Viagem pelos trópicos brasileiros – Província do Espírito Santo (Princesa Teresa da Baviera)

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Princesa Teresa da Baviera

viaGeM PeLOs

TróPicOs BrasiLeirOs Província do Espírito Santo

Tradução de Ivan Seibel Organização de Maria Clara Medeiros Santos Neves




PREFEITURA MUNICIPAL DE VILA VELHA

©Ivan Seibel, 2014.

Prefeito Rodney Miranda

Produção e coordenação Phoenix Cultura

Vice-Prefeito Rafael Favatto

Organização Maria Clara Medeiros Santos Neves

SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA E TURISMO

Tradução Ivan Seibel

Secretária Municipal de Cultura e Turismo Simone Modolo Sub-secretário Municipal de Cultura José Roberto Santos Neves LEI VILA VELHA CULTURA E ARTE

Coordenador da Lei Alvarito Mendes Filho

Revisão Reinaldo Santos Neves Projeto gráfico e diagramação Werllen Castro Apoio Ronald Mansur Fernanda Ribeiro de Sousa

Catalogação na fonte Biblioteca Pública do Espírito Santo T316m

Teresa Carlota Mariana Augusta, princesa da Baviera, 1850-1925 Meine Reise in den brasilianischen Tropen – Viagem pelos trópicos brasileiros: Província do Espírito Santo / Teresa Carlota Mariana Augusta; tradução de Ivan Seibel. – Vila Velha: Phoenix Cultura, 2014. 300 p. ; il.

Publicação bilíngue com tradução em português do original em alemão. ISBN: 978-85-64011-03-8

Espírito Santo – Descrições e Viagens. I. Título. CDD: 918.152


Princesa Teresa da Baviera

V iag e m pe lo s T ró picos B ra sil eiros Pro víncia do Esp ír ito S a n to

Tr adu ç ão de I v an S e ib e l

O rg a n i z aç ão de Ma r i a C l a r a M e d e iro s S a nto s Ne ve s



Dedicamos este livro ao historiador Renato Pacheco (1928-2004), que, se vivo ainda fosse, teria sabido apreciĂĄ-lo e muito teria contribuĂ­do para o seu enriquecimento.



Sumário Lista de ilustrações .

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A princesa das selvas.

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Prefácio do tradutor.

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Introdução .

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Prefácio da autora .

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Capítulo XVI  Espírito Santo.

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33.  40.  43.  49.  57.  61.  69.

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A bordo do Maria Pia. Sábado, 25 de agosto. A bordo. Domingo, 26 de agosto. Vitória  —  Fazenda de Mangaraí. Segunda-feira, 27 de agosto. Fazenda de Mangaraí  —  Santa Teresa. Terça-feira, 28 de agosto. Santa Teresa  —  Petrópolis. Quarta-feira, 29 de agosto. Petrópolis  —  Fazenda do Senhor Barbosa. Quinta-feira, 30 de agosto. Fazenda do Senhor Barbosa  —  Rio Doce. Sexta-feira, 31 de agosto.

Capítulo XVII  Rio Doce . 75.  87.  91.  95.  101.  107.

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Mutum. Sábado, 1º de setembro. Mutum. Domingo, 2 de setembro. Mutum  —  Cabana Soares. Segunda-feira, 3 de setembro. Cabana Soares  —  Linhares. Terça-feira, 4 de setembro. Linhares  —  Regência. Quarta-feira, 5 de setembro. Regência  —  A bordo do Rio São João. Quinta-feira, 6 de setembro.


Capítulo XVIII  Costa do Espírito Santo .

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Apêndice  .

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109.  115.  116.  119.  122.

Porto de Santa Cruz. Sexta-feira, 7 de setembro. Vitória. Sábado, 8 de setembro. Vitória. Domingo, 9 de setembro. Vitória. Terça-feira, 11 de setembro. A bordo do Mayrink. Quinta-feira, 13 de setembro.

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Fac-símiles das páginas originais em alemão.


Lista de ilustrações 1. 2. 3. 4.

Folha de rosto da edição original,  p. 3 Retrato de D. Pedro II, imperador do Brasil,  p. 26 Sudeste da província do Espírito Santo. Roteiro de viagem da autora,  p. 36 Foz do rio Itapemirim. Pintura executada por B. Wiegandt a partir de esboço elaborado pela autora,  p. 41 5. Muquiçaba. Pintura executada por B. Wiegandt a partir de esboço elaborado pela autora,  p. 44 6. Rio Santa Maria, tendo ao fundo o monte Mestre Álvaro. Pintura executada por B. Wiegandt a partir de esboço elaborado pela autora,  p. 46 7. Ponte na província do Espírito Santo,  p. 55 8. Tillandsia usneoides,  p. 64 9. Saco vocal de um Mycetes ursinus Wied (tamanho natural) (Trazido do Espírito Santo pela autora),  p. 73 10. Nosso acampamento no rio Doce. (Desenho de E. Berninger a partir de fotografia feita no local),  p. 79 11. Mulher botocuda. (Fotografia feita pela autora),  p. 80 12. Velho botocudo. (Fotografia feita pela autora),  p. 81 13. Cacique dos botocudos de Mutum. (Fotografia feita pela autora),  p. 84 14. Botocudos. (Fotografia feita pela autora),  p. 85 15. Meninas botocudas. (Fotografia feita pela autora),  p. 89 16. Meninas botocudas. (Fotografia feita pela autora),  p. 90 17. Mulheres botocudas,  p. 98 18. Cadeia montanhosa da Serra vista de Carapina. Pintura executada por B. Wiegandt a partir de esboço elaborado pela autora,  p. 118 19. Ilustrações etnográficas,  p. 126



A presentação ­—

A princesa das selvas

“Árvores, árvores, milhões de árvores, imponentes, imensas, erguendo-se a grande altura”. ( Joseph Conrad, O coração das trevas).

Com a instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, o Brasil foi franqueado ao olhar dos estudiosos e artistas estrangeiros. Missões artísticas e científicas foram oficialmente estimuladas a conhecer o país, e não perderam tempo nem patrocínio. Tinha ficado para trás o período obscurantista dos embargos à presença de estrangeiros na colônia, de que não se livrou o barão Von Humboldt na sua famosa incursão pela Amazônia, em 1800. Como verdadeiros missionários da Ciência e da Arte, visitantes de várias nacionalidades puderam viajar pelo Brasil profundo e conviver com núcleos urbanos emergentes, onde “a sujeira das ruas lembrava que tudo ainda estava ligado à placenta”, na feliz expressão de Luís da Câmara Cascudo, em O príncipe Maximiliano no Brasil. Ao Espírito Santo muitos desses viajantes compareceram, a começar pela tríade formada por Frederico Sellow, Jorge Guilherme Freyreiss e Maximiliano Alexandre Felipe, príncipe de Wied-Neuwied, na expedição de 1816. Com Teresa da Baviera se encerraria o carreiro de ilustres visitantes ao Espírito Santo no século XIX. O ciclo de viagens que se iniciara com um príncipe fechava-se, condignamente, com uma princesa, a única naturalista do sexo feminino que aqui esteve nessa época. —


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Teresa Carlota Mariana Augusta da Baviera nasceu em Munique em 12 de novembro de 1850, e morreu solteira em 19 de dezembro de 1925. Era filha de Leopoldo Carlos José Guilherme Luís de Wurtzburgo (1821-1912) e da arquiduquesa Augusta Fernanda de Áustria-Toscana. Foram seus irmãos Luís III (que viria a se tornar rei da Baviera em 1912), Leopoldo e Arnulfo. O pai da princesa, o principe Leopoldo, governou a Baviera durante vinte e seis anos, de 1886 até sua morte em 1912. Exerceu a regência no impedimento dos sobrinhos, legítimos titulares da coroa, os reis Luís II e Oto, acometidos de insanidade mental, estigma trágico na família. A paixão de Teresa da Baviera pelos estudos de zoologia e botânica levaramna a viajar por diversos países, realizando pesquisas e explorações, recebendo, com o resultado dos trabalhos apresentados, reconhecida projeção nos meios científicos europeus. Com os espécimes recolhidos em suas viagens municiou-se de farto material para museus e estudos comparativos. Em 1897 recebeu o título de doutora honoris causa concedido pela Universidade Ludwig-Maximilian de Munique. Também em 1897, depois de criteriosa sistematização, publicou em Berlim o livro Meine Reise in den brasilianischen Tropen, com mapas, quadros, reproduções de fotografias e desenhos. No prefácio da obra declarou que precisou “de cinco anos para completar o estudo comparativo das plantas e animais” que observara e reunira, junto com objetos etnográficos que “teriam de ser repassados aos diferentes museus etnográficos”. A informação, bastante curiosa, sugere a possível existência de um compromisso da princesa com museus que teriam apoiado sua viagem ao Brasil, além do estímulo recebido do governo de D. Pedro II. A princesa confessou-se também agradecida aos especialistas que colaboraram na catalogação da maioria do material recolhido. Declara ainda que teve de empreender uma série de viagens (que indica) para completar a elaboração dos seus estudos. Vale frisar que, quando da publicação da obra, Teresa da Baviera era, desde 1892, sócia honorária da Academia Real de Ciências da Baviera e da Sociedade Geográfica de Munique, vindo a fazer parte de diversas outras associações culturais. Mais do que uma princesa, foi uma cientista do seu tempo. —

Dois propósitos trouxeram Teresa da Baviera ao Espírito Santo, na viagem de 1888 ao Brasil: conhecer a mata atlântica e travar contacto com os índios botocudos. Naquele tempo o Brasil ainda era um país selvagem. Não totalmente coberto de matas e habitado por índios, mas um país onde perduravam em seu território continental bolsões de selvas e silvícolas que resistiam, umas e outros, à dizimação que já se anunciava em proporções incontroláveis para ambos. O Espírito Santo era um desses bolsões coberto de florestas inexploradas,


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não em seu inteiro território, mas em grandes porções dele, onde índios teimavam em perambular pelo ermo das matas sem a consciência de que perambulavam para a extinção da espécie. A princesa Teresa teve a intuição desse fim, certo e inexorável, de matas e índios, conforme se lê em passagem do livro citada mais ao final desta apresentação. Talvez por isso tenha querido conhecer as florestas do Espírito Santo e estudar os índios que as habitavam antes que se extinguissem. Não se tratava de capricho de uma princesa nascida em berço de ouro, mas de vontade deliberada de uma estudiosa da botânica, zoologia e antropologia – e uma das últimas naturalistas europeias de um período fecundo de estudiosos do meio ambiente, como foi o século XIX. Sua vinda ao Espírito Santo se encaixou nessa predisposição científica que, incendiando-lhe a alma, levou-a a peregrinar mundo afora até onde a impelisse sua ânsia de conhecimento da Natureza e do ser humano. Num lance de ficção, seria o caso de imaginar que, se no momento do seu nascimento uma fada perversa lhe tivesse baixado à cabeceira e rogado uma praga malfazeja, pretendendo condená-la a purgar penas nas florestas do Brasil, não saberia o quanto a maldição se tornaria bênção no destino da nobre amaldiçoada. Pois explorar os exotismos do mundo se tornaria para a princesa uma razão de vida. Ficção à parte, o fato é que na viagem que fez ao Brasil, com 38 anos de idade, a destemida exploradora mergulhou a fundo nas florestas do Espírito Santo para estudá-las com paixão, tanto quanto aos índios botocudos. Foi literalmente uma jornada fantástica, por ela descrita com sobriedade bávara, mas nem por isso menos emocionante, nos capítulos XVI a XVIII da obra publicada em 1897 com dedicatória ao então falecido imperador Pedro II. Na viagem ao Brasil, Teresa da Baviera esteve no norte e no nordeste do país, na Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. No Espírito Santo, aonde veio ter depois de visitar as nascentes do rio Doce, permaneceu de 26 de agosto a 13 de setembro. Na abertura do capítulo XVI, informa que preferiu visitar o Espírito Santo a realizar um passeio a cavalo a partir de Santo Amaro e a navegar pelo rio Negro. Tanto melhor para nós, capixabas, pela importância do seu relato de viagem e graças às multivariadas abordagens nele feitas pela autora. —

No ano em que Teresa da Baviera veio ao Brasil, estavam prestes a ruir de mãos dadas o desgastado regime monárquico nacional e a decadente estrutura econômico-escravagista que sustentava o Império. Quando ela passou pelo Espírito Santo, já se vivia o rescaldo da campanha abolicionista que culminara com a abolição oficial da escravidão, fato assim descrito por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil: “1888 representa o marco divisório entre duas épocas: em nossa evolução nacional, essa data assume significado singular e incomparável.” O país


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começava então a avançar célere para a proclamação da República, que a princesa definiria, no prefácio do livro, como “a grande reviravolta política brasileira”. Da parte da princesa, não houve, porém, nenhuma referência à situação política em que se achava o Espírito Santo. O nome do presidente da província, Henrique de Ataíde Lobo Moscoso, que havia tomado posse no governo vinte dias antes de sua chegada, nem sequer foi por ela mencionado. “Com os olhos bem claros de curiosidade e inteligência”, na fina observação de Luís da Câmara Cascudo (sempre ele!), toda a atenção da ilustre viajante, todo o seu conhecimento especializado, todo o seu interesse de sequiosa exploradora concentravam-se nas florestas e nos índios botocudos. Naquele momento, o Espírito Santo, com uma população de 120.000 habitantes, ainda não se integralizara completamente em termos de povoamento e ocupação territorial. O ciclo da conquista interiorana do espaço capixaba, que sucedeu a quase trezentos anos de rastejante dominação litorânea, não se exaurira do ímpeto que o impulsionara a partir da chegada do café ao vale do Itapemirim, em princípios do século XIX. A banda a noroeste do médio rio Doce capixaba mantinha-se virtualmente indevassável, dominada por matas e índios desde que o rio fora mapeado pela primeira vez, na carta geográfica de Jorge Reinel, de 1540. Era um limbo geográfico a noroeste da província, fechado à colonização. Nem a navegação pelo rio Doce, malgrado as várias e sucessivas tentativas para a ligação comercial com Minas Gerais e, depois disso, nem as muitas experiências de navegação corriqueira no trecho do rio abaixo das Escadinhas, deram o resultado prático almejado. O rio Doce não era um traço de união entre o norte de um verde soberbo e as terras que lhe ficavam a jusante. Era, sim, uma barreira de difícil transposição, um cenário de mataria exuberante apenas desfrutável em visão desafiadora pelos pioneiros que ousaram pôr os pés em sua margem meridional. Tanto que foi somente três anos depois de Teresa da Baviera navegar pelo rio Doce que se deu a fundação de Colatina, transformada em ponta de lança da colonização na região, mesmo assim numa ocupação germinal limitada ao sul do rio. As terras virgens acima do caudal tiveram de esperar a ponte Florentino Avidos, construída no governo deste presidente do Estado (1924-28), para se tornarem acessíveis a seus primeiros ocupantes. Aliás, em 1931, ela ainda constituía passagem temerária para veículos automotores. No livro Brava gente polonesa o imigrante polonês Eduardo Glazar evocaria desse tempo, quando junto com sua família chegou menino a Águia Branca, a imagem imorredoura: “Essa ponte ainda estava em construção, só possuía dois pranchões de cada lado para a passagem dos pneus dos carros. Como nosso caminhão tinha só um pneu de cada lado da traseira, aumentava a probabilidade do motorista errar a passagem pelo espaço dos pranchões. A ponte não tinha corrimão, não tinha nada.” A princesa Teresa da Baviera foi, portanto, sem o saber, espectadora do


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ocaso de um período da história do Espírito Santo em que a ocupação territorial e o povoamento da província se fizeram pelas estradas líquidas dos rios. Ferrovias e vias de rodagem estavam por ser implantadas. Então, viajante arrojada, ela se fez passageira de canoas sem conforto e inseguras para ir ao encontro das matas e índios que a atraíram ao Espírito Santo. —

É simplesmente impressionante a coragem dessa aristocrata de sangue real, instruída e poliglota, oriunda de um dos centros culturalmente mais adiantados da Europa, ao se dispor a enfrentar de bom grado, e até com romantismo confesso, as adversidades das selvas capixabas. Sucessivas passagens do seu relato revelam seu fair play ao desprezar desconfortos e canseiras que, ao invés de abatê-la, mais a animavam a prosseguir em suas marchas por trilhas e rios tortuosos, tangida sempre e sempre pelo desejo de explorar, conhecer e informar. Foi em 26 de agosto que ela desembarcou em Vitória, vinda do Rio de Janeiro no navio Maria Pia, da Companhia de Navegação e Estrada de Ferro Espírito Santo e Caravelas, pajeada por uma fiel acompanhante. Estivera antes, em duas rapidíssimas paradas, na Barra do Itapemirim e Guarapari. No dia seguinte ao da chegada a Vitória, depois de um pernoite na casa de um rico comerciante de café, embarcou de canoa pelo Lameirão adentro, tendo por objetivo Santa Leopoldina, através das selvas do rio Santa Maria da Vitória. De saída, o seu espírito de escotismo fica demonstrado: “Guardamos nossas roupas de viagem em estilo europeu e passamos a usar roupas que servissem tanto para montaria como para caminhadas através da densa floresta. Não incluímos muitas mudas de roupa para não sobrecarregar a bagagem. Entretanto não poupamos as roupas quentes que nos protegessem da chuva e das noites frias. Às onze e meia as duas barracas, as três camas de campanha, muito simples, alguns utensílios de cozinha, todo tipo de conservas, duas lanternas e toda uma provisão de velas tinham sido acondicionados na canoa posta à nossa disposição.” O trecho transcrito pede comentários. Comecemos pela barraca de campanha, retratada em foto que ilustra o livro da princesa, e pelas roupas de viagem. Em seu aspecto formal, a barraca lembra uma mini-tenda árabe. Mas internamente era um abrigo espartano, com um mínimo de equipamentos e utilidades para o uso momentâneo dos pernoites, um simples teto de lona incapaz de proteger das chuvas fortes, indigno de uma princesa europeia. No entanto, a serenidade da princesa, sentada em um banquinho de viagem à entrada da barraca, usando saião longo, blusa de mangas compridas, e tendo nas mãos uma sombrinha e um chapéu de aba redonda com fita larga que o envolve e adorna, revela, tanto quanto qualquer trecho escrito do relato, o desprendimento que a impulsionou no decorrer de suas incríveis peregrinações.


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À impropriedade dos trajes para as andanças tropicais, apesar de serem para a época “trajes de viagem”, é de somar a inadequação dos sapatos das duas mulheres, principalmente, pelo que se pode observar, dos que usava a escudeira da princesa, mais visíveis na foto. Com esses trajes e sapatos de estilo europeu é que nos cabe imaginá-las enfrentando as intempéries e fazendo-se tropeiras de águas e caminhos. De saída, subindo em canoa o rio Santa Maria, numa etapa demorada de viagem, tipicamente conradiana. Em seguida, varando a pé e a cavalo as brenhas de Santa Teresa, em trilhas que mal permitiam aos animais caminhar em fila indiana, onde atravessaram “verdadeiros pântanos” e “pilões” (sulcos cavados no solo): um “pesadelo em termos de esforço e cansaço”, consoante as palavras da princesa. Pior era quando desabava a noite tropical, pesada e repentina. “Os viajantes e animais passavam a se sentir ainda mais inseguros na jornada, tendo até aí enfrentado pilões, pontes sem guarda-corpos, travessias de rios ou beiradas de precipícios.” Se não chegava a ser uma peregrinação às cegas, visto que orientada pela luz frouxa de uma lanterna fixada no estribo da montaria do guia à frente da pequena tropa, era, contudo, algo que lembrava uma jornada de fantasmas. Mas nem em meio às trevas (em que as viajantes e seus acompanhantes correram risco de morte acidental) perdeu a princesa a empolgação pelo que fazia, a ponto de escrever que “situações como estas não comprometeram o romantismo da solitária cavalgada noturna pela floresta.” De fato, toda a orquestração de gritos e cantos emanada do interior da selva densa e noturna, identificados graças ao ouvido apurado e aos conhecimentos faunísticos da princesa, tocava-lhe a sensibilidade como um poema sonoro, o que a levou a relacionar as emoções vividas naquela noite com versos do imperador Maximiliano do México, também amante da botânica e da zoologia. —

Para alcançar o rio Doce, terra dos botocudos, Teresa da Baviera poderia ter feito um percurso menos desgastante, oposto ao que fez. Ao invés de subir pelas águas do rio Santa Maria da Vitória até Santa Leopoldina, e daí atingir Santa Teresa para se embarafustar em seguida ao médio rio Doce, tinha como alternativa chegar pelo mar à foz em Regência Augusta, para enveredar rio acima até onde fosse de sua vontade e prazer. Ou ainda se lhe oferecia a opção de repetir o itinerário seguido por Maximiliano de Wied pela estrada do mar, ao fio das praias, na viagem de 1816. Mas essas alternativas, que se contrapunham com vantagem à aspereza do roteiro escolhido, não teriam permitido o contato íntimo e sensual da princesa com as selvas capixabas, fonte inesgotável de espécimes da flora e da fauna a cada passo recolhidos para engordar o herbário de uma obsessiva estudiosa da Natureza. Além disso, o roteiro litorâneo não proporcionaria o romantismo que aos olhos da pesquisadora oferecia o caminho por ela trilhado, apesar dos sacrifícios e tropeços e da permanente preocupação com a segurança da bagagem. Bagagem,


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aliás, que engrossava no lombo dos animais de carga com a coleta de novos materiais para estudos científicos. A exaustiva subida pelo rio Santa Maria da Vitória até Santa Leopoldina, que se emendava a pé ou a cavalo para Santa Teresa, donde se descia ao Santa Maria do rio Doce, foi a primeira importante rota da imigração italiana naquela região, conforme informa Élvio Antônio Sartório, na obra A trilha sagrada. Tratava-se da estrada de Santa Teresa, “longa e tortuosa”, na expressão de Manoel Milagres Ferreira, e que de estrada só tinha o nome, consistindo na verdade de trilhas ou picadas, muitas vezes improvisadas na hora, que varavam morros e matas e exigiam enormes sacrifícios dos viajantes. A princesa dá sucessivos testemunhos dos esforços despendidos nesse trajeto: “O restante do grupo seguiu a esmo o caminho desconhecido em meio à escuridão de breu. Porém, subitamente, perdemos o rumo no meio de uma clareira e fomos dar num pântano.” E continua: “A trilha por onde cavalgávamos [a 31 de agosto], mais ainda que a que tínhamos percorrido nos dias anteriores, parecia um túnel cavado através da floresta e não um caminho feito através dela.” Felizmente, não foi apenas mataria híspida que a princesa conheceu na estrada de Santa Teresa. Ao longo dela, fixavam-se, aqui e ali, esparsos embriões de colonização em que imigrantes europeus, notadamente tiroleses, sobrepujavam com afinco o ambiente hostil e inauguravam o cultivo do café. Num desses encontros, Teresa compartilhou com os italianos, sempre hospitaleiros na recepção aos viajantes, uma refeição tradicional de risoto com polenta, que lhe pareceu “mais saborosa que os pratos brasileiros, em geral menos nutritivos.” Mas ainda se estava no raiar da conquista de um grande quinhão do território capixaba, num vale-tudo em que prevalecia o finca-pé de uma vanguarda de pioneiros que transformavam áreas virgens em sítios e fazendas. Para agrado da princesa, dois imigrantes encontrados durante a jornada eram conterrâneos seus da Baixa Baviera (a esposa de um tirolês alemão e um colono – a princesa não cita seus nomes). Referência especial, mas também anônima, mereceu um brandenburguês de esporas afiveladas aos pés descalços, hábito local, que foi o segundo guia da expedição, cabendo a primazia a um tirolês de nome Ferrari, tropeiro e ex-soldado do exército imperial austríaco. Com os pomeranos enganou-se Teresa da Baviera ao confundi-los com poloneses. Estes seriam imigrantes do século seguinte, enquanto os pomeranos já estavam assentados na província ao tempo da viagem da princesa. Mas foi, sobretudo, a selva – bruta, surpreendente, estupenda – que fez as honras da casa à ilustre viajante nos seus erráticos ziguezagues pelo Espírito Santo, do Santa Maria da Vitória às águas do rio Doce. Honras para as quais a princesa, sempre atenta “às mais diferentes plantas e à escuta dos mais estranhos sons”, correspondeu com reverência e fascínio, expressos nas detidas e eruditas descrições que fez dos trechos percorridos em meio “às paredes indevassáveis” de uma floresta que, de tanta árvore que tinha, não permitia que se visse a mata.


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Não resta a menor dúvida de que entre o rio Santa Maria da Vitória e o Doce, o relato se faz mais verde que te quero verde. —

Duas fortes decepções aguardavam sua alteza no rio Doce, quando ali chegou. Uma foi imediata: a visão de um rio na vazante, “sem graça”, com um volume de água que mal cobria as pedras do leito. A segunda viria depois, com fel de frustração: o desencontro dos selvagens botocudos. Não os botocudos semi-civilizados a que a princesa muito se referiu, com os quais se defrontou várias vezes, mas os bugres bravios e perigosos, ainda por serem arrancados ao seio das florestas. A estes, premida pela necessidade de apressar o retorno ao Rio de Janeiro, lamentou não ter conhecido, tendo vindo de tão longe para estudá-los. Chega a ser incrível que em 1888 bugres perambulassem em estágio de barbárie pelas matas setentrionais do rio Doce. Mas lá estavam eles, sombrios e instintivos, prontos a se voltarem contra o branco dominador diante do menor susto ou ameaça. Seis anos antes da visita da princesa, um aldeamento de botocudos aculturados no rio Mutum foi repentinamente atacado por bugres brotados das selvas. E dezoito anos depois, em 1906, nas proximidades de Porto Final, hoje no município de Baixo Guandu, um grupo de pessoas que trabalhava na construção da Estrada de Ferro Vitória a Diamantina viu-se acometido por uma saraivada de flechas disparadas por índios crenaques contra a canoa em que iam. O incidente foi narrado por um dos passageiros da embarcação, o engenheiro Ceciliano Abel de Almeida, na obra Desbravamento das selvas do rio Doce. Duras, por sinal, foram as críticas que a princesa fez ao estado de abandono com que se deparou no assentamento indígena de Mutum, criado “pelo governo com a finalidade de trazer a civilização ao encontro dos silvícolas”. É um triste retrato da falência da burocracia nacional, já naquela época, em relação à política indigenista. É certo que não mais vigorava a campanha de extermínio contra os botocudos, pregada pela carta-régia de 13 de maio de 1808, revogada em 1831. Não obstante, a política de cooptação dos indígenas do rio Doce aos padrões da sociedade branca ainda deixava muito a desejar, em termos de cabimento, objetividade e eficácia. A rebeldia dos índios à ação civilizatória e a ojeriza dos colonos a essa rebeldia, que atribuíam à feroz e indomável natureza dos silvícolas, alongaram no tempo as hostilidades entre as duas partes. Aos olhos da princesa este quadro de antagonismo não passou despercebido. Foi objeto até da conversa que manteve com o “senhor Milagre” (Francisco Vieira de Carvalho Milagres, segundo Levy Rocha), na canoa em que ela seguia para Regência Augusta, encerrando sua viagem pelo rio Doce.


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Enquanto o velho e curtido fazendeiro, desbravador das terras do rio Guandu, defendia a matança de botocudos em legítima defesa, já que estes atacavam e massacravam os colonos, Teresa da Baviera elogiava as “medidas filantrópicas” então vigentes “a favor dos legítimos donos das terras”, numa posição humanitária que a colocaria, na atualidade, como lídima representante de grupos minoritários menos favorecidos. Tocada de nobre sentimento, chega a indagar: “Até quando isto há de durar?”, para responder numa antevisão profética: “pois também aqui o colono laborioso avançará expulsando estes aborígenes que percorrem sem cessar as selvas, na vã procura de um lugar onde possam descansar as cansadas cabeças sem serem perturbados”. —

Caía a noite de 4 de setembro quando Teresa da Baviera chegou a Linhares. No dia seguinte, pela manhã, seguiu em canoa até Regência Augusta, onde embarcou depois para Vitória num vaporzinho com rodas de pás “miseravelmente pequeno”, em que mais uma vez arriscou a vida, agora na traiçoeira barra do rio Doce, onde um ano antes naufragara o cruzador Imperial Marinheiro. Enquanto aguardava em Vitória a embarcação que a levaria de volta para o Rio, a princesa teve tempo de conhecer a cidade e seus arredores, inclusive Vila Velha, onde visitou o convento de Nossa Senhora da Penha, que achou abandonado. A capital não lhe causou a mesma impressão de simpatia que cerca de setenta anos antes causara ao príncipe Maximiliano de Wied e ao naturalista Saint-Hilaire. Apesar de registrar que a cidade se estendia graciosa sobre o aclive sudoeste da ilha, Teresa achou as casas decadentes e o calçamento ruim. Sua descrição remete à que o presidente Muniz Freire faria, ao assumir o governo estadual em 1892: uma cidade carente de condições básicas de conforto e higiene. Em compensação, a princesa demorou olhares de satisfação ecológica sobre o Lameirão, por onde já tinha passado antes, e sobre o perfil das serras que azulavam na distância. Aqui cabe reconhecer que seu forte não era descrever e observar o que não dissesse respeito à Natureza. Quando passou por Santa Teresa, confessou, numa escancarada franqueza de naturalista, que muito mais do que o vilarejo “desinteressante” foi um gambá que ocupou sua atenção. Nem por isso seu relato da viagem perde qualidade informativa. Ao longo dele há uma profusão de pavios que, acesos, são capazes de provocar uma explosão de estudos sobre o Espírito Santo e sua gente. Dispensável apontá-los nesta apresentação, até porque não é este nosso propósito. Olhares de ver saberão puxar meadas para análises e pesquisas, abrindo-se em comparações com relatos de outros visitantes que andaram o Espírito Santo no século XIX, para se dizer o mínimo, sem sair do terreno da investigação histórica.


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O que importa assinalar é que a tradução para o português e a publicação do relato de Teresa da Baviera sobre sua viagem ao Espírito Santo revestem-se de suma importância, não mais podendo ser documento ignorado como preciosa fonte de história. É marfim em estado puro para quem souber aproveitá-lo. Luiz Guilherme Santos Neves

Referências ALMEIDA, Ceciliano Abel de. Desbravamento das selvas do Rio Doce. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1959. CAMPOS JUNIOR, Carlos Teixeira. A formação da centralidade de Colatina. Vitória: IHGES, 2004. CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Porto Alegre: LP&M, 1997, tradução de Albino Poli Junior. CASCUDO, Luís da Câmara. O Príncipe Maximiliano no Brasil. Rio: Kosmos, 1977. DANGELO, Jota. O Vale do Rio Doce. Vale-EGB Serviços Gráficos, 2002. SANTOS, Estilaque Ferreira dos. A monarquia no Brasil. Vitória: EDUFES, 1999. FERREIRA, Manoel Milagres. História e flagrantes de Baixo Guandu. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1985. GLAZAR, Eduardo. Brava gente Polonesa. Vitória: Flor&Cultura e Cultural,2005. GOMES, Laurentino. 1889. São Paulo: Globo, 2013. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio: José Olympio, 1971. MACHADO, Lisanea Weber. O romance epistolar de Ina von Binzer: Um documento de interculturalidade brasileiro-alemã. www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/000741932.pdf, acessado em 10/1/2014. NOVAES, Maria Stella. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Fundo Editorial do Espírito Santo, s/d. ROCHA, Levy. Viajantes estrangeiros no Espírito Santo. Brasília: Ebrasa, 1971. SARTÓRIO, Élvio Antônio. A trilha sagrada. Vitória: Gráfica Sodré, 2007. SILVA, Levy Soares da. Os índios botocudos da província do Espírito Santo, sob a ótica da Princesa Teresa da Baviera em 1888. www.periodicos.ufes.br/simbiotica/article, viewFile/4417/3521, acessado em 1º de janeiro de 2104. ZUNTI, Maria Lúcia Grossi. Panorama histórico de Linhares. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1982.


Prefácio do tradutor Quem era essa princesa rica que à primeira vista parecia ter saído pelo mundo, a gastar o dinheiro do Reino da Baviera? Antes de qualquer coisa, será preciso dizer que se tratava de alguém que, fora do seu espaço de tempo, surpreendeu o mundo pelo seu conhecimento e coragem. Foi uma época em que a mulher nada valia. Nada mais era que não fosse dama de companhia de alguma senhora ricaça ou da aristocracia e que, por seu lado, também nada fazia. Foi uma época em que a futilidade dominava os salões de convivência da nobreza europeia. Esta jovem senhora, nascida em 1850, terceira filha do príncipe regente Luitpold da Baviera e da Áustria, como autodidata “ousou” estudar história, geografia, geologia, botânica, zoologia e etnologia e viajar pelo mundo na comprovação prática dos seus conhecimentos sobre o ser humano e o seu entorno. Teresa da Baviera, nas décadas de 1880 e 1890, viajou pela Europa, África, América do Norte e América do Sul, realizando amplo estudo que resultou em extensa coleção de artefatos zoológicos, botânicos e etnológicos e que representou a conquista do respeito do mundo científico e acadêmico da sua época. Tornou-se a primeira mulher a conquistar, em reconhecimento às suas pesquisas e suas publicações, o mais alto título concedido por uma universidade europeia, até lá acessível apenas aos homens: Doutora Honoris Causa. Foi esta a Princesa da Baviera, que, ao longo de uma viagem de pouco mais de duas semanas, no que se refere ao Espírito Santo, produziu uma obra que precisa ser lida, ou melhor, que deve ser decifrada pela riqueza nela inserida, pelos dados científicos, históricos e, sobretudo, pela sua poesia. Traduzir um livro com auxílio da moderna tecnologia da informática é relativamente fácil. Agora, reproduzir em um novo idioma esta poesia e a riqueza literária deste texto requer muito mais do que a geração de uma nova versão de frases convertidas para a língua portuguesa. Será preciso conhecer seus personagens, sua história, perceber seu sentimento, identificar sua determinação,


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sua ousadia. Será preciso conseguir acompanhá-la na sua viagem, sentir seu cansaço e suas preocupações. Será preciso perceber o romantismo com que vê o ambiente ainda virgem da selva tropical, com sua rica fauna e flora e sua interação com uma natureza ainda intocada. Somente depois de tudo isto a leitora ou o leitor estarão preparados para identificar a poesia, não em verso, mas em prosa, desta maravilhosa obra que merece ser lida, especialmente, por aqueles que têm seu vínculo com este pedaço de chão espremido entre o populoso Rio de Janeiro, a rica Minas Gerais e a festiva Bahia. É uma história para os habitantes desta Terra Capixaba, com muito do seu passado ainda por desvendar. Ivan Seibel


Introdução Dos apontamentos feitos pela princesa Teresa da Baviera durante sua visita ao Brasil entre os meses de janeiro e outubro de 1888 nasceu o livro Meine Reise in den Brasilianischen Tropen. Sua passagem de três semanas pelo Espírito Santo, ocorrida entre agosto e setembro e registrada nos Capítulos XVI, XVII e XVIII da edição de 1897 (única existente), é aqui reproduzida com o objetivo de incorporar à bibliografia capixaba um relato único e muito rico em detalhes, que registra não só informações de caráter científico sobre a flora, a fauna, a topografia e os indígenas da província (objetivos principais da viagem), mas também diversos aspectos relevantes da vida local. Antes desta edição tínhamos apenas um resumo da viagem, acompanhado de comentários pertinentes, no livro Viajantes estrangeiros no Espírito Santo, do historiador Levy Rocha, a que remetemos o leitor interessado. A presente publicação contém não só a tradução integral dos capítulos da parte relativa ao Espírito Santo e a reprodução de todas as respectivas ilustrações como também, em fac-símile, as páginas correspondentes da edição alemã. Além disso, foram aqui também incorporadas as imagens de capa e folha de rosto da edição original, a fotografia do imperador Pedro II que consta do frontispício, e a tradução para o português do prefácio geral da autora e da dedicatória. Por fim, foi preparado um conjunto de textos especialmente para complementar esta edição, que compreendem um prefácio e notas explicativas do tradutor, Ivan Seibel, uma apresentação do historiador Luiz Guilherme Santos Neves, e uma breve notícia biobibliográfica sobre a autora. Em termos gráfico-editoriais manteve-se praticamente intacto o plano da obra original. A tradução de Ivan Seibel data de 2010 e o livro é resultado de projeto aprovado em 2012 na Lei Vila Velha Cultura e Arte da Prefeitura de Vila Velha.





À S UA M A J ES TA D E I M P ERI A L , O S EREN Í S S I M O E I N ESQ UE CÍV EL

D O M P ED RO I I , I M P ERAD OR D O BRASI L.



Prefácio da Autora —

Comecei a minha viagem para o Brasil acompanhada de uma senhora, um cavalheiro que me prestava serviço e um empregado especializado no trabalho de taxidermia. O objetivo da minha viagem foi conhecer os trópicos, dentro do possível fazer contato com grupos indígenas e coletar plantas, animais e objetos etnográficos. Como resultado desta viagem entre outras coisas está a descoberta de alguns novos gêneros e variedades de animais e plantas e o registro da identificação de alguns novos sítios e localidades. O propósito inicial foi dar contribuições complementares à geografia zoológica e botânica, porém logo decidi por analisar melhor os materiais coletados na viagem, já pensando na sua divulgação. Enquanto me ocupava com este trabalho aconteceu a grande reviravolta política brasileira, e logo a família real do país foi definitivamente deposta. Desta forma, o que vi e vivenciei na corte no Brasil passou a pertencer a uma época histórica já finda, e muito daquilo ganhou mais importância pelo simples fato de doravante não mais poder ser observado. Isto fez com que concentrasse meu trabalho nesta parte das pesquisas reunidas na minha viagem e que inicialmente não tinham sido destinadas ao público, para que pudesse inseri-las nas descrições do percurso. Infelizmente não foi possível encaminhar mais cedo estas anotações para o prelo. Isto porque precisei de cinco anos para completar o estudo comparativo das plantas e animais que observei e coletei e de toda a coleção de objetos etnográficos que reuni, e que teriam de ser repassados aos diferentes museus etnográficos. De fato, muitos especialistas tiveram a gentileza de catalogar a maioria dos objetos. Mas, sem interromper aquele estudo passei a estudar novamente cada um dos objetos, apesar de para isto também ter sido necessário


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primeiro me familiarizar com a correspondente literatura especializada. Um novo atraso na publicação ocorreu também porque me vi obrigada a empreender uma série de viagens para completar a elaboração dos meus estudos. Assim, para fins de comparação com as do Brasil, no ano de 1889 estive em Paris para visitar a exposição de antigas cerâmicas indígenas mexicanas em que pela primeira vez se traçou um paralelo com as de diversos estados da América Central e do Sul. Depois, em 1893, estive na América do Norte para familiarizar-me com a maior quantidade possível de material etnográfico. Neste aspecto fui bem sucedida, pois, além de ter conseguido acesso a muitas coleções de objetos, pude conhecer dezessete diferentes grupos indígenas que vivem desde o Canadá até o sul do México. Fui aconselhada a redigir minhas experiências em forma de diário de viagem. Também segui este conselho. Por outro lado, quanto mais avançava na redação do meu texto, tanto mais verificava que esta forma não era a mais adequada. Ela impedia, por exemplo, o registro de conclusões adicionais, especialmente baseadas em vivências posteriores, que explicavam, porém, fatos ocorridos no passado. Ao se utilizar esta forma, corre-se o risco de descrever fatos que naquele momento não poderiam ter sido do conhecimento de quem redigia o relato. Quando me deparei com esta e muitas outras desvantagens da redação em forma de diário de viagem, a obra já tinha avançado tanto que era impossível recomeçar nova redação desde o seu início. Além do inconveniente recém-citado, meu livro foi também prejudicado, na forma como era meu desejo elaborá-lo, pela falta de material bibliográfico. Assim, para citar apenas um exemplo, diversas das principais famílias de plantas da Flora brasiliensis de Martius ainda não estavam disponíveis. O mesmo aconteceu com o catálogo ornitológico editado em série pelo Museu Britânico, de que alguns volumes ainda não tinham sido publicados. Como durante este meu trabalho, que durou anos, muitos novos conceitos em Ciências Naturais foram validados, por vezes, fui mais tarde obrigada a fazer modificações na obra já concluída. Com isto pode ter acontecido que eu tenha inserido essas correções em uma passagem da obra e omitido em outras, dando margem a eventuais contradições. Assim, apesar de diversas penosas revisões de todo o trabalho, podem ter ocorrido erros. Antes de concluir este prefácio, não poderia deixar de agradecer a todos aqueles que com grande desprendimento pessoal contribuíram para que a análise deste meu material da área de ciências naturais pudesse ser concluída ou que de alguma outra forma contribuíram para o sucesso do empreendimento. Fazem parte deste grupo pessoas ligadas às coleções das áreas de zoologia, paleontologia, mineralogia e pré-história e do Museu de Etnografia e Botânica de Munique, diversos funcionários do Museu de História Natural de Viena,


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do Museu de Ciências Naturais e do Museu Botânico de Berlim e do Museu Britânico de Londres, os botânicos Professor Dr. Weiss em Freysing, Dingler em Aschaffenburg, Schenk em Darmstadt, Köhne em Berlim, Mez em Breslau, Cogniaux em Verviers, Dr. Stapf em Kew e Petersen em Copenhague, os zoólogos Conde Otting em Munique, Conde Berlepsch em Münden, Professor Dr. Forel em Zurique, Barão de Sélys-Longchamps em Lüttich e Dr. Goeldi no Pará, e finalmente o geólogo Professor Orville A. Derby em São Paulo. Munique, 1897

A Autora



CAP Í T U LO X VI —

Espírito Santo A bordo do Maria Pia. Sábado, 25 de agosto. Às três horas da manhã de hoje zarpamos do Rio de Janeiro a bordo do vapor Maria Pia, da Companhia Espírito Santo-Campos e seguimos ao longo da costa em direção a Vitória, capital da província do Espírito Santo. Nosso único empregado permaneceu no Rio, já que a viagem lhe seria muito cansativa. O navio seguiu inicialmente em direção ao alto mar para depois tomar rumo nordeste. Desta forma, para atingirmos nosso destino, seguimos, mas em sentido inverso, a mesma rota de duas semanas atrás, quando viemos da Bahia para o Rio. Não foi possível evitar este vaivém no percurso, tanto porque o navio em que viajamos não aportou em Vitória como porque ainda não tínhamos planejado esta viagem. O projeto amadureceu no Rio de Janeiro e tem como objetivo conhecer a mata Atlântica e visitar os botocudos que nela vivem. A presente excursão substitui dois projetos frustrados, o passeio a cavalo a partir de Santo Amaro e a navegação pelo rio Negro até os crixanás. Pela manhã, continuamos navegando ao longo da costa e o espetáculo das cadeias de montanha cativou nossa atenção. À tarde a neblina impediu a vista da costa, o que é muito comum nesta época do ano. O Maria Pia balançava fortemente, já que é menor do que os vapores do lago de Bodensee.1 Pela proximidade da costa tínhamos a impressão de sentir o fluxo das ondas do mar. Alguns dos passageiros não conseguiam manter-se de pé e um deles, que caíra no chão, saiu rastejando de quatro de volta a seu banco. Amanhã já veremos o litoral do Espírito Santo. ) Lago de Constança, entre a Alemanha e a Suíça. Há mais duas ocorrências no texto. Nota do tradutor. 1

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Esta província, com 44.839 km², é a segunda em menor extensão do Brasil. Seu tamanho equivale ao da Suíça. Situa-se entre 18º 5’ e 21º 18’ latitude sul, e sua costa se alonga por um total de 428 km.2 Sua extensão de leste a oeste é medíocre. O Espírito Santo representa a faixa litorânea que separa a província de Minas Gerais do mar. Entretanto, a inexistência de adequadas vias de transporte tolhe seu potencial natural como escoadouro de produtos. A província se enquadra toda na faixa de mata Atlântica e não possui qualquer tipo de áreas de vegetação rasteira. Os trechos mais bonitos da floresta litorânea brasileira encontram-se nesta área, em especial nas zonas mais ao sul e mais ao norte. Entretanto, não se encontra esta vegetação luxuriante em sua zona central. A região se caracteriza essencialmente pelo aspecto montanhoso. Isto ocorre, sobretudo, mais para o interior, onde a serra do Mar, cuja seção norte se denomina serra dos Aimorés, demarca toda a fronteira ocidental. Para o leste, junto ao mar e ao longo de grandes rios, especificamente a 20º de latitude sul, em direção ao norte, há grandes planícies. Já mais ao sul a grande cadeia montanhosa acompanha os leitos dos rios praticamente até a costa. Sobre o clima do Espírito Santo, poucas avaliações foram feitas ou divulgadas. Em geral consta que é quente, úmido e insalubre na região litorânea e nas proximidades dos rios, e ameno e saudável nos pontos mais altos e no interior. A temperatura média anual, certamente a do litoral, é de 24º C.3 Nas proximidades do rio Doce, na estação quente do ano, o calor alcança os 35º C. Já Santa Isabel, que pertence ao interior montanhoso, tem uma média anual de 22,5º C; em Santa Leopoldina, situada em altitude equivalente, os termômetros nunca descem abaixo de 15º C.4 As precipitações pluviométricas ao longo da costa se verificam o ano todo, apesar de sempre chover mais no verão do que no inverno. Junho, julho e agosto são os meses de maior seca em toda a província. No que tange à agricultura, o Espírito Santo ainda está muito atrasado, pois só uma parte ínfima de suas terras extremamente férteis foi cultivada. Quanto aos tipos de cultura, encontramos, sobretudo, a do café, para a qual ) As referências para estes dados são muito divergentes, de acordo com as diferentes fontes. Por exemplo, um autor brasileiro (Silva Coutinho, Breve Noticia descriptiva sobre a provincia do Espirito Santo, p. 2) cita uma extensão territorial de 39.000 km², e outro (Daemon, Provincia do Espirito Santo, p. 472) refere 79.000 km². 3 ) As fontes não especificam se estes dados se referem à temperatura média desta região costeira; entretanto, estes são valores presumíveis em comparação com os de áreas próximas. 4 ) A temperatura mínima de 0º C referida para o Espírito Santo por Sellin (Das Kaiserreich Brasilien II, p. 94) pode ser questionada. 2


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o solo é particularmente adequado e cuja extensão se amplia cada vez mais. Cultivam-se também cana-de-açúcar, algodão, mandioca, milho, uma variedade de tubérculos, entre outros produtos. Sobre criação de gado pouco se fala nestas terras de vasta floresta, mas, em contrapartida, as matas são exploradas com vistas à agricultura e à obtenção de madeiras de lei, entre as quais se pode citar o jacarandá. O pequeno desenvolvimento de província tão rica pode ser atribuído, sobretudo, à inexistência de estradas e à precariedade dos meios de escoamento, o que impede ou muito dificulta que os produtos do interior cheguem até a costa para serem exportados. Em consequência o comércio também pouco se desenvolveu. O volume dos negócios da província no ano de 1885-1886 representou cerca de 6.400.000 de marcos.5 Desta soma a maior parcela sai em taxas de importação repassadas a outras províncias, já que os ganhos auferidos com o comércio exterior só representam pouco mais que um terço deste valor. O Espírito Santo é pouco povoado. Conta com 121.562 habitantes, o que não representa mais do que três habitantes por quilômetro quadrado. A população branca não é muito representativa, constituindo apenas 32% dos habitantes. Do mesmo modo os mestiços, com seus 33%, não são muito numerosos em comparação com a maioria das outras províncias. Por outro lado o percentual de negros, que é de 27%, só é inferior ao percentual do Rio de Janeiro. É também digno de nota o índice relativamente alto de índios civilizados, somente superado nas províncias da Amazônia e de Mato Grosso. Os 8% da população representados por estes nativos abrangem três grupos étnicos, os goiatacás, os jês e os tupis.6 No Espírito Santo ainda vive um número significativo de índios bravios. Eles habitam as florestas virgens do oeste e do norte, enquanto a população branca e o restante da população civilizada ocupam apenas a área costeira, e daí, seguindo o curso dos rios, avançam lentamente pela selva sem fim. Estes silvícolas pertencem a dois grupos. Ali se encontram cotoxós, botocudos e outros do grupo dos jês, e puris do grupo dos goiatacás. Os botocudos vivem mais para o oeste e o norte e os puris no sudoeste. De todos estes ramos o dos botocudos é de longe o mais significativo e também o que mais nos interessa, já que nossa visita se destina especialmente a conhecer este grupo de índios do Espírito Santo.

) Moeda da Alemanha na época. Nota do tradutor. ) Os tupis, além de oriundos do ramo dos tupinambás, devem ser oriundos do dos tupiniquins e igualmente do dos papanazes. Ver Martius: Zur Ethnographie Amerikas, zumal Brasiliens, p. 172, 174, 191, 302. — Moura: Diccionario geographico do Brazil I, p. 463. 5

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Sudeste da provĂ­ncia do EspĂ­rito Santo. Roteiro de viagem da autora.


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Os botocudos, que eram outrora conhecidos pelo nome de aimorés e se autodenominam burus, somam cerca de 7.000 indivíduos divididos em vários subgrupos. Estes subgrupos têm diferentes nomes e em parte cultivam entre si profunda inimizade. Vivem em extensas áreas territoriais. Ao norte podem ser encontrados até Ilhéus, na província da Bahia, e a oeste se espalham por Minas Gerais até os limites da mata Atlântica, ou seja, praticamente até a serra do Espinhaço, e ao sul, no Espírito Santo, pelo menos até o rio Doce, e ao leste em alguns pontos até quase a costa. No passado habitavam ao sul do rio Negro, aquém dos 22º de latitude sul, e alguns estudiosos brasileiros mencionam sua presença nas províncias de Paraná e Santa Catarina.7 No rio Doce ainda vivem nas mesmas áreas onde têm sido localizados há centenas de anos. Assemelham-se muito ao homem primitivo, o habitante pré-histórico das terras brasileiras.8 Possuem um tipo de crânio mais baixo; a capacidade intracraniana é menor e equivale à dos nativos da Austrália e Nova Caledônia. Os homens em média são prognatas dolicocéfalos com um índice de largura de 73,75,9 enquanto as mulheres têm um índice de largura de 75,36, podendo ser incluídas entre os mesocefálicos.10 A testa do botocudo é estreita, baixa e puxada para trás, o ) Ver Guia da Exposição brazileira, p. 18, 41 e ss. Peixoto: Novos estudos craniologicos sobre os botocudos (Archivos do Museu do Rio de Janeiro, VI 233, 235) e Ladislau Netto: Investigações sobre a archeologia brazileira (Archivos etc. VI, p. 415, 504, 505.) — Nem Martius (Zur Ethnographie etc) nem Ehrenreich (Die Eintheilung und Verbreitung der Völkerstämme Brasiliens. [Petermanns Geographische Mittheilungen, XXXVII, p. 116]) fazem nenhuma referência. No geral parece haver pouca coisa comprovada sobre estes botocudos do sul, mas é de presumir que estes estudiosos brasileiros, de forma mais abrangente que os alemães, presumivelmente aplicaram o conceito “botocudo” também a estes silvícolas das províncias do sul, pois só estes usavam botoques de madeira nos lábios. 8 ) Quatrefages: L’homme fossile de Lagoa-Santa et ses descendants actuels (Comptes rendus de l’Académie des Sciences. XCIII, p. 882 e ss.). — Ehrenreich l c. 115 e também: Ueber die Botocudos der brasilianischen Provinzen Espiritu Santo und Minas Geraes [Zeitschrift für Ethnologie XIX, p. 79]) refere que os crânios de Lagoa Santa seriam idênticos aos dos botocudos e, ao contrário de Quatrefages, não os enquadra como pré-diluvianos. 9 ) Média de 19 crânios em Archivos etc. (I, 55 e ss, VI, 212 e ss), Hartt (Geology and Physical Geography of Brazil p. 586), Rey (Etude anthropologique sur les Botocudos p. 24e ss.), Virchow (Crania Ethnica americana, e Verhandlungen der Berliner Gesellschaft für Anthropologie etc., ano 1875, p. 161 e ss.) citações de índices e largura facial para crânios de indivíduos masculinos. Com exceção de dois, todos estes crânios são dolicocéfalos; o índice de largura facial mais baixo compreende 70,8 e o mais alto 79,3. — Ehrenreich (Ueber die Botocudos etc. p. 67) em um grupo de 9 crânios estudados em Berlim encontrou um índice de largura médio de 74,5. 10 ) Média de 9 crânios em Archivos etc. (I, 57 e ss., VI, 233e ss.), Rey (l. c. 37 e ss.) e Verhandlungen etc. (1875 p. 161 e ss.). Três destes crânios são dolicocéfalos. O índice mais baixo é 71,02 e o mais alto 79,86. — Ehrenreich (Ueber etc. p. 67) em um estudo feito em quatro crânios em Berlim obteve um índice médio de 78,4. — Outro estudo de 12 crânios de botocudos obteve um índice médio de 74,49 (Archivos etc. VI, 243) e outro, de Virchow (Verhandlungen 7

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rosto é largo e chato e a asa do nariz retraída; o nariz apresenta-se geralmente curvo, com dorso torto ou retilíneo; os olhos são pequenos e de um castanho escuro, as pálpebras inclinadas e por vezes horizontais, a boca é grande e os lábios grossos, os malares salientes, os cabelos lisos e quase sempre pretos; a barba é rala e a cor da pele, variada. Encontram-se indivíduos de tez morena, avermelhada, marrom-bronze, entretanto a primeira costuma predominar; em todo caso, os botocudos são mais claros que os tupis e fazem parte do grupo de índios de pele mais clara. Sua estatura é mediana, têm pescoço curto, ombros retos e largos e membros notadamente pequenos.11 Os botocudos ou aimorés portam nos lábios um disco de madeira, o que da parte dos portugueses lhes rendeu este apelido pejorativo, originário de botoque ou mais exatamente batoque (rolha ou tarugo). Este costume, compartilhado com várias outras tribos indígenas, começa a ser gradativamente abandonado. Hoje o costume de desfigurar os lábios com este dispositivo é seguido principalmente pelas mulheres, enquanto os homens já se satisfazem em introduzir um pequeno disco de madeira, de no máximo 9 cm, nos lóbulos das orelhas. Embora estes botoques sejam confeccionados com madeira mais leve que a cortiça, ainda podem provocar, em pessoas idosas, a ruptura do lábio inferior extremamente distendido. Além deste adorno questionável, as mulheres costumam ostentar colares e braceletes confeccionados com sementes e dentes de animais, e os homens utilizam, em seus empreendimentos bélicos, diademas feitos de cascas de árvore. Outrora os caciques ostentavam algumas penas de aves nos cocares, o que hoje só ocorre excepcionalmente. Os botocudos se pintam com tintas de cores azul, vermelho e preto. Na mata andam totalmente nus. Já os semicivilizados, quando executam tarefas em fazendas, usam um mínimo de vestimentas. Os botocudos encontram-se talvez na fase mais primitiva da escala de desenvolvimento humano. Vivem ainda na idade da pedra, não utilizam canoas12 nem, em geral, cerâmica e redes, e muitas vezes ignoram a técnica de construção de cabanas. Como recipientes utilizam pedaços de bambu e cascas der Berliner etc. 1874 p. 262, 1875 p. 161), com um índice médio de 72,4, não foram considerados no presente estudo, até por não terem sido classificados por sexo nem tampouco terem uma classificação inconteste quanto à raça. 11 ) Lacerda Filho e Peixoto: Contribuições para o estudo anthropologico das raças indigenas do Brazil (Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro I, p. 49 e ss.) — Lacerda: Craneos de Maracá (Archivos etc. IV, p. 40 e s.) — Peixoto: Novos etc. (Archivos etc. VI, p. 212, 218, 229, 246 e ss.) Rey: Etudes etc. 70, 71. — Mello Moraes: Revista da Exposição anthropologica brazileira, p. 2, 94. — Neuwied: Reise nach Brasilien II, p. 3e ss. — Hartt: Geology etc., p. 579 e ss. — Ehrenreich: Ueber etc., p. 14 e ss. 12 ) Ver Ladislau Netto: Investigações etc. (Archivos etc. VI, p. 414). — Martius (Zur Ethnographie I, p. 324) por seu lado fala em uma espécie de canoas, mesmo que com formas muito primitivas.


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de frutos da cabaça (Crescentia Cajuite L.), da cabaça-amargosa (Lagenaria vulgaris Ser.) e da sapucaia (Lecythis Pisonis Camb.). Os poucos potes de barro que se podem encontrar entre eles são de confecção muito primitiva. O aquecimento de água é feito de modo muito ineficaz em tubos de bambu ou em folhas novas de palmeira ainda entreabertas, ou ainda por meio de seixos aquecidos no fogo e depositados num recipiente com água. Além dos utensílios domésticos acima citados, fazem uso de machadinhas de pedra e facas feitas de bambu. Hoje já podem ser vistos usando machados e facas de metal, que lhes chegaram através do contato com a população branca. Ademais, ainda preparam boquilhas da cauda dos tatus e flautas de bambu, que tocam expelindo ar pelas narinas. Cestos, tacapes e recipientes de madeira raramente são encontrados. Vivendo nômades, utilizam no transporte de seus míseros pertences uma pequena rede trançada com fibras vegetais denominada acaiú, que as mulheres carregam às costas, suspensa à cabeça por um trançado de fibras, e em que muitas vezes ainda carregam uma criança. Como armas utilizam o arco e a flecha e, raramente, tacapes. As flechas não são envenenadas e suas pontas são feitas geralmente de material encontrado na natureza. Os tacapes costumam ser pequenos, feitos de madeira muito dura. Os botocudos alimentam-se de insetos de todo tipo e da caça de pequenos animais, aves, jacarés, lagartixas, cobras e peixes, estes na maioria das vezes pescados à flecha. Ovos de diferentes pássaros, mel e uma variedade de frutas silvestres também lhes servem de alimento. A comida é preparada sem qualquer tipo de utensílio culinário, pois, como constatamos, normalmente ninguém os tem; as carnes, entre as quais a dos macacos é a mais apreciada, são consumidas quase cruas. Não constroem cabanas. Em sua permanente migração satisfazem-se com pequenos abrigos construídos com galhos, ramos e folhas; só quando preveem uma permanência mais demorada em algum local é que costumam dar maior consistência a seus primitivos “ranchos”, colocando algumas estacas. Têm o hábito de dormir sobre um trançado de fibras estendido sobre o chão. Quanto aos aspectos moral e espiritual, os botocudos pertencem à etnia mais primitiva. Como rito religioso, às vezes ainda praticam a antropofagia, extremamente disseminada entre eles no passado.13 O inimigo abatido em combate tende a ser devorado, quer por vingança, quer por constituir alimento ocasional. Quanto ao caráter, são preguiçosos, ladrões, gulosos e muito irritadiços, mas apesar disto podem ser amáveis e, se tratados com gentileza, retribuem o mesmo tratamento. Embora a poligamia ainda ocorra em seu meio, a monogamia prevalece; com a mesma rapidez formam-se e dissolvem-se os casais. Os mortos são enterrados no próprio local dos acampamentos, que depois são abandonados. A ) Rey: Étude anthropologique sur les botocudos, p. 79. — Hartt : Geology etc. p. 600.

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língua, pouco desenvolvida, pertence ao grupo das aglutinantes e possui diferentes dialetos; tem muitos sons linguais e palatais e relativamente poucos sons labiais. A capacidade de contar chega em alguns bandos a dois numerais, em outros até cinco. Entretanto a sinalização com dedos de mãos e pés permite a alguns botocudos avançar até a compreensão do número vinte. A concepção religiosa deste grupo indígena é extremamente primitiva, não incluindo qualquer tipo de culto; também não existem entre eles os pajés14 dos povos tupis. Ainda está em debate a questão se os botocudos acreditam em algum tipo de ser superior e benigno. Entretanto, a crença em maus espíritos está presente. O bando que tentaremos localizar vive na fronteira entre o Espírito Santo e Minas Gerais e faz parte do grupo dos Nak-nanuk. Fala-se que em parte já se teriam miscigenado com os brancos, sem que isto, entretanto, influenciasse o padrão típico dos botocudos. Assim os já miscigenados Nak-nanuks continuariam legítimos dolicocéfalos com prognatismo típico. — ­­ A bordo. Domingo, 26 de agosto. Nesta manhã, às 10 horas, nosso vapor lançou âncora em frente ao estuário do rio Itapemirim,15 em 20º 50’ de latitude sul. Desde que ultrapassamos o estuário do rio Itabapoana vínhamos navegando ao longo da costa do Espírito Santo, que, por cerca de 30 a 40 quilômetros terra adentro, tem a companhia de diferentes cadeias de montanhas que se estendem até a cidade de Vitória. O rio Itapemirim é importante rio costeiro, e na margem sul, a cerca de 3 quilômetros do mar, se localiza a vila do mesmo nome. No estuário em si há um minúsculo povoado denominado Barra, que na verdade consiste apenas de uma igreja e algumas casas, mas que apesar desta simplicidade possui uma biblioteca em que se podem ler jornal e algumas revistas em língua alemã. Isto talvez se explique devido à proximidade da colônia de Rio Novo, onde também se fixaram imigrantes alemães, e à qual se tem acesso pelo rio Itapemirim. Ao longe, além de suas margens cobertas de mata fechada, descortinam-se as montanhas de gnaisse. Trata-se de uma fantástica cordilheira que na serra do Itapemirim atinge a altura de 1.400 metros e, na serra do Pico, tem como destaque, perto de Cachoeiro, o Itacolomi,16 que se eleva ao céu sob a forma de um dedo gigantesco. Sendo a barra do Itapemirim pouco navegável, somente barcos de pequeno calado têm acesso ao rio, que, a partir da foz, só permite a navegação nos últimos ) Ver mais acima, p. 70. [Remissão ao texto relativo à Amazônia.] ) Itapemirim é uma palavra originária da língua tupi e, traduzida, quer dizer pequeno caminho de pedra. 16 ) Itacolomi é nome de montanha frequentemente citado. [Estará a autora se referindo ao pico do Itabira?] 14 15


Wiegandt a partir de esboço elaborado pela autora.

Foz do rio Itapemirim. Pintura executada por B.

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70 quilômetros. Por entre um renque de penhascos lavados pela erosão, sobre os quais se viam gaivotas, seguimos num bote até a terra, passando por violenta arrebentação. Alguns barcos a vela e canoas singravam pelo rio de pouca largura. Depois de duas horas, quando entre outras coisas pudemos inspecionar a biblioteca da Barra, nosso vapor retomou sua viagem ao longo da costa em direção ao norte. Depois de mais duas horas navegando sem perder de vista a orla marítima, o Maria Pia iniciou manobras para atracar numa pequena baía na foz do rio Guarapari. A pequena vila do mesmo nome, localizada numa linda área mais elevada, se desenvolveu a partir de uma missão junto aos índios tupinambás. Em parte escondida por detrás de um costão rochoso, entre seus habitantes ainda se encontram muitos silvícolas. Passando por entre diversos penhascos chegamos a esta localidade conhecida pelo clima insalubre, mas que tem um dos melhores portos desta costa, no qual podem atracar navios de até 5 metros de calado. No outro lado da baía, em frente a Guarapari, veem-se ao longo da praia os casebres vermelhos, feitos de pau-a-pique e cobertos de palha de coqueiro, do vilarejo de Muquiçaba. Um arvoredo fornece sombra às modestas habitações, para além das quais se avistam colinas de gnaisse e argila terciária cobertas de vegetação. Um promontório de forma quase alpina avança em semicírculo sobre a baía até perto da costa. Nossa permanência em Guarapari não foi demorada. Seus produtos de exportação incluem peixe salgado, um pouco de algodão, madeira de construção e muito bálsamo. Assim, rapidamente perdemos de vista esta pitoresca paisagem montanhosa. Tendo à direita um cinturão de baixos penhascos e à esquerda a costa, que, cerca de 30 quilômetros terra adentro, a bela serra de Guarapari acompanha, navegamos em direção ao norte rumo à cidade de Vitória. Ao anoitecer abriu-se a oeste a baía de Vitória, também chamada Espírito Santo.17 Sua entrada tem cerca de uma milha marítima de largura e se estende por três milhas marítimas terra adentro. Esta baía é certamente a mais importante de toda a província, mas não é a melhor para os navios. Sua parte externa oferece pouca proteção à navegação e seu ingresso, especialmente no canal de Vitória, é difícil e possível apenas para navios de no máximo 3,5m de calado.18 No promontório que circunda a baía a sudeste elevase o monte Moreno. Esta colina de forma cônica e 210 metros de altura domina a entrada da baía. Segue-se, pouco mais para o oeste, uma colina íngreme de cerca de 80 metros de altura que tem no cimo, como que brotando da rocha, o antigo ) Também as fontes brasileiras denominam esta baía ora desta, ora daquela maneira. Ver Carvalho Daemon: Provincia do Espirito Santo p. 474; Silva Coutinho: Breves Noticias sobre a Provincia do Espirito Santo p. 3; Aires de Casal: Corographia brasilica II, 58 e s. 18 ) Fontes brasileiras, entretanto (Carvalho Daemon: Provincia etc. p. 474 e Silva Coutinho: Breves etc. p. 3), descrevem a baía como uma das melhores do mundo, tanto por ser bem protegida como por sua boa profundidade na vazante. 17


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convento de Nossa Senhora da Penha. A oeste dessa elevação descortina-se a linha das praias, destacando a sinuosidade de Vila Velha. Tanto aqui como na barra da baía, decorada com grandes e pequenas ilhas, a profundidade do mar não passa de 5 metros. Entre a ilha do Boi e a margem sul da baía está o canal de acesso a Vitória, que adentra a terra em direção oeste. De ambos os lados, tanto da margem esquerda, constituída pelo continente, e da margem oposta, constituída pela ilha do Espírito Santo,19 a terra avança sobre o canal até que o estreitamento desta estrada de água chegue a 180 metros. Penhascos e abruptas ilhotas graníticas recobertas de bromeliáceas colocam o transporte naval em perigo. Na margem sul o Pão de Açúcar20 emerge vertical das águas salobras até cerca de 130-140 metros, e o mar também aqui atinge significativa profundidade. Daí o canal se alarga, formando o amplo e excelente porto marítimo de Vitória, com profundidade de 6 a 10 metros. A cidade, sita na ilha do Espírito Santo, vem crescendo colina acima na margem norte do porto, sendo banhada pelo mar não só do lado sul, mas também do oeste. Ainda a oeste de Vitória, a saber, em sentido noroeste, transversalmente ao canal de acesso, encontra-se a lagoa chamada Lameirão, na qual deságuam diversos rios, dentre os quais o Santa Maria vem a ser o mais importante. Já escurecera quando nosso vapor venceu a longa e estreita entrada e lançou âncora em frente a Vitória. Fomos obrigados a passar a noite abordo, apesar de aparentemente o brilho de centenas de luzes oriundas das casas nos estar convidando a desembarcar. Vitória  —  Fazenda de Mangaraí. Segunda-feira, 27 de agosto. Desembarcamos bem cedo e fomos recebidos acolhedoramente na residência de um rico comerciante de nome Pecher. Aqui nossa prioridade foi selecionar a bagagem, deixando todo o supérfluo para trás, e preparar a jornada pela mata Atlântica de modo a tornar a visita aos botocudos tão prática e confortável quanto possível. Guardamos nossas roupas de viagem em estilo europeu e passamos a usar roupas que servissem tanto para montaria como para caminhadas através da densa floresta. Não incluímos muitas mudas de roupa para não sobrecarregar a bagagem. Entretanto não poupamos as roupas quentes que nos protegessem da chuva e das noites frias. Às onze e meia as duas barracas, as três camas de campanha, muito simples, alguns utensílios de cozinha, todo tipo de conservas, duas lanternas e toda uma provisão de velas tinham sido acondicionados na canoa posta à nossa disposição. Além disso, fizemos uma refeição reforçada, pois por um bom tempo poderíamos não ter outra oportunidade. Assim embarcamos e seguimos para a selva, sem ) Também esta ilha tem diversos nomes. Macedo (Corographia do Brasil p. 133) chama-a ilha do Espírito Santo, Carvalho Daemon (Provincia etc. p. 479), ilha da Vitória. 20 ) O Penedo, à beira da baía de Vitória. Nota do tradutor. 19

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termos certeza de que alcançaríamos nosso destino. A embarcação era uma legítima canoa comprida de madeira amarela21 e possuía seis bancos, que, entretanto, não se destinavam aos passageiros e sim à tripulação. Esta consistia de quatro remadores, sendo dois negros, um índio e um branco, além do timoneiro, igualmente negro, que de pé, manejando um remo, governava o barco. No centro da canoa nos fora reservado um espaço sem bancos, sobre o qual montaram uma cobertura de palha de coqueiro, certamente para obstruir a radiação solar. No assoalho colocaram uma esteira e um colchão e aí, à

Muquiçaba.

Pintura executada por B. Wiegandt a partir de esboço elaborado pela autora.

21 ) Presumivelmente feita de sucupira amarela (Ferreirea spectabilis Allem.), árvore gigantesca do Brasil central (Martius: Flora brasiliensis XV 1 p. 311 e Das Kaiserreich Brasilien, auf der Weltausstellung von 1876 in Philadelphia p. 50). Ver também Costa Rubim: Vocabulario brasileiro p. 69, e Martius: Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerikas II p. 405, 406. — Embora na Flora brasiliensis (XIII 2 p. 73-74) seja denominada pau amarelo especial a árvore da alta Amazônia que é conhecida como Vochysia obscura Warm., que parece idêntica ao pau amarelo usado na construção de barcos citado por Silva Araújo (Diccionario topographico etc. do Alto Amazonas p. 20), ainda assim o pau amarelo da região do Amazonas tem toda a probabilidade de ser uma árvore diferente deste pau amarelo do Brasil central. O termo amarelo aplicado a madeiras para construção ainda aparece em louro amarelo = Cordia alliodora Cham. (Cf. Das Kaiserreich Bras. auf der Weltausstellung etc. p. 51, e S. Anna Nery: Le Brésil em 1889 p. 285). A nosso ver o louro amarelo ainda não está descartado, pois no caso dele não se menciona, como no caso do Ferreirea spectabilis, um diâmetro diferente para o tronco. (Ver Flora brasiliensis VIII, 1, p. 4).


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maneira oriental, o dia todo tivemos que nos manter agachados e recostados em nossa bagagem de mão. Nosso percurso levou-nos inicialmente em direção norte, lameirão acima, e, depois de 18 km, já no seu limite norte, entramos no rio Santa Maria. Este rio deve ter uma extensão de pouco mais de 100 km, dos quais cerca de 54 km são navegáveis para canoas e também, segundo se diz, para pequenos barcos a vapor. Durante as duas primeiras horas viajamos a poder de remo, mas depois a canoa passou a ser impulsionada com grandes varas. A maior parte das margens do lameirão estava tomada por manguezais que, tanto aqui como em outros lugares Brasil afora, são repletos de avicênias e lagunculárias. Nas poucas rochas que interrompiam a linha de vegetação do manguezal viam-se inúmeras ostras, que deviam ser do tipo Ostrea spreta d’Orb. Em todo caso estas ostras parecem corresponder melhor à descrição deste tipo, que o naturalistar Hartt22 cita como importante fonte de alimentação dos habitantes de Vitória. Além da margem delimitada pelo manguezal já se conseguia ver a certa distância duas belas montanhas, o Frei Leopardi23 e mais especialmente, a nordeste, o Mestre Álvaro. Este é uma elegante montanha de granito em forma de pirâmide com três pontas da mesma altura, que a partir da planície se eleva majestosamente a cerca de 980 metros. Quem vê esta montanha, a mais proeminente da costa da província, dificilmente esquecerá seu aspecto quase clássico. Ao meio-dia, já com vento contrário, a temperatura marcava 26º C, e a água, 22,5º C. Às vezes algumas ilhas rasas formadas de mangue dividiam a linha d’água do rio, onde patos nadavam, gaivotas mergulhavam à cata da presa, e o Martim pescador às escondidas pescava sua refeição. Bem-te-vis, provavelmente Pitangus lictor Licht., voavam de um lado para o outro sobre o rio. No arvoredo da margem saltitava o maravilhoso tijé-piranga (Rhamphocoelus brasilius L.), que, com sua plumagem escarlate e preta, é uma das aves mais bonitas da fauna brasileira. De tempos em tempos passávamos por uma canoa, monocasco como a nossa, que singrava silenciosa em sentido contrário, ora lotada de mulheres de cor escura com os filhos, ora de fazendeiros que levavam sacos de café até a costa. Estas canoas, conduzidas por índios ou mais frequentemente por negros, constituíam aparição pitoresca ao cruzar com nosso barco. Já na próxima curva do rio desapareciam novamente de nossa visão. O manguezal ficara para trás e as duas margens do rio passaram a exibir uma densa vegetação de arbustos e árvores mais baixas dentre as quais só raramente sobressaía uma árvore mais alta. Nem flores de cipó, nem epífitas, decoravam a mata marginal, que não nos parecia nem bela nem luxuriante. A ausência das imagens fantásticas da flora ) Hartt, Geology and Physical Geography of Brazil p. 73. ) Leopoldo no original, por lapso da autora.

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Rio Santa Maria, tendo ao fundo o monte Mestre Álvaro.

Pintura executada por B. Wiegandt a partir de esboço elaborado pela autora.

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que vimos nas margens do Amazonas fazia-nos lembrar que estávamos na estreita região da mata Atlântica do Espírito Santo, com sua vegetação mais rala, semelhante à capoeira. Canas se espremiam ao longo das margens do rio que gradativamente começava a diminuir de largura, e plantas de folhas carnudas, quase redondas (Eichhornien ou Pontederien), elevavam-se sobre o espelho d’água. Ora num, ora noutro local do rio Santa Maria, vislumbrava-se uma bela paisagem campestre, seguida de colinas ou montanhas cobertas de mata que completavam o horizonte. Isto pôde ser notado especialmente no pequeno lugarejo de Porto de Pedra, onde de modo muito pitoresco se vislumbrava o monte Mestre Álvaro. Ao longe, alguns quilômetros acima, no alto de uma colina coberta de grama, identificavam-se algumas casas da paróquia de São José do Queimado. As fazendas da região, onde comumente se criam cavalos ou gado, tendem a ser pouco visíveis devido à vegetação ribeirinha. Num ponto do trajeto apareceu-nos em sua montaria um fazendeiro seguido por dois meninos negros também a cavalo, os quais acompanharam a canoa rio acima. Por vezes o grupo chegava até à beira-rio para depois de novo desaparecer por entre os arbustos da margem. Não sabíamos o porquê desta conduta até que, em determinado ponto, o fazendeiro, de barba já branca, penetrou na água e nos perguntou se estávamos chegando do Rio de Janeiro. Disse que desejava apenas saber se o imperador voltara bem e com saúde de sua viagem. Satisfeito com as notícias recebidas, seguiu rapidamente por sua propriedade, logo desaparecendo de vista. Esta espontânea demonstração de lealdade numa área remota do mundo nos permitiu ter uma bela e condigna impressão do monarca. Uma garça-cinzenta conhecida por socó, talvez uma Nycticorax violaceus L., alçou voo, e um pássaro de cores cinza, branco e preto, que nosso pessoal chamou de soldado, saltitava pela margem do rio. Presumo que este pássaro, que parecia uma grande galinha d’água, fosse uma tarambola, possivelmente o Ochthodromos wilsoni Ord.24 Depois de vencermos com facilidade as diversas curvas do rio, até porque o Santa Maria não tem grande caimento, finalmente ultrapassamos o lugar denominado Queimado, que ocupa ambas as margens. Não chegamos a parar, já que procurávamos seguir tenazmente em frente até o local de pernoite que nos fora indicado. Durante toda a tarde não tivemos sol, e com isto a temperatura se manteve amena. Às 5:30 horas o termômetro marcava 24,5º C: já na parte da tarde nem sequer houvera vento. À nossa direita erguia-se uma colina coberta de coqueiros, com poucas folhas encurvadas. Eram as primeiras palmeiras que víamos na viagem de hoje. A tripulação da canoa as chamava cocos-de-quarta, porém ) Spix descreve em sua obra Avium species novae, II, 77, apenas um pássaro jovem; Wilson (American Ornithology IX, tabela 73, n. 5) retrata um exemplar adulto. 24

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não se encontram palmeiras com esta denominação, podendo tratar-se de cocos da quaresma (Cocos flexuosa Mart.), não pela semelhança do nome ou do habitat e sim pela própria semelhança com estas palmeiras. Na margem do rio via-se um capim alto (Gynerium parvifolium Nees ab Esenbeck), e mais atrás algumas árvores de que pendia grande quantidade de barbas-de-pau cinzenta (Tillandsia usneoides L.). Seguíamos silenciosamente nosso percurso quando outra canoa nos veio ao encontro. Pela comunicação entre ambas as tripulações, soubemos que este barco trazia para o Queimado as selas que usaríamos na viagem de amanhã. Também soubemos que nossos animais de montaria estavam a caminho para esta localidade. Em Vitória nos tinham dito que encontraríamos nossos animais numa fazenda25 nas proximidades do rio Mangaraí, afluente da margem sul do rio Santa Maria que desemboca a boa distância acima do Queimado. Assim, não fosse este encontro casual, teríamos seguido com tranquilidade nossa viagem de canoa enquanto selas e animais, difíceis de distinguir na escuridão, poderiam ter passado por nós e ficado à espera na localidade de Queimado, situada rio abaixo. Esse mal-entendido nos teria custado um dia inteiro de viagem, se por feliz acaso não se tivesse esclarecido. Portanto, não tivemos alternativa senão parar neste mesmo ponto do rio, por onde necessariamente os condutores dos animais teriam que passar, para podermos interceptá-los. Já era noite. Ambas as canoas foram amarradas à margem e os remadores fizeram uma eficiente fogueira no alto do barranco para ali prepararem sua refeição da noite. Quanto a nós, permanecemos na canoa e lá mesmo preparamos nossa ceia frugal, que foi igual a nosso almoço, observando ao mesmo tempo as formas pitorescas que se moviam em torno das chamas crepitantes. Depois de horas de espera, finalmente chegaram os cavalos, isto é, a tropa de mulas, conduzidos por alguns senhores que, vindos do interior, aproveitaram nossos animais para chegar até Queimado. Chegamos a um entendimento sobre esse assunto e sobre a oportuna devolução de nossas montarias à fazenda na foz do Mangaraí. Já de noite, às 9 horas, em total escuridão, seguimos viagem em canoa. À luz fraca da lanterna sob o toldo, o manso deslizar da canoa sobre a superfície da água embalava-nos o sono. O mesmo lugar em que passáramos o dia todo mal acomodados parecia transformado em maravilhoso local para dormir. Pelas 11 horas enfim alcançamos a prometida fazendola, para cujos proprietários trazíamos uma carta de recomendação. Primeiro, na escuridão indevassável, 25 ) Nosso pessoal chamou Mangaraí a este lugar; pelo mapa especial em Silva Coutinho (Breve Noticia descriptiva sobre a Provincia do Espirito Santo), esta mesma localidade, isto é, a fazenda, leva o nome de “José Cláudio de Freitas”, e Mangaraí é assinalado como povoado rio acima, bem fora de nosso roteiro.


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tivemos que escalar a margem barrenta do rio, arriscando-nos a rolar barranco abaixo de volta à água. Depois foi necessário tatear o caminho até a casa, onde todos já dormiam sono profundo. Estes brasileiros nos acolheram sem qualquer sinal de irritação, e ainda nos cederam os próprios quartos, onde fizeram as camas para nosso uso, acomodando-se depois num pequeno quarto sem camas. Nós duas, as mulheres, tivemos que dividir uma cama muito dura e passamos bastante frio. Os quartos, como é costume aqui no Brasil, não tinham qualquer tipo de forro, e as paredes não eram muito altas, daí o frio da noite penetrava em todos os cômodos da habitação. Em decorrência da dificuldade de transporte no escuro, fora preciso deixar na canoa as roupas mais quentes de nossa bagagem. Fazenda de Mangaraí  —  Santa Teresa. Terça-feira, 28 de agosto. Mal começara a raiar o dia e já nos levantamos e ansiosos procuramos identificar a posição do alojamento. Estávamos em região relativamente montanhosa. Aquela casa hospitaleira situava-se numa elevação não muito distante do rio, e todas as elevações circundantes eram arborizadas. A natureza aqui não é muito agressiva. Às seis horas, já montados, iniciamos a cavalgada até Porto do Cachoeiro, o porto fluvial da colônia Leopoldina. O caminho seguia pela serra do Mangaraí, ao longo da margem direita do rio Santa Maria, subindo em sentido noroeste. Por aqui, mais do que no percurso inferior do rio, a margem estava decorada de bela ou até exuberante vegetação. A paisagem não tinha características específicas; uma vegetação alta margeava de ambos os lados a trilha estreita. As modestas árvores das encostas misturavam-se a indaiás (Attalea Indaya Dr.), palmeiras de folhas realmente colossais. Um pé de jenipapo (Genipa americana L.), rubiácea em forma de árvore de que os índios extraem um corante azul escuro, atraiu-nos a atenção. Lantanas (Lantana camara L.)26 de flores amarelas e vermelhas, que pairavam acima de nós, mesmo montados, erguiam-se no caminho. As Bougainvillea spectabilis Willd.,27 sobressaindo entre os arbustos, lançavam suas folhas magníficas de um vermelho intenso, como um manto de púrpura, sobre o verde da vegetação que as sustentava. Em algumas clareiras os temidos cupins tinham construído seus ninhos de cor amarelada, coniformes, por vezes com mais de metro de altura. Fazendas isoladas pareciam presas às encostas das serras, e esparsos cafezais28 avistavam-se montanha abaixo. Os pequenos pés de café exibiam o enfeite branco como neve da sua floração e também o vermelho cereja que lhe despontava sob ) Coletados lá em meu herbário. ) Coletados lá em meu herbário. 28 ) Em português no original, com nota da autora traduzindo o termo como plantações de café. 26 27

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a folhagem escura. De todos os lados nos chegava o odor de distantes laranjeiras em flor. Alguns anus (Crotophaga ani L.), aves de um brilhante azul escuro, semelhantes ao cuco, com longa cauda em forma de leque, voavam de uma árvore para outra. Canários (Sycalis flaveola L.) saltitavam pelo chão, os machos com plumagem amarela e as fêmeas uma mistura de tons marrons e verdes. Muitos bem-te-vis, de plumagem marrom cinzenta e amarela, pelo visto do tipo Pitangus sulphuratus L., procuravam afoitos por alimento. Entre as árvores vi um pássaro maravilhoso, de bico longo e preto, asas e dorso de um brilhante verde dourado, ventre de um marrom avermelhado, e peito parcialmente de um azul cintilante. Era sem dúvida uma Galbula rufoviridis Cab., pela qual tive especial interesse, por se tratar do primeiro representante que vi desta família de pássaros de cores fantásticas, os jacamares, que vive exclusivamente na América do Sul. No fundo, ora aqui, ora lá, avistava-se uma serra. Por vezes vadeávamos rios ou pequenos cursos d’água, uma vez que as pontes eram por aqui um luxo desconhecido. Quanto às montarias, ia me sentindo muito à vontade com elas à medida que a viagem prosseguia. Entretanto, a sela ia se tornando insuportável. Apesar de tê-la substituído à tarde por outra melhor, causou-me uma cruciante dor muscular, que certamente ainda hei de sentir por alguns dias. Depois de duas boas horas chegamos a Porto do Cachoeiro, cujas casas, nos moldes de um povoado tirolês, se agrupam no aclive da montanha. A vila é sede do município de Cachoeiro de Santa Leopoldina, e está situada a 52 km de Vitória, na última corredeira do rio Santa Maria. Até aqui o rio é navegável para canoas, apesar de aumentar de volume ao receber mais abaixo como afluente o rio Mangaraí. Em tempo de cheias até vapores já lhe singraram as águas. Em Porto do Cachoeiro alcançamos a antiga colônia de Santa Leopoldina. A colônia foi fundada pelo governo no ano de 1855 e em seu território original vivem hoje mais de 11.000 pessoas.29 Esta população consiste de tiroleses, alemães, suíços, holandeses, belgas, franceses, italianos, poloneses e luso-brasileiros.30 Os primeiros colonos tiveram que enfrentar muitas dificuldades, e a maioria parece ainda levar ali uma vida modesta, enquanto outros já vivem de forma mais confortável. Novos imigrantes continuam a chegar, subvencionados pelo governo da província. No ano passado, 1887, mediram-se novos lotes de terra às centenas na ex-colônia de Santa Leopoldina, tendo-se destinado alguns aos recém-chegados, outros a filhos de antigos colonos, e ainda outros a luso-brasileiros ou mesmo a ex-colonos cuja extensão de terras, em função da proliferação dos filhos, deixara de ser suficiente. 29 ) Se não considerarmos a região de Santa Cruz como pertencente à antiga colônia de Santa Leopoldina, como alguns referem, este número de habitantes diminui em cerca de 1.400 pessoas. 30 ) Ver mais acima, p. 61, nota 1. [Remissão a uma nota anterior da obra: Por luso-brasileiros se entendem os brasileiros de origem portuguesa.]


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Em Porto do Cachoeiro chegamos à casa de um comerciante alemão e de sua esposa, onde desmontamos. Deram-nos hospedagem e insistiram com amabilidade para que não continuássemos viagem no dia de hoje. Como, porém, tínhamos pressa, foi preciso declinar o convite hospitaleiro. Não tivemos boa impressão, no Cachoeiro, do clima de Santa Leopoldina, de que tão bem se fala. À uma hora da tarde o termômetro marcava 27º C. e, apesar de o sol não ter aparecido e de um temporal, o calor da tarde de hoje foi sufocante. Finalmente, depois de grande atraso, às quatro e meia partimos para Santa Teresa. Nosso gentil hospedeiro insistiu em nos acompanhar como guia até lá. Tínhamos pela frente uma cavalgada de seis horas e meia, das quais cinco, por conta do nosso atraso, a ser vencidas depois do anoitecer. Logo ficaram para trás, lá no fundo do vale, tanto o rio, com sua espuma respingando nas margens rochosas, como o lugarejo espremido entre as encostas das montanhas. Nossa trilha, a princípio muito íngreme, seguia montanha acima. Em ambos os lados cresciam palmeiras, incontáveis pés de café com seus grãos de um marrom escuro, já secos, e centenas de outros arbustos. Era com uma bela vista que daquela altura nos despedíamos do vale montanhoso. A partir daí, já vencido um terço da subida, seguimos por uma íngreme encosta que ia topar com outra igualmente íngreme à sua frente. Na confluência destas encostas formava-se um vale em ângulo bem fechado, sem qualquer superfície plana. Em meio à vegetação cada vez mais luxuriante, pés de samambaia de um tipo brasileiro de três diferentes gêneros, em especial o gênero Alsophila, agitavam suas graciosas folhas. A impressão era de termos recuado milhares de anos até à idade da pedra. Gigantescas folhas de palmeira (Attalea Indaya Dr.?31) sobressaíam desta flora abundante. Taquarais, isto é, matagais de bambu,32 cobriam as encostas. Grandes cipós, como cordas retorcidas, talvez ramos de aristolóquias, esgueiravam-se para o alto. Estávamos no meio de uma verdadeira mata virgem, a legítima mata Atlântica, que se diferencia da hileia pela riqueza de samambaias e bambuzais. Pois, embora as ciateáceas e as bambusáceas não cheguem a faltar na caatinga, são ali menos freqüentes, tanto em tipos como em indivíduos, e não realçam na 31 ) Pelas minhas anotações de viagem não posso determinar com certeza se aqui se trata de uma Attalea indaya Dr. ou de uma Attalea humilis Mart, já que a referi pelo seu nome popular ou como “folha gigante”. O termo popular indaiá parece aplicar-se tanto à A. Indaya como à A. hum. (como Ndaya-assú = indaiá grande, Wied, em Reise nach Brasilien I, 271, se refere à A. Ind., e eu usei em 31 de agosto o nome indaiá para indicar a Attalea de tronco simples, portanto, a A. hum), com folhas de 5 metros de comprimento, como encontramos na A. hum e que na floresta podem apresentar tamanho gigantesco. Presumivelmente as indaiás aqui encontradas eram mesmo do gênero A. Indaya Dr., cujas folhas chegavam a atingir 10 metros de comprimento. 32 ) Talvez a Nastus barbatus Ruprecht, única bambusácea dessa região citada em Flora brasiliensis de Martius (II, 3, p. 163 e ss.).

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paisagem. Em contrapartida, muitos dos cipós de beleza única e das fantásticas plantas aéreas, que na hileia encantam os olhos, não costumam ser encontrados nesta floresta, ou então só muito eventualmente. Avançamos sempre e sempre pela mata virgem. Ora grandes bambuzais formavam ampla cobertura sobre o caminho, ora abria-se lateralmente um pequeno desfiladeiro recoberto de extensa vegetação, ora via-se, à direita, um caos verdejante, como que despencando em grande profundidade. Do emaranhado de plantas se elevavam majestosas algumas árvores gigantescas que exibiam copas frondosas no alto de longos troncos desprovidos de galhos. Nos cantos dos galhos viam-se bromeliáceas de flores vermelhas. Aráceas semelhantes às taiobas, mas presumivelmente caládios, com folhas gigantescas como jamais tínhamos visto nesta família de plantas, despontavam do matagal. Bem no alto de uma copa tinha-se fixado um aglomerado de trepadeiras de ramos delicados e extremamente graciosas, de flores vermelhas-rosa, certamente uma destas begoniáceas tão comuns neste clima. À esquerda, como que pendurada à encosta da montanha, deparamo-nos com uma casinha solitária. O morador, um brasileiro, era muito cruel com seus escravos, que encarcerava e torturava. Segundo a crença popular, amaldiçoado pela própria mãe por conta de seus atos, em conseqüência o infeliz caíra em desgraça e fora acometido de Elephantiasis Graecorum, a autêntica lepra. A trilha, tão estreita que mal permitia que os animais seguissem em fila, em muitos lugares era indescritivelmente precária. O solo era muito úmido e tivemos que atravessar verdadeiros pântanos. Aqui vimos pela primeira vez os notórios pilões, que representam para os viajantes um verdadeiro pesadelo em termos de esforço e cansaço. Estes pilões são formações que, semelhantes a sulcos cavados num campo, atravessam o caminho, sendo a parte mais alta formada de degraus arredondados de barro duro e a parte mais baixa, de um valo fundo de terra. Esta espécie de escadaria costuma se formar com o tráfego das tropas, ou seja, das mulas de carga. Cada um destes animais costuma utilizar exatamente as pisadas do animal que o antecedeu, e desta maneira, em tempos de chuva, rapidamente os cascos dos animais deixam fundos buracos no solo encharcado. Naturalmente, entre estes buracos formam-se elevações, rampas escorregadias, que não costumam ser pisadas pelos animais que vêm a seguir, pois não teriam apoio onde firmar as patas. E é desta forma que, mesmo com o passar do tempo, as mulas continuam pisando nos mesmos valos, que vão ficando cada vez mais profundos, e os degraus arredondados cada vez mais altos. É uma situação sem qualquer perspectiva de melhora. Nossos pobres cavalos subiam, tropeçavam e escorregavam por cima destes pilões, de forma que a cada instante temíamos que cavaleiros e montarias sofressem uma queda. Nestes trechos, querer apressar a jornada estava fora de qualquer cogitação; já podíamos nos dar por satisfeitos em superá-los sem qualquer acidente.


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Tivemos além disso que atravessar grande quantidade de pontes de diferentes tamanhos, algumas das quais estavam em boas condições, outras não. Algumas tinham caído, obrigando-nos a vadear os rios ou riachos por baixo delas. Na maior parte das regiões do Brasil praticamente nada se faz no sentido de construir novas pontes, nem tampouco de realizar eventuais reparos nas pontes existentes, que são relativamente poucas. Assim, mesmo apresentando risco de vida, essas pontes continuam sendo utilizadas até que despenquem lá embaixo. Em consequência, as tropas se viam obrigadas, como no passado, a atravessar os rios em pontos mais rasos, até que a passagem a vau se tornasse de novo inviável devido à formação de atoleiros ou poças profundas em ambas as margens. Quando enfim se chegava a esse ponto, era forçoso construir-se uma ponte. Enquanto dispúnhamos da luz do dia, as condições precárias do caminho ainda eram suportáveis. Porém, depois das 6 horas, a noite trazia uma escuridão de breu. Assim, viajantes e animais passavam a se sentir ainda mais inseguros na jornada, tendo até aí enfrentado pilões, pontes sem guarda-corpos, travessias de rios ou beiradas de precipícios. Nosso guia, que ia na dianteira, acendera uma pequena lanterna que fixou no estribo de sua montaria. O brilho débil desta luz passou a nos indicar a necessária direção da trilha. Apesar desta modesta iluminação, nosso guia acabou metendo-se por uma grande e alta ponte de madeira que, apesar de ter começo e fim, continha no meio um grande vazio pronto a nos recepcionar com um grande bocejo. Mais um passo — e nosso anfitrião de Porto do Cachoeiro teria despencado no rio. Então tivemos que sair no escuro à cata de uma passagem embaixo. O rio era fundo e largo e a água batia em nossos animais e respingava em nossas roupas. Contudo, situações como estas não comprometeram o romantismo da solitária cavalgada noturna pela floresta. Assim, ao cair a escuridão, como que a um sinal, teve início um concerto florestal a mil vozes, a que desde o Amazonas não tínhamos ouvido outro igual. Na selva entoa o chamado da noite, Grilos chilreiam, macacos rugem em choro afoito, Ferreiros e rendeiras acordam, Queixosa, do seu profundo sono, a rã desperta. O concerto como de uma assombração recrudesce E me acompanha na minha caminhada.33 ) Imperador Maximiliano do México: De minha vida, VII, p. 275.

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Batráquios de todo tipo afinavam seus instrumentos musicais. Acolá uma ruidosa perereca se fazia ouvir ao longe, certamente uma Hyla marmorata Laur.34 Aqui grunhia outro batráquio, presumivelmente um sapo de chifres (Ceratophrys dorsata Wied),35 tentando responder. Numa depressão do vale, outros anuros participavam de uma alegre brincadeira de pergunta e resposta. Acima de todos se destacava o irmão deles, o ferreiro (Hyla faber Wied), cujo grito ritmado e metálico, semelhante à batida de um funileiro, soava incessante através da alta floresta. Ao longo da noite, esta perereca costuma dar sequência ao grito de um pássaro sineiro chamado ferrador (Chasmorynchus nudicollis Vieill.), que, com seu grito quase homófono, a ponto de ser uma cópia do outro, desde manhã cedo até a noite dá vida à selva. O coro dos batráquios parecia apoiar-se ao cricrido dos incontáveis grilos. Aves noturnas soltavam seus gritos e outras vozes de animais selvagens intervinham com vigor, isoladamente ou em conjunto, na sinfonia geral da floresta. Passadas as primeiras horas, a noite foi ficando mais calma. Alguns cantores silenciaram. Outros recém-iniciaram a afinação de suas cordas. Os músicos remanescentes deste gigantesco concerto passaram a se destacar na noite já silenciosa. Bem à margem do caminho ouvia-se uma voz queixosa, semelhante ao choro de uma criança que pedisse ajuda. Na verdade era o grito de um batráquio36 que parecia disposto a comover-nos em nossa humana sensibilidade. A nosso lado, em meio aos arbustos, um animalzinho selvagem gritou ao ser acordado do sono. Um roedor, talvez um coelho, saltou à nossa frente para dentro do matagal. Um veado esgueirou-se entre os arbustos e algo pequeno, que não chegou a ser visto, rastejou no solo do mato à esquerda. Uma pequena rã desesperada saltou sobre a estreita picada. ) Neste batráquio, que pode ser encontrado tanto no Rio de Janeiro como no Suriname e certamente também nas matas do Espírito Santo, se destaca especialmente o coaxar estridente (Burmeister: Erläuterungen zur Fauna Brasiliens, p. 95). A voz dos demais hilídeos que Burmeister menciona, e que podem ser ouvidos na costa oriental, é, segundo sua descrição, estridente. 35 ) Wied (Beiträge zur Naturgeschichte von Brasilien, I, 589) refere ter ouvido esta rã com frequência nas matas da costa oriental. 36 ) Tratava-se de um anuro, tipo de sapo conhecido dos índios pelo nome de cutaguá ou ainda de iniguá. (Ver Wappäus: Das Kaiserreich Brasilien, 1354; Canstatt: Brasilien, Land und Leute, 67; Näher: Land und Leute in der brasilianischen Provinz Bahia, 150). Sob o nome vulgar de gutacá, Spix (Animalia nova sive species novae Testudinum et Ranarum, p. 29, 42 e 43) descreve a Rana palmipes Spix e a Phyllomedusa bicolor Bodd, no entanto não se comprovou se estas duas espécies de batráquios podem ser encontradas na mata Atlântica. Algumas espécies de bufonídeos também são chamadas iniguás. Não me foi possível determinar se se trata aqui de Bufo crucifer Wied, bastante comum no Espírito Santo. Assim, não foi possível determinar a que tipo de bufonídeo se deve aplicar o nome iniguá. 34


Ponte na província do Espírito Santo.

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São bastante peculiares as impressões que assaltam a mente no decorrer de semelhante cavalgada solitária em noite escura, em terra estranha, e numa floresta longe de todo convívio humano. Não se consegue enxergar nada, porque os olhos atentos não penetram a escuridão que cobre toda a natureza ao redor. A um só tempo se escutam centenas de vozes, tons melancólicos, ruídos estranhos que ecoam nos ouvidos aguçados que muitas vezes não lhes conseguem identificar a origem ou explicar o significado. Mais de uma vez tivemos a impressão de que as paredes da mata se fechariam em ambos os lados do caminho, ou se estariam abrindo para dali sair uma figura estranha e horripilante. Ou de que ouvíamos em meio à vegetação um irmão que gemesse ferido mortalmente e que precisasse de nossa ajuda — mas como achá-lo e prestar-lhe ajuda em meio à escuridão indevassável? Enfim, tratava-se apenas de pequenos seres inofensivos fugindo da aproximação de viajantes noturnos ou de sons de animais não identificados zombando de transeuntes inexperientes. Enfim, também nos tornávamos refratários a estas impressões. O caminho parecia interminável. Cavaleiros e cavalos, já sonolentos, avançavam em seu ritmo vagaroso. Há muito cessara o trote rápido dos animais. De tempos em tempos caía uma chuva fina, e uma neblina úmida elevava-se dos pântanos da mata. Eram sete horas da noite quando fizemos a primeira e única parada. Foi na venda de um imigrante da Saxônia, situada entre as montanhas. Mais tarde passamos por diversos assentamentos de poloneses e de imigrantes de outras nacionalidades. Porteiras semelhantes às que usualmente se veem nas montanhas da Baviera indicam o acesso a cada uma das propriedades. Estas porteiras nos dificultam a passagem e retardam a marcha, já que abri-las de cima dos cavalos toma bastante tempo. Vencidas estas dificuldades, a precária trilha novamente nos conduzia por longos trechos através da floresta que tudo encobria e da qual se destacavam algumas árvores gigantescas, fantasmagoricamente apontando para o céu. Finalmente, pelas 11 horas da noite, alcançamos o povoado de Santa Teresa, na maior parte habitado por italianos. Como, por engano, éramos aguardados somente no dia seguinte, a família de comerciantes belgas que nos ia hospedar já se tinha recolhido para dormir. Como ontem, também hoje tivemos que acordar nossos hospedeiros de seu sono profundo para nos indicar os quartos. Não havia qualquer sinal de nossos animais de carga, de forma que, mesmo empoeirados como estávamos, tombamos sobre os colchões de palha de milho. Contudo, o sono reparador, depois da cavalgada de nove horas, logo nos fez esquecer esta pequena inconveniência.


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Santa Teresa — Petrópolis.37 Quarta-feira, 29 de agosto. Na manhã seguinte, como os animais de carga ainda não tinham chegado e nem sequer tínhamos um pente conosco, a higiene pessoal matinal, como a vespertina da noite anterior, deixou muito a desejar. Também era impensável seguir viagem. Era preciso ter certeza de que nossa bagagem chegaria. Assim, nada restava a fazer senão ter paciência e aguardar. Decidimos aproveitar esta parada compulsória para conhecer Santa Teresa. Foi o que fizemos. Esta localidade integra a região de Timbuí, da antiga colônia de Santa Leopoldina. Situa-se nas proximidades do riacho Timbuí, por entre um conjunto de montanhas não muito elevadas. Consiste apenas de algumas feias casas de tijolos e uma pequena igreja, à qual, porém, falta um sacerdote. As casas, com seus telhados cinzentos, não se considerando as portas e janelas, de certa forma lembram as casas dos agricultores tiroleses. Quase dá para nos imaginarmos num vilarejo tirolês. A igreja tem torre separada, segundo o costume italiano, e o sino, como também em nosso país, é acionado por meio de uma corda. Bem mais que o vilarejo desinteressante chamou-me a atenção um gambá, isto é, um marsupial, que, para alegria do nosso hospedeiro, foi apanhado à noite numa armadilha. O animal, um ladrão de galinhas, que mostra certa semelhança com a marta, descontando a cauda, teria pelo menos 45 cm de comprimento, pernas curtas, cabeça que pelo formato lembrava um leitão novo, cara semelhante à de um texugo, e pelagem longa, porém rala, manchada de branco e preto. A mim me pareceu mais um velho Didelphys marsupialis L., var. typica Oldf. Thom, ainda com a pelagem de inverno. Só no decorrer da manhã chegaram nossos três animais de carga. Um deles se perdera na mata durante a noite e tivemos que agradecer por não se ter extraviado com carga e tudo. Assim, tivemos que sacrificar meio dia de viagem por causa deste contratempo. Entrementes, em Santa Teresa, nossa caravana assumiu sua composição definitiva. O Senhor Meier, de Porto do Cachoeiro, que nos acompanhara até aqui, voltou para casa, e ganhamos como guia um legítimo tropeiro. São conhecidos como tropeiros os condutores de tropas, no caso as tropas de mulas que no interior são responsáveis pelo transporte de todo e qualquer tipo de mercadoria. Os tropeiros são pessoas honestas e confiáveis. Precisam ser, pois de outra forma não lhes seriam confiadas tantas cargas preciosas. Eles correspondem aos arrieros dos países de língua espanhola e aos agogiatas da Grécia. Cada tropeiro tem mais alguns contratados, seus subordinados, também a cavalo, e cada um deles é responsável por um destacamento da tropa. Ele próprio é o responsável por todo o grupo de animais de carga. A grande maioria dos animais bem cuidados ) Trata-se de São João de Petrópolis, localidade próxima a Santa Teresa.

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e fortes pertence a ele, e são o capital com que trabalha. Selas bem apropriadas, chamadas cangalhas, aliviam os animais do peso da carga. A experiência do tropeiro também se pode identificar pela correta distribuição da carga e pela capacidade de evitar as possíveis escorregadelas dos animais durante o transporte. Dizem que os tropeiros são, sobretudo, mestiços em cujas veias corre sangue índio. Porém nosso guia é um tirolês de nome Ferrari, ex-soldado do exército imperial austríaco. Quando lhe perguntei se se tinha naturalizado38 brasileiro, respondeu orgulhoso: “Austriaco sono nato, austriaco voglio morire.”39 Os dois auxiliares de tropa são igualmente tiroleses ou italianos, apesar de, curiosamente, se comunicarem com o condutor da tropa em português. Perguntamos por que, sendo italianos, se comunicariam em outra língua, e responderam que isto acontece espontaneamente quando se ouve amiúde essa língua no dia-a-dia. Tão fácil abandono da língua materna, pelo que observei, só se dá com imigrantes cujo idioma se assemelha ao do país de adoção. Assim, os povos latinos não portugueses se adaptam no Brasil com maior facilidade ao português, enquanto, por exemplo, os imigrantes alemães conservam por toda a vida o uso da própria língua.40 O contrário foi observado entre os imigrantes alemães nos Estados Unidos da América, onde até mesmo grupos totalmente germânicos passavam a se comunicar em inglês, enquanto grupos minoritários distantes dos ingleses, não abolindo o próprio idioma, mantinham-se etnicamente mais puros. Os auxiliares de tropa nos transmitiram informações úteis para nossos estudos não só linguísticos como também sociais. Um deles há alguns meses tem a consciência pesada por uma morte. Quando ocorreu o crime, o assassino precisou evitar a região por um bom tempo. Agora retornou sem ser molestado e voltou a ser aceito tacitamente em seu grupo. O braço da justiça não o tinha alcançado. Tais incidentes não são incomuns por aqui. Em região tão pouco povoada que não se encontra qualquer autoridade num raio de muitos dias de viagem, as pessoas não contam com a proteção do estado e precisam sobreviver por seus próprios meios da melhor maneira possível. Assim, sempre que surge um desentendimento entre duas pessoas, cada uma procura por si mesma remover o desafeto do caminho o mais rápido possível. ) Desde então, ou melhor, com o decreto governamental de 15 de dezembro de 1890, “todos os estrangeiros, que viviam no Brasil no dia 15 de novembro de 1889, serão considerados cidadãos brasileiros, exceto aqueles que, no prazo de seis meses depois da publicação daquele Decreto, optem pelo contrário junto à Câmara Municipal de sua cidade.” — Como Ferrari, em virtude do seu trabalho de constantes viagens, talvez não tivesse tomado conhecimento deste Decreto e, também, por não ter tido tempo neste ínterim de fazer a necessária declaração, compulsoriamente deve ter sido naturalizado. 39 ) “Austríaco nasci e austríaco pretendo morrer.” 40 ) Nas colônias alemãs a língua materna tem se conservado por gerações. 38


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No Brasil semelhante atitude vale como autodefesa e como tal também é julgada. Por outro lado, nestas paragens incivilizadas nada se ouve sobre latrocínio. Assim, o estrangeiro que não se envolva com os desentendimentos entre colonos pode viajar com mais segurança aqui, talvez, do que em muitas partes da civilizada Europa. Pouco depois do meio-dia preparamo-nos para deixar Santa Teresa, pretendendo, após quatro horas e meia de cavalgada, chegar à casa de um imigrante tirolês. A casa fica numa região da ex-colônia de Santa Leopoldina denominada Petrópolis, e integra um grupo de propriedades espalhadas por um vale não muito largo, porém muito comprido. Cavalgamos por um caminho que, ora morro acima, ora morro abaixo, ora de novo em terreno plano, não se podia considerar acidentado. Pequenos trechos de mata alternavam-se com roças, trechos desmatados e plantações de café, com seus pequenos arbustos em flor. Grandes árvores erguiam-se de ambos os lados. À nossa frente o vale parecia fechar-se numa montanha coberta de árvores. De tempos em tempos passávamos diante da cabana de um colono. A maioria dos agricultores daqui era polonesa. Os cabelos louros cor de palha, a cor de pele descorada, os maxilares salientes e os olhos claros e expressivos revelavam inequivocamente o tipo eslavo do norte. Durante a viagem tivemos a satisfação de deparar-nos com um conterrâneo, procedente da baixa Baviera, que também se tornou colono nesta região. Na floresta viam-se árvores gigantescas. Entre outras pudemos reconhecer o pau d’alho (Gallesia Gorazema Moq.), um gigante da mata, que, como o próprio nome lembra, podia ser identificado pelo forte odor de alho. Buganvílias de brácteas vermelho-azuladas vestiam as copas das árvores mais baixas. Caules bem torcidos de cipós, do mesmo tipo que já tínhamos observado no dia anterior,41 e trepadeiras bauínias de caules ondulados e em forma de fita, iguais aos já vistos no Pará, elevavam-se do solo até a alta abóbada das copas. Mais no alto da montanha cresciam palmitos (Euterpe edulis Mart.), palmáceas que se desenvolvem em qualquer terreno e de que se aproveitam tanto o fruto como a folhagem. Duas araras, cuja gritaria há bastante tempo vínhamos ouvindo na mata, passaram voando sobre nossas cabeças. Já na margem da mata, sob a folhagem, avistamos um belo pássaro de um intenso azul claro, cintilante como pedra preciosa, talvez uma cotinga (Cotinga cincta Kuhl), uma das aves mais maravilhosamente coloridas do Brasil. Quando cavalgávamos por um declive, de súbito ouvimos à esquerda, bem no alto, um forte ruído como de grande colisão. Não conseguindo entender-lhe a origem, ficamos escutando atentamente. Depois notamos que parte da mata, ) Ver mais acima à p. 51.

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acima de nós, parecia ter-se soltado, provocando um grande deslizamento. Daí algumas árvores gigantescas se tinham precipitado montanha abaixo, arrastando tudo que havia nas proximidades, com um ruído semelhante a uma intensa trovoada. Um grande tronco, sem folhas nem galhos, surgiu apontando para o alto e, como num salto mortal, foi lançado nas profundezas, enquanto tudo mais descia pela vertente da montanha de forma caótica. Parecia um grandioso cenário de teatro. Poucos minutos antes tínhamos passado por aquele local agora totalmente coberto por destroços de vegetação. Somente mais tarde soubemos que o episódio que vivenciáramos fora causado pela derrubada de uma mata. As árvores de determinada área da derrubada tinham sido parcialmente cortadas em suas bases e as da margem mais alta, totalmente cortadas, de modo que, na queda, passaram gradativamente a deitar ao solo todas as demais. Pouco tempo depois de termos visto esta avalanche vegetal descer até o vale chegamos ao destino previsto para o dia de hoje. Na viagem pelo Espírito Santo foi a primeira vez que alcançamos nossa hospedagem ainda com a luz do dia. Durante o último trecho da viagem um segundo guia passou a nos acompanhar. Era um brandenburguês que, aos sete anos de idade, juntamente com os pais, trocou a pátria alemã pelo Brasil. Aqui nas proximidades trabalhava como colono. É também bom caçador, o que, como disse, se não lhe permite acumular riqueza, ao menos lhe dá um relativo conforto. A casa que nos foi indicada como acomodação neste vale isolado ainda coberto de floresta está situada num ponto ermo e bem afastado de outros assentamentos. O proprietário é um tirolês alemão, cuja esposa provém da baixa Baviera. Ambos são oriundos de famílias de pequenos agricultores. Na humilde casa, que nossos simpáticos anfitriões tornaram muito aconchegante, preparamos à noite nossa própria refeição com os mantimentos que havíamos trazido. Tivemos também que pôr casacos e cobertas para secar, bem como as demais roupas que não estavam em uso. No trajeto até aqui enfrentáramos uma tempestade, o que nos fez cavalgar quase quatro horas e meia sob intensa chuva. No final ainda pude coletar alguns espécimes de botânica num campo situado nas proximidades da casa. Era um Dipteracanthus Schauerianus N. ab E., provavelmente da variedade Nanus, lindas e pequenas acantáceas que vão enriquecer meu herbário. Para passar a noite nos foi preparado um quarto espaçoso a que faltavam forro e porta, sendo as janelas tapadas por simples peças de madeira. As camas, que em Santa Teresa continham colchões de palha de milho, aqui exibiam legítimos acessórios feitos de penas de aves, como é costume entre os tiroleses ou os habitantes da alta Baviera.


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Petrópolis  —  Fazenda do Senhor Barbosa. Quinta-feira, 30 de agosto. Durante a noite a chuva continuou caindo forte sobre o telhado, cujas traves podíamos avistar de nossas camas. A escuridão ainda era total quando reiniciamos a jornada, pois uma longa marcha nos aguardava. Nossos anfitriões nos prepararam algumas surpresas. O marido nos presenteou com uma bela pele de lontra, que, em vista do pequeno tamanho e da rica coloração marromcinzenta, me parece ser uma Lutra solitaria Natt.42 Sua esposa ficou acordada a noite toda, preparando para seus conterrâneos uma legítima refeição bávara, consistindo do que chamam Kücheln e Hasenöhren, alguns dos quais, dentro do possível, tivemos que levar conosco. Levantamo-nos pouco depois das seis horas e nos despedimos sensibilizados de nossos dignos hospedeiros. À frente de nosso grupo de cavaleiros encontrava-se o brandenburguês Karl Frank, que, como habitualmente se vê por aqui, usava as esporas afiveladas aos pés descalços. Na retaguarda vinha Ferrari, com a arma atravessada sobre a sela. Seguíamos em fila indiana, única maneira possível de viajar por estes caminhos. Os empregados, com os animais de carga, seguiam apartados de nosso grupo. Por vezes os perdíamos de vista metade do dia, ou até durante todo o trajeto, e com frequência só conseguíamos ter acesso à nossa bagagem de noite, o que dificultava a acomodação de muitos objetos recolhidos durante a viagem. Após deixarmos o lugar de nosso pernoite permanecemos sobre as selas durante seis horas ininterruptas. A neblina que cobrira o vale de manhã foi cedendo à medida que o sol ficava mais forte e, apesar do inconveniente de viajarmos praticamente todo o dia de hoje através da floresta, o tempo bom contribuiu para tornar mais tolerável a cavalgada. A densa folhagem junto e acima do caminho impedia a passagem de qualquer raio de luz até os viajantes. Assim, excetuando pequenos trechos de uma ou outra roça, cavalgamos o dia todo em profunda sombra. Horas e horas costeamos as paredes indevassáveis formadas pela floresta, que se estendiam à direita e esquerda. A densa cobertura verde posta sobre nossas cabeças também impedia que se olhasse em qualquer direção. Assim só podíamos enxergar o que, jazendo ou pendendo, estivesse bem próximo; já a pequena distância para o lado mata adentro, ou para cima, a visão ficava obstruída pelo véu de folhagem verde. Somente nas margens da 42 ) Como nesta pele preparada faltam o nariz e a cauda, a determinação do gênero foi dificultada, porém comparações com a pele da Lutra brasiliensis Ray e a da Lutra solitaria Natt. do Museu de História Natural de Viena sem sombra de dúvida indicam tratar-se da pele de uma L. solitaria. Na medida em que até agora se presumia que a L. solitaria só existisse no sul e no centro do Brasil, apesar de Pelzeln (Brasilische Säugethiere p. 53) apenas apontar, mesmo de forma interrogativa, um exemplar proveniente da Bahia, pode-se cogitar que esta pele recebida em Petrópolis tenha sido importada de outro lugar.

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mata e nos pontos onde havia alguns descampados podíamos ter uma visão da vegetação. “De tanta árvore não se conseguia ver a mata.” A situação era literalmente a que dizia o ditado popular. Nesta mata virgem deparamo-nos com árvores imensas e curiosidades vegetais de todo tipo. Aqui um cheiro de bálsamo emanava de uma árvore cortada.43 Acolá se via um barrigudo (Chorizia crispiflora H. B. K.), uma bombácea cujo tronco claro, todo revestido de pequenos espinhos cônicos, apresenta na base o aspecto de um grande barril.44 Depois passamos por diversos paus d’alho gigantescos (Gallezia Gorazema Moq.), com longos troncos desnudos, folhagem verde clara e folhas relativamente pequenas. Um confrade caído ao lado do caminho espalhava pelo ar seu insuportável odor de alho.45 Mais abaixo no matagal via-se um pé de cebola, assim chamado tanto pelo odor como pelo formato de cebola46 que o tronco costuma apresentar logo acima das raízes. Em certo ponto passamos sob um grupo de pés de sapucaia (Lecythis Pisonis Camb.). Os longos troncos sem galhos, retos como velas, sustentavam o teto de folhagem clara como colunas sustentam a abóbada de uma igreja. No solo havia dúzias de frutos, semelhantes a potes, destas gigantescas árvores, frutos que, quando ainda estão nos altos galhos, se abrem liberando uma tampa na extremidade inferior. Seu peso é tal que na queda esta árvore pode abater uma pessoa. Entre a modesta vegetação que nesta floresta formava o arvoredo de média altura não faltava o pé de jabuticaba (Myrciaria Jabuticaba Berg) com sua copa esférica. Em meio ao matagal sobressaíam os mamoeiros (Carica papaya L.) de troncos sem ramagem, encimados por folhas maniformes dispostas de maneira regular e em círculo. Alguns pés de samambaia, um dos quais sobressaía especialmente em altura, inclinavam as graciosas frondes sobre a vegetação rasteira. Em determinado ponto via-se uma concentração de palmeiras iri (Astrocaryum Ayri Mart.), em outro uns tantos palmitos (Euterpe edulis Mart.), de copas pouco frondosas. Incontáveis plantas de grande variedade de espécies, que proliferavam e pareciam asfixiar-se ) Pelos fragmentos de madeira que consegui trazer comigo, presumo que este pé de bálsamo não deve pertencer ao grupo dos Humirium, Protium, Myroxylon e Copeifera. Anatomicamente poderia corresponder antes a uma Simaruba amara Aubl. Porém também lhe faltam desta árvore algumas importantes características. 44 ) Este barrigudo recém-citado, igualmente denominado Cavanillesia arborea Schumann = Pourretia tuberculata Mart., não deve ser o tipo de barrigudo por nós conhecido, já que não é revestido de espinhos, além de apresentar o abaulamento em forma de barril mais na parte do meio do tronco. 45 ) Pela avaliação da anatomia dos fragmentos coletados destas árvores não tive dúvida de que se tratava de uma Gallezia Gorazema Moq. 46 ) No que se refere ao odor, pode ter sido uma Crataeva tapia L.; porém, a literatura não permite determinar se o caule deste pé de cebola corresponde ao padrão da Crataeva tapia. 43


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entre as gigantescas árvores como que lutando por ar e luz, não davam descanso aos olhos. Cipós circundavam e envolviam as árvores. Um destes cipós, talvez uma micânia, à semelhança de uma guirlanda, que de espaço a espaço apresentava em seu tronco um alargamento esférico, atravessava a ramagem. Trepadeiras de caules retorcidos ganhavam as alturas em direção à cúpula de folhas da floresta, e uma bauínia, Jabuti-mutá-mutá, se enrolara meia dúzia de vezes acima e abaixo em seu tronco bem torneado. Nesta floresta os cipós e outras plantas de raízes aéreas pareciam de tal forma entrelaçados que a mula teimosa de minha companheira de viagem, ao dar um passo errado para dentro da vegetação, fez com que ambas ficassem enredadas de tal forma que somente puderam ser liberadas depois que os dois guias removeram os galhos com as machadinhas. No percurso de hoje pela floresta também não faltaram flores de cores fantásticas, e ficamos particularmente sensibilizados por encontrar aqui em estado natural diversas plantas cultivadas em nosso jardim botânico. A Begonia angularis Raddi47 com suas flores rosadas crescia à margem da picada. Estrelas de cavaleiro48 (Amaryllis L.), que na maioria das vezes possui uma única flor,49 refletiam sua cor vermelha ardente por entre a penumbra da mata. A Pavonia multiflora A. Juss.,50 uma malvácea com formato de arbusto, interrompia com suas flores também vermelhas o verde perene da vegetação fechada. Begônias pareciam lutar pelo direito à existência em meio a esta exuberância de plantas, e a barba-de-pau (Tillandsia usneoides L.), com seu trançado prateado, pendia dos galhos das árvores. Uma araponga (Chasmorynchus nudicollis Vieill.), um daqueles pássaros ariscos, de cor branco-neve, que costumam viver nos galhos mais altos destas gigantescas árvores e que acrescentam à floresta um grito semelhante ao som de um sino, pousou à nossa frente, mas, assustada com o ruído das patas dos animais, terminou alçando voo. Bonitos comedores de pimenta, de plumagem amarela e asas escuras, presumivelmente da espécie Andigena bailloni Vieill.,51 pareciam afiar o grande bico num galho próximo. Numa clareira, algumas grandes araras ) Ali mesmo coletado para meu herbário. ) Aportuguesado a partir do termo original Rittersterne. Nota do tradutor. 49 ) Não há como determinar a espécie, pois há outras espécies de plantas com só uma ou duas flores vermelhas nesta parte do Brasil. 50 ) Ali mesmo coletado para meu herbário. 51 ) Não cheguei a descrever melhor nas anotações de viagem os matizes de amarelo dos tucanos que vi. De corpo amarelo, porém mais claro que o A. bailloni, existem também nesta mata Atlântica os Pteroglossus wiedi Sturm, mas, como não notei neles qualquer mancha abdominal vermelha, acredito poder excluir esta última espécie. Talvez não tenha reparado nesta mancha em decorrência da pouca visibilidade da mata. 47 48

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(Ara chloroptera G. R. Gr.) de asas verdes sobrevoaram nosso grupo lançando gritos estridentes. Mais tarde, em meio a uma vegetação de capoeira, passamos por um alto arbusto que parecia coberto de cima até embaixo por periquitos verdes de cabeça alaranjada (Conurus aureus Gm.) que sem cessar subiam e desciam pelos galhos.

Tillandsia usneoides.


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O caminho estava em péssimas condições. Voltamos a nos deparar com os pilões, aqueles degraus de terra que parecem rasgados por um arado, em cujas aberturas nossos animais pareciam afundar as patas. Logo em seguida surgiam subidas e descidas tão íngremes que ora tínhamos que nos segurar nas crinas dos animais, ora no cinto da garupa, para não escorregarmos sela abaixo. De tempos em tempos o caminho passava perto de um assentamento localizado numa grande clareira no meio da mata e muito procurado pelos anus (Crotophaga ani L.). Por aqui, com exceção de um prussiano, encontramos apenas colonos brasileiros. A cada dia de viagem terra adentro as áreas cultivadas e habitadas diminuíam visivelmente, e cada vez mais se podia observar a mata virginal em seu incontestável direito. Podia-se notar claramente como, a partir da costa, a cultura avançava passo a passo floresta adentro. Chegamos à margem de um rio que corria do sul para o norte em direção ao rio Doce e que era chamado de Santa Maria, mesmo nome do rio pelo qual havíamos subido de canoa a partir de Vitória. Suas margens cobertas de mata, que em certos pontos se assemelhavam às margens de um lago no meio da mata, ostentavam um aspecto gracioso, sem, porém, a exuberância das margens do baixo Amazonas. Em termos gerais, a vegetação local desta mata virgem ficava bem aquém daquela da hileia amazônica. Faltava especialmente o impressionante crescimento em forma de botaréu que se vê nos troncos e raízes das bombáceas; grandes raízes em formato de painel raramente se viam. Bromeliáceas, tanto terrestres como epífitas, algumas com flores vermelhas, decoravam o interior da mata. Cobriam o solo gigantescas aráceas de folhas lanceoladas e em forma de coração, talvez folhas de antúrios ou de caládios. Bambuzais formavam um verdadeiro matagal. Plantas trepadeiras pareciam ter lançado uma cobertura de flores sobre a cumeeira de diversas árvores. A trilha seguia agora por sobre uma elevação, e à esquerda via-se uma montanha ainda mais alta, que nos disseram chamar-se serra da Desgraça. Desta elevação tínhamos uma bela vista sobre um amplo vale coberto de mata, pelo qual fluía o rio Doce. No meio do vale erguia-se uma colina graciosa que no lado posterior fazia limite com uma serra arborizada. Depois de uma cavalgada de seis horas fizemos uma primeira parada junto a uma cabana de tiroleses, onde estes simpáticos moradores de língua italiana nos saudaram como se fossem da nossa terra de origem. Porém, só depois de mais meia hora de viagem, ao meio-dia, é que fizemos um descanso, e de novo fomos hospitaleiramente recebidos por tiroleses italianos. Compartilhamos de sua refeição tradicional, risoto e polenta, que nos pareceu mais saborosa que os pratos brasileiros, em geral pouco nutritivos. Aqui havia um assentamento bem maior, com plantações de milho, cana-de- açúcar e café, e criação de gado de boa aparência. Vimos que a área cultivada ia sendo ampliada, pois estavam

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queimando uma faixa de mata derrubada, cujos galhos e folhas secas iam sendo consumidos pelo fogo crepitante. Como foi preciso substituir algumas das mulas por animais descansados, mesmo insatisfeitos tivemos que prolongar a parada por mais algumas horas. Na sombra já fazia 29,5º C. Eram duas horas da tarde. Mesmo assim não deixei de aproveitar a pausa forçada para apanhar algumas espécies de borboletas no campo batido de sol. Algumas eram bem vermelhas e presumo pertencer ao gênero Dione, bastante comum no Brasil. Viam-se também teclas, possivelmente Thecla Gabriela Cram, com seu azul de intenso reflexo. E ali esvoaçavam, entre suas irmãs de cores fantásticas, as danaínas de asas translúcidas como gaze ou manchadas e listradas de amarelo escuro, preto e branco. Contudo, não consegui com a rede capturar exemplares de nenhuma destas espécies. O resultado da caçada foi uma Callicore Clymene Cram., uma pequena ninfalídea, cujas asas, no lado dorsal, apresentam uma faixa verde dourada sobre fundo escuro, enquanto o lado de baixo se destaca em parte por um esplêndido vermelho, em parte por um branco com listras pretas. Depois ainda consegui apanhar uma Catagramma Hydaspes Dru.,52 que se destaca por seu traje colorido, e uma Eurema Albula Cram., var. Sinoë Godt., uma pequena Pierina, que apresentava um revestimento absolutamente branco até a ponta das asas pretas. Infelizmente não conseguimos avistar nenhuma anta (Tapirus americanus L.), apesar de serem muito comuns nesta região. Entretanto vimos peles em diversas casas de colonos, das quais não pudemos trazer nenhuma, seja pelo tamanho, seja porque endurecem depois de secas. É de notar que, aqui perto da casa desta família tirolesa onde fizemos a parada do meio-dia, teriam sido abatidos dezessete destes grandes animais terrestres do Brasil. Costuma-se caçá-los por sua carne saborosa, mas, sobretudo, por sua pele valiosa e de grande utilidade. Já no avançado da hora, à tarde, completamos a troca de mulas e retomamos a jornada. Para chegar ao próximo local de pernoite, a fazenda do Senhor Fortunato Barbosa de Menezes, um brasileiro, tínhamos que vencer mais três horas de cavalgada. A trilha que atravessava a mata virgem raramente passava por locais de derrubada, onde não se erige quase nenhum tipo de habitação, sendo aqui a exceção algumas cabanas de barro. Por isto presumimos tratar-se de algum tipo de derrubada que os colonos, que geralmente moram longe dali, fazem apenas para experimentar a qualidade do solo. Novamente um grupo de araras sobrevoou o caminho. Um bando de periquitos verdes (provavelmente Brotogerys tirica Gm.) passou fazendo grande algazarra em busca de uma árvore onde pudessem pousar. Do espesso da mata ) Ver mais acima à p. 256. [Remissão a uma passagem anterior.]

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ouvimos o arrulhar de uma pomba53 e o pio estridente de um mutum (Crax carunculata Temm.). Outros pássaros também puderam ser ouvidos e vistos. A araponga em especial fazia ouvir incessantemente seu chamado metálico pela solidão da floresta, anunciando a chegada da escuridão. Viam-se muitas palmeiras iri (Astrocaryum Ayri Mart.) em meio ao matagal. Uma copaíba (Copaifera trapezifolia Hayne), um colosso da floresta, com tronco e folhagem claros, sobressaía de forma imponente sobre suas cercanias. Um emaranhado de cipós pendia das alturas. Lá no alto de uma árvore de folhagem escura, cuja copa em formato de guarda-chuva se assemelhava a uma touca gigantesca, podia-se avistar um arbusto verde claro de ramos incontáveis e folhas delicadas. Já entre a vegetação composta por ervas e arbustos desta mata, realçados por uma fantástica coloração vermelha, transpareciam flores consideradas venenosas (Erythrina?54). Na mesma região da mata via-se um tipo de flores lilases, semelhantes à nossa murta (Vinca minor), porém um pouco maiores, que poderiam ser tomadas como uma destas espécies de “vincas” se alguma destas flores lilases já tivesse sido identificada no Brasil.55 Em meio a toda esta vegetação agreste fomos surpreendidos por alguns cupinzeiros de barro que, pelo formato das construções, poderiam ser enquadrados no grupo dos cupins construtores de grandes ninhos (Termes cumulans Koll.), já que este tipo foi localizado em muitos lugares, inclusive nas matas. Aos poucos descera a noite, e a escuridão começara a nos encobrir. Como num toque de mágica se fez ouvir a sinfonia noturna dos animais da floresta, com sua harmonia de tons cuja pungente imponência não pode ser reproduzida em simples palavras. Pássaros, cigarras e grilos entoavam seus cantos. Entre as folhagens, o martelar de sapos ferreiros (Hyla faber Wied), soando como sinos, parecia retumbar dentro de um grande salão da floresta. Porém logo vimo-nos despertados bruscamente da melódica poesia silvestre para a prosa de uma situação muito desconfortável. Não tínhamos, como dois dias antes, trazido lanternas para, pelo menos provisoriamente, nos ajudar a reconhecer o caminho. O equipamento de iluminação estava 53 ) Pode ter sido o som emitido por uma Columba rufina, Temm., descrita pelo príncipe Wied como muito comum nas matas do Brasil central. Ver Wied: Beiträge zur Naturgeschichte Brasiliens, IV, 455. 54 ) Wied (Reise nach Brasilien I, p. 44) cita ter encontrado na mata Atlântica a pequena planta eritrina com suas flores vermelhas, enquanto em Martius, Flora brasiliensis XV 1, p. 172 e ss., em geral, para o Brasil, não há citações de pequenos arbustos ou pequenas plantas que possam se assemelhar a uma eritrina. As eritrinas, com exceção da E. Corallodendron L., não contêm substâncias venenosas. 55 ) Em todo caso, poderiam ter sido apocíneas, talvez uma Amblianthera leptophylla Müll. Arg., que, entretanto, vem a ser uma trepadeira da caatinga.

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no momento inacessível no fundo de algum saco sobre o lombo de um dos animais de carga. Entretanto, a picada estava tão escura que nem sequer se conseguia enxergar a cabeça das mulas, e menos ainda o chão da trilha. Como referência, tínhamos apenas o lenço branco amarrado à cabeça do guia da vez, que vislumbrávamos como um ponto um pouco mais claro no meio da escuridão. O cavaleiro da frente mantinha os olhos fixos na estreita linha um pouco menos escura que permitia adivinhar a trilha em meio à escuridão da floresta. Assim, na indevassável escuridão, muitas vezes descíamos por um caminho íngreme, sem sequer saber para onde estávamos indo. Contudo, por incrível que pareça, as mulas mantinham-se firmes em sua marcha. Passamos por um rio nem um pouco raso, o Santa Joana, cujo curso segue paralelo ao do Santa Maria, que havíamos visto pela manhã. Daí nos aprofundamos de novo na noite da floresta. Neste ponto chegamos a perder um estribo, que, depois de uma busca árdua, e com ajuda da luz de alguns fósforos, finalmente foi reencontrado. Neste meio tempo, o guia Frank deixou o grupo e foi na frente até à fazenda para providenciar nossas acomodações. O fazendeiro em questão é considerado de trato difícil, e quem não pede hospedagem de modo bastante humilde corre o risco de pernoitar na floresta. Todavia, tivemos sucesso em nosso pedido de acomodações e mantimentos para sete pessoas, incluindo guia e empregados, além das dez mulas. O restante do grupo seguiu a esmo o caminho desconhecido em meio à escuridão de breu. Porém, subitamente, perdemos o rumo no meio de uma clareira e fomos dar num pântano. Os animais, bufando de medo, as patas já ficando presas, opunham-se num esforço gigantesco a seguir adiante. Esta reação instintiva era compreensível, pois qualquer passo à frente podia ter sido desastroso. Seguiram-se alguns instantes de embaraçosa perplexidade em que ficamos pregados ao chão. Finalmente, um dos condutores de animais, que havia desmontado, reencontrou as marcas da trilha de que nos desviáramos no banhado e pudemos, saindo à direita do caminho errado, deixar esta baixada perigosa. Felizmente conseguimos superar um dos mais desagradáveis momentos de toda a nossa viagem até ali. Novamente passamos por um trecho de mata absolutamente escura para depois avistar a fazenda convidativa do Senhor Barbosa. Encontramos aí uma família rica, com muitos filhos e empregados, e por toda a casa percebemos um aspecto bem mais distinto do que em qualquer das casas de pioneiros em que pernoitáramos até ali. No entanto, depois de nove horas e meia de cavalgada, tivemos de aceitar o inconveniente de fazer sala ao fazendeiro e sua esposa conversando em português, ao invés de nos recolhermos e serenamente completar as anotações de viagem. Foi bastante cansativo.


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Entretanto, graças a esta conversa aprendemos muita coisa sobre a vida deste tipo de colono que vive em local a muitas horas de viagem de qualquer de seus vizinhos. Neste ponto perdido da floresta só se podia encontrar o sacerdote mais próximo a quatro dias de viagem, e igualmente distante, senão mais, ficava o médico mais próximo. Conta-se que os filhos do Senhor Fortunato Barbosa só serão batizados quando tiverem condições de cavalgar por si próprios até o padre. Não é só isto que se fala, mas também que, para reduzir as despesas com este sacramento, convém aguardar até que dois ou três dos filhos tenham crescido o suficiente para suportar a cavalgada até o local de batismo. Quando perguntei o que costumava acontecer se uma das crianças adoecesse, a mãe me deu uma resposta lacônica: “Elas não adoecem.” A própria senhora há cinco anos não tinha dado um passo fora da fazenda. Numa pequena peça muito simples destinaram-se duas camas tipicamente brasileiras, duras como pedra, para o repouso de nós duas mulheres. Enfim, para nossos membros exaustos da viagem, as camas não foram tão desagradáveis. Desagradável, porém, foi a presença das incontáveis baratas (Blattidae)56 que corriam de um lado para o outro neste quarto exíguo, das quais não conseguíamos resguardar a preciosa bagagem. Fazenda do Senhor Barbosa  —  Rio Doce. Sexta-feira, 31 de agosto. Como algumas das mulas tiveram que ser ferradas, só pudemos reiniciar a cavalgada às oito horas. Neste meio tempo, dentro do possível, fizemos uma inspeção da propriedade. A principal cultura era o café. Ademais, cultivavam milho e cana-de-açúcar e tinham criação de gado. Fizeram também uma plantação experimental de cacau, e pudemos rever a folhagem escura dos cacaueiros, que não víamos desde o Pará. No pátio espaçoso corriam galinhas e cães, máquinas rangiam, e de uma plantação de laranjas nas proximidades chegava-nos um delicioso odor. Não se tratava de uma simples colônia como tantas que víramos nos últimos dias, mas de uma verdadeira grande fazenda. Nas proximidades da casa observei algumas piteiras (Fourcroya gigantea Vent.), com flores de seis ou sete metros de altura. São agaváceas, de que na província do Espírito [Santo] se encontram a 900 m de altitude, e já tínhamos observado uma delas na viagem de ontem. A cavalgada de hoje, contando uma meia hora de descanso, durou das 8 da manhã até às cinco e meia da tarde. Neste tempo vencemos o restante dos 158,5 km correspondentes à distância do Cachoeiro até Tatu no rio Doce. Para vencer toda esta distância ao longo de três dias e meio andamos vinte e oito horas e meia. Enfim, não deixa de ser desempenho aceitável para uma cavalgada, sobretudo se levarmos em conta as péssimas condições do caminho e a ) Conferir o que foi dito mais acima às p. 155 e 293. [Remissão a passagens anteriores.]

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necessária, incessante e cansativa pressão exercida desde o primeiro momento sobre as mulas para que mantivessem o ritmo. A trilha no dia de hoje nos conduziu ininterruptamente pela selva; durante todo o longo dia não chegamos a ver qualquer tipo de habitação humana. A total e intensa solidão da floresta nos envolveu, tendo apenas sido interrompida pela manhã ao cruzarmos com duas tropas de carga. À passagem da segunda delas, devido à falta de espaço na picada estreita, tivemos de nos afastar um pouco para dentro da mata. Depois que as tropas passaram, envolveu-nos de novo a majestade desta natureza ainda inexplorada e sem a presença do homem. A trilha por onde cavalgávamos, mais ainda que a que tínhamos percorrido nos dias anteriores, parecia um túnel cavado através da floresta e não um caminho feito através dela. À direita e à esquerda a vegetação, como paredes indevassáveis, se fechava sobre um estreito espaço não superior a um pé de largura. Acima de nossas cabeças estendia-se uma cobertura horizontal indevassável, da qual pendiam raízes aéreas que na base tinham sido cortadas com machadinha e agora pendiam, como longas cordas e fios, de uma altura de até cem pés. Às vezes a parede da mata avançava tanto que os animais, mesmo andando em fileira, só com dificuldade conseguiam passar, e outras vezes o teto era tão baixo que por longo trecho tínhamos de nos manter curvados nas selas. Com isto, ora um chapéu, ora outra peça da roupa, se prendia a um galho ou a um cipó. Outras vezes ainda, as mulas, perdendo o controle, nos faziam bater ombro, cabeça ou joelho com bastante força contra um tronco mais saliente. Pela manhã a picada nos levou por um terreno montanhoso, e de uma clareira nos foi possível avistar a montanha próxima. Na pitoresca paisagem montanhesa parecia reinar uma mágica e silenciosa quietude. Pouco depois ouvimos o estranho grito de uma saracura, isto é, um frango d’água, e, considerando a região e o tipo de grito nesta hora da manhã, devia ter sido uma Aramides chiricote Vieill. Borboletas voejavam em grande quantidade sobre o caminho. Em sua maioria eram do mesmo tipo que tínhamos visto no dia de ontem, faltando apenas as Theclas e Catagrammas. Em seu lugar surgiram as Apatura Laurentia Godt, ninfalídeas de asas pretas, com listra de um azul intenso. Dentre estes silenciosos insetos alados também se podiam observar megaluras de cor marrom, um tipo de borboleta, como o nome indica, de longa cauda.57 Havia ali ainda lepidópteros amarelos, igualmente de longas caudas, certamente do gênero Papilio Thyastes Dru., ou de outro tipo difícil de distinguir durante o voo, Papilio Lycophron Hübn. Ao meio-dia fizemos uma parada de meia hora e nos acomodamos no chão da mata à beira do ribeirão da Laje. Sob uma gritaria de papagaios consumimos a refeição que tínhamos trazido. Um inócuo preparado feito à base ) Megalura Chiron Fabr. ou Megalura Themistocles Fabr.

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de cachaça e água do rio completou essa refeição frugal. Depois, revigorados, prosseguimos rumo a nosso destino. No trecho da floresta por onde passamos esta tarde não encontramos os pés de samambaia tão comuns na região montanhosa. Também não vimos nenhuma samambaia rasteira no solo. Isto, somado às grandes folhas características das helicônias e à baixa vegetação constituída de palmeiras e arbustos, que lembravam a da hileia, indicava que tínhamos entrado na mata do vale do rio Doce. As palmeiras de pequena estatura e folhas bipartidas pareciam ser de um tipo de Geonoma;58 as outras eram do tipo indaiá (Attalea humilis Mart.), e, mal formado o tronco, já se propagam em folhas gigantescas. Cabe assinalar que entre as palmeiras mais altas havia muitas patiobas (Cocos botryophora Mart.). Como já tínhamos observado nos últimos dias, árvores como os gigantescos paus d’alho (Galezia Gorazema Moq.) e os barrigudos (Chorizia crispiflora H. B. K.), de tronco marcadamente grosso e raízes cilíndricas salientes sobre o solo, constituíam um tipo de gigante da floresta desconhecido para nós. Ali também se viam um pé de sangue de dragão (Croton),59 daí o nome, uma euforbiácea que libera uma seiva vermelha e tem grandes raízes terrestres, semelhantes às da Ceiba Samauma. Também vimos um imponente pé de jacarandá, cuja madeira vermelha e granulada, segundo nosso guia, é muito cara, e que devia ser do gênero Machaerium firmum Benth. Já mais perto da baixada do rio algumas gameleiras (Urostigma dolarium Miq. [?]), fíceas que se faziam notar pelas grandes raízes superficiais com aspecto de tábua.60 Entre o arvoredo mais baixo e de tronco menos desenvolvido destacavam-se nesta república botânica algumas cecrópias e araçás (Psidium L.), estas sendo mirtáceas de casca lisa e vermelha;61 tampouco faltavam aqui e ali plantas62 (Tecoma speciosa D C.),63 totalmente cobertas de flores amarelas em forma de dedal, que ainda não tinham desenvolvido as folhas. No solo coberto de verde ) A presença de carludovicas de folhas bipartidas também não é impossível nesta região. ) Sendo o Croton Urucurana Bail. e outro muito parecido, o Croton salutaris Casaretto, chamados de sangue de dragão, e sendo ambas típicas da região central do Brasil, não se pode afirmar com certeza de qual delas se tratava aqui. 60 ) Em suas Tabulae physiognomicae, p. LXX, Martius descreve estas raízes da Pharmacosycea grandaeva Miq. e as reproduz na tabela XVI. — Será que as árvores que um pouco acima nos indicaram como gameleiras são da espécie das fíceas e não da Urostigma dolarium? 61 ) Dentre os diversos tipos de psídios que aqui levam o nome de araçá, talvez se tratasse aqui de um Psidium coriaceum Mart. 62 ) Aqui mencionadas com o nome de Trompetenbaum = árvore trompete. Nota do tradutor. 63 ) Não há referência de que a Tecoma speciosa floresça antes da troca das folhas, embora essa característica também não tenha sido registrada no caso de outras espécies de Tecomas de flores amareladas existentes nesta região. Não vejo impedimento para tomarmos as aqui observadas como sendo do tipo Tecoma T. speciosa. 58 59

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viam-se flores vermelhas e lilases e Dipteracanthus Schauerianus N. ab E.64 de flores azuladas. Aróideas de todo tipo e incontáveis Ananas sativus e bromeliáceas terrestres de floração avermelhada recobriam o solo. Bromeliáceas de tamanho excepcionalmente grande também cresciam nas árvores, e bem no alto, sobre um galho, acredito ter distinguido as flores vermelhas de uma orquídea. Cipós de todos os tipos, cuja grossura variava desde a de cordões até a de amarras de navio, cresciam para o alto. Um se enroscava no outro. Um deles, agarrado a uma árvore, parecia servir de suporte a um segundo ou terceiro. Por vezes cavalgávamos em meio a um verdadeiro palmeiral e nos deleitávamos com a parca luminosidade do ambiente de conto de fadas que se formava sob a espessa cobertura de folhas verde-claro na qual incidiam os raios de sol. Pombas, possivelmente Columba plumbea Vieill., que se ouvem com frequência na floresta úmida, arrulhavam em meio à mata. Cancãos (Ibicter americanus Bodd.),65 grandes aves de rapina de cor escura, anunciavam-se nos cumes mais altos das árvores. Alguns mutuns (Crax carunculata Temm.) faziam-se ouvir, e com a chegada da noite um jacu66 emitia seu grito. No entremeio os gritos regulares da araponga, como toques de sinos, e do pássaro ferreiro67 ressoavam pela selva. E ao longe o ouvido podia detectar o berro selvagem de um macaco (Mycetes ursinus Wied),68 que lembrava o rugido de um leão ou de um tigre. De todos os sons de animais da floresta foi este de longe o mais poderoso e ao mesmo tempo o mais desagradável. Dentre os animais que não chegamos a ouvir nesta selva foram citados como muito comuns as pacas, os tamanduás e os armadilhos, entre outros. Assim seguíamos a cavalo, durante horas e horas, atentos às mais diferentes plantas e à escuta dos mais estranhos sons. Finalmente, porém, esta eterna mesmice, este labirinto verde sem fim, este nunca se poder olhar para ) Material coletado para meu herbário. ) O nome popular Caucam = pakakang = ganga = rancanca = gakão se aplica ao Ibicter americanus Bodd = I. formosus Lath. que vive na mata Atlântica. (Ver Pelzeln: Uebersicht der Geier und Falken [Verhandlungen der zoologisch-botanischen Gesellschaft in Wien, XII, p. 176]; Pelzeln: Zur Ornithologie Brasiliens, p. 2; Wied: Beiträge zur Naturgeschichte Brasiliens, III, p. 153, 158, 161; Spix: Avium species novae, I, 11). — Goeldi (As Aves do Brazil, I, 49) cita o Urubutinga brasiliensis Pelz. = U. zonura Shaw, com o nome popular, de som ligeiramente diferente, cauã. 66 ) Nas selvas desta região podem ser encontrados tanto jacus e jacupembas (Penelope superciliaris Illig.) como jacutingas (Pipile jacutinga Spix) e talvez também jacupebas (Penelope jacucaca Spix). 67 ) O termo originalmente utilizado foi Schmiedevogel. Nota do tradutor. 68 ) Pelzeln (Brasilische Säugethiere 3, 4) e Burmeister (Systematische Uebersicht der Thiere Brasiliens, I, p. 22) consideram o Mycetes ursinus Wied idêntico ao Mycetes fuscus Geoffr.; Schlegel (Muséum d’Histoire naturelle des Pays-Bas, VII, Simiae, p. 154 e ss.) e Goeldi (Os Mammiferos do Brazil, p. 36) os dividem em duas espécies. 64 65


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fora da mata, esta opressiva proximidade do confuso emaranhado da vegetação, pareciam estar terminando. Como as plantas da selva que anseiam pela luz nas alturas, também nós ansiávamos por luz e ar livre. Ao anoitecer, para encurtar o caminho, o guia seguiu por uma picada lateral. Porém, depois de uma hora de viagem, chegamos a uma derrubada e deparamo-nos com o emaranhado das vítimas abatidas para formação de uma roça. Parecia impossível passar. Refazer todo o trajeto de volta até a picada principal parecia impossível, pois o dia já estava chegando ao fim. Por certo, como já acontecera outras vezes, a escuridão logo nos teria surpreendido na densa floresta. Por isto, depois de rápida troca de ideias, decidimos nós mesmos abrir uma passagem através da mata. Depois que desmontamos, Frank foi seguindo na frente e, com vigorosos golpes de terçado, para a direita e para a esquerda, implacável foi cortando samambaias, arbustos e pequenas árvores. Seguimos

Saco vocal de um Mycetes ursinus Wied (tamanho natural). (Trazido do Espírito Santo pela autora.)

atrás, curvados devido à baixa passagem e puxando os animais pelo cabresto. Esta forma inusitada de conduzir as montarias através da grande floresta me trouxe à mente as Valquírias e seus corcéis. Por certo compúnhamos uma imagem menos poética e pitoresca do que a dessas jovens mitológicas com seus escudos. No caminho improvisado despertamos saúvas (Atta sexdens [L.] Fabr.) e outras formigas de sua tranquilidade até então imperturbada pelo homem. No final também tive o desprazer de conhecer de perto uma árvore de seiva leitosa e tronco todo semeado de espinhos à semelhança de um ouriço do mar. Sem maiores cuidados me recostara a seu tronco, e os espinhos feriram-me dolorosamente as costas. Naturalmente quis saber o nome da árvore, ao que Frank me respondeu que era conhecida como “ai diabo”,69 pois as pessoas, ao ) Esta árvore, segundo tudo indica, deve ser uma euforbiácea.

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serem surpreendidas como eu fui, costumavam soltar um grito pronunciando esta palavra. Entendi logo. Finalmente atingimos o limite da mata, onde, com o céu um pouco nublado, a temperatura se mantinha amena — e depois de muita expectativa deparávamo-nos com nosso destino, o rio Doce.


CAP Í T U LO X VI I —

Rio Doce Mutum. Sábado, 1º de setembro. O rio Doce, em cuja margem estávamos agora, é um dos rios mais importantes da região central do Brasil. A extensão de seu curso é de cerca de 750 quilômetros, e sua bacia abrange cerca de 97.500 quilômetros quadrados. Suas nascentes, em cujas proximidades estivemos há cerca de catorze dias, localizam-se na vertente oriental da serra do Espinhaço, na província de Minas Gerais. No trecho inicial seu curso segue em sentido nordeste, para depois tomar a direção sudeste. Já a partir da fronteira com o Espírito Santo, onde atravessa a serra do Mar, flui predominantemente em direção leste. As correntezas, as cascatas e os baixios em seu curso superior inviabilizam a navegação. Só os 220 quilômetros até a foz são navegáveis. Porém, somente canoas percorrem esse trecho, já que por um motivo ou outro fracassaram as tentativas de se criar um transporte regular com barcos a vapor. A última tentativa neste sentido aconteceu em 1879, quando durante alguns meses um pequeno vapor fez o percurso navegável numa média de 18 horas de viagem. O transporte de mercadorias pelo rio Doce é escasso e penoso. Rio acima faz-se o transporte de sal, enquanto café, tabaco e banha são levados rio abaixo. A importação de sal atinge uma média de 20 mil sacas anuais, enquanto a exportação de café representa cerca de 381 mil quilos.70 No curso inferior, onde sua largura varia entre 300 e 500 metros, o rio Doce serpenteia através de uma baixada pantanosa pródiga em lagos e infestada de malária. O clima em si é quente e muito úmido. Chove o ano todo, com maior intensidade de outubro até abril, no entanto os outros meses são contados como ) Refere-se à soma do café exportado no ano de 1888, segundo Silva Coutinho: Navegação do Rio Doce. 70

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parte da época de seca. Na estação das enchentes, que tende a iniciar em outubro e perdurar, em média, até março,71 o nível do rio pode subir pelo menos seis metros, e a partir de dezembro as águas frequentemente transbordam pelas margens. Boa parte da margem esquerda do rio Doce, terra adentro, é totalmente desconhecida e nunca foi pisada pelo homem branco. Todas as terras ao norte a partir de um dia de viagem da foz do rio estão inegavelmente em poder dos botocudos ainda bravios. Esta ocupação indígena persiste rio acima e, já em Minas Gerais, até a junção do rio Suaçuí Grande, dois graus de longitude distante da costa. Já sua margem sul se diferencia pelo surgimento de alguns núcleos de população não indígena e pela presença de alguns destacamentos militares isolados, que começam a disputar aos autóctones a posse da área. Quando terminamos o trajeto a cavalo pela floresta no dia de ontem e avistamos pela primeira vez o rio Doce, não pudemos evitar certo desapontamento. Devido à época da vazante o rio se transformara num curso d’água sem graça que mal cobria as grandes pedras de seu leito. Cavalgamos uma pequena distância rio acima, ao longo do barranco da margem, até a feitoria Tatu, onde esperávamos encontrar acomodações. Não conseguimos pernoite na única casa algo mobiliada, porém deixaram-nos acampar numa construção completamente vazia e ainda inacabada dos arredores. Nosso modesto palácio de barro, em vez de janelas com vidraças, possuía apenas taipas cheias de buracos por onde penetrava a luz do dia. Além disto, o interior ainda não tinha qualquer traço de divisórias, o piso era de terra batida, não havia forro nem qualquer tipo de parede, e ainda faltava uma parte das portas. O guia e seus empregados prepararam-se para dormir no chão mesmo, valendo-se das selas e de alguns objetos de carga à guisa de travesseiros. Abrimos nossas camas de campanha, acendemos algumas velas que tínhamos trazido e preparamos a ceia, que hoje também valeria por nosso almoço. Com nosso pessoal compartilhamos uma refeição de feijão preto (Phaseolus derasus), e assim pudemos provar este famoso cereal, um dos principais alimentos da população brasileira. Depois de cair a noite, quando quisemos buscar água do rio para os afazeres domésticos, o guia Frank relutou, visivelmente temeroso. Mencionou o risco de cairmos no rio. Na verdade, suspeitei que estivesse temendo algum tipo de vendeta no escuro. Nossas montarias, como todas as noites, permaneceram soltas lá fora e saíram sozinhas à procura de água e alimento. Os cuidados necessários à manutenção destes animais tinham se tornado bastante simples. À noite, quando chegávamos ao alojamento, ficavam amarrados em algum canto enquanto se afrouxavam um pouco os cinturões das selas. Meia hora mais tarde os empregados tiravam a sela e os arreios e deixavam os animais livres. Já na manhã seguinte, ) Ver também Hartt: Geology and Physical Geography of Brazil, p. 98.

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uma hora antes de reiniciar-se a marcha, agitavam uma peneira com milho para chamá-los de volta, quando eram então de novo amarrados. Enquanto as mulas se alimentavam com os focinhos afundados no embornal, realizava-se a necessária limpeza do pelo e recolocavam-se as selas. Hoje esta última parte não precisou ser feita, já que a viagem a cavalo por enquanto havia terminado. Lá pelas oito horas da manhã o termômetro já marcava 26,5º C. Finalmente, aí pelas nove horas, conseguimos transporte que nos levasse rio abaixo. Era uma pequena canoa escavada de um único tronco, em que viajamos sentados no fundo de madeira. O timoneiro, por seu lado, mantinha-se ereto e, com auxílio de um remo, conduzia a embarcação, que girava constantemente em meio ao turbilhão das águas e entre os penhascos. O rio aqui era bastante estreito; rochas de gnaisse no fundo atrapalhavam seu curso silencioso. Ambas as margens eram escarpadas e cobertas de mata. As margens eram formadas por depósitos de areia e cascalho, enquanto as colinas, localizadas mais ao longe, eram de gnaisse. Meia hora mais tarde aportamos no aldeamento Mutum, na íngreme margem direita. Mutum é um destes assentamentos criados pelo governo com a finalidade de trazer a civilização ao encontro dos silvícolas. Dentre as hordas bravias costumavam-se atrair alguns indivíduos que se deixavam reunir nestes pequenos povoados. Os lugarejos eram administrados por um diretor civil a quem estavam subordinados um missionário, um intérprete, por vezes um artífice, e mais alguns soldados para sua proteção. Teoricamente era essa a composição do pessoal destas administrações. Na realidade, não era comum a presença aí de missionários, devido à grande carência de sacerdotes no Brasil, de modo que, pouco tempo depois da fundação desses núcleos, os índios ficavam entregues à própria sorte. Assim, a tarefa de ministrar o ensino aos índios era repassada aos poucos soldados do lugar, em geral negros ou mestiços. Facilmente se pode avaliar a eficácia de tal trabalho. Os administradores e auxiliares de tais empreendimentos na floresta desabitada não estavam sujeitos a qualquer tipo de fiscalização, o que fazia com que nem sempre os recursos destinados pelo governo aos aldeamentos fossem utilizados para suas finalidades originais. Da mesma forma, o objetivo de criar aldeamentos como núcleos para onde aos poucos se pudessem atrair outros silvícolas estava sendo atingido de forma muito precária. Ainda que um ou outro indivíduo tenha sido atraído por seus irmãos semi-civilizados e tenha deixado a vida ao ar livre, a ninguém repugna ver um índio do povoado retornar à sua antiga vida absolutamente livre na floresta.72 ) O que ouvimos foi também relatado por Martius (Spix und Martius: Reise in Brasilien I, 378), Wied (Reise nach Brasilien II, 49), Tschudi (Reisen nach Südamerika II, 286) und Ehrenreich (Ueber die Botocudos der brasilianischen Provinzen Espiritu Santo und Minas Geraes 72

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Os poucos aldeamentos de hoje, todos sob administração civil, são um triste e insuficiente sucedâneo das missões jesuíticas outrora florescentes e que somente na província do Espírito Santo converteram ao cristianismo milhares e milhares de indígenas, abrindo-lhes o caminho para a civilização.73 A localidade de Mutum, onde deveríamos pessoalmente coletar dados sobre esta experiência estatal com missões catequistas, não se encontra em condições mais favoráveis que outros aldeamentos sobre os quais ouvimos ou lemos relatos. Tudo é coordenado por um administrador ou diretor de ascendência portuguesa, que atualmente se encontra ausente, assistido por um intérprete branco com uma perna doente, que na infância viveu alguns anos entre os botocudos e parece dominar bem a língua, por dois ou três soldados negros ou mulatos e por um marceneiro que há anos deveria ter construído uma casa para os botocudos semi-civilizados. Mas, apesar da dotação anual de recursos em torno de alguns milhares de mil réis, não realizou nada a não ser o telhado e parte de uma pequena oficina. Não há missionários. A capela mais próxima fica em Guandu, a uma boa distância rio acima, e o sacerdote mais próximo está no Queimado, por onde passamos há cinco dias. Assim estas pessoas, como os demais moradores da região do rio Doce, muitas vezes ficam um ou dois anos sem qualquer acesso à assistência espiritual. Esta assistência religiosa deficiente é semelhante à que encontramos na Amazônia, onde durante anos crianças ficam sem batismo e casais sem casamento religioso, e muitos moribundos vêm a falecer sem o consolo de sua sagrada religião. A igreja católica no Brasil é muito pobre e totalmente dependente do Estado, que, de sua parte, não investe recursos significativos em assistência religiosa aos súditos. Isto explica o aspecto empobrecido de muitas igrejas e, devido à baixa remuneração dos sacerdotes, com a qual mal podem viver, a falta de interesse pela vida religiosa.74 Os brancos e os negros de Mutum moram na única casa existente na margem direita do rio, cerca de 5 metros acima do nível da água, e que tem apenas dois cômodos. O cavalheiro que nos acompanhava e os guias foram acomodados nesta casa, que mais poderia ser chamada de cabana. Nós as duas senhoras imediatamente armamos nossa barraca bem em frente à casa. Depois de um legítimo pequeno-almoço brasileiro, à base de farinha e de carne de veado [Zeitschrift für Ethnologie XIX, 36]). 73 ) Wappäus: Kaiserreich Brasilien 1714, 1715. — Ver também Spix e Martius: Reise etc. III, 927 e ss., Wied l. c. II, 60. Halfeld e von Tschudi: Minas Geraes (Petermann’s Geographische Mittheilungen. Ergänzungsheft IX, p. 19). Ehrenreich: Die Eintheilung und Verbreitung der Völkerstämme Brasiliens nach dem gegenwärtigen Stand unserer Kenntnisse. (Petermann’s Mittheilungen XXXVII, 81, 82). 74 ) Ver neste aspecto também Canstatt: Brasilien. Land und Leute, p. 188.


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assada,75 seguimos de canoa para a margem esquerda do rio. Esta área pertence aos botocudos bravios e ali também os índios do aldeamento costumam passar o dia. Ao todo encontramos mais de vinte homens, mulheres e crianças em sua cabana inacabada e sem divisórias. O tipo mongol podia inequivocamente ser identificado na maioria dos presentes. Todos apresentavam maior ou menor protuberância maxilar, boca grande, lábios significativamente grossos e cabelo liso e negro como as penas de um corvo. A maioria apresentava um afundamento ) Nesta região, um ou dois tipos de veados, Coassus rufus F Cuv. e talvez Blastocerus paludosus Desm., este último o maior dos veados brasileiros, parecem ser encontrados com bastante frequência. 75

Nosso acampamento no rio Doce.

(Desenho de E. Berninger a partir de fotografia feita no local.)

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da asa do nariz e em muitos as pálpebras tortas chamavam a atenção. A cor da pele variava de indivíduo para indivíduo. Alguns tinham uma cor amarelada, já outros uma tonalidade parda, porém, no geral, predominava a cor clara. Já a barba dos homens se resumia a poucos pelos nos cantos da boca e abaixo do queixo. No que concerne à característica pessoal do botocudo selvagem de cortar o cabelo em forma de calota, algumas mulheres usavam uma forma medieval de corte de cabelo aparado ao redor da cabeça. Parecia uma grossa touca semelhante ao penteado dos índios do vale Yosemite, na Califórnia. Algumas das mulheres mais jovens haviam arrumado o cabelo de forma bem civilizada com a ajuda de um pente. Dentre as mulheres anteriormente descritas cujo aspecto exterior lembrava ainda mais os tempos primitivos havia uma em que eram notáveis o distanciamento entre os olhos e a expressão assustadoramente selvagem e colérica. Os enfeites característicos, os horríveis botoques de madeira nos lábios, não eram mais usados por nenhum desses botocudos, apesar de alguns homens ainda terem enormes aberturas nos lóbulos das orelhas, certamente para ali acomodarem largos discos de madeira em dias de festa. Durante as caminhadas pela selva estas argolas Mulher botocuda. de pele, pelo risco de se prende(Fotografia feita pela autora.) rem na vegetação, vão penduradas à parte superior da orelha. Com exceção de dois indivíduos, todos os botocudos estavam inteiramente vestidos, a maioria com um tipo de chita. Segundo soubemos, porém, tão logo retornavam à floresta jogavam fora esta vestimenta que lhes é tão desconfortável. Um velho, que chamava a atenção pela altura e magreza, e que tinha perdido a luz dos olhos, reduziu todo o vestuário a um avental curto. Na realidade, dentre todos os botocudos de Mutum, este nos deu a inequívoca impressão de ser o que mais se enquadrava nas características dos primitivos integrantes da tribo. Podia ser considerado um legítimo selvagem, e sua permanência no aldeamento se devia


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apenas ao seu precário estado de saúde. Assim, como fazem os botocudos bravios, portava uma faca sem bainha, semelhante à de um açougueiro, presa a um cinto de couro pendurado no pescoço que balançava sobre as costas desnudas. Estas facas bem afiadas constituem um dos maiores tesouros destes silvícolas que, ainda não influenciados pela civilização, perambulam pelas matas. Também

Velho botocudo.

(Fotografia feita pela autora.)

no preparo das refeições nosso velhinho preservara o antigo hábito da floresta: não usava água nem qualquer tipo de recipiente. Assava o peixe segurando-o com as mãos sobre um braseiro para em seguida consumi-lo — poder-se-ia dizer devorá-lo — praticamente cru. O velho era também o único que possuía

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um legítimo cacaiú,76 ou seja, uma mochila botocuda, dura de tanta sujeira, onde guardava todos os seus trapos, que me cedeu mediante pequena soma em dinheiro. As mulheres possuíam fusos primitivos,77 na parte superior constituídos de uma estreita madeirinha irregularmente entalhada e uma polia cônica, presumivelmente a tampa de um pote de sapucaia, a que se fixava a primeira parte.78 Estes fusos são utilizados pelas mulheres para fiar algodão por meio de uma técnica muito primitiva. Estas mulheres também dispõem de capangas,79 isto é, bolsas tecidas com fios de algodão, de trama muito fina, com listras brancas, amarelas e lilás, ou brancas, amarelas e azul-esverdeadas, que usam para guardar todo tipo de utensílios. Pela forma se assemelham às bolsas encontradas entre os índios michoacans do rio Columbia. Também como utensílio estes botocudos portavam uma bolsa80 feita de algodão, de formato alongado, com uma extremidade feita de bambu, e uma pequena cuia81 oval sem pintura, feita da casca do fruto do coité, mas de formato diferente do que usam os índios da Amazônia. As flechas82 que portavam no aldeamento se restringiam às do tipo utilizado na caça de grandes animais, como antas, veados e jaguares. Têm metro e meio de comprido, uma haste feita do entrenó do colmo da ubá, e uma ponta de 30 cm feita de um fragmento de tubo de bambu muito afiado. Têm duas penas indivisas, postas uma contra a outra, listradas de marrom-escuro e vermelho de asas da fêmea do mutum (Crax carunculata Temm.) Tanto as penas como as pontas são amarradas à haste por meio de uma tira de cipó. A ponta elíptica, endurecida no fogo, tem lados bem afilados e cortantes e extremidade aguçada como uma agulha, e em virtude de sua concavidade interna provoca ferimentos muito graves com grande perda de sangue. Este mesmo tipo de flecha83 também serve aos botocudos como arma de guerra. Ademais, possuem outros tipos de flechas, ou seja, flechas com ganchos84 e flechas destinadas à caça de aves,85 ambas atingindo metro e meio de comprimento. As primeiras, da mesma forma que as que têm ponta de bambu, são utilizadas na guerra e também na caça a animais de grande porte, e têm ponta de brejaúba, que, num dos lados, traz sete ) Ver tabela IV imagem n° 2. ) O texto original traz roh gearbeitete Spindeln, primitivo dispositivo de fiar. Nota do tradutor. 78 ) Ver tabela IV imagem n° 7. 79 ) Ver tabela IV imagem n° 6. 80 ) Ver tabela IV imagem n° 1. 81 ) Ver tabela IV imagem n° 5. 82 ) Ver tabela IV imagem n° 11. 83 ) Ver tabela IV imagem n° 10. 84 ) Ver tabela IV imagem n° 9. 85 ) Ver tabela IV imagem n° 8. 76 77


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pequenos ganchos farpados. O segundo tipo tem ponta rombuda feita a partir de uma lasca de madeira ou de um galho pequeno, tendo na extremidade farpas extraídas de galhos.86 As flechas deste segundo tipo servem para abater pássaros e pequenos animais e tendem a provocar menos lacerações do que contusões. Quando entramos na cabana ainda inacabada dos botocudos, aberta de todos os lados, a maioria destes semi-selvagens perambulava para lá e para cá, como se não tivessem com que se ocupar. Algumas mulheres teciam, usando os primitivos apetrechos descritos anteriormente, outras comiam um tipo de papa de milho preparada numa fogueira no chão da cabana. Este tipo de culinária, ao contrário do que usam os botocudos mais velhos, já se pode considerar um resultado das tentativas do governo de familiarizá-los com a agricultura. Um moinho ao lado da casa, também construído em beneficio deles, estava parado e ocioso; não chegara a ser utilizado ou então já se tornara inútil. Em todo caso, o cultivo do milho já representa um avanço em relação à maneira como os integrantes ainda bravios deste bando de botocudos costumam prover suas necessidades alimentares. Estes continuam, ano após ano, migrando pelas matas à procura de frutos silvestres para sua alimentação. Em função do próprio hábito migratório, é compreensível que praticamente não possuam choupanas, o que os põe em geral no mais baixo grau de desenvolvimento. Do mesmo modo, como nos foi dito no aldeamento, nem sequer vivem em grupos definidos, mas em comunidades. Portanto, num encontro com eles, há sempre o perigo de uma inesperada atitude de selvageria. Nas proximidades de Mutum, não muitos anos atrás, um colono brasileiro chegou a ser morto e devorado por eles.87 O bando de que se trata aqui, ao qual, como já foi referido, pertencem os botocudos semi-civilizados de Mutum, pertence ao grupo dos Nak-nanuks. Este grupo consiste numa série de bandos que vivem espalhados no Brasil até a latitude de 17º sul. À frente de cada uma destas pequenas comunidades encontra-se um cacique, cujo poder de liderança não costuma ser muito grande. Também os botocudos aldeados de Mutum possuem um líder deste tipo. Apesar de não ter o típico aspecto físico mongólico e de usar roupas europeias, o colar de sementes e as amplas aberturas nos lóbulos das orelhas, decerto feitas para acomodar os notórios discos de madeira, indicam sua linhagem. Consta que todos os botocudos semicivilizados daqui são cristãos. Entretanto, devido à sua carência de todo e qualquer 86 ) Flechas destes três modelos, bem como um arco trabalhado em madeira verde (ver tabela IV imagem n° 12), foram-nos fornecidas gentilmente pelo Senhor Von Schlözer, que no ano anterior, também em Mutum, as obtivera, por permuta, de um bando de índios selvagens. As penas de direcionamento fixadas nestas flechas, a julgar pela coloração preta e pelo brilho azul metálico, parecem ser originárias da Pipile jacutinga Spix. 87 ) Steains: An Exploration of the Rio Doce and its Northern Tributaries (Proceedings of the Royal Geographical Society X, 67).

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tipo de inspiração religiosa, questiono a qualidade de seu cristianismo. Alguns dentre eles falam um pouco de português ou pelo menos o entendem. Escutamos com interesse sua própria língua, na qual chama a atenção o som gutural das palavras. É totalmente diferente da língua dos tupis e de seus vizinhos goiatacás. O final de cada frase alonga-se num tom de canto, soando como se fosse uma pergunta. Nosso desejo de fotografar estas pessoas suscitou grandes dificuldades. Neste ponto seu comportamento era esquivo como o da maioria dos índios norte-americanos, e em especial das índias. Afinal alguns homens se deixaram fotografar individualmente. Porém, nenhuma mulher o fez. Por último consegui registrar em fotografia um grande grupo misto.88 Os botocudos daqui tinham bom aspecto e eram fortes, exceto uma jovem mãe que contraíra febre puerperal. Para os doentes, em especial os acometidos de tuberculose pulmonar, como era o caso desta jovem, os brasileiros brancos prescreveram escalda-pés, o que ela sem dúvida vem fazendo após o parto. Acresce que o hábito de tomar banho com os recém-nascidos em rios e lagos não é praxe somente entre as mulheres dos botocudos, mas também entre outras mulheres indígenas.89 Voltamos à margem direita do rio para comer nosso despretensioso Cacique dos botocudos de Mutum. almoço. Pela primeira vez íamos de(Fotografia feita pela autora.) gustar um assado de papagaio. Estava sendo preparado com dois camutangas (Chrysotis rhodocorytha Salvad.), grandes e esplêndidos papagaios de asas curtas abatidos por um dos soldados negros e que vimos serem trazidos até o 88 ) Nesta fotografia, em que se deixaram ficar na periferia, os homens aparecem de forma tão pouco nítida que não foi possível identificar suas características típicas. 89 ) Rey: Les Botocudos, p. 73. — Mello Moraes: Revista da Exposição Anthropologica brazileira, p. 54, 105. Barboza Rodrigues: Pacificação dos Crichanás, p. 158. — Wallace: Travels on the Amazonas and Rio Negro, p. 496. — Ver também Martius: Beiträge zur Ethnographie etc. I, 599. Spix e Martius: Reise in Brasilien I, 381, e Kupfer: Die Cayapoindianer in der Provinz Matto-Grosso (Zeitschrift der Gesellschaft für Erdkunde zu Berlin, V, 1870, p. 244).


Botocudos.

(Fotografia feita pela autora.)

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aldeamento na manhã de hoje. Estes papagaios de cor verde-grama têm fronte vermelho-escarlate, bico amarelo, e belas faces e queixo de um azul celeste. O habitat deste tipo de psitacídeo está restrito à região entre o Espírito Santo e Rio de Janeiro. Raramente se levam aves desta espécie para a Europa. A carne que nos foi servida, de coloração escura, era muito dura e tinha o mesmo sabor de qualquer outro tipo de ave silvestre. Ao anoitecer os botocudos do aldeamento começaram a se reunir no ponto onde estávamos acampados, prepararam uma fogueira em frente à nossa barraca e, enquanto ia escurecendo, passaram a dançar uma dança típica. No início participaram apenas as mulheres, cada uma apoiando os braços sobre os ombros das vizinhas à direita e à esquerda, de forma a criar uma corrente, isto é, um círculo. Os braços ficaram entrelaçados. Assim, formada a corrente, dançavam um pouco inclinadas para o lado, erguendo um pouco os calcanhares e movendo-se devagar para a esquerda. Um canto rítmico, nasalado, de poucos tons, acompanhava a dança. A letra consistia numa sequência de palavras como “kalani ahá” e, segundo nos explicaram, relatavam os acontecimentos do dia. Hoje essa canção improvisada relatava o fato de terem vindo para a dança de roda e recebido café e assim por diante. Mais tarde também os homens entraram na dança, mas posicionaram-se todos um ao lado do outro. Os movimentos eram também um pouco diferente dos das mulheres. A perna direita se movia para trás e a perna direita para frente, ao mesmo tempo em que erguiam o quadril direito e, ao movê-lo, mantinham a perna do mesmo lado relativamente imóvel. A cada movimento do quadril direito, o joelho esquerdo, apesar de já levemente curvado, respondia com um leve movimento para frente. Os pés, que nunca se afastavam do chão, dobravam-se a meio para assim permitir um avanço, ou melhor, um deslizamento para frente. Repetiam-se os mesmos movimentos, sem exceção, para o lado esquerdo. Ora um, ora outro, dos componentes da roda cantava em voz alta, com voz ora mais aguda, ora mais grave. Um deles latia como cão ou grunhia como porco. Talvez fosse a representação de um episódio de caça. Durante horas estas pessoas dançaram com todo entusiasmo. Crianças participaram também da monótona diversão. A estranha encenação lembrava por vezes um exercício religioso, particularmente um choro de dervixes, embora deles se diferenciem os botocudos por manterem imóvel a parte superior do tronco e, sobretudo, por não moverem todo o corpo. Assim, enquanto uns participavam da dança, outros se mantinham agachados no chão. Até mesmo o velhinho quase nu estava ali, sentado no chão, as costas tão curvadas que os joelhos quase tocavam o queixo. Crianças corriam por entre os diferentes grupos, e um menino de ar suspeito passou a examinar as bolsas alheias. A estes homens, que tínhamos visto à tarde no outro lado do rio, se juntaram outros, que retornavam dos afazeres do dia. Um dentre eles, já mais velho, parecia-se


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muito com um índio que tínhamos visto, pintado de azul, na margem do rio Solimões no dia 12 de julho passado. Também alguns mais jovens lembravam os marinheiros peruanos de origem indígena que vimos trabalhando no navio Pará durante a viagem pelo Amazonas. O mais interessante de todos os botocudos, sem dúvida, era um jovem que, apesar de estar vivendo no aldeamento e, portanto, de estar devidamente vestido, mais parecia um selvagem absolutamente típico, não havendo outro igual. Até então, exceto por um curto espaço de tempo, vivera com seu grupo na floresta. Há poucos dias apareceu no aldeamento e, como se suspeitava, só para convencer a irmã, que ali vivia, a retornar com ele para a vida livre e independente na mata. Os cabelos cor de piche lhe pendiam desordenados sobre os olhos e, quando o intérprete o interpelava, sacudia a espessa cabeleira, que drapejava confusa para todos os lados, e emitia sons inarticulados e selvagens. Ao mesmo tempo atendeu ao chamado de um dos camaradas. Seus movimentos eram bruscos, impetuosos e imprevisíveis. De súbito, como que tomado de raiva, levantou-se de um salto e precipitou-se para fora da cabana, quase derrubando ao solo minha companheira de viagem, e desapareceu na escuridão. Por ele se soube que cerca de trezentos botocudos estavam se aproximando de Mutum e que deveriam chegar no dia de amanhã. A princípio esta gente indisciplinada só deveria chegar dentro de algumas semanas. Como podíamos esperar no máximo até amanhã, este jovem selvagem, mediante promessa de fornecimento de cachaça, fora convencido a procurar seus companheiros de bando e trazê-los mais cedo ao aldeamento. Às nove horas da noite, os botocudos que não podiam pernoitar na margem direita do rio foram levados para seu setor no outro lado. Com isto terminou esta encenação que, como característica da vida indígena, nada deixou a desejar. Inesquecíveis nos serão estas imagens dos grupos e das estranhas figuras dançando ou acocoradas na escuridão ao redor da fogueira, cujos sons selvagens e cantos monótonos, neste local cercado de floresta, ousavam sobrepor-se ao murmúrio das águas do rio. Mutum. Domingo, 2 de setembro. Ontem à noite, quando os cânticos dos botocudos já haviam cessado e já nos acomodávamos para dormir, ouvimos o chilrear excepcionalmente alto de um grilo dentro da barraca. Ao procurar pelo cantor, descobri um Conocephalus irroratus Burm., ao que parece, um grilo do mato de cor pouco atraente, com cerca de 4 cm de comprimento, característico do Brasil. Em vez de ser-lhe grata pela canção de ninar, apaguei-lhe a luz da vida e o acrescentei à minha coleção entomológica. Agora, finalmente, esperávamos alcançar o ansiado descanso noturno. Porém, isto não aconteceu. Porcos começaram a grunhir ao redor da barraca, talvez agitados pelo estranho obstáculo erigido no seu pátio de recreio. Também apareceram cães e, já ao raiar do dia, todo o mundo dos animais domésticos

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passou a se rebelar. Galinhas cacarejavam, ovelhas baliam, cabritos berravam, e nossas mulas passaram a galope, saltando por cima das cordas da barraca, a ponto de recearmos vê-la de repente derrubada por um salto em falso. As peças de roupa que tínhamos pendurado no interior da barraca amanheceram tão úmidas como se recém-retiradas da água. Isso logo se explicou, pois lá fora logo nos deparamos com a neblina que cobria todo o vale. Às seis e meia da manhã tínhamos na barraca uma temperatura de 21,5º C. No decorrer da tarde deveria elevar-se até os 35º C. De manhã fomos de canoa rio acima até uma ilha na tentativa de apanhar veados (Coassus rufus) ou antas. Porém, como nenhum apareceu, tivemos que retornar sem cumprir nosso objetivo. Também não encontramos as capivaras (Hydrochoerus Capybara Erxl.), de que soubéramos existirem muitos exemplares por aqui, e apesar de lhes termos visto os rastros por toda a ilha. Em vez deles avistamos, na margem da mata, uma bela pomba de um vermelho cinza-escuro e que podia ser uma Leptopila reichenbachi Pelz. Os anus (Crotophaga ani L.), cuculídeos pretos tão comuns aqui como entre nós os corvos, viviam em multidão nas áreas desprovidas de mata. Em grandes círculos, de manhã e no começo da noite, um pequeno colibri escuro esvoaçava ao redor da barraca, com suas asas pontudas, que mantinha um pouco erguidas enquanto voava horizontalmente agitando a cauda. Esta charmosa avezinha, que à primeira vista tomei por um inseto, me pareceu um dos Hylocharis cyanea Vieill., muito comum na mata Atlântica. No campo, que se estendia da casa à margem do rio, brincavam ao sol inúmeras Catagramma Hydaspes Dru. e outras borboletas. Consegui capturar uma Sais Rosalia Cram., isto é, um exemplar dessa variedade 2 que tem as asas da frente aveludadas e de ponta preta, como a que Bates coletou no alto Amazonas. Além dela capturei um Aganisthos Odius Fabr., uma ninfalídea de bom tamanho, encontradiça desde o Brasil até a Flórida, que tinha o lado superior da asa marrom escuro e claro e o inferior marrom lilás. A flora não costuma apresentar grande variedade neste lugar. Portanto, coletei apenas amostras de Ageratum conyzoides L., uma compósita anual de flores vermelhas ou brancas, do tipo erva rasteira, e de Pterocaulon virgatum DC., bonita planta rasteira de folhas delicadas, amplamente encontrada em toda a América do Sul. Esta manhã não foi dedicada apenas a estudos zoológicos e botânicos. A redução de nossa bagagem ao mínino necessário levou-nos até o rio para lavar roupas, como outrora o fez a lendária Nausícaa,90 filha do rei da Feácia. 90 ) Segundo a lenda, Nausícaa e suas servas costumavam lavar suas roupas à beira-mar. Ulisses, naufragado na costa da Feácia, emergiu da floresta, completamente nu, implorando ajuda a Nausícaa. Todas, assustadas, saíram correndo, enquanto ela forneceu a Ulisses alguma roupa para se cobrir e depois o conduziu até às proximidades da cidade. Nota do tradutor.


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Os botocudos do outro lado do rio haviam retornado bem cedo, instalandose em frente à nossa barraca. Ali mesmo começaram a torrar seu café. Usavam para tanto uma grande panela de metal, em que também adicionavam uma quantidade de açúcar antes de terminada a torrefação, para que o açúcar pudesse torrar junto com o café. Este procedimento, que parece tornar especialmente saboroso o café, envolvia também os brasileiros não indígenas daqui. Concluída a torrefação do café, punham-no ao sol para que o açúcar penetrasse melhor nos grãos. Para o almoço a cozinheira do diretor novamente preparou um assado de veado e papagaio. Porém, como da primeira vez, também hoje não conseguimos sentir sabor neste preparado. No decorrer do dia foram chegando mais botocudos, entre eles um de extrema feiúra que se destacava pela basta cabeleira em ambos os lados da cabeça. O jovem índio que deveria buscar os companheiros na selva acabou dormindo, devido a uma bebedeira de cachaça, até às 10 horas, quando saiu em sua canoa e depois não mais foi visto. À tarde seguimos de canoa rio abaixo por cerca de meia hora ao longo do barranco coberto de capim (Gynerium parviflorum Nees ab Meninas botocudas. Esenbeck). Queríamos localizar as (Fotografia feita pela autora.) cabanas, agora abandonadas, que os botocudos de Mutum haviam feito na margem direita do rio, depois que foram, seis anos antes, expulsos de um aldeamento já bem desenvolvido no outro lado do rio Doce por seus companheiros étnicos ainda selvagens. As paredes da grande cabana eram formadas de ramos irregulares de árvores espetados paralelamente no chão um ao lado do outro; pedaços de casca de árvore dispostos horizontalmente por cima formavam o forro inacabado. Luz e ar entravam tanto por cima como pelos lados. Um tipo de bancada para utensílios também foi feita de galhos de árvores fixados de modo irregular. Neste barracão de pau-a-pique encontramos um cacaiú, alguns

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recipientes em forma de garrafa feitos do fruto do Lagenaria vulgaris Ser.91 e um pouco de sal guardado cuidadosamente numa bolsa feita de folhas torcidas. Passamos o final do dia no novo acampamento dos índios aldeados de Mutum, agora no lado esquerdo do rio. Este bando de indígenas semi-civilizados, que antes do ataque de 1882 teria tido cerca de 150 integrantes, estava agora reduzido a quarenta indivíduos. Negociamos flechas, capangas, fusos e recipientes feitos de cascas de fruta. Por cada objeto tivemos que pagar a mesma soma em dinheiro, o que provava que estas pessoas não têm noção do valor real do dinheiro. Por natureza, como todos os índios brasileiros que pudemos ver até agora, eram comedidos, elegantemente contidos, e sérios a ponto de serem melancólicos. À noite voltamos muito frustrados à barraca. O jovem selvagem enviado para buscar os companheiros não tinha voltado, portanto os botocudos bravios não apareceram. Assim tivemos que desistir deste encontro altamente significativo, pois amanhã é o dia em que iniciaremos a viagem de retorno. Não queremos perder o navio em que viajaremos de volta ao Rio, e que raramente toca no porto de Vitória. Perder o vapor para esperar Meninas botocudas. mais algum tempo pelos botocudos (Fotografia feita pela autora.) estava fora de cogitação, já que não se podia ter certeza da chegada dos silvícolas nos próximos dias, nem mesmo se eles chegariam algum dia. Esta situação mostra que não se tratava aqui de índios submetidos às leis ou aos desejos alheios. Passamos por situações incompreensíveis para nós, quando, confrontados por outros valores, nos tornávamos reféns das exigências culturais de nossa vida regrada. ) Ver tabela IV imagens n° 3 e 4.

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Mutum  —  Cabana Soares. Segunda-feira, 3 de setembro. O temporal desta noite, que nos ameaçava encharcar até a pele na barraca, seguiu adiante após uma generosa pancada de chuva. Depois das três e meia da manhã começou a movimentação no acampamento. Porém, até que fosse feito o café e, depois, lavada a louça, desarmada a barraca, dobradas as camas de campanha e tudo posto em condições de transporte, decorreu um bom tempo. O relógio já indicava seis horas quando saímos de Mutum numa canoa, rio acima. Antes do embarque um cacique botocudo do outro lado do rio veio nos oferecer à venda algumas flechas de caça. Deixamos para trás a paisagem de Mutum, com as altas e íngremes margens do rio Doce cobertas de mata, as ilhas cheias de vegetação e as modestas serras do lado norte. Não era região que se pudesse chamar atraente, faltando-lhe também a exuberante vegetação do baixo Amazonas. Incontáveis rochas, de um brilho metálico avermelhado, lembrando cobre, e de bordas afiadas e superfície lisa, podiam ser vistas no leito do rio durante o trajeto até a localidade de Tatu. À vista destes interessantes penhascos, que se assemelhavam a grandes cristais, uma súbita gritaria de macacos se fez ouvir na selva da margem esquerda do rio. Estes macacos, os sauás (Callithrix personata Geoffr.), que vivem na região da mata Atlântica ao norte do Rio de Janeiro, latiam, assobiavam e gritavam. Um dos pequenos companheiros marrom-escuros, talvez uma fêmea a julgar pela cor, foi subindo com agilidade pelo tronco de uma árvore. Ao chegarmos a Tatu, soubemos que, em três dias de viagem de canoa rio abaixo, poderíamos chegar à foz do rio Doce para alcançar um pequeno vapor que nos levaria a tempo até Vitória. Substituir uma viagem a cavalo até a capital do Espírito Santo por uma viagem pelo rio, apesar de desconhecida, pareceu atraente. Portanto decidimos enviar para Vitória por terra a barraca e outros equipamentos dispensáveis sob os cuidados de nossos guias. Munidos das camas de campanha e de parte das provisões embarcamos na canoa de um fazendeiro que estava viajando rio abaixo pelo vale. Como suprimentos foi-nos fornecida na feitoria Tatu certa quantidade de pão branco, duro como pedra, que devia ter sido feito há semanas. Naturalmente, não se encontram padarias nesta região esparsamente habitada senão à distância de muitos dias de viagem. Assim, cada qual providencia sua alimentação da melhor maneira que pode. Às 11 horas estávamos de novo a caminho de Mutum, onde logo chegamos. Neste meio tempo o jovem silvícola retornara. Tinha estado no rio São João, mas não encontrara os companheiros de bando. Ou, quem sabe, nem sequer os procurara e, em vez disto, se tenha entregado ao prazer de pescar. Os índios, além de inconfiáveis, são contumazes mentirosos. Em Mutum, a tripulação do barco finalmente ficou completa. Ou seja, um timoneiro e três remadores. O primeiro era um branco. Dentre os remadores

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estavam um dos soldados pretos do aldeamento e dois botocudos. Um destes era de Mutum e o outro de Riacho, na região dos lagos a leste, nas vizinhanças do mar. Este último chamava a atenção pela pele mais escura e pela boca excepcionalmente larga. Pouco depois do meio-dia, saindo de Mutum, iniciamos nosso novo percurso. Silenciosamente, levada pela correnteza e sem grande esforço de nosso pessoal, a canoa seguiu deslizando rio abaixo. Mesmo assim, para o jovem índio do aldeamento, devido à inércia própria de sua gente, o trabalho parecia ser muito árduo, de modo que amiúde precisavam lembrá-lo de remar. Apesar de não ter nascido na selva, ainda era considerado um bugre. Por aqui, tanto o índio selvagem como o semi-civilizado são assim considerados.92 Em toda a sua maneira de ser nosso bugre parecia mostrar características do indígena ainda bravio. E os companheiros de barco não lhe poupavam provocações, dizendo que, do mesmo modo que seus camaradas da floresta, estaria acostumado a devorar jacarés e grandes sapos. Muitas vezes, durante a descida pelo vale silencioso, fomos saudados pela algazarra dos papagaios, cujos gritos provinham das matas de ambas as margens do rio. Além disto, o grito melancólico de um jaó (Crypturus noctivagus Wied), ave bastante comum por aqui, ecoava pelo matagal. Passamos por um acampamento de botocudos semi-civilizados, e logo avistamos uma árvore quase toda desfolhada, ocupada de vez em quando por Ara nobilis L. Trata-se de uma espécie de papagaio verde de médio porte, tendo na cauda penas extremamente longas. A foz do rio São João, insignificante afluente da margem norte, só pôde ser identificada graças a uma vegetação mais baixa. Uma canoa tripulada por um único botocudo veio a nosso encontro. Este índio semi-selvagem estava vestido apenas com uma calça e ostentava uma cabeleira de corte circular, à moda indígena ou dos botocudos pouco civilizados, e que, a partir do vértice, caía de modo uniforme para todos os lados. Este indescritível e luxuriante corte arredondado de cabelo negro, como todas as outras cabeleiras vistas entre os botocudos, mais me parecia uma vívida touca de pele. Ao meio-dia a temperatura do rio Doce já chegava aos 25º C. Duas horas mais tarde já se registravam 27º C. Embaixo do toldo de folhas de coqueiro ainda dava para suportar, já que soprava uma brisa, mas mesmo assim estava longe de ser agradável. Viajávamos sentados no fundo da canoa sobre um tapete feito de folhas de coqueiro. Colchões como os que tivemos depois de sair de 92 ) Neste sentido ver também Halfeld e von Tschudi: Minas Geraes (Petermann’s Geographische Mittheilungen, Ergänzungsheft IX, p. 17, nota 1 e Ehrenreich: Ueber die Botokudos der brasilianischen Provinzen Espiritu Santo und Minas Geraes (Zeitschrift für Ethnologie XIX, p. 5, 7, 13.


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Vitória não se encontram nesta selva. Assim, nossas pernas e braços ficaram bastante entorpecidos, condição que nos próximos dias certamente aumentaria de intensidade. As margens do rio cobriam-se quase ininterruptamente de árvores entre as quais praticamente não havia palmeiras, e, de tempos em tempos, podíamos ver ali pequenas cabanas de barro. Aos poucos, a vegetação até agora pouco atraente foi se tornando mais bonita e mais no estilo da hileia amazônica. Podiam-se ver arbustos de galhos pendentes, trepadeiras, e árvores de formas fantásticas e recobertas de epífitas. Da região dos botocudos selvagens, na mata à esquerda do rio, elevava-se uma coluna de fumaça. Ali deviam estar agora os selvagens outro dia aguardados com tanta expectativa — mas o que nos adiantava isto agora? Em primeiro lugar, não sabíamos se conseguiríamos, com nossos facões, abrir na espessa mata uma trilha até eles. Em segundo lugar, não poderíamos simplesmente avançar até lá e surgir subitamente diante deles, pois não estavam preparados para um encontro conosco. Por certo uma bem-endereçada flecha seria a resposta à nossa visita inesperada — assim, de coração pesado, tivemos que seguir viagem, contemplando com frustração a fumaça que denunciava seu acampamento. Chegamos à confluência do rio Santa Joana, que há poucos dias atravessáramos em noite escura. Em sua longa barra, que se estendia para dentro do rio Doce, batíamos com a canoa no fundo. O panorama visto daqui, rio acima, era fascinante. Longas colinas presumivelmente de gnaisse, cobertas de mata, compunham ao longe um belo quadro de tons cinzentos. Já em primeiro plano, margens de vegetação pitoresca e ilhas recobertas de mata pareciam emergir das águas. Muitas árvores, sobretudo espécies de figueira (Ficeae), tendo já soltado a folhagem, pareciam aguardar nova floração. Certamente terão que aguardar com paciência mais um mês, pois em outubro, quando tem início a estação das chuvas, todas devem ressurgir com seu verde renovado. À medida que o rio se alargava, iam surgindo muitas ilhas. Algumas araras, aos gritos, passaram voando sobre nossas cabeças. Cruzamos a foz do rio Santa Maria, que, assim como o Santa Joana, desemboca do lado sul. Com o fazendeiro Senhor Milagre, que viajava conosco, desenvolvemos uma conversa interessante sobre o relacionamento entre os colonos e os botocudos bravios. Este velho senhor tinha amargas queixas do governo por se posicionar sempre do lado dos silvícolas. Disse que era estritamente proibido aos brancos atacar os botocudos. Estes, porém, o que me pareceu inacreditável, podiam impunemente assaltar as colônias e massacrar os habitantes. Em sua opinião devia ser permitido abater os botocudos como se faz com os animais selvagens. Esta declaração, vindo de um dos mais respeitados fazendeiros destas paragens, me serviu de parâmetro para definir a opinião corrente e o sentimento

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geral aqui em relação aos perigosos indígenas.93 Entretanto, não me foi possível compartilhar o ponto de vista do Senhor Milagre. Supõe-se que outrora o próprio governo teria conduzido uma cruel e impiedosa guerra de extermínio contra os botocudos relativamente desprotegidos, não se tendo furtado nem mesmo a distribuir-lhes roupas infectadas de escarlatina e de empola, com a finalidade de tirá-los do caminho. Neste sentido, com alegria e satisfação, as atuais medidas filantrópicas a favor dos legítimos donos das terras devem ser saudadas como atos de justiça. Para isto é preciso não esquecer que a adoção de um relacionamento mais amistoso ou mais hostil com os silvícolas depende, sobretudo, dos brancos. E se estes seres da natureza de per si amáveis são temidos agora, grande parte da causa deve ser imputada aos próprios colonizadores.94 Portanto o governo não tem nenhuma obrigação de retaliar a hostilidade dos botocudos gerada pelo comportamento dos brancos. Já estava escurecendo quando alcançamos a barra do rio Pancas, um dos afluentes do lado norte, em cujo curso inicial também havia um grande acampamento de botocudos bravios. Já na margem oposta da barra situava-se a choupana do negro Soares, onde deveríamos encontrar abrigo para a noite. Entretanto, o nível de água do rio Doce estava tão baixo que durante meia hora, sem sucesso, tentou-se atracar a canoa na margem. Finalmente, não havendo outra escolha, atracamos num banco de areia. Daí uma canoa menor nos levou até a margem. Era uma canoa sem bancos, com água dentro até a metade, de modo que foi preciso ficarmos sentados na borda estreita, preocupados a todo instante em não perder o equilíbrio e cair de costas dentro d’água. Neste momento já estava totalmente escuro e, tropeçando na vegetação rasteira, seguimos pela trilha desconhecida até a cabana. Esta, habitada apenas pelo dono, mostrou ser extremamente pobre. Tratava-se de um barraco sem porta nem janela, com paredes de pau-a-pique cheias de buracos e uma leve cobertura de palha. Vento e chuva, e até mesmo um gato doméstico, tinham livre acesso ao interior pelos buracos das paredes. Cozinhamos a refeição da noite, abrimos as camas de campanha e nos recolhemos para descansar. O grito metálico do ferreiro (Hyla faber Wied) ecoava sem cessar pelo silêncio da noite. A chuva nos atingia através da cobertura de palha de coqueiro e podíamos ouvir todo e qualquer movimento em todo o barraco. Pouco conseguimos dormir durante a noite. 93 ) Ehrenreich (Ueber die etc. Zeitschrift etc. XIX, p. 5) até relata que houve uma discussão sobre a conveniência de eliminar os selvagens por meio de bebida alcoólica envenenada. 94 ) Neste sentido ver também Halfeld e von Tschudi: Minas Geraes (Petermann’s Geograph. Mittheil. Ergänzungsheft IX, p. 19). — Wied: Reise nach Brasilien II, p. 16 e 63. — Ehrenreich: Ueber die etc. Zeitschrift etc. XIX, 4) — Barboza Rodrigues: Rio Jauapery. Pacificação dos Crichanás, 126 e ss. — Schanz: Das heutige Brasilien, 205. — Sobre a boa natureza dos botocudos, ver Hartt: Geology and Geography etc. 602.


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Cabana Soares  —  Linhares. Terça-feira, 4 de setembro. Não foi difícil despedirmo-nos de nosso primitivo alojamento, com seus dois únicos e acanhados cômodos sem qualquer tipo de mobília. Às 6:45 reiniciamos a viagem rio abaixo. Havia muita neblina sobre o rio. Em função disto toda a paisagem mostrava-se envolta na bela e aconchegante luz do alvorecer. Sobre amplas e silenciosas águas, azul-prateadas, sem ruído, o barco para o norte95 nos guia. A alvorada penetra nos salões entre as árvores e a noite fria e escura da selva se esgueira. Uma suave e leve neblina prateada se eleva E, ao redor, o orvalho na verde vegetação brilha. Ao amanhecer na mata, a vida celebra seu acordar com uma leve e morna brisa.96

Devemos agradecer esta neblina mais rala à ocorrência este ano de uma maior precipitação de chuva, o que não é comum nesta época. Em geral, nesta época a neblina sobre o rio Doce pela manhã costuma ser tão densa que a visibilidade mal chega a cem pés de distância. Ao longo da manhã chegavam-nos aos atentos ouvidos alguns pios de pássaros vindos da mata; só com a aproximação do meio-dia silenciou-se um pouco o canto no mundo das aves. Pequenos papagaios seguiam sobre o rio, com sua gritaria irritante aos ouvidos. Um pavão (Pyroderus scutatus Shaw) vozeou na mata densa e um jaó (Crypturus noctivagus Wied) passou a emitir seu chamado esganiçado. Anus pretos97 (Crotophaga) revoavam em bandos à beira das matas. Muitas andorinhas, talvez as Tachycineta albiventris Bodd., bastante comuns nas margens dos rios da floresta central do Brasil, voavam bem próximo à superfície da água. Bem visível numa árvore na margem estava um Rhamphastos dicolorus Bodd., tucano de peito e ventre vermelhos, com dorso preto e poderoso bico de quase 10 cm de comprimento. Na mesma árvore avistamos uma pomba com plumagem de um misto de vermelho, cinza e marrom, certamente uma Leptopila reichenbachi Pelz., bastante comum na mata Atlântica. Não vimos sinal das muitas capivaras e antas que dizem existir às margens do rio Doce. ) Nossa canoa seguia em direção leste. ) Extraído de “Bom dia! Na Selva” (Imperador Maximiliano do México, Da minha vida VII, p. 269). 97 ) A autora empregou o termo Madenfresser, mas pela referência presume-se que se trate do anu-preto (Crotophaga ani). Nota do tradutor. 95 96

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A selva que ininterrupta margeia o rio de ambos os lados não apresentava um verde uniforme. A chegada da primavera com sua indescritível variedade de cores realçava-lhe todo o encanto. Em plena florescência erguiam-se os ipês amarelos com suas flores em forma de trompete (Tecoma speciosa DC.), alternando-se com árvores delgadas de flores vermelho-escuras, talvez alguma Machaeria.98 Convolvuláceas em forma de arbustos, enfeitadas de róseas coroas de flores, combinavam suavemente com o cinza da Tillandsia usneoides L., que em centenas de exemplares formavam um verdadeiro trançado em torno dos troncos das árvores. As brácteas de Bougainvillea spectabilis Willd., um tipo de cipó, que pudemos avistar por todo canto no vale do rio Doce, formavam, ora lá, ora cá, um denso trançado vermelho azulado sobre as copas das árvores ou dos arbustos. Um arbusto de flores brancas, presumivelmente uma begônia, sobressaía na mata. Cecrópias99 estendiam seus galhos horizontais por entre as linhas mil vezes sinuosas da folhagem da mata. Ao longo da margem, como tínhamos visto na Amazônia, verdadeiros emaranhados de trepadeiras formavam este panejamento de folhas, em plantas que pendiam para dentro do leito do rio. Nossa língua acaba revelando-se muito pobre para descrever tamanha exuberância da natureza. Subitamente a mata da margem se abriu e pudemos ver uma cabana indígena, constituída praticamente de uma pequena cobertura, sob a qual vimos uma mulher botocuda bem nutrida, de bastos cabelos negros. Pouco tempo depois nosso botocudo prognata da região de Riacho desembarcou, certamente porque dali era menor a distância até sua moradia. Assim restounos apenas um índio, o bugre de Mutum. Redirecionamos a canoa em sentido contrário à temida selva da margem norte e nos deparamos com vinte ou trinta palmeiras pequenas, magras e feias. Nunca tínhamos visto na margem do rio Doce tantas palmeiras em tão pequeno espaço. Às nove da manhã a canoa se deteve na margem sul, na fazenda Santo Antônio, de propriedade de um prussiano. Depois de cinco dias na mata selvagem, enfim reencontrávamos uma verdadeira fazenda e com ela um pouco mais de civilização. Neste meio tempo nossa aparência exterior também se tornara pouco civilizada. Pois, em função destes nove dias de viagem pela selva, a cavalo e em canoa, enfrentando vento e chuva, tivemos que fazer sozinhos todo o nosso trabalho mais grosseiro, e nem sequer foi possível trocar de roupa. Assim, nossas vestimentas foram assimilando as mais variadas cores, de modo que, a julgar 98 ) Talvez fossem folhas novas o que de longe presumi serem flores, provavelmente das begônias já citadas por Wied (Reise nach Brasilien I, 347) e registradas nesta época do ano no rio Jequitinhonha como tapicurus. 99 ) Cecropia polystachya, também conhecida como sambaíba-do-norte ou embaúbada-mata. Nota do tradutor.


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por nossa aparência, dificilmente se teria tido qualquer consideração por nós em ambiente urbano. À falta de outro recurso, usamos até aguardente de canade-açúcar na limpeza das roupas, mas até essa tentativa se mostrou ineficaz. Apesar de nossa aparência pouco recomendável, nossos conterrâneos da fazenda nos brindaram com uma cordial recepção. Além deste prussiano, aqui também viviam sua irmã e o marido, originário de Hamburgo. A casa se caracterizava pela limpeza e em tudo nos lembrava a pátria. A zelosa dona de casa nos preparou uma saborosa refeição que incluía um prato típico em que se destacam a carne de paca e o tubérculo de inhame. Este tubérculo vem a ser a raiz do inhame (Dioscorea alata L.) que, sendo produto saboroso, é muito cultivado no Brasil. Quanto às pacas (Coelogenys Paca L.), cuja carne já experimentáramos na Amazônia,100 pode-se dizer que existem por todo Brasil, sendo roedores de hábitos noturnos que vivem preferencialmente em matas úmidas e nas margens de rios e se destacam pela velocidade com que correm e por serem bons nadadores. Nosso conhecimento na área de ciências naturais pôde ser enriquecido de forma indireta, tanto no setor de hábitos alimentares como em outros setores. O colono nos presenteou com duas arcadas dentárias superiores de um peixe-serra (Pristis). Assim ficamos sabendo que esta espécie é bastante comum no rio Doce, podendo atingir metro e meio101 de comprimento. Sua carne pode ser consumida, porém o sabor deixa a desejar se comparado ao de outros peixes daqui. Como as duas arcadas apresentavam uma disposição dentária distinta, devem pertencer, caso este aspecto seja um critério de diferenciação, a duas espécies diferentes102 de peixe-serra. A de focinho menor, cujas medidas conferem com as do Pristis pectinatus Lath., poderia ser enquadrada neste grupo, enquanto a de arcada maior corresponderia a um Pristis perrottetti Müll. et Henle, espécie citada como própria de água doce.103 Entre os animais vivos observamos um determinado tipo de macaco-prego104 com sua rica cabeleira de elegante penteado. Este pequeno e ágil macaco, originário da selva local, que estava amarrado sobre um andaime diante ) Ver mais acima, p. 115. [Remissão a uma passagem anterior.] ) Nesta medida não está incluído o comprimento do focinho. 102 ) Günther (Catalogue of the Fishes in the British Museum VIII, p. 436 e ss.) parece pressupor que, pela disposição dos dentes, no máximo se possa diferenciar o Pristis pectinatus do P. antiquorum Lath. e P. perrottetti, e Costa (Fauna del Regno di Napoli, III Pesci, p. 5) afirma que a distância entre os dentes pode ser muito variável, não servindo de critério para distinguir diferentes espécies. 103 ) Ver Müller e Henle; Systematische Beschreibung der Plagiostomen, p. 108 — Além disto o P. perrottetti vive nos mares tropicais. O P. pectinatus não é descrito em nenhum outro lugar que não seja a água doce; porém, ao se descrever uma espécie Pristis de água doce, não se pode excluir a possibilidade haver uma segunda variedade. 104 ) Nota do tradutor: Rollaffe, o termo usado pela autora, parece corresponder ao de macaco-prego. 100 101

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da casa, me pareceu ser um Cebus variegatus Geoffr. Parecia muito temperamental, gritando e guinchando por qualquer motivo, e era muito antipático, ao contrário dos tranquilos Lagothrix do baixo Amazonas. Não tivemos interesse especial em registrar os tipos de pessoas que trabalhavam na fazenda e os diferentes trabalhadores de cor. Em vez disto, uma excursão a um lugar situado quatro horas ao sul de Santo Antônio prometia-nos uma série de aspectos etnográficos interessantes. Nesta área de colonização

Mulheres botocudas. trabalham botocudos que tiveram pouco contato com a civilização. Seguindo seus antigos costumes, portam nos lábios os tais botoques que tanto procuramos ver, sua vestimenta é muito pobre, e as mulheres conduzem as crianças às costas, prendendo-as com um trançado de fibra de árvores. A necessidade de chegar a tempo ao lugar onde tomaríamos o barco a vapor nos impediu de fazer um roteiro extra até estes selvagens, assim como fomos impedidos de permanecer mais tempo em Mutum. Só tivemos tempo de caminhar um pouco pela fazenda Santo Antônio. Esta propriedade possui plantações de café e cana-de-açúcar e um grande pomar de laranjas, cuja produção é destinada a servir de alimento para o gado. Procuramos conhecer especialmente a fabricação de açúcar, que, por sua técnica primitiva, se distinguia um pouco

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das que tínhamos visto até então. O caldo de cana, obtido pela prensagem de dois rolos compressores, é cozido em algumas grandes panelas, sendo depois drenado para grandes compartimentos de cristalização, isto é, que no fundo têm aberturas obstruídas por cilindros de cana-de-açúcar. Nestes cochinhos o melaço é prensado. Depois de alguns dias os tampões são removidos, fazendose escorrer o melaço, que é transformado em cachaça ou aguardente de cana. Nos cochinhos sobram dois tipos de açúcar. Por cima fica um tipo fino e mais alvo, e o outro, mais no fundo, é de cor marrom. Já eram quase onze horas quando reiniciamos a viagem de canoa. A temperatura do ar estava em 27,5º C., e a da água do rio em 25,5º C. A selva indevassável que nos acompanhava em ambas as margens começava a apresentar características um pouco diferentes e mais bonitas. Nenhuma árvore desfolhada quebrava o impacto de toda esta imensidão de verde e de flores. Disseram-nos que, ao contrário do que tínhamos observado rio acima, a vegetação daqui jamais perdia as folhas. Por cima da densa muralha da mata ribeirinha do lado noroeste espiava-nos o morro da Terra Alta, de formato semelhante a uma bizarra esfera coberta de mata. Tucanos gritavam na mata. As palmeiras, aqui relativamente raras, finalmente reapareceram em alguns pontos. Tratava-se de jeribás (Cocos Martiana Dr. et Glaz.), cujos tronco longo e delgado e aparência empertigada enchiam os olhos. Muitas ilhas cobertas de vegetação decoravam o rio já largo. Deslizamos para dentro de um braço de rio de aspecto encantador que nos fazia lembrar a magia onírica e mítica dos paranás do baixo Amazonas. Era a imagem original dos igarapés. Uma rica vegetação misturada de palmeiras chegava até a margem do rio. De ambas as margens árvores cobertas de cipós se inclinavam pitorescas sobre as águas. Queríamos capturar em nossa visão esta paisagem encantadora. Porém, à medida que a canoa singrava as águas, mais e mais nos distanciávamos dela. A tripulação da canoa desconhecia as palavras paraná e igarapé. São expressões de origem tupi cuja compreensão e uso são comuns em toda a região amazônica, onde ainda vivem muitos povos deste grupo já desaparecido desta região costeira. Alguns topônimos geográficos e algumas urnas mortuárias presumivelmente encontradas no médio e baixo curso do rio, que não podem ser atribuídas aos botocudos, marcam sua antiga presença. A canoa seguia adiante. Um pé de sapucaia (Lecythis Pisonis Camb.) desfraldava seu extenso forro de verdejantes folhas umbeladas. Bem em frente, uma gameleira (Urostigma dolarium Miq.), sobressaindo, também umbelada, acima das paredes de vegetação, sustinha a gigantesca copa sobre seus galhos magros. Abaixo, ramos de capim (Gynerium) de tamanho admirável balançavam sobre a água. O célebre jacarandá, nome com que são conhecidos os diferentes

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tipos de Dalbergia105 e Machaerium,106 cuja madeira é muito apreciada, raramente é visto nas margens do rio Doce devido às contínuas derrubadas, podendo, porém, ser encontrado mais para o interior da floresta. Por lá ainda é encontrado em grande quantidade. Em vista da dificuldade de transporte, tanto por água como por terra, a outrora insuperável exportação de madeira de jacarandá da região do rio Doce ficou seriamente comprometida. Agora, pela primeira vez, vimos uma área de colonização na margem esquerda do rio, o que nos pareceu sugerir a proximidade de uma região mais civilizada, pois, durante todo o tempo em que tínhamos navegado rio abaixo, não avistamos na margem norte nenhum tipo de casebre que pudesse indicar a presença de sinais de civilização, por mais primitiva que fosse. Tínhamos navegado ao longo de uma área indiscutivelmente dominada pelos botocudos, na qual, graças a estes silvícolas, nenhuma colonização não indígena conseguira se estabelecer. Até quando isto há de durar? Pois também aqui o colono laborioso avançará, expulsando estes aborígenes que percorrem sem cessar as selvas, na vã procura de um lugar onde possam descansar as cansadas cabeças sem serem perturbados. Novamente penetramos por um braço do rio. A ilha das Palmas estava à nossa direita. À esquerda está a margem norte com o estuário da lagoa das Palmas, que se situa nos arredores. Aqui, junto aos altos jeribás (Cocus Martiana Miq.), já nossos conhecidos, crescem as palmeiras buri (Diplothemium caudescens Mart.), bem mais baixas. Bugios (Mycetes ursinus Wied), conhecidos aqui tanto pelo nome de barbados como de bugios, berravam bem alto na floresta. Um jacaré de tamanho médio foi visto na água, e um pouco abaixo havia outro em terra seca. Pouco tempo depois avistamos um terceiro destes animais cruéis e antipáticos, que não demonstravam o menor receio de nossa presença. Um par de araras (Arara chloroptera G. R. Gr.) de cintilante plumagem vermelha e azul passou por cima de nós em seu voo pesado. Da mata pudemos mais uma vez escutar o grito do pavão (Pyroderus scutatus Shaw). O rio Doce já se encontrava na época da vazante. Seu nível, que costuma elevar-se somente em outubro, com o início da temporada de chuvas, estava agora tão baixo que até a canoa sem quilha tocava constantemente no fundo. Diante desta situação não conseguíamos entender as razões por que a população ribeirinha insiste em trazer para cá um transporte com barcos a vapor. Estes barcos só poderiam oferecer transporte durante alguns meses do 105 ) Dalbergia é um gênero de plantas tropicais da subfamília das Fabaceae (Faboideae), da família de leguminosas (Fabaceae) - http://de.wikipedia.org/wiki/Dalbergien. Nota do tradutor. 106 ) Machaerium é um género botânico pertencente à família Fabaceae - http://pt.wikipedia. org/wiki/Machaerium. Nota do tradutor.


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ano, quando da época das cheias. As experiências feitas até agora realmente parecem ter limitado as viagens a este curto espaço de tempo. Mesmo assim, as pessoas deliram diante da possibilidade de um permanente transporte a vapor.107 O Senhor Milagre, que viajava conosco e tinha uma grande fazenda de café em Guandu de Baixo, também defendia com entusiasmo o tão desejado transporte a vapor, apesar de criticar com duras palavras a falta de recursos do governo para investir no desenvolvimento do transporte pelo rio Doce. As mesmas preocupações que envolviam a questão do transporte a vapor faziam os colonos a tal ponto esquentarem as cabeças com a construção de uma linha férrea ao longo do rio Doce que se criavam boatos os mais fantasiosos. Assim, nós duas mulheres, viajando pelo Espírito Santo, chegamos a ser tomadas como duas engenheiras disfarçadas que teriam vindo estudar as condições locais e a viabilidade do terreno. Pois o fato de mulheres empreenderem viagem com tantas dificuldades apenas para conhecer a região e as pessoas que aqui vivem parecialhes absolutamente inaceitável. Este pensamento facilmente se pode explicar pela falta de envolvimento das mulheres brasileiras em altas questões intelectuais. À tarde os remadores fizeram uma fogueira sobre uma base de areia no fundo da canoa, onde passaram a preparar, para todos, bananas fritas em banha de porco. Mais tarde atracamos numa localidade de colonização luso-brasileira na margem norte do rio, onde havia uma construção já mais antiga e um engenho de cana-de-açúcar com uma prensa de cilindros verticais movida por animais. Após uma rápida parada seguimos viagem rio abaixo. No lado norte, passamos pelo estuário de um pequeno rio de águas escuras que se ligava à lagoa Juparanãmirim, reconhecidamente bela. Este rio constituía estreita e maravilhosa estrada de água entrefechada de mata à maneira dos igarapés. A noite já se aproximava e, pelo que sói acontecer nos trópicos, a temperatura ia esfriando. Ao longe, numa elevação, ainda com a luz do dia conseguíamos ver a vila de Linhares, porém só chegamos lá às sete horas, já em total escuridão. Assim chegou a seu término o segundo dia desta interessante viagem de canoa. Hoje vencemos 86 quilômetros. Ontem, saindo de Tatu, fizemos um percurso de 63 quilômetros. Linhares  —  Regência. Quarta-feira, 5 de setembro. Em Linhares fomos hospedados por comerciantes brasileiros numa casa que, mesmo não correspondendo aos mais rudimentares conceitos de conforto, apresentava melhores condições que os locais onde pernoitáramos nos últimos dias. Como o número de camas era insuficiente para todos, terminei armando a cama de campanha, que, como já mencionado antes, consistia num pedaço de lona de vela de navio estendido sobre uma estrutura metálica. ) Tal empreendimento poderia ser alcançado no máximo por meio de um imenso e permanente serviço de dragagem, para o qual dificilmente se obteria o necessário capital. 107

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Nesta casa o que mais nos interessou foi uma mulher indígena. Portava o cintilante cabelo preto dividido na testa, realçando assim seu marcado biótipo mongol, como os demais da mesma origem que víramos usando este tipo de penteado. Hospedados naquela casa, tivemos de participar das refeições com a família, o que não permitiu aproveitar adequadamente o tempo. Isto também atrapalhou a visita à lagoa Juparanã, localizada a 5 quilômetros dali, que é um dos maiores lagos do Brasil. Esta lagoa, cujo comprimento se calcula em cerca de 32 quilômetros por 5 a 9 de largura,108 é profunda e cercada de mata, e está inserida numa área terciária. Além de rica em peixes e moluscos de água doce (Unio), é também habitada pelo menos por dois tipos diferentes de tartaruga. Imediatamente acima de Linhares o rio Juparanã, cujo escoadouro passa por vale florestal tortuoso, estreito e profundo, deságua num poético igarapé. Linhares, por onde fizemos um passeio matinal, é uma vila pequena e pobre que se formou a partir de antiga aldeia indígena. Consiste de algumas dúzias de habitações feias, cobertas de telha, e de pitorescas cabanas de barro cobertas de palha. As casas, todas elas de um só pavimento, acham-se cercadas, em três lados, por vastos capinzais desolados. Aqui e nos arredores encontramos, como modesta decoração, uma pequena papilionácea cor de rosa (Desmodium adscendens DC). A elas, em sua floração purpúrea, se juntaram as Vernonia scorpioides var. subrepanda109 Pers., um tipo de arbusto compósito de que pudemos conhecer outra variedade na região de Campos. Uma terceira variedade de plantas florais que coletei para meu herbário foi um espécime de cauda de leão siberiano (Leonorus sibiricus L.), uma labiada que, introduzida no Brasil, se tornou agreste. Da margem do rio Doce pudemos observar melhor a localização de Linhares. Este povoado se situa sobre um barranco de terra vermelha de cerca de 20 a 25 metros de altura, sendo limite de uma grande planície terciária que se estende ao norte do rio. Do ponto mais extremo que se projeta sobre o rio Doce pode-se apreciar uma bela paisagem rio acima e abaixo. As margens de aluvião, literalmente sepultadas sob mata, emolduram o rio, cuja superfície se acha semeada de ilhas rasas cobertas de mata. Sentimo-nos como que transportados de volta ao baixo Amazonas. Apenas um menino botocudo que perambulava à beira d’água nos lembrava que estávamos a centenas e centenas de quilômetros do rei de todos os rios. A visão desta criança também nos trouxe à lembrança que bem próximo daqui, isto é, logo além da margem ocidental da lagoa Juparanã, tem início o domínio

) Os dados referentes a comprimento e largura da lagoa diferem em quase todas as obras. ) As Vernonia scorpioides Pers., citadas em Flora brasiliensis VI 2, p. 101, como sinônimos de Vernonia scorpioide var. deviam ser uma variedade da espécie subrepanda, do gênero V. scorpioides. 108

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dos botocudos bravios, a terra incógnita110 dos brancos. Este menino de cor parda tinha o mesmo corte de cabelo que nosso remador botocudo. Também ele, como as demais crianças indígenas, andava de cabeça descoberta neste calor escaldante, talvez porque sua natural cobertura de cabelo as proteja contra a radiação do sol. Ainda pela manhã deixamos a insalubre Linhares em virtude da temível malária. Hoje queríamos vencer de canoa mais 48 ou 50 quilômetros até Regência, também chamada Barra do Rio Doce. Inicialmente seguimos ao longo da margem esquerda. Aqui, no curso inferior do rio, ao contrário do trecho mais para o interior, a floresta apresentava uma maior exuberância de palmeiras. A paisagem, uma miscelânea de palmeiras e árvores frondosas, mostrava-se mais atraente do que a que tínhamos visto nos últimos dias. Diferentes coqueiros, Cocos Martiana Dr. et Glaz., de espessa fronde, e o pati (Cocos botryophora Mart.111), de tronco delgado, como já referido, esgueiravam-se graciosos para os ares. Palmeiras de alvos troncos (Euterpe edulis Mart.), cujos brotos fornecem o célebre palmito, inclinavam-se sobre as águas. Muitas cecrópias112 destacavam-se dentre outras tantas árvores frondosas. Como todas as árvores daqui do rio Doce, faltava à face ventral das folhas aquele aspecto branco aveludado, o que as diferenciava de outros tipos de cecropiáceas. Altos ramos de capim (Gynerium parvifolium Nees ab Esenbeck) franjavam a margem, e trepadeiras entrelaçavam galho com galho, formando fantásticos caramanchões. Muitas terras caídas, ou seja, barrancos que a erosão fizera tombar, ofereciam imagens pitorescas à beira-rio. Árvores semi-submersas, algumas ainda com folhagem, outras apenas com seus galhos secos salientes, podiam ser vistas na água. Estes gigantes botânicos abatidos, que por vezes se apoiavam num emaranhado de lianas, levavam consigo em sua ruína todo um mundo de cipós e de plantas epífitas. Ninhos de icterídeos113 em forma de sacos, que não víamos desde a região do Amazonas, pendiam de alguns galhos que pairavam acima d’água. Conseguimos apanhar um destes exemplares. Tinham cerca de 14 cm de largura e 30 de comprimento. Eram bem menores que os de Cassicus persicus L. que tínhamos coletado na ilha das Onças, com 18 cm de largura e 55 de compri) O termo terra incógnita não foi traduzido por também constar nos mapas da época, referindo-se às terras situadas ao norte do rio Doce. Nota do tradutor. 111 ) Pela população local o Cocos botryophora é chamado de pati. Karl Frank nos citou o mesmo com o nome de patioba. Também em Flora brasiliensis III 2, p. 409, estes dois nomes populares são aplicados ao Cocos botryophora. 112 ) A autora usa o termo árvore da preguiça para cecrópia. Parece referir-se à Cecropia polustachya, uma embaúba também conhecida como embaúba-da-mata. Nota do tradutor. 113 ) A autora usou o termo Troupiale, possivelmente referindo-se a um tipo de pássaros conhecidos nesta região como chapu. Nota do tradutor. 110

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mento. Da mesma forma, a abertura de acesso ficava mais acima, e o material usado era mais delicado e mais escuro que o outro. Não eram feitos de longos e rijos ramos de capim e folhas como os ninhos coletados antes, mas sim em sua maioria de ramos e folhas de Tillandsia usneoides L.114 Um exuberante comedor de larvas de um azul metálico escuro, um anu coroia (Crotophaga major Gm.), ultrapassou-nos em seu voo pesado. Alguns Rhamphocoelus brasilius L.,115 encantadores tanagrídeos116 de cores preta e vermelha, animavam as margens do rio. Muitos bem-te-vis que, pelo aspecto, pareciam o Pitangus lictor Licht., voavam de um lado para o outro à beira da mata. Uma capivara morta jazia na água entre os galhos de uma árvore tombada, único espécime, aliás, que chegamos a ver nesta região onde consta serem tão abundantes estes roedores. Ao meio-dia a temperatura do ar estava em 31,5º C. e a da água em 26,6º C. Assim como ontem, pudemos observar à tarde alguns crocodilos.117 Primeiro avistamos um jacaré de tamanho médio que, pela cor acinzentada, classifiquei como um jovem espécime de Caiman latirostris Daud., que vive principalmente nos rios de pequena correnteza do leste do Brasil. Pode atingir 2 a 3 metros de comprimento e não é temido. O réptil descansava acima d’água sobre um tronco caído e tinha o mesmo aspecto cinzento e empoeirado que a árvore sobre que repousava. Remamos na direção dele, mas o monstro, fugindo à nossa aproximação, rapidamente escorregou para a água e desapareceu nas profundezas. Pouco tempo depois, na margem oposta, também repousando sobre um tronco de árvore, vimos um segundo espécime, que, mesmo à nossa proximidade, não se deixou perturbar em seu sono lânguido. A cauda apresentava estrias transversais de cor escura, característica mais condizente com um jovem jacaré da espécie Caiman latirostris Daud., de tamanho médio, que vive nos rios da costa oriental, do que com um espécime da Caiman sclerops Schneid. Pouco tempo depois ainda vimos um terceiro, que, imerso n’água, deixava aparecer apenas o pavoroso focinho. O rio aqui, pelo cálculo visual, devia ter largura equivalente ao Reno logo abaixo de Colônia. Porém, como o volume de água deixava muito a desejar, não dava a mesma impressão de considerável largura. Bancos de areia e muitos pontos rasos podiam ser vistos ao longo do leito do rio. Remamos para lá e para cá a fim de nos mantermos em águas mais profundas. Mesmo assim a canoa ) Provavelmente barba-de-pau ou barba-de-velho. Nota do tradutor. ) Provavelmente uma coruja-buraqueira. Nota do tradutor. 116 ) Aves da família dos passeriformes. Nota do tradutor. 117 ) Certamente exemplares de jacaré, em tupi-guarani îakaré ou yacaré, significando: “que olha torto, encurvado, aquele que vê pelos lados”... Ref.: www.girafamania.com.br/.../brasil_fauna_jacare.html. Nota do tradutor. 114 115


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arranhava a todo instante o fundo, interrompendo o percurso. Os tripulantes precisavam saltar n’água para aliviar o peso da canoa ou empurrá-la, ou até mesmo para abrir passagem, cortando com um facão os galhos da vegetação pendentes sobre a água. Quando a canoa encalhava, só podia ser liberada com o esforço de todos. Com muita preocupação vimos passar as horas, receosos de que as repetidas paradas nos impedissem de alcançar nosso destino a tempo. A pequena profundidade do rio trouxe todo tipo de dúvidas quanto à possibilidade de encontrarmos outro transporte fluvial a vapor. Sobre uma das ilhas de areia vimos passear uma tarambola que nos foi nomeada como soldado. Tinha ventre branco e dorso escuro, uma listra preta ao redor do pescoço, semelhante a uma gravata, e pernas de um vermelho reluzente. Pela cor, configuração e aspecto, identifiquei esta ave como um Hoploxypterus cayanus Lath. Na mata, que se mantinha silenciosa, gritava um mutum (Crax carunculata temm.). Pouco se ouve o murmúrio da mata. Tudo repousa em profundo silêncio, apenas os animais no interior dela se fazem ouvir. Novamente deparamo-nos com um jacaré. Desta vez, pela cor amarelo-cinzenta, sem dúvida tratava-se de um Caiman sclerops Schneid118 ainda jovem. Estava deitado ao sol sobre um tronco inclinado à superfície da água. Chegamos bem perto. Ficou nos encarando e parecia inclinar-se para nosso lado, movimentando a cauda escamosa, e somente depois de o incomodarmos com muitos gritos e muitos golpes de remo na água é que decidiu escorregar para o rio e afastar-se nadando. Nunca estive tão tentada a dar um tiro numa fera como neste lagarto encouraçado de olhar atrevido. Grandes e pequenas bromélias em forma de rosetas podiam ser vistas nos galhos das árvores da margem. Muitas outras epífitas de longos ramos, que me pareciam filodendros, pendiam do denso emaranhado da floresta. Uma pequena ilha, semelhante às ilhotas do Amazonas, mostrava-se toda coberta de cecrópias119 e circundada de cana. Cerca de uma hora antes de chegarmos ao estuário cessou o labirinto de ilhas, como também a luxuriante floresta. O rio, agora totalmente livre de ilhas, parecia ter dois quilômetros de largura. Em ambas as margens erguia-se a mata, porém de feio aspecto e pouca altura, e já com menor quantidade de cipós em suas árvores. Do lado sudeste já se ouvia o forte murmúrio do mar. A vista do mar continuava obstruída por uma linha de 118 ) O Caiman sclerops Schneid. é o único jacaré brasileiro descrito como predominantemente de cor amarela ou amarelada, sendo esta a cor típica do espécime jovem. Ver Gray: Catalogue of the Tortoises, Crocodiles and Amphisbaenians II, p.26. — The Annals and Magazine of Natural Hist. X, p. 329. — Transactions of the Zoological Society of London VI, p. 165. — Boulenger: Catalogue of the Chelonians, Rhynchocephalians and Crocodiles in the British Museum, p. 295. 119 ) Cecrópia é um gênero de cerca de 25 espécies de árvores das urticáceas. Ref.: http:// en.wikipedia.org/wiki/Cecropia. Nota do tradutor.

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vegetação esverdeada. Já se viam as aningas,120 Montrichardia linifera Schott, matinho típico de banhados próximos ao mar na região central do Brasil. O encontro de diferentes correntes de água logo pôde ser percebido claramente. A água parece formar pequenas ondas que saltam para o alto. Atracamos na margem direita em Regência, vilarejo constituído apenas por alguns casebres cobertos de palha. Uma das cabanas é construída exclusivamente de palha, a maioria tem paredes de barro, e apenas algumas são feitas de tijolos. Deixamos nossa canoa, que será reconduzida para Mutum pelo jovem botocudo. O mesmo trecho que percorremos em três dias rio abaixo será percorrido agora em três semanas rio acima. Foi-nos indicada como alojamento a casinha desocupada do agente da companhia de navegação a vapor. De um só pavimento, quase sem mobília alguma, deixa passar o vento em todas as direções. Nas vizinhanças, Cocos nucifera L., palmeiras que dão fruto o ano todo, fazem ouvir seu murmúrio, e crescem por todo canto entre os casebres. Sua ocorrência certamente nos teria denunciado a proximidade do mar, caso não tivéssemos avistado a branca espuma das ondas vigorosas. À noite tivemos que seguir até a casa ocupada pelo agente para ali cearmos. No pátio encontramos um macaco macho, igual ao da fazenda Santo Antônio. Tratava-se de um Cebus variegatus Geoffr., que, entretanto, tinha comportamento mais comedido que seu irmão da zona de colonização alemã. Quando lá chegamos recebemos de presente uma porção de Eumolpus fulgidus Oliv., magnífico besouro brasileiro do mato (Chrysomelidae), de um cintilante verde dourado. O agente, um jovem senhor muito agradável e educado, com família numerosa, nos ofereceu mate. Trata-se de um chá preparado à base de folhas de Ilex paraguariensis St. Hil. e outras ilicíneas, e seu sabor nos lembrou o do chá chinês. Para prepará-lo depositam-se num prato as folhas, semelhantes em tamanho às do nosso azevinho, que são salpicadas de açúcar e cobertas de brasas; depois de aquecidas, despejam-se em água quente, que é coada para obter-se uma solução potável. Nas províncias de Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul percorrem-se as matas à procura de folhas de ilicíneas. Consta que o Paraná isoladamente produz três quartos de toda a produção de mate do Brasil. A exportação de mate, principalmente para o Chile e a Argentina, no período de 1886-1887, somou mais de 20 milhões de quilos, perfazendo cerca de 9 a 10 milhões de marcos.121 ) Plantas aquáticas. Nota do tradutor. ) S. Anna Nery. Le Brésil en 1889, p. 256, 257. — Levasseur. Le Brésil, p. 66. — Ver também Liais: Climats, Géologie, Faune et Géographie botanique du Brésil, p. 563 etc. e Martius: Flora brasiliensis XI 1, p. 62 e ss., 75-76. 120 121


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Regência  —  A bordo do Rio São João. Quinta-feira, 6 de setembro. Galinhas entravam e saíam muito à vontade pelas janelas da pousada onde hoje pernoitamos, e uma delas até chegou a pôr um ovo na bacia de água ali colocada. Como pela manhã o esperado vapor que nos deveria conduzir até Vitória ainda não chegara, decidimos fazer um reconhecimento do povoado e seus arredores. Não encontramos nem sequer uma igreja ou capela, porém uma escola, coisa rara em região tão isolada. Nestes lugares pode-se eventualmente até ver o prédio de uma escola, mas geralmente falta o mais importante, o professor. Entre os habitantes de Regência havia alguns indígenas e também alguns negros. Com um destes, ou seja, um menino de cerca de seis anos, presenciamos uma cena bem engraçada. Eu estava parada no caminho, a rede de caçar borboletas na mão, quando passei a observar o menino com mais atenção, na tentativa de captar seus traços fisionômicos. Tomado de verdadeiro pânico, ele recuou e saiu em disparada, tal qual um animal apavorado, gritando e, a espaços, olhando para trás, como se calculasse se conseguiria evadir-se de um suposto grande perigo. Assim vi o menino pretinho num verdadeiro galope desaparecer esbaforido de vista no final da estrada. A causa de tudo deve ter sido a impressão que provocou no pretinho meu equipamento de apanhar borboletas, que ele deve ter interpretado como instrumento enigmático e mortal. Toda a região em torno de Regência era plana e estéril, um desolador deserto de areia com vegetação rasteira e alguns poucos coqueiros. Na areia cresciam zínias (Zinnia multiflora L.), compósitos agrestes trazidos ou transplantados do México. No mesmo terreno crescia a papoula espinhosa mexicana (Argemone mexicana L.), igualmente originária do México, como se pode depreender do nome. Com grandes e belas flores, e folhas repletas de espinhos, é o único tipo de papaverácea encontrado no Brasil. Além disto, o solo arenoso ainda era coberto por exemplares de Turnera odorata Rich., tipo de arbusto de flores amarelas e folhas denteadas. A vegetação desses pequenos charcos consistia de Limnanthemum Humboldtianum var. parvifolium Gris., uma gentianácea de flores brancas. Nos lugares pantanosos vimos a Jussiaea octonervia Lam., uma erva onagrácea disseminada até a região sul da América do Norte. Já mais próximo ao mar, conseguimos avistar as belas Vinca rosea L., único tipo de murta até agora encontrado no Brasil.122 À uma hora da tarde o tão esperado vapor com suas rodas de pás finalmente entrou pelo rio Doce, um barco miseravelmente pequeno, bem menor que qualquer dos vapores de passageiros que navegam pelo lago de Bodensee. Foi nele que embarcamos, e já meia hora mais tarde deixamos o rio Doce. O rio segue em direção ao sul e deságua no mar através de dois braços, sendo um mais para o ) De todas as plantas aqui citadas coletei amostras para meu herbário.

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sul, com cerca de metro e meio de profundidade, e o outro um pouco mais para o norte, com dois metros e meio de fundo.123 Preocupou-nos a travessia da barra que estávamos prestes a fazer. É uma das mais perigosas de toda a costa oriental brasileira. Muitas vezes os navios levam semanas ou meses para poderem sair ou entrar. Barcos maiores conseguem acesso apenas em época de cheia e com vento sul. Todavia, a entrada de vapores pequenos com vento contrário sempre traz muita preocupação. Assim, muitos barcos já foram perdidos ao tentarem transpor a barra.124 Os brasileiros não querem reconhecer este risco. Entretanto, nossa experiência pessoal nos convenceu de que os relatos desse perigo feitos por não brasileiros devem ter fundamento. Assim, nosso pobre vaporzinho terminou passando em meio a uma espumante arrebentação da altura de uma casa, rolando, batendo, gemendo e rangendo de maneira indescritível. Ora a proa se curvava para o alto, ora parecia vermos uma das rodas no ar sobre nossas cabeças; ora parecia que a quilha se chocaria com o leito no entresseio das ondas, e já no momento seguinte tínhamos a impressão de que o barco emborcava, pelo grau de sua inclinação. Enfim, parecia que esta coisinha frágil se despedaçaria de tanto que era jogada para um lado e para o outro. Mal se podia perceber a voz de trovão do capitão em meio ao ronco furioso dos bárbaros elementos. Como enlouquecidos, os marujos corriam de lado a lado, tentando auxiliar onde fosse preciso. Um deles, gemendo no chão do convés, conseguiu dizer que hoje a saída tinha sido muito difícil. Sentados no tombadilho, agarramo-nos com todas as forças ao que podíamos, para não sermos arremessados às águas. Isto durou alguns terríveis minutos, durante os quais a água lançada para o alto nos envolveu por todos os lados. Logo nosso valente barquinho terminou vencendo a barra e, orgulhoso como que ciente de sua vitória, passou a navegar por um mar relativamente tranquilo. O que acabamos de vivenciar foi nossa despedida do rio Doce.

) Silva Coutinho: Navegação do Rio Doce. ) Ehrenreich. Land und Leute am Rio Doce. (Verhandlungen der Gesellschaft für Erdkunde zu Berlin VII, p. 96). Hartt: Geology and Physical Geography of Brazil, p. 102, 104. 123

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Costa do Espírito Santo Porto de Santa Cruz. Sexta-feira, 7 de Setembro. Durante a navegação de ontem rebocamos um barco carregado de troncos de jacarandá proveniente das matas do rio Doce. Apesar de algumas informações em contrário, no que diz respeito a esta carga, soubemos que, junto com o café, a madeira de jacarandá seria o principal produto de exportação do rio Doce. A viagem de navio pouco contribuiu para o reconhecimento da paisagem. Desde a foz do rio Doce até a do rio Santa Cruz seguimos ao largo de uma costa plana e de mata abundante, com terras baixas pouco habitadas e algumas áreas pantanosas. Nesta costa costumam ser encontradas grandes tartarugas marinhas dos diferentes tipos que frequentam as praias do leste do Brasil. A mais comum nesta região parece ser a cauana (Thalassochelys caretta L.),125 que pode alcançar até 1,25 m de comprimento, cuja carne e ovos são aproveitados como alimento. Depois de navegarmos algumas horas, começamos a avistar picos de montanhas além da linha da mata litorânea. Ao entardecer aproximamo-nos de Santa Cruz, vila nascida a partir de um aldeamento missionário, cuja população em sua maioria ainda é constituída de indígenas. Este pequeno povoado, situado praticamente na planura ao longo da praia, consiste de umas poucas habitações de alvenaria e caiadas. Logo por trás dele se vê uma modesta elevação coberta de mata por entre a qual emerge o rio Santa Cruz. Ao longe, como que erguendo-se do barranco do rio, avistam-se montanhas. Nosso pequeno vapor costeiro penetrou a barra, que apenas barcos de pequeno calado conseguem vencer, e em seguida lançou âncora. Trata-se de um porto natural bem protegido, com profundidade de 9 a 10 metros, em que ) Hartt: Geology and Physical Geography etc., p. 107 e ss.

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porém os movimentos da maré alta e maré baixa ainda podem ser claramente percebidos. O rio Santa Cruz, onde atracamos, é de pouca importância, e seu curso, bem pouco extenso, se forma pouco antes de seu estuário com a confluência dos rios Piraquê-açu e Piraquê-mirim. Ao romper da noite a chuva continuou caindo. Permanecemos a bordo de nosso pequeno Rio São João, em que nós, as duas senhoras, ocupávamos a única cabine disponível. Além dela, o barco só dispõe de um modesto refeitório, onde, ao longo das paredes, estão as camas para os homens. Exceto num vapor turco, jamais tinha visto condições tão primitivas. Além disto, a paciente e constante visita de dois porcos ao refeitório reforça a ideia do aconchego que reina a bordo. A noite toda permanecemos ancorados em frente a Santa Cruz. Ademais, teremos que esperar aqui todo o dia de hoje e a próxima noite. O barco precisa carregar café. Entretanto, neste dia não se trabalhou por ser feriado nacional, dia da declaração de independência do Brasil. Para nós esta amarga perda de tempo representou um decisivo teste de paciência. A fim de aproveitar nossa compulsória permanência em Santa Cruz, já cedo decidimos desembarcar e procurar na praia moluscos de água salgada ou outros animais marinhos. À tarde ocupamo-nos da mesma tarefa. Entre as conchas (Gastropoda) coletamos o Murex (Haustellum) Senegalensis Lam., var. Brasiliensis Sow.; a delicada Oliva (Olivella) parvula Mart., a Columbella (Pygmaea) mercatoria L. e a Natica (Mamma) mammilaris Lam., as três últimas também encontradas nas Índias Ocidentais; ainda o Conus (Leptoconus) emarginatus Rv., também encontrado no oceano Pacífico; o gracioso e bastante raro Pileopsis (Capulus) intortus Meusch e, em grande abundância, nas mais diferentes cores e desenhos, a Neritina (Vitta) virginea L., a Pachypoma imbricatum Gm., três tipos também encontrados até as Índias Ocidentais; e ainda a bela Fissurella patagonica Orb. e a Bulla striata Brug., esta última um caracol de bolha126 que também foi localizado no mar Mediterrâneo e que, da mesma forma que os demais da espécie, aprecia habitar águas salobras e estuários. Entre os mexilhões (Lamellibranchiata) coletamos o Tagelus gibbus Spgl., largamente disseminado pelas costas do Atlântico e típico das barras dos rios americanos; a rosa púrpura Tellina (Peronaeoderma) punicea Born., que também ocorre na costa ocidental da América do Sul; esta concha de casca lisa, tanto pelo habitat como pela cor, se assemelha bastante à Strigilla carnaria L.; a Cardium (Trachycardium) muricatum L., encontrada tanto no Rio como também nas Antilhas; e finalmente as Ostrea rhizophora Gld., comumente encontradas entre as raízes dos manguezais. Quanto aos moluscos, grandes caranguejos (Brachyura) corriam pela areia, e viam-se fragmentos de ermitões (Pagurus), serpulídeos calcificados ) A autora utilizou o termo blasenschnecke. Nota do tradutor.

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e ouriços do mar da família dos Echinometridae.127 Tampouco faltavam estrelas do mar (Astraeacea), sendo sua representante mais comum a Favia conferta Verill, bastante comum entre Cabo Frio e Pernambuco, que faz parte de um gênero que, juntamente com outros quatro madreporários e com as miléporas, constitui os principais recifes de coral da costa brasileira.128 Por outro lado, aqui pudemos enriquecer não somente nossa coleção zoológica mas também nosso herbário. Na areia úmida da margem havia três tipos de florídeas, trazidos pela maré, o cornígero Gelidium corneum Huds., encontrado em todos os mares, os Gracilaria confervoides L. de cor púrpura, muito comuns no Mediterrâneo, e o Nitophyllum laceratum Gm., linda e fascinante folha cor de vinho tinto. Já mais longe da água, nas areias secas da praia, se desenvolvia a Stenotaphrum glabrum Trinius, uma erva-doce já espalhada por toda costa brasileira, e uma provável nova espécie de Vellosia, muito semelhante à Vellosia graminea Pohl. À caminhada matinal pela praia seguiu-se uma visita à igreja de Nossa Senhora da Penha para assistir a uma Santa Missa. Encontramos uma igreja improvisada, no verdadeiro sentido da palavra, pois a casa de Deus consistia de uma sala pobre com um altar feio e pobre. O oficiante, com quem conversamos mais tarde, era um sacerdote italiano, como se encontra em grande número entre o clero do Brasil. Por um bom tempo trocamos palavras em sua língua materna, sem que ele disto se desse conta. Certamente não mais tivera oportunidade de ouvir seu próprio idioma, até porque por um bom tempo continuou respondendo às nossas perguntas em português, sinal da rapidez com que os imigrantes latinos não portugueses assimilam o idioma desta terra.129 Por intermédio dele e de outros simpáticos habitantes de Santa Cruz recebemos uma significativa quantidade de conchas para acrescentar à nossa coleção. Pelas dez e meia da manhã iniciamos uma cavalgada de quatro horas, inicialmente ao longo da praia em direção sul, e depois em direção oeste para o interior. À beira-mar algumas mulheres indígenas apanhavam lagostas de longos cornos. Existem duas espécies no Brasil, a Panulirus echinatus Smith e a Panulirus argus White. As mulheres também estavam catando grandes e escuros ouriços do mar, provavelmente Echinometra subangularis Desml., bastante comuns na costa brasileira. Rochas curiosamente erodidas elevavamse da areia da praia, expostas pela maré baixa. O crescimento da vegetação por 127 ) Estes fragmentos de ouriço do mar, que terminei trazendo, possivelmente pertencem ao gênero Strongylocentrotus, porém, mais provavelmente, ao gênero anteriormente citado, Echinometra, ou seja, da espécie Echinometra subangularis Desml. — Isto conferiria com o que observei mais tarde neste mesmo lugar com outros ouriços do mar ainda vivos. 128 ) Cf. Verril: Notes on the Radiata etc. (Transactions of the Connecticut Academy of Arts and Sciences I, p. 355 e ss.). 129 ) Conforme o que foi dito mais acima à p. 322 (58 deste livro).

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aqui era pouco significativo. A restinga, isto é, a flora que se desenvolvia na faixa arenosa entre a vegetação da areia da praia e a mata, consiste de cactos colunares (Cereus), cardo tocha (Opuntia) e uma espécie de bromélia terrestre ativa, mais alta que uma pessoa, conhecida pelo nome nativo de gravatá. Já mais para o interior algumas poucas árvores e palmeiras isoladas sobressaíam da esfacelada mata praieira, sinalizando a alteração para outro padrão de flora. Algumas destas árvores achavam-se totalmente cobertas de barba-de-pau (Tillandsia usneoides L.). Em outras se podiam ver grandes bromeliáceas em forma de roseta e outras epífitas de flores vermelhas. Arbustos de flores roxas, certamente begoniáceas a julgar pelo aspecto, constituíam uma alegria para os olhos. O chão estava coberto de pequenas flores roxas, presumivelmente melastomáceas,130 e de belas flores avermelhadas que me pareceram semelhantes às do gênero Sedum. Estas certamente eram crassuláceas e possivelmente da família das tílias (?).131 Aqui na mata praieira havia poucas roças e capoeiras, em contraposição à região mais interiorana, onde são mais frequentes. A mata era interrompida por alguns poucos sítios, cabanas de pau-a-pique com moendas de cana que nesta época não estavam funcionando. Seguia-se um trecho de mata mais alta com palmeiras e trepadeiras, estas últimas menos frequentes ou até inexistentes na praia. Daqui até a mata, que não ficava muito longe, havia um terreno pantanoso coberto de plantas aquáticas sobre o qual voavam piaçocas (Parra jaçanã L.). Desde a Amazônia não víamos este belo tipo de ave de esporão. Tanagrídeos de um vermelho escarlate (Rhamphocoelus brasilius L.) voavam por entre os arbustos, e a bela plumagem azul escura dos anus (Crotophaga mayor Gm.) brilhava à luz do sol. Muitas borboletas pareciam saborear este belo dia. Havia Heliconius Phyllis Fabr., que se destacavam pelas asas estreitas, e outras de asas largas e bem vermelhas, talvez Megalura Peleus Sulz., e ainda outras de asas pretas, grandes e largas com desenhos em branco, azul e vermelho, provavelmente Papilio Ascanius Cram. Finalmente chegamos ao destino de nossa excursão, um sítio localizado sobre uma bonita elevação. Deparamo-nos com um panorama atraente, porém solitário. A região ao redor da modesta propriedade mais parecia um prado de terras altas. Pequenas papilionáceas de flores rosadas, o amor seco (Desmodium adscendens DC.), e, espalhadas por todo canto, malváceas como as guaximas de folhas largas (Sida rhombifolia L.), ornamentavam a pradaria.132 A vegetação, ) Possivelmente quaresmeiras e manacás. Nota do tradutor. ) Até agora as tílias têm sido encontradas apenas no sul do Brasil, por isto é de questionar se as aqui encontradas realmente pertenciam ao gênero das tílias. 132 ) Ambas foram coletadas para meu herbário, a primeira neste lugar e a segunda possivelmente nesta região. 130 131


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formada em parte por árvores mais altas, em parte por moitas rasteiras, dando estas últimas um aspecto estéril à região, espalhava-se por todos os lados. A oeste o horizonte estava delimitado pelas montanhas, entre elas a que parecia ser o Monte Camelo, com seus 630 metros de altura. No caminho de volta passamos primeiro sobre um dique que atravessava um pântano ao lado do qual se erguia uma begoniácea arbórea de cerca de três a quatro metros de altura com belas e grandes flores brancas. Depois nossas montarias nos levaram por uma área de sertão que, pela falta de contato humano, preservava todo o seu encanto. Loureiros e arbustos típicos de pasto cobriam o solo pouco fértil. Finalmente, já bem próximo à costa, passamos por um trecho de mata mais alta, que decidimos visitar a pé após fazermos uma refeição. Aí dentro, para nossa surpresa, deparamo-nos com uma floresta tropical de sonho com características muito peculiares. Lá dentro encontramos um pequeno riacho que se alargava em diversos pontos na forma de pequenos charcos, que, como esmeraldas verde-escuras, pareciam incorporar-se à abundante vegetação circundante. De todo canto subiam cipós, fechando-se acima da água em pitorescas ramagens. Altas samambaias, como a Polypodium fraxinifolium Jacq. e a Polypodium phyllitides L.,133 de muitos pés de comprimento, pairavam suspensas sobre a margem. Árvores de copas largas e densas, recobrindo todo o interior da mata, produziam misteriosa penumbra. Um incalculável número de pequenas bromeliáceas, as delicadas Catopsis nutans Bak.,134 como se fossem lampiões, encontravam-se no alto, presas aos galhos. Grandes gravatás (bromélias) de maravilhosas brácteas vermelhas cresciam do solo da mata. Ramos de trepadeiras pendiam como densos véus dos cumes das árvores até o solo. Todo tipo de borboletas voava por entre este emaranhado de plantas, porém só pudemos capturar com a rede uma Heliconius Phyllis Fabr. Também aqui, mais perto da praia, como na Barra do Rio Doce, crescia a murta de flores rosadas135 (Vinca rosea L.) e a Jussiaea octonervia Lam.136 Nem faltava nesta vegetação costeira a Vernonia scorpioides var. subrepanda Pers.,137 que já tínhamos identificado em Linhares. Vimos, porém, pela primeira vez a Blechnum surrulatum Rich., samambaia largamente encontrada nos trópicos, a ipecacuanha branca ( Jonidium Ipecacuanha Vent.), que tem aplicação terapêutica, e a Kalanchoë Brasiliensis Camb., de flores amarelas, e uma herbácea138 que, ) Ambos coletados para meu herbário. ) Coletado para meu herbário. 135 ) A autora descreve como Sinngrün. Nota do tradutor. 136 ) Ambas as plantas coletadas para meu herbário. 137 ) Coletada para meu herbário. 138 ) As três plantas foram coletadas para meu herbário. 133 134

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me parece, cresce apenas no Brasil central. Também como resultado de nosso levantamento botânico do dia, vale citar a Miconia hirtella var. ovata Cogn.,139 melastomácea que até agora só fora encontrada na província de Goiás.140 O tempo no dia de hoje mostrou-se instável. Chuva e sol alternaram-se diversas vezes. A brisa amenizava a temperatura. Fora isto fazia um calor abafado. À noite houve música e, em homenagem à grande festa política, acendeu-se uma grande fogueira. Numa localidade onde áreas de capim e faixas de grama fazem as vezes de pátios e estradas, onde as casas ou cabanas são cobertas de folhas de coqueiros e as janelas têm taipas de madeira em lugar de vidraças, essa celebração produziu um estranho contraste. Nosso capitão, um brasileiro que se destaca pela austeridade e competência, nos tem tratado com extrema amabilidade. Os poucos habitantes um pouco mais esclarecidos de Santa Cruz, que certamente mal nos conhecem pelo nome, disputam com ele em fazer-nos maior cortesia. Assim, por exemplo, nem sequer tivemos que pagar pelo empréstimo de um dos animais que hoje utilizamos em nosso passeio. Além disto, este costume parece ser comum em muitos lugares do Brasil; também as montarias que nos levaram de Porto do Cachoeiro a Santa Teresa nem um centavo nos custaram. ­ —

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Relação das conchas e moluscos que nos presentearam em Santa Cruz141 (Gastropoda, Lamellibranchiata e Anthozoa): Fusus multicarinatus Orb., concha bastante comum na costa brasileira. Oliva (Olivella) mutica Say, concha encontrada até a Carolina do Norte. Cerithium atratum Born., molusco ceritídeo, segundo Orbigny, bastante comum na baía de Guanabara. Astralium latispinum Phl., concha, segundo Reeve, oriunda das Índias Ocidentais. Omphalius viridulus Gm., um tróquio pintado de branco e vermelho. Patelloidea subrugisa Orb.(?), concha bastante comum no porto do Rio de Janeiro. Mactra Portoricensis Sh., concha encontrada nas Antilhas e na costa brasileira. Tellina (Tellinella) lineata Turt., de cor rosada, disseminada do Brasil à Flórida. Tellina (Acropagia) fausta Pultn., descrita como originária das Índias Ocidentais. Iphigenia Brasiliensis Lam., donacínea comum na costa brasileira e no mar das Antilhas. Amphidesma obliquum Wood, concha das águas brasileiras mais profundas. Amphidesma reticulatum Sow., disseminada do Brasil às Índias Ocidentais. Cryptogramma Brasiliana Gm., concha presente na costa brasileira. ) Coletado para meu herbário. ) Ver Martius: Flora brasiliensis XIV 4, p. 424. 141 ) Ver mais acima à p. 377 (111 deste livro). 139 140


— 115 — Chione (Omphaloclathrum) crenulata Ch., concha encontrada no Brasil e nas Índias Ocidentais. Pectunculus (Axinaea) tellinaeformis Rv., concha presente na costa brasileira. Arca umbonata Lam., concha encontrada na costa brasileira até Santos. Barbatia Helblingii Ch., uma arcídea cosmopolita. Anomalocardia trapezia Ds., concha descrita como originária das Índias Ocidentais. Plicatula depressa Lam., concha encontrada das Antilhas à Patagônia. Gorgonide (coral), marrom-amarelo, por demais destruído e fragmentado para se determinar gênero e espécie.

Vitória. Sábado, 8 de setembro. Às cinco e meia da manhã, pouco antes do alvorecer, o Rio São João içou âncora, iniciando a viagem até Vitória. Com mar inteiramente calmo vencemos o percurso em quatro horas. Nuvens maravilhosas se espelhavam nas águas por ocasião da alvorada. Maravilhoso também era o verde claro da costa tomada de mata, cujo brilho perfurava a névoa. Colinas isoladas sobressaíam em meio à planície terciária que se estendia de Santa Cruz em direção ao sul. Finalmente surgiu à vista a pirâmide característica do Mestre Álvaro e logo fomos saudados pelo morro de Nossa Senhora da Penha, que, por sua localização, lembra os castelos de Penha em Cintra142 e de Neuschwanstein.143 Pouco tempo depois já tínhamos percorrido o canal de Vitória e desembarcado de nosso pequeno vapor, do qual nós e o Senhor Milagre do Guandu tínhamos sido os únicos passageiros. Após uma ausência de quase quatorze dias voltamos a Vitória, hospedandonos de novo na acolhedora casa do Senhor Pecher. Para seguir viagem para o Rio, teríamos que tomar o vapor costeiro que viria do norte. Este estava atrasado, e pensamos em aguardá-lo por aqui mesmo. Seria preciso nos ocupar da maneira mais útil e agradável possível até sua chegada ao porto e posterior embarque. Hoje preenchemos a tarde com uma cavalgada de quatro horas até Carapina, em visita às ruínas de um convento jesuíta. Inicialmente seguimos caminho ao longo da baía, bem alto, sobre o mar, depois para o norte da cidade em direção a uma região de colinas. Fazendas isoladas encontravamse ao longo da estrada. Além da casa-grande dos senhores havia uma série de habitações para os negros. Eram cabanas feitas de pau-a-pique e palha, todas edificadas em linha, e, vistas de fora, mais pareciam estábulos. Estas miseráveis habitações refletiam a falta de preocupação dos fazendeiros com aqueles que até aqui tinham sido seus escravos. Através de uma ponte de ) Castelo em Portugal. Nota do tradutor. ) Castelo no sul da Alemanha. Nota do tradutor.

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madeira cruzamos o canal Maria-açu,144 que ao norte separa a ilha de Vitória do continente e a noroeste une a lagoa do Lameirão à baía do Espírito Santo. À frente tínhamos uma planície pouco fértil coberta apenas por vegetação rasteira. Grandes piteiras (Fourcroya) estendiam para o alto seus enormes talos floridos. A vegetação rala portava como único enfeite muitos destes pequenos e belos Catopsis nutans Bak. Piaçocas (Parra jaçanã L.) riscavam o céu sobre o terreno desabitado, enormes ninfalídeas de cores amarela e preta (Papilio)145 voluteavam ao sol, gafanhotos faziam alarde, e o grito das cigarras era tão forte que se supunha ser o apito de uma locomotiva ao longe. O calor da tarde tropical parecia torrar esta paisagem quase sem sombra. Diversas vezes cavalgamos ao longo de trechos cobertos de água, pois também aqui parte do terreno consiste de baixadas pantanosas. Finalmente chegamos a uma subida onde, numa planície terciária, cujo ponto mais alto tem cerca de 16 metros de altura, encontramos as ruínas do mosteiro. Uma vista magnífica descortinou-se à nossa frente. A noroeste repousava, majestoso e dominador, o monte Mestre Álvaro, de alto a baixo coberto de mata. Um pouco além e já mais para o oeste apareciam os picos do morro da Serra, com seu belo vulto de cor escura contrastando com o brilhante céu tropical. A nossos pés, entre as ruínas e o morro ao longe, se estendia uma encantadora planície, em grande parte coberta por mata. As linhas pitorescas traçadas pelo suave ondulado das copas luminosas das árvores, postas uma ao lado da outra, estendiam-se na imensidão. Em meio ao verde intenso desta linda vegetação sombreada encontrava-se um prado da cor do ouro cintilante. Para o sul havia uma região montanhosa, pela qual passáramos pouco antes, e do sudeste acenavam os penhascos da baía de Vitória e o convento de Nossa Senhora da Penha erigido no alto de um rochedo. Finalmente, a leste, como que fechando um circulo harmônico, o mar reluzia em azul. Com a mesma rapidez com que chegamos, retornamos para casa. Minha montaria, um esquipador, à sua maneira manteve o passo com o trote e o galope dos outros animais, gerando um ritmo bastante truncado e desagradável. Chegamos de volta a Vitória já em total escuridão. Vitória. Domingo, 9 de setembro. Vitória, cidade que deve ter cerca de vinte mil habitantes, possui doze igrejas e capelas e no momento conta com apenas um sacerdote. Consequentemente, ) No grande mapa de Silva Coutinho (Breve Noticia descriptiva sobre a Provincia do Espirito Santo) este canal se chama canal de Maria-açu, já Carvalho Daemon (Provincia do Espirito Santo, 479) chama-o de rio da Passagem, e Reclus (Nouvelle Géographie Universelle XIX, p. 295 e mapa, p. 296), de canal de Maruípe. 145 ) Pela forma, tamanho e cores talvez fosse a Papilio Phaeton Luc. ou a Papilio Scamander Boisd. 144


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no dia de hoje, houve apenas uma Santa Missa em toda a cidade, e até esta contou com pouquíssimo público. O fato mostra claramente a grande carência de sacerdotes e o desinteresse por questões religiosas em todo o império. A igreja na qual foi realizado o ofício religioso era desprovida de bancos ou cadeiras e tinha um aspecto muito feio. À tarde tivemos a oportunidade de participar de uma excursão até o convento de Nossa Senhora da Penha em companhia de uma família que, porém, falava apenas português. Entre os excursionistas havia uma noiva de dezesseis anos e outra jovem de dezenove. Esta, pelos padrões locais, já era considerada uma solteirona. Os casamentos aqui acontecem em idade relativamente baixa, quando as moças mal abandonaram seus sapatos de criança. Estas jovens se distinguem por uma excessiva timidez, pois qualquer oportunidade para os noivos se conhecerem um pouco melhor é de todo inviável pelos costumes locais. A noiva que nos acompanhava só via seu prometido aos domingos, e dentro de alguns meses já estarão unidos para o resto de suas vidas. Num barco denominado Espírito Santo atravessamos 12 quilômetros pelo canal de Vitória em direção ao mar para chegar a Vila Velha, também chamada Espírito Santo. Trata-se de uma localidade cuja fundação data de 1535. Depois chegou a ser por algum tempo a capital do Espírito Santo, porém agora está reduzida a uma vila de pescadores sem maior importância. Vento, ondas e maré alta vieram com tanta força que a maré chegou a atingir 2,05 metros em Vitória, tornando muito difícil e desconfortável nossa passagem entre os penhascos. Finalmente, quando os barqueiros não mais conseguiam vencer a força dos elementos, tivemos que procurar refúgio atrás de uma península saliente e, ao contrário do plano inicial, descer em terra em outra baía. Com este desembarque improvisado tivemos nova oportunidade de perceber todo o variado caráter destas mulheres brasileiras em sua oscilação entre a apatia e o medo. Numa horta em Vila Velha deparamo-nos com um tipo de árvore de pouca altura e grandes folhas. Se uma Poinsettia pulcherrima Willd. estivesse em local favorável, como parece ter sido o caso, e se conseguisse desenvolver-se como árvore e atingir três metros ou mais de altura, estas interessantes plantas com suas fantásticas folhas coloridas poderiam ter sido do gênero das euforbiáceas. De Vila Velha, atravessando bela paisagem, ao longo de um caminho sombreado por entre uma vegetação exuberante, subimos o morro de 130 metros sobre cuja rocha está o mosteiro de Nossa Senhora da Penha, hoje abandonado. Indiretamente este convento deve sua fundação ao monge espanhol Pedro Palácios, que em 1558 aqui chegou para catequizar os indígenas. A ermida por ele construída no topo da rocha foi entregue aos franciscanos quinze anos depois de sua morte em 1575. Estes transformaram a ermida numa capela maior e em

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Cadeia montanhosa da Serra vista de Carapina.

Pintura executada por B. Wiegandt a partir de esboço elaborado pela autora.

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1637 numa igreja, construindo ao lado um mosteiro que, com o passar dos anos, sofreu diversas ampliações.146 Entramos no templo, que é pequeno e, em consequência de seu estilo antiquado, nada possui de bonito. Sua condição como célebre local de peregrinação, em que há muito se converteu, se deduz dos inúmeros ex-votos que pendiam das paredes. Mais bonita que a obra da mão humana nos parecia daqui de cima a imagem da natureza. A visão, além de qualquer descrição, era fantástica e, mesmo comparada à de ontem, mais abrangente. O primeiro plano parecia abrir-se em dúzias e dúzias de montanhas e colinas. Ao norte, o monte Mestre Álvaro erguia-se em toda a sua grande imponência, e a noroeste o morro da Serra, com o qual, a oeste, se fundiam algumas elevações, os cumes íngremes da serra de Mangaraí e a serra da Malha em Porto do Cachoeiro, e atrás desta outras cadeias de montanhas mais distantes. Ao sul abria-se a serra de Guarapari, a leste o caudaloso mar, e sobre tudo isto brilhava o sol com toda a sua luz transfiguradora. A visão terra adentro, com seus inúmeros picos de montanhas e desfiladeiros, mais parecia o cenário da súbita paralisação das altas ondas de um mar revolto. No retorno de Nossa Senhora da Penha visitamos uma propriedade no outro lado de Vila Velha, a partir da qual tivemos uma pitoresca visão panorâmica deste convento sobre a rocha que coroa a montanha. O vento, que já prejudicara nossa vinda de Vitória e que parecia tornar-se mais forte, fez com que, ao invés de um barco a remo, passássemos a utilizar uma lancha na volta para casa. Também esta sofreu com a violenta agitação das ondas. Anoitecera neste meio tempo. Ao chegarmos finalmente a Vitória, a magia do luar parecia repousar sobre o pitoresco agrupamento de casas. Vitória. Terça-feira, 11 de setembro. Durante o dia de ontem e a metade do dia de hoje continuamos aguardando o vapor, que já devia ter chegado. Por outro lado, também nos sentimos tolhidos em nossa liberdade de movimentos. Éramos hóspedes, e assim não podíamos a nosso bel prazer contratar animais ou barcos. Como também estava muito quente para empreender passeios a pé, tivemos que nos conformar e ficar em casa, tentando dominar nosso anseio pela chegada do navio salvador. Só de manhã cedo ou no final da tarde podíamos nos aventurar em pequenas caminhadas. Embora a população desta cidade de pouco contato com o mundo,147 com seus fortes traços de miscigenação indígena, habitualmente nos visse como ) Carvalho Daemon: Provincia do Espirito Santo, p. 72, 89, 93 e ss., 113, 119. ) A autora utiliza o termo verkehrsentrückt, que literalmente quer dizer deslocado do trânsito, porém, no contexto, pode ser interpretado como de pouca possibilidade de comunicação com o mundo civilizado da época. Nota do tradutor. 146 147

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miragem de outro mundo, não nos constrangíamos em perambular pelas ruas em todas as direções. A cidade se estende graciosa sobre o aclive da margem sudoeste da ilha do Espírito Santo, uma ilha de gnaisse com 25 a 30 quilômetros de circunferência. As casas em parte estão decadentes. As ruas que sobem e descem são estreitas e mal cuidadas e o calçamento está ruim. Porém, bem mais encantadora é a vista que destas ruas se tem para a baía e o Lameirão e para as serras azuladas ao longe. Atraente também é a característica alpina do entorno da cidade. Declives suaves ou íngremes, cobertos por faixas intercaladas de capim e rocha, chegam até a água e, por trás do casario, elevam-se até uma altura de trezentos metros. Ora de cá, ora de lá, se avista este quadro naturalmente emoldurado com o mar em primeiro plano e a cadeia montanhosa ao fundo. Ao voltarmos de um destes passeios, como parece ser costume no Brasil, uma mulher totalmente estranha nos convidou a entrar em sua casa. A mobília da sala de estar, como em quase todos os lugares aqui no interior, consistia de algumas cadeiras de vime encostadas à parede. Porém, não nos ofereceram café, como é o hábito aqui, e sim cerveja. Também nos prometeram pássaros domésticos que seriam enviados a um endereço do Rio. Será que chegarão?148 Os brasileiros são rápidos em prometer, porém incertos em cumprir o prometido. Pode até ser que se trate no caso apenas de frases de cortesia e que nós, alemães, familiarizados com outros costumes, levemos essas palavras por demais ao pé da letra. Apesar de tudo, no que se refere à coleta de exemplares de fauna, não saímos de mãos vazias. Recebemos de presente uma Xenodon neuwiedii Günth., uma das serpentes constritoras do sul do Brasil; uma Rhadinaea merremii Wied,149 uma cobra lisa brasileira aqui chamada cobra d’água; uma Thamnodynastes nattereri Mik., pequena, ágil e delicada serpente arborícola noturna (da família das Dipsadidae) que costuma picar embora não seja venenosa e, como o nome indica, costuma viver em árvores e, durante a noite, sai à caça de presas; e finalmente uma Pentaceros reticulatus Linck, uma bonita estrela do mar, bastante difundida no oceano Atlântico. O calor que tivemos que aguentar nos últimos dias foi muito incômodo. Ontem ao meio-dia o termômetro registrou 27,5º C dentro de casa, e mesmo lá fora, com céu nublado, e hoje, com tempo coberto, abafado, fez 26,5º C. dentro de casa e 28º C. fora. Na manhã de hoje, dia útil, portanto, quando comparecemos a um ofício religioso, além de nós e uma mocinha, não havia absolutamente ninguém na igreja. O pequeno público representa um berrante contraste com a frequência que ) Realmente nunca chegamos a recebê-los, seja porque já tínhamos retornado para a Europa, seja porque esta remessa nunca chegou a ser feita. 149 ) Ver mais acima à p. 255 [Remissão a uma passagem anterior.] 148


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sempre se pode observar nos dias de semana nas igrejas da Alemanha católica. Com exceção desta igreja de Vitória, única que nos provocou certa admiração, em nenhuma outra nem, tampouco, em nenhum dos edifícios públicos, observamos qualquer traço arquitetônico original. Pois, se de um lado as paisagens no Brasil costumam ser lindas, de outro lado também são raras as obras feitas pela mão do homem capazes de cativar o observador por quaisquer aspectos de beleza. Nem a capela de São Tiago, do antigo Colégio dos Jesuítas, que, agora dentro do Palácio do Governo, passou a se chamar Capela Nacional, foge a esta regra geral. Esta capela certamente ganhou importância pelo fato de guardar há séculos entre suas paredes os restos mortais do célebre padre José Anchieta. A este padre jesuíta, a quem merecidamente se denomina apóstolo do Brasil, em grande parte se deve a cristianização desta terra. Especialmente a província de Espírito Santo se tornou cenário da atividade missionária deste homem extraordinário. E assim foi que em 1597 concluiu sua vida abençoada na aldeia de Reritiba,150 mais tarde chamada Benevente e hoje Anchieta, nesta província. Além disto, o padre Anchieta não ficou conhecido apenas como missionário. Foi também o primeiro a produzir um dicionário e uma gramática do tupi, língua que passou a ser bastante utilizada na catequese dos indígenas. Para vermos algo instrutivo em Vitória nem sequer havia necessidade de sair de nosso alojamento. A casa onde nos encontramos, que goza de localização privilegiada nas proximidades do porto, vem a ser uma das maiores firmas de comércio de café da região. Todo o andar térreo é ocupado pela atividade comercial, e aí são empilhados os sacos de café. Ali mesmo os diferentes tipos são misturados. Porém, a mistura de grãos velhos e novos é inaceitável, já que isto dá ao café um gosto ruim. A mistura dos diferentes tipos costuma ser feita de acordo com os pedidos dos importadores de diferentes países, cada qual indicando o tipo de mistura de sua preferência. Justamente agora, depois que chegamos, os [trabalhadores]151 negros andam ativamente ocupados em encher as sacas com o café já misturado, pesar o café ensacado e, depois de conferir o peso, costurar as sacas e carregá-las à cabeça até o navio ancorado em frente à casa. Para os negros este trabalho parece fluir tão rápido e de forma tão animada que é um prazer vê-los em ação. Em fila ininterrupta os carregadores se movem da casa até o navio. Nestes dois dias, ontem e hoje, chegaram a carregar duas mil sacas, o que representa um valor de cerca de cem mil marcos. Aqui na costa o valor de uma saca de café já chega a ser bem mais alto do que, por exemplo, na 150 ) Dos diferentes nomes citados que teve esta aldeia, como Yryrityba, Iritiba, Rerityba, Reritigba e Retigba, parece ter sido Yryrityba o nome mais correto, pois, yryri = ostra e tyba = lugar, o que é muito comum por aqui. Ver Gonçalves Dias: Diccionario da Lingua Tupy, p. 177, 191. 151 ) Palavra explicativa inserida pelo tradutor.

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fazenda do Barão de Cantagalo,152 onde os elevados custos do transporte ainda não foram computados e o conteúdo das sacas também parece ser menor.153 No ano passado, quando a colheita teria sido ruim, segundo o dirigente local da firma Pecher, o café teria alcançado um preço bem superior ao do ano em curso, no qual a colheita teria sido muito boa. As oscilações mais significativas dos preços do café seriam atribuídas especialmente à especulação da Bolsa de Mercadorias. Na Bolsa a cor do café é que mais define o preço do café. O café brasileiro, que se exporta principalmente para os Estados Unidos da América, graças à pouca atenção e cuidado que se dão a seu cultivo, tem a pior das classificações, e por isto também vem a ser o mais barato de todos os cafés. Na primeira metade deste ano a exportação de café proveniente da província do Espírito Santo foi de 5,8 milhões de quilos, o que corresponde a um valor de 2,3 milhões de mil-réis.154 A bordo do Mayrink. Quinta-feira, 13 de setembro. Finalmente, com três dias de atraso, chegou anteontem à tarde o tão esperado vapor Mayrink. Assim, às quatro horas da tarde pudemos iniciar a viagem de retorno ao Rio de Janeiro. Tratava-se de um barco de tamanho médio da navegação costeira do Brasil que, apesar de mais confortável que o minúsculo Rio São João, nem de longe oferecia a mesma comodidade que o magnífico Maranhão. Antes de deixarmos o porto de Vitória, ainda tivemos oportunidade de fazer algumas observações zoológicas a partir do convés. Um peixe de aspecto muito peculiar, longo e estreito, de cabeça longa e mais estreita que o restante do corpo, que tinha a forma de lanceta ou agulha, passou a nadar ao redor do barco. Não me pareceu ser um Hemirhamphus e sim um exemplar de peixe-agulha (Belone), gênero próximo deste Hemirhamphus,155 dos quais pelo menos três espécies (Belone truncata Les., B. hians C. e V., e B. raphidoma Ranz.) são encontradas na costa brasileira.156 Não tão estranha quanto este peixe, mas também interessante, foi a quantidade de medusas (Hydromedusae) que povoavam as águas do porto. Quase do tamanho da Cyanea capillata Esch., possuíam uma cobertura quase esférica e de um branco leitoso sob a qual aparecia uma figura cruciforme ainda mais leitosa. Adornava a cobertura uma coroa de franjas de cor marrom sob a qual aparecia uma segunda fileira de franjas mais longas ) Ver mais acima à p. 292. [Remissão a uma passagem anterior.] ) Ver Tschudi: Viagem pela América do Sul III, 120. 154 ) 2,3 milhões de mil-réis = cerca de 5,258 milhões de marcos. 155 ) Gêneros de ambas as espécies têm o nome popular de “agulha” (aguja, aiguille etc). Ver Cuvier et Valenciennes: Histoire naturelle des Poissons XVIII, p. 430, 435, XIX, p. 19. 156 ) No Brasil existe também uma espécie de Belona de água doce, a Belone taeniata Günth. (Ver Günther: Catalogue of the Fishes in the British Museum VI, 256). 152 153


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e brancas; talvez as primeiras sejam lóbulos laterais e as segundas tenham a função de boca. É provável que estivéssemos nos deparando com uma espécie Crambessa, e não se podia negar certa semelhança com Crambessa Tagi Haeck, embora esta disco-medusa somente tenha sido observada nas águas salobras da foz do rio Tejo. A costa imediatamente ao sul de Vitória mostrava-se bonita e montanhosa. Logo em seguida transformou-se numa baixada pantanosa, como também observáramos ao norte da cidade. Estas baixadas transformam a região numa área úmida assolada pela cruel malária. Com a chegada da escuridão da noite deixamos de avistar as terras da margem. Durante a noite o vapor se aproximou da região de Anchieta, que se desenvolveu a partir de um aldeamento indígena do padre Anchieta e que possui um bom porto. Até o ano passado era apenas uma vila, chamada Benevente. Não muito tempo depois de nos termos aproximado desta cidade de 8.000 habitantes, às três horas da madrugada, paramos em mar aberto diante do vilarejo de Piúma, originalmente uma aldeia de índios puris. Nossa presença no lugarejo foi anunciada por uma série de sinais emitidos pelo apito do vapor, o que em nada contribuiu para o descanso noturno dos passageiros. Pouco tempo depois de Piúma alcançamos nossa já conhecida foz do rio Itapemirim, onde permanecemos ancorados até às dez horas da manhã. Um sem número de sacas de café começou a ser embarcado, tanto que finalmente devíamos ter de três a quatro mil a bordo. Além disto, o carregamento ainda consiste em cerca de mil a duas mil sacas de farinha de mandioca, de frutas cucurbitáceas157 e de grande quantidade de cocos, em parte até já brotando. Enquanto se embarcavam estas mercadorias do barco para o porão do navio, uma pessoa da terra ofereceu-nos para venda um papagaio de cauda curta e quase todo verde, com algumas penas azuis na cabeça. Pelo aspecto e pela plumagem deduzi tratar-se de uma jovem e grande maitaca (Pionias maximiliani Kuhl), que já tinha perdido o tom vermelho da cabeça. Já existem a bordo dois periquitos verdadeiros (Brotogerys tirica Gm.), bastante comuns nas matas costeiras, irritantes periquitos de bico estreito, tendo, em parte do dorso e nas asas, belas penas azul-escuras. Além disto, a coleção de animais vivos inclui ainda um sabiá de belo canto, aliás um dos pássaros brasileiros que correspondem ao nosso rouxinol.158 Este sabiá de plumagem amarela e vermelho-marrom me parece ser um sabiá159 do campo (Mimus saturninus Licht.). Numa das gaiolas ainda há uma araponga (Chasmorynchus nudicollis Vieill.), que constantemente nos faz lembrar a cavalgada pela selva, quando os gritos de seus companheiros, iguais a ) Abóboras, melões, melancias, buchas, etc. Nota do tradutor. ) Provavelmente um Megarhynchos luscinia. Nota do tradutor. 159 ) A autora utiliza o termo Spottdrossel. Nota do tradutor. 157 158

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batidas de sinos, o tempo todo nos feriam os ouvidos. Como último espécime de pássaros da coleção de aves do navio, que nos chamou atenção por parecer com a araponga como um ovo parece com outro, sendo totalmente branco e de mesmo aspecto e tamanho que aquele, mas, ao invés do cinza no pescoço, apresentava uma cor esverdeada. Como esta espécie de Chasmorynchus não foi descrita por nenhum ornitólogo, e não querendo descrever uma nova espécie, presumo tratar-se de uma Chasmorynchus nudicollis Vieill. que ainda não tenha trocado toda a sua plumagem de filhote. A parte inicial da região ao sul de Itapemirim ainda podia ser descrita como bonita; serras isoladas elevavam-se além da mata litorânea. Já pouco depois o horizonte a oeste passou a ser delimitado por uma estreita faixa de mata; navegamos ao longo de uma região plana cheia de lagoas e pântanos que se estendia para o norte e para o sul a partir do estuário do rio Paraíba e que pertence a uma formação geológica muito recente. Esta é uma região especialmente adequada à cultura do arroz, para a qual ultimamente tem sido muito utilizada. Ao meio-dia, com uma leve brisa, medimos 25,5º C. À noite, depois que o sol, como grande bola de fogo, se pôs por trás de um nevoeiro, a temperatura pareceu subir. Durante o dia nem sequer tivemos a sensação de singrar o vasto oceano Atlântico. O mar apresentava a cor e a tranquilidade do Bodensee. Quando a escuridão desceu, a lua passou a tecer uma larga faixa, reluzente como diamante, sobre o mar em delicado movimento. Já eram duas horas quando o vapor passou pelo Cabo Frio. Pela manhã, pouco depois das seis horas, subimos ao convés e avistamos bem perto, à nossa frente, a costa rochosa quase desabitada da província do Rio de Janeiro. Já às 10 horas, depois de uma ausência de três semanas, voltamos a entrar no porto da capital nacional.160

) Na época, o Rio de Janeiro. Nota do tradutor.

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A p êndice ­ —

Tabela de ilustrações etnográficas 1.  Embornal tecido de algodão com extremidade feita de bambu; 1/5 do tamanho natural. Botocudos. 2.  Cacaiú, rede de fibras de plantas; 1/6 do tamanho natural. Botocudos. 3.  Recipiente feito a partir da fruta da Lagenaria vulgaris; altura, cerca de 8 cm. Botocudos. 4.  Idem. 5.  Casca de fruta da Crescentia; diâmetro superior de 10 cm. Botocudos. 6.  Capanga, bolsa confeccionada com fios de algodão; cerca de 1/5 do tamanho natural. Botocudos 7.  Agulha de tecer; comprimento, 26 cm. Botocudos. 8.  Flecha para caçar pássaros; comprimento, 1,50 m. Botocudos. 9.  Flecha com ponta de madeira e espinhos, arma de guerra e para caça de animais de grande porte; comprimento, 1,50 m. Botocudos. 10.  Flecha de guerra com ponta de bambu; comprimento, 1,50 m. Botocudos. 11.  Flecha com ponta de bambu para caça de animais maiores; comprimento 1,50 m. Botocudos. 12.  Arco com fiação de fibra de cipó em ambas as extremidades; comprimento, 1,62 cm. Botocudos.



Fac-símiles das páginas originais em alemão












































































































Obrigado, Levy Rocha. Esta publicação de Viagem pelos trópicos brasileiros: Província do Espírito Santo, de autoria da Princesa Teresa da Baviera, foi inspirada no trabalho de um capixaba que nunca mediu esforços e tempo para resgatar o nosso passado: Levy Rocha. Tive pouco contato com ele, mas sua obra sempre contou com minha visita constante. Eu o vi poucas vezes. Conheci sua obra na década de 70, quando Frederico Cristiano Stauffer, avô de minha esposa Eliane Stauffer de Andrade Mansur, me presenteou com o livro Viajantes estrangeiros no Espírito Santo. Mergulhei então na história da imigração suíça, resultando daí a edição, em 2006, da Viagem à província do Espírito Santo: Imigração e colonização suíça (1860), tradução parcial do livro de Johann Jakob von Tschudi, com patrocínio da Radio Suíça Internacional e participação do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. A presente publicação é uma homenagem ao mestre registrador da história capixaba, LEVY ROCHA.

Ronald Mansur

Texto composto na tipografia Adobe Caslon Pro sobre papel Pólen 90 g/m2. Impresso no verão de 2014 na Cromosete Gráfica e Editora, São Paulo.



z "Num barco denominado Espírito Santo atravessamos 12 quilômetros

pelo canal de Vitória em direção ao mar para chegar a Vila Velha, também chamada Espírito Santo. [...] Vento, ondas e maré alta vieram com tanta força que a maré chegou a atingir 2,05 metros em Vitória, tornando muito difícil e desconfortável nossa passagem entre os penhascos. Finalmente, quando os barqueiros não mais conseguiam vencer a força dos elementos, tivemos que procurar refúgio atrás de uma península saliente e, ao contrário do plano inicial, descer em terra em outra baía. [...] De Vila Velha, atravessando bela paisagem, ao longo de um caminho sombreado por entre uma vegetação exuberante, subimos o morro de 130 metros sobre cuja rocha está o mosteiro de Nossa Senhora da Penha, hoje abandonado. [...] Mais bonita que a obra da mão humana nos parecia daqui de cima a imagem da natureza. A visão, além de qualquer descrição, era fantástica e, mesmo comparada à de ontem, mais abrangente. O primeiro plano parecia abrir-se em dúzias e dúzias de montanhas e colinas. Ao norte, o monte Mestre Álvaro erguia-se em toda a sua grande imponência, e a noroeste o morro da Serra, com o qual, a oeste, se fundiam algumas elevações, os cumes íngremes da serra de Mangaraí e a serra da Malha em Porto do Cachoeiro, e atrás desta outras cadeias de montanhas mais distantes. Ao sul abria-se a serra de Guarapari, a leste o caudaloso mar, e sobre tudo isto brilhava o sol com toda a sua luz transfiguradora. A visão terra adentro, com seus inúmeros picos de montanhas e desfiladeiros, mais parecia o cenário da súbita paralisação das altas ondas de um mar revolto."

PAtrOCíNiO


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