pensa que ela é, ou como se deseja que ela seja; portanto, uma formação humana de natureza como conceito1.
A pintura - e posteriormente a fotografia de paisagem -, imagens-conceito da natureza, como se conhece a partir do século XVIII, está essencialmente associada ao conceito de “pitoresco”, e se é certo que o termo, enquanto denominação de lugar que remete à pintura, foi empregado já desde os meados do século XVII para denominar os jardins ingleses2- fazendo uma referência à 1
Ver ARGAN, 1992: p. 12.
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Idem.
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“arte” que não imita, mas modifica a natureza, adaptanto-a aos sentimentos humanos -, “pitoresco” passa a referir-se, no setecentos, à uma “poética da paisagem”. As pinturas dos paisagistas do século XVIII, então, teorizadas por Alexander Cozens, correspondem, assim, à uma aproximação da natureza que envolve algo que ultrapassa o sentido do que nos é dado pelo olhar especulativo, ou seja, algo que supera o olhar como fonte de registro clássico. Correspondem, desta maneira, aos princípios que apontam para a noção de natureza como fonte de estímulos, desencadeando sensações. Assim, a “poética da paisagem”, paralelamente à concepção neoclássica de arte como modelo ético concebido na antiguidade, anuncia a concepção de natureza apregoada pelos românticos, revelando-a como imagem de explosão subjetiva, uma imagem resultante do ” exercício sincero da emoção” 3 , e desvelando, concomitantemente, a idéia do artista como artista de gênio, ou seja, aquele que elabora o dado sensorial, comum a todos, conduzindo à uma clarificação da experiência; uma tarefa educativa, que tem como fim descobrir, na relação com a interioridade, o significado e o valor da sensação enquanto experiência do real, como define Jean Jacques Rousseau, para quem não havia distinção entre os sentidos de humanidade e natureza, e com quem se estabelece os princípios do Romantismo4. Para os românticos, então, a natureza já não é mais objeto de
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Ver Rosenthal, 1987. Ver Bornheim, 1993.
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linguagem universal (racionalista), mas um equivalente ao SER, que requer, para quem deseja conhecê-la, que se integre por completo, vivenciando-a 5.
A pintura de paisagem, coerente com a poética romântica, desencadeara reações diversas. Da mesma maneira que a pintura “pitoresca” revela uma certa harmonia na relação do artista com o mundo natural, tem-se conhecimento de outra relação menos harmônica, de maior ansiedade pelo desconhecido, permeada por maior desejo de alcançar o invisível, de alcançar o terreno em que se encontram as “obscuras forças cósmicas” que produzem os fenômenos observáveis. A natureza aí teria a imagem do inalcançável, que se pode identificar na poética do “sublime”, mesma compreensão de natureza que farão os membros do Sturn und Drang, origem do romantismo alemão, como o de Caspar Friedrich exemplificado em O viajante acima do mar de nuvens de 1818.
Fig. 2. FOTO 2. Caspar David Friedriche. O viajante acima do mar de nuvens. 1818.
Mas, interessa-nos aqui, sobretudo, as pinturas dos paisagistas ingleses, especialmente as de John Constable (1776-1837), e W.Turner (1775-1851) ,já que são resultantes de uma aproximação ótica de modelos, origem de imagens pictóricas de contornos evanescentes e efeitos espaciais atmosféricos,
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Ver Falcon, 1997: p. 16.
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resultantes, enfim, do sujeito-pintor, já que a impressão que recebem não é separável da reação afetiva do artista. Tanto para Constable, como para Turner, a imagem da natureza expressa na pintura de paisagem é, pois, a imagem resultante da relação vivenciada entre homem e natureza. Além disso, os paisagistas ingleses serão uma das principais referências para a futura formação da escola francesa romântica de Barbizon (1830), um grupo de pintores que se reúne numa aldeia para registrar a vida camponesa. Apesar de instaurar-se com esses paisagistas uma visão mais realista, tanto com Theodore Rousseau (1816-1867), como com Jean-Batiste Camille Corot (17961875), o entendimento do sentido de natureza, passa a ser, sobretudo, o do sentimento, e a pintura de paisagem, o lugar de comunhão das qualidades interiores do sujeito com o mundo natural. A comunhão do mundo interior com o mundo exterior faz com que T. Rousseau pense em eliminar todos os pressupostos de representação da natureza, o que coloca, enfim, o fundamento da mudança no conceito de representação na pintura, que se estende à fotografia oitocentista, especialmente para as de paisagem.
O fotógrafo-paisagista Como fotógrafo profissional, Ferrez foi um dos pesquisadores e divulgadores da nova técnica de registro e impressão, tendo recebido o título de Fotógrafo da Marinha Imperial por ter desenvolvido um dispositivo que o permitia fotografar a
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costa de um ponto de vista marítimo, do alto mar, anulando o efeito do balanço das ondas durante o período de exposição. Suas primeiras experiências com a fotografia foram feitas já partir de 1861, quando George Leuzinger, dono da Casa Leuzinger de gravura e impressão, onde trabalhava, passa a oferecer serviços de fotografia. Em 1865, o jovem fotógrafo abre sua própria casa, especializando-se em paisagens, cujos panoramas de uma só chapa de cristal chegavam a medir 40 x 110cm e pesar até 8 quilos cada. Ferrez, na sua busca de imagens “pitorescas”6, carregava, então, essas chapas junto com a câmera panorâmica de 110 quilos, que havia sido feita sob encomenda em Paris, para lugares de difícil acesso, como no caso das tomadas de visada semelhante ao vol d’oiseau na pintura. A atitude do fotógrafo, neste caso, nos aponta, sem dúvida, para a fotografia de paisagem que no Brasil está associada às experiências de conhecimento da diversidade da flora tropical, conforme faziam desenhistas e gravadores que viajavam com as expedições naturalistas.
Fig. 3. Foto 3. Marc Ferrez: Panorama do Rio de Janeiro. 1880.
Como fotógrafo-paisagista experimentou e disseminou uma concepção de paisagem e natureza que na história da arte brasileira corresponderia às mais ousadas experiências pictóricas, sem dúvida permeadas pela relação entre ser 6
O uso do termo aqui corresponde ao sentido instituído pela paisagem seiscentista holandesa, que chama a atenção para o “pitoresco”, ou seja, para o “semelhante à uma pintura”, como sentimentos que as paisagens campestres ou os panoramas naturais podem despertar, apesar de não corresponderem ao sentimento de harmonia clássica. Ver Gombrich, 1986.
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e mundo onde é preponderante o indivíduo, e onde a emoção e o sentimento têm papéis relevantes. A pintura e a fotografia de paisagem, conforme nos propomos analisar, serão, neste contexto, uma oportunidade de afirmar a condição de artistas como demiurgos, que criam com e como a própria natureza (Foto 4) 7.
Fig. 4. Foto 4. Marc Ferrez: Glória e Catete - panorama tirado de Santa Tereza. 1885.
No confronto entre suas fotos, especialmente as das décadas de oitenta e noventa, e a produção dos mais importantes pintores paisagistas de então, como a de Giovanni Battista Castagneto (1852 - 1900), assim como a de Nicola Antonio Facchinetti (1824-1900) e Antônio Parreiras (1860 - 1937), que inclusive foram seus amigos, é que fica evidente de que maneira a fotografia de Ferrez participa de uma nova ordem estética que se imprime no Brasil do Segundo Império. A fotografia “Paisagem da Ilha”(1885) de Ferrez, assim como a pintura “Trecho de Praia na baía do Rio de Janeiro” (1887) de Castagneto (FOTOS 5 e 6). possuem além da mesmo impressionante enquadramento, a mesma concepção de espaço, o que pressupõe o abandono da concepção de paisagem formalmente apoiada na tradição dos planos distintos e sucessivos,
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Na foto que se intitula Glória e Catete, de 1885, Marc Ferrez aparece reproduzido na própria fotografia, aproveitando-se do tempo de exposição para fazer uma incursão na paisagem, o que faz com que possamos atestar uma superação da concepção de fotografia de paisagem como registro sulime, ou até mesmo pitoresco.
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correspondentes a um primeiro plano mais escuro, como o da paisagem holandesa do século XVIII.
Fig. 5. FOTO 5: Marc Ferrez: Paisagem da ilha. c. 1885. Fig. 6. FOTO 6: Castagneto: Trecho de praia na Baía do Rio de Janeiro. 1887.
Parece-nos, então, que a verificação da fotografia de Ferrez, passa, necessariamente pela avaliação da relação indissociável entre a fotografia do século XIX, a noção romântica de natureza e a disseminação da “pintura de paisagem” no Brasil.
Fotografia é arte? O confronto entre a fotografia de Ferrez e a pintura de paisagem leva a mais um problema, na já tão complicada relação entre sujeito e natureza, uma vez que a segunda metade do século XIX desencadeia o debate, talvez inconseqüente até mesmo para a época, que diz respeito à identificação da fotografia com os objetos artísticos. Se inicialmente fotografar era um meio de registrar e divulgar, como aconteceu com o retrato e as fotografia de reportagens militares de Thimothy H. O. Sullivan.( Batalha de Gettysburg-1863) 8, que darão origem ao foto-retrato e à fotografia jornalística, ainda do século XIX conhecemos o grande interesse dos fotógrafos pelo registro de paisagens exóticas, especialmente nas 8
Reproduzida em Fotografia. Ver Fabris, 1991: p. 27.
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décadas de 50 e 60, como é o caso da fotografia de Du Camp, (Templo de Ramsés de 1851), que reproduz, entre outros, aspectos de uma civilização diversa da européia, da mesma maneira como acontecera com a pintura altamente intelectualizada do final do século XVIII e primeira metade do XIX. Os fotógrafos, na década de 50, na sua tarefa de registrar e formar imagens, procuram, como os pintores, aspectos inusitados de outras culturas. Contrariando a busca dos pintores, os fotógrafos desprezam aspectos inéditos de paisagem natural. Identificam cenas e lugares, ou eventualmente paisagens “pitorescas”, seguindo dos artistas as escolhas. Para o público de arte que se forma na segunda metade do século, essa fotografia tem uma recepção absolutamente ambígua; se por um lado é reconhecida por sua capacidade de criar imagens fidedignas, e assim, associada com a representação pictórica clássico-acadêmica, passando a ser alçada, por isto, à categoria de arte, por outro lado, para os consumidores mais exigentes de arte, o fato dos fotógrafos desdenharem enquadramentos inéditos, copiando temas já consagrados pela pintura, será mais um dado para que rejeitem a fotografia de paisagem, como “vulgarização” da pintura. Conhecemos sobre esse assunto a opinião de Charles Baudelaire9. Para o poeta e crítico, o fato de a fotografia ser um instrumento preciso, não a aproximava da arte, muito ao contrário, a distanciava, já que compreendia perfeitamente que a imagem artística não podia ser afirmada como uma representação ilusionista regida por ideais apriorísticos, 9
Ver BAUDELAIRE, 1988.
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mas como uma formação resultante da relação sujeito-mundo.
Baudelaire, escrevendo sobre o Salão de 1859, destaca em O Público Moderno e a Fotografia, o que chamou os “artifícios”, estranhos à arte, identificados por ele com o “naturalismo” que estariam instigando a curiosidade do público, mas de um público cujas necessidades estariam enrijecidas pela repetição, impedidos para a fantasia. O crítico francês atribui a este público a crença de que a arte reproduzia com exatidão a natureza; o que possibilitaria, então, que a primitiva fotografia pudesse ser identificada com a arte. “ Já que a fotografia nos dá todas as garantias desejáveis de exatidão ( eles acreditam nisso, os insensatos), a arte é a fotografia” 10.
Por outro lado, a aproximação da natureza, tal qual alardearam os pintores da Escola de Barbizon, acreditando na possibilidade da pintura ser não uma representação idealizada , mas o resultado da relação natureza - sujeito, é que vai levar William Fox Talbot, o inventor do calótipo - o negativo sobre papel - a escrever em 1844 um ensaio denominando a fotografia “ O Lápis da Natureza”; uma tentativa mais “contemporânea” de alçar a fotografia à categoria de arte. Para este fotógrafo, a ação da luz no suporte de papel era uma relação direta entre a natureza e a imagem. A fotografia, então, seria capaz de produzir não só imagens fiéis, mas sobretudo dava conta do acesso mais direto a lugares e 10
Idem.
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objetos anteriormente alcançáveis apenas através do crivo da treinada mão do desenhista.
Se mediaticidade, colada no exemplo de Barbizon, era a garantia que Talbot dava de “artisticidade”, a fotografia tinha, para arrefecer uma afirmativa nesse nível, não só a vulgaridade da mimetização dos temas da pintura, que incorria numa visão pré definida de aproximação da realidade, como também, o fato de ser uma produção de imagem baseada na instantaneidade, possibilitando a associação da fotografia com os registros memoriais ligados à repetição e ao poder, o que abre uma concepção utilitária para a sua produção, contrária ao conceito de arte como expressão desinteressada.
Como afirma Susan Sontag 11, é como reação ao fato dos fotógrafos terem assumido compromissos profissionais de registro, muitas vezes com fins de controle social, que passa a surgir a figura do artista-fotógrafo,. Mas é especialmente com a descoberta de Disdéri de um truque técnico de tomada simultânea de oito clichês numa mesma chapa (1854), o chamado “carte de visite” , quando a fotografia começa a ser amplamente usada - porque mais barata -, por uma gama maior de usuários que a alta burguesia,reafirmará sua preferência pelo daguerreótipo. Negam a multiplicidade e fazem com que pemaneça a relação de dependência entre arte e fotografia. 11
SONTAG, 1981.
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Preservar a fotografia como arte é também a lógica que faz com que fotógrafos paisagistas continuem perseguindo aspectos da natureza para preservarem em suas tomadas fotográficas.
Como ficou dito por Baudelaire, foi por ser possuidora de um caráter mecânico que a fotografia encantara a opinião pública que a via como meio preciso de registro. Os fotógrafos, muitos deles também desenhistas, gravadores ou litógrafos, aproveitam-se de sua intimidade com o acervo sígnico das artes visuais para usá-los como estratégia de elevação da fotografia ao nível da categoria artística, o que os faz adotar, como é o caso de Marc Ferrez, enquadramentos e pontos de vista coerentes com o olhar pictórico-no que diz respeito à paisagem brasileira.
A paisagem nos trópicos No Brasil, a pintura de paisagem, enquanto imagem correspondente a uma concepção romântica de história, e portanto de natureza, deve-se em grande parte aos registros artístico-étnico-antropológicos dos chamados “pintores viajantes”. Podemos pensar nesses pintores como representantes do pensamento que admite as “terras estrangeiras” como lugar da diversidade e, portanto, da investigação; um pensamento que traz a curiosidade científica pelo
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exótico Mundo Novo difundido, entre outros, por Alexader von Humboldt. Esses europeus itinerantes serão, aqui, os difusores de um pensamento rousseauniano que facilitará a ação dos pintores. Dentre as expedições, além da de von Martius, da qual participou Thomas Ender, entre 1817 e 1821, importa também a de George Henrique von Langsdorff, entre 1822 e 1829, de que participaram Rugendas e Hércule Florence, considerado, este último, um dos inventores da fotografia, além de exímio desenhista.
É neste sentido que podemos observar o álbum Views of Rio de Janeiro, publicado em 1857, de George Lothian Hall (1825-1882), um pintor de paisagens inglês que passou pelo Brasil entre 1848 e 1854. Sua Vista da serra dos Órgãos e ilhas na baía do Rio de Janeiro tomada da ponta da Armação deixa transparecer uma relação pintor-natureza que em termos de mirada e corte da cena, assemelha-se muito com as fotografias da baía feitas por Ferrez nas décadas seguintes, de que Vista a Partir do Corcovado (1890) é um exemplo.
Fig. 7. FOTO 7. Lothian Hall: Vista da Serra dos Órgãos e ilhas na baía do Rio de Janeiro tomada da ponta da armação. c. 1885. Fig. 8. FOTO 8. Marc Ferrez: Vista a partir do Corcovado. 1890.
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Nessa foto fica evidenciada uma tomada, não no sentido da proximidade e envolvimento que permeia as telas de Theodore Rousseau, mais naturalista que romântico, mas um distanciamento que aponta pra a noção de sublime, algo em torno do inalcançável que desencadeia o sentimento de nostalgia presente sobretudo nos ingleses e nos alemães.
Os pintores viajantes funcionaram na história da cultura artística brasileira como uma espécie de “respiradouro” para a “filosofia” universalista neoclássica que se estabelecera entre nós através da constituição de uma academia de ensino de arte nestes moldes. Sabe-se com clareza como foi problemática a constituição de uma “cadeira” de paisagem no ensino oficial de pintura, como o da Academia Imperial de Belas Artes. 12 Se podemos falar de uma primeira aproximação da poética romântica a partir da identificação das pinturas de Araújo Porto Alegre, especialmente Grota, do acervo do Museu Nacional de Belas Artes, estaremos falando, entretanto, de um entendimento do romantismo enquanto retomada “sublime” do passado, como alternativa ao A paisagem, como “cadeira” específica de pintura, embora definida desde a chegada da Missão Artística Francesa em 1816, não será decisiva para a implantação do sentido de pintura de paisagem que se deseja abordar, a não ser quando o paisagista alemão George Grimm, que aqui chega na década de setenta, arrebata discípulos para sua “didática”, como é o caso de Castagneto e Antônio Parreiras, que seguem do mestre uma teoria de “pintura de paisagem pintada ao ar livre”, sem correções de atelier, o que significa a admissão do gesto do artista e que, sobretudo, pressupõe a proximidade entre o sujeito e o real .Sabe-se que Nicolas Antoine Taunay foi designado para o cargo já quando de sua chegada, mas este artista, um sensível paisagista, praticamente não a ocupará, deixando seu filho Felix Taunay em seu lugar, quando volta para a França em 1821. Ver GALVÃO, 1954. 12
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internacionalismo da razão. É fato que Porto Alegre pintou Grota após sua viagem à Paris, em 1831, quando teve contato com a pintura do romantismo francês através de Gonçalves de Magalhães, que editou naquela cidade a revista Nitheroy, apostando no indianismo, como um correlato da defesa do passado, já que entre nós não era possível remeter ao passado gótico, como fizeram ingleses e alemães. Entretanto, é fato também que sua postura romântica praticamente se esgota diante da pressão acadêmica.
No que diz respeito à pintura, há que se contar, sem dúvida, com a visão da natureza tropical difundida por Rugendas em seu álbum de 1833, Viagem Pitoresca no Brasil, mas, sobretudo, interessa-nos a obra de Henri-Nicolas Vinet que estudara com o paisagista francês Jean-Batiste Corot (1795-1875) e que chega aqui em 1856, pintando inúmeras paisagens sob a força de um romantismo naturalista, como o de seu mestre ( Foto 9). Também Nicolau Antônio Facchinetti (1824-1900), um italiano que a partir de 1849 registra, sobretudo, paisagens do Rio de Janeiro, e, possuindo uma pintura detalhista, entusiasma-se pela cor exuberante e pela luz intensa dos trópicos( Foto 10).
Fig. 9. FOTO 9. Vinet: Vista da baía de Guanabara - entrada da Barra. 1958. Fig. 10. FOTO 10. Facchinetti: Vista do Rio de Janeiro do Alto da Boa Vista. 1882.
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No que diz respeito à constituição de uma visualidade romântico-naturalista, que passa a vigorar nas paisagens fotográficas, há que se mencionar a contribuição da implantação de uma numerosa quantidade de oficinas gráficas, especialmente as de litografia que aqui floresceram no meado do século. A litografia no Brasil assume a disseminação não só de retratos, como de imagens panorâmicas ou vistas urbanas. Se os retratos litografados de L.A. Boulanger (1800-1873), no Brasil desde 1829, são de linearidade neoclássica, paisagens como as do famoso litógrafo e retratista Sebastien Auguste Sisson (1824-1898) , publicadas no Álbum do Rio de Janeiro13, da década de 50, admite um traço mais imediato, um tanto liberto, identificáveis com as premissas de Theodore Rousseau.
Ferrez paisagista A fotografia de paisagem de Marc Ferrez, sobretudo a executada a partir do fim da década de setenta, apresenta-se entre nós como elemento constitutivo de uma poética que carrega da pintura a possibilidade de um paisagismo romântico-naturalista, portanto, de uma imagem que, muitas vezes construída no sentido da divulgação, como de resto o eram as gravuras, especialmente a litogravura, constitui-se, sobretudo, como interpretação subjetiva (Foto 11). Aponta, entretanto para uma experiência da realidade que, devido à capacidade 13
Reproduzido FERREIRA, 1994.
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técnica, revela-nos mais. As fotografias de Ferrez dariam conta, na ordem do imaginário, acima de tudo, das características do Brasil do segundo reinado que se deseja moderno. Mas não é só diante das fotos que Ferrez fez para a Marinha Imperial ou para as Companhias de Estrada de Ferro que estaremos falando de sua adequação ao desejo de D. Pedro II de prosperidade e modernização tecnológica ( Foto 12).
Fig. 11. FOTO 11. Marc Ferrez: Jardim Botânico. 1890. Fig. 12. FOTO 12. Marc Ferrez: Viaduto do Silvestre. 1896.
Enquanto paisagista, Ferrez fotografou o Rio de Janeiro selecionando “visões” do real natural carioca que correspondem, por seu recorte de montanhas, cercadas de vegetação e à beira d’água, às imagens-paisagens, que, se é verdade não remetem ao tumulto das marinhas de Turner, fazem-nos pensar na contemplação emocionada de Constable e na visão amorosa de natureza impressa em Theodore Rousseau.
No que diz respeito ao enquadramento, entretanto, Ferrez, a exemplo dos paisagistas holandeses do século XVII, como Ruisdael, referência dos paisagistas pitorescos ingleses, eventualmente, selecionou tomadas privilegiando planos sucessivos, onde a presença de um primeiro plano muito nítido, composto de elementos simétricos, reforça o sentido de paisagem
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identificada com o sentimento de equilíbrio, calma e harmonia, mesmo que esse equilíbrio aponte, por outro lado, para uma certa melancolia, sobretudo nas fotos da Baía de Guanabara, onde o ponto de tomada de cena, quase sempre do alto de um morro, faz com que essas fotografias correspondam à imagem da baía como lugar do inatingível, que evoca, pela distância a que a paisagem natural é submetida, a poesia lírica do lugar perdido.
Nas paisagens litorâneas, sobretudo naquelas feitas nas praias de Niterói (Foto 13), a seleção da imagem por relação proporcional de equivalência entre céu e terra, faz com que essas fotos, mais do que quaisquer outras, passem a ser cenas dúbias que revelam ao mesmo tempo a impressão subjetiva de uma atmosfera idílica, e o sentido de paraíso impossível. Se tem o olhar curioso dos naturalistas cientistas e artistas, tem também o sentido desértico que o plano imprime.
Fig. 13. FOTO 13. Marc Ferrez: Ilha de Boa Viagem. 1880.
Nas escolhas de enquadramento é que ficam mais evidentemente impressas suas imagens de mundo, ou seja , seus esquemas de percepção e articulação de categorias, como espaço e tempo; que são pessoais, mas são também universais, portanto, compatíveis e contemporâneas de paisagistas como Vinet, como Facchinetti e Castagneto, mas também de Antônio Parreiras, como fica
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evidenciado nas fotos no interior das florestas tropicais, uma inequívoca presença do pensamento de George Grimmm que Parreiras ( Fotos 14 e 15) desenvolve. Ali a relação de Ferrez com o mundo, pela fotografia, passa, além da proximidade física intensa, também, e especialmente, pela percepção, seleção e captação da luz.
Fig. 14. FOTO 14. Antonio Parreiras: Interior da Floresta em Teresópolis. 1896. Fig. 15. FOTO 15. Marc Ferrez: Floresta Carioca. 1889.
A Luz Há no contexto do século XIX, sem dúvida, uma visão da natureza como campo de experimentações. Neste sentido, os elementos da cena, em pintura, muitas vezes já não interessariam em si, pelo que podem significar, mas como suportes de experimentações de formas, cor e luz. No entanto, no que se refere à luz, especialmente nas paisagens marítimas, há, possivelmente com exceção única de Castagneto e algumas pinturas de Parreiras, uma preponderância de iluminação vinda das nuvens, com ponto gerador único, que se espalha a partir desse foco, deixando o primeiro plano no escuro, como muitas vezes acontece com Vinet, com Facchinetti e mesmo com Grimm.
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Partindo da premissa de que a fotografia, por ter começado a duplicar o mundo no momento em que a paisagem passou a ter o sentido de cultura, ou seja, quando passou a incorporar o sentido do olhar, é que pode-se pensar ainda que, embora impregnado da concepção de paisagem no sentido dado pelo romantismo, seja na sua concepção de belo pitoresco, ou belo sublime, identificado aí na escolha do enquadramento, a fotografia de Ferrez tem um código inalienável de produção de imagem, que cria uma visão de mundo a partir do mundo.
Ferrez é o artista-fotógrafo da passagem do século cuja placa sensibilizada mais se vira para a nostalgia despertada pela urbe, percebida no confronto registrado entre a cidade do Rio de Janeiro e a Baía de Guanabara contornada pelas montanhas que refletem a intensa luz tropical. A luz na fotografia de paisagem de Ferrez, entretanto, concentra significados que remetem a uma relação do artista com a cidade que ultrapassa a dos pintores românticos. Sua paisagem, na medida em que derivada da máquina, revela uma luminosidade mais no nível do realismo natural, já que não deixa de registrar a luz que se espraia em todos os elementos da paisagem. Nesta moderna paisagem, por mais que artista-fotógrafo selecione a luz, escolhendo hora e estação do ano, a impressão luminosa que a placa sensível retém, escapa, muitas vezes, à interação com o olhar.
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Assim, se o que se vê nesta irreverente maneira de captar imagens, que é a maneira fotográfica, aponta para uma certa amplitude temática - sem dúvida, os fotógrafos são responsáveis pela ampliação do sentido de pictórico - a fotografia, antes de tudo, lança um imaginário que pode absorver, como no caso do panorama de Ferrez ( Foto 1), até mesmo a presença do próprio fotógrafo. Um imaginário que aponta para a cena moderna, não apenas pela técnica mecânica, mas porque o instantâneo, como se vê no panorama, possui a faculdade do mundano que borra a pictorialidade da paisagem. É à esta paisagem, que admite a presença do homem na sua condição casual, que corresponde, sem sombra de dúvida, a nova luz, que não parte do céu longínquo, mas dissipa-se sobre todas as coisas, iluminando o tradicionalmente escuro primeiro plano, como Cézanne nos ensinará a ver, cuja pintura de paisagem, sobretudo a dos últimos anos, construída no rigor da observação, ordena-se, enquanto luz, como percepção do sol que se reflete e ilumina em todos as direções e sentidos.
A luz fotográfica de Ferrez, que parece ter influenciado entre nós vários pintores, impressiona, sobretudo, por sua pluralidade e dispersão, um dos nossos mais palpáveis índices de mudança na história da imagem da passagem do século.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES FOTO 1 - Marc Ferrez: Pão de Açúcar. 1880. FOTOS 2 -Caspar David Friedriche: O Viajante Acima do Mar de Nuvens. 1818. FOTO 3 - Marc Ferrez: Panorama do Rio de Janeiro.1880. FOTO 4 - Marc Ferrez: Glória e Catete. Panorama tirado de Santa Teresa.1885. FOTO 5 - Marc Ferrez: Paisagem de ilha. c.1885. Foto 6 - Castagneto: Trecho de Praia na Baía do Rio de Janeiro. 1887. Foto 7 - Lothian Hall: Vista da serra dos Órgãos e ilhas na baía do Rio de Janeiro tomada da ponta da Armação. C.1885. Foto 8 - Marc Ferrez: Vista a Partir do Corcovado. 1890. Foto 9 - Vinet: Vista da Baía de Guanabara. Entrada da Barra. 1958. Foto 10 - Facchinetti: Vista do Rio de Janeiro do alto da Boa Vista. 1882. Foto 11 - Marc Ferrez: Jardim Botânico. 1890. Foto 12 - Marc Ferrez : Viaduto do Silvestre. 1896. Foto 13 - Marc Ferrez: Ilha de Boa Viagem. 1880. Foto 14 - Antônio Parreiras: Interior da Floresta em Teresóplis. 1896. Foto 15- Marc Ferrez: Floresta Carioca- 1889.
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Notas
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28 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARQUITETURA FRANCESA DOS SÉCULOS XVI E XVII (CONCLUSÃO) Considerations on the French architecture of the XVIth and XVIIth centuries (conclusion) Mestre em História e Crítica de Arte, EBA/UFRJ. Professor do Curso de Educação Artística/História da Arte, UERJ.
Resumo O ensaio discute o uso dos conceitos de “Barroco” e de “Classicismo”, para definir a arte e especialmente a arquitetura realizadas na França, ao longo do século XVII, assim como o uso dos termos “Estilo Luis XIII” e “Estilo Luis XIV”, como conclusão ao tema iniciado no ensaio anterior, centrado na arquitetura francesa do século XVI. Abstract The present essay criticizes the uses of the concepts of “Baroque” and “Classicism” as well as the uses of the terms “Louis XIII style” and “Louis XIV Style” to describe the art and particularly the architecture made in France during the XVIIth century, as a conclusion to the previous essay on the French architecture of the XVIth century issued in Concinnitas, n. zero. Palavras-chaves: Arquitetura; Classicismo; Barroco Key-words: Architecture; Classicism; Baroque
29 I. Introdução. Estas páginas se propõem a concluir as considerações sobre a arquitetura francesa dos séc. XVI e XVII, iniciadas no primeiro número desta revista1. As questões levantadas se referem, essencialmente, às controvérsias quanto à classificação estilística - o que se deve, em grande parte, a seu próprio ecletismo, ou seja, às diferentes tendências que coexistem, se justapõem ou mesmo se alternam, ao longo do período. Como foi comentado, a discussão sobre o conceito “Maneirismo” envolveu, no séc. XX, vários dos mais importantes historiadores da arte ocidental, sem que se tenha chegado a grandes consensos, a não ser - se tanto - o de uma datação: em torno a 1520, para o início da implantação do estilo, superando o Renascimento, na Itália (e o Gótico, no resto da Europa), e cerca de cem anos depois, para o início de sua dissolução, com a afirmação do Barroco. A complexidade extraordinária da arte européia, na primeira metade do séc. XVI, desafia as tentativas dos historiadores de submeter os artistas e as obras realizadas a um rígido enquadramento dentro dos grandes conceitos históricoestilísticos. Entre 1495 e 1520, enquanto se realizava, em quase toda a Europa, algumas das formas mais rendilhadas e rebuscadas do Gótico flamejante, em Roma e Veneza, a arte se inspirava nos ideais de perfeição moral e física do classicismo greco-
30 romano, abandonando aspectos da tradição medieval que ainda se conservavam, eventualmente, nas realizações renascentistas do Quattrocento. Ao mesmo tempo, em várias regiões européias, iniciava-se o processo de absorção do novo estilo italiano. Grande parte da historiografia considera este período como uma primeira fase do Renascimento fora da Itália e um autor como Pais da Silva2 estabelece a duração de um “Primeiro renascimento português” entre datas próximas. Como foi comentado, esta fase deveria ser melhor descrita como uma transição do Gótico ao Maneirismo3. A superação da longa tradição gótica seria intensificada, entre 1520 e 1540, pela ação direta dos artistas vindos da Itália para trabalhar nas cortes estrangeiras, especialmente os do círculo de Rafael, que se dispersaram após o Saque a Roma, em 1527. O Maneirismo na França, embora empreendido por italianos, criava soluções originais4, de grande influência para a arquitetura posterior, e a tentativa dos arquitetos franceses, em meados do século, de recriar o classicismo importado da Itália, sob uma ótica nacional, acabou por aproximá-los ainda mais dos modelos e da linguagem do Maneirismo italiano, contribuindo de forma definitiva para a superação das tradições góticas. A arquitetura do reinado de Henrique IV (entre 1589 e 1610), caracteriza-se pelos altos telhados “à francesa”, em ardósia azul-cinzenta ou enegrecida pelo tempo,
31 que, embora fossem usados desde a Idade Média, agora combinavam-se ao emprego sistemático da pedra calcárea esbranquiçada, rusticada em denteados (quase sempre e exclusivamente nos cunhais, nas pilastras e nas molduras das janelas retangulares ou das portas) e aos enchimentos de tijolo rosado ou acastanhado. No artigo anterior, o texto questionava um rótulo que abriga tanto a produção maneirista da arquitetura de Henrique IV e obras ainda maneiristas de Luís XIII quanto outras, erigidas sob este monarca, entre a década de 1620 e a de 1640, em que já se evidencia a adoção de certos elementos da linguagem barroca, como o Castelo de Balleroy e o Maisons-Lafitte. Este artigo pretende analisar a maior ou menor evidência do Barroco nesta arquitetura, o que se faz acompanhar de considerações críticas às referências da historiografia ao chamado “Classicismo francês do séc. XVII”. Este termo e os alternativos “Barroco clássico” e “Classicismo barroco” não definem em qual classicismo, em que fontes clássicas específicas, a arquitetura francesa do séc. XVII se inspira. Quando muito, as referências a esta inspiração se voltam para Fontainebleau, para o que ainda é chamado de “Renascimento francês”, e justamente o que se quer demonstrar é como esses elementos clássicos estão diretamente ligados à tradição maneirista italiana e francesa.
32 Como quase todos os historiadores da arte, até meados do séc. XX, não operam com o conceito de Maneirismo (a não ser em sua visão tradicional, como uma escola decadente do Renascimento e geralmente restrito à pintura e às artes decorativas), suas análises do que tenham sido o Renascimento e o Barroco nos parecem, hoje, esquemáticas e confusas, já que todas as obras em que reconhecemos a linguagem essencial da crise da cultura renascentista foram incorporadas a um ou a outro dos dois estilos, ou a ambos - uma das mais claras evidências da conciliação entre valores antitéticos que caracteriza o Maneirismo. Não podemos, entretanto, prescindir dessas análises, e algumas das obras escritas até a década de 1950, ainda que registrem certas visões “datadas” ou erros de datações e registros5, constituem o ponto-de-partida para as atuais investigações e um contraponto, fundamental para o processo dialético em que cada geração elabora sua própria perspectiva de conhecimento. No caso da arquitetura francesa do séc. XVII, a obra de Victor-Lucien Tapié 6, editada pela primeira vez há mais de quarenta anos, ainda é considerada um clássico, uma referência obrigatória, a que, portanto, temos de nos dirigir. A partir dele e de outros autores que abordaram o tema e baseando-se na análise formal - especialmente das superfícies e volumes externos - de algumas das mais célebres edificações dos estilos Luís XIII e Luís XIV, este artigo pretende tecer considerações sobre os aspectos clássicos e barrocos desta arquitetura, e sobre como classificar, dentro dos grandes estilos históricos, uma produção que parece
33 oscilar, constantemente e em diferentes aspectos, entre várias fontes de inspiração e entre, pelo menos, duas tendências opostas do gosto seiscentista.
2. Barroco e Classicismo. No prefácio da segunda edição de seu livro, em 1968, Tapié reporta sua participação no colóquio ocorrido em Roma (cujo tema era o Maneirismo e o Barroco), em 1960. A partir deste colóquio e da publicação das comunicações, em 1962, tornou-se comum apresentar uma divisão em três etapas para o período posterior ao Renascimento: o Maneirismo, o Barroco e o Rococó. O autor constata a dificuldade em traçar fronteiras e afirma que o pior erro “é deixar-se seduzir pelo prestígio das etiquetas e torturar-se para saber se uma determinada obra merece ser chamada de maneirista, em razão das formas que apresenta, ou barroca, porque pertence ao período em que as grandes obras primas do barroco já tinham surgido”7. O que Tapié considera ser “o pior erro” me parece ser, ao contrário, uma das ocupações primordiais de um historiador da arte. Reconhecer a recorrência de um determinado conjunto de formas e de suas estruturas sintáticas - o estilo -, dandolhe uma etiqueta, e “torturar-se” com a descontinuidade histórica e com a infinita riqueza da realidade (que nunca se ajustará plenamente a essas etiquetas, a nossos esquemas ideais) são pressupostos indissociáveis de nossa tentativa de
34 decifrar as relações entre o estilo e seu tempo, entre inovação e tradição, entre ser e sociedade, e, conseqüentemente, entre arte e história. Tomando em conta que suas palavras prefaciam a segunda edição de seu livro, parece que o autor quer abrandar os efeitos que o redimensionamento do conceito “Maneirismo” - ocorrido justamente antes desta reedição - já teriam causado, ou iriam causar, sobre sua obra fundamental. É verdade que o desconhecimento de uma concepção mais atualizada sobre o estilo, como foi comentado, compromete parte de suas questões sobre esta arquitetura - entre o Maneirismo e o Barroco - que a França desenvolveu ao longo do Seiscentos; mas isto não lhe tira o valor da informação erudita nem o mérito de reconhecer a existência do Barroco francês e de suas correlações com uma vertente mais austera, mais classicista. O próprio Tapié considera que o termo “Classicismo” é tão ou mais impreciso do que o termo “Barroco”8, e que colocamos em pontos extremos um classicismo intransigente e um barroco estonteante: “Esses são inconciliáveis. Mas, entre os dois? Mesmo em França, onde o classicismo atingiu sem dúvida a sua perfeição, o paradoxo não é verificar a existência de um barroco francês, mas negá-lo, como se temesse fazer mal ao classicismo. Contudo, esse barroco conservou maior equilíbrio e medida por ser francês. Chegado da Itália,
35 principalmente de Roma, amorteceu, quando noutras regiões se desenvolvia até a vertigem.”9 Na história da arquitetura do Mundo Ocidental, há toda uma tradição fundamentada no Classicismo, praticamente ininterrupta, que vai de sua sobrevivência nos diferentes estilos medievais e de sua reinterpretação pelo Renascimento, passando por sua implantação na Era Moderna por obra do Maneirismo e por sua relativa dissolução através do Barroco e do Rococó, até sua recuperação pelo Neoclassicismo do séc. XVIII. Esta tradição continua subjacente ao Ecletismo arquitetônico do séc. XIX, está na essência dos fundamentos de Le Corbusier e de todo o Racionalismo dominante na arquitetura moderna, e volta a ser a fonte de referência (mesmo que por razões totalmente diversas) para uma das mais fortes vertentes da Pósmodernidade. Tapié não chega a definir uma concepção pessoal de “Classicismo” nem desenvolve as acepções possíveis do termo. Sua definição do Barroco francês como um estilo entre os inconciliáveis “classicismo intransigente” e “barroco estonteante” parece ocupar, teoricamente, o espaço “entre os dois” (entre Renascimento e Barroco) do Maneirismo. Sem dúvida, há barroco - ora mais evidente, ora menos - em quase toda a arquitetura francesa do séc. XVII, pois, mesmo nos exemplos exaltados como as mais perfeitas expressões deste dito “Classicismo francês do séc. XVII”, os
36 elementos clássicos nunca se encontram absolutamente imunes a uma “contaminação” por uma idéia nova, por um movimento qualquer, por uma linha que se quebra e se torce ou, ao menos, por um ou outro dos elementos decorativos próprios do Barroco. Ao afirmar que o Classicismo atingiu a sua perfeição na França, Tapié parece ignorar que - no que se refere ao vocabulário, à sintaxe, e ao repertório dos modelos clássicos - pouco se acrescenta, no decorrer do séc. XVII, ao que fora herdado do classicismo maneirista do XVI e inícios do XVII. Por sua vez, a afirmativa exprime uma terrível contradição, porque, se este classicismo, segundo o autor, é algo “entre os dois”, ou seja, se não é “intransigente”, como poderia ser “perfeito”? Além de infundada historicamente, a idéia de perfeição clássica atingida pela arquitetura francesa do séc. XVII parece resultar de um mero nacionalismo de Tapié (e, em geral, dos franceses). Este caráter ideológico é reforçado por sua justificativa idealista do arrefecer das tendências barrocas, na França, por uma espécie de espírito racionalista e comedido, que seria próprio do francês. A idéia da existência do caráter, da personalidade ou do espírito de um povo -constituído por valores e aspectos particulares a uma determinada cultura e que transcendam as diferenças de classe - domina a concepção da História de inúmeros historiadores e também da maioria dos integrantes destas populações,
37 levadas a crer, pela eficácia dos mecanismos de propaganda ideológica, em uma peculiaridade de suas identidades nacionais. Toda uma tendência na História da Arte, de Alois Riegl e da “Escola de Viena”, passando por Worringer, aos nossos dias, centra-se em um “ethos popular”, nas diferenças culturais como resultantes das relações dos povos com meioambientes acolhedores ou hostis10. Embora seja constantemente deformada - tornando-se deformadora ao se traduzir em xenofobia e racismo ou quando tomada como o elemento determinante da História -, tal idéia não é, em si, absurda, pois talvez seja possível isolar tais particularidades nacionais, em culturas sedimentadas após vários séculos de realizações e vivências coletivas. Curiosamente, os mesmos historiadores que justificam, pelo “espírito francês”, o racionalismo artístico do séc. XVII, quando tratam de estilos franceses acentuadamente anti-racionalistas, como o Gótico Flamejante, o Rococó ou o Romantismo, nunca lembram de explicar aonde foi parar - ou “baixar” - o referido espírito. Ao analisar o Barroco, como o novo estilo artístico do séc. XVII europeu, Hauser o separa em duas vertentes, que correspondem a duas realidades culturais diversas, constantemente opostas em seus aspectos político-econômicos, sociais e religiosos: o “Barroco católico e cortesão” e o “Barroco protestante e burguês”11.
38 O primeiro expressaria o triunfo da Contra-reforma sobre a Reforma - durante e esp. após a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), quando partes importantes da Alemanha e da Europa central foram reconquistadas ao catolicismo. Também as vitórias do absolutismo sobre o poder feudal e sobre a autonomia republicana e o conseqüente predomínio de sua economia mercantilista - tanto sobre a economia feudal quanto sobre o capitalismo fundamentado na livre iniciativa - estariam diretamente relacionados à criação do novo gosto. Justamente a partir de meados do século, o estilo se afirmaria pelos países e regiões ligados a Roma, que cobrem-se de igrejas e mosteiros, mas também de palácios, já que as monarquias absolutistas fundamentavam-se no “direito divino” e a aliança entre o Estado e a Igreja representava uma identidade de interesses e propósitos, de estratégias éticas e estéticas. A riqueza e o dinamismo do Barroco - evidentes nas grandes obras de pintura e escultura, no decorativismo explosivo de palácios e igrejas, e no fausto das festas e rituais das cortes absolutistas - encontram-se em analogia direta com a acumulação material e com a intensidade e a diversidade do comércio marítimo, realizado agora em escala mundial e desenvolvido, pelo sistema mercantilista, a um nível que superava (pela primeira vez, desde a Antiguidade) o atingido pelo mundo helenístico e romano. Também inerente ao estilo, a dramaticidade se explica pela necessidade de propaganda da fé, pela carga de emoção que a arte deveria despertar nos fiéis -
39 fosse para reconquistá-los à ortodoxia católica fosse para alimentar o rebanho com seu envolvimento direto na experiência mística, concretizada pelo ilusionismo artístico. A mesma dramaticidade serviria aos propósitos de celebração do absolutismo, especialmente em grandes cenas de batalhas vencidas ao inimigo - pela ação heróica do monarca ou dos grandes da corte a seu serviço - e que assegurava a paz e a prosperidade do reino. Em oposição ao transcendentalismo e à grandiloqüência da estética católica, a visão materialista e imediatista das médias e pequenas burguesias se exprimiria, particularmente na Holanda, no “Barroco protestante e burguês”. Esta outra tendência barroca estaria representada principalmente pela pintura e por seu intenso realismo técnico e temático. As cenas celebram a vida urbana e doméstica dos holandeses, o mundo cívico e o privado, seus pequenos prazeres, seus vícios e virtudes, e a fugacidade do momento que se eterniza em “instantâneos”, nos retratos individuais e coletivos, ou na concretude sensualista das paisagens e naturezas-mortas (cuja demanda, em um mercado burguês de arte, superaria a de qualquer outro lugar). Além dessas duas vertentes opostas do gosto barroco, Hauser admite a existência da tendência ao Classicismo, que, por seu caráter normativo, com seus valores de ordem e rigor, sempre seria útil à afirmação do absolutismo
40 monárquico, sendo mais evidente na segunda metade do século XVII, especialmente na França de Luís XIV e na Inglaterra. É verdade que o realismo predomina na pintura holandesa do séc. XVII, mas ele também está presente em grande parte da arte realizada nas cortes católicas. Ele se encontra, como um elemento subjacente, em obras propriamente barrocas - o que se constata no ilusionismo dos tetos; nos tipos de Caravaggio e de todos os seus seguidores, dos italianos a Ribera, Zurbarán e Velázquez; na retratística em geral - e até mesmo como expressão dominante do gosto, como se atesta em certas obras de Murillo e principalmente no mundo camponês que se vê nos quadros dos Le Nain, em que uma atmosfera de passividade triste parece antecipar o caráter de denúncia social do Realismo de dois séculos depois - o que vai de Millet e Daumier aos “Comedores de batata” de Van Gogh. No sentido inverso, também pode-se encontrar excesso, luxo e opulência, dinamismo e dramaticidade, no “Barroco protestante e burguês”. Não tanto, evidentemente, em Vermeer e Pieter de Hooch (ou de Hoogh), mas certamente em Hals e Rembrandt, e em obras de Ruysdael que prenunciam, em mais de um século, o clima misterioso da paisagem romântica. Por sua vez, o Classicismo recém-absorvido pela Europa, em suas fórmulas maneiristas, convertera-se em apanágio essencial do mundo erudito, uma espécie de substrato da própria cultura, indispensável à formação individual do artista ou à expressão simbólica do papel racionalizador e ordenador do Estado. Todo o
41 período barroco e sua arte, portanto, não poderiam estar isentos de uma contínua referência a essa herança, reconhecida, desde o séc. XVI, como fonte fundamental da cultura do Ocidente. Antes da segunda metade do século, há classicismo na pintura de Poussin, na literatura de Corneille, na arquitetura de Mansart, como depois, na Colunata do Louvre e mesmo em Versailles ou na arquitetura de Wren e Vanbrugh. Mas além do que se convencionou tratar por “Classicismo francês do séc. XVII”, também podemos isolar valores clássicos na contenção dos gestos e na centralização e equilíbrio da composição, que vemos em pinturas de gênios barrocos como Velázquez e Zurbarán ou Rembrandt e Vermeer, ou ainda na temática e na perfeição física dos corpos, em obras consideradas simplesmente barrocas, como o “Apolo e Dafne”, de Bernini. No eclético e altamente complexo quadro da arquitetura européia posterior à Reforma12, podemos tentar isolar os elementos constantes e identificar o caráter de uma ou outra tendência que assuma um papel dominante, em uma determinada região ou época, mas a realidade de um mundo intercambiante, em processo de expansão acelerada, dificilmente se expressará de forma unívoca, dentro de um rígido sistema que resista à “contaminação” pelo “outro” ou à “canibalização” do estrangeiro. Assim como as múltiplas tendências artísticas englobadas pelo conceito “Maneirismo” têm, em comum, a tentativa de conciliar classicismo e
42 anticlassicismo, assim, nas três vertentes do Barroco, haveria um mesmo e novo elemento, ao menos, um único aspecto compartilhado, sem o qual seria impossível falarmos de um só estilo. Este aspecto se evidenciaria em uma nova concepção do espaço como algo infinito e dinâmico, como um processo mais do que uma realidade estática - uma intuição do espaço-tempo da física de nossa época, mais do que a concepção de espaço-volume que, apesar de todo o progresso da ciência, ainda domina o entendimento comum. O espaço abstrato e simbólico da pintura medieval fora substituído, a partir de Brunelleschi, pela representação em perspectiva; mas, comparado ao espaço dos quadros e afrescos barrocos, o das pinturas renascentistas parecem cenários pintados em telões de teatro, com as personagens expostas em exíguo proscênio. Nas obras maneiristas, o espaço é geralmente artificial e abstrato, mas, mesmo quando se faz representar de forma absolutamente naturalista, os enquadramentos “cinematográficos”, inusitados, ou a recuperação da composição por adição (da pintura medieval) acabam por deformar ou fragmentar a realidade espacial. Opondo-se ao Maneirismo, a espacialidade da pintura barroca encontra sua originalidade e especificidade em seu ilusionismo perfeito - com suas qualidades aéreas e luminosas, absorvidas dos próprios maneiristas venezianos, ou com a profundidade do tenebrismo caravaggiesco.
43 Os horizontes baixos das paisagens, a massa dos arvoredos, a dinâmica das nuvens na vastidão dos céus; a altura dos ambientes internos, os grandes vazios das sombras e penumbras ou a profusão de objetos, a riqueza de detalhes e pormenores; os jogos de espelho, os extravazamentos, as interpenetrações da obra de arte com o real - todos estes aspectos falam da grandeza, da vastidão, do gigantesco espaço do mundo. Na concepção barroca, pode ser vista a infinitude do vazio pós-copernicano, que Pascal tenta preencher com um Deus onipresente e reconfortante e que os protestantes enfrentaram com o espírito prático e ávido do capitalismo, como algo a ser preenchido e explorado, ou seja, como business. Esta nova percepção do espaço não está restrita, evidentemente, à pintura barroca, expressando-se de forma magnífica em algumas das esculturas de Bernini, ou no complexo desenvolvimento da arquitetura de um Borromini e um Guarino Guarini, ou ainda no rococó de Neumann ou do Aleijadinho. Como não há, em termos de linguagem arquitetônica, uma tradução do realismo pictórico do “Barroco protestante e burguês”, as tendências estilísticas da arquitetura do séc. XVII ficam restritas à oposição entre Classicismo e Barroco; mas, para além das questões formais, também cabe questionar, nesta dicotomia, o quanto a arquitetura francesa absorveu da nova concepção de espacialidade.
44 3. Barroco e classicismo no estilo Luís XIII. Foi comentado, no artigo anterior13, que o novo estilo começa a surgir, a partir da década de 1620, com a absorção de algumas formas decorativas - como nos painéis do Hôtel de Sully e nas molduras das lucarnas do Castelo de Balleroy - e com o início de uma dinamização da composição volumétrica, pelo avanço mais decidido dos pavilhões dos cantos (no mesmo castelo) ou na concavidade das laterais do Maisons-Lafitte, de Mansart. O Barroco, na arquitetura francesa, se insinua no movimento espacial dos volumes, ao se abrirem e se integrarem aos pátios e jardins. Raramente são movimentos curvilíneos e interpenetrações espaciais como no barroco italiano, mas movimento em ângulos, em quebras, em braços que se distendem e avançam. Esta é uma retórica particular de quase toda a arquitetura barroca, que nos convida à penetração, ao abrigo. Na Ala Orléans do Castelo de Blois, realizada entre 1635 e 1638, Mansart articula os três andares por pilastras geminadas, como faria depois no Lafitte, entre 1642 e 1650. O denteado em pedra rusticada desaparece, em ambas as composições, mas os altos tetos à francesa e pequenas variações na disposição das ordens clássicas continuam a expressar a linguagem dominantemente maneirista do maior dos arquitetos ligados ao “estilo Luís XIII”.
45 Sendo posterior, o Lafitte é, surpreendentemente, muito mais austero. Estaria a diferença explicada não pela evolução estilística do arquiteto, mas pela clientela, com a aristocracia resistindo ao barroco da realeza?14 Na Ala Orléans, entretanto, Mansart rompe a cornija com um meio-círculo central, envolvendo decorações que parecem fitomorfas e em fluidez orgânica. Além desta única introdução de motivos barrocos na estrutura maneirista, o autor avança as alas laterais sobre o pátio e as unifica ao pavilhão, que se destaca da ala central, por uma colunata curvilínea, que cobre apenas o nível do andar térreo.
FIG. 1. F. Mansart. Ala Orléans do Castelo de Blois
Além do motivo decorativo, é especialmente neste jogo dos volumes - com o avanço do pavilhão e das alas e o recuo, o côncavo, da colunata - que se evidencia inquestionavelmente a aceitação, pela arquitetura francesa, do movimento espacial barroco, em uma obra referencial de um dos arquitetos mais tradicionalmente vinculados ao dito “Classicismo francês do séc. XVII”. Em Val-de-Grâce, a mais célebre igreja de Mansart e do estilo Luís XIII, o autor continua a tradição renascentista e maneirista da cúpula sobre cruz grega, enquanto acrescenta um pórtico, com colunas coríntias sustentando um frontão triangular íntegro, à fachada inspirada no arquétipo da arquitetura religiosa maneirista - o Gesù, em Roma, de Vignola e Della Porta.
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FIG. 2. F. Mansart. A Igreja de Val-de-Grâce
Todo este repertório - evidentemente classicista e eminentemente maneirista -parece referendar a resistência francesa ao Barroco; mas isto seria ignorar os novos elementos, por mais discretos que pareçam: as palmas no tímpano do frontão e os degraus curvilíneos nas escadas laterais do pórtico; os elementos fitomorfos que serpenteiam por entre as volutas; as pequenas coberturas bulbosas sobre os quatro tabernáculos que envolvem o tambor da cúpula; o jogo dos volumes que recuam a partir do pórtico. Alguns desses elementos podem eventualmente surgir em poucas obras maneiristas, mas são essencialmente barrocos em espírito e em termos de recorrência. Assim também, embora a nave central e única repita o esquema do Gesù, a planta elíptica das capelas laterais (em vez de octogonais, como no modelo) substitui a herança dominantemente estática do Maneirismo, pela elasticidade, pelo dinamismo espacial do Barroco. A influência de Mansart seria enorme sobre os arquitetos posteriores, como Le Muet e Lemercier (que terminariam a igreja do mestre, inacabada à época de sua morte) e se estenderia sobre Le Vau, principalmente, e outros dos mais importantes criadores da segunda metade do século. Embora se conservassem os altos telhados e as janelas retangulares, freqüentemente em armações de cruz latina (como no Gótico e no Maneirismo),
47 com o desaparecimento dos denteados de pedra e o aumento do uso das ordens clássicas na modenatura (e especialmente em pórticos e colunatas), as superfícies, a plástica e os volumes arquitetônicos ganhavam um aspecto geral de imponente classicismo. Este classicismo, como já comentado, entretanto, nada mais é do que o classicismo dos arquitetos e tratadistas maneiristas italianos e franceses; mas são justamente as novas concepções espaciais e os novos elementos decorativos barrocos que nos impedem de considerar tais obras de Mansart como ainda maneiristas. À clássica estrutura maneirista, confere-se peso e imponência, mas também algumas dinamizações espaciais e pequenas concentrações de decorações barrocas - irradiadas, explosivas, ou contorcidas e derramadas, em pontos estratégicos da geometria construtiva. O que François Mansart concretizou, nestas obras, deu origem ao que poderia ser descrito como o mais puro estilo Luís XIII, e, paradoxalmente, ao criar o discreto Barroco francês sobre a base de um imponente Maneirismo, sua arquitetura iniciou toda uma tendência sobre a qual se formularia o mito do “Classicismo francês do séc. XVII”. Segundo Pierre du Colombier, na arquitetura francesa, o Barroco se encontraria especialmente na vida que ganha o ornamento15. Aos enrolamentos de couro, aos
48 círculos e elipses mameiristas, somam-se as formas cartilaginosas e os aurículos propriamente barrocos. Aos festões e grinaldas da tradição romano-renascentista-maneirista adere-se a vegetália barroca das palmas, dos ramos de louro e de oliveira, de vários ramicelos florais, com um ímpeto sinuoso que faz vibrar, com encrespamentos, as superfícies. Outras formas barrocas - o arco (ou cada lado de um frontão) combinado, nas extremidades, a segmentos horizontais; as molduras recurvadas; os troféus de armas e bandeiras - aparecem com uma certa constância. No Castelo de Cheverny, elementos como os painéis das escadas e a lareira do quarto do rei revelam o desenvolvimento do Barroco francês, paralelo ou sobreposto à linguagem maneirista dominante.
FIG. 3. Painel da escada do Castelo de Cheverny.
Esta permanência das tradições maneiristas é atestada, entre outros exemplos ou aspectos, pela enorme influência do arquiteto e gravador Jacques Androuet Ducerceau. Nas palavras de Colombier, seria “ele exatamente o principal intermediário para a transmissão do primeiro estilo de Fontainebleau ao século seguinte”, pois se teria chegado ao estilo Luís XIII, ao tornar os motivos de Ducerceau mais pesados.16
49 Em um salão do estilo Luís XIII, em Fontainebleau, os estuques entre os quadros não apresentam os festões maneiristas de Rosso e Primaticcio, mas cachos de frutas, e as cartelas acima não estão emolduradas exatamente por enrolamentos de couro, mas começam a extravazar-se sobre as molduras retilíneas das pinturas. Estes detalhes decorativos e o chanframento nos cantos do salão são os únicos elementos propriamente barrocos, já que o esquema do teto, com pinturas marrufladas, provém do Maneirismo veneziano, e os lambris pintados com painéis geométricos e com grotescos, embora sejam caracteristicamente Luís XIII, estão diretamente ligados às tradições decorativas maneiristas, que, havia mais de um século, eram absorvidas da Itália.
FIG. 4. Salão Luís XIII do Palácio de Fontainebleau.
A hesitação dos arquitetos franceses entre a manutenção da vertente mais classicista do Maneirismo e a aceitação de alguns dos valores barrocos de dinamismo espacial ou decorativo pode ser exemplarmente demonstrada na análise de quatro obras dos dois maiores arquitetos de todo o século. O Lafitte e a Ala Orléans, de Mansart, já comentados, e o Castelo de Vaux-le-Vicomte, de Louis Le Vau, se prendem ao estilo Luís XIII; o quarto, Versailles, é o representante, por excelência, do estilo Luís XIV.
50 Louis Le Vau, entre 1657 e 1661, realizou o Castelo de Vaux-le-Vicomte e, de 1661 até sua morte, em 1670, trabalhou em Versailles. Em Vaux, a tradição maneirista continua nos altos telhados e chaminés esguias, e na fachada dividida em cinco partes, com o segmento central e os extremos ligeiramente projetados à frente, como pavilhões. As janelas retangulares e estreitas, apenas rasgadas na superfície dos muros; a ordem colossal em pilastras de baixíssimo-relevo; os óculos das lucarnas; as estátuas e jarrões como acrotérios ou pináculos; a rusticação do primeiro dos três pavimentos e o frontão triangular sobre o corpo central - tudo revela a contínua absorção da linguagem maneirista italiana pela arquitetura francesa.
FIG.5. Louis Le Vau. Castelo de Vaux-le-Viconte.
Outras características, no entanto, transformam o Castelo de Vaux em uma das mais importantes criações do Barroco francês. O pavilhão central e sua cúpula se desenvolvem sobre um plano elíptico que oferece o eixo menor por entrada, como Sant’Andrea al Quirinale (em que Bernini, com o mesmo partido, aumenta a elasticidade espacial em relação às plantas elípticas longitudinais, preconizadas no Maneirismo, por Vignola). O lanternim é arrematado por uma forma nova de pináculo, mais fino e proporcionalmente mais alto do que qualquer forma análoga da arquitetura gótica ou da maneirista, assemelhando-se a um elemento oriental.
51 Na fachada oposta à dos jardins, os corpos laterais avançam decididamente e o corpo central é envolvido por muros côncavos. Sem apresentar, externamente, qualquer fluidez decorativa, Vaux realiza o mais característico do Barroco, na essência da linguagem arquitetônica - o espaço.
FIG. 6. Louis Le Vau. Planta do Castelo de Vaux-le-Vicomte.
Lilian Châtelet-Lange17 afirma que a compactação e o peso barrocos de Vaux seriam brevemente substituídos pelas mais elegantes formas cúbicas de Versailles. Compactação e peso são valores que podem igualmente ser encontrados em um palácio maneirista, assim como “elegantes formas cúbicas”. O Barroco em Vaux, encontra-se em algo mais definido e efetivo para que o caracterizemos como tal : o movimento espacial.
4. Barroco e classicismo no estilo Luís XIV. Na história política da França, o ano de 1661 assinala a morte de Mazarin e a decisão de Luís XIV de tomar às mãos os negócios do Estado. Paralelamente, na história da arquitetura, registra-se a conclusão do Castelo de Vaux e o início da construção do Palácio de Versailles, o fim do estilo Luís XIII e a gestação do estilo Luís XIV.
52 Em grande parte laica, a arquitetura da segunda metade do séc. XVII é dominada pela figura do rei e está representada, principalmente, pelo acabamento de seu palácio no Louvre e pelo empreendimento de Versailles18. A transformação plástica mais evidente é a substituição dos tradicionais telhados altos (e das chaminés esguias e proeminentes) por cornijas apoiando balaustradas e/ou platibandas, a que se sobrepõem os troféus de armas ou pináculos, jarrões e estátuas. Após séculos de existência no período medieval e depois de sobreviver, durante o Maneirismo francês, por mais de cem anos, a tradição dos “altos tetos à francesa” cedia, enfim, à solução dominante no Maneirismo italiano.
fig. 7. Pierre Patel, o velho. O Castelo de Versailles de Luís XIII.
O Castelo de Versailles fora criado para Luís XIII, em torno a 1624, por Le Roy, que projetou dois pequenos pavilhões avançados nos cantos de trás do corpo central e duas alas à frente, quebrando-se nas extremidades, além de duas outras alas independentes mais à frente, criando uma planta aberta e dinâmica, ou seja, já espacialmente barroca. Le Vau preservou a estrutura do castelo, mas o envolveu com o triplo da área anteriormente construída, abrindo dois pátios internos para a aeração e insolação dos novos aposentos (depois transformados em quatro, pelas intervenções de Jules Mansart, como se vê em plantas e gravuras).
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FIG. 8. Versailles. Planta parcial e do conjunto.
FIG. 9. Versailles. Vista das construções em torno ao Pátio de Mármore.
O arquiteto também respeitou as soluções formais do estilo Luís XIII, segundo a vontade de Luís XIV19, mas redesenhou e reformou todo o conjunto, ampliando o avanço das alas e unindo-as aos corpos independentes - que seriam depois totalmente modificados, o do norte por Gabriel, no século XVIII, e o do sul, seguindo os mesmos planos, no Oitocentos20. Gabriel iria se basear na fachada oriental do Louvre (que ainda será discutida) e no que Le Vau e J. Mansart realizaram em torno ao castelo primitivo de Versailles; ou seja, introduziu o estilo Luís XIV na área dos pátios que Le Vau, o maior arquiteto deste estilo, preservara no estilo Luís XIII. Jules Mansart também reformou a parte central da fachada principal criada por Le Roy, com janelões em arcos envidraçados, emoldurados por ordens geminadas a mesma solução que ele e Le Vau usaram à volta do palácio. Ao criar um terceiro pavimento, coroado por um medalhão cercado de folhagens, e colocado contra as altas coberturas, Mansart teve de modificar a forma, o tamanho e o posicionamento das lucarnas.
54 Por um lado, se o conjunto perde em harmonia, por outro, adquire um acento maior de riqueza ornamental e de centralização do foco arquitetônico, ou seja, torna-se um pouco mais barroco. A fachada voltada para os jardins de Versailles desdobra-se em sete ou nove áreas. Três segmentos levemente projetados à frente ostentam colunatas ao nível do piano nobile, vazado por janelas em arcadas, separadas pelo aditamento de pilastras jônicas. O primeiro pavimento, rusticado e aberto em arcadas, e o terceiro, metrificado por janelas retangulares e pilastras coríntias, complementam a sobriedade clássica da obra essencial de Le Vau. Ao construir a célebre Galeria dos Espelhos, que corresponde exatamente aos três módulos centrais, Jules Mansart uniu as duas extremidades, projetadas, por Le Vau, bem à frente da caixa construtiva (e também compostas por três módulos, com os pares de colunas geminadas como o módulo do meio). Assim podemos ler esta fachada como composta por nove áreas, embora as duas áreas laterais à grande colunata central - ao articularem-se às de Le Vau, no mesmo plano e com o mesmo tratamento parietal - pareçam fundir-se, possibilitando uma leitura do conjunto em sete, em vez de nove áreas.
55 O uso das arcadas no piano nobile, com portas feitas por pequenos vidros, divididos por pinázios que acompanham a forma dos arcos, é uma novidade na arquitetura francesa e marca o estilo Luís XIV.
FIG. 10. Louis Le Vau e Jules Mansart. Versailles. Fachada para os jardins.
Le Vau não apenas concluíra, com o Castelo de Vaux-le-Vicomte, o ciclo criador do estilo Luís XIII, mas com a nova concepção de Versailles, tornava-se também o grande iniciador do estilo Luís XIV. De todo o perímetro, apenas a parte central da fachada ocidental (a dos jardins) e a parte também central da fachada ocidental, que dá para o Pátio de Mármore, como já comentado, foram edificadas por J. Mansart, que respeitou quase integralmente as soluções de Le Vau. O estilo da arquitetura externa de Versailles, o próprio estilo Luís XIV, conseqüentemente, deve muito mais a Louis Le Vau, embora Jules Hardouin Mansart tenha sido o construtor da Capela e das duas vastas extensões do palácio para o norte e para o sul e, assim, tenha-se tornado o arquiteto responsável pela maior parte, em metragem quadrada, de todo o conjunto. Os elementos aqui descritos, no entanto, não parecem acrescentar qualquer grande novidade às tradições do Maneirismo italiano, especialmente o veneziano, e especificamente o de Sansovino - a não ser os desdobramentos da fachada em mais de três segmentos, típico do Maneirismo francês.
56 Com a eliminação dos altos tetos e a adoção de uma volumetria e de uma plástica essencialmente venezianas, Versailles parece adotar definitivamente o caráter mais clássico do Maneirismo italiano. Assim descrito, o Barroco francês de François Mansart, na Ala Orléans de Blois, e do próprio Le Vau, em Vaux-le-Vicomte, parece desaparecer - o que justificaria o rótulo “Classicismo francês do séc. XVII” -, mas outra realidade, entretanto, se revela por trás dessas aparências. O motivo decorativo do troféu de armas coroa os cantos dos pórticos do piano nobile e também a balaustrada - a intervalos determinados pelos módulos ou áreas em que a fachada para os jardins e as fachadas laterais se desdobram. A rigor, este é o único elemento plástico propriamente barroco, em toda a decoração externa, mas, por menos que isto pareça representar, sua simples presença nos comunica, de imediato, a marca do Barroco, a “datação” da obra e a impossibilidade, assim, de a classificarmos puramente como clássica, maneirista ou renascentista. O Barroco, entretanto, não se revela apenas em um elemento plástico das fachadas, mas em uma série de outros aspectos: na imensidão e inserção do palácio no espetacular de todo o conjunto, no movimento espacial das alas que se abrem para o espaço exterior dos pátios, e no rasgamento dos janelões em arcada para os jardins monumentais de Le Nôtre.
57 O acordo orquestral entre arquitetura, escultura, pintura, artes decorativas, paisagismo e hidráulica - um dos aspectos essenciais dos grandes palácios barrocos - tem, em Versailles, o seu próprio paradigma. Isto deveria nos impedir, definitivamente, de usar o termo “Classicismo francês do séc. XVII” para definir seu estilo, pois, embora o Barroco busque, como o Classicismo, a integração entre as partes, ele o faz pela acumulação de recursos, enquanto o Classicismo preconiza a restrição, a simplicidade e a economia de meios. Além disso, como foi comentado no artigo anterior, um juízo sobre os estilos arquitetônicos não pode se basear exclusivamente em seus aspectos exteriores ou interiores. A despeito de suas temáticas, geralmente classicistas, as pinturas que cobrem os tetos dos grandes aposentos e da Galeria dos Espelhos têm um caráter ilusionista e grandiloqüente, tipicamente barroco, como também são barrocas as formas e decorações de muitas das molduras. Entre os Grands appartements de réception du Roi, o Salão de Vênus tem, em seu forro, uma grande pintura em elipse (sobre a influência do amor sobre os reis), que se articula a duas outras circulares, parecendo apoiar-se nas demais, que, por sua vez, sustentam-se, arqueadas, sobre a cornija.
FIG. 11. Le Vau e Le Brun. O Salão de Vênus. Versailles.
58 O ilusionismo do esquema, com o vazamento para o céu, no rasgamento dos cantos, na pintura da elipse central e na fantástica galeria pintada na parede (na parte inferior da foto, à direita); as molduras fitomorfas que envolvem, em altorelevo, as pinturas do forro; a forma dos jarrões “colocados” nos cantos e parecendo apoiar-se na cornija; o efeito de luxo e opulência dado pela variedade de materiais, cores e texturas usados nas superfícies do aposento - todos estes elementos conferem um aspecto definitivamente barroco à tradição maneirista do salão cúbico ou prismático, coberto por abóbada de barrete-de-clérigo truncada. Imagine-se o efeito geral, com os armários e mesas marchetados (com placas de tartaruga embutidas e adornos de bronze dourado, de Boulle), as banquetas forradas de veludo ou de tapeçaria e os candelabros de bronze dourado que compunham a mobília. O salão tem forma e ordenação clássicas, é dedicado a uma divindade greco-romana, e também é clássica a temática das pinturas, mas o gosto barroco recobre quase tudo. Mesmo na ordem arquitetônica, aparentemente clássica, o capitel, com seus pingentes vegetais, é uma invenção barroca (a partir da compósita dos tratados maneiristas) e a colocação, no friso, de uma banda fitomorfa é um uso típico também do novo gosto. Provavelmente criados pelos venezianos, pequenos espelhos podem ser vistos na pintura flamenga do séc. XV e em toda a maneirista, mas a produção de lâminas de vidro espelhado, de tamanho grande, só se realiza no séc. XVII, e sua
59 aplicação à arquitetura - seu primeiro registro de importância na história da arquitetura - acontece apenas com Luís XIV, em Versailles. Com as lâminas espelhadas forrando as paredes e formando arcos paralelos aos das janelas que dão para o parque, a grande galeria central do palácio foi denominada a partir deste material - a Galeria dos Espelhos (Galerie des Glâces). Ela contribui decisivamente, com o ilusionismo espacial perfeito do novo recurso e com sua exuberância decorativa, para o contraste entre o gosto acentuadamente barroco dos interiores e o dominante classicismo maneirista dos exteriores da caixa construtiva.
FIG. 12. Le Brun e J. Mansart. A Galeria dos Espelhos. Versailles.
Para terminar estas considerações sobre o Barroco e o Classicismo em Versailles, lembremos que todo o conjunto foi concebido, por Le Vau, segundo os pontos cardeais. A idéia foi concebida para que o aposento privado do Rei-Sol fosse banhado pelo nascer do astro e que o poente incidisse exatamente, a partir da janela central da fachada para o parque, sobre a fonte em que a estátua de Apolo conduz o carro, mergulhando sobre as águas do lago (como o deus, que, para os gregos, a cada dia desaparecia sob as águas do oeste do Mediterrâneo). A metáfora é clássica, em si mesma, já que retira seus componentes essenciais da mitologia.
60 Uma retórica arquitetônica que integra todas as artes, o paisagismo, o rei e a própria natureza (a “passagem” do Sol), entretanto, é inquestionavelmente barroca, e só tem antecedentes no Egito21, mas jamais no Classicismo. Châtelet-Lange afirma que os princípios que se desenvolveram a partir da Ala Oriental do Louvre (a “Colunata do Louvre” ou “Colunata de Perrault”) iriam se tornar fundamentais para a arquitetura européia do séc. XVIII: aderência a formas estereométricas essencialmente puras, renúncia a elementos centrais dominantes, sujeição à integridade do plano22. Além de serem basicamente genéricos, o segundo destes princípios é, no máximo, uma meia-verdade, pois o pavilhão central se destaca pelo frontão triangular e pelos cheios do piano nobile, deixando um acento menor para os pavilhões das extremidades. As três massas unem-se por alas vazadas pela colunata, um esquema que continuava o desdobramento em cinco das fachadas maneiristas francesas, com um aspecto mais italiano - tanto pelo desaparecimento dos altos tetos à francesa quanto pela relativa “sujeição ao plano” (já que tal princípio, tomado a rigor, só pode ser encontrado em palácios renascentistas e em raras obras maneiristas italianas). A tradição francesa dos desdobramentos e movimentação das fachadas apenas se apazigua, já que, na fachada oriental do Louvre, as três massas dos pavilhões parecem fazer recuar as loggie que as interligam.
61 De certa forma, este é o inverso do esquema da fachada para o jardim, em Versailles, em que são as colunas dos três pórticos que se projetam à frente do plano, fazendo recuar, conseqüentemente, a massa construtiva. A obra mais severa do estilo Luís XIV se constitui em uma das maiores “novelas” da arquitetura francesa, e provavelmente deve este seu caráter classicista tanto a Colbert quanto aos vários arquitetos que contribuíram de alguma forma para o resultado final do conjunto. Como ministro plenipotenciário de Luís XIV, ele deu novos estatutos à Academia Real de Pintura e de Escultura, organizando-a segundo cuidadosa hierarquia e conferindo-lhe o monopólio do ensino e das encomendas oficiais. A criação da Academia de França, em Roma, no ano de 1666, e da Academia de Arquitetura, em 1671, completavam o programa de controle oficial das artes, exigido pelo rei e idealizado por Colbert. O próprio Luís XIV nomeava os membros da Academia de Arquitetura, que tinham, por missão, dirigir um seminário de jovens arquitetos e atender às encomendas reais, fosse na concepção e execução fosse no aconselhamento e acompanhamento das obras23. As aulas de geometria, aritmética, mecânica, hidráulica, perspectiva e clivagem de pedras visavam facilitar a compreensão dos preceitos intocáveis dos grandes mestres.
62 “Vitrúvio figurava como Oráculo. Entretanto, só era conhecido através de seus discípulos italianos, Vignola, Palladio e Scamozzi, para citar apenas os mais freqüentemente nomeados.”24 A academização do Maneirismo italiano implicava a tolerância, apenas, dos elementos preconizados pelos tratadistas, e “(...) acrescentar a suas invenções seria uma audácia criticável (...)”.25 Academizar uma arquitetura que se define pela contradição entre seu discurso classicista, acadêmico, e suas práticas anticlássicas parece a contradição da contradição, o maneirismo do maneirismo. A propósito, o uso de geminadas na colunata do Louvre, atribuída a Perrault, foi visto com reservas severas. O curioso é que Bramante introduzira as geminadas no Palácio Caprini e quase todos os mestres do séc. XVI as usaram - freqüentemente adossadas ou apenas encostadas ao plano - o que as torna uma das mais características formas da arquitetura maneirista. Tratadas como ordem colossal (uso que a partir de Michelangelo se expande por toda a arquitetura ocidental), as geminadas do Louvre adquirem um novo sentido, principalmente por se colocarem contra o vazamento das loggie que dominam o segundo e um aparente terceiro pavimento. John Summerson, em sua obra mais conhecida26, analisa magistralmente a Ala Oriental, acentuando o papel da ordem clássica no controle sobre toda a
63 composição, mas, não chega a definir quais seriam seus aspectos particularmente barrocos, embora acentue a novidade sintática das geminadas contra o vazio e comente os discretos “encrespamentos” decorativos, como peculiarmente franceses. Este novo arranjo sintático, combinado a um primeiro pavimento rusticado e em arcadas, será a base do estilo neoclássico de Gabriel, em meados do séc. XVIII como pode ser visto no Ministério da Marinha, em Paris, na Place de la Concorde, e em suas reformas, já citadas, para as alas avançadas do pátio, na entrada de Versailles. Na Ala Oriental do Louvre, o primeiro pavimento é rasgado por janelas em arco segmentado, com a sobreverga acompanhando a forma do arco, sem a corda. A partir da arquitetura maneirista italiana, o frontão em arco segmentado e o frontão triangular foram usados, freqüentemente em alternância, sobre as janelas26, como padieiras ou em edículas (sustentados por pequenas colunas), íntegros ou corrompidos (com a retirada de partes do arco ou da corda, do ângulo central ou da base do triângulo). A retirada total da corda do arco segmentado ou de toda a base do frontão triangular seriam efetivados apenas pela arquitetura barroca, tornando-se um de seus elementos mais característicos. Além desta arcada do primeiro pavimento poder ser definida, portanto, como barroca, apenas um outro elemento formal se identifica ao estilo: as elipses
64 emolduradas por fieiras de muguet, sobre os frontões das portas das loggie, que Lescot usara no próprio Louvre maneirista, mas que só se tornaria recorrente no Barroco (como foi comentado, no artigo anterior).
FIG. 13. F. Mansart, Louis Le Vau, Perrault e F. D’Orbay. A Ala Oriental do Louvre.
Assim, a Ala Oriental, com sua célebre colunata, constitui o exemplo mais classicista do estilo Luís XIV, mas, embora crie uma solução original em sua sintaxe compositiva, esse classicismo deve ainda ao Maneirismo francês e muito mais ao Maneirismo italiano. Os planos para sua construção desenvolveram-se em inúmeros projetos de alguns dos maiores arquitetos franceses da época, além dos de Bernini, que, embora fossem aprovados, nunca se alçaram além dos embasamentos. As construções iniciadas logo eram derrubadas e seus materiais reaproveitados, quando possível, na execução de novos projetos novamente interrompidos e reprojetados. As escavações do embasamento do pavilhão meridional, a partir de 1964, e as pesquisas de documentação que se tornaram necessárias, sem chegar a esclarecer toda a história do processo de construção, contribuíram com uma série de descobertas27.
65 As obras foram iniciadas a cargo de Louis Le Vau. A proteção de Mazarin o tornara arquiteto oficial do reino e o empregara em Vincennes, na Salpêtrière e em sua obra principal: o acabamento da Cour Carré do Louvre. Com a morte do cardeal, em 1661, Le Vau foi incumbido do Collège-des-QuatreNations e, terminando a Ala Sul do Louvre, se ocupava do pavilhão do ângulo - o que determinaria a concepção da Ala Oriental. Seu segundo projeto para esta ala, entretanto, foi interrompido por um misterioso antagonismo com Colbert28. Este projeto incluía, além de um grande pórtico central, dois outros menores, ao meio das alas. Somados aos pavilhões dos cantos, que apresentavam um recorte em sua projeção, esta fachada desdobrava-se em nove áreas (ou onze, cosiderando-se as partes reentrantes dos pavilhões). Tanto no terceiro, como no quarto e na primeira versão do quinto projeto de Le Vau, os pórticos menores desaparecem e a fachada restringe-se aos cinco desdobramentos tradicionais do Maneirismo francês. Em todos os projetos, entretanto, a planta do pórtico central combina recortes angulosos a outros côncavos e convexos e o saguão da entrada apresenta-se, sempre, desenhado em uma elipse que se abre pelo eixo menor.
66 Estas constantes barrocas nos projetos de Le Vau para a Ala Oriental ligam sua concepção ao Castelo de Vaux, que ele acabara de concluir, sobretudo no partido do salão elíptico e da cúpula se desenvolvendo sobre esta forma. Os projetos de François Mansart - que não chegaram a ser construídos - iriam demolir o que Le Vau construíra e transformar radicalmente a concepção da parte central (que antecipa a Capela dos Inválidos, de seu sobrinho-neto, Jules) e os pavilhões das extremidades, todos dotados de cúpulas. Após o início da construção do embasamento29, segundo o projeto de Bernini, e de seu rápido abandono (todo um capítulo na história da obra e da própria arquitetura francesa, como já foi dito), Colbert esperava que Mansart executasse seu projeto, o que se frustrou pela morte do arquiteto, em 1666. Somente Le Vau poderia ser encarregado do empreendimento, mas a desconfiança em relação a ele, por parte de Colbert, fez com que o ministro o reconduzisse à obra, embora na condição de membro, apenas, de uma equipe integrada por Perrault e Le Brun.30 A atribuição tradicional a Perrault do que foi definitivamente edificado fica seriamente abalada pela descoberta31 do projeto de Le Vau, datado de 1667, em que aparecem, pela primeira vez, as janelas em arco segmentado do primeiro andar e a colunata de coríntias geminadas e colossais (no projeto de F. Mansart, a colunata era constituída por colunas isoladas).
67 Ao fundo dos intercolúnios, as aberturas retangulares das loggie aparecem coroadas pelas elipses emolduradas com as fieiras de muguet. Com esses novos dados (e já se passaram 30 anos!), parece que temos de reescrever a história tradicional, já que os elementos formais mais característicos da Ala Oriental, inclusive sua colunata inovadora, não foram criação de Perrault, mas de Le Vau. Perrault talvez tenha sido o responsável pela ampliação dos pavilhões e do pórtico central. No projeto de Le Vau, as colunatas constituem, cada uma, nove intercolúnios, e os pavilhões possuem duas aberturas. Os intercolúnios reduziram-se a sete e ampliou-se o número de aberturas dos pavilhões para três. O pórtico central de Le Vau era emoldurado por dois pares de colunas em intercolúnio sistilo. Em sua forma definitiva, sua largura quase foi dobrada e sua superfície metrificada por quatro pares de colunas. Esta modificação acentua a fluidez horizontal, parecendo unir as duas colunatas das loggie - o que quase faz desaparecer qualquer ênfase centralizadora (não fosse especialmente o frontão, como já comentado, e as três massas dos pavilhões). Provavelmente esse efeito terá moldado o termo pelo qual a Ala Oriental é mais conhecida: “A Colunata do Louvre” ou “a Colunata de Perrault” - assim, no singular.
68 Foram eliminados os nichos com estátuas que se alternavam aos vãos envidraçados, com padieiras em frontões triangulares (ficando apenas este tratamento para todo o vazamento das loggie). Eliminaram-se também os troféus sobre a balaustrada, as coberturas dos áticos, os festões que emolduravam o arco de entrada e o tratamento rusticado dos cunhais - que constam do projeto de Le Vau. Estas mudanças conferem, à ala, aquela severidade compositiva e o purismo decorativo que criaram o mito do “Classicismo francês do séc. XVII” na arquitetura, e aos quais Le Vau combinara um número maior de tradições do Maneirismo francês e as novas idéias espaciais italianas do Barroco (ou algum comentário, um elemento formal, ao menos, do estilo). Os autores consultados quanto a estas escavações do Louvre consideram apesar de todas as evidências apresentadas - que não se pode saber em que medida Le Vau foi responsável pelo aspecto final da obra.32 O que acaba de ser descrito sobre a Ala Oriental resulta da simples comparação entre o último projeto do arquiteto e o que acabou sendo edificado, e isso é o bastante para se atestar que os elementos fundamentais foram concebidos por Le Vau. Considerando que não se pode descartar a possibilidade de uma intervenção de Perrault no efeito de horizontalidade do conjunto, como foi defendido por Louis Hautecoeur33, Whitheley e Braham nos dão conta da identificação de projetos,
69 para a ampliação dos pavilhões dos ângulos, da autoria de François D’Orbay, o principal assistente de Le Vau34. Enfim, a expressão “Colunata de Perrault” pode ter-se derivado apenas de sua sugestão a Colbert, em 1664, de uma colunata para a Ala Oriental, já que as intervenções, em 1668, quando a fachada foi alongada nos ângulos35 e as geminadas colocadas no pórtico central, podem ter sido obra de D’Orbay. Para concluir estas considerações sobre o quanto de classicismo ou de barroco pode ser encontrado na arquitetura de Luís XIV, são necessários alguns comentários sobre as mais destacadas obras religiosas edificadas diretamente por desejo do monarca: a Capela dos Inválidos e a de Versailles. Ambas foram concebidas por Jules Hardouin Mansart e terminadas por Robert de Cotte - os últimos grandes criadores da arquitetura francesa do século e, conseqüentemente, do próprio estilo Luís XIV. No interior da Capela de Versailles, a colunata colossal, sobreposta à arcada e vazada por uma galeria contínua, lembra, em essência, o esquema da colunata do Louvre. As decorações dos pilares das arcadas e das chaves dos arcos, as abóbadas ilusionistas e a fluidez elíptica do espaço sobrepõem-se, com seus valores barrocos, à impostação clássica do estilo Luís XIV.
FIG. 14. J. Mansart e Robert de Cotte. Interior da Capela de Versailles.
70 A Capela dos Inválidos tem a planta em cruz grega coroada por cúpula absorvida do Maneirismo italiano e que se tornaria comum em algumas das mais importantes construções religiosas da França, a partir do séc. XVII. A fachada apresenta um severo pórtico palladiano em dois andares36, que superpõe a ordem coríntia à dórica e que “sustenta”, com extrema elegância, o tambor michelangeliano e a cúpula, que, levemente, se abarroca. Apenas as decorações dos enchimentos, o alto pináculo sobre o lanternim e o ímpeto vertical desta cúpula e de todo o monumento - uma das aludidas características da arquitetura religiosa barroca - possibilitam a inserção da obra de J. Mansart dentro do estilo, de tal forma nos parece clássica a sua concepção geral e sua imponência. Para além destes poucos elementos formais barrocos e de sua aparência classicista (que deve ao maneirismo de Michelangelo e de Palladio), repare-se o movimento dos planos e massas retrocedendo em direção à cúpula e como a vibração visual das colunas do pórtico ascende, pelas geminadas do tambor e pelo tambor menor, para atingir uma espécie de catarse nos espigões geminados da cúpula e na fluidez decorativa dos enchimentos fitomorfos entre eles. O Barroco dificilmente propõe uma fachada em tela como o Maneirismo, um grande painel pictórico que nos esconde a plástica e a volumetria da construção. O sentido de movimento e drama entre as massas que compõem o conjunto nos falam de uma expressão escultórica que não está de todo ausente da arquitetura
71 maneirista, mas que somente se converte em linguagem essencial da plástica arquitetônica, com o Barroco, mesmo que concretizado por meios e instrumentos fundamentalmente classicistas. Todo o efeito de acentuada verticalidade é basicamente atingido com o alongamento da cúpula pelo duplo tambor, que retira definitivamente a solidez do modelo clássico. Assim, o que há por trás de toda a imponência do monumento centralizado e classicamente ordenado, é um ímpeto ascensional que não é apenas barroco, mas que parece preparar - com sua opção pela leveza e elegância - os valores que norteariam a cultura do período seguinte: o Rococó.
FIG. 15. J. Mansart e Robert de Cotte. A Capela dos Inválidos.
5. Conclusão. Considerações sobre qualquer tema não pretendem necessariamente exaurir, concluir ou fechar questões, mas tecer comentários, revelar algum aspecto desconhecido ou mal percebido, levantar problemas e, na tentativa de resolvê-los, apontar possíveis caminhos de pesquisa. Estas considerações sobre as questões estilísticas que envolvem a arquitetura francesa dos sécs. XVI e XVII, entretanto, apresentadas em dois números
72 consecutivos de Concinnitas, por sua extensão e fragmentação, demandam algumas sínteses à guisa de conclusão. Para enfrentar o conceito de “Classicismo francês do séc. XVII”, uma das questões centrais destas páginas, era necessário analisar em que medida este classicismo acrescentaria algo de original, de peculiar, ao classicismo de que ele mesmo procedera, ou seja, o francês e o italiano do século anterior. Vimos como a arquitetura maneirista francesa aproxima-se continuamente da italiana, mesmo quando tenta ser original, com Delorme, Ducerceau e Lescot, na segunda metade do século. No início do século XVII, Debrosse se aproximaria ainda mais do Maneirismo italiano e, embora a arquitetura francesa concedesse discretamente ao novo gosto da arquitetura barroca, principalmente em obras de F. Mansart e de Le Vau, ela voltaria a se render aos mestres maneiristas italianos, na compactação da caixa construtiva de Versailles e da Ala Oriental do Louvre. Se podemos, no entanto, traçar uma linha evolutiva classicista da arquitetura francesa, ao longo dos sécs. XVI e XVII, partindo da fragmentação dos volumes e da apologia do ornamento para o purismo volumétrico e decorativo dos exteriores, a primeira conclusão a que se chega é a de que as fontes que inspiram este processo não procedem diretamente dos gregos, dos romanos ou dos arquitetos do Quattrocento, mas dos maneiristas italianos.
73 O processo deveria ser visto como um desenvolvimento ou uma continuidade do próprio Maneirismo francês e, assim como a evolução de uma tendência clássica, essencialmente maneirista, pode ser traçada, a segunda conclusão a que se chega é a de que o processo de aceitação do gosto barroco também pode ser acompanhado, passo a passo. Este gosto pode ser mais evidente nas partes externas - desde as decorações fitomorfas do Hôtel de Sully ou de Val-de-Grâce à entrada côncava da Ala Orléans ou à sinuosa do Hôtel des Invalides, de Libéral-Bruant, ou às movimentações das massas em Vaux ou Versailles - ou se revelar timidamente, desde os painéis de Cheverny, ou plenamente, como nos interiores ilusionistas e espetaculares de Le Brun. Outra conclusão, decorrente de ambas, é que esta arquitetura só pode ser compreendida nesta inter-relação de duas tendências e na constância com que dominam os interiores ou os exteriores, ao longo de quase todo o “Grand Siècle”, dentro do mesmo estilo, o Barroco francês, seja o de Luís XIII ou o de Luís XIV. Este fenômeno de justaposição constante das duas tendências fez nascer expressões como “Barroco clássico”e “Classicismo barroco”. Não estranho a justaposição dos conceitos, já que a contradição está no próprio estilo, nos exemplos concretos. O problema é que estes termos não têm a propriedade de esclarecer que este classicismo está referido a uma fonte
74 fundamental, o Maneirismo italiano, e é isto que acredito poder ter demonstrado ao longo destas considerações e análises. O interesse no tema, além de justificável por si mesmo, vem de uma necessidade imperiosa de revisão histórica de conceitos impróprios, fossilizados pela mera repetição - já que não os vemos submetidos normalmente à análise crítica, como se todos temessem questionar “as categorias fundamentais” que o tempo cristalizou por toda uma longa historiografia. Em nosso próprio panorama cultural e especificamente arquitetônico, este interesse se explica pela importância das obras-primas da arquitetura francesa aqui comentadas - e de seus elementos formais, sintáticos e decorativos - como modelos para toda uma série de construções realizadas em nosso país, aproximadamente entre 1870 e 1930 (e, talvez, mesmo já bem antes ou até bem depois destas datas). A crítica tem tratado genericamente esta arquitetura, como historicista, romântica ou eclética, e, quando se detém em algum comentário propriamente estilístico, sobre os modelos que lhe serviram de inspiração, os termos não vão além dos velhos “Renascimento francês” e “Classicismo francês do séc. XVII”, ou, eventualmente, encontraremos a referência a um simples “estilo francês” ou poderemos ler, ainda, sobre “um ar versalhesco”, um “à la Fontainebleau”, e, no máximo, um “estilo Luís XIII” ou “Luís XIV”.
75 Como já foi comentado, alguns destes rótulos podem ser de alguma utilidade, tornam-se operacionais em certas circunstâncias, mas não definem a quais dos grandes estilos históricos estas obras se filiam. Esta definição torna-se imperiosa e inevitável, especialmente após as discussões travadas, ao longo deste século que agora se termina, sobre alguns destes conceitos e termos histórico-estilísticos. Após a destruição sistemática de uma arquitetura criticada por sua falta de personalidade estilística, por ser um contínuo pastiche de culturas alheias à nossa realidade, no tempo e no espaço, a arquitetura moderna - que a substituiu transformou as grandes cidades de nosso país e de todo o mundo atual, em pastiches de si mesmas, em monstruosos amálgamas de concreto, vidro, aço e asfalto, povoados por postes, fiações, sinais, anúncios, carros, e seres robotizados ou estressados ou miseráveis ou violentos. Nem Chaplin nem Fritz Lang imaginaram Metrópolis como estas! Frente a uma Av. Chile, no Rio de Janeiro, nosso interesse se volta para o estudo e a recuperação de um urbanismo que se pautava no ser humano, em um espaço arborizado e confortável - quando não envolvente ou mesmo aconchegante -, com a pequena praça, a padaria a um canto, a farmácia logo ali, a igreja, o correio. Isto não significa um mero saudosismo ou uma atitude em si mesma romântica ou historicista, mas uma reflexão gerada pela necessidade de se tentar refrear o
76 desastre urbano contemporâneo e, reaprender, com a tradição, sim, novas soluções para um melhor agenciamento do espaço público e da vida cívica. A especulação imobiliária não conseguiu destruir todos os mais significativos exemplos da arquitetura surgida com as reformas do centro da cidade do Rio de Janeiro, no início do século - como os prédios do Teatro Municipal, o da Biblioteca Nacional e o do Museu Nacional de Belas-Artes -, fosse por sua grandiosidade arquitetônica fosse por sua dimensão institucional e histórica. Sempre definidos como vagamente ecléticos, estes edifícios reinterpretam formas e sintaxes essencialmente referenciadas à arquitetura dos séculos XVI e XVII. Nosso belo Museu, por exemplo, com suas altas coberturas truncadas, sua rusticação à francesa, suas cariátides, frontões e colunatas, deriva-se diretamente de obras como o Louvre de Lescot, o Lafitte de F. Mansart e a Ala Oriental do Louvre, de Le Vau. Assim sendo, foi com a intenção de tentar esclarecer as confusas referências aos estilos destes modelos que estas páginas foram escritas. Que elas possam servir de alguma utilidade para tantos estudantes e pesquisadores - que começam a se voltar para esta arquitetura e este urbanismo tão ameaçados e que se interessam em tentar conhecer e preservar os testemunhos históricos e artísticos de uma época, em que a cultura brasileira estava dirigida para outras fontes, para diferentes modelos, e não apenas para a estética massificada, consumista e internacionalizada do sonho hollywoodiano.
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78 LISTA DAS ILUSTRAÇÕES fig. 1. F. Mansart. Ala Orléans do Castelo de Blois fig. 2. F. Mansart. A Igreja de Val-de-Grâce fig.3. Painel da escada do Castelo de Cheverny. fig.4. Salão Luís XIII do Palácio de Fontainebleau. fig.5. Louis Le Vau. Castelo de Vaux-le-Viconte. fig.6. Louis Le Vau. Planta do Castelo de Vaux-le-Vicomte. fig.7. Pierre Patel, o velho. O Castelo de Versailles de Luís XIII. fig.8. Versailles. Planta parcial e do conjunto. fig.9. Versailles. Vista das construções em torno ao Pátio de Mármore. fig.10. Louis Le Vau e Jules Mansart. Versailles. Fachada para os jardins. fig. 11. Le Vau e Le Brun. O Salão de Vênus. Versailles. fig. 12. Le Brun e J. Mansart. A Galeria dos Espelhos. Versailles. fig. 13. F. Mansart, Louis Le Vau, Perrault e F. D’Orbay. A Ala Oriental do Louvre. fig. 14. J. Mansart e Robert de Cotte. Interior da Capela de Versailles. fig. 15. J. Mansart e Robert de Cotte. A Capela dos Inválidos.
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81 NOTAS 1. Schnoor, 1997: p.33. 2. Estudos sobre o Maneirismo, p. 256. 3. Schnoor, op.cit., p. 43. 4. Schnoor, Id., p. 45. 5. Como é o caso, p.ex., da obra de P. Santos, O Barroco e o Jesuítico na arquitetura do Brasil, e a de G. Bazin, A arquitetura religiosa barroca no Brasil. A propósito, o próprio Bazin, em sua participação no II Congresso Internacional do Barroco em Ouro Preto, em 1989, espantou-se com o fato de ainda a tomarmos como referência fundamental. 6. Barroco e Classicismo. 7. Op. cit., p.33. 8. Op. cit., p. 35. 9. Id., p. 12. 10. Argan, 1988: p.149. 11. Historia social de la literatura y el arte, v. II. 12. Patetta. Historia de la arquitectura. Una antología crítica. p. 234. Para James Fergusson (History of the Modern Styles of Architecture, Londres, 1862), não haveria uma obra arquitetônica de alguma pretensão, realizada na Europa, após a Reforma, que não fosse, de alguma forma, uma cópia do passado. 13. Schnoor, op. cit., pp. 53 a 57. 14. Tapié, op. cit., p. 150, reporta a opinião - em certo sentido, oposta - de Hartung e Mounier, respaldados em René Huyghe, de que o barroco de alguns artistas e escritores estaria em oposição ao classicismo da monarquia absoluta, com o que não concorda. 15. Le style Henri IV et Louis XIII, p. 14. 16. Id., p.15.
82 17. The Styles of European Art, p.348. 18. Weigert. Le Style Louis XIV, p.20. 19. Weigert. Op. cit., p. 25. 20. Kitson, 1966: p. 39. 21. O direito divino dos reis sempre se associa ao esplendor e ao cerimonial, mas, embora o caráter teocrático da realeza, na cultura ocidental, provenha diretamente dos imperadores bizantinos e romanos e dos faraós, é apenas com Luís XIV, desde o Egito Antigo, que esta total integração entre o deus, o rei e a arquitetura parece ocorrer. 22. Op.cit., p.348. 23. Weigert, op.cit., pp.12-13. 24. Weigert, op.cit., pp.22. 25. Weigert. Ib. 26. The Classical Language of Architecture, pp. 69-70 26. Schnoor, 1996. 27. Whitheley & Braham, 1969. 28. Idem, p.30. 29. Todo o embasamento era cercado por um fosso que está soterrado, sob as calçadas e ruas que circundam o monumento. Sua forma, tronco-piramidal e rusticada à francesa, lembra o partido adotado para o embasamento da Biblioteca Nacional, na Av. Rio Branco, no Rio de Janeiro. 30. Whitheley & Braham, op.cit., p.40. 31. Mary Whitheley e Allan Braham. Op.cit., p.41. 32. Idem, p.42. 33. Idem, p.42, se referem ao artigo de Hautecoeur, “L’auteur de la colonnade du Louvre”, in Gazette des Beaux-Arts, v.1., p.167. 34. Ib. 35. Ib., p.43.
83 36. Este tipo de fachada, com um pórtico em dois andares dominando a concepção central, surge também na Catedral de S. Paulo, em Londres, de Christopher Wren, que é mais ou menos contemporânea à Capela dos Inválidos. A fórmula se inspira nas inúmeras obras de arquitetura civil de Palladio, mas por duplicar o piso e a colunata, por tornar-se monumental e ser us. em fachadas de igrejas, este novo sistema, como tal, parece configurar uma sintaxe barroca.
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Desinteresse e vontade em Kant, Schopenhauer e Nietzsche. Disinterest and will in Kant, Schopenhauer and Nietzsche.
Andréa Bieri Mestre em Filosofia pela PUC-RJ. Doutoranda em Filosofia pela PUC-RJ.
Resumo Tendo como ponto de partida o texto de Heidegger (de seu livro Nietzsche) intitulado “A doutrina do belo em Kant. Sua interpretação errada por Schopenhauer e Nietzsche” , este artigo apresenta algumas considerações sobre a relação entre experiência estética e vontade - tema crucial da filosofia de Schopenhauer e de Nietzsche - investigando de que forma a noção kantiana de desinteresse está presente na estética de ambos.
Abstract Starting from the Heidegger’s text (from his book Nietzsche) named “The Kant’s doctrine of the beautiful. Its misinterpretation by Schopenhauer and Nietzsche”, this paper presents some considerations about the relation between aesthetic’s experience and will - crucial theme of Schopenhauer’s and Nietzsche’s philosophy - investigating how the kantian’s concept of disinterest it is present in the aesthetic of both.
Palavras-chaves: Contemplação estética, desinteresse, vontade, belo, sublime. Key-words: Aesthetics contemplation, disinterest, will, beautiful, sublime.
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Introdução A relevância da noção de vontade para esta investigação é justificada por sua centralidade na concepção de homem dos dois filósofos: enquanto Kant procura distinguir o papel das diversas faculdades humanas e postula a unidade entre elas, Schopenhauer e Nietzsche voltam-se para a dimensão “pulsional” do ser humano, privilegiando o corpo, o desejo e os sentidos. O homem passa a ser determinado pela impossibilidade de livre-arbítrio e por uma vontade indominável pela razão e que não pode ser conhecida senão pelos seus reflexos no corpo e nos atos. Paralelamente, são questionadas as próprias noções de consciência, sujeito e liberdade, tomando distância, assim, do transcendentalismo kantiano, impensável sem o movimento reflexivo realizado pelo sujeito transcendental. Inicialmente, farei uma pequena síntese do modo como Kant define o desinteresse que caracteriza o juízo de gosto puro por sua independência da faculdade de apetição1. Em seguida, serão feitas algumas considerações sobre a interpretação schopenhauriana de Kant. Por último, algumas observações sobre as críticas dirigidas por Nietzsche a seus predecessores e sobre alguns tópicos da estética nietzscheana.
A faculdade de apetição e sua relação com a faculdade de sentir prazer e desprazer Na Introdução à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant distingue as faculdades gerais do ânimo e situa o sentimento de prazer e desprazer entre a faculdade de conhecimento e a faculdade de apetição. A faculdade de conhecimento é legislada pelo entendimento, e a faculdade de apetição, “como uma faculdade superior segundo o conceito de liberdade”2, é legislada apenas pela razão. Entre o domínio do conceito de natureza (legislado pelo entendimento) e o domínio do conceito de liberdade (cujas leis são dadas
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pela razão), há, segundo Kant, “um grande abismo”, não sendo possível “lançar uma ponte de um domínio para o outro”3. Algumas linhas adiante, no entanto, a faculdade do juízo é apontada como uma possível mediação entre os dois âmbitos irreconciliáveis, assim como entre as faculdades de ânimo a faculdade de sentir prazer e desprazer relaciona-se e de certo modo conecta-se com as outras duas. Esta conexão da faculdade de apetição com o ajuizamento estético torna-se mais explícita no “Primeiro momento do juízo de gosto, segundo a qualidade”, onde os juízos relativos ao bom e ao agradável são diferenciados do belo. Quer se trate do desejo gerado pelo objeto que agrada imediatamente aos sentidos, quer se trate de um interesse da razão (o útil ou o bom em si), ambos estão relacionados a prazeres que têm como referência a faculdade de apetição. No primeiro tipo de prazer o agradável - a faculdade de apetição manifesta-se em sua forma inferior, pois está determinada pelas impressões dos sentidos. Trata-se de uma inclinação, e a satisfação que lhe é própria é o deleite4. Esta relação interessada com o objeto não pode ser o que Kant denomina uma “complacência livre”, pois o objeto se impõe como necessário ou desejável e o prazer é condicionado por estímulos. Ou seja, a representação da existência do objeto é aí essencial e imprescindível. O ajuizamento relativo ao bom transcorre de modo análogo. Agora, no entanto, a faculdade de apetição manifesta-se em sua forma superior: “o bom é objeto da vontade (isto é, da faculdade de apetição determinada pela razão)”5. Para que algo possa ser denominado bom, é preciso primeiro subsumí-lo a um conceito dado na razão, é “preciso saber sempre que tipo de coisa o objeto deva ser”6. Contrariamente ao agradável, é um prazer mediato, pois a provação que é dedicada à existência de um objeto ou uma ação é referida a um fim racional : “em relação ao bom sempre se pergunta se é só
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mediatamente-bom ou imediatamente bom (se é útil ou bom em si)”7. O máximo interesse da razão é o bem moral e tanto ele quanto o útil e o agradável não aprazem de forma livre, mas por uma coação: um objeto da inclinação e um que nos é imposto ao desejo mediante uma lei da razão não nos deixam nenhuma liberdade para fazer de qualquer coisa um objeto de prazer para nós mesmos. Todo interesse pressupõe necessidade ou a produz; e enquanto fundamento determinante da aprovação, ele não deixa mais o juízo sobre o objeto ser livre. 8
Contrariamente aos juízos estéticos relativos ao bom e ao agradável, o belo é definido como o único imparcial entre os três, pois independe de todo interesse e por conseguinte, é indepedente de toda referência tanto à faculdade de apetição (em qualquer uma de suas formas) quanto à faculdade de conhecimento (pois não constitui o objeto: “não é fundado sobre conceitos e nem os tem por fim”9). Juntamente com o sublime, é o único juízo estético puro, justamente porque não sofre nenhuma “interferência” do querer, seja em sua forma inferior (inclinação) ou superior (vontade). Além de desinteressado, o juízo estético relativo ao belo é livre. Livre em duplo sentido: o julgamento do sujeito não sofre nenhum tipo de coerção dos sentidos, da razão ou de regras objetivas que determinem o que é o belo e também o objeto é deixado “livre para ser o que é”. O prazer é aqui reflexivo, não provém de um contato meramente sensório e estimulante com o objeto (agradável), nem de um esquadrinhamento de suas propriedades (exploração teórica) e nem tampouco da antecipação na razão de seus possíveis efeitos práticos. Por ser indiferente à existência do objeto, o juízo relativo ao belo é contemplativo: “só considera a natureza do objeto em comparação com o sentimento de prazer e desprazer”10 e é este prazer - sentido como uma concordância e livre jogo da imaginação com o entendimento- que funda o juízo de gosto.
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Na “Analítica do Sublime”, as mesmas características pertencentes ao belo são atribuídas ao sublime: é um juízo estético livre, desinteressado, reflexivo ( e não determinante), universalmente válido (mas não a priori), conforme a fins sem representação de fins e necessário.11 Mas enquanto no belo a imaginação reflete sobre a forma de um objeto, o sentimento do sublime é experimentado diante do disforme e do ilimitado. No entanto, a diferença mais radical entre o belo e o sublime é que enquanto o prazer relativo ao primeiro não envolve a faculdade de apetição e se funda na harmonia sentida pelo sujeito entre imaginação e entendimento, o segundo funda-se num contraste entre a imaginação e a razão. Enquanto o belo “comporta diretamente um sentimento de promoção da vida”12, e por isso é um prazer positivo e sereno, “o sentimento do sublime é um prazer que surge só indiretamente, ou seja, ele é produzido por um sentimento de uma momentânea inibição das forças vitais e pela efusão imediatamente consecutiva e tanto mais forte das mesmas (..)”13. Trata-se de um prazer negativo, surgido de uma inadequação entre as faculdades e que é resistente a qualquer interesse dos sentidos. As expressões utilizadas para definir este sentimento o exprimem: admiração, respeito, comoção, abalo, estupefação, medo, pavor e estremecimento. No sublime-matemático, a imaginação é confrontada com grandezas que ultrapassam todo padrão de avaliação dos sentidos. Não se trata de uma avaliação lógica, realizada através de conceitos numéricos ( e portanto pelo entendimento), mas de uma avaliação estética (realizada na simples intuição, “segundo a medida ocular”14). Nesta contemplação de algo absolutamente grande, a imaginação, na tentativa de avaliar sua extensão e compreender o objeto, força seus próprios limites e nela então “encontrase uma aspiração ao progresso até o infinito”15, no que se choca com a razão, “que exige
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a totalidade de todas as grandezas dadas”16. Inicialmente é sentido um desprazer causado por esta inadequação da faculdade de imaginação com a grandeza a ser avaliada e com os propósitos da razão, mas este desprazer é seguido de um prazer resultante de um acordo subjetivo da imaginação com a razão, que funda uma disposição de ânimo que é o sentimento de sublimidade. De uma forma muito particular, este sentimento evoca uma disposição de ânimo moral: No ajuizamento de uma coisa como sublime, a faculdade de juízo estética refere a imaginação à razão para concordar subjetivamente com suas idéias (sem determinar quais), isto é, para produzir uma disposição de ânimo que é conforme e compatível com aquela que a influência de determinadas idéias (práticas) efetuaria sobre o sentimento. 17
Mas a sublimidade - Kant o repete exaustivamente - não concerne ao objeto e sim à disposição de ânimo do sujeito e ao sentimento de uma destinação supra-sensível de nossas idéias18. O que ativa em nós o sentimento desta destinação supra-sensível é a superioridade das idéias da razão sobre a imaginação, pois se esta inicialmente se mostra inadequada para a total compreensão do fenômeno, em seguida obedece às leis daquela. A inadequação da faculdade de imaginação, bem como o conflito desta com a razão - antes sentidos como um desprazer - passam a ser sentidos como um prazer, porque isto produz um sentimento de “que possuímos em nós uma razão pura, independente”19. É através da própria incapacidade de sua faculdade de imaginação que o sujeito descobre em si mesmo “uma faculdade ilimitada”20 e sua adequação ao exercício do ajuizamento estético. No dinâmico- sublime, o conflito da imaginação é também com a razão, mas agora do ponto de vista da faculdade de apetição (vontade). Agora, a imaginação deve arcar não com grandezas cuja avaliação ultrapassa sua capacidade, mas com a representação de poderes da natureza que suscitam o medo. Diante de tais poderes, a impotência para resistir ao medo se manifesta. Sucumbir à uma inclinação - o medo ou pavor - é
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totalmente o oposto do sentimento do sublime, que implica uma superação através da vontade. Os objetos da natureza denominados sublimes são aqueles cujo espetáculo proporcionam uma elevação da fortaleza da alma acima de seu nível médio e permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência de espécie totalmente diversa, a qual nos encoraja a medir-nos com a aparente onipotência da natureza.21
De modo análogo ao que acontece no sublime-matemático, também aqui é através de uma impotência que é descoberta uma faculdade mais elevada. Faculdade cuja superioridade consiste em ajuizar-nos como independentes da natureza: tanto diante dos poderes da natureza exterior quanto das inclinações de nossa natureza sensível ( como o medo e o pavor), “com que a humanidade em nossa pessoa não fica rebaixada, mesmo que o homem tivesse que sucumbir àquela força”22. Na “Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, Kant explicita o modo pelo qual o belo e o sublime vinculam-se ao sentimento moral: “O belo prepara-nos para amar sem interesse algo, mesmo a natureza; o sublime, para estimá-lo, mesmo contra o nosso interesse (sensível)”23. O juízo de gosto é autônomo, não possui finalidades morais nem é condicionado por interesses práticos, contudo, prepara-nos para o advento da lei moral, como esclarece Deleuze: A unidade indeterminada e o acordo livre das faculdades não constituem unicamente o mais profundo da alma, mas preparam ainda o advento do mais alto, ou seja, a supremacia da faculdade de desejar, e tornam possível a passagem da faculdade de conhecer à faculdade de desejar.24
Vontade, prazer e desinteresse em Schopenhauer O que move Schopenhauer a escrever O mundo como Vontade e Representação é o problema da existência, a busca de uma explicação para a dor e o sofrimento
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humanos25. Apesar da proximidade e admiração por Kant, seu projeto toma rumo próprio, orientado por essa preocupação. A distinção kantiana entre coisa em si e fenômeno é o ponto de partida, mas Schopenhauer os reinterpreta, na intenção de ir além de seu mestre, afirmando que sua filosofia realiza plenamente essa distinção: A coisa em si é rebatizada de vontade, e o que Kant denominara fenômeno, passa a ser chamado de representações. O mundo se apresentaria então sob esses dois aspectos interdependentes. As 4 partes do Mundo como Vontade e Representação. descrevem a trajetória que vai da representação à vontade, para retornar à representação e novamente à vontade, somando 2 pontos de vista distintos a respeito de cada um, num movimento de refluxo e troca especular, de jogo externo/interno.26 Visto como representação, o mundo é uma pluralidade de fenômenos ou de objetos. Mas como vontade, o mundo tem uma essência única, da qual os fenômenos são manifestações. Antes porém de se objetivar nos diversos fenômenos, de se exprimir na multiplicidade de indivíduos, a vontade se objetiva em formas eternas, imutáveis, arquetípicas: as idéias, que são não apenas a sua objetivação mais imediata como a mais adequada.27 A Vontade nos é inacessível (ao modo da coisa em si kantiana), as idéias porém podem ser objeto de conhecimento. Há portanto dois modos distintos de conhecimento, originários dessa dupla natureza do mundo: o conhecemos enquanto representação através do “princípio de razão suficiente”, cujas modalidades são o tempo, o espaço e a causalidade, mas tais “dispositivos de nosso intelecto” não nos permitem acessar as idéias, as quais pode-se apenas intuir . A condição para o conhecimento das idéias é “a supressão da
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individualidade no sujeito cognoscente”28. É preciso tornar-se “sujeito puro do conhecimento, destituído de vontade, de dor, de temporalidade”29. Schopenhauer tenta conciliar o criticismo kantiano com o idealismo platônico, o uno com o múltiplo, reunindo um princípio monista (a vontade) com a multiplicidade dos fenômenos. A noção schopenhaueriana de vontade, no entanto, não deve ser entendida como uma faculdade humana , apenas . Não só no homem existe vontade, mas ela está presente em toda a natureza, porém em graus diversos de objetivação30. No ser humano, a vontade atinge seu máximo nível de complexidade. Previsão, deliberação, são completamente estranhos à vontade. Ela é uma força cega, que escraviza inclusive a razão. Dominado por esta vontade inconsciente e onipresente, o homem está condenado a uma existência de sofrimentos, dos quais só pode libertar-se pela renúncia da própria vontade. Todo querer se origina da necessidade, portanto, da carência, do sofrimento. A satisfação lhe põe um termo; mas para cada desejo satisfeito, dez permanecem irrealizados. (..) Enquanto nossa consciência é preenchida pela nossa vontade, enquanto submetidos à pressão dos desejos, com suas esperanças e temores, enquanto somos sujeitos do querer, não possuiremos bem-estar nem repouso permanente. (..) Destarte, o sujeito da vontade está constantemente preso à roda de Íxion, colhe continuamente pela peneira das Danaides, constitui o eternamente supliciado Tântalo.31
Mas há uma alternativa para o sofrimento: a liberação da vontade é possível através da contemplação estética. Contudo, o estado estético não a suprime completamente, apenas proporciona um apaziguamento provisório, é apenas a primeira etapa. A supressão definitiva só é possível no terreno ético, pelo santo ou pelo asceta32. A contemplação estética é também a via privilegiada de acesso às idéias. É no Livro III do Mundo como Vontade e Representação que encontramos a doutrina estética.
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Embora a retomada das idéias kantianas seja bastante visível na estética de Schopenhauer, a tentativa de conciliação com a teoria platônica das idéias o afasta consideravelmente de Kant. Se o prazer estético para este último é reflexivo e referido apenas ao estado do sujeito, para o primeiro existe não apenas esse lado subjetivo, mas também o objetivo, que diz respeito à idéia: Encontramos na contemplação estética dois elementos inseparáveis: o conhecimento do objeto, não como coisa individual, mas idéia platônica (..); e a consciência de si do sujeito cognoscente, não como indivíduo, mas como sujeito puro, independente da vontade, do conhecimento. (..) Também o prazer estabelecido na contemplação do belo será proveniente destes dois elementos, contribuindo, ora um, ora outro, conforme seja o objeto da contemplação estética. 33
O que acontece na contemplação estética é uma dupla libertação, tanto da parte do sujeito quanto do objeto. Ambos são arrancados do “curso do tempo e das relações”, abandonando temporariamente sua condição fenomênica de indivíduos. Estabelece-se um tipo de relação que é descrita como uma comunhão, onde o sujeito “abandona-se”, “perde-se” no objeto ( que já não é mais “coisa individual”, mas idéia)34. O efeito “apaziguador” exercido sobre a vontade é assim descrito: Quando um estímulo exterior ou uma disposição interior nos arrancam da torrente infinita do querer, libertando o conhecimento do serviço da vontade, a atenção não é mais dirigida para os motivos do querer, compreendendo as coisas livres de sua relação com a vontade, examinando-as sem interesse, sem subjetividade, de modo estritamente objetivo, abandonando-se a elas enquanto representações e não enquanto motivos; então se apresenta de um golpe aquele repouso, que tanto se buscou por aquela primeira via, instituindo um bem-estar total. 35(..) Disposição interior, predominância do conhecer sobre o querer, pode sob quaisquer circunstâncias provocar este estado. Isto provam estes admiráveis flamengos, que dirigiam uma tal intuição estritamente objetiva sobre os objetos mais insignificantes, erigindo um monumento permanente de sua objetividade e paz de espírito na natureza morta, que o observador estético não contempla com indiferença, já que lhe proporciona a disposição liberta da vontade própria do artista, indispensável para contemplar objetivamente coisas tão insignificantes, e reproduzir esta intuição com um tal juízo; e ao solicitar também o quadro a sua participação num tal estado, sua emoção será multiplicada pelo contraste da disposição própria, inquieta, turvada por intenso querer, em que se encontra no momento. 36
Mas não apenas pela mediação da arte este estado é possível. A natureza o estabelece de modo imediato.
94 Se a força interior de uma disposição artística realiza tudo isto; porém, esta disposição estritamente objetiva é facilitada e favorecida do exterior por objetos que lhe vêm ao encontro, pela opulência da bela natureza convidando a sua intuição, se impondo mesmo. Ela quase sempre é bem sucedida ao se revelar de modo súbito, ao nos arrancar, mesmo que só por instantes, à subjetividade, à servidão da vontade, e nos trasladar ao estado de conhecimento puro.37
Os exemplos acima descrevem a disposição relativa ao belo, sentimento no qual “o conhecimento puro se exerce sem luta, facilitando o conhecimento da idéia”38. No caso do sublime, a libertação da vontade igualmente acontece, porém o contato inicial com o objeto é marcado pela hostilidade. A descrição schopenhauriana deste estado lembra em muito algumas passagens da “Analítica do Sublime” de Kant, principalmente aquelas relativas ao sublime-dinâmico. Também aqui a vontade humana é confrontada com a onipotência da natureza. Mas, enquanto para Kant o sublime é uma ocasião para que o sujeito perceba em si próprio a presença de uma faculdade superior, em Schopenhauer a experiência do sublime revela não um conflito de faculdades, mas o “contraste da insignificância de nosso eu como indivíduo, como fenômeno da vontade, frente à consciência de nós mesmos como sujeito puro do conhecimento”39. Quando estes objetos (..) possuem uma relação hostil à vontade humana, como esta se apresenta em sua objetividade, o corpo humano, opondo-se a ela, ameaçando-a com uma superioridade que mina qualquer resistência, ou reduzindo-a ao nada por sua grandeza descomunal: o observador, porém, mesmo assim, não dirige sua atenção a esta impositiva relação hostil à sua vontade; mas apesar de percebê-la e reconhecê-la, dela se afasta conscientemente, arrancando-se violentamente à sua vontade e suas relações e, abandonado unicamente ao conhecimento, calmamente contempla estes objetos terríveis para a vontade como puro sujeito do conhecimento, assimilando apenas sua idéia estranha a qualquer relação, assim permanecendo prazeirosamente em sua observação, e em consequência elevado acima de si mesmo (..), então é preenchido pelo sentimento do sublime.40
Embora Heidegger41 tenha considerado este efeito próprio da experiência estética tal como a pensa Schopenhauer como “indiferença” e “interpretação errônea” do desinteresse kantiano, parece que não se pode acompanhá-lo nesta observação.
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Em primeiro lugar, porque a filosofia de Schopenhauer não é conduzida pelo desejo de se constituir como uma continuidade da filosofia kantiana, embora seja fortemente marcada por esta. A introdução de elementos platônicos e a consideração do prazer estético não apenas pelo lado subjetivo, mas também objetivo (relativo à idéia), bem como a sua idéia de desinteresse, não provém de um mau entendimento de Kant, mas da tentativa de achar um caminho filosófico próprio, que leva em conta influências diversas, como a de Leibniz, de Plotino, do budismo e da doutrina dos Vedas. Em segundo lugar, fica claro que a relação com o objeto na experiência estética não é de impassibilidade. Se há indiferença, é quanto à representação da existência do objeto, traço kantiano ainda bastante reconhecível (e que em sua estética assinala a diferença mais dignificante do belo em relação ao agradável e ao bom) . Suspender a vontade então não significa apatia diante do objeto que ocasiona a contemplação. A visão das idéias é “límpida vista do mundo”42. A contemplação livra o indivíduo de suas angústias quotidianas oriundas das intermináveis exigências da vontade, permitindo que ele esqueça temporariamente seus interesses . A obra de arte ( ou a contemplação da natureza) é capaz de “apaziguar”, “acalmar” a vontade porque remete o homem à visão da eternidade das coisas, fazendo-o esquecer-se de si mesmo e do mundo fenomenal em que está imerso para colocá-lo frente a frente com a verdade mais recôndita da existência. Durante a contemplação, a “roda de Íxion” pára de girar. A experiência estética é definida pelo próprio Schopenhauer como desinteressada, mas Nietzsche discorda de seu mestre ao apontar seu lado “interessado”: ela é um modo velado de ascetismo, que acaba por utilizar a arte como um meio de “elevação” moral. (..) ele nunca se cansou de exaltar esta libertação da “vontade” como a grande vantagem e utilidade do estado estético. (..) Schopenhauer descreveu um efeito do belo,
96 o efeito acalmador da vontade - será ele regular? Stendhal, natureza não menos sensual, mas de constituição mais feliz que Schopenhauer, destaca outro efeito do belo: “o belo promete felicidade”; para ele, o que ocorre parece ser precisamente a excitação da vontade (“do interesse”) através do belo. E não se poderia, por fim, objetar a Schopenhauer mesmo que ele errou em se considerar kantiano neste ponto, de modo algum compreendeu kantianamente a definição kantiana do belo - que também a ele lhe agrada o belo por “interesse”, inclusive pelo mais forte e pessoal interesse, o do torturado que se livra de sua tortura?43
Nietzsche e a impossibilidade de desinteresse Em 1872, Quando Nietzsche publica O Nascimento da Tragédia, encontra-se ainda bastante vinculado a Kant e a Schopenhauer. Embora estes não sejam poupados dos golpes de seu “martelo filosófico” nas obras posteriores, ainda podemos encontrá-los mencionados neste seu primeiro livro como uma espécie de heróis, como “grandes naturezas com disposições universais”,44 cujo maior mérito foi denunciar a ilusão otimista da ciência, ilusão inaugurada com a metafísica socrática, que acreditava ser possível atingir os “mais profundos abismos do ser pelo fio condutor da causalidade”.45 Kant e Schopenhauer (...) souberam utilizar com incrível sensatez o instrumento da própria ciência, a fim de expor os limites e condicionamentos do conhecer em geral e, com isso, negar definitivamente a pretensão da ciência à validade universal e a metas universais: prova mediante a qual, pela primeira vez, foi reconhecida como tal aquela idéia ilusória que, pela mão da causalidade, se arroga o poder de sondar o ser mais íntimo das coisas.46
Por ter examinado os limites do conhecimento e ter realizado a distinção entre o mundo fenomenal e a “coisa em si”, Kant pareceu neste primeiro momento, o protótipo do homem dotado de uma sabedoria trágica, capaz de penetrar no âmago da existência, adivinhando-lhe a plenitude por trás das aparências. Esta opinião não seria sustentada por muito tempo: já em 1878, em Humano, Demasiado Humano, “a coisa em si é digna de uma sonora gargalhada” e “vazia de significação”,47 e a cada novo livro de Nietzsche pode-se encontrar um predicado nada
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elogioso a Kant — “Kant, o decadente”; “Kant, o estropiado”; “operário da filosofia”; “o chinês de Köenisberg” etc. Esse furor crítico do novo posicionamento de Nietzsche em face da filosofia kantiana, nivelando-a com tudo o que desde Sócrates se produziu filosoficamente, tem como ponto de partida a moral. O projeto nietzscheano de “auto-supressão da moral” tem início, segundo o próprio filósofo, com Aurora. No Prefácio, Nietzsche reitera seus ataques a Kant e expõe com clareza os motivos de sua divergência: Para abrir espaço para um “reino moral”, Kant se viu obrigado a anexar um mundo indemonstrável, um “além” lógico - era justamente para isso que ele necessitava de sua Crítica da razão pura. Para exprimí-lo de outro modo: ele não teria necessitado dela, se para ele isto não tivesse sido mais importante do que tudo, tornar o “reino moral” invulnerável, de preferência, ainda, invulnerável à razão - ele sentia, justamente, a vulnerabilidade de uma ordenação moral das coisas, da parte da razão, muito fortemente! Pois em face da natureza e da história, em face da radical imoralidade da natureza e da história, Kant era, como todo bom alemão desde antigüidades, pessimista; acreditava na moral, não porque ela é demonstrada pela natureza e pela história, mas a despeito de que a natureza e a história constantemente a contradizem. (..) Mas não são os juízos de valor lógicos os mais profundos e mais radicais, até os quais a bravura de nossa suspeita desceu: a confiança na razão, com a qual a validez desses juízos permanece ou perece, é, como confiança, um fenômeno moral.48
Mesmo as objeções dirigidas à estética kantiana encontram aí sua raiz. Nietzsche considera o sistema kantiano todo como contra-natural porque afirma a dimensão suprasensível e funda a liberdade humana nesta esfera. No entendimento do filósofo, não há como privilegiar o inteligível no homem, livrá-lo de sua dimensão mais real: o corpo é mais que a razão,49 e ambos encontram-se misturados a ponto de não se poder distingui-los, quanto mais designar a razão como pura. A vontade não pode obedecer a uma “faculdade superior” porque a própria noção de faculdades distintas é estranha ao “psicólogo” Nietzsche; bem como a noção de superioridade só pode ser compreendida num contexto provisório e relativo, jamais como um atributo definitivo e absoluto de uma força ou de uma vontade.50 Isso significa que é impossível admitir uma qualquer legalidade da
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vontade.51 No modo como esta se estabelece, impera o acaso; nenhuma regra pode ser deduzida ou imposta. A gênese da vontade é incognoscível, por esse motivo é impossível julgar um ato como ordenado pela razão: Toda ação (relativamente aos preceitos aos quais está referida) é e permanece uma coisa impenetrável, (...), nossas opiniões acerca do que é “bom”, “nobre”, “grande”, jamais podem ser demonstradas por nossos atos, pois todo ato é incognoscível (...), certamente nossas opiniões, nossas apreciações e nossas tábuas de valores fazem parte das alavancas mais poderosas no mecanismo de nossas ações, mas que para cada ação particular a lei de sua mecânica é indemonstrável. 52
É a própria divisão kantiana entre o que é “natural” e o que é “moral” no homem que parece a Nietzsche ilícita e excessiva. Todos os seus esboços de definição de homem — e isso é reconhecido pelo próprio53 — certamente vão na direção contrária à de Kant: o homem, como Nietzsche o concebe, não se distingue do animal por suas faculdades racionais ou morais.54 A moral e a cultura mesmas, em suas tentativas de “divinização” do homem, promoveram antes sua desumanização. A desagregação dos instintos que acompanhou este processo foi intensa, resultando não numa “elevação” ou “evolução” da espécie, mas numa domesticação e desvitalização do homem-animal de rapina, que em sua expressão mais degenerada se tornou animal de rebanho, “animal doente”.55 A simples consideração da hipótese kantiana de um “homem-noumeno”, sujeito às leis de um mundo inteligível (um mundo moral) livre dos impulsos sensíveis, é, portanto, inadmissível para Nietzsche: nas perspectivas humanas, nos juízos e avaliações considerados “morais”, é ainda o homem enquanto animal (animal gregário) que avalia “fisiologicamente”.56 A própria moral é proveniente da sensibilidade, e o que é “moral” tem a mesma origem do que é “imoral”,57 já que os instintos e a “natureza” em si mesmos não são “morais” ou “imorais” nem possuem a priori e definitivamente qualquer valor absoluto (mau, bom, certo).58 Quem lhes atribui valores é o homem.
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É deste ponto de vista que o imperativo categórico kantiano e a autonomia59 são postos em questão, pois segundo o entendimento de Nietzsche, querem redimir a vontade inventando um mundo inteligível, inatingido pelo caos das sensações e pelas imposições dos instintos. Nas suas várias críticas ao “desinteresse” kantiano, Nietzsche não está se referindo apenas a um conceito pertencente ao âmbito da estética: a contemplação livre de qualquer interesse lhe parece tão impossível quanto uma ação moral desinteressada. A vontade, os instintos, são sempre interessados, e é impossível suspendê-los (ainda que temporariamente) ou alcançar um estado no qual eles não existam. Todas as relações do homem com o mundo, quer no âmbito do conhecimento, das relações interpessoais ou da arte ( tanto do ponto de vista do artista quanto do espectador) são permeadas por seus impulsos inconscientes, pelos interesses de uma vontade da qual ele só conhece os reflexos e que se manifesta na consciência de um modo muito vago. Daí o “diagnóstico” a respeito de Kant, válido também para Schopenhauer: como todos os filósofos anteriores (desde Platão), o pensamento de ambos surgiu de um desprezo dos sentidos, de um desejo de ascetismo. É através da sua doutrina do perspectivismo que Nietzsche quer evitar recair neste mesmo “equívoco”. Supondo que esta vontade encarnada de contradição e antinatureza seja levada a filosofar: onde descarregará seu arbítrio mais íntimo? Naquilo que é experimentado de modo mais seguro como verdadeiro, como real: buscará o erro precisamente ali onde o autêntico instinto de vida situa incondicionalmente a verdade. Fará, por exemplo, como os ascetas da filosofia Vedanta, rebaixando a corporalidade a uma ilusão, assim com a dor, a multiplicidade, toda a oposição conceitual de “sujeito” e “objeto” - erros, nada senão erros! Recusar a crença em seu Eu, negar a si mesmo sua “realidade” - que triunfo! (..). (Dito de passagem: mesmo no conceito kantiano de “caráter inteligível das coisas” resta ainda algo desta lasciva desarmonia dos ascetas que adora voltar a razão contra a razão: pois “caráter inteligível” significa, em Kant, um modo de constituição das coisas, do qual o intelecto compreende apenas que é, para o intelecto, absolutamente incompreensível.) - Devemos afinal, como homens do conhecimento, ser gratos a tais resolutas inversões de perspectivas e valorações costumeiras, com que o espírito de modo aparentemente sacrílego e inútil, enfureceu-se consigo mesmo por tanto tempo:
100 ver assim diferente, querer ver assim diferente, é uma grande disciplina e preparação do intelecto para a sua futura “objetividade” - a qual não é entendida como “observação desinteressada” (um absurdo sem sentido), mas como a faculdade de ter seu pró e seu contra sob controle e deles poder dispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas. De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento”, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si”; tudo isto pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e sem sentido. Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? - não seria castrar o intelecto?...60
Apesar de ter encontrado em Schopenhauer a inspiração para um conceito mais “terreno” de vontade, Nietzsche vai cada vez mais se afastando de seu ex-mestre, pois percebe que a vontade, tal como este a entende, é um prolongamento de proposições moralistas e preconceitos populares, funcionando como um princípio legitimador transcendente: Schopenhauer, ao admitir que tudo aquilo que existe é vontade, elevou ao trono uma mitologia antiga, parece nunca ter tentado a análise da vontade porque acreditava na simplicidade e imediaticidade da vontade como todos... quando o querer é simplesmente um mecanismo tão exercitado que quase escapa do olho do observador.61
É pelo conceito de vontade de poder que Nietzsche vai romper definitivamente com a noção schopenhauriana. A vontade de poder é transformada numa noção-chave que permite o acesso a vários outros: toda a sua axiologia, seu projeto de transvaloração e seu ideal de além do homem só podem ser compreendidos a partir de uma visão da existência cujo centro é ocupado pelo crescimento, pelo dinamismo, pela afirmação da(s) vontade(s). É dessa perspectiva que nasce outra de suas objeções, desta vez endereçada ao niilismo schopenhauriano: ao postular a negação da vontade, Schopenhauer se teria
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revelado um negador da vida, um moralista, um defensor do ideal ascético, um continuador dos ideais cristãos: Schopenhauer (...) é um caso de primeira importância para um psicólogo: a saber, como tentativa malignamente genial de argumentar, em favor de uma total desvalorização niilista da vida, precisamente com as instâncias opostas, as grandes auto-afirmações da “vontade de vida” as formas mais exuberantes da vida. Interpretou sucessivamente a arte, o heroísmo, o gênio, a beleza, a grande compaixão, o conhecimento, a vontade de verdade, a tragédia, como derivações da “negação”, ou da necessidade de negação, da “vontade”... 62
Localiza-se aqui a ruptura mais radical entre Schopenhauer e Nietzsche: para o primeiro, a vontade é a origem dos males e sofrimentos humanos e a arte é um modo de livrar-se desta pressão ainda que temporariamente. Já em Nietzsche, a arte funciona como estimulante para a vida. Os atributos da vontade de poder são, inclusive, “artísticos”: ela é força plasmadora, formadora, criadora (criadora de valores, de novas perspectivas, de novas formas de vida). Também naquilo que para Nietzsche é o belo, o crescimento da vontade se manifesta e serve como critério avaliador. Para a formação do Belo e do Feio. - O que, sob o ângulo estético, nos desagrada instintivamente, é demonstrado como prejudicial e perigoso para o homem, como digno de desconfiança, após uma longa experiência; o instinto estético que fala bruscamente (por exemplo, na repugnância), contém um julgamento. Nesse sentido, o belo encontra-se entre as categorias gerais dos valores biológicos do útil, do benfazejo, do que aumenta a vida: mas somente pelo fato que um grande número de excitações que apenas fazem pensar levemente nas coisas e nas condições agradáveis, e que se conexionam, nos oferecem o sentimento do belo, quer dizer, o aumento do sentimento de potência (- essas não são somente coisas, mas também sensações que acompanham essas coisas, ou seus símbolos). Assim o caráter do belo e do feio é reconhecido como condicionado; e isso relativamente aos nossos valores inferiores de conservação. Partir daí para determinar o belo e o feio não teria sentido. Não existe o belo nem o verdadeiro. Ainda nas minúcias se trata de condições de conservação de uma certa espécie de homens; assim o homem de rebanho experimentará o sentimento de valor do belo em face de outros objetos diferentes dos que experimentarão o homem de exceção e o super-homem. (..) Os julgamentos sobre o belo e o feio são míopes (-têm sempre a razão contra si); mas persuadem no mais alto grau; dirigem-se aos nossos instintos, quando rapidamente se decidem, pronunciando seu sim e seu não, antes que a razão possa tomar a palavra (...). Não é possível permanecer objetivo, quer dizer, suspender a força que interpreta, liga, enche, inventa (- essa força produz o encadeamento das afirmações de beleza). O aspecto de uma “bela mulher”... Logo: 1) o julgamento estético é míope, só vê as conseqüências imediatas; 2) envolve o objeto que o excita num encantamento condicionado pela associação de
102 diversos julgamentos estéticos - mas esse encantamento permanece absolutamente estranho à essência desse objeto. Ter em face de uma coisa o sentimento do belo, eqüivale necessariamente a ter um sentimento falso (...). Toda arte atua como sugestão sobre os músculos e sentimentos, que no homem ingênuo e artístico são primitivamente ativos: mas somente fala aos artistas - fala a essa sutil mobilidade do corpo. A concepção do “leigo” é um erro. O surdo não é uma categoria os que ouvem bem.63
Conclusão A estética nietzscheana não pode ser compreendida senão pelo pela minuciosa investigação e entendimento do que seja a vontade de poder mesmo. Sua “má interpretação” de Kant e do conceito de desinteresse tem sua gênese em divergências que constituem quatro aspectos fundamentais de sua filosofia: 1. Se Kant e Schiller buscaram integrar a dimensão sensível em suas respectivas concepções de homem, ainda o fizeram de forma insuficiente, prolongando o erro de seus antecessores. O projeto de “retradução do homem na natureza”, segundo Nietzsche, não parte da tentativa de uma delimitação do que pertence ao domínio da razão e do que pertence ao domínio da sensibilidade, mas do reconhecimento da impossibilidade de distinção dos dois. É através de sua concepção “pulsional” de homem que ele se afasta de ambos e gradativamente também de Schopenhauer. 2. Em conseqüência disto, não há possibilidade de distinguir o belo do bom e do agradável. Toda experiência estética envolve os três de modo indistinto. O prazer não provém de uma reflexão do sujeito sobre seu estado e de seu sentimento de harmonia das faculdades, mas do sentimento de acréscimo de potência. O movimento reflexivo realizado pelo sujeito kantiano é inadmissível para Nietzsche. Assim como é impossível isolar o que é da ordem dos sentidos e o que é da ordem da razão, o que se torna consciente em nós não traduz o que se passou a nível inconsciente em sua totalidade
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e com clareza64, o máximo que se consegue na observação do próprio estado subjetivo é da ordem da interpretação, apenas, e uma interpretação sempre sujeita a erros, pois nunca se terá acesso ao que realmente ocorreu e por qual “interesse” subconsciente se está deixando-se guiar. 3. Se houvesse alguma possibilidade de aproximação da estética kantiana com a de Nietzsche, isto deveria ser procurado na análise do sublime em suas semelhanças com a noção nietzscheana de dionisíaco (como o disforme, desmedido e de certo modo temível) e em sua concepção de belo enquanto sentimento de que a vontade superou resistências e sobrepujou a si mesma.
Notas
1
Faculdade de apetição é a tradução de Valerio Rohden e Antonio Marques para Begehrungsvermögen, que pode ser traduzida também por faculdade de desejar, conforme consta em outras traduções em língua portuguesa. 2 Kant, Crítica da Faculdade do Juízo. Trad. Valerio Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993. Introdução, III, pág. 23. 3 Ibid, IX, pág. 39. 4 Cf. CFJ, “Analítica do Belo”, §3, pág. 52. 5 Ibid, §4, pág. 54. 6 Ibid, pág. 52. 7 Idem. 8 Ibid, §5, pág. 55. 9 Ibid, pág. 54. 10 Idem. 11 Cf. CFJ, “Analítica do Sublime”, §23, pág. 89 e §24, pág. 92. 12 Ibid, pág. 90. 13 Idem. 14 Ibid, §26, pág. 96. 15 Ibid, §25, pág. 96. 16 Ibid, §26, pág. 100. 17 Ibid, pág. 102. 18 Cf. idem. 19 Ibid, §27, pág.105. 20 Idem. 21 Ibid, §28, pág. 107. 22 Ibid, pág. 108. 23 Pág. 114. 24 A Filosofia Crítica de Kant. Lisboa, Edições 70, 1963. Pág. 58. 25 Cf. Pernin, Marie-José. Schopenhauer: Decifrando o Enigma do Mundo. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro, Zahar, 1995. 26 Alternadamente, vontade e representação são analisados do ponto de vista objetivo e subjetivo, como os subtítulos de cada livro explicitam: Livro I: “O mundo como representação. Primeiro ponto de vista: a razão submetida ao princípio de razão suficiente: o objeto da experiência e da ciência.” Livro II: “O mundo como vontade. Primeiro ponto de vista: a objetivação da vontade.” Livro III: “O mundo como representação. Segundo ponto de vista. A representação considerada independentemente do princípio de razão. A Idéia platônica. O objeto da arte.” Livro IV: “O mundo como vontade. Segundo ponto de vista: chegando a conhecer-se a si mesma a vontade se afirma e depois se nega.” Cf. Pernin, Marie-Louise, op. cit., pág. 18. 27 Cf. Schopenhauer, Arthur: O Mundo como Vontade e Representação - III Parte. Trad. Wolfgang Leo Maar. São Paulo, Nova Cultural, 1988. §30 e §31. 28 Ibid, §30, pág. 5. 29 Ibid, §34, pág. 13. 30 Cf., por exemplo, §43, §44 e §45, onde as diversas artes são postas em relação com os diversos graus “evolutivos” da vontade nos três reinos. 31 §38. 32 Cf. Brum, José Thomaz: “Arte e Ascese em Schopenhauer” in Gávea n o 10. Rio de Janeiro, PUC, março de 1993. Pág. 90. 33 MVR, III Parte, §38. 34 Cf. no final do mesmo parágrafo; “(..) dissolução na intuição, perda no objeto. (..) A coisa individual observada se eleva à idéia de sua espécie.” 35 Idem. 36 Idem. 37 Idem. 38 Ibid, §39, pág. 31. 39 Ibid, pág. 34. 40 Ibid, pág. 30. 41 Cf. Nietzsche I. Trad. Pierre Klossowski, Paris, Gallimard, 1990. “La doctrine du Beau chez Kant. Son interprétation erroné par Schopenhauer e Nietzsche. Pág. 101 e segs. 42 Cf. §36, pág. 18. 43 Nietzsche, Friedrich: Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Brasiliense, 1990. Terceira Dissertação, §6, pág. 114. 44 O Nascimento da Tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, § 18, p. 110. 45 Ibid., § 15, p. 93. 46 Ibid., p. 110. 47 “Humano Demasiado Humano” (Vol. I), in Obras Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo, Abril Cultural, 1978, 2ª edição (Os Pensadores), § 16, p. 94.
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“Aurora” in Obras Incompletas, op. cit., Prefácio, §3, pág.156 e §4, pág. 157. Cf. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil, 1989. Parte I, “Dos desprezadores do corpo”, p. 51: “Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. (...) Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão”, e “Fragments Posthumes Autonne 1887-Mars 1888” in Oeuvres Philosophiques Complètes., t. XIII. Trad. Pierre Klossowski. Paris, Gallimard, 1976. Pág. 236: “O que chamamos ‘corpo’ e ‘carne’ têm muito mais importância: o resto é um pequeno acessório. Continuar a tecer a tela da vida, de maneira que o fio se torne cada vez mais potente, eis a tarefa. Mas consideram-se somente o coração, a alma, a virtude, o espírito, que conspiram para perverter essa tarefa essencial, como se eles fossem essa tarefa”. 50 Cf. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. § 22, p. 28: “(...) cada poder tira, a cada instante, suas últimas conseqüências”. 51 Cf. “Fragments Posthumes début 1888-début Janvier 1889”.in Oeuvres Philosophiques Complètes, t. XIV. Trad. Jean-Claude Hémery. Paris, Gallimard, 1977. P. 56: “As ‘coisas’ não se comportam regularmente, segundo uma regra: não há coisas, (é uma ficção nossa): elas não se comportam sob o constrangimento de uma necessidade. (...) O grau de resistência e o grau de preponderância — eis do que se trata em tudo o que acontece: se nós, por comodidade, sabemos expressá-lo em cálculos para nosso uso, por fórmulas e leis, tanto melhor para nós! Mas pelo fato de imaginá-los obedientes não introduzimos moralidade no mundo”. 52 Gaia Ciência. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Norberto de Paula Lima. São Paulo, Hemus, 1981. Livro IV, § 335, p. 217. 53 No aforismo 202 de Além do Bem e do Mal, Nietzsche ironiza as objeções que lhe eram dirigidas por suas concepções “baixas” de homem: “Já sabemos como soa ofensivo incluir o homem, cruamente e sem metáfora, entre os animais; mas nos é imputado quase como culpa o fato de empregarmos sempre, em relação aos homens das ‘idéias modernas’, as expressões ‘rebanho’, ‘instintos de rebanho’ e outras semelhantes. Que importa! Não podemos agir de outra forma: pois precisamente nisso está nossa nova visão”. 54 Cf. Aurora, op. cit., Livro I, § 26: “Os inícios da justiça, assim como os da prudência, comedimento, bravura — em suma, de tudo o que designamos com o nome de virtudes socráticas, é animal: Uma conseqüência daqueles impulsos que ensinam a procurar por alimento e escapar dos inimigos. Se ponderamos agora que também o mais elevado dos homens só se elevou e refinou justamente no modo de sua alimentação e no conceito de tudo aquilo que lhe é hostil, não deixará de ser permitido designar todo o fenômeno moral como animal”. 55 Cf. Genealogia da Moral, op. cit., 1ª dissertação, § 11: “Supondo que fosse verdadeiro o que agora se crê como verdade, ou seja, que o sentido de toda cultura é amestrar o animal de presa ‘homem’, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico, então deveríamos tomar aqueles instintos de reação e ressentimento (...) como instrumentos da cultura. (...) O que constitui hoje nossa aversão ao homem? (...) Não o temor, mas, sim, que não tenhamos o que temer no homem; que o verme ‘homem’ ocupe o primeiro plano, e se multiplique (...)”. 56 Cf. Além do Bem e do Mal, op. cit., § 268: “Quais os grupos de sensações que dentro de uma alma despertam mais rapidamente, tomam a palavra, dão as ordens: isso decide a hierarquia inteira de seus valores, determina por fim a sua tábua de bens. As valorações de uma pessoa denunciam algo da estrutura de sua alma e aquilo em que ela vê suas condições de vida, sua autêntica necessidade”. 57 Cf. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Delfim Santos Filho. Lisboa, Guimarães, 1985. “Os melhoradores da humanidade”, § 1: “Não existem fatos morais. O juízo moral tal como o religioso baseia-se em realidades que não o são. A moral é unicamente uma interpretação de certos fenômenos, dito de forma mais precisa, uma interpretação falsa”, e “Fragments Posthumes Autonne 1887-Mars 1888”. Op. cit., p. 134: “Não há senão intenções e atos imorais. (...) Toda essa distinção entre ato ‘moral’ e ‘imoral’ parte do princípio pelo qual tanto os atos morais como os imorais são atos de livre espontaneidade (...)”, e também p. 178: “Minha intenção é mostrar a homogeneidade absoluta de tudo que acontece, e emprestar à diferenciação moral somente um valor de perspectiva: mostrar que tudo quanto é louvado como moral é idêntico, por sua essência, a tudo que é imoral, e somente se tornou possível, como toda evolução da moral, por meios imorais e visando fins imorais — ao inverso, demonstrar como tudo o que é descrito como imoral é, no ângulo econômico, superior e essencial; e como a evolução para uma maior abundância de vida tem também, como condição necessária, o progresso da imoralidade (...)”. 58 Cf. Gaia Ciência, op. cit., Livro IV, § 301, p. 197. 59 Segundo a definição de Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Trad. Paulo Quintela, Lisboa, Edições 70, 1960, Segunda seção, p. 85): “A autonomia da vontade é esta propriedade que a vontade possui de ser ela própria sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de tal modo que as máximas da escolha estejam simultaneamente incluídas no querer mesmo, como lei universal. Que esta regra prática seja um imperativo, quer dizer, que a vontade de todo o ser racional esteja necessariamente ligada a ela como condição, é coisa que não pode demonstrar-se pela simples análise de conceitos nela contidos, pois se trata de uma proposição sintética... (...) Pela simples análise dos conceitos da moralidade podese, porém, mostrar muito bem que o citado princípio de autonomia é o único princípio da moral. Pois dessa maneira se descobre que esse seu princípio tem de ser um imperativo categórico e que este não manda nem mais nem menos do que precisamente esta autonomia mesma”. 60 Genealogia da Moral, op. cit., III Dissertação, §12, pág. 132. 61 Gaia Ciência, op. cit.., § 127, p. 135. 62 Crepúsculo dos Ídolos op. cit., “Incursões de um Intempestivo”, § 21, p. 98. 63 Vontade de Potência. Trad. Mário D. Ferreira dos Santos. Rio de Janeiro, Tecnoprint, s/d. Parte III, “A Vontade de Potência como Arte.” §356. 49
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A este respeito, p. ex., o célebre §333 de Gaia Ciência, Livro IV, pág. 213: “O que é conhecer? - Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere! - diz Spinoza com esta simplicidade e elevação que lhe são próprias. Este intelligere, o que vem a ser em última instância enquanto forma pela qual as outras três coisas se nos tornam sensíveis de uma só feita? O resultado de diferentes instintos que se contradizem , do desejo de troçar, de lamentar ou de maldizer? Antes que o conhecimento seja possível, foi preciso que cada um desses instintos apreciasse incompletamente o objeto ou evento; então começa a luta entre esses juízos incompletos e o resultado é por vezes uma pacificação, uma aprovação das três facções, uma espécie de justiça e de contrato; pois através da justiça e do contrato todos esses instintos podem se conservar na existência e ter razão ao mesmo tempo. Nós que só encontramos em nossa consciência traços das últimas cenas de reconciliação, as regras definitivas das contas, pensamos conseqüentemente que intelligere é conciliação, justiça, bem, algo essencialmente oposto aos instintos, quando na verdade é simplesmente determinada relação dos instintos entre si. Por muito considerou-se o pensamento consciente como o pensamento por excelência; somente agora começamos a entrever a realidade; quer dizer, a maior parte de nossa atividade intelectual se efetua de um modo inconsciente e sem que nos apercebamos.”
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Notas de pesquisa sobre o estudo das vanguardas no Brasil1 Approaches to the study of avant-garde in Brazil
João Cezar de Castro Rocha Mestre em Literatura Brasileira pela UERJ Mestre em Literatura Comparada pela Universidade de Stanford Doutor em Literatura Comparada pela UERJ
Resumo Estudo do modernismo brasileiro através da retomada crítica do conceito de vanguarda. Pretende-se mostrar que tanto o modernismo quanto a vanguarda devem ser vistos como movimentos plurais. Por fim, defende-se que a reconstrução do contexto do dia-a-dia dos anos 20 é fundamental para este exercício de reavaliação.
Abstract An appraisal of Brazilian Modernism through the revaluation of the concept of the avantgarde. It is the author’s contention that both the Modernism and the Avant-garde are plural movements. Finally, it is suggested that the reconstruction of the context of the everyday life in the 1920s is fundamental to this approach.
Palavras-chave: Vanguarda; Modernismo; Crítica literária. Key-words: Avant-Garde; Modernism; Literary criticism
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0. Neste ensaio, apresento os resultados iniciais de uma pesquisa em andamento, cujo objetivo central é a reavaliação do modernismo brasileiro mediante uma retomada crítica do conceito de vanguarda. Portanto, advirto o leitor: nestas notas, ele deverá imaginar perguntas e não buscar respostas. Se, ao final da leitura, o leitor encontrar estímulo para desenvolver novas perspectivas, meu objetivo estará cumprido.
1 . Em seu diário, Franz Kafka observou que a literatura do ano 2000 seria a literatura lida no ano 20002. A aparente obviedade do comentário não deve ocultar sua agudeza: somos inevitavelmente contemporâneos de nosso tempo. Por isso, a questão do anacronismo se reveste de singular complexidade. Não há como evitá-lo completamente, pois tanto o objeto que elegemos quanto a abordagem que privilegiamos revelam como o presente recorta instantes passados, reconstrói situações e delineia temas de pesquisa. Esta condição, porém, não implica a impossibilidade de realizar investigações críticas historicamente fundadas. Pelo contrário, tal condição exige que o crítico explicite o lugar de seu discurso, tematizando os interesses que o orientam: estudar as vanguardas dos anos 20 significa sobretudo estudá-las a partir da perspectiva facultada pelo presente do analista. Trata-se então de refletir sobre tal perspectiva. Os anos 90 têm sido dominados pela idéia de globalização, com o conjunto de noções que a acompanham – integração de mercados; internacionalização da produção; desnacionalização de valores, etc. Tais noções são experimentadas especialmente através de novas tecnologias de informação, destacando-se as relacionadas à informatização da economia e do cotidiano. Neste contexto, reavaliar as vanguardas assume uma importância particular.
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De um lado, as vanguardas das primeiras décadas do século XX representaram o primeiro movimento artístico-político verdadeiramente internacional, mesmo internacionalista. Os meios desta internacionalização foram variados: os manifestos, ocasionalmente publicados em jornais de grande circulação3; as revistas criadas pelos diversos grupos e distribuídas amplamente4; as constantes viagens de artistas europeus às Américas e à África, assim como as viagens de artistas “periféricos” para a Europa, sobretudo, para Paris. Os exemplos são numerosos: as viagens de Blaise Cendrars ao Brasil e de Oswald de Andrade à Europa; a viagem de Marinetti ao Brasil em 1926 – aliás, neste ano, o francês e o italiano chegaram a encontrar-se em São Paulo 5 –; as estadas de Alejo Carpentier e de Vicente Huidobro em Paris; a permanência de Jorge Luis Borges na Espanha; a viagem de Antonin Artaud ao México, etc. Tal trânsito de informações foi possibilitado por avanços fundamentais nos meios de transporte e de comunicação6. Como o crítico e ensaísta Rubens Borba de Morais observou: “a renovação da literatura e da arte brasileiras sob o modelo de Paris não levou anos para nos atingir dessa vez, pela simples razão que em 1921-1922 as comunicações eram mais rápidas que na época de Gonçalves Dias. O tempo encurtou depois da guerra de 1914. Está encurtando cada vez mais”7. De fato, em alguma medida, o transatlântico, o telégrafo e o telefone – instrumentos utilizados com eficiência pelos vanguardistas – anunciaram o avião, o fax e o correio eletrônico – instrumentos indispensáveis ao cotidiano globalizado. Neste sentido, através da vivência tornada comum nos anos 90, podem-se iluminar aspectos do dia-a-dia dos anos 20 que permaneceram obliterados, já que as análises críticas tenderam a privilegiar quase que exclusivamente a dimensão estética dos movimentos de vanguarda, negligenciando fatos cotidianos que influenciaram decisivamente as concepções dos diversos movimentos de vanguarda.
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De outro lado, o desenvolvimento histórico das vanguardas estimula uma análise distanciada do nosso próprio presente. Ou seja, a deriva autoritária de muitos dos ideais utópicos das vanguardas serve como advertência para os que celebram somente os benefícios da globalização, sem refletir sobre possíveis impasses que ela pode trazer para países como o Brasil. Em outras palavras, ainda que sob formas diversas, a questão que preocupava aos vanguardistas latino-americanos dos anos 20 – a querela do universal e do local – parece presente nos atuais debates sobre os efeitos da globalização. Não se trata, por certo, de ignorar as diferenças entre as épocas, mas de explorá-las analiticamente. Em suma, estudar as vanguardas dos anos 20 com uma perspectiva conscientemente lastreada nos anos 90 tanto pode revelar aspectos negligenciados daquele momento histórico quanto pode iluminar aspectos sequer imaginados de nossa própria circunstância.
2. A necessidade de reavaliar o modernismo brasileiro não se baseia apenas no fato óbvio: a tarefa do crítico é a de propor novos ângulos quanto aos objetos estudados. No caso particular das vanguardas, tal tarefa assume uma relevância particular, como estudos recentes têm sugerido. A melhor maneira de demonstrá-lo consiste em recordar momento anterior, no qual, pelo contrário, o estudo da contribuição do modernismo estava demasiadamente limitado quer pelo compromisso quer pela recusa dos próprios críticos em relação ao tópico. Em 1944, Edgard Cavalheiro promoveu um “inquérito” destinado a recolher a opinião de intelectuais sobre a seguinte questão: “(…) o que virá depois da guerra? Ora, pergunta idêntica terá sido feita pela geração que nos precedeu, a geração que depois de
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1918 ditou modas literárias ou artísticas, sociais, ou políticas, a geração que fez a Semana de Arte Moderna, com todas as suas ramificações e desvios”8. Idêntica ressalva se encontra nos depoimentos de alguns intelectuais. Manoelito d’Ornelas, por exemplo, após louvar o movimento modernista – “foi a vibração mais alta de uma consciência nacional”9 –, não deixou de observar: “Houve exageros nessas exteriorizações. Exageros de cores e de detalhes”10. João Alphonsus assumiu um tom menos “objetivo” e fez de seu depoimento uma análise comparativa de obras de Mário de Andrade e Marinetti: “Aliás, quando Graça Aranha prefaciava em 1926 os manifestos futuristas11, já desde 1925 se publicara em São Paulo um livro muito mais importante pra todos nós: A Escrava que não é Isaura”12. O testamento desta geração, portanto, implicava um primeiro acerto de contas com o legado modernista. Em 1957, Homero Senna publicou República das letras, livro no qual enfeixou um conjunto de entrevistas realizadas ao longo da década de 40. Uma outra vez, o movimento modernista vem à tona na maior parte dos depoimentos, constituindo autêntica linha divisória. Agripino Grieco resumiu sua opinião numa fórmula muito comum na época: “a reação modernista de 1922 (…) foi útil e perniciosa”13. Graciliano Ramos, num artigo sintomaticamente denominado “Revisão do modernismo”, e bem à medida de sua prosa, foi muito mais incisivo. Ao ser perguntado sobre sua impressão do modernismo, não hesitou: “Muito ruim. Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti”14. Já Carlos Drummond de Andrade destacou a importância do movimento: “caracterizou-o (…) uma esplêndida liberdade de ação, visível na obra e no jeito de suas figuras representativas”15.
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Ainda hoje se encontra o mesmo tipo de engajamento nos mais diversos estudos. E, neste caso, pouco importa se o crítico está afinado com a radicalidade da Semana de Arte Moderna ou se discorda de sua veemência, uma vez que o resultado principal desta atitude consiste numa avaliação excessivamente comprometida. Difícil encontrar exemplo mais eloqüente que o de Josué Montello. Ao prefaciar uma importante antologia de textos sobre a história do movimento modernista, lamentou o ostracismo a que a figura de Coelho Neto foi relegada com um juízo surpreendente: “(…) sem a Semana de Arte Moderna, em 1922, e sem a conferência de Graça Aranha na Academia Brasileira, o Modernismo teria chegado aqui (…) por irradiação natural. E sem litígios nem sacrifícios”16 . Segundo tal perspectiva, muito melhor teríamos passado se, em fevereiro de 1922, a Semana de Arte Moderna não tivesse tentado apressar o futuro – como se um movimento de vanguarda pudesse ter outra vocação! Em 1949, Otto Maria Carpeaux já identificara a origem do problema, reconhecendo que “ainda não foi escrita, por motivos óbvios, a história do movimento modernista”. A obviedade se esclarece logo a seguir, na referência “a nossa visão míope de contemporâneos”17. Tão míope que, referindo-se ao ensino de literatura da primeira metade da década de 50, Fausto Cunha escreveu: “a poesia moderna ainda não penetrara nas escolas e nos colégios, que viviam no tempo do parnasianismo e do romantismo”18. Portanto, a proximidade temporal com a eclosão do modernismo necessariamente comprometeria os estudos críticos. A passagem do tempo, contudo, não parece ter resolvido inteiramente o dilema. Além do exemplo de Josué Montello, destacase a reflexão de Annateresa Fabris sobre a necessidade de reavaliação do modernismo: “(…) pois boa parte do que conhecemos do modernismo foi produzida por seus protagonistas e por uma geração de críticos e historiadores empenhados na defesa da
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causa da arte moderna”19. Conseqüentemente, encontra-se nesta observação justificativa para propor um estudo que reavalie o modernismo brasileiro. No entanto, como o problema não é exclusivamente brasileiro, pois idêntico engajamento pode ser encontrado nas teorias européias e norte-americanas, é necessário referir as principais tendências dos estudos contemporâneos sobre as vanguardas para oferecer uma justificativa mais bem fundada.
3. José Ortega y Gasset foi o responsável por um dos primeiros esforços de compreensão abrangente dos movimentos de vanguarda. Em La Deshumanización del Arte, publicado em 1925, sugeriu que a arte moderna era anti-humana. Com esta conceituação, o filósofo espanhol pretendia descrever a tendência dominante da arte moderna, embora a polêmica que acompanhou a recepção de sua obra tenha atribuído à fórmula conotação fundamentalmente pejorativa. Tal recepção foi especialmente comum entre os intelectuais latino-americanos, que em geral reagiram opondo à desumanização européia uma humanização que, segundo eles, seria tipicamente latino-americana20. Segundo Ortega y Gasset o caráter desumano decorreria da concentração na forma de expressão, fenômeno este que levava o artista a obliterar o tradicional conteúdo humano da arte. Ou seja: ao invés da representação de uma paisagem ou de uma ação humana, os pintores se dedicavam a explorar formas geométricas e a experimentar com a textura das cores; ao invés de evocar sentimentos e esperanças, os poetas decidiram inventar novas sonoridades e imaginar novas metáforas para a civilizaçao urbana; ao invés de narrar histórias ou descrever personalidades, os romancistas passaram a discutir a tradição do gênero e a inovar as formas da narrativa. A lista poderia prosseguir, mas o que importa é
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destacar a agudeza da análise de Ortega y Gasset, ainda que haja divergências com suas conclusões. De fato, a ênfase formal é um aspecto importante da arte moderna, embora em si mesmo tal aspecto não defina a especificidade das vanguardas históricas21. Em outras palavras, Ortega y Gasset identificou a tendência que posteriormente seria denominada metalinguagem e que realmente constitui um dos eixos da arte moderna. No mesmo ano de 1925, Guillermo de Torre publicou Literaturas Europeas de Vanguardia, inaugurando uma tradição destinada a perpertuar-se – a do artista de vanguarda que escreve memórias e, ao fazê-lo, procura assegurar seu lugar na história mediante a imposição de sua própria perspectiva. O paradoxo deste gesto merece ser assinalado. De um lado, a vanguarda22 procura romper com a tradição, de outro, as inúmeras memórias que os vanguardistas escreveram constituem uma tradição: a tradição da ruptura23. Aliás, o ponto máximo deste paradoxo foi alcançado com a criação de museus de arte moderna – e, aqui, como não lembrar da sugestão futurista de demolir museus e de queimar bibliotecas? O futurismo de Marinetti tornou esta contradição um fator constitutivo do próprio movimento, pois, tendo sido o primeiro grupo vanguardista organizado, buscou preservar a liderança das vanguardas através de um raciocínio no mínimo curioso: o futurismo, devido aos serviços prestados à causa da vanguarda no passado, deveria determinar seu presente, modelando pois o futuro do movimento. Abro parêntese para recordar que, ainda em 1925, Mário de Andrade publicou A Escrava que não é Isaura, importante declaração de princípios da arte moderna – e, como vimos, livro que João Alponshus considerava mais importante que os manifestos futuristas. Trata-se de um livro que se situa a meio caminho entre os textos de Ortega y Gasset e Guillermo de Torre. Mário esboçou a história da arte moderna, embora sem
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nenhuma pretensão historiográfica e, ao mesmo tempo, refletiu sobre sua motivação interna, isto é, a ênfase formal. Sem dúvida, com este livro, Mário pretendeu oferecer uma alternativa ao Espírito Moderno, de Graça Aranha, também publicado em 1925. No entanto, uma nova interpretação pode surgir a partir da comparação acima sugerida24. Entre 1935 e 1940, a conceituação das vanguardas atingiu um importante nível de explicitude através da polêmica que opôs Georg Lukács, firme defensor da arte realista e severo crítico das experiências vanguardistas, a Bertolt Brecht e Ernst Bloch, cúmplices na ampliação do conceito de realismo e na apreensão da radicalidade das vanguardas25. Posteriormente, Theodor Adorno retomará os termos desta discussão, privilegiando a estética de ruptura das vanguardas históricas. Segundo Lukács, as vanguardas não representavam uma verdadeira ruptura, pois seu esforço de dar conta da realidade das metrópoles através de uma poética fragmentária e simultaneísta correspondia ao desejo dos naturalistas de representar fielmente a natureza humana submetida aos influxos do meio. Em outras palavras, o engenho crítico de Lukács consistiu em equiparar os movimentos de vanguarda com o naturalismo, ou seja, ambos seriam tributários do paradigma representacional, embora os referentes fossem diversos – para o naturalismo, a natureza humana e a influência determinante do meio; para as vanguardas, as novas formas de percepção de tempo e espaço, além da influência determinante do meio urbano. Brecht e Bloch contestaram Lukács, destacando o conteúdo crítico das experimentações dos grupos de vanguarda. Para eles, o esforço da arte de vanguarda era mais radical do que o da arte realista, pois, enquanto esta buscava oferecer um quadro sintético da realidade, aquela procurava modificar a realidade, através de uma dupla estratégia. De um lado, a arte incorporaria elementos do cotidiano em sua construção. De outro, o próprio cotidiano assimilaria técnicas artísticas, a fim de combater
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a alienação imposta pelas relações capitalistas de produção. Eis o alvo da argúcia de Brecht e Bloch: em última instância, Lukács considerava que a arte das vanguardas colaborava para a manutenção da alienação e, deste modo, não podia ser incorporada numa teoria marxista da arte. Ora, Brecht e Bloch invertiam o sentido da crítica, afirmando que o objetivo final da arte de vanguarda era precisamente o fim da alienação, mediante a disseminação de um espírito crítico a partir de expressões artísticas radicalmente contrárias ao espírito burguês. Se conhecessem a poesia brasileira, sem dúvida Brecht e Bloch teriam recordado a “Ode ao burguês”, incluída por Mário de Andrade na Paulicéia desvairada: “Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, / o burguês-burguês!” 26. Isto é, o realismo se contentava em interpretar o mundo, ao passo que as vanguardas cumpriam fielmente a máxima marxista: não basta interpretá-lo, é preciso transformá-lo27. Depois do esforço inicial de Ortega y Gasset e da polêmica dos anos 30, outra importante contribuição surgiu em 1962, quando Renato Poggioli publicou Teoria dell’arte d’avanguardia28. As palavras inicias do “Prólogo” são sintomáticas da dificuldade que os vanguardistas causaram à crítica tradicional: “Em primeiro lugar, poucos pensadores, historiadores ou críticos se dignaram a estudar um dos fenômenos mais típicos e importantes da cultura moderna: a arte de vanguarda” 29. Para conduzir seu estudo, Renato Poggioli diferenciou tipos de popularidade e impopularidade. A popularidade imediata “é somente característica de best-sellers (…), de histórias de amor, de música popular, de programas de rádio e televisão, de romances policiais e filmes”30. Trata-se da popularidade definidora de produtos com os quais se estabelece um contato direto entre produto e público. “O que tem sempre ocorrido é uma popularidade mediada, embora hoje em dia ela ocorra com intensidade inédita”31. Este tipo de popularidade supõe o conhecimento parcial ou indireto de uma obra. Por exemplo, a figura do Dom Quixote é
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sempre mencionada, ainda que muito poucos tenham lido os dois volumes escritos por Cervantes. Em relação à arte de vanguarda, tal forma de popularidade pode ser atribuída menos a suas criações do que à curiosidade do público em relação à estranheza por elas provocada e, muitas vezes, ao interesse pela biografia dos próprios artistas – e quanto mais excêntrico seu comportamento, maiores as chances de despertar o interesse do público. No entanto, Poggioli localizou o elemento típico das vanguardas na distinção entre “impopularidade acidental” e “impopularidade substancial”32. O último tipo define a originalidade dos movimentos vanguardistas, já que seus membros pretendiam conscientemente rejeitar os valores do passado para inaugurar uma nova época. Por isso, tão importante quanto recusar tais valores era ser rejeitado pelo grande público: a rejeição provaria que o movimento renovador realmente ameaçava a velha ordem. Num manifesto de 11 de janeiro de 1911, “La voluttà d’esser fischiati”, os futuristas esclareceram a estratégia. O desejo de ser vaiado se explicava nos dois primeiros pontos do manifesto: tanto defende “o desprezo pelo público” quanto favorece “o horror ao sucesso imediato”33. Em ambos os casos, o complexo fenômeno sociológico do distanciamento do público em relação à arte moderna é transformado em justificativa estética da originalidade do gesto vanguardista. Ora, apesar dos méritos de sua abordagem, a argumentação de Poggioli se revela problemática. De um lado, subordina as diversas formas de popularidade e impopularidade a seu projeto de estabelecer uma continuidade entre a época do Romantismo e o período das vanguardas. De outro, atribui uma importância desproporcional à idéia do novo – o que, embora com uma ênfase distinta, também constituirá o limite da abordagem de Adorno. Isto sem mencionar que as possíveis conseqüências sociais da “impopularidade” não podem ser analisadas, uma vez
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que ela é considerada “substancial” ou “voluntária”. Deste modo, o crítico espelha o discurso de autolegitimação das vanguardas, pois a impopularidade substancial corresponde, no plano teórico, a uma racionalização do desejo futurista de ser vaiado. Na verdade, Poggioli compreende as vanguardas das décadas iniciais do século XX como se fossem o momento mais radical de uma longa história de renovação das formas de expressão. História que, tendo começado com o desejo romântico de superação dos valores neoclássicos, continuaria nos trabalhos de Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e, por fim, alcançaria os movimentos vanguardistas. Nesta perspectiva, como identificar o caráter específico das vanguardas das décadas iniciais do século XX, se a vanguarda parece antes designar uma categoria estética presente em momentos históricos diversos? A abordagem de Peter Bürger supera os limites da formulação de Poggioli. Partindo do conceito de “arte enquanto instituição”, Bürger estabeleceu uma corte nítido entre vanguardas e experiências de renovação lingüística. Segundo este conceito, “as obras de arte não são assimiladas como entidades em si, mas sim a partir de estruturas e condições institucionais que em grande parte determinam a função das obras” 34. Na verdade, o conteúdo do livro de Bürger não corresponde exatamente a seu título, pois, muito mais do que uma teoria da vanguarda, o autor se propõe a sistematizar o conceito de arte enquanto instituição. As vanguardas históricas são privilegiadas por representarem o primeiro momento em que as condições institucionais da arte foram conscientemente questionadas. Este é um ponto muito importante, embora ele seja sistematicamente negligenciado pelos críticos de Peter Bürger. De qualquer modo, o conceito de arte enquanto instituição permitiu a Bürger definir a especificidade das vanguardas históricas, diferenciando-as de experiências prévias,
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lastreadas sobretudo na experimentação lingüística. Em primeiro lugar, tais experiências estavam centradas em torno da idéia do novo – pressuposto que Poggioli e mais tarde Adorno atribuirão às vanguardas. Em segundo lugar, tais experiências terminaram favorecendo o afastamento do artista em relação à vida cotidiana. Pelo contrário, as “vanguardas históricas” – e a simples denominação escolhida por Bürger é sintomática da especificidade de sua definição – não podem ser compreendidas a partir desta categoria, pois, “embora o conceito do novo seja verdadeiro, ele é muito genérico e inespecífico para designar o que realmente importa numa ruptura de tal proporção”35. O objetivo das vanguardas históricas era a destruição das condições burguesas da arte enquanto instituição. A busca do novo, em última instância, ainda estava fundada na possibilidade de encontrar um modelo estético normativo, mesmo que se tratasse de uma norma reconhecidamente transitória. Aliás, o argumento mais persuasivo em relação a posições críticas engajadas também pode ser encontrado no livro de Peter Bürger. No último capítulo, analisando o debate entre Lukács e Adorno, Bürger demonstra como ambos partilhavam do mesmo pressuposto, embora estivessem situados em pólos opostos. Lukács recusava as experiências de vanguarda porque defendia o padrão normativo da estética realista. Pelo contrário, Adorno assumiu uma posição contrária precisamente porque estava baseado num outro padrão normativo: o das próprias vanguardas. Neste diálogo de surdos, a principal novidade implicada pela renovação artística das décadas iniciais deste século não podia ser apreciada. Nas palavras de Bürger: “Na história da arte, o sentido da ruptura provocada pelas vanguardas históricas não consiste na destruição da arte enquanto instituição, mas na destruição da possibilidade de impor normas estéticas como válidas a priori”36. Além disso, o emprego sistemático e simultâneo tanto de tradições
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muitas vezes adversárias quanto de toda sorte de material representa o desafio maior que as vanguardas históricas lançaram ao trabalho do analista. Bürger o reconheceu: “Que esta condição de disponibilidade de todas as tradições ainda permita a elaboração de uma teoria estética, no sentido em que tal teoria foi pensada de Kant a Adorno, é questionável”37. Ou seja, defender uma estética normativa equivale a uma postura prévanguardista — sobretudo se esta estética adotar a vanguarda como padrão normativo. Neste caso, produz-se o que Paul de Man denominou “retórica da cegueira” (“rethoric of blindness”). Trata-se de “paradoxal discrepância entre os pressupostos defendidos por críticos sobre a natureza da literatura, pressupostos nos quais seus métodos estão fundados, e os resultados efetivos de suas interpretações”38. Ora, os críticos e teóricos, cujos pressupostos se baseiam no caráter desestabilizador da arte de vanguarda, costumam adotar uma posição normativa ao advogarem que tal caráter constitui, em si mesmo, a “melhor” literatura. O trabalho das vanguardas, pelo contrário, baseava-se na recusa da imposição de qualquer norma. Ao fazê-lo, as vanguardas terminaram questionando a própria divisão de trabalho responsável pelo advento de subsistemas nas sociedades capitalistas avançadas, do qual resultara a autonomia da arte burguesa. Em outras palavras,sua crescente alienação no que se refere ao conjunto das relações sociais. Por isso, “a separação da arte em relação à práxis da vida se torna a característica fundamental da autonomia da arte burguesa”39. Desta situação, Bürger derivou a originalidade das vanguardas históricas, cujo objetivo máximo era a reintegração da arte no cotidiano, transformando o próprio dia-a-dia numa manifestação artística – em alguma mediada, retomando os argumentos de Brecht e Bloch. Conseqüentemente, “produtores e receptores deixam de existir. Só o que resta é o indivíduo que usa a poesia como
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instrumento para viver sua vida da melhor maneira possível”40. Esta seria a revolução permanente das vanguardas e o pressuposto subjacente à estetização do cotidiano dos próprios artistas, como se o dia-a-dia fosse uma obra de arte em potencial41. As vanguardas históricas pretendiam disseminar esta possibilidade, transformando cada cidadão num artista, cuja obra principal seria a condução renovada de sua vida. Entretanto, a concretização da utopia não poderia ser mais desalentadora: “nas sociedades capitalistas tardias, os propósitos das vanguardas são cumpridos, mas o resultado somente os tem desvalorizado”42. Os produtos da indústria cultural também prometem uma fusão da vida com a arte. Trata-se, contudo, de uma fusão esvaziada de qualquer conteúdo transformador. Por isso, Peter Bürger denominou “históricas” as vanguardas das décadas iniciais do século. Uma vez que seus propósitos estão cada vez mais distantes da realidade contemporânea, já podemos compreendê-las retrospectivamente. Ou seja, o tempo futuro das vanguardas históricas não se transformou no nosso presente, mas num passado utópico que não se materializou. A abordagem de Peter Bürger conseguiu definir a especificidade das vanguardas históricas. No entanto, ela possui dois limites principais, superados pelos estudos mais recentes de Andreas Huyssen e Andrew Hewitt. Em primeiro lugar, a contribuição de Huyssen foi sistematizada em After the Great Divide. Modernism, Mass Culture, Postmodernism. A “Grande Divisão” se refere “ao tipo de discurso que insiste numa distinção categórica entre arte erudita e cultura de massa”43. Segundo Huyssen, é necessário redimensionar o foco das discussões sobre a ruptura entre modernismo e pósmodernismo, pois, ao menos no que se refere às vanguardas históricas, vistas por Bürger em oposição às manifestações da cultura de massa, há mais pontos de contato entre estas e o pósmodernismo do que geralmente se reconhece.
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Sobretudo, em relação ao “Great Divide”: “como a vanguarda histórica, embora sob formas diferentes, também o pósmodernismo rejeita as teorias e as práticas da Grande Divisão”44. Com tal perspectiva, Huyssen revelou o pressuposto que permanecera implícito na teoria de Bürger: a plena aceitação da ruptura estabelecida pelos teóricos da Escola de Frankfurt entre manifestações artísticas e os produtos da indústria cultural – cuja denominação, em deliberada oposição à idéia de “cultura de massa”, é já sintomática45. No caso brasileiro, tal juízo é particularmente problemático, pois os modernistas buscaram estabelecer associações tanto com o que mais tarde se denominaria “cultura popular” quanto com a nascente cultura de massa dos centros urbanos que emergiam nos anos 20. Hermano Vianna resgatou o importante encontro ocorrido em 1926 entre Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais, neto, Pixinguinha, Donga e Villa-Lobos, entre outros. Ora, trata-se de uma reunião que Huyssen certamente adotaria como um exemplo perfeito de rejeição à teoria da “Grande Divisão”! “O encontro juntava, portanto, dois grupos bastante distintos da sociedade brasileira da época. De um lado, representantes da intelectualidade e da arte erudita (…). Do outro lado, músicos negros ou mestiços, saídos das camadas mais pobres do Rio de Janeiro”46. Neste sentido, vale recordar que Mário e Oswald de Andrade sempre estiveram atentos às manifestações culturais dos emergentes centros urbanos e a elementos da cultura popular. Mário, com uma perspectiva de estudioso do folclore, coletou dados e registrou tradições que de outra forma estariam perdidos. Oswald, com voracidade antropofágica, assimilou informações e observou gestos, reaproveitando-os em seus textos e em suas performances47.
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Por fim, uma vez que as práticas pósmodernas incorporam ativamente os produtos da indústria cultural, a teoria de Bürger não dispõe de instrumentos para avaliá-la. Por isso, além de óbvias razões políticas, tal teoria não pôde incluir o futurismo no horizonte das reflexões. Afinal, “Marinetti introduziu técnicas de comunicação de massa e estratégias de economia de mercado no domínio recém-criado do ativismo artístico”48. No que diz respeito ao modernismo brasileiro, e mais especificamente no que se refere à viagem de Marinetti ao Brasil em 1926, a abordagem de Huyssen auxilia a repensar juízos críticos consagrados que unanimemente consideram a turnê de Marinetti um insucesso49. Por fim, a abordagem de Bürger também não pode incluir a contribuição de artistas que, ao invés de engajados numa relação renovada da arte com a vida, revelaram-se mais preocupados em revisitar a tradição da cultura ocidental. Na perspectiva de Bürger, como fazer justiça, por exemplo, à obra de James Joyce? Em segundo lugar, Andrew Hewitt expôs o princípio que por muito tempo norteou os estudos sobre as vanguardas: “Em 1962, quando Renato Poggioli se dedicou a um dos primeiros esforços de apresentar uma teoria sistemática sobre a vanguarda, acreditava-se que os artistas de vanguarda tinham sido em sua maioria politicamente influenciados por posições esquerdistas”50. A conseqüência imediata deste pressuposto é o mal-estar causado pelo futurismo e pela opção política de artistas como Ezra Pound, Gottfried Benn e Wyndham Lewis. Não surpreende, portanto, que Peter Bürger praticamente tenha ignorado o futurismo, pois como pensá-lo sem necessariamente refletir sobre seus laços com o fascismo? Em seu livro, pois, o futurismo é relegado a uma simples nota de rodapé51, já que se prefere associar o avanço formal das experimentações vanguardistas ao conteúdo revolucionário das posições de esquerda. Para estes críticos, e muito ao contrário da fórmula de Susan Sontag52, o fascismo não é nada fascinante, mas sem
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dúvida ele impede que se continue reunindo “naturalmente” conteúdo e forma revolucionários, conforme o desejo de Maiakóvski. Hewitt propôs o conceito de “modernismo fascista” a fim de reintegrar o futurismo italiano e, mais precisamente, o pensamento e a práxis de Marinetti nas reflexões sobre as vanguardas históricas. O autor entende “o modernismo fascista como uma resposta política e estética à perda da fé nas narrativas de reflexão sócio-cultural”53. Tal definição pretende questionar a célebre dicotomia proposta por Walter Benjamin: “Essa é a estetização da política, tal como a pratica o fascismo. A resposta do comunismo é politizar a arte”54. Hewitt considera tal dicotomia uma “oposição retórica” incapaz de resolver o delicado problema das relações entre arte e política55. Em sua perspectiva, o “modernismo fascista” tanto possuiu dimensão estética quanto política e assim deve ser analisado. Em outras palavras, Hewitt equiparou epistemologicamente futurismo com as demais vanguardas, sem se deixar levar pelo engajamento de uma crítica comprometida com o binômio vanguarda política/vanguarda estética – vistas “naturalmente” como defensoras de posições esquerdistas56.
4. O estudioso dos movimentos vanguardistas latino-americanos57 já conta com um precioso trabalho de pesquisa realizado nas últimas três décadas e que resultou na compilação de fundamentais antologias de textos programáticos. O primeiro trabalho que se destaca é o de Gilberto Mendonça Telles, Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, publicado em 197258. Com o propósito de estimular “o estudo do contexto histórico do modernismo”59, o autor optou por um critério semelhante ao de Renato Poggioli. Isto é, Mendonça Telles considerou como vanguardistas os esforços metalingüísticos presentes desde a segunda metade do século XIX.
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Conseqüentemente, sua conceituação é pouco específica, até porque seu objetivo principal era o de esclaracer o contexto cultural mais amplo que formara os modernistas brasileiros. De qualquer modo, além de trabalho pioneiro, Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro permanece sendo uma fonte de consulta indispensável. O próximo passo foi dado por Hugo Verani. Em 1986, Verani publicou Las Vanguardias Literarias en Hispanoamérica (Manifiestos, Proclamas y otros Escritos). O modernismo brasileiro não está incluído, como o título já indica. Do ponto de vista conceitual, Verani aceitou o pressuposto de Peter Bürger, segundo o qual as vanguardas históricas se encontram somente nas décadas iniciais do século XX. E, ainda que o autor alemão não seja mencionado diretamente, a justificativa de Verani alude ao conceito de “arte enquanto instituição”. Assim, após mencionar as diversas correntes vanguardistas, ressalvou que estavam “unidas por um objetivo comum: a renovação das modalidades artísticas institucionalizadas”60. Deste modo, Verani pôde estabelecer um corte mais nítido, concentrando-se nas décadas iniciais do século XX hispano-americano. Nelson Osorio Tejada levou a pesquisa adiante ao editar Manifiestos, Proclamas y Polémicas Literarias de la Vanguardia Literaria Hisopanoamericana, em 1988. Osorio Tejada enfatizou sobretudo a perspectiva sociológica tanto no “prólogo” quanto na seleção dos textos. Deste modo, reuniu as reações hispano-americanas ao primeiro “Manifesto Futurista”, assim como as polêmicas que agitaram o cenário intelectual da época. A coletânea de Osorio Tejada permite estabelecer diferenças claras em relação às abordagens de Gilberto Mendonça Telles e Hugo Verani. Enquanto estes se preocuparam especialmente com as experimentações lingüístico-formais e com os projetos ideológicos das vanguardas, Osorio Tejada claramente privilegiou o contexto social dos anos 20 como determinante da emergência das vanguardas: “(…) é preciso insistir na
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necessidade de tomar consciência que o processo literário (sem deixar de considerar a autonomia relativa dos fenômenos que o integram) não segue um desenvolvimento independente do conjunto das outras formações que ocorrem na vida sócio-cultural”61. Trata-se de uma perspectiva importante, ainda que Osorio Tejada tenha a tendência a privilegiar a determinação sociológica, em contraste com a corrente mais usual de estudos, que costuma negligenciar os elementos contextuais. Jorge Schwartz conduziu a investigação a um novo patamar ao publicar, em 1990, Las Vanguardias Latinoamericanas. Textos Programáticos y Críticos. O modernismo brasileiro é incluído e os textos reunidos apresentam um equilíbrio entre as duas tendências identificadas nas três antologias referidas nos parágrafos anteriores. Em 1995, uma edição brasileira veio à luz, Vanguardas Latino-Americanas. Polêmicas, Manifestos e Textos Críticos62. Como Verani e Osorio Tejada, Schwartz adotou a divisão proposta por Bürger, considerando a “data mais apropriada para a inauguração das vanguardas latino-americanas (…) a leitura do manifesto Non serviam, em 1914, por Vicente Huidobro”63. A antologia de Jorge Schwartz é muito importante, pois estimula a criação de vínculos reflexivos do modernismo brasileiro com as experiências vanguardistas de língua espanhola. Tal caminho representa uma importante inovação64, pois o percurso mais usual consiste em relacionar o modernismo brasileiro exclusivamente às correntes européias. Numa outra antologia, organizada em conjunto por Jorge Schwartz e May Lorenzo Alcalá, Vanguardas Argentinas. Anos 20, publicada em 1992, há inclusive um capítulo dedicado às relações entre as vanguardas brasileira e argentina65. Estes livros representam um auxílio fundamental e não somente pelo material reunido, mas também pelo método que norteou seus autores. Alfredo Bosi o definiu
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perfeitamente: “(…) combinar historiografia e crítica de modo constante e discreto para que o leitor possa ver ao mesmo tempo o panorama e o olho seletivo cuja mirada abraça o conjunto, nada esconde, mas não se abstém de iluminar mais vivamente o que lhe parece de maior relevo”66. A combinação de análise crítica com a reconstrução histórica parece mesmo ser o método mais adequado para reavaliar as vanguardas dos anos 20, afinal, boa parte das experimentações formais, sobretudo na poesia, buscavam dialogar com novas experiências proporcionadas pelo cotidiano dos centros urbanos. “São Paulo! comoção de minha vida…”67 , cantou Mário de Andrade; e como ele muitos outros encontraram nas metrópoles motivos e sonoridades inéditos. Nicolau Sevcenko sintetizou o momento com felicidade: “A cidade viraria ela mesma a fonte e o foco da criação cultural, se tornando um tema dominante (…) para as várias artes, fornecendo-lhes muito mais chaves para a reformulação da estrutura compositiva interna das obras, do que propriamente incidentes ou argumentos”68. Jorge Schwartz já o havia apontado, ao mencionar o grande número de autores latino-americanos que nos anos 20 produziu “textos capazes de realizar uma leitura nova da cidade, convertendo-a em material estético por excelência”69. Portanto, parece seguro propor que o entendimento das manifestações artísticas deste período não deve negligenciar a reconstrução das sensações estimuladas pelo diaa-dia de cidades que se tornavam metrópoles. Não se trata, contudo, de propor uma relação de causa e efeito entre surgimento das metrópoles e experimentalismo estético, mas de relacionar estes fenômenos a partir da dimensão intrínseca identificada por Nicolau Sevcenko. Por fim, os trabalhos recentes de Annateresa Fabris sobre o futurismo devem ser destacados, pois representam importantes contribuições para o tema em foco. Em 1987, a
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autora publicou Futurismo: Uma Poética da Modernidade, no qual apresentava os postulados fundamentais do movimento, relacionando-o em primeiro lugar ao contexto sócio-cultural da Itália na passagem do século XIX para o século XX. A partir deste embasamento, Fabris direcionou sua investigação para o estudo da “questão futurista no Brasil”. Para Fabris, mais importante do que estudar a possível influência do futurismo sobre o modernismo brasileiro é reconstruir o “momento futurista” da modernidade brasileira70. Em outras palavras, trata-se de identificar a atmosfera sócio-cultural característica do instante de emergência das metrópoles, ao invés de comparar a doutrina do futurismo italiano, e mesmo suas realizações artísticas, com o ideário e a produção do modernismo brasileiro. “É nossa hipótese que o futurismo é assumido pelos modernistas como arma de combate, desde 1921, em virtude da carga negativa de que era portador”71. Este seria o aproveitamento propriamente estratégico do futurismo72. No que se refere à elaboração estética, um motivo que já vimos se destaca: “A equação da cidade com o ‘momento futurista’ enquanto movimento, transformação, criação contínua, em devir, transparece de boa parte dos textos escritos pelos modernistas antes de 1922”73. Tal perspectiva levou a autora a sugerir a existência de um “futurismo paulista”, ou seja, a existência de um momento de aglutinação das forças modernistas que estrategicamente se apropriaram de princípios futuristas. Tal hipótese foi plenamente desenvolvida em O “Futurismo Paulista”: Hipóteses para o Estudo da Chegada da Vanguarda no Brasil, publicado em 1994. Esta noção, aliás, já tenha sido mencionada no ensaio “A Questão Futurista no Brasil”. Após o estudo da urbanização da cidade de São Paulo e de seus efeitos na percepção dos futuros modernistas, Fabris dedicou um capítulo à viagem de Marinetti à América do Sul, enfatizando sua polêmica passagem por
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São Paulo. Naturalmente, trata-se de um texto básico, pois além de pioneiro, propõe sugestivas hipóteses que devem ser discutidas. Neste capítulo, “Abaixo Marinetti”, como o título já indica, Fabris reconstruiu sobretudo a tumultuada recepção que o italiano encontrou em São Paulo. Além de seu minucioso trabalho de pesquisa, a autora reconheceu que “é impossível reduzir a uma expressão apenas negativa (…) a passagem de Marinetti pelo Brasil”74.
5. Para concluir estas notas iniciais de pesquisa, gostaria de propor alguns pontos que acredito relevantes para uma reavaliação de aspectos do modernismo brasileiro.
1 – Considerando as obras mencionadas nas seções anteriores, novas abordagens podem ser propostas para o estudo dos movimentos vanguardistas. Sobretudo, o crítico não deve se comportar como defensor ou adversário de suas manifestações. Deve, pelo contrário, destacar a natureza plural destes movimentos. Portanto, o modernismo brasileiro deve ser estudado como constituído por diferentes projetos modernistas.
2 – A pluralidade da abordagem supõe a reconstrução do cotidiano dos anos 20. Sobretudo, dos fatos correntes na época. Este é um ponto importante, pois a tendência mais comuns dos estudos sobre a vanguarda consiste em privilegiar quer a experimentação formal quer o conteúdo ideológico dos vanguardistas. Ora, tal abordagem termina por obliterar um dos pontos mais salientes do projeto das vanguardas históricas, ou seja, a fusão arte/vida. Através da reconstrução das circunstâncias cotidianas, deverá ser possível propor novas avaliações de aspectos do modernismo brasileiro. Esta é uma das principais lições da contribuição da Annateresa Fabris.
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3 – O centro desta reavaliação não será exclusivamente o estudo de como as vanguardas latino-americanas assimilaram as contribuições européias para, então, inventarem sua originalidade75. Sem dúvida tal perspectiva é importante, mesmo por ampliar a hipótese de Ángel Rama da transculturação narrativa. Sobretudo, como Lucia Helena anotou corretamente, deve-se “redimensionar o papel negativo atribuído à influência da vanguarda européia no Brasil”76. Afinal, os modernistas brasileiros desenvolveram uma atitude ativa e estratégica em relação aos vanguardismos europeus, adotando e/ou adaptando os pontos que mais diretamente correspondiam a seus interesses, rejeitando e/ou desfigurando aqueles que os contrariavam. No entanto, por que não experimentar uma hipótese que, mais do que adversária, é complementar: devido às peculiares condições sócio-culturais latino-americanas, certos dilemas vivenciados pelos vanguardistas europeus podem ser mais bem compreendidos a partir da experiência latino-americana. A partir do conceito de “literatura menor”, proposto por Gilles Deleuze e Felix Guattari77, Costa Lima concebeu uma atitude distinta nas relações entre culturas periféricas e culturas metropolitanas que esclarece o alcance da minha sugestão: “A categoria ‘literatura menor’ permite visualizar-se outra atitude: os membros de uma literatura menor, não apesar de mas justamente por pertencerem a tal menoridade, têm a possibilidade de enxergar movimentos da terra que passam despercebidos aos sentidos metropolitanos, porque a estabilidade das instituições metropolitanas os tornam remotos”78. Ora, o progressivo divórcio entre produtor e público, vivenciado como uma circunstância inédita pelos vanguardistas europeus, desde sempre constituiu a própria estrutura da possibilidade de manifestações artísticas na América Latina. A complexa
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percepção de um tempo que, simultaneamente, deve acelerar a chegada do futuro, através de uma ruptura radical com o passado, levando ao limite a experiência de viver num presente-aqui-e-agora; em outras palavras, a complexa percepção de um tempo atravessado por temporalidades diferentes e muitas vezes opostas, encontra-se na base da formação sócio-histórica latino-americana, composta por bolsões de progresso ilhados inclusive por relações pré-modernas de produção. Outros paralelos podem ser imaginados, mas estes dois são suficientes para rematar minha proposta. Na verdade, Oswald de Andrade já havia intuído esta possibilidade ao propor ironicamente uma “poesia de exportação”. Por que não levar o projeto adiante, ao invés de seguir importando respostas-prontas ou continuar inventariando as influências e os desvios em relação aos modelos europeus e norteamericanos? Ou seja, por que não correr o risco de enunciar novas perguntas que, sem nenhuma ingenuidade autóctone, crie paisagens mentais distintas? Por que não ousar uma “teoria de exportação”?
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Notas
1
Este ensaio foi escrito sob os auspícios de uma bolsa de “fixação de pesquisador”, concedida
pela FAPERJ junto à Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. À FAPERJ, pois os meus agradecimentos. 2
Apud Hansen, 1994, p. 247. Eis a passagem na íntegra: “Penso no que Kafka disse em seus
Diários. Se leio um texto no ano 2000, estarei lendo a literatura do ano 2000. Lemos com as categorias históricas que possuímos”. 3
O caso mais célebre se refere precisamente ao “Fondazione e Manifesto del Futurismo”, de
Marinetti, publicado a 20 de fevereiro de 1909, na primeira página do Figaro. 4
Uma outra vez, os futuristas estabeleceram o padrão. Até o início da década de 20, a situação
financeira privilegiada de Marinetti permitiu que o movimento futurista editasse um grande número de livros, revistas e panfletos e os distribuísse gratuitamente em todo o mundo. Sobre as atividades editoriais dos futuristas, ver Claudia Salaris. “Making Modernism: Marinetti as Publisher”, Modernism/modernity, I/III, pp. 19-27. 5
Prado, 1956, especialmente pp. 394-398, forneceu um mordaz testemunho do encontro dos
dois vanguardistas no Brasil. 6
Ver Kern, 1983, especialmente o capítulo 5, “Speed”.
7
Sevcenko, 1992: p. 309.
8
Cavalheiro, 1944: p. 7. Itálicos meus.
9
Idem, p. 176.
10
Idem, p. 177.
11
Alusão ao livro Futurismo/Manifestos de Marinetti e seus Companheiros. Rio de Janeiro:
Pimenta de Mello e Cia., 1926. O prefácio foi escrito por Graça Aranha e republicado como “Marinetti e o Futurismo”, em Obra Completa. Afrânio Coutinho (org.). Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969, pp. 863-866. O prefácio, na verdade, reproduziu a saudação feita por Graça Aranha a Marinetti, por ocasião da primeira conferência realizada pelo italiano no Brasil, em 15 de maio de 1926, no Teatro Lírico, no Rio de Janeiro. 12
Cavalheiro. Op. cit., p. 142.
13
Senna, 1996 [1957]: p. 32.
14
Idem, p. 201.
15
Idem, p. 8.
16
Montello, 1994: p. 11, itálicos meus.
17
Carpeaux, 1955: p. 247. A primeira edição é de 1949.
18
Cunha, 1968. Este livro constitui a 2° ed., revista, de volume anteriormente denominado
Panorama da Poesia Brasileira: O Modernismo, 1959. 19
Fabris, 1994a: p. 9.
20
Ver Unruh, 1994: pp. 21-26.
21
Aliás, Peter Bürger o demonstrou convincentemente, como adiante se verá.
22
Para uma descrição histórica do sentido do termo vanguarda, ver Calinescu, 1987,
especialmente pp. 97-120 (1° ed.,1977). 23
Aludo à expressão cunhada por Octavio Paz, 1990: “A tradição da ruptura implica não apenas
a negação da tradição, mas também da ruptura…”, p. 17. A primeira edição é de 1974. 24
E recorde-se que, no mesmo ano de 1925, Jorge Luis Borges publicou seu acerto de contas
com as vanguardas, Inquisiciones. No momento, estou principiando um trabalho precisamente visando à comparação dos trabalhos de Ortega y Gasset, Guillermo de Torre, Mário de Andrade, Jorge Luis Borges e Graça Aranha. 25
Esta polêmica é tão importante que poderia estimular um ensaio autônomo. Na impossibilidade
de desenvolvê-lo neste texto, recomendo o leitor interessado a consulta da indispensável antologia organizada por João Barrento. Realismo, materialismo, utopia. Uma polêmica: 19351940. Lisboa: Moraes Editotes, 1978. Esta edição conta também com uma excelente introdução de João Barrento. “De Weimar a Moscovo: a teoria marxista do realismo e da literatura entre as duas guerras”, pp. 9-30. 26
Andrade, 1972: p. 37.
27
Aludimos a famosa tese contra Feuerbach: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo
diferentemente, cabe transformá-lo”. Karl Marx. “Teses contra Feuerbach”. Karl Marx. Volume I. São Paulo: Abril Cultural, 1987 [1845], p. 163. 28
Para o resumo das posições de Poggioli e de Bürger, estarei aproveitando formulações que
desenvolvi em “O homem cordial e seus precursores: os vanguardistas europeus”, Papeles de Montevideo, 1998, no prelo. 29
Poggioli, 1968 [1962]: p. 1.
30
Idem, p. 44. Poggioli diferencia formas de popularidade e impopularidade porque “não existe
popularidade ou impopularidade absolutas, ambas são relativas”. Idem, p. 45. 31
Idem, ibidem.
32
Idem, p. 46.0
33
Marinetti, 1983: pp. 310-311, itálicos do autor.
34
Bürger, 1984 [1974]: p. 12.
35
Idem, p. 63.
36
Idem, p. 87, itálicos meus.
37
Idem, p. 94.
38
Man, 1970: p. ix.
39
Bürger. Op. cit., p. 49.
40
Idem, p. 53.
41
Em 1924, Iuri Tinianov já havia teorizado sobre este aspecto: “(…) não tenho objeções quanto
à ‘relação da literatura com a vida’. Simplesmente duvido que a questão tenha sido proposta adequadamente. Pode-se falar de ‘vida e arte’ quando a arte já é ‘vida’? (…) É interessante
observar a importância da vida dos artistas nos períodos de crise, de revolução literária, quando a tendência literária dominante (…) cai por terra e se exaure, e a nova direção ainda não foi encontrada. Em tais períodos, a própria vida dos artistas se transforma em literatura, tomando o seu lugar”. Iuri Tinianov. “O ritmo como fator construtivo do verso” (1924), em Lima (1983: p. 458). A passagem citada compõe a primeira nota do texto. 42
Bürger. Op. cit., p. 54.
43
Huyssen, 1986, p. viii.
44
Idem, ibidem.
45
Theodor Adorno desenvolveu o conceito de “indústria cultural” por não aceitar a idéia de
“cultura de massa”, pois, segundo sua perspectiva, não se trata de uma cultura, ou seja, de um conjunto de noções definidoras de uma comunidade, mas da imposição de mercadorias, inclusive produzidas em escala industrial. 46
Vianna (1995: p 20). Em relação à cultura de massa, ver a propaganda de filme da época, A
Epidemia do Jazz: “O anúncio, publicado nos jornais, também dizia orgulhoso que o filme, dedicado a Marinetti, seria acompanhado por um prólogo ‘também futurista’”. p. 22, itálicos meus. Este anúncio, sem dúvida, procurava tirar partido da presença de Marinetti no Brasil. 47
Por exemplo, determinadas fórmulas do “Manifesto Antropófago” – “Nunca fomos
catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará”. (…) “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval (…)”. – parecem ter sido parcialmente inspiradas em samba de Sebastião Cirino, Cristo nasceu na Bahia, grande sucesso do carnaval de 1926. 48
Blum, 1996, p. 4.
49
Principiei esta revisão em dois artigos, escritos com Jeffrey Schnapp. Ver: “As Velocidades
Brasileiras de uma Inimizade Desvairada: O (Des)encontro de Marinetti e Mário de Andrade em 1926”, em Revista Brasileira de Literatura Comparada 3, 1996, pp. 41-54. “Brazilian Velocities: On Marinetti’s 1926 Trip to South America”, em Cinzia Sartini Blum (org.). Special Issue: Futurism and the Avant-Garde. South Central Review 13.2-3, 1996, pp.105-156. 50
Hewitt, 1993: p. 20.
51
Trata-se da nota 4 ao capítulo 2. Ver Bürger. Op. cit., p. 109.
52
Aludo ao ensaio de Susan Sontag, “Fascinating Fascism”.
53
Hewitt. Op. cit., p. 9.
54
Benjamin, 1983 [1936]: p. 28.
55
Hewitt. Op. cit., p. 24.
56
Vale observar que, em relação ao contexto do modernismo brasileiro, tal abordagem permitiria,
por exemplo, reavaliar a dimensão propriamente estética do integralismo e, portanto, da primeira fase da obra de Plínio Salgado.
57
É importante esclarecer que, quando dizemos movimentos vanguardistas latino-americanos,
estamos, como não poderia deixar de ser, incluindo o modernismo brasileiro. 58
Até o presente momento, não tivemos acesso direto ao trabalho de compilação de Óscar
Collazos (org.). Los Vanguardismos en la América Latina. La Habana: Casa de las Américas, 1970. Há uma segunda edição, publicada em 1977 por Ediciones Península. Por esta razão, não podemos compará-lo com as demais antologias. 59
Telles, 1994 [1972]: p. 27.
60
Verani, 1995 [1986]: p. 9.
61
Tejada, 1988: p. ix.
62
Nesta edição, o autor acrescentou um ensaio na “introdução”. Trata-se de “As Linguagens
Imaginárias”, pp. 45-59, e anteriormente publicado na Revista USP 12, 1991-1992. 63
Schwartz, 1995: p. 31.
64
Em relação a esta possibilidade, é necessário mencionar o livro pioneiro de Antelo, 1986.
65
Ver Schwartz & Alcalá, 1992. Aludimos ao capítulo VI, “Brasil”, pp. 262.
66
Bosi, 1995, p. 19. Nesta passagem, Bosi definiu “a função das boas antologias literárias”.
67
Aludo ao poema “Inspiração”, que abre o Paulicéia Desvairada.
68
Sevcenko. Op. cit., p. 18.
69
Schwartz, 1983: p. 17.
70
A expressão “momento futurista” foi cunhada por Renato Poggioli: “O momento futurista
pertence a todas as vanguardas”. Op. cit., p. 68. Posteriormente, a expressão foi empregada por Marjorie Perloff em The Futurist Moment. Avant-Garde, Avant Guerre, and the Language of Rupture. Chicago: University of Chicago Press, 1986. 71
Fabris, em Belluzzo, 1990: p. 71.
72
Desenvolvi esta idéia em “‘Futures Past’” of Futurism: On the Reception and Presence of
Futurism in Brazilian Literature”. Günter Berghaus (org.). International Futurism. Berlin & New York: Wlater de Gruyter, 1998, no prelo. 73
Fabris, em Belluzzo, 1990: p. 71.
74
Fabris, 1994b: p. 259.
75
Sem dúvida, tal trabalho é importante, embora seja um caminho já bastante explorado. Duas
contribuições recentes que seguem este itinerário são: Gloria Videla de Rivero. Direciones del Vanguardismo Hispanoamericano. Estudios sobre Poesía de Vanguardia en la Década del Veinte. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 1994, pp. 28-30 (a primeira edição é de 1990); Vicky Unruh. Op. cit., p 3. 76
Helena, 1986: p. 15.
77
O conceito se encontra desenvolvido em Deleuze, 1977 [1975].
78
Lima, 1993: pp. 180-81.
140 PORTFOLIO
Pequena Antologia de Citações Eminentemente Falsas
Cezar Bartholomeu
"Tal é seu aspecto que deve ser necessariamente o anjo da história. Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde para nós se apresenta uma cadeia de eventos, ele não vê senão uma paisagem de catástrofe, que se altera a cada toque de seus pés sobre as lápides. Ele bem que gosteria de se deter, acordar os mortos e reunir os vencidos. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se abate sobre suas asas, tão forte que o anjo não pode tornar a fechá-las. Essa tempestade o empurra incessantemente para o futuro, para o qual ele tem as costas voltadas, enquanto diante dele as ruínas se acumulam até o céu." Walter Benjamin, Teses sobre a Filosofia da História.
"Nós apertamos um botão e você faz o resto" Slogan da primeira câmera Kodak
"O contexto produz a aura na Fotografia : eu vi a luz." Roland Barthes, A Câmera Clara
"Tirar uma Fotografia é interessar-se pelo status quo, e não pelas coisas como elas são." Susan Sontag, Ensaios sobre a Fotografia.
"A coisa em si…a quintessência revelada…fotografar uma foto, fazer com que se pareça com uma foto, mas ser mais que uma foto." Edward Weston, citado em: Nancy Newhall, Os Diários de Edward Weston.
141
"O inalienável é o caráter utilitário da Fotografia" Gisèle Freund, Fotografia e Sociedade
" O universo fotográfico é a realização casual de algumas das virtualidades programadas em aparelhos. Outras virtualidades se realizarão ao acaso, no futuro. E tudo se dará necessariamente. Resumindo : o universo fotográfico é um dos meios do aparelho para tranformar homens em funcionários, em pedras de seu jogo absurdo"\ Vilém Flusser, Filosofia da Caixa Preta
"Toda imagem é abstrata. Todo texto é figuração." Joseph Kosuth, Selected Writings
"O Futuro é a matéria com que o passado se repetirá" Walter Benjamin, Teses sobre a Filosofia da História.
"De um lado estão aqueles que acreditam que a Fotografia não possue identidade singular, porque toda identidade depende de contexto. Do outro lado estão aqueles que identificam a Foto pela definição e isolamento de seus atributos essenciais, sejam quais forem. Um grupo vê a Fotografia como fenômeno inteiramente cultural. O outro fala da natureza inerente da Fotografia como meio. Uma vertente vê a Fotografia desprovida de uma história autônoma; a outra propõe um esboço de história dentro do qual todas as fotos teriam um lugar determinado de antemão. mutabilidade e contingência;
Um enfatiza
o outro pontos dentro de valores eternos.
Um está
interessado em prática social e política, o outro em arte e estética. Porque, dentro da crítica geral pós-moderna às estruturas binárias, esta divisão continua a ser essencializada?" Geoffrey Batchen, Burning with Desire (Entram 04 imagens no final)
142 Referências das obras* 1- Sem título: objeto de vidro (1994)
Negativos PB, vidro. 0,55 X 0,35 m.
2- Piss Florence: retrato (#1997) Fotografia colorida 1,40 X 1,00 m.
3- Stieglitz: olho (1997) Fotografia PB 2,60 X 2,50 m
4- Man Ray: Espiral (1997) Fotografia PB 2,10 X 2,00 m
5- Moholy-nagy: Redondos (1998) Transparência fotográfica e fotografia impressa em alumínio ø 1,40 e ø 0,80 m.
* Obras realizadas com o apoio da Funarte/Minc, Bolsa Marc Ferrez, 1995.
142
HABERMAS E O PÓS-MODERNO: CIÊNCIA E FICÇÃO um primeiro ensaio 1 Habermas versus postmodernism: science and First study Adelia Miglievich Doutoranda em sociologia do PPGSA/IFCS-UFRJ. Mestre em sociologia pelo IUPERJ.
Apresentação O debate contemporâneo põe em xeque o estatuto científico e obriga a reflexão acerca da possibilidade mesma do conhecimento. A virtude pós-moderna está, precisamente, em se constituir no maior desafio intelectual dos últimos tempos. Isso basta para que atentemos às suas críticas, responsáveis por configurar uma nova variante, a mais radical, de todas as crises da modernidade. Opomos ao movimento pós-moderno, o "novo Iluminismo" de Habermas que inaugura a teoria crítica positiva. O frankfurtiano busca redimensionar as possibilidades de elaboração de uma teoria da racionalidade, num momento em que se assiste à propagação de uma perda generalizada das "energias utópicas", constituintes da experiência moderna. Se, de um lado, os pós-modernos aplaudem o dissenso - dada a falência das macro-teorias - Habermas enxerga no descentramento a inviabilidade do sujeito
143
se potencializar. O fim dos paradigmas, dos critérios, dos referenciais, implica, igualmente, o fim da crítica, o fim do projeto de um "mundo melhor". O "irracionalismo" pós-moderno versus o "novo racionalismo" habermasiano. Esta disputa deverá ocupar as páginas que seguem. Não adiantaremos vencedores - se é que existem. A preocupação aqui limita-se a sugerir que o confronto é, em si mesmo, promissor.
Pós-modernidade: a ciência em "xeque" Os pós-modernos vêm desafiar o cientificismo tanto dos positivistas como de seus críticos que, nem por isso, contestaram o privilégio epistêmico da ciência. Arauto do fim dos paradigmas, o movimento pós-moderno denuncia a impossibilidade da "verdade" num mundo onde "tudo é poder". A racionalidade cartesiana seria, segundo os pós-modernos, apenas uma forma de conhecimento, escolhida e valorizada por certos grupos, daí a aposta contrária na "irracionalidade". O "novo irracionalismo" propõe-se crítico ao desmistificar a razão e revelá-la como principal agente da repressão, ao invés de órgão da liberdade. Lyotard2 aprofunda esta questão ao contrapor o "saber moderno" ao "saber pósmoderno". O saber moderno teria a forma da unidade, surgida a partir das metanarrativas mitificadas com o historicismo, a teleologia, a crença na emancipação da humanidade. A pós-modernidade, por seu lado, consente no processo de fragmentação, reinterpretando-o de forma positiva, enquanto início
144
de uma multiplicidade de jogos de linguagem, heterônomos e autônomos. Assim, a disseminação voltada ao dissenso pode constituir-se um ganho em termos de esclarecimento. A relatividade da verdade é motivo de êxtase para os pós-modernos. A então "perda de sentido" é promissora porque devolve uma consciência perdida com a ilusão da modernidade. O mundo pós-moderno não realiza o "mundo desencantado" mas "reencantado" 3 onde os homens se apercebem de sua real condição humana versus o ideal supra-humano do senhorio da verdade. Inexistindo a verdade, inexistem, também, fundamentos últimos a serem buscados. Qualquer critério de validade torna-se suspeito. Todo enunciado é um "lance", toda fala é um ato de combate, no sentido do jogo, que não pretende apresentar vencedores mas adversários que se satisfazem em jogar. No jogo, não se busca assegurar a legitimidade para alguns enquanto esta é recusada a outros. A legitimidade não se constitui um problema dada a indistinção entre o verdadeiro e o falso. Nesse sentido, a idéia mesma de legitimidade violenta a heterogeneidade dos jogos de linguagem, sufocando a inventividade cujo solo fértil encontra-se no dissenso - jamais no consenso. Este último não só é irrealizável como também indesejável. Entre um enunciado prescritivo e um enunciado científico não é possível estabelecer uma correspondência nem legitimar um em função do outro, e mais ainda, tampouco é possível legitimar algum em si mesmo sem referências às condições prévias que determinam o que é legítimo ou não dentro do jogo. A consciência da ausência de uma legitimidade imanente em qualquer enunciado e de que todo enunciado só é válido dentro de um jogo de linguagem circunscrito e
145
parcial deslegitima qualquer "grande relato" que pretenda dar uma visão integrada do mundo 4
A teoria social pós-moderna é irônica e propõe o sacrifício do compromisso moderno entre o conhecimento e uma realidade que não pode ser confirmada. Os pós-modernos optam pela pela diversidade e pela diferença. Definindo tudo como "texto", o pós-moderno atribui significados ao mundo no lugar de se pensar desvendando-os. A verdade é, para ele, uma convenção linguística, o que implica a implosão desta mesma categoria. No movimento pós-moderno, é possível a identificação de uma fissura entre os denominados "céticos" e os "otimistas" ou "moderados" 5. Se ambos rejeitam a verdade universal e a crença presunçosa na separação entre sujeito e objeto, importa notar que os "otimistas" admitem o que denominam de "consenso local e provisório" em torno de alguma assertiva, sem associá-la a comprovação de sua validade em termos de critério de racionalidade. Por outro lado, os "céticos" condenam radicalmente qualquer espécie de consenso, ainda que temporário, optando por enfatizar a existência de multíplas "realidades", nenhuma a merecer maior ou menor visibilidade do que outra. Quer desprezando toda forma de ciência - os "céticos" - quer entendendo-a como uma atividade discursiva e intelectual em contínua reestruturação - os "otimistas"- o movimento pós-moderno é uníssono na denúncia da ciência moderna como uma "arma ideológica" que, pretensiosamente neutra, nega o paradoxo e rejeita a diversidade.
146
Ao reivindicar o anti-fundacionalismo, o pós-moderno substitui os "achados" e "descobertas" da ciência por "leituras" e "interpretações" que não almejam a evidência. A teoria geral é substituída pelas narrativas locais e pela ênfase na vida quotidiana onde todo fenômeno é pensado como um texto que com outros textos se relaciona. É possível enxergar o pós-moderno como, de um lado, o aniquilamento da ciência social e, de outro, o mais ousado desafio intelectual à sua redefinição, quer do ponto de vista do método, quer da escolha temática. Emoções, sentimentos, intuição, reflexão, cosmologia, mágica, mito, religiosidade, experiência mística ganham uma "centralidade" inédita no discurso intelectual com o enfoque pós-moderno. Embora preferindo a expressão "estratégia" a "método" - que poderia sugerir a idéia de um método melhor do que outro - pode-se falar em "alternativas metodológicas pós-modernas", opostas à epistemologia positivista e definidas, basicamente, a partir de dois eixos de análise: a "desconstrução" e a "interpretação intuitiva". A "desconstrução" é a capacidade crítica negativa, manifesta na percepção da inconsistência do texto o que o obriga a um processo de incessante "rearrumação" que escapa a todo princípio de coerência pré-estabelecido. As pessoas criam a realidade da forma como a vêem, é este o suposto. Não há distinção entre estados mentais do observador e o mundo observado. Se tudo é
147
interpretação, cabe ao ângulo de visão construir, destruir e reconstruir a "realidade". A interpretação intuitiva, identicamente, é anti-objetiva e introspectiva, traduzindo-se no entendimento individual acerca de algo. Mais do que o reconhecimento de que todo conhecimento é social, o movimento pós-moderno enfatiza a subjetividade do discurso e o caráter informado da ciência por dados pessoais do sujeito narrador. Tendo emergido com os movimentos sociais dos anos 70 e 80, com o "racha" do partido comunista e do marxismo, com a eclosão dos movimentos estudantis e as numerosas lutas locais - mulheres, gays, ecologistas, doentes mentais, prisoneiros - o movimento pós-moderno expressa uma inovação cultural e discursiva que ao incorporar conceitos tais como o "negro", a "mulher", a "criança", o "homossexual", reivindica uma nova percepção da realidade. Dito de outro modo, a descentralização da política esquerdista orquestrou, também, a descentralização teórica e inaugurou o debate.
Habermas: a ciência e o consenso O projeto de Frankfurt, marxismo heterodoxo, propõe uma teoria social crítica com intenções práticas. Em seu programa, a pesquisa interdisciplinar visa a estabelecer uma original relação entre a filosofia e as ciências do homem. Com a derrota dos ideais iluministas, contudo, a competência da razão como promotora da liberdade é seriamente questionada. Adorno e Horkheimer
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assistem, consternados, à morte da razão, asfixiada pelas relações engendradas no capitalismo.
A onipotência do sistema capitalista, reificado no mito da modernidade, estaria, segundo essa análise, deturpando as consciências individuais, narcotizando a sua racionalidade e assimilando os indivíduos ao sistema estabelecido 6.
Se a eficiência técnica e instrumental desenvolvida pelos sistemas de reprodução material permitiu, a princípio, a plena satisfação das necessidades de todos os homens, libertando-os dos mitos que cerceavam sua autonomia, tal mérito torna-se duvidoso no momento em que a racionalidade gerada faz do ser humano também seu prisioneiro. Assim, o "Esclarecimento" ou "Iluminismo" aparece, para a primeira geração dos frankfurtianos embalado numa filosofia da história, como um processo histórico global com um desfecho negativo, qual seja, a razão crítica minada pela razão conformista, voltada para o cálculo e a manipulação. Desfaz-se a crença numa razão dialética e o tom desta constatação é fatalista. O esgotamento da modernidade verifica-se, sobretudo, com a dominação tecnológica aliada ao crescimento dos regimes políticos autoritários, tais como o nazi-fascismo. Jurgen Habermas, por seu lado, contraria o parecer de seus pares antecessores e dedica-se a salvaguardar a autoridade da razão conjugando, para tal intento, as teorias de Emmanuel Kant e Jean Piaget. Do primeiro, resgata a idéia de dois mundos: o da natureza e suas leis - representando o espaço do determinado e da objetividade - e o mundo social ou dos costumes -
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indeterminado e pleno de subjetividade. A autonomia do homem, segundo Kant, expressa-se em sua capacidade de auto-determinação, em sua vontade legisladora de estabelecer e concretizar fins no mundo social. Nesse sentido, a sociedade é "moralmente" possível dada a atividade pensante do sujeito. A teoria piagetiana é bem-vinda para Habermas ao definir a racionalidade como construída desde o nascimento da criança até sua fase adulta através de uma longa gênese que se dá no interior do mundo físico e social. O sujeito não somente constrói e reconstrói seu conhecimento acerca da natureza e da sociedade mas elabora - na descoberta desses mundos, na ação e interação neles - os seus instrumentos de pensamento. Habermas propõe, pois, a mudança de paradigma: da "filosofia da consciência" - Kant - para a "teoria da interação; da "ação reflexiva" para a "ação comunicativa", pautada na linguagem enquanto instrumento da cognição. A forma de razão identificada pelos pós-modernos como mera expressão de poder, encontra em Habermas uma definição específica. Trata-se da "razão instrumental" - apenas uma das formas possíveis. Assim, se a razão é utilizada para subjugar, controlar e dominar tanto a natureza como os próprios homens, há de se atentar para o fato de que é ela, ao mesmo tempo, o único recurso possível para criticar, organizar ações e promover alguma espécie de emancipação. Dito de outro modo, à "razão instrumental" deve somar-se a "razão comunicativa".
150
Habermas esforça-se em se libertar da confusão teórica entre os conceitos "modernidade", num sentido amplo, e "modernização sistêmica". O filósofo e sociólogo alemão, ao edificar a teoria acerca do "mundo vivido", revela a sobrevivência do ideal iluminista em micro-interações que subsistem em plena modernidade, traduzindo-se nas situações de comunicação linguística. Segundo Habermas, a existência da relação dialógica supõe que o homem aspira à validade de um argumento e questiona a verdade dos fatos, a correção ou adequação das normas e a veracidade do interlocutor. Por maiores que sejam os obstáculos à efetivação do entendimento não-coercitivo, a capacidade dos sujeitos em se comunicarem é um dado que permanece a despeito da lógica do sistema. Assim, as situações dialógicas ideais não são simples construção teórica, hipotética, típico-ideal de Habermas mas são praticadas democraticamente. O sujeito em interação constrói e reconstrói as regras que regem a sociedade. A abordagem psicogenética - Piaget - aliada à teorização de Habermas possibilitou o desenvolvimento da abordagem discursiva - interação mediatizada pela linguagem - que permite ao teórico postular o "sujeito autônomo". O locus da "ética discursiva" é concebido como o "mundo da vida" ou "mundo vivido" onde se manifestam os proferimentos linguísticos.
Eu descrevo os proferimentos linguísticos como atos através dos quais um falante gostaria de chegar a um entendimento com um outro falante sobre algo no mundo. Eu posso levar a
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cabo essas descrições assumindo a perspectiva do agente, portanto da primeira pessoa. Contrastam com esta perspectiva as descrições feitas na perspectiva de uma terceira pessoa, que observa o modo como um ator atinge um objetivo através de uma atividade orientada para um fim, ou, como ele, através de um ato de fala, chega a um entendimento com alguém sobre algo. Descrições na perspectiva da segunda pessoa são sempre possíveis quando se trata de ações de fala; no caso de atividades orientadas para um fim, essas mesmas descrições somente são possíveis quando introduzidas em contextos cooperativos 7 O agir comunicativo comanda as ações no "mundo da vida" enquanto, no mundo dos "subsistemas de ação racional com relação a fins" ou "mundo sistêmico" - ou ainda simplesmente "sistema" - predomina o modelo de ação técnica, caracterizada como instrumental ou estratégica. O "mundo da vida" apresenta-se como um a priori que não é analítico no sentido kantiano, mas social, relativo às formas de entendimento intersubjetivo. Constitui-se num "celeiro" ou reservatório de "saber pré-reflexivo", próprio à espécie humana, pressuposto para a produção de proferimentos dotados de sentido. Neste "celeiro" estão armazenadas previamente, vide Piaget, os modelos de interpretação e as capacidades semânticas de que necessitamos para concretizar um ato de fala e uma ação social comunicativa. Sua teoria da ação comunicativa vincula-se, portanto, à noção de uma racionalidade comunicativa espontânea, pré-reflexiva, presente, de fato, nas estruturas do "mundo vivido". A linguagem é o traço distintivo da humanidade e nela está inscrita nosso potencial para a comunicabilidade e para o consenso.
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Essa totalidade, que deveria decompor-se no instante da tematização e da objetivação, é formada pelos motivos e habilidades dos indivíduos socializados, pelas auto-evidências culturais e solidariedades grupais. O mundo da vida estrutura-se através de tradições culturais, de ordens constitucionais e de identidades criadas através do processo de socialização (...). As redes de interação de grupos só se formam a partir das ações de sujeitos que agem comunicativamente. No entanto, se descrevêssemos as pessoas como "portadoras" dessas redes de integração, a descrição seria falsa. O indivíduo e a sociedade constituem-se reciprocamente. Toda a integração social de conjuntos de ação é simultaneamente um fenômeno de socialização para sujeitos capazes de ação e de fala, os quais se formam no interior desse processo e, por seu turno, renovam e estabilizam a sociedade como a totalidade das relações interpessoais legitimamente ordenadas 8. A estrutura da linguagem é a prova da racionalidade não-instrumental e, concomitantemente, não-subjetiva. A comunicação não traz em si mesma o traço da dominação - este é a ela incorporado ou não. Na ação comunicativa, toda pretensão de validade está sujeita a sua contestação. É no procedimento argumentativo que os envolvidos se põem em acordo acerca das diversas questões, relacionadas, por exemplo, à verdade, justiça e/ou autenticidade.
(...) o que está em questão é exclusivamente o potencial de racionalidade de cada posição assumida, e vencerá aquela posição que puder apresentar os melhores argumentos. Esse tipo de ação social assume um caráter emancipatório pois, na medida em que os homens pensam, falam e agem coletivamente de forma racional, estão se libertando não só das formas de conceber o mundo e a si impostas pela tradição, como das formas de poder hipostasiadas pelas instituições9.
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Nesse sentido, a sociedade pode ser interpretada como um complexo dialético que é, ao mesmo tempo," mundo da vida" e "sistema". Com isso, a teoria crítica da sociedade, que pretende configurar-se como teoria da racionalidade e da emancipação, tem diante de si um método de pesquisa e um campo a ser observado: as próprias estruturas e tipos de racionalidade que se manifestam nas várias dimensões da sociedade. O "sistema" integra diversas atividades que visam à sobrevivência econômica e política e à regulação das consequências não-pretendidas da "ação estratégica" medinate mecanismos de mercado ou burocráticos que limitam o escopo das decisões voluntárias. Distintos e superpostos, na realidade, o "sistema" é gerado dentro do "mundo da vida" como uma consequência inesperada da ação. A complexidade sistêmica das estruturas institucionais acompanha progressivamente a racionalização do "mundo da vida" - isto é, a diferenciação da cultura, da sociedade e da personalidade. A separação "mundo da vida" e "sistema" ocorre, num primeiro momento, nas sociedades estratificadas de classes organizadas em torno do Estado. A tese da quebra da unidade entre racionalidade comunicativa e racionalidade técnica faz aflorar uma nova forma de integração produzida pelos modos estratégicos de ordenar as consequências da ação. Segundo Habermas, a irracionalidade dominante na sociedade atual deve-se a seu oposto, o
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predomínio da racionalidade técnica, instrumental que retrata o fenômeno da "colonização" do "mundo da vida" pelo "sistema". No "sistema", a potencialidade dos indivíduos em se constituir enquanto sujeitos reflexivos está definitivamente negada. No "mundo da vida", porém, o sujeito é autônomo e capaz de reverter situações mediante o "discurso" e consequente convencimento de seus pares pela razão. Se, já no diálogo comum, reconhece-se pretensões de verdade, no discurso científico, então, a busca da validade de uma dada assertiva é inteiramente viável. Para tanto, faz-se uso de um conjunto de argumentos organizados na forma de um método a partir do qual é possível aferir graus de confiabilidade para o discurso ainda mais altos do que os atribuídos ao texto não-científico. Os cientistas interirizam uma postura de estranhamento proposital perante as interpretações produzidas de maneira a objetivá-las o máximo possível. Não se trata de um retorno ao positivismo, ao contrário, Habermas concebe a teoria crítica como uma interpenetração entre conhecimento e interesse. Contudo, não se abre mão, aqui, da singularidade da ciência em face das demais formas de percepção do real - o senso-comum, a filosofia, a arte. O rigor do método é parte constituinte do acúmulo científico. Certamente, o recurso à hermenêutica evidencia a resistência à incorporação de um método estritamente empíricoanalítico - típico das chamadas ciências naturais, entretanto, não se adere ao ideário relativista, decantado pelos pós-modernos. Busca-se, precisamente, o
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esclarecimento acerca dos fatos mediante a elucidação do contexto sóciohistórico no qual o conhecimento emerge. Faz-se necessário esclarecer o "Esclarecimento", dirá a teoria habermasiana, seus limites e alcances. O trabalho crítico da razão está em analisar os estados de dominação e liberdade experimentados por homens e mulheres. Assim, o autor expressa uma complacência em face da modernidade desconhecida pelo movimento pós-moderno. Sua marca está na insistência no projeto racional como única saída para a crise que o faz dirigir um "olhar" otimista para diferentes instituições da modernidade - como o Direito e a Política - nas quais é plausível detectar "nichos" do "mundo vivido", nas quais formas de pensar e interpretar autônomas e progressistas nunca serão definitivamente minadas. Habermas resgata a categoria "verdade" de um discurso e, consequentemente, a plausibilidade do consenso em torno de uma prática. Partindo do nexo racional que liga, formalmente, o "autor do texto" e seu "intérprete", o consenso oriundo deste debate traduz uma proposta de verdade que, embora não pensada numa perspectiva metafísica ou existencialista, assume o intento de validar uma determinada orientação de conduta. Habermas vê a primeira característica do processo comunicativo na sua referência interna à sociedade, ou seja, no fato da comunicação constituir sempre uma ação social - na definição weberiana 10. A ação social é determinada, desde o seu início pela orientação que o sujeito lhe imprime - a motivação. Homens e mulheres agem orientados por sentidos ou significados,
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conscientes ou não de quais sejam estes. Cabe à ciência do social insistir na "explicação compreensiva" destes significados, mediatos e imediatos, de forma a não abdicar de seu papel de elucidação de contextos sócio-políticoeconômicos nos quais os indivíduos elaboram sua existência. O marxismo revisitado em Habermas ao incorporar a hermenêutica vai aproximar-se da fenomenologia alemã que, historicamente, digladiara-se com o materialismo histórico. A nova "síntese", entretanto, encontra no movimento pós-moderno sua maior contestação intelectual.
Incitações Finais Entre a aposta habermasiana na racionalidade comunicativa e o ceticismo pósmoderno em face da validade de qualquer discurso que se auto-intitule "ciência", os intelectuais dos anos recentes se situam. Há os que apontam saídas para a crise do conhecimento - ou "crise dos paradigmas" - há os que a saúdam, há ainda os que tão só adotam uma postura resignada. Os anos 60 e 70 representaram um período crucial da polêmica em torno do significado e da legitimidade das assim chamadas ciências sociais. Questões epistemológicas, políticas e mesmo morais ganharam a centralidade no debate. A crítica ao positivismo, já bastante disseminada, permitiu a desmistificação dos supra-poderes da atividade científico-racional e propôs novas abordagens do conhecimento.
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O "moderno" e o "pós-moderno" defrontam-se. O primeiro preservando a idéia da teoria social no interior da qual as disputas empíricas e analíticas podem ser resolvidas.O segundo rejeitando toda espécie de estrutura unificadora de explicação ao preço de recusar, definitivamente, qualquer potencial, mínimo que seja, de esclarecimento. Segundo os pós-modernos 11, o estatuto da cientificidade mostrara, com o passar do tempo, uma desconexão com os programas de pesquisa, movimentos sociais, lutas políticas, debates sociais. Pressionada por exigências de credibilidade, status moral e recompensa material, a ciência social transformarase num domínio de estudiosos superespecializados e teóricos - aqui no sentido negativo - com seus problemas e vocabulário próprios. A Academia é substituída, segundo as correntes pós-modernas, por sua caricatura: o "academicismo", no momento em que se distancia de seus informantes e de seu público. A esterilidade do conhecimento é o resultado óbvio de uma ciência hipostasiada e paralisada. Como manifesto de repúdio ao quadro delineado, insurge o pós-moderno e suas versões que destituem de significado qualquer tentativa de consenso - tal como ainda imaginado pelos críticos do positivismo ao reverem a polêmica sujeitoobjeto. Do ponto de vista pragmático, qualquer debate acerca do estatuto científico é inócuo e redundante. A teoria geral é, por suposto, inalcançavel, as fundamentações últimas de um postulado inatingíveis, porque fictícias. O teórico
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científico melhor faz a si mesmo intitulando-se analista moral e político que se propõe a formular narrativas locais. Tomar partido neste confronto não é tarefa das mais simples. Que o metadiscurso científico desconectado dos programas de pesquisa acaba por se transformar em fetiche facilmente usurpado por interesses específicos de grupos de poder dispostos a generalizar suas respectivas concepções do mundo como "neutras" e "desiteressadas" não há dúvidas. Contudo, programas de pesquisa dissociados de diretrizes teóricas correm o risco de, igualmente, reproduzir uma prática que, por não ter sido discutida intersubjetivamente na forma da teoria, também se torna inquestionável. Assim, se não existe a teoria geral da sociedade nem por isso há de se recusar a função das teorias plurais no sentido de estratégias de ação. Em última análise, a possibilidade de se validar ou não uma proposição continuaria importante. Se Baudrillard não diferenciava o real do simulacro - "afinal, tudo é simulacro" - reconhecia, porém, que a comunidade é passível de acordar em torno do que denomina realidade. As bases deste acordo, sim, devem ser investigadas. De fato, críticas também chegam ao discurso habermasiano. O que é o consenso se não a hegemonia de um grupo sobre outro? Talvez, concorde-se com Merquior e se diga que Habermas não está mesmo preparado para aceitar os resultados históricos do Iluminismo: a busca da salvação através do conhecimento ou um propósito de reencantamento do mundo.
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Em que pese, contudo, o consenso ser demasiadamente suspeito para definir a "verdade" - ou mesmo a validade - de algum argumento, por sua vez, "as flexíveis redes dos jogos de linguagem plurais" - citadas por Lyotard - são inimagináveis sem a comunidade de comunicação. Ora, até mesmo o mais solitário pensador só pode explicar e controlar a seu discurso quando em condições de interiorizar o diálogo de uma comunidade da argumentação racional. Dito de outro modo, ninguém pode seguir uma regra sozinho ou ela perde este caráter propriamente dito. Encontramo-nos imersos no debate contemporâneo e por ele incitados. A polêmica "moderno x pós-moderno" nos é cara por tratar da autonomia do sujeito e de seu potencial para a sobrevida num mundo que o fez prisioneiro. Enquanto Habermas direciona sua teoria para a afirmação de uma sociedade da comunicação com base em argumentos científicos, os pós-modernos crêem estar de fato, criticando a sociedade quando rejeitam qualquer postulado oriundo do arcabouço positivista. Ambos os lados são críticos - cada um à sua maneira. Ambos, politizados, também à sua maneira. No conflito em torno dos limites do conhecimento científico - Teoria Crítica - ou na recusa completa do estatuto de ciência para uma dada interpretação, não se nega que, mais uma vez, é esta, a ciência, que ocupa nossos espíritos. Talvez seja a "ironia" já postulada pelos pós-modernos: negarmos algo requer explicá-lo.
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Paisagem com um século que finda e outro que inicia: Uma apresentação de David Salle Landscape of the century that ends and another that begins: a presentation of David Salle
Jorge Lucio de Campos Doutor pela ECO-UFRJ Professor da ESDI-UERJ
A falência do cânon modernista trouxe no bojo uma crescente inquietação — sem respostas claras — acerca dos efetivos parâmetros da atividade artística. Digo isso porque o acirramento de novas orientações de tratamento da questão (francamente discerníveis na atual querela entre modernos e pós-modernos) até agora não bastou para estancar uma certa sensação de impasse e, mesmo, de impotência diante do problema. Apesar de tudo, como bem lembra Howard Fox, “nunca houve na história tamanha atividade artística, tantas discussões (freqüentemente estéreis) em torno dela e tanta expectativa por parte de um público (cada vez mais ávido por soluções)”.1 Segundo ainda Fox, “os representantes2 mais destacados da década de 80 manifestaram uma particular preocupação com questões intimamente relacionadas (embora distintas) entre si, que foram, na maioria das vezes, identificadas pela vanguarda como estratégicas para os artistas verdadeiramente modernos: a noção de originalidade e as formas pelas quais esta é expressa artisticamente; a missão política da vanguarda e o relacionamento entre artista e sociedade; a investigação sobre a
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natureza e os limites da própria arte, etc. Contudo, as respostas às mesmas se revelaram, a rigor, bem desviantes de seus pressupostos de base”.3 Não é difícil, sob esta ótica, reconhecer a importância de um artista como David Salle. Poucos pintores se mostraram tão diretamente antenados ao imaginário deste fim-de-século quanto ele. Num momento psicologicamente difícil, “de perda de sentimentos num mundo da máquina marcado pelo desaparecimento da identidade em prol de um tipo de personalidade hábil — a alienação — mesmo em relação ao próprio corpo”, em tempos carentes quanto os nossos de “um extremo subjetivismo, um colossal ímpeto de energias ligadas à reflexão, uma sensibilidade à flor da pele” e, ao mesmo tempo, tão entregues a “um desespero latente”,4 seus hoje famosos ‘metaquadros’ comportam-se como verdadeiros ‘pratos cheios’ no que tange a uma interpretação mais aguda dessa perplexidade. Trata-se de um pintor em cujo traço a robustez plástica se une com maestria a uma têmpera fortemente alegórica,5 eivada de símbolos imaginários e inquietantes metáforas. Com tal ambigüidade de atributos, seria, de fato, inevitável que acabasse cercado por muita curiosidade e até vitimada (como tem recorrentemente ocorrido6) por uma certa e inquietante má interpretação (ou má vontade?) em torno da que se formou um particular desafio para os críticos: o de sua ‘correta’ leitura. O que, em verdade, significaria (como se devesse, de fato, significar algo) esta ou aquela enigmática imagem ‘solta’ (cf. o cão solitário de Jar of spirits e Yellow bread, ambos de 1987)? O que dizer de seu lugar lógico no âmago da tela? E de sua pertinência em relação ao que se poderia chamar de ‘real’ ou de ‘sujeito’? Poder-se-ia mesmo interpretar este último como uma pura volúpia de ser? E aquele outro como a simples mutação de um momento transitório? Salle explora uma iconografia específica, cheia de referenciais peculiares (por vezes, um pouco apressadamente, associados à linguagem publicitária). A maioria de
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suas telas se subdivide em áreas que, apesar de muito próximas — quase contíguas — sempre preservam uma autonomia relacional. É sabido que se notabilizou por privilegiar a disjunção estilística, assim como por um uso intencionalmente conflitante das figuras.7 Estas amiúde se mostram fragmentadas, incompletas, quase que tensionadas pela ameaça de sua própria ausência. Muitas vezes se destacam em movediços planos coloridos, o que lhes confere um inquietante aspecto fantasmagórico8 (à maneira de um escorço inacabado) que, ao irradiar ao conjunto um certo tônus de precariedade, a tudo contagia com uma aura de signo e matéria. (B.A.M.F.V., 1983; Din, 1984; The cold child, 1985). A utilização salliana do recurso poético da justaposição9 permite que se localize em seus quadros o mesmo pendor dadaísta por uma comunicação ‘às avessas’ magistralmente explorada por Schwitters em suas anticonstruções Merz e por Duchamp no Le grand verre. A divisão do quadro em setores que nunca se conectam, mas apenas coabitam um mesmo locus pictórico (providência que em muito favorece a competição visual entre sensações geralmente indeterminadas em seu isolamento) recorda, por sua vez inevitavelmente, a relação erótico-asséptica que a noiva-sempreestéril entretém com os impotentes celibatários.10 A propósito, o corpo feminino11 tem sido um dos motivos mais particularmente explorados por Salle, que sempre que pode o expõe ao nível de suas potencialidades epidérmicas (Melancholy, 1983; Schoolroom, 1985; Saltimbanques, 1986). Segundo Eleanor Heartney, suas imagens — diferentemente das de Cindy Sherman, p. ex. — não se prestariam a serem ‘voyeurizadas’. Nesta última, “o observador é implicado como voyeur na medida em que é atraído para uma relação desconfortável e problemática com os acontecimentos representados no interior da tela”.12 Nele ocorreria justamente o contrário. Embaraçado, o espectador acaba, cedo ou tarde, percebendo a perda de sua função centralizadora, uma vez que ali nada há para ser
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narrado (ou que se dê como expectativa). Na verdade, há sim uma espécie de visibilidade ‘autonarrativa’ que se esgota em sua própria Erscheinung (Low cost colour numbers, 1985; Landscape with two nudes and three eyes, 1986; Dual aspect picture, 1986) e ponto final. O que pensar, então, de uma obra tão facetada? Certamente tudo. Ou quase nada. Ela impõe ao espectador uma participação ativa à medida que cada um de seus elementos exige ser observado e avaliado sensorialmente na atenção de seu próprio isolamento. Ao mesmo tempo, exorta-o à reflexão estimulando-o, com sua invejável riqueza semântica, a um contínuo flerte com a complexidade. Sua extrema abertura permite que se a associe a uma pletora de referências e, ao mesmo tempo, a nenhuma, sendo sua dialética interna uma autêntica usina de sentidos que se os cria, providencia também para que não se percam em meio aos riscos do reducionismo psicológico. A exemplo dos quadros de inspiração lingüística de Magritte,13 Salle não se presta docilmente ao jogo da representação. Não emite mensagens óbvias. Antes privilegia uma ligação direta entre o ver e o pensar que atrai o bom senso para uma autêntica esboscada. As imagens que concebe jamais autorizam uma leitura rasa, mas estratégias sinceras como o afloramento e a torção. Para arrematar essas breves notas, uma última constatação: assim como um outro David (Cronenberg), que, em alguns de seus filmes (sobretudo os da primeira fase), flertou livremente com o ideário (via Baudrillard) pós-estruturalista, Salle também parece privilegiar em sua obra determinadas questões.14 Como que refletindo a lógica irresistível da hiperrealidade contemporânea, uma extensa gama de ‘objetos parciais’ (letras, partituras, segmentos anatômicos, artefatos heteróclitos, padrões abstratos, caricaturas, etc.) flutuaria (à guisa das telas-folha de Klee)15 na virtualidade absoluta de seus painéis-dípticos, igualmente liberada (como nossos discursos) de toda amarração definitiva. Na condição de significantes vazios — que não se prestariam a
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portar qualquer liame tranqüilizador com o concreto — as peças de sua iconicidade ‘pós-utópica’ revelam um dimensão extremamente grave de todos nós. A que denunciaria nossa dificuldade crescente em intervir num mundo que, sem qualquer densidade, já não facultaria sonhos, mas apenas logros e malogros…
NOTAS (1) Fox, 1987, p. 28. As colocações entre parênteses são minhas. (2) Thomas West, ”Figure painting in an ambivalent decade”, Art International, 1989, 9, pp. 25-8. West parece privilegiar, neste ensaio, os nomes de David Salle, Eric Fischl, Julian Schnabel e Roberto Longo. Embora concorde com ele no que diz respeito a Salle e Fischl, discordo radicalmente quanto a Schnabel e Longo aos quais, de bom grado, eu trocaria por Mark Tansey. (3) Fox, p. 28. (4) Honnef, 1992, p. 137. (5) Owens, 1989, p. 45: “A imagem alegórica é uma imagem de que nos apropriamos; quem escreve alegoricamente não inventa imagens, mas confisca-as, reivindica o direito daquilo que tem um significado cultural e coloca-se como seu intérprete. Em suas mãos, a imagem transforma-se em algo diferente. Não significa um significado original, perdido ou apagado. A alegoria não é hermenêutica. Ao contrário, acrescenta um outro significado à imagem. Mas ao acrescentar, fá-lo apenas com o fim de operar uma substituição: o significado alegórico toma o lugar de um outro precedente; é uma substituição. Por este motivo, a alegoria foi condenada, mas esta é também a origem de seu significado teórico”. (6) Salle é um dos pintores sobre cuja obra pretendo debruçar-me, mais detalhadamente, num projeto de pesquisa ainda inédito (A questão do figural na pintura moderna: A crise da representação de Cézanne a Tansey). Em linhas gerais,
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nele tentarei reavaliar, epistemologicamente, o conceito de ‘figura’, ambicionando traçar em novos moldes o ‘itinerário’ da pintura praticada neste século desde sua semeadura cézanniana. Deverei também investigar, neste sentido, as dicções de Klee, Ernst, Bacon, Magritte, Fischl, além — como o próprio título antecipa — da de Mark Tansey. (7) Schjeldahl, 1984. (8) A característica ‘materialidade’ de suas imagens, obtida, na maioria das vezes, com a superposição de camadas transparentes levou alguns críticos (em sua maioria, europeus) a compará-lo, um pouco pejorativamente, com Picabia. Cf. Schjeldahl, p. 181. (9) Tucker, 1982. Segundo a autora, um exame iconográfico atento da pintura figurativa norte-americana, praticada a partir de fins dos anos 70, apontaria como recorrente a fragmentação de imagens numa única superfície. Tal recurso à sobreposição — aqui visto como análogo, em sua capacidade de implementação de leituras ambiguas, à sobrecarga informacional típica de nossa cultura — teria se manifestado com igual ênfase na escultura do período. (10) Paz, 1977, p. 28 e segs. (11) Heartney, 1988. Como que buscando agenciar as diversas críticas de fundo moral que esta opção angariou a Salle, a autora chega a conjeturar se, em seu próprio contexto, “tal reprodução de um imaginário que objetifica as mulheres serviria mesmo para denunciar (ou antes buscaria se valer d)a factual sujeição feminina dentro de uma sociedade patriarcal”. (12) Heartney, p. 121. (13) Schneede, 1978, pp. 32-45. (14) Kellner, 1989.
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(15) Michel Foucault, Isto não é um cachimbo (trad. de Jorge Coli), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
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O presente artigo propõe-se a uma abordagem preliminar da questão em foco, tendo nascido das discussões travadas na cadeira "Teoria Sociológica Contemporânea II" - Mestrado/IUPERJ - ministrada pelo Prof. Edmundo Campos Coelho. Dedico a reflexão que segue a Luiz Rodolfo Vilhena - in memorian que sempre tive como exemplo de inquietante pensador social, marco de minha geração. A ele devo a expressão "incitações" ao invés de "considerações finais". 2 LYOTARD, J-F, 1993. 3 SIEBENEICHLER, F. B., 1989: 15. 4 AROCENA, F.,1991: 18. A tradução é minha. 5 ROSENAU, P. 1992.: 48. A tradução é minha. 6 FREITAG, B., 1990.: 20-1. 7 HABERMAS, 1990: 65-6 8 IBID.: 100-1. 9 ARAGÃO, 1992: 54-5. 10 WEBER, M, 1991: 3. 11 Cf. SEIDMAN, 1992. 1
169 3 Textos 3 texts
Ricardo Basbaum Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ. Artista plástico e professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Editor da revista de arte item, publicada no Rio de Janeiro.
Os três textos aqui reunidos foram escritos durante o ano de 1996, a respeito de trabalhos dos artistas Tatiana Grinberg, João Modé e Brígida Baltar, com o objetivo de acompanhar as exposições que realizaram, naquele ano, no Centro Cultural Calouste Gulbenkian1. Se aproximo estes textos é porque uma série de características os interrelacionam, estabelecendo passagens, reverberações e ressonâncias em reforço mútuo, indicando elementos de uma mesma costura a atravessar a investigação desses artistas. É produzida aqui, então, uma nova escrita tripla, a configurar um local onde Tatiana, João e Brígida podem confrontar-se, de modo interessante, produtivo, frente a alguns traços de uma certa contemporaneidade da arte. O que foi tecido e plasmado nas linhas abaixo é parte de um esforço em pensar o trabalho destes artistas, aproximando-me do que fazem por meio da articulação, da invenção e da intervenção discursiva. Entretanto, as palavras aqui demarcam sobretudo o desejo de compartilhar, com eles, minha própria prática (seja enquanto escritor ou artista), colocando em jogo estratégias de rigor e proposições de limites – sem os quais nenhum fazer sobrevive – e exercitando, ao mesmo tempo, um pouco de olhar visionário. De modo que, se as artes visuais são, também, esta região dinâmica onde
1 Sob coordenação de Stella Costa, o Centro Cultural Calouste Gulbenkian realizou, em 1996, uma excelente
programação de exposições, voltada para a produção contemporânea do Rio de Janeiro. Cada mostra era acompanhada de um texto crítico e de uma palestra, comissionados pelo Centro Cultural – este é o caso dos textos aqui apresentados. As exposições referidas aconteceram nas seguintes datas: Tatiana Grinberg, de 26/03 a 04/04; João Modé, de 18 a 27/06; Brígida Baltar, de 20 a 29/08.
170 se enfrentam visualidade e discurso, os parágrafos que se seguem não deixam de ser, a seu modo, desenhos, sugestões diagramáticas para outros e novos traçados.
1. Continentes O conjunto da instalação proposta por Tatiana Grinberg apresenta, à primeira vista, certa sensação de familiaridade, em seu 'aspecto médico', hospitalar, ao carregar um conjunto de referências ao corpo, suas proporções, sua presença ou ausência. A referência direta ao corpo funciona, imediatamente, arrancando o espectador – presente enquanto corpo que invade o espaço de exposição – para fora de si, de encontro ao poder de envolvimento e fascinação do 'outro', da obra.
Os trabalhos provocam uma primeira inversão, virando o corpo do espectador ao avesso. Também o espaço é perturbado em seu sossego institucional, posto em contato com as curiosas relações internas instauradas pelos objetos, num tráfego aparentemente auto-contido, mas que simultaneamente transborda seus próprios limites: tensionando o entorno, provocando a emergência de uma região ultra-ativada, que a tudo dissolve, a todos captura. Cada peça pode ser isolada em seu universo próprio: uma delas, resulta do confronto de uma seção de esfera de vidro contra sua outra parte transformada, derretida (Still); outra, estabelece uma relação de proporcionalidade entre dois diferentes materiais – vidro e silicone –, criando um colar de contas que registra um tempo circular, contínuo e interrompido (Leap). A tensão se dá no vazamento, eminente, das narrativas internas dos objetos para o espaço ambiental. Daí o espelho perfurado, recortado, colado ao solo, cheio d'água na quantidade limite possível, prestes a transbordar (Container) – "ilha em negativo", água cercada de matéria por todos os lados.
171 A perturbação do espaço em sua inércia física conduz à construção de um local imantado, ultra-ativado, individualizado.
Fig. 1.
Ao atravessar este espaço ocupado por campos de atração intensiva de vários tipos, o indivíduo defronta-se com uma presença "fantasma" do corpo: o efeito colocado em ação pelo trabalho diz respeito a tornar presente, visível, esta ausência: construir moldes de corpos entre os objetos, como partes integrantes da instalação. Tais moldes exercem um irresistível movimento de captura do espectador, que se vê assim face to face com estruturas que produzem uma forma corporal outra: o que sou eu afinal? A pergunta é processada especificamente por uma peça de vidro, presa à parede na altura do olho, como um espelho que produz um reflexo da face dissolvida em silicone (Fantasma). As resinas e plásticos sintéticos estão entre os materiais que mais perfeitamente imitam a textura e a cor da pele humana, produzindo próteses com menores índices de rejeição pelo organismo, ajudando a embaralhar, mais uma vez, os limites do natural e do artificial. Se as dúvidas constroem resistências à redundância dos padrões orgânicos, rebelando-se ao seu comando e descortinando novos horizontes, a ênfase na irredutível presença de um corpo indica limites e contenções, talvez mais claramente visíveis quando inscritos nos ciclos temporais orgânicos do corpo feminino.
O olhar repotencializado pelos objetos retorna ao próprio corpo que o produziu, derretendo, desmaterializando, dissolvendo-o.
As idéias de transformação têm exercido apelo decisivo para a cultura contemporânea. Em todos os setores, a reverberação de um 'outro' indica o caminho a ser seguido,
172 para fora do próprios limites – aparentemente tediosos – do indivíduo. Modulações, ondulações, transformações, passagens, deslocamentos, metamorfoses: o tempo é irreversível, os processos caóticos são criativos, e a instabilidade e o acaso ao mesmo tempo animam e transcendem o culto ao presente imediato. A instalação de Tatiana Grinberg coloca em ação um todo mutante, uma gestalt móvel, irrequieta, em que os objetos, os corpos, as pessoas, são diversos estados coexistentes de uma coisa só. O que é isso, que pode ser ao mesmo tempo espelho, vidro, silicone, aço, matéria orgânica – ou melhor, que percorre todas essas formações, continuamente, de modo tão rápido que mal podemos rastrear? O olhar topológico atento não deixa de ressaltar as passagens, os estados intermediários de um espaço que nunca está imóvel ou neutro. Importam as superfícies, as membranas, as regiões de contato, a contigüidade; cada nova presença esbarra nas outras, reconfigura o todo – aderências, repulsões, atrações… Só assim é possível, concretamente, escapar da pressão generalista e construir um local, com funcionamento radicalmente diverso; é esse o caminho da intervenção, enquanto deflagradora de outros movimentos; desse modo constitui-se uma ambiência, com suas exigências físicas sobre o espectador. Se estamos falando de arte, é apenas como um funcionamento posterior, resultado de um processo que deixa marcas, manchas estranhas, cicatrizes no corpo, no tempo e no espaço.
Os fluxos entre corpos e coisas produzem diferentes estados, envolvendo tudo com transformações em processamento contínuo.
2. Cama O que quer conosco João Modé, quando deixa de cortar os cabelos em 1991 e passa quatro anos recolhendo sua próprias unhas, para usá-los como material de trabalho? Por que nos pede para colocar os dedos das mãos em uma fenda macia, coberta de pelo animal, na superfície de um saco de luta de boxe recheado com suas próprias
173 roupas usadas? De onde parte o estranho convite para sentarmos em um banco coberto de pelos, onde nosso próprio sexo é refletido por um pequeno espelho? E estes outros estranhos espelhos, compostos de veludo, pelo animal ou cabelos, que recriam nosso próprio reflexo, a partir do olhar de João? Não indicará uma irradiação de desejo, este uso contínuo de gordura animal, que recobre objetos e cria novas formas e superfícies, esquentando o espaço ao redor? 2
João Modé não é apenas mais um artista a pontuar os anos 90 em direção às questões do corpo, seus traços e impulsos, sua temporalidade e espaço. Pouco vale pensar aqui em formas de agrupamento e familiaridade, caracterizando e arquivando possíveis tendências de uma década, para pretender um conjunto qualquer de homogeneidades. Frente a um artista que irradia uma nova intervenção interessa perguntar para onde ele pode nos conduzir, que caminhos revelam suas investigações, com que vertigem é capaz de nos atingir.
A realidade diária de um indivíduo e seu corpo, seus ritmos e repetições, centrada não em pulsões determinadas mas em suas indeterminações, ocupa o trabalho mais recente de Modé, enquanto um intenso voltar-se para si próprio como forma de dobrar o tempo e fazê-lo agir internamente: cuidado consigo, auto-afecção, enquanto geradores de um campo afetivo a ser depois compartilhado, lançado aos outros. A fórmula 'não saber o que fazer' – que persegue a todo o artista, que é sussurrada a qualquer um todas as manhãs – é acalentada ao limite, quase suspendendo a passagem do tempo (afinal, estas unhas crescem ou não? não posso ver seu movimento… ), que torna-se lento, viscoso. João Modé produz filtros – que serão atravessados apenas pelo transpessoal e não-autobiográfico – e espelhos – que nos reproduzem como João nos quer, através de um querer-se a si próprio em 2 Referência aos trabalhos expostos na mostra individual Natureza Animal, Galeria do IBEU, de 14/05 a 05/06/96.
174 transformação, investigando a natureza humana, nos querendo animais. A arte é o que há de mais e de menos humano, por arrancar-nos de qualquer abrigo e ao mesmo tempo construir um pólo de atração (para onde?).
O corpo não é um tema qualquer, entre outros. Trata-se de uma questão moderna, parte radical de um pensamento acerca de si próprio e do tempo presente, de um esforço sobre a ação no agora. Ocupar o espaço com uma Cama de cabelos recolhidos em salões (desta vez, de outros), dois travesseiros moldados em gordura animal (um deles, contendo rasgos e furos), interligados por tubos arteriais de diferentes calibres – ou será um gesto de radical experimentação poética ou nada será. Criar distâncias, produzir objetos, experimentar as formas.
A presença do corpo do outro, o corpo ausente, convite ao sono – ou ao sonho? Neste trânsito inter-corpos, a interligação por fios irá trabalhar o segredo, o que só posso dizer a alguém ao meu lado (a mim mesmo?). Mas também ajudará a forjar um coletivo, um além de mim absoluto – se é que seja possível um inconsciente extracorporal: João Modé ora tangencia os limites de uma psicologia coletiva, ora recua ao singular. Movimentos conduzidos pela afetividade com que consegue preencher o espaço, alinhavar o calor, a gênese de formas-corpos, a ambientação de um sono em vigília. Matérias que avançam para dentro de nós, nesta administração íntima do imenso estado de vazio amoroso contemporâneo – que não nos pertence.
3. Em Casa Mudar a casa, revirar-se ao avesso, transformar-se. E fazer desse processo matéria de produção de uma nova vida, que busca nas estratégias da arte um de seus impulsos de sentido. Algo será repotencializado através da arte, indicando a necessidade da invenção e uso de certos procedimentos: como fazer arte em casa, a partir da casa,
175 lugares fora de tudo nesse momento? E aí forjar uma natureza, outra a cada vez, além daqui, do centro urbano. A casa passa a ser laboratório, mas também corredor, passagem, conexão direta com outro mundo que está sendo construído: abrir janelas, abrir buracos na parede, arrancar tijolos, coletar goteiras, sobras de café, madeiras bordadas por cupim. Identidades e individuações cambiantes, sucessivas, de processos, coisas, objetos. Brígida Baltar recolhe suas lágrimas em potes de vidro.
Livros de infância, desenhos antigos, lembranças recentes, foram rasgados, destruídos e a seguir lançados para baixo da terra, ritualisticamente enterrados (é preciso reagir à cristalização do passado). Desde 1993, vem desviando seu trabalho para uma discussão que atravessa os limites da possibilidade e impossibilidade da arte, centrada em procedimentos de exploração intensa de tudo ao seu redor, investigando e demarcando um território (seu devir coletivo). Brígida nos relata esta experiência de construir a casa como se estivesse se construindo, momento de superposição e mistura das demandas existencial e artística, fazendo de ambas um mesmo e duplo impulso. Difícil tarefa, conjugar a exigência coerente de uma vida social com o impulso disjuntivo do acontecimento artístico. Hibridismo trabalhoso, maquinismo árduo: construir para si e para o outro, buscando o avesso e a superfície demarcada, desencontrar-se. Daí que as coletas realizadas não podem esgotar-se simplesmente na apropriação ready-made, já que lá não existe um desprezo estético pela arte que seja separável de uma demarcação de um espaço de vida.
Nos trabalhos realizados ao ar livre, fora da cidade, está em jogo a busca de uma espécie de espaço ideal de existência, um pós-paraíso dessacralizado, palco de eventos de ação e movimento, onde as encenações nunca se repetirão – lugar sem retorno, efetivação de puras singularidades sem volta. Lá, a gigantesca bola de algodão – significativamente, sem lugar no Museu – pode circular livremente, chocar-
176 se com as árvores maiores do que ela, ultrapassar pequenos buracos; tanto faz se para lá ou para cá, ocorre simplesmente a busca de instantes de uma qualquer pontuação poética. Pedaços de algodão cru são pendurados em árvores e fotografados; ainda que caiam pouco depois, a intervenção já ocorreu – ou quase, não importa: cada pedaço de algodão ou cada árvore são únicos, singulares, em seus gestos e configurações e é isso, sim, que interessa.
No mesmo cenário, um armário de portas abertas, cheio de terra: naquele instante, desempenha a função de recipiente ou receptáculo, que contém, recebe, guarda, possui; sabemos que nem sempre será assim, mas esta seria sua natureza. Brígida Baltar investiga o princípio feminino como o das forças organicamente mais próximas da terra, dos ciclos lunares, do receptivo. Esculpe tijolos e neles grava frases sobre mulheres (definições, atributos, qualidades, … ), perseguindo algo de Eva, mas ao mesmo tempo desviando seu caminho de uma busca das origens. Não há qualquer mitologia a ser reconstruída; será a construção de si própria que poderá erguer novos mitos, menores, locais, imprevistos, inesperados – a força da auto-configuração é cultivada a partir das inscrições e desenhos da legibilidade de um espaço, do corpo como território.
Um corpo plasmado na casa, cravado na parede que a sustenta; pedaços de alvenaria retirados, para dar lugar a um corpo, à carne e à pele: desejo do estrutural, de tornarse uma estrutura? Claro, confundir-se com as paredes, fundir-se com ela, fazendo dali um local privilegiado em relação ao entorno – local que não confunde-se com o espaço propriamente dito, mas a partir do qual Brígida Baltar estabelece a possibilidade de uma presença especial, um outro tipo de presentificação, outra forma de apresentar-se. O corte na parede, feito sob medida para seu próprio corpo, não indica – nem pretende – um ponto de vista especial, um ponto de convergência de luz,
177 do olhar; muito mais do que um posto de observação, o corte propõe um 'posto de presença' no ambiente, uma possibilidade – rara – de instalar-se na borda, na linha de fronteira, no limite entre os lados de dentro e de fora – e ali experimentar a si própria. Brígida Baltar está engajada em uma forma de fazer arte que deliberadamente renegocia e confunde o que estaria aquém ou além dos limites de tal forma de ação: misturando práticas, lugares, materiais e matérias, conduz a percepção para uma região que investiga os contornos do próprio corpo e os contornos do ambiente, provocando o entrelaçamento destas linhas: é aí que o corte na parede transforma-se em molde, fôrma para um novo desenho, outro projeto de um corpo. Pois instalar-se nas bordas não é colocar-se mais perto dos fluxos, devires, impulsos de transformação, conduzindo estas forças para o espaço de fora, mas deixando-se atravessar por elas? Posição de uma lateralidade estratégica frente ao mundo, frente à arte, e por isso mesmo reveladora de um esforço concentrado de ação e intervenção: tecer-se, tramar-se em torno, ambientar-se.
178 IDEOLOGIA: ATUALIZANDO A REFLEXÃO IDEOLOGY: ACTUALIZING THE REFLEXION
Vitor Marinho de Oliveira Doutor em Educação pela UFRJ Docente da UGF
A ideologia sempre foi desencadeadora de discussões tão apaixonadas que Bell tentou assassiná-la nos anos 50. Fukuyama, há pouco, tentou sepultá-la definitivamente, ao decretar o fim da História. Curioso observar os paradoxos. Bell vivia o calor da Guerra Fria e Fukuyama observava os escombros do Muro. Suas idéias são produto — como sempre — de condições históricas que viabilizaram embates exatamente no campo ideológico. Foi Marx que elevou ideologia à condição de categoria. Este ensaio pretende apresentar a evolução deste conceito no pensamento marxiano, bem como sua presença na interpretação de alguns marxistas. Com os antecedentes baconianos de sua crítica dos ídolos e a brilhante dedução de Helvetius segundo a qual nossas idéias são a conseqüência necessária das sociedades em que vivemos, as noções de ideologia em seu sentido atual radicam no Institute de France, a quem foi confiada pela Convenção de 1795 a responsabilidade de instalar um centro de pensamento revolucionário. Os savants da Revolução Francesa eram os líderes desse centro e eram chamados ideológues (Hall, 1983). Desfeito o grupo dos savants, Destutt de Tracy utiliza-se do termo ideologia — pela primeira vez, de acordo com Löwy (1987) e Chauí (1981) — em sua obra
179 Elements d’Idéologie, publicada em 1801. Ao pretender dispensar um tratamento científico ao estudo das idéias, considera que estas são o resultado da interação entre o corpo e o meio ambiente. Essa naturalização do pensamento humano estabelecia uma contradição com a intenção de Tracy em tentar revelar a historicidade das idéias. Em 1812, Napoleão refere-se aos ideólogos afirmando que
todas as desgraças que afligem a nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história (apud Chauí, 1981: 24).
Ao dar uma conotação metafísica à postura que os chamados ideólogos consideravam, eles mesmos, materialistas, Napoleão inaugura um sentido de negatividade para o termo ideologia, na medida em que as especulações metafísicas só poderiam convergir para a inversão das relações entre as idéias e o real (Chauí, 1981). Conforme veremos mais adiante, essa acepção de ideologia será resgatada por Marx e Engels. Comte em seu Cours de Philosophie Positive (1830/1842) utiliza-se também do termo ideologia, dando-lhe dois significados. O primeiro, praticamente igual ao de Destutt de Tracy. O segundo, como “o conjunto de idéias de uma época, tanto como ‘opinião geral’ quanto no sentido de elaboração teórica dos pensadores dessa época” (Chauí, 1981: 25-26). Esse segundo sentido de ideologia é bastante marcante na sociologia comteana, pois de acordo com as suas fases de evolução do espírito humano, em cada uma delas está presente uma orientação (ideologia). Na última e definitiva dessas fases (positiva ou científica), a “latente sociedade industrial necessitava passar por algumas mudanças, que deveriam ser comandadas por industriais e cientistas [...] como conseqüência da ordem instalada” (Bedone, 1987:
180 31). Essa nova ordem será consagrada “onde a prática estiver subordinada à teoria, isto é, ao conhecimento científico da realidade” (Chauí, 1981: 28). Levando em conta que industriais e cientistas deveriam dirigir as modernas sociedades e que estas, antes de serem modernas, eram burguesas, percebe-se que o corpo teórico de conhecimento existiria para apoiar os regimes burgueses recém-inaugurados. Nessa medida, o corpus teórico assume conotação ideológica. Sob pena de cair num sincronismo indesejável, é necessário que se compreenda Marx dentro de um processo de evolução intelectual que pode ser dividido em três fases que não representam cortes epistemológicos do tipo jovem e velho Marx, também indesejáveis (Larrain, 1988). A primeira fase vai desde o início da sua produção até 1844, que marca o rompimento com Feuerbach. Marx ainda não se utiliza explicitamente do termo ideologia, apesar de deixar perceber elementos que iriam compor sua concepção, como por exemplo quando faz suas críticas à religião e ao Estado hegeliano. Aqui, já se encontra presente a idéia de inversão da realidade, sem, contudo, considerar a busca da compreensão política dessa realidade. A ideologia, a essa altura, era um conceito filosófico que explicava os vácuos da realidade, que só permitem perceber aparências (Brasil, 1988). A idéia de inversão encontra-se presente nas suas críticas a Feuerbach e Hegel, que são os seus pontos de referência nessa fase (Larvain, 1988). Até os Manuscritos, Marx ainda está profundamente influenciado por Feuerbach e Hegel. Encontramos, ainda, expressões como realidade humana e essência ou natureza do homem, que vêm a ser a mesma coisa e materializam-se no trabalho. Este, no entanto, já era entendido ao contrário de Hegel, ou seja, pelo seu lado negativo, que é o trabalho alienado (Vásquez, 1977). Em relação à crítica da religião
181 feita por Marx, aceita o princípio feuerbachiano de que o homem fez a religião, mas a supera ao argumentar que a crença de que Deus fez o homem é outra inversão que expressa as contradições do real (Larrain, 1988). O rompimento de Marx com Feuerbach (1845) marca o início da segunda fase, que vai até 1857, sendo o período de elaboração da sua — talvez — maior contribuição científica, juntamente com Engels: o materialismo histórico. A ruptura com Feuerbach fica bem compreendido na 3a tese:
A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade (como, por exemplo, em Robert Owen). A coincidência da modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como prática transformadora (Marx, s/d: 208209).
A partir d’ A Ideologia Alemã (1845-1846), Marx — desde A Sagrada Família (1845) já escreve em parceria com Engels — começa a conceber uma outra perspectiva de se entender a história e introduz — literalmente — o conceito de ideologia em sua obra. N’ A ideologia Alemã, o conceito de ideologia aplica-se basicamente à produção da mente humana, enquanto sistema das faculdades mentais, sejam elas produtos lógicos em sentido estrito (idéias, pensamentos, doutrinas) — ou quaisquer outro tipo de representação. Marx já buscava mostrar que o problema da ideologia não pode ser separado da questão política da dominação, ou seja, dissociar ambos os planos é pensar a ideologia de maneira insuficiente. Marx ensina que a ideologia dominante não se destina somente às classes dominadas, quando afirma:
182 As idéias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual (Marx e Engels, 1986: 72).
Trata-se, portanto, do papel que a ideologia tem de atuar no sentido de manutenção da ordem social estabelecida. Dessa forma, a ideologia assume uma função de negatividade, ou seja, de realidade ilusória, provocadora de reconhecimentos falsos ou de falsa consciência em geral. Cabe-lhe encobrir uma verdade: a realidade da exploração e submissão a que estão sujeitas as classes subalternas da sociedade. Nessa fase, portanto, Marx amplia o seu conceito de ideologia onde esta não será apenas aparência, e sim intenção política. Buscam assim, uma compreensão mais abrangente da sociedade capitalista. Vê-se, portanto, que a ideologia ainda tem um caráter restrito, que não explica todas as distorções da realidade social, além de não tentar superar contradições apontadas com outra arma além da crítica. De qualquer forma, Marx já caminha pela estrada da história real, pois “abandona a idéia de um homem concebido como uma essência humana universal abstrata, privada de qualquer relação intrínseca com o mundo real, pura autoconsciência” (Severino, 1986: 6-7). A terceira fase vem com os Grundrisse (1858) e termina com o estabelecimento de uma teoria sobre determinado modo de produção: o Capitalista, onde o homem não perde a condição de natural — já expressa nos Manuscritos —, mas encontra no mundo exterior a mola que o impulsiona em direção às suas necessidades. Dessa forma, o ser humano transcende a condição de natural e transforma-se em ser histórico. As relações que o homem concreto, real, trava com o mundo — também concreto e real — são relações de caráter econômico-social. Nas relações sociais da
183 economia de mercado, a lei que dirige é a lei do maior lucro. A evolução da humanidade, porém, chegou a uma etapa onde as coisas criadas pelo homem para a satisfação das suas necessidades — quer espirituais, quer materiais — perderam o sentido do valor de uso, pois foram transformadas em mercadorias. As implicações éticas que se podem tirar disso se fundamentam na transformação do próprio homem em mercadoria. A terceira fase, que culmina n’ O Capital (1861/1879), marcando “o instante da mais elevada elaboração de sua crítica da economia política” (Flickinger, 1985: 90), o termo ideologia quase desaparece, mantendo-se basicamente a elaboração teórica já feita, na medida em que a noção de inversão continua sendo aplicada, reelaborada no bojo do desenvolvimento intelectual de Marx. Isso manifesta-se na sua obra maior, ao referir-se ao funcionamento do mercado e à concorrência nas sociedades capitalistas, onde
tudo parece invertido na concorrência. O padrão final das relações econômicas vistas superficialmente em sua existência real, e conseqüentemente nas concepções pelas quais os seus portadores e agentes procuram compreendê-las, é muito diferente, e, na verdade, é o próprio inverso, de seu padrão interno essencial, mas oculto, e da concepção que a ele corresponde (apud Larrain, 1988: 184).
Vemos que, apesar dos avanços de Marx, a concepção de ideologia ainda se encontra significativamente vinculada às classes dominantes, mantendo suas características de negatividade, na medida em que o seu papel seria o de mascarar a realidade social, criando uma falsa consciência desta realidade. A primeira ampliação mais significativa do conceito de ideologia dá-se com Vladimir I. Lenine. Essa ampliação não nega a construção conceitual de Marx e Engels. Supera-a. Ideologia não viria a ser algo ligado apenas à classe dominante, e sim às classes, quaisquer que fossem. As próprias condições de existência de Lenine
184 fizeram-no estender o conceito para consciência de classe e para a luta política, deixando de representar apenas a concepção de mundo dominante. O entendimento da ideologia deixa, pois, o espaço teórico para aninhar-se no espaço político, deixando de ter “o sentido crítico, pejorativo, negativo, que tem em Marx, e passa a designar qualquer doutrina sobre a realidade social que tenha vínculo com uma posição de classe” (Löwy, 1987: 12). Sem dúvida, Lenine foi aquele que soube interpretar o marxismo em condições históricas determinadas, aplicando-o a uma situação concreta — no caso, às lutas políticas nos fins do século XIX na Europa Oriental e, particularmente, à Rússia czarista. Desde cedo era líder em São Petersburgo, pregando o afastamento da propaganda doutrinária “em favor das atividades de agitação econômica de massas” (Harding, 1988: 211). Sua concepção de ideologia encontra-se inevitavelmente ligada à sua concepção de partido, enquanto vanguarda do movimento operário (Lenine, 1974) e no seu estudo sobre as tarefas do proletariado na revolução (Lenine, 1987). Ainda dentro da produção marxista, encontramos Georg Lukács, cuja obra pode ser considerada “como a mais ambiciosa arquitetura teórica do marxismo posterior a Lênin” (Netto, 1983: 10). O notável pensador húngaro relaciona a consciência de classe à questão ideológica, considerando em suas reflexões a existência, tanto de uma ideologia (consciência) burguesa, como uma ideologia (consciência) proletária. Desta, o marxismo seria a sua expressão maior, enquanto instrumento de luta. Em História e Consciência de Classe, publicado em 1923, Lukács constrói o seu discurso a partir da recuperação do pensamento hegeliano, motivo que o levou a ser considerado idealista, revisionista etc. Muitos anos após, o próprio Lukács faria autocrítica, ao referir-se a erros grosseiros que cometera. Era um marxista por convicção, porém, suas reflexões sobre a ciência e, particularmente, sua concepção
185 sobre a relação teoria e prática (conhecimento e ação) encontram-se no âmago do que pode ser considerada a sua ampliação do conceito de ideologia. Para Lukács, o proletariado é a primeira classe social que surge na história com possibilidade de compreender a sociedade como um todo, tornando-se o sujeito e o objeto de conhecimento histórico, o que lhe possibilita criar uma teoria verdadeiramente revolucionária. A verdade, pois, está presente pela primeira vez na história. Libertando-se, o proletariado libertará toda a humanidade. Essa é a sua tarefa, apesar de sua imaturidade ideológica, pois sua consciência encontra-se contaminada pela ideologia burguesa (Mc Donough, 1983). Nesse ponto, percebe-se o resgate do conceito de ideologia como falsa consciência presente no Marx d’ A Ideologia Alemã. Gramsci foi quem, finalmente, mais ampliou o conceito de ideologia numa perspectiva marxista. Para o pensador dos Cadernos, ideologia representa uma visão de mundo em todos os espaços da vida: arte, literatura, economia etc. A ideologia é tudo que está organizado no plano das idéias, não significando, apenas, concepções introjetadas. Por esse caminho, Gramsci rejeita o caráter negativo de ideologia. Esta passa a confundir-se com a própria vida e é o espaço de realização da política. Ideologia é a explicação pela qual uma classe pode exercer hegemonia sobre as demais, assegurando o apoio das maiorias. Apesar de não existirem, apenas, duas ideologias — dominante e dominada —, estas são as mais importantes e encontram-se imbricadas, o que denota uma concepção de ideologia anti-estruturalista. Ideologias são concepções de mundo que se constróem e desconstróem. Gramsci não rompe com a arquitetura social marxista quando analisa as relações de base e superestrutura. A base continua sendo o paradigma da análise histórica, apontando, porém, para um grau de autonomização da superestrutura. A base, portanto, é o locus onde as classes são precisadas: é o espaço de produção. A
186 base (espaço da produção) é a forma e a superestrutura (espaço da ideologia) é o conteúdo, apesar de não haver relação de dependência absoluta entre as duas instâncias. O filósofo italiano aproximou ideologia e luta política, para alcançar-se o poder. Para tal, a ideologia seria um espaço ontológico, onde as classes seriam identificadas; um espaço gnosiológico, onde se daria o conhecimento do jogo político; e, finalmente, um espaço axiológico, onde identificar-se-iam os valores. A tarefa política dá-se no processo de desvelamento do senso comum que, em Gramsci, é sinônimo de consciência fragmentada, onde o empirismo passa a ser a própria explicação do mundo. A busca de transparência, portanto, é a função de luta política. A hegemonia — sua principal categoria — dá-se via imposição da ideologia como espaço político, assumindo uma conotação de direção, e não de domínio. Hegemonia não é, nessa medida, homogeneidade, e sim prevalência, ou seja, possibilidade de uma extensão maior sobre uma extensão menor (classes subalternas e classes dominantes). Gramsci destaca o papel do intelectual como elemento de mediação na busca da hegemonia. Existem dois tipos de intelectuais: o tradicional e o orgânico. O intelectual tradicional está ligado aos mecanismos de dominação e defende princípios que não são atualizados historicamente: é a própria memória da dominação. O intelectual orgânico — muito mais instituições do que pessoas — podem ser de dois tipos: aquele que se liga à classe dominante e o que está a serviço da classe dominada. Entre os intelectuais orgânicos trava-se uma luta de competência em busca de uma concepção hegemônica que se manifesta por articulação de alianças inter e intra-grupos, levando-se em conta que frações de classe podem exercer funções hegemônicas.
187 Gramsci não propõe a hegemonia de um partido único, e sim uma democracia plural. Entende que deve haver um partido principal, mas não único. A hegemonia é, então, o espaço consensual, a busca de acertos, alianças etc., não sendo espaço de confronto. Salvo se estiver claro o jogo de forças e as classes dominadas estiverem ideologicamente conscientes e materialmente armadas. Aí, sim, caracterizar-se-á a guerra de movimento e a possibilidade de tomada do poder (Brasil, 1988). Althusser — no âmbito político — tem a intenção de completar a teoria de Estado marxista, por entender suas limitações enquanto concebido unicamente como aparelho repressivo. Este, na teoria marxista é compreendido pelo Governo, Administração, Exército, Polícia, Tribunais, Prisões etc. O que Althusser chama Aparelhos Repressivos de Estado indica o Aparelho de Estado que “funciona pela violência — pelo menos no limite (porque a repressão, por exemplo administrativa, pode revestir formas não físicas)” (Althusser, 1980: 43). O que o pensador francês acrescenta à teoria marxista é o conceito de Aparelho Ideológico de Estado (AIE), que significa “um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas” (Althusser, 1980: 43). A ideologia, na perspectiva estruturalista althusseriana é entendida como um dos níveis que, juntamente com o político e o econômico, delineiam uma dada formação social. Os AIEs compõem-se das seguintes instituições: (a) o AIE religioso; (b) o AIE escolar; (c) o AIE familiar; (d) o AIE jurídico; (e) o AIE sindical; (f) o AIE político; (g) o AIE da informação; e (h) o AIE cultural. Estes AIEs não se confundem com os Aparelhos Repressivos de Estado, que pertencem ao domínio público, enquanto os AIEs compõem o domínio privado. No âmbito epistemológico, Althusser adota uma postura cientificista ao distinguir ciência e ideologia, pois caberia à filosofia “proceder a purificação da ciência de toda contaminação ideológica” (Severino, 1986: 45). Althusser considera a importância da
188 ideologia, enquanto uma relação real na sociedade, embora seja imaginária. O nível de inconsciência não lhe dá um caráter de superação das contradições sociais, pois Althusser acaba por definir ideologia como instrumento de dominação, afastando a possibilidade de existência de uma ideologia das classes dominadas. Podemos sintetizar o estudo da categoria ideologia a partir de alguns níveis de análise. Sobriño (1986), por exemplo, entende que “a utilização do termo ideologia registra uma conotação dupla e oposta: uma conotação positiva, ou uma conotação negativa” (p. 16), ambas vinculadas à noção de conhecimento, ou ciência. Em última análise, trata-se da questão da verdade/não-verdade. Ou, em outras palavras, do entendimento da realidade ou de sua deformação. Em sua versão positiva, as estruturas sociais poderiam ser explicadas pela superestrutura ideológica. A ideologia, pois, interpreta fidedignamente a conjuntura estando apta a modificá-la. Esta versão compreende a ideologia como privilégio das classes dominantes, cimentando-as para seus movimentos, como em suas revoluções democrático-liberais. Fica claro, nesse sentido, uma vinculação entre ciência e ideologia. Em sua versão negativa, a ideologia assume o papel de falsa consciência, afastando ao máximo a ciência da ideologia, como por exemplo, em Althusser. A autora constata o caráter de negatividade que Marx concede à ideologia, concluindo pela necessidade de não considerar a pertinência da definição da categoria por critérios de veracidade e falsidade, na medida em que se deve
examinar a representação em si, estudando-a como um produto específico, considerando os modos de organização dos seus conteúdos [...]. Será necessário, então validar o procedimento que parte da consideração da ideologia como uma totalidade organizada, dialética e autônoma (Sobriño, 1986: 20).
189
Nosela (1983) ao estudar alguns autores que procuraram entender a ideologia numa perspectiva marxista, também considera a possibilidade de leitura a partir de duas grandes tendências. A primeira tem o seu locus na classe dominante e interpreta ideologia como falsa consciência, tendo como objetivo “escamotear a exploração econômica e a dominação política que as classes dominantes exercem sobre as classes subalternas” (p. 1). Nesse caso, a ideologia — enquanto espaço de luta política para a superação das contradições do real — não poderia cumprir um papel revolucionário. A segunda tendência não concede à ideologia um conceito restrito, retirandolhe o caráter pejorativo e de negatividade que já se está tornando tradicional. Nessa perspectiva, “aplica-se também ao pensar da classe dominada com função de orientar uma ação revolucionária de libertação dialética e objetiva dessa mesma classe” (p. 2). Ao final desse ensaio, algumas posições podem ser assumidas. Em primeiro lugar, não podemos desprezar o pioneirismo de Marx e Engels no que concerne ao conceito de ideologia. Por mais que n’ A Ideologia Alemã possamos encontrar um conceito restrito da categoria ideologia, é bom lembrar — em nome da teoria social marxiana — as condições em que foram produzidas. A luta de Marx e Engels contra os neo-hegelianos, sem dúvida, obrigou-os a radicalizarem suas posições em nome de uma tarefa que era eminentemente política, e não acadêmica. Não se pode esquecer que as ampliações do conceito de ideologia se deram a partir d’ A Ideologia Alemã, cabendo-lhe, portanto, todos os méritos. Não nos esqueçamos que ideologia é — também — falsa consciência e que essa noção é fundamental em qualquer espaço de luta política. Num segundo momento, a maior e necessária ampliação do conceito deve-se àquele que colocou em prática os princípios marxistas, aplicando-os a uma situação
190 histórica determinada. Nada mais dialético, portanto. Lenine e os que lhe seguiram no trabalho de ampliação negaram — dialeticamente — a concepção de Marx. Superaram-na, portanto. Gramsci parece ser aquele que melhor cumpriu esta tarefa de ampliação. Sempre acompanhando o movimento da história, analisou aspectos que os seus antecessores marxistas não se aprofundaram (até porque não era seu objetivo), dando uma contribuição inestimável a todos os que tentam encontrar meios de se criar uma Outra sociedade, onde os homens são reconhecidos pelo que são, e não pelo que têm.
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192
GLOBALIZAÇÃO e ETNOGÊNESE : Os ‘Novos’ Índios do Nordeste e sua Arte Globalization and ethnogenesis: the “new” indian groups at the Northwest and their art
Wallace de Deus Barbosa Doutorando do PPGAS-MN-UFRJ. Professor do Depto de Arte/IACS-UFF
O estudo da globalização nas ciências sociais passou a ganhar espaço a partir de meados dos anos 80, com o predomínio inicial das perspectivas que adotaram a idéia de “sistema mundial”, tal como foi concebida por Immanuel Wallerstein (1980). Na virada de nossa década intensificaram-se os estudos sobre “cultura” - convergentes com a perspectiva da globalização caracterizando um movimento denominado por Roland Robertson (1992) de “virada cultural” que vem fortalecendo linhas de pesquisa hoje abarcadas sob o rótulo genérico de ‘Cultural Studies’ ou, simplesmente, ‘estudos culturais’. Existe uma idéia generalizada de que a globalização implicaria em um processo de homogeneização cultural planetária, onde as diferenças seriam niveladas por uma espécie de ‘ética liberal’, responsável pela domesticação de determinadas
práticas
culturais
consideradas
condenáveis
pelo
estabelecimento de uma ‘nova ordem mundial’. Fala-se em ‘imperialismo cultural’, ‘capitalismo mundial integrado’, ‘capitalismo tardio’, como formas
193
disfarçadas de um espécie de um ‘neo-colonialismo’. A este respeito, ficou muito conhecido o debate em torno da prática da clitoridectomia entre mulheres africanas, condenada de forma veemente por uma infinidade de organizações feministas. A verdade é que esta prática ainda é intensamente seguida entre diversos grupos étnicos atuais, com toda a força de uma tradição local. A tensão existente entre as práticas e valores locais contra a presumida opressão niveladora da chamada “cultura global”, para usar a terminologia de Mike Featherstone (1994), está longe de ser dissipada. Tanto é que vários autores têm se esmerado em produzir neologismos ou elaborar conceitos que dêem contra desta tensão. Ulf Hannerz (1991) fala em ‘criolização da cultura’, enquanto Jan Pieterse (1995) trabalha com a noção de ‘hibridização cultural’. O propósito destes autores é entender a globalização como um processo de trocas culturais que nos levaria a um “global mélange”. Finalmente, Roland Robertson (1992), propõe a noção de “glocalização”, para dar conta simultaneidade entre as forças globais e locais ou, de uma forma mais abstrata, do universal e do particular. Em seu entender, a globalização envolve a reconstrução, no sentido da produção, da casa e da comunidade e, porque não dizer, das identidades sociais. Desde há pelo menos duas décadas, o nordeste do Brasil vem sendo palco de um fenômeno social que, embora revestido de singularidades, remete a processos semelhantes ocorridos em África, Oceania, Américas do Norte, Latina, Ásia, enfim. Refiro-me ao movimento de reafirmação étnica de grupos indígenas locais, acompanhado de um intenso processo de reelaboração
194
cultural. Trata-se de uma luta simbólica pelo reconhecimento étnico que vem, já há algum tempo, sendo objeto da atenção de antropólogos, historiadores , do público em geral, bem como das autoridades responsáveis, tanto pela forma com que vem se desenvolvendo este processo, como pelo
que
representa no sentido de romper com alguns pressupostos e tradições estabelecidas. Mobilizados com uma série de mudanças ocorridas na política indigenista nacional, sobretudo a partir da década de 70, tais como a promulgação da Lei 6001 de dezembro de 1973 que se tornou conhecida como "Estatuto do Índio"; a criação do Conselho Indigenista Missionário (órgão ligado à CNBB) e da União das Nações Indígenas - UNI em 1980, vários grupos
que até então eram designados pela população regional como
"caboclos", passaram a reivindicar ao órgão oficial de assistência às populações indígenas - FUNAI - o reconhecimento como grupo indígena com direitos constitucionais estabelecidos. Uma série de grupos de diversos Estados nordestinos iniciaram , muitas vezes auxiliados por agentes e agências ligadas à causa indígena, um processo de retomada de práticas tidas como “tradicionais”, como a produção artesanal; diversas modalidades de práticas rituais e, quando possível, a utilização de um idioma próprio ou de um vocabulário com termos específicos para designar determinados ítens de sua cultura material. Este movimento resulta de um intenso intercâmbio cultural, principalmente no campo ritual - entendido como sistema de práticas, representações e de objetos - que se deu paralelamente ao agenciamento político na resolução de seus problemas, sobretudo fundiários.
195
Segundo Jonathan Friedman (1994), esta é uma tendência da chamada “cultura global” e não é prerrogativa do Terceiro Mundo. Assinala este autor que, de 1970 para 1980, a população indígena da América do Norte cresceu de 700 000 para 1,4 milhão, incluindo a criação de uma série de novas tribos. É o processo que modernamente tem sido chamado de “etnogênese”. O termo “etnogênese” é de Melvyn Goldstein (1975) 1 e foi utilizado para dar conta da realidade dos refugiados tibetanos na Índia. Atualmente existem quase 100.000 refugiados tibetanos, dos quais de 70.000 a 80.000 residem permanentemente na Índia. Recentemente, em uma etnografia primorosa, Katarina Sjöberg (1996) testemunhou o ressurgimento dos Ainu; grupo étnico japonês do arquipélago de Hokkaido que se julgava há muito terem sido extintos. Seu ressurgimento se deu acompanhado de um intenso movimento de mobilização cultural. No caso brasileiro, o termo vem sendo aplicado para aqueles grupos indígenas
-
alguns
recentemente
reconhecidos
oficialmente
-
cujas
denominações não encontram registro na literatura especializada. Só em Pernambuco, este é o caso dos Kambiwá, Kapinawá, Truká, Atikum, além dos Tingui-Botó e Geripancó de Alagoas e dos Kantaruré da Bahia (Cf. Atlas das Terras Indígenas do Nordeste. PETI/PPGAS, 1993). Os chamados movimentos de “reafirmação étnica”, “revivalismo cultural” ou “etnogênese” que se dão, a partir dos anos oitenta no nordeste, parecem ter sido melhor assimilados - não sem resistência - pela Funai e instâncias decisórias do poder central que pela opinião pública local ou regional. Na 1
- Melvyn C. GOLDSTEIN - IN Despres ( 1975 ) - ‘ETHNOGENESIS AND RESOURCE COMPETITION AMONG TIBETAN REFUGEES IN SOUTH INDIA’.
196
realidade, o índio do nordeste, como imagem de alteridade, não se enquadra confortavelmente
na
representações
mais
genéricas
de
“índio”,
reiteradamente acionada nas ações indigenistas, na mídia e em determinadas produções didáticas ou para-didáticas. Na maior parte dos casos o que se percebe é a “insatisfação”, no dizer de Oliveira, J.P.(1993:v), “do nãoespecialista” ou do ‘cidadão comum’ com o uso técnico do termo “índio”, que não coincide com a suas representações culturais. Os povos indígenas do nordeste vivem situações análogas à de outros povos indígenas, em outras regiões do país. No nível mais local, são claramente vivenciados o preconceito, a negação de sua identidade e, conseqüentemente, de seus legítimos direitos, enquanto nas instâncias mais centrais (mais especificamente em Brasília), seus “direitos” são, ao menos retoricamente, considerados. Nestes momentos, surge a necessidade de se adotar uma estratégia étnica específica de atuação política para cada uma destas esferas - local, regional e central - onde, de uma forma geral, a tônica tem sido a busca pelo reconhecimento da distintividade, através de uma estética de ‘ostentação sígnica’, contando com a invenção e reprodução de um acervo de ítens materiais emblemáticos, terminologias e práticas que concorrem para a construção de uma diferença historicamente construída. A instauração de tal ruptura política, inaugurando estas ‘novas identidades indígenas’, geralmente ocorre via religião, através do intercâmbio de práticas, técnicas e saberes que, em geral, ensejam a constituição de uma imagem índia, concebida como um ‘simulacro’ das representações genéricas correntes. Em sua construção, são acionados fragmentos de imagens
197
internalizadas historicamente, através da escola, meios de comunicação-demassa e literatura. É neste contexto que o objeto material torna-se signo de alteridade. Na verdade, é sob o prisma de uma nova identidade do mundo moderno - para usar a terminologia de George Marcus (1991) - que deveriam ser pensados os índios do nordeste. Talvez esta seja a única forma de exorcizar o biologismo, o evolucionismo, e toda a discussão sobre a “autenticidade”, sempre presente principalmente quando o assunto é a aparência física ou mudança cultural. Castigados por terem sido os primeiros a travar contato com as frentes de expansão econômica, estes índios são hoje novamente penalizados pela opinião pública que os pretere em favor de um índio prototípico, idealizado e distante no tempo e no espaço. Recentemente, o bárbaro assassinato de Galdino Pataxó fez com que a opinião pública conhecesse um meio de expressão muito comum entre os povos indígenas do nordeste, empreendido, naquela ocasião, na forma de um protesto indignado que a imprensa chamou de “Toré”. Esta é, na verdade, uma das práticas mais difundidas no contexto destes povos; modalidade ritual que, descrita como uma espécie de iniciação, envolve, em escalas aproximadas, elementos religiosos, políticos ou simplesmente lúdicos, apresentados de uma forma claramente ‘performática’. Esta prática já foi definida de diversas formas. Já houve ocasião em que me definiram o "Toré" como uma espécie de "iniciação" que faz parte da "ciência indígena", mas que, de fato, não é exatamente o que se entende por "ciência". Entre os Truká da Ilha de Assunção (PE), tal prática é, por vezes, chamada de "ciênciazinha" (Batista,M.R.R.-1992). Vera Calheiros da Mata (1989), em sua etnografia
198
sobre os Kariri-Xocó de Alagoas, distingue duas modalidades de "Toré", a saber: o "Toré de Brincadeira" e o "Toré de Búzios". Esta derradeira modalidade é definida pela autora como uma espécie de "cartão de visitas" destes índios, quando da presença de eventuais visitantes desejosos de conhecer seus "costumes". “Toré”, coincidentemente ou não, é também o nome de um ítem tradicional da cultura material dos índios do nordeste. Trata-se de um instrumento musical : uma flauta descrita por Stradelli como feita da casca de um determinado arbusto com couro de jacaré, sendo também, segundo Câmara Cascudo (1972), nome de uma dança encontrada, ainda no início deste século, entre os “mestiços indígenas de Cimbres” (Estado de Pernambuco). Atualmente são usadas ocasionalmente nos “Toré” uma outra espécie de flauta e não há qualquer menção ao antigo instrumento musical. Se existe algum ítem material quase indefectível no “Toré”, estes são a “cateoba” (saiote de fibra caroá) e o “maracá” (também chamado de “coité”). O complexo do “Toré” inclui ainda a confecção de objetos rituais, indumentária; elaboração de coreografias e músicas (também chamadas de “toantes”) - com a propagação e conseqüente reelaboração de idéias e coisas que são inventadas, transformadas e repartidas ou não, dependendo de sua eficácia referencial. Em uma outra ocasião, sugerí que este processo de transmissão cultural poderia ser denominado de “tráfico simbólico” (Barbosa, W.D. 1995:131,52) e entendido pela ótica da “epidemiologia das representações”, da forma como é esboçada por Dan Sperber (1985). De fato, parafraseando este autor, poderíamos dizer que o “Toré” seria uma “forma de
199
representação epidêmica” entre os povos indígenas do nordeste, levando-se em conta a rapidez e espectro de sua propagação, incidindo em quase todos os grupos, da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Paraíba. Venho trabalhando, desde 1990, com um destes grupos nordestinos : os Kambiwá, do sertão pernambucano. Sua história é a história de uma diáspora. Originários da Serra Negra - espécie de micro-clima que refugiou uma série de etnias do final do século passado ao início do nosso - estes índios foram de lá expulsos sucessivamente por fazendeiros locais. As tentativas de aldeá-los junto com os Pankararú de Brejo-dos-Padres, empreendidas por agentes do então SPI (Serviço de Proteção aos Índios), fracassaram e os integrantes do grupo permaneceram, por certo período, dispersos e parcialmente integrados à sociedade envolvente. Durante
um
bom
tempo,
os
Kambiwá
permaneceram
quase
indiferenciados da população regional. Em termos de sua visibilidade, poderíamos dizer que o grupo adotou, entre as décadas de 30 a 50, uma ‘estética da dissimulação’ ou do “desaparecimento”, como diria Paul Virilio (----), referindo-se à ‘estética da guerra’; à camuflagem, até o momento no qual as mudanças políticas anteriormente mencionadas (década de 70) permitiram o agenciamento dos diversos grupos de remanescentes em diáspora e suscitaram um movimento de retorno de volta para a Serra Negra, já então tornada Reserva Biológica de Serra Negra, administrada pelo IBDF, na ocasião. Estes agrupamentos acabaram se instalando nas imediações da Reserva e, na impossibidade de ocupação, permaneceram uma área próxima, onde a Funai acabou construindo o Posto Indígena Kambiwá. De fato, o
200
etnônimo Kambiwá
- ou , melhor dizendo, seu ‘rótulo étnico’
é recente,
adotado no início dos anos 70 como um dos requisitos para o reconhecimento oficial do grupo. Significa, segundo diversos informantes, “um retorno à Serra Negra”. Entretanto, se ao pensar na ‘etnogênese’ ou no ‘surgimento’ do grupo indígena Kambiwá, percebemos o quanto seu o rótulo étnico, seu signo distintivo, é jovem, o mesmo não se pode dizer do grupo em questão. De acordo com registros históricos e etnológicos nos quais são mencionados como “Índios da Serra Negra”; “Bandos Nômades da Serra Negra” ou qualquer outro nome genérico, os Kambiwá habitam as regiões limítrofes à Serra Negra seguramente desde, pelo menos, o fim do século passado. Deste modo, não devemos nos iludir com o que o termo “etnogênese” sugere. Não se trata de inventar do nada novos grupos indígenas, como um mágico quer tira coelhos de uma cartola, mas perceber que a geração de novas identidades, novos signos pode sustentar novas, mas também antigas percepções e cosmologias.
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204 A propósito de Eupalinos Luiz Fernando P. N. Franco Arquiteto pela Universidade de Florença. Técnico do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN. "This opinion, in its general form, was that of sentience of all vegetables things. But, in his disordered fancy, the idea had assumed a more daring character, and trespassed, under certain conditions, upon the kingdom of inorganisation (...) The conditions of the sentience had been here, he imagined, fulfilled in the method of collocation of these stones - in order of their arrangement, as well as in that of many funghi which overspread them, and of the decayed trees which stood around- above all, in the long undisturbed endurance of this arrangement, and its reduplication in the still waters of the tarn " E.A.Poe, The Fall of the House of the Usher
1. Em 1970 saía Le hasard et la necéssité. O subtítulo, ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna, deixava clara uma dupla ousadia. As filosofias da natureza vinham de um longo período de descrédito. A biologia sinalizava com a possibilidade de dar-lhes uma versão propriamente natural. À esquerda, as reações foram furiosas. O livro era também um acerto de contas do renegado (quando do caso Lyssenko) e Nobel (1965), Jacques Monod, com excompanheiros, raros herdeiros, muitos usurpadores do legado de Marx e, sobretudo, com o pobre Engels, autor, na penúltima década do século passado, dos manuscritos da Dialética da Natureza,
uma das últimas imprudências relevantes na modalidade. A tentativa de
desqualificar a provocação de Monod como pérola extemporânea do positivismo (Althusser, in Monod, p.52; Baudrillard, in Utopie, n.4 ) acabou contribuindo para uma ressurgência do gênero. O tributo que a descendência (Jacob, Serres, Morin, Atlan, Prigogine, Stenghers, Changeux) presta a Monod não é sempre isento de ambivalência. De vez em vez, ela opera o resgate de idéias mais ou menos remotas, de Lucrécio a Bergson, algumas, como as deste último, tratadas com irônica condescendência por Monod. Sincronicamente, isomorfismos parecem autorizar sinestesias e investidas interdisciplinares, impensáveis até um passado recente, contra
as demarcações ciosas dos campos acadêmicos. Era inevitável que a nova
safra de filosofias da natureza insistisse na teoria da evolução com ímpeto bastante para transpor a fronteira da cultura. Os resultados são irregulares. Os vislumbres de extensão às áreas humanas das aquisições da biologia parecem esbarrar ou desgarrar no obstáculo da hominização. O tema é objeto de consenso só no embaraço com que é despachado, mais como processo do que como episódio, mais continuidade do que ruptura. 2. Tudo indica que o fator
da surpreendente fecundidade do processo detonado por Le
Hasard já estivesse inoculado naquele subtítulo. A hipótese de que uma filosofia pudesse ser
205 natural não provinha de uma especulação filosófica. Espelhava a descoberta de que o fenômeno vital, sob a proliferação de formas em que se manifesta, assentava sobre um pequeno número de entidades imutáveis de sabor platônico (Monod, p.115), iguais para a bactéria como para o homem, matéria dotada de faculdades cognitivas lógico-geométricas (estereoespecificidade)
para identificar, dentre as parcerias disponíveis, as que
davam
origem às combinações necessárias, cada uma, para executar o projeto preestabelecido (teleonomia) de uma espécie. A vida é uma escritura e foi decifrada. Era como falar de uma biosfera filosofante. Levantava o problema da natureza da própria idéia e de suas relações com a linguagem, tema abandonado desde Humboldt, segundo Chomsky, graças à prevalência do behaviorismo. 3. Nas aulas de Nova York,
ministradas entre 1942 e 43, Jakobson afirmava a radical
singularidade da linguagem, "o único sistema composto de elementos (os fonemas) que são significantes mas que, apesar disso, nada significam". Podia ter desencorajado, assim, o ainda anônimo e, futuramente, o mais ilustre de seus ouvintes, recem chegado do Brasil, fascinado pela possibilidade de transpor para a antropologia o ponto de vista estruturalista. No prefácio das mesmas aulas, editadas só em 1976, intelectual, a amplitude da pergunta com que,
C.L.Strauss assinala, além da dívida
já em 1973, três anos depois do livro de
Monod, Jakobson reagia ao "extraordinário grau de semelhança entre o sistema de informação genética e o da informação verbal" e, maravilhado, se dispunha a repensar o que até então lhe parecera peculiaridade exclusiva da linguagem. Depois de ter listado "todas as características isomorfas entre a matriz arquitetônica subjacente a todas as linguagens humanas", ele se pergunta em que medida "o isomorfismo desses dois códigos, genético e verbal, podem ser explicados com uma simples convergência determinada pela similaridade de necessidades ou se, porventura,
os fundamentos manifestos da estrutura linguística,
intimamente baseados numa comunicação molecular, não estariam antes diretamente moldados nos princípios estruturais desta última" (R.Jakobson, Sound and Meaning, p.XX). 4. Não são evidentes as razões do resgate recente do Eupalinos ou o arquiteto de Valéry (Oeuvres, II, Pléiade). A tradução alemã é de 27, a italiana, de 31, a inglesa, de 35, a espanhola de 40, a americana, de 56. Afora o interesse de poetas -a tradução alemã é de Rilke, a italiana teve um comentário de Ungaretti-, era leitura discreta e mais ou menos obrigatória sobretudo de arquitetos europeus elegantes. Até recentemente, no ambiente profissional brasileiro, tinha sido possível encontrar dois arquitetos, um no Rio outro em São Paulo, que tivessem conhecimento do diálogo. Nada aqui nem lá fora indicava que o texto pudesse transbordar das duas margens impostas por leituras tendencialmente estetizantes. Muito menos que outras leituras pudessem dar, agora, desdobramentos relacionados com o
206 comércio interdisciplinar esboçado acima. No diálogo ironicamente platônico de Valéry, a arquitetura parece ser usada como pretexto para levantar questões que dizem respeito aos artefatos em geral. As relações entre a idéia e o gesto, entre o gesto e a matéria, entre a matéria e a forma e, de novo, entre esta e a idéia tecem o fio condutor que, ao longo de todo o texto, se não resolvem, põem a nú, com surpreendente precisão e sutileza, dificuldades em que esbarram as tentativas científico-filosóficas de apreender a peculiaridade e o alcance da irrupção da linguagem. A mesma linguagem de que dependem aquelas tentativas e, talvez, a arquitetura. 5. Do mesmo modo que os ensaios recentes passaram a dar como favas contadas a sopa que, coada no silêncio mineral dos primórdios, teria dado origem à vida (Monod, p.157), eles minimizam o advento da linguagem. Ao contrário, em Valéry, sem que ele o diga, ambos os episódios não têm par e se primado devesse atribuir, não hesitaria em escolher o segundo. É o segundo, a linguagem, que explica ou pelo menos ilustra, inclusive literalmente, não só a vida, mas todas as etapas precedentes e intermediárias. Numa história geral da evolução, a que incluiria, como prelúdio a Darwin, os scherzi da matéria supostamente inerte, de que trata Prigogine e a que já aludia o Poe da epígrafe, a linguagem, à guisa de postfácio, permaneceria, dentre as manifestações dessa história, a única que permitiria incursões no tempo, a ponto, justamente, de poder escrever essa história, a única que, hoje, percorre o espaço à velocidade da luz. Não se trata da memória do tempo de que a matéria é também capaz. Além do carbono 14, os mesmos astros que usamos para medí-lo não fazem senão relembrá-lo na monotonia de cada volta. De sua filosofia privada da natureza, Valéry só enuncia seus três capítulos -o da matéria, o da vida e o das idéias (p.127). Três reinos, esferas cujas fronteiras demonstram-se de demarcação mais difícil que as dos aprendidos na escola. O critério é decididamente antropocêntrico, não porque um obscuro projeto da evolução fez suas etapas anteriores convergirem na obra acabada, o homem, mas porque este não pode se relacionar com o que vê senão mediante sua transformação e acabamento: a obra do universo começa com ele (p.114). Seu vislumbre do tempo é circular, tudo vira retrospecto e projeto, mesmo à sua revelia. É sua sina. No além da pura idéia, o filósofo da oralidade diz que "aqui, os próprios projetos são lembranças" (p.82). 6. Para que essa sina se transforme em triunfo, deve transformar o ambiente segundo uma idéia. O tempo dessa transformação é virtualmente instantâneo, ela é objeto de uma pura decisão, como a do ancestral de que fala Gombrich (Arte e Ilusão) e que nomeia Escorpião um conjunto de estrêlas ou postula, na irregularidade de um pedra, a forma equivalente de um bisonte. Na prática, esse tempo é o da história da cultura, conjuga três momentos. O tempo que o gesto de execução desse projeto leva para vencer a resistência da matéria que o
207 ambiente lhe fornece -..."bem sabes que nada mais consentimos a todo o resto da coisas além do direito de nos convir" (p.140) e, por isso, o artesão "não pode levar a cabo sua obra sem violar ou perturbar uma ordem com a força que aplica à matéria para adaptá-la à idéia que quer imitar" (p.124). O tempo de apuro necessário para que seu gesto responda com propriedade cada vez maior à imposição da idéia -..."Uma obra requer (...) a obediência a teu mais belo pensamento, a invenção de leis pela tua alma"... (p.143). E, enfim, o tempo que leva para desenvolver ferramentas e selecionar materiais que moldem a matéria com brevidade cada vez mais próxima à rapidez do trabalho da idéia, do tempo que "corre na esfera do puro possível, no seio dessa substance subtile que pode imitar todas as coisas" (p.128), como se "os atos iluminados pelo pensamento abreviassem o curso da natureza" (119). Mas como distinguí-los? A cada um desses tempos da idéia correspondem formas que se aproximam, mais que daquela que a satisfaz, àquela que ela prometia desde o primeiro lampejo. Impor às coisas a lei da idéia comporta, para a idéia, conhecer nas coisas a lei que está na própria origem. No primeiro século antes de Cristo, Vitrúvio enunciava as três virtudes a que devia obedecer a arquitetura, utilitas, venustas e soliditas. Valéry as retoma mas, significativamente, traduz a última por durée (p.129). A duração não é mais a solidez da coisa que resiste às intempéries e ao tempo astronômico. É o tempo instantâneo de registro de uma forma adequada à idéia e, ao mesmo tempo, aquele virtualmente perpétuo em que se transforma na memória e deixa descendência no desdobrar-se da linguagem. 7. Todo artefato singular é ponto de chegada de um processo. Nele, a matéria natural foi transformada e se submeteu à forma de uma idéia. Mas também é ponto de nova partida tanto para a idéia que lhe deu origem, quanto para as que irá suscitar em outro observador qualquer. Para as idéias de ambos, demiurgo e observador, a forma não é nunca, salvo na esfera mundana, de todo adequada. Ela permanece intrigante como o objeto que lembra ter interpelado em vida, na beira da praia, o Sócrates defunto do diálogo de Valéry. A forma remete, em última (ou primeira) instância, a uma autoria. Uma autoria pressupõe uma intenção, um projeto. Então: é obra "de um mortal em obediência a uma idéia que, movido por uma finalidade estranha à matéria que ataca e, com as próprias mãos, raspa, recorta ou rejunta; pára e julga; e se separa enfim de sua obra, como se alguma coisa lhe dissesse que estava acabada? ...ou não será antes obra de um corpo vivo que, sem saber, trabalha sua própria substância, forma cegamente seus órgãos e armaduras, casca e ossos, fazendo participar seus nutrientes, hauridos à sua volta, da construção misteriosa que lhe assegura alguma duração? Mas talvez nada mais seja que o fruto de um tempo infinito... Graças ao trabalho eterno das ondas marinhas, o fragmento de uma rocha, de tanto rolar e bater de todos os lados, se a matéria de que é feita é de dureza desigual e não acaba se arredondando, bem que pode assumir alguma forma notável"... Pode por exemplo assumir,
208 como as constelações o Escorpião, as feições de Apolo. E o pescador "que tenha alguma idéia daquela face divina irá reconhecê-la no mármore tirado das águas; enquanto para a própria coisa, o rosto sagrado é só uma forma passageira da família de formas que a ação dos mares deve lhe impor. Uma vez que os séculos nada custam, quem deles dispõe transforma o que quer no que quer" (p.119). 8. É o reino das idéias que anima com significados tanto as coisas inertes quanto as vivas, tanto as pedras quanto os bisontes, tanto as estrêlas quanto o corpo do próprio homem. Antes que Benjamin dissesse que a natureza é triste porque é muda, o Sócrates de Valéry dizia que ela "nada tem além de ruídos" (p.107). E quando Rodopis dança, se é como nenhum outro animal, é porque suas mãos falam e seus pés parecem escrever (L'âme et la danse, p.152). A afinidade da idéia com o reino das leis, mais que lhe permitir, obriga quem a abriga a conformar tudo à própria hóspede. O que, por outro lado, nisso, talvez ainda não se distingua muito das que hospedam as espécies inferiores: "Crês que os cães não vêem as estrêlas das quais não sabem o quê fazer?" (126). As idéias dos cães também percebem e interagem com o meio mediante esquemas perceptuais que não refletem mas sim traduzem os sinais que chegam à extremidade dos sentidos. A satisfação de seus instintos também está subordinada a suas idéias. Os sapos não vêem moscas pousadas (Monod, p.166), os gatos vêem as coisas traduzidas numa geometria refinada (Piaget, Chomsky, Teorias da linguagem, teorias da aprendizagem, p.164). Seria antes razoável dizer que as outras espécies vivem sob a tirania das próprias idéias e, com alguma ironia, que são radicalmente idealistas. Enquanto a idéia do homem obedece às próprias leis só na exata medida do que precisa para inventar outras tantas leis, boas ou más. O que distingue o mundo das idéias do homem é a profusão e a volubilidade, é que as formas dessa idéia nunca se conformaram que alguma coisa possa não lhe ser conforme. Nunca se resignaram à escolha binária, diante do estoque heteróclito que o ambiente lhe apresentava, entre o que lhe convinha ou não. Deviam
poder se aplicar à diversidade material das coisas, acatar caridosamente suas
incoveniências como indigência passageira, postergar, desafiando o tempo e a duração do próprio corpo, qualquer exigência imediata, como se instintos resíduos passassem a ser submetidos a um rude tratamento: "Te esforças então de retardar tuas idéias? - É preciso. Eu impeço que elas me satisfaçam, difiro a mera felicidade" (p.97). E, pouco antes, que "é preciso se subtrair dos prestígios da vida e do gozo imediato. O que há de mais belo é necessariamente tirânico" (p.95). De qualquer maneira, uma vez acesa aquela luz, os instintos já tinham convergido no desejo e, este, se desdobrado na vontade -não podiam mais ser satisfeitos de uma vez por todas. Enigmático, no início de Eupalinos, Sócrates lembra que os vivos têm um corpo que lhes permite sair do conhecimento e nele se recolher, "são feitos de uma casa e de uma abelha"(p.79). Seu corpo tornou-se só a casa, construída com a
209 linguagem, à qual ele volta e que, só de fora, é possível ver e viver
a idéia. E reformar a
casa. 9. Instado a dizer de que matéria era feito o tal objeto, Sócrates desconcerta Fedro e o leitor: "da mesma matéria que sua forma: matéria para dúvidas". A forma não coincide com a matéria, ela é a matéria que suscita as formas possíveis de uma dúvida. Monod também interroga a configuração de um calhau e conclúi que, segundo a teoria, "ele não tem o dever de existir, mas tem o direito" (p.55). Um fenômeno não coincide propriamente com sua descrição, mas sua forma é portadora de sinais que remetem às vicissitudes de sua manifestação. Sob essa forma, não estamos longe de Galileu, para quem o Universo era um grande livro aberto mas cuja leitura comportava a decifração dos caracteres em que estava escrito. O Poe da epígrafe parece antes levar ao pé da letra a coincidência da forma com a matéria. O que as pedras são capazes de sentir, "sob certas condições", elas manifestam com o próprio corpo. Dentre essas condições, estão a ordem em que foram dispostas, a forma que assumiram no contágio com líquens, sua duplicação refletida nas águas mortas do lago e o longo período em que ficaram imperturbadas. A casa dos Usher se prestaria a uma surpreendente metáfora do processo biológico e, o lago, da filosofia natural da biologia de Monod: a mesma metáfora do espelho que ele reprocha à herança de Marx (p.50). A casa é o produto acabado da matéria aparentemente inanimada, mas ela é dotada de faculdades cognitivas, uma vez que sente, é dotada de faculdades de duplicação invariante e ordenação segundo um projeto. O longo período é o do tempo sem o qual o acaso não teria conjugado aqueles fatores. O livro de Monod não é mais o compte rendu da decifração do livro do Universo de Galileu, é parte inseparável dele na forma refletida do lago de Usher. 10. Tenham ou não razão Chomsky e seus seguidores, tudo indica que a linguagem seja, como intuiu Lévy-Strauss, o ponto de váu entre as ciências da natureza e as do homem. É na decisão sobre seu estatuto que parece estar a origem do fracasso das travessias tentadas pelas filosofias da natureza que deram sequência aos temas levantados pelo livro de Monod. Valéry usa a metáfora do hímem para o ponto de váu. "Quando falaste de música a propósito de meu templo, uma divina analogia te visitou. Este hímem de teus pensamentos que se conclúi por si só sobre teus lábios, esta união de aparência fortúita de coisas tão diferentes decorre de uma necessidade admirável (...) cuja presença persuasiva obscuramente pressentistes". A fala de Eupalinos que Fedro refere a Sócrates vem depois de sucessivas aproximações para representar a graça inexplicável de uma arquitetura. A propósito de um templo, numa remissão de gosto duvidoso, seu autor diz que é a imagem matemática de uma mulher de Corinto e, Fedro, que "desperta vagamente uma lembrança que não pode chegar a seu termo" (p.92). Essa lembrança é singular, talvez não remeta a um passado, talvez remeta
210 a um eterno, inscrito para sempre no código genético e que, embora inefável, comparece, como um criptograma, na obra do homem. As transformações da matéria por obra das demais espécies são geneticamente determinadas. Elas podem ser grandiosas por uma precisão que a obra do homem só atinge por intermédio das máquinas que constrói. O que está geneticamente determinado na idéia/linguagem não é uma lei de construção do que é adequado ao pensante/falante. Isso o obrigaria a discriminar, como a abelha, negativa e irrevocavelmente, a maior parte da matéria que se lhe oferece. O que está determinado no genoma do homem é o princípio que esteve na origem de todas as leis e que, por isso, contempla todo o existente, embora não seja imediatamente accessível. Comentando o livro de Monod, Michel Serres diz que "ninguém sabe realmente onde é que está a sonata a Kreutzer, onde estão o quadrado e a diagonal" (La traduction, p.56). Como esse princípio está na idéia tanto quanto, fragmentariamente, em toda matéria, a idéia deve, primeiro, se manifestar em alguma matéria: a substance subtile em que se dá o artesanato do verbo. As idéias das demais espécies identificam na forma das coisas a de suas necessidades, as dos homens fabricam de tudo o que vêem matéria para se pensar, para descobrir-se sob os infinitos disfarces que assume no resto das coisas. O equivalente da idéia adivinha uma obscura mas possível equivalência a todas as coisas. As próprias necessidades a que atende o que o homem produz passam à posição subordinada em que têm seus equivalentes. Porque dotado de um espírito, todo filho do homem é necessariamente pródigo. À observação de Fedro de que "nada do que é belo é separável da vida, e a vida é aquilo que morre", Sócrates objeta que a maioria “têm do Belo sabe-se lá que noção de imortal" (p.88). O capricho que o reducionismo biológico de Freud estendia a todo organismo (Freud, Para além do princípio do prazer, trad.franc.p.83), aquela "tendência misteriosa" que o leva a "se afirmar desafiando o mundo" e querendo até "morrer só à sua maneira", parece ser antes a projeção generosa com que o fundador da psicoanálise tentava exorcisar o próprio espírito. 11. Eupalinos resultou de uma encomenda sob rigorosa medida, 115.800 caracteres, para uma edição de luxo. Valéry não se lamenta, "afinal os escultores nunca reclamaram de serem obrigados a alojar seus personagens olímpicos nos triângulos obtusos dos frontões" (p.1400) e não é difícil imaginar o sorriso com que deve ter contemplado a própria pena quando escrevia que, no canteiro, Eupalinos dava aos operários "só ordens e números". A arquitetura se lhe apresentava como pretexto necessário. Duas razões parecem com efeito torná-la propícia à divagação acerca da linguagem. A primeira é a noção de projeto. Seu emprego anacrônico permite a Valéry levantar uma primeira ambivalência de toda linguagem. Ao mesmo tempo que diz que "o projeto é bem separado do ato e, o ato, do resultado" (p.129 ), Eupalinos concebe como se executasse (p.92). A estabilidade gráfica peculiar da noção contemporânea de projeto só vai surgir no Quattrocento com Brunelleschi. O projeto de
211 Eupalinos não é ainda bem separado do ato e do resultado, é feito, de um lado, de ordens e números, sua arquitetura é oral; do outro, concepção e execução coincidem numa instância que parece ser a mesma que, mais de três mil anos depois da invenção da escritura, a da leitura silenciosa, com que Santo Ambrósio surpreendera Santo Agostinho e que J.Goody chama de silent voice (The interface between tue oral and the written). Porque afinal, à oralidade da idéia de Eupalinos correspondia a leitura silenciosa dos resultados de suas ordens executadas na pedra por seus escribas. 12. O artifício permite a Valéry dissolver a oposição falante/ouvinte, produção/fruição, emissão/recepção, sinal/resposta e introduzir, com riqueza de desdobramentos, uma segunda razão do pretexto arquitetônico. Valéry dá consistência à sinestesia batida entre arquitetura e música. A propósito desta, ele insiste que sua mobilidade parece imóvel ao pensamento "ainda mais móvel", que "este edifício de transições, de conflitos e de acontecimentos indefiníveis, como coisa de que se possa distrair e à qual voltar (...) e, como um templo construído à volta de tua alma, podes sair e afastar-te, podes entrar por outra porta". E conclúi: "São duas então as artes que envolvem o homem no homem ou, mais precisamente, o ser em sua obra e, a alma, em seus atos e nas produções de seus atos (...) como nosso corpo de outrora que ficava todo fechado nas criações de seu olho e circundado pela vista: Por duas artes ele se deixa envolver por leis e vontades interiores, figuradas numa matéria ou na outra, na pedra ou no ar" (p.103); e, mais adiante (p.105), o Sócrates defunto lembra que "a própria sinfonia fazia com que esquecesse o sentido do ouvido. Transformava-se logo, muito exatamente, em verdades animadas em universais aventuras ou, ainda, em combinações tão abstratas que não tinha mais consciência do intermediário do som" (p.106). 13. Seria cabível a objeção de que tudo isso diga respeito à obra de arte e não à linguagem. O próprio Valéry parece levantá-la quando diz (p.93) que, na cidade, "dentre os edifícios de que é povoada, uns são mudos; outros falam; e outros, enfim, mais raros, cantam." Ao que talvez se possa responder que a cidade é um produto coletivo e diacrônico que reproduz a natureza duplamente ambivalente da linguagem. Primeiramente, se, por um lado, o infante não aprende propriamente a falar, já nasce senhor da ferramenta afiada da língua, do outro, desde Saussure ficou claro que a língua já se apresentava como um dado da natureza que envolve o falante e a que ele pode só se submeter. Em modo análogo, o construtor anônimo da cidade a que se refere Fedro submete a singularidade da forma que dá a sua construção à norma da cidade mas não precisa propriamente aprendê-la. Em segundo lugar, a distinção que faz Valéry diz respeito a outra duplicidade da língua. Ela é meio de comunicação e, ao mesmo tempo, instrumento propício à confecção de representações interiores. Talvez valha a pena conjugar os quatro termos da dupla ambivalência da linguagem: o falante produz a
212 língua e/ou a ela se adapta; o falante a usa para comunicar e/ou para gerar suas próprias representações. A conjugação talvez comporte o esclarecimento preliminar do metabolismo do espírito. O hímem de Valéry, o ponto onde se dá a troca do espírito com o ambiente são os lábios. De um lado a esfera das idéias, do outro a das coisas. Ambas as esferas são povoadas de formas. Os sentidos se encarregam de captar sinais das formas da segunda e, o sistema nervoso central, de transcodificá-las segundo as formas compatíveis com o desempenho de sua função, a de produzir sentido. "Certos povos - diz Sócrates- perdem-se nos pensamentos; mas para nós outros gregos todas as coisas são formas" (p.112). Por que então Valéry elege os lábios, metáfora do aparelho fonador, como o hímem, ponto de váu obrigatório para a reprodução do espírito? Ele põe meia resposta nos lábios de Fedro: "Eis então que a linguagem é construtora?" (p. 111). 14. Nada indica que o primeiro infante, aquele que pode ter vivido experiência análoga e tão espantosa quanto à do protagonista do episódio da caverna de Platão (República, VII), dispusesse de uma língua à qual se adaptar. Mas já estava cheio de idéias. Tudo leva a crer que o trabalho ou o gesto para produzí-las, formalizá-las, tenha sido uma exigência tão ou mais urgente que qualquer outra necessidade fisiológica ou, se preferirmos, que a satisfação destas últimas já surgia inexorávelmente subordinada às formas em que as idéias as traduziam. É pouco provável que aparelho fonador tivesse o primado, que mais tarde lhe caberia, sobre os demais órgãos e o corpo inteiro para produzir as formas daquelas idéias. No quê essa produção separava-se já radicalmente das formas produzidas pelas demais espécies? o que é que, "desde o início, distingue o pior arquiteto da melhor das abelhas" senão o fato de que "ele construiu a célula na cabeça antes de construí-la na cera"? (Marx, O Capital, Livro I, 3a seção, cap.V). Ao mesmo tempo, porém, se a urgência que se antepunha ao próprio atendimento das necessidades fisiológicas era a de formalização de suas idéias, o aparelho fonador deve ter sido solicitado com enorme precocidade. Afinal, que outro órgão ou membro produz formas com rapidez e economia de energia tamanhas? Que outra matéria além do ar é, mais que disponível, parte constituinte de seu habitat, condição preliminar de existência? E, ao mesmo tempo, que outra matéria se presta melhor à modelagem de formas? Para o homem, o sopro da vida tem mão dupla. Mas o hímem de Valéry sugere que, antes de ser o tímpano, é nos lábios que se concentra a vocação do demiurgo. Produzir antes de consumir, formalizar antes de decodificar, decodificar reproduzindo, estas parecem ser as razões que levam Sócrates, metaforicamente, a lamentar a vida pregressa e invejar, no métier de Eupalinos, o primado da construção e da transformação de todas as coisas sobre a reflexão. Ele dá razão a Fedro quando diz que "o destruir e o construir são iguais em importância e é preciso almas tanto para um como para outro" (p.83); mais adiante, ele reforça: "ë preciso escolher entre ser um homem ou um espírito. O homem não pode agir
213 senão porque pode ignorar e contentar-se com uma parte desse conhecimento que é sua bizarrice particular e que é até um pouco maior do que seria preciso!"(p. 126). 15. A cada forma produzida correspondeu um trabalho cuja memória é depositada na forma de alguma matéria. Tudo leva a crer que sejam equivocadas noções correntes segundo as quais a memória subjetiva estaria configurada como um arquivo interior. É C.L Strauss quem fornece um indício de que a idéia refaça ex novo cada forma evocada. Ele diz que "a ordem do mito exclui o diálogo: não discutimos os mitos do grupo, nós os transformamos crendo conservá-los" (Mythologiques 4, p.585). O mito está para a cultura como o código para a espécie. Idéia cristalizada numa forma arbitrária mas capaz de garantir invariância na reprodução de uma ordem social. No âmbito biológico, Serres insiste na precedência da invariância sobre a teleonomia, da constância contra a história. Não há por que não aplicar à matéria dos mitos, a linguagem, o que ele insinua para a história das ciências: "Antes de se transmitir (...), a informação é forma e, a mensagem, marca. Os objetos se deformam, mas de pouco, e é isto 'se lembrar', o vestígio, a história" (p.59), aquilo que diverge, não o que se repete. Ao distinguir os edifícios da cidade entre mudos, retóricos e cantantes, o Fedro de Valéry reserva implicitamente a faculdade de gerar representações interiores exclusivamente à grande arquitetura, dirigida à fruição estética. 16. O que, no plano da linguagem, seria não reconhecer que o vernáculo seja dotado da mesma duplicidade. As representações interiores estiveram presentes -não conseguem ficar ausentes- no trabalho, análogo ao da linguagem natural, do construtor coletivo da cidade. Elas estão presentes na forma do produto, distinta da forma de seu uso, forma cuja autonomia o próprio contrutor acaba por não reconhecer nem nas inflexões que a distinguem da casa do vizinho ou a do antecessor, com quem aprendeu a construir, quem sabe de outiva, segundo um mesmo paradigma, mas do qual uma e outra não são réplicas. Embora os usos materiais possam ser os mesmos, quem as vê as distingue como variantes. O que acarreta inclusive, no tempo lentíssimo do desenrolar da língua da pedra, variações nas formas de uso. A confusão entre uso e significado continua, dois mil e quinhentos anos depois de Fedro, a gerar equívocos, estes sim, monumentais, como o de Umberto Eco no capítulo sobre a arquitetura de A estrutura ausente. Se para Fedro, ambos os produtos parecem tão destituídos de significado quanto o fonema de Jakobson é porque a arquitetura vernacular teve uma finalidade utilitária, a de suprir às funções do corpo. Mas, contrariamente à abelha, essas funções não podem ser supridas imediatamente, devem passar pela representação da satisfação das mesmas, devem ser, primeiro, "construídas na cabeça", como no reflexo do lago que anima a ordem das pedras da casa dos Usher.
214 17. Na falta de uma intenção expressiva explícita, a pretexto de as casas serem, como as das abelhas, produtos imediatamente utilitários, Fedro sustenta a mudez das formas de seu produto. Por isso dispõe a arquitetura retórica numa posição hierarquicamente superior à vernacular, logo ela que não é capaz de usar a linguagem senão para comunicar e que, assim, desempenha a função subalterna para a qual as demais espécies acham-se também aparelhadas. A arquitetura que fala é a única que se subtrái, covardemente, à responsabilidade que o infante enfrenta majestaticamente, a que deriva da consciência inata de que é ele o autor, ainda que segundo regras herdadas, das formas segundo as quais o mundo se transforma, ainda que só no recôndito de suas representações. Não por acaso o exemplo escolhido por Valéry para a arquitetura que fala é justamente uma prisão (p.94), a da linguagem como natureza pronta, a que o infante pode só se adaptar mediante o aprendizado. Faltavam a Valéry, como faltam ainda hoje, elementos para que admitisse que, sob a mudez aparente da arquitetura vernacular, se selasse apenas nossa surdez. Na escala da linguagem da cidade, cada casa é, de fato, tão muda, tão destituída de significação quanto o fonema de Jakobson. Com a honestidade intelectual que permeia todo o seu livro, Monod confessa ter-se surpreendido identificando-se "com uma molécula de proteína, em virtude do esforço de atenção concentrada na experiência imaginária, sem nada mais no campo da consciência, Entretanto, não era ainda alí que aparecia o significado da experiência simulada, mas somente quando de sua explicitação simbólica". Um esforço análogo talvez fizesse os edifícios mudos de Valéry, não falar, mas cantar: afinal, diz Eupalinos, "o mito é fácil de traduzir"(p.97). E Sócrates dá a explicação da falta desse esforço: "Aliás, o mesmo embaraço que me propôs esse objeto encontrado -desconhecido- pode-se conceber em relação a um objeto conhecido. Neste caso, porém, como é conhecido, de posse da pergunta e da resposta, (...) esquecemos de fazer a pergunta" (p. 121). A abelha não sai mais de sua casa. 18. Se o verbo dá forma à idéia sem esforço e num tempo instantâneo, com a mesma rapidez ele se esvái e com ele qualquer modificação da realidade. Para que as "ordens e os números" de Eupalinos deixem memória numa realidade transformada é preciso que outros gestos, bem mais lentos e dispendiosos em energia, lhes obedeçam. Por isso, o comércio do produto destes outros gestos, contrariamente ao do verbo, comporta a remissão ao valor comum que permite a troca.
É Sócrates quem se refere a esses outros gestos, guiados pela idéia,
dispendiosos de energia e cujo comércio, para que transforme a realidade, exige um equivalente distinto da linguagem: "É preciso que os deuses não fiquem sem teto nem as almas sem espetáculos. É preciso que as massas de mármore não fiquem mortalmento por terra, (...) que cedros e ciprestes não se contentem em sucumbir pelas chamas ou podridão, quando podem se tansformar em vigas odorantes ou móveis deslumbantes. Mas é preciso menos ainda que o ouro dos ricos durma preguiçosamente seu sono pesado nas urnas e
215 tênebras do tesouro. Este metal tão pesado, quando se associa a uma fantasia, toma as virtudes mais ativas do espírito (...) transmuta-se em todas as coisas sem que ele próprio seja mudado (...) É sem dúvida o mais abstrato agente que exista depois do pensamento". 19. Numa carta de Spoleto, Goethe se refere às obras civís romanas como a uma segunda natureza. Dentre as coisas em que o dinheiro se transmuta, Sócrates diz que ele "fura montanhas, desvia rios, abre as portas de fortalezas” (p.145). No postfácio da história natural sugerido acima, não bastaria referir-se de modo genérico a essa segunda natureza, à memória na paisagem antropizada da idéia que guiou o trabalho das culturas. O ponto de váu linguístico, no sentido amplo de sistemas de relações entre formas e idéias, talvez possa ser sugerido com efeito mais fecundo caso se pense que a cidade surge junto, não só com a escritura, mas com a moeda. Que possa tratar-se de uma tripla coincidência? Se, como na dança de Rodopis, a arquitetura canta e a cidade escreve, será normal ir buscar direta e mecanicamente relações obscuras entre estrutura e superestrutura, entre economia e arte, para explicar tal ou tal outra forma? Ou a coincidência exige perguntas, com as de Jakobson em 73, quanto à uma específica economia, subjacente à produção material e segundo a qual a idéia interage com o meio? Nômades inveterados, avêssos à propriedade, os aborígenes australianos se referem à paisagem que percorrem com cantos sem nenhuma intenção propriamente geomorfológica. Em The songlines, B.Chatwin diz que, quando de seus encontros fortúitos, "são os cantos, não os objetos, o principal instrumento de troca. O escambo dos objetos é a consequência secundária do escambo de cantos". 20. Com algum otimismo, Sócrates fala dos artefatos em geral: "Fizeram-se por si mesmos, de certa forma; o uso secular achou necessariamente a melhor forma. A prática inumerável atinge um dia o ideal e pára. Os milhares de ensaios de milhares de homens convergem lentamente para a figura mais econômica e mais segura: uma vez atingida, todo mundo a imita; e os milhões dessas réplicas respondem para sempre às miríades de tateamentos anteriores e os recobrem" (p.131). Menos otimista, Marx retoma o processo no plano transversal das trocas: "Os homens equiparam uns aos outros os seus trabalhos diversos como trabalho humano, (...) como valores. Ignoram fazê-lo mas o fazem. Por isso o valor não traz escrito na fronte aquilo que é. O valor torna antes todo produto do trabalho um hieróglifo social. Com o tempo, os homens tentam descobrir o significado do hieróglifo, tentam descobrir o segredo do próprio trabalho social, uma vez que a transformação dos objetos de uso em valores, tanto quanto a linguagem, é um produto da sociedade" (O Capital, L I, I, IV). Em flagrante desmentido a materialismos que invocam suas idéias, Marx fala do tipo de saber (Crítica da Economia Política, Pléiade, I, 311) que a operação requer: "Como arquiteto
216 original, a ciência não desenha só castelos no ar: constrói até alguns andares habitáveis antes de colocar a primeira pedra". Rio, 22 de agosto de 1997
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Licenciatura: uma reflexão
Paulo Sgarbi Professor da Faculdade de Educação/Uerj.
1. Introdução O título deste texto é, para mim, uma figura de linguagem chamada redundância, isto porque a licenciatura é o espaço/tempo em que pessoas se preparam para o exercício do magistério, atividade que não consigo separar do exercício da reflexão. No entanto, ao cristalizar a idéia do título como viés da escritura, uma segunda figura de linguagem se me apareceu, de início – talvez por resistência minha inconsciente – tímida, mas crescendo e rondando meus pensamentos, interferindo nas idéias que, internamente, procurava organizar. A figura? eufemismo (lembra aquela piada: “mamãe subiu no telhado”?)1. Na comparação dessas duas figuras, uma terceira surgiu: contradição, fato que me levou a mais um título para o texto: Licenciatura: uma contradição. Este, por sua vez, me remeteu a uma reflexão sobre o centro desta contradição, o que me levou a mais duas possibilidades significativas: Licenciatura: o jogo acadêmico das teorias e Licenciatura: o jogo teórico das academias. Este aparente apenas jogo de palavras tornou-se o eixo das idéias antes alinhavadas pela reflexão. Vale dizer que a contradição pode ser um caminho interessante para a discussão de questões relevantes, analisá-la, perceber como se constrói no individual e no coletivo é uma tarefa intelectualmente bem comportada, permitida pela academia, principalmente se o tema da contradição está fora dela. É um pouco diferente se a
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contradição revela a própria academia; neste caso, vence a postura do “politicamente correto”, na grande maioria das vezes. Em pesquisa recentemente fechada, o Núcleo de Desenvolvimento Organizacional (NDO) da Faculdade de Educação da Uerj coletou opiniões dos segmentos universitários envolvidos com a licenciatura, e constatou que algumas questões colocadas em relação a este curso foram muito marcadas. Foi o “tecido” de todo esse material, constituindo uma polifonia de vozes, que produziu o “texto” que analisamos e que deu origem ao presente documento. Esse “tecido” não é, no entanto, uma colcha de retalhos toscamente alinhavada. Essas vozes se repetiram, se confirmaram, falaram em uníssono... (OLIVEIRA & GOULART:1997, p.6). E o que dizem essas vozes? Dentre outras inúmeras coisas, que a licenciatura deve sofrer um processo de transformações profundas na direção de formar educadores mais reflexivos e críticos. Formando um acorde com essa nota da voz do professor, a nota dos alunos colocou que as disciplinas são pouco atualizadas, não representando assim a nossa realidade ... já que ... são isoladas, sem nenhuma ligação entre elas (OLIVEIRA & GOULART:1997, p.7). Essas falas são, no mínimo, merecedoras de uma reflexão séria sobre o processo de formação de educadores, e muitos são os filões dessa jazida chamada licenciatura. Dos veios que me visitam os pensamentos e minhas conversas com muita freqüência está uma contradição muito apontada:
2. Licenciatura: o jogo acadêmico das teorias Outro dia fiz uma pergunta aos meus alunos de Metodologia do Ensino: – Vocês conhecem alguma teoria que dê conta da formação do caráter de um professor? – Não. Resposta unânime e, segundo eles mesmos, óbvia. Ao mesmo tempo que também é verdade que muitos estudos foram feitos que explicam o processo de
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formação do caráter, da personalidade, da aquisição de valores, é fato que nenhuma dessas teorias é capaz de instrumentalizar um curso de formação de professores para mudar o eventual mau caráter de uma pessoa que, independente do seu caráter ou de quem quer que seja, vai tornar-se professor. Não se veja nesta reflexão inicial nenhuma negação taxativa das informações e até dos conhecimentos que as teorias veiculam. Ao contrário, é de bom tom que os licenciandos tenham o maior número possível de informações teóricas. Mas a universidade não pode parar na simples transmissão de informações, por mais importantes que sejam. Ela tem o dever de projetar uma análise crítica sobre essas informações, e mais do que isso, de questionar o que fazer com os conhecimentos teóricos que passa aos alunos. Só que, para isso, a universidade tem de ser reflexiva e crítica – os professores têm de ser reflexivos e críticos. As teorias, como as metodologias por vezes delas advindas, viram moda e, como tal, habitam o fazer pedagógico de toda uma geração de escolas sem que uma postura efetivamente crítica as sustente. A veneração totêmica do método... Endeusamento cego da técnica... Será que a educação brasileira vai melhorar a partir da metodologia de ensino? Será que a educação integral de um aluno pode ser incrementada a partir da seleção desta ou daquela metodologia de ensino? Será o método de ensino um outro produto descartável da sociedade de consumo? Será que a adoção de uma determinada metodologia não implica conhecimento de psicologia e filosofia da educação? Será que o método deixou de ser um meio para se tornar um fim em si mesmo? Pobres alunos: está instalada a barafunda metodológica (SILVA:1990, p.14). Um exercício interessante é reescrever este trecho substituindo as palavras método, metodologia de ensino e técnica por teoria e percebermos se um novo sentido se constrói. Vamos à paráfrase: A veneração totêmica da teoria... Endeusamento cego da teoria... Será que a educação brasileira vai melhorar a partir da teoria? Será que a
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educação integral de um aluno pode ser incrementada a partir da seleção desta ou daquela teoria? Será a teoria um outro produto descartável da sociedade de consumo? Será que a adoção de uma determinada teoria não implica conhecimento de psicologia e filosofia da educação?* Será que a teoria deixou de ser um meio para se tornar um fim em si mesma?** Pobres alunos: está instalada a barafunda teórica.2 Aparentemente, apenas um jogo de palavras, mas que se reveste de significados bastante significativos ao olharmos a prática que a própria universidade apresenta para o processo ensino/aprendizagem.
3. Licenciatura: o jogo teórico da academia A licenciatura, nos parece, está neste dilema, pois vemos tanto professores quanto alunos mergulhados num mar de teorias com apenas pequenas marolas de reflexão. E este fato, que não é geral (depende muito do professor), como mostra a fala dos alunos na pesquisa do NDO, é muito amplo, característico até. Mais do que uma simples falha na formação intelectual do educador, representa um trabalho pouco consistente para o fortalecimento de postura política em relação ao exercício do magistério. Ao mesmo tempo, os estudos sobre a licenciatura, pelo menos os que temos visto na Uerj, mostram falas de professores, alunos e dirigentes institucionais que apontam para uma razoável consciência destas falhas que, com certeza, são muito antigas – tanto as falhas como as falas. Mas, se conscientizadas pelos sujeitos do processo, por que antigas? por que persistem? o que não mudou e deveria ter mudado? Weber, ao analisar ciência e política como vocação, assinala: O progresso científico é um fragmento, o mais importante indubitavelmente, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios e relativamente ao qual algumas pessoas adotam, em nossos dias, posição estranhamente negativa.
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Tentemos, de início, perceber claramente o que significa, na prática, essa racionalização intelectualista que devemos à ciência e à técnica científica. Significará, por acaso, que todos os que estão reunidos nesta sala possuem, a respeito das respectivas condições de vida, conhecimento de nível superior ao que um hindu ou um hotentote poderiam alcançar acerca de suas próprias condições de vida? É pouco provável. Aquele, dentro de nós, que entra num trem e não tem noção alguma do mecanismo que permite ao veículo pôr-se em marcha – exceto se for um físico de profissão. Aliás, não temos necessidade de conhecer aquele mecanismo. Basta-nos poder “contar” com o trem e orientar, conseqüentemente, nosso comportamento; mas não sabemos como se constrói aquela máquina que tem condições de deslizar (WEBER:1993, p.30). Será, no entanto, que a metáfora do trem utilizada por Weber se reveste de validade se o material teórico/prático a que estamos ligados é o mesmo, a saber, a educação? Seria válido dizer que um professor de disciplinas específicas não precisa ter conhecimentos sobre o funcionamento da educação como processo ensino/aprendizagem? É bastante provável que não, na medida em que, no caso específico da educação, pela máxima formação/informação, “fundo e forma” não se dissociam mesmo. Na continuação do seu texto, Weber cria uma outra metáfora, a do selvagem, como aquele que não está “impregnado” do conhecimento científico ou acadêmico. O selvagem, ao contrário, conhece, de maneira incomparavelmente melhor, os instrumentos de que se utiliza. Eu seria capaz de garantir que todos ou quase todos os meus colegas economistas, acaso presentes nesta sala, dariam respostas diferentes à pergunta: como explicar que, utilizando a mesma soma de dinheiro, ora se possa adquirir grande soma de coisas e ora uma quantidade mínima? O selvagem, contudo, sabe perfeitamente como agir para obter o alimento cotidiano e conhece os meios capazes de favorecê-lo em seu propósito. A intelectualização e a racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral crescente acerca das condições em que vivemos (WEBER:1993, p.30).
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Essa reflexão de Weber se apresenta como bastante significativa nessa leitura da licenciatura, onde o “processo de intelectualização” não provocou, na atuação dos envolvidos no processo, um equilíbrio entre o saber teórico e o saber prático, principalmente por se tratar de um curso voltado para a formação de educadores que, além do saber específico de suas especialidades, têm uma função das mais significativa na solidificação de um pensamento educacional que se paute em valores que visem à sociedade como um todo.
4. Licenciatura: uma leitura das contradições O trecho que se segue é um exercício de memória para transcrever, o mais fielmente quanto possível, a fala de um aluno em um debate sobre o seu curso de licenciatura a partir da relação teoria/prática: Tenho aprendido muitas coisas boas na licenciatura, tanto em psicologia quanto em sociologia ou filosofia da educação. Meus professores têm-me passado muitas informações ricas e bonitas, inclusive algumas que apontam para uma prática pedagógica voltada para o diálogo, para a troca de idéias, para a construção do conhecimento, para o respeito às individualidades dos alunos... No entanto, alguns desses mesmos professores não praticam na turma as idéias que pregam. Nos dizem que não devemos ser tradicionais, nos provam, com teorias, que essa postura é mais eficiente, e praticam exatamente o contrário: não discutem com a turma os critérios de avaliação, dão aula de cuspe e giz, são rígidos quanto à freqüência e desrespeitam, a todo momento, a individualidade de seus alunos. Não dá pra entender! Essa fala aponta uma contradição básica do processo ensino/aprendizagem e, embora, certamente, não seja uma exclusividade da licenciatura, tem-se apresentado como uma de suas características. Uma outra piada (que também não vou contar) acaba com um padre falando em seu sermão: – Façam o que eu digo mas não façam o
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que eu faço. Como as teorias que estudam o processo de aprendizagem, das mais antigas às mais atuais, são quase unânimes em afirmar que o exemplo é uma das formas mais ricas de aquisição de conhecimentos e valores, pode-se, com alguma preocupação, constatar que a incoerência entre o que se diz e o que se pratica tem inculcado conhecimentos e valores em nossos alunos, futuros professores, muito questionáveis. Os bons livros de didática parecem dizer que qualquer método de ensino é eficaz desde que seja coerentemente utilizado pelo professor. Em outras palavras, não é o método em si que comprova sua eficácia; é o uso – planejado e coerente – do método que aponta o seu valor em termos de resultados obtidos (SILVA:1990, p.15). Pela lógica: se um professor diz ao seus alunos que determinado procedimento é melhor que um outro e que eles, por isso, devem adotar o procedimento melhor quando forem ensinar, e esse mesmo professor adota outro procedimento que, por comparação, não é tão bom quanto aquele que ele definiu como melhor, alguma coisa está errada: ou o tal procedimento não é tão bom assim (mentira) ou ele disse mas não acredita no que disse e, por isso, pratica algo diferente do que disse (mentira) ou ele deveria ter uma outra profissão. Fica bastante claro que esse tipo de situação, somado ao fato de que o professor pode aprovar ou reprovar um aluno a partir de critérios pessoais e não necessariamente discutidos com os próprios alunos, instaura uma relação de poder no processo ensino/aprendizagem que, esvaziado de atitudes reflexivas sobre este mesmo processo, pode gerar distorções muito fundas na formação do educador. O que esperar da prática deles quando professores? se os exemplos que eles experimentam são contraditórios. Será que a esperança reside apenas na frase de Lauro de Oliveira Lima quando diz que “existem bons alunos apesar dos professores”?
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5. Re-introdução A questão sobre a formação do professor está posta, aliás há muito, e me parece ingênuo pensar que uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que tenta, com o aumento de carga horária destinada à prática e a diminuição da carga teórica, possa dar conta de resolver esta situação. As leis, aliás, têm trazido posturas como “formação integral do indivíduo”, “formação da cidadania”, “pensamento reflexivo”, entre tantos outros conceitos muito bonitos. No entanto, a prática tem acontecido indiferente ao que preconiza a lei, pois ela, a lei ou o seu espírito, não está dentro das pessoas, já que a prática das mesmas pessoas que formulam as leis está muito perto do façam o que eu digo mas não façam o que eu faço. A questão está novamente colocada, com propostas que mexem com a estrutura dos cursos de formação de professores da Uerj, mas com uma discussão sobre os princípios que devem sustentar a prática democrática do magistério muito frágil, até pela aceleração com que essas mudanças, que atendem a objetivos nitidamente políticos, estão sendo propostas. Será que essas mudanças dão conta das lacunas que as leituras sobre a licenciatura têm mostrado? Teremos reflexão como um eixo indispensável à formação de um educador comprometido com as necessidades reais da sociedade? Teremos a coerência entre a teoria e a prática dos agentes do processo de formação de professores? Essas duas questões nos parecem fundamentais e justificam a re-introdução como título que substitui conclusão. Concluir, principalmente neste caso, é cristalizar conceitos dinâmicos e que se formam por somatório de dimensões individuais, é colocar num recipiente pequeno a grande diversidade de possibilidades que caracteriza o processo educacional. É tirar a dimensão político-pedagógica que um projeto de licenciatura deve ser e, dando-lhe uma aparência “academicamente correta”, é minimizar os aspectos políticos e filosóficos essenciais.
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6. Referências bibliográficas OLIVEIRA, Eloiza da Silva Gomes de et al. “licenciatura: e agora josé?” Publicação do Núcleo de Desenvolvimento Organizacional da Faculdade de Educação da Uerj, 1997. SILVA, E. T. da. Os des(caminhos) da escola. São Paulo, Cortez, 1990. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo, Cultrix, 1993.