Soul GÊNERO E DIVERSIDADE
Ano 01, Edição 02, Novembro de 2016
Me Salte!
Jorge Gauthier, o homem de 4 milhões de acessos: “não faço militância cega”
Cultura indígena Já ouviu falar em Indiofuturismo? Jean Wyllys Deputado fala à Soul Tamo Juntas Atendimento gratuito a Trans na mídia vítimas de violência Théo Meireles vê desrespeito na apuração Artigo Mulheres de luta e “feminismos” Crônica As diferenças das pessoas e das flores novembro 2016
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Soul Revista Soul. Projeto interdisciplinar produzido pelos alunos do 5º semestre do curso de Comunicação Social /Jornalismo, da Faculdade Social da Bahia – FSBA, Salvador/BA, nas disciplinas de Práticas Integradoras II e Planejamento Gráfico. Coordenação do curso de Jornalismo: Bárbara Souza Edição geral: Elisangela Sandes Edição de texto: Bárbara Souza e Danielle Zuma Edição de arte: Elisangela Sandes, Fernando Anunciação Revisão: Bárbara Souza e Elisangela Sandes Projeto gráfico: Alunos do 5º semestre do curso de de CS – Jornalismo Textos: Bárbara Carolina Aguiar, Bianca Andrade, Carla da Matta, Caroline Lina, Caroline Rodrigues, Daniel Serrano, Didica Vasconcelos, Edielson Santana, Harrison Lago, Íris Leandro, Kaliandra Larissa, Mônica Marques, Nathália Nascimento, Nina Lacerda, Théo Meirelles, Vanessa Brunt. Editorial: Bárbara Souza e Edielson Santana CAPA: Elisangela Sandes e Fernando Anunciação FOTOS: Harrison Lago, Didica Vasconcelos, Caroline Rodrigues, Vanessa Brunt, Edielson Santana, Carla da Matta, Freepik e Divulgação. Colaboradores: Bianca Andrade, Caroline Rodrigues, Fernando Anunciação, Carla da Matta, Daniel Serrano,Caroline Lina, Daiane Santiago, Juliana Rebecci, Mônica Marques, Natália Silveira, Harrison Lago, Didica Vasconcelos e Nathália Nascimento.
Faculdade Social da Bahia – FSBA. Av. Oceânica, 2717, Ondina, Salvador – BA. CEP 40170-010. www.fsba.edu.br (71) 4009-2840 Diretora: Margareth Passos Vice-diretor: Fernando Miranda Coordenadora Acadêmica: Ornélia Marques
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CULTURA
Entrevista
RAÍZES
Oh my Kiddo! De um sonho em preto e branco para uma realidade colorida.
Jorge Gauthier: “Se os veículos de comunicação ignorarem, por mais tempo, a comunidade LGBT, vão perder público”
“Indiofuturismo” Voz nova no cenário musical brasileiro, Caru destaca a importância de raízes indígenas
Harisson Lago
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Diferente, não! A inserção do trans no ambiente escolar é um desafio.
Bianca Andrade e Nathália Nascimento
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Nina Lacerda
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DIÁLOGOS
Edielson Santana
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Desafios no silêncio. Onde e quando a sociedade é mais cruel Didica Vasconcelos
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#TamoJuntas Em combate à violência contra mulher
Bárbara Carolina Aguiar e Caroline
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Ver as diferenças das pessoas como vemos as diferentes flores
Cotas raciais nas universidades: a raça é humana?
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Íris Leandro
Crônica
Daiane Santiago
Artigo
Editorial
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em é gente nesse mundo. Somos mais de sete bilhões de pessoas. Pretos, brancos, índios e amarelos; velhos, jovens, pobres, ricos e remediados; magros, gordos, cheinhos e vazios; heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais; católicos, evangélicos, candomblecistas, espíritas, ateus. Somos muitos e somos essencialmente diversos. Prefere Pablo a Caetano? Mistura pagode, rap e cânticos gregorianos? Gosta mais de mortadela do que de coxinha? É fã das substituições herbívoras sugeridas por Bela Gil? Trocou a chapinha pelas tranças? Quer usar piercing no cotovelo? É gay, lésbica, bissexual, travesti, transgênero, transexual? Aceitar? O verbo é outro: respeitar. Simples assim.
Concebida pelos alunos do curso de Jornalismo da FSBA, a SOUL se propõe a ser um espaço editorial onde as diferenças são e serão sempre bem-vindas. Produzida sob a orientação das professoras Bárbara Souza, Danielle Zuma e Zanza Sandes, que assina o belo projeto gráfico da revista, a revista chega à sua segunda edição praticando aquilo que defende: o respeito à diversidade. Esse princípio editorial é traduzido pela pluralidade de assuntos, vozes, gêneros – inclusive os jornalísticos (reportagens, entrevistas, crônica e artigos), cores e formas que marcam essa edição, cuja versão eletrônica traz um plus: o programa radiofônico SOUL Mulher, produzido pelos integrantes da primeira turma do Estágio Supervisionado implantado em julho último pelo curso de Jornalismo da FSBA. Você tem diversos motivos para ler (e ouvir) a SOUL. Um deles: a entrevista exclusiva do jornalista Jorge Gauthier, editor do site “Me Salte”, canal LGBT do jornal Correio, que em pouco mais de seis meses bateu a marca dos quatro milhões de acessos. Isso mesmo. ‘Beijinho no ombro pras invejosas de plantão’. A revista traz também um pingue-pongue com o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ). jornalista Daiane Santiago assina um artigo lúcido e instigante sobre cotas nas universidades. Em outro artigo exclusivo para a Soul, a história do movimento feminista brasileiro e seus desafios norteiam a análise da professora de Direito da FSBA, Natália Silveira, que é também pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Ufba.
ILUSTRAÇÃO: ZANZA SANDES
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Os sons do silêncio das pessoas com deficiência auditiva; o grito abafado das mulheres violentadas, paralisadas pelo horror das agressões que não conseguem denunciar, e o coletivo “Tamo junto” que acolhe mulheres vítimas de violência; a cultura indígena e o “indiofuturismo”; a inserção dos trans no ambiente escolar. O cardápio informativo da SOUL é diverso, como diversos somos nós. Mas nosso desejo é um só: uma sociedade regida pelo respeito às diversas diferenças que nos torna únicos. Toda caminhada começa pelo primeiro passo e este foi dado em junho, com o lançamento da revista. Eis a segunda edição SOUL. Estamos caminhando bem. Avante! novembro 2016
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OH MY KI Belas, recatadas e do lar. Ou não. Hoje elas são o que quiserem ser. Ou melhor, nós somos. Texto: Caroline Lina
De um sonho em preto e branco para uma realidade colorida. Texto: Harrison Lago
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as histórias em mangás aos animes, surgem os “kpopers”, os fãs da música popular coreana. E não é diferente de qualquer outro fã. O diferencial dessa galera é que não basta gostar de um ídolo ou ser fã de algo específico, e sim, se dedicar ao que gosta para se igualar ao o nível “otaku” da coisa. E pra você que não sabe o que é “otaku”, a palavra significa ser fã de algo intensamente, ou seja, ser faná-
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tico por alguma coisa que nesse caso é o Kpop. Não diferente dos grupos de kpopers tradicionais, o grupo KIDDO é um grupo formado por Tamir Silva (26), Carlos Alexandre (21), Matheus Lima (16) Gabriel Caino (16), Victor Andrade (21), Lucas Xavier (17), Henrique Cerqueira (19), Irlan Bragi (18) e Caio Gutemberg (20). Os meninos relataram em entrevista que adoram fazer covers de girlsgroups sul-coreanos e
que acham de extrema importância a manifestação por parte da arte de fazer covers. De acordo com Tamir Silva (26), o grupo se formou em 2014 e teve como principal foco a utilização de figurinos femininos em suas apresentações. Ele nos conta que a criação do grupo foi um sonho realizado e que hoje consegue quebrar muitas barreiras através das apresentações. “O Kiddo foi sempre o que eu quis pra mim, é um gru-
Bahia. Dentre vários comentários lidos, a grande maioria é de apoio e muito carinho pelo grupo. Aos 20 anos de idade, Caio Gutmberg explica como é administrar as redes sociais e também todo contéudo visual do grupo. Ele conta que apesar de se sair bem com esse trabalho, não está estudando na área. “O Kiddoz é mais que um grupo pra mim, acho que para todos nós”, Caio é o responsável pela criação da “Cherry”, mascote do grupo que possui traços orientais e roupas bem coloridas, que podemos ter como base o meio do kpop. Os meninos deixaram bem claro que as vestimentas são essenciais para a marca “Kiddo”. Minissaias, croppeds, shorts curtos e muita maquiagens são os elementos que deixam os participantes com um aspecto alegre e desinibido. O grupo Kiddo é apenas um dos milhares de grupos formados por “meninos” que se vestem como “meninas” aqui na Bahia e que buscam, assim como outras pessoas, o respeito de se expressarem livremente.
FOTO: DIVULGAÇÃO
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para minha tia que logo em seguida mostrou para minha mãe, ela disse que ali era apenas um personagem e que não podia fazer nada, já que estava fazendo o que gostava”. Já Henrique Cerqueira, estudante de enfermagem, conta que o grupo ainda é um problema na visão da mãe. “Ela sempre aponta pra mim e diz que isso é coisa de viadinho. Só queria que ela entendesse que assim me sinto feliz, afinal esse sou eu”. A cada apresentação do grupo os meninos se surpreendem e encontram uma nova maneira de divulgar sua arte e realizar seu desejo de fã. Lucas Xavier é considerado um dos “maknaes”, que significa ser a pessoa mais nova do grupo, diz que o Kiddo foi apenas mais uma confirmação do que ele queria para a vida acadêmica dele, que é o teatro. “Desde pequeno sempre gostei de dança e teatro e no Kiddo eu posso me expressar, posso usar o que gosto e fazer o que quero”. Quem acompanha o grupo nas redes sociais sabe que o Kiddo é muito querido pela comunidade kpopper aqui da
po onde posso ser quem sou”, explica o líder do Kiddo. Para Carlos Alexandre (21), estudante de relações internacionais, a sexualidade dele foi sempre um problema em casa e o grupo Kiddo foi um meio de ajuda para o diálogo com os pais, facilitando sua compreensão em relação à sua sexualidade. “Certa vez um dos meus primos viu a publicação da nossa apresentação. Eu estava de saia e ele acabou mostrando novembro 2016
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Mulheres Trançadeiras e a sua Resistência De um sonho em preto e branco para uma realidade colorida. Texto: Kaliandra Larissa
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principal centro de produção das trançadeiras é o Centro Histórico de Salvador. Elas se reúnem desde a Praça da Sé até o Santo Antônio no Pelourinho, que é quase impossível passar por essas ruas e não encontrá-las, porque ao todo são 46 profissionais. Com o apoio do Sebrae, Ipac, 8
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Unegro e a Prefeitura de Salvador elas se organizaram e criaram a sua associação Assotrans, para garantir o respeito dos moradores, de taxistas e profissionais da Prefeitura que marginalizavam e perseguiam essas profissionais, além de criar uma tabela com o preço adequado de seu trabalho, para não haver ocorrência desleal e até exploração dos turistas que
se propõem a fazer seus penteados. Segundo a trançadeira Silva Santos, apesar do apoio dessas instituições, ainda existem problemas com a falta de estrutura como, por exemplo, falta de banheiros nas barracas ao montar e desmontar. Para ela cada uma deveria ter uma espécie de quiosque, já que seria bom para a imagem do local e também atrairia mais clientes e turistas. Silvia começou a trançar com sua avó aos 9 anos de idade: ‘’São 36 anos de uma profissão não reconhecida, e ainda existe uma longa batalha para conseguirmos chegar a este feito’’. Em seu relato sobre o que acontece no ambiente de trabalho dela fica nítida uma certa competição entre algumas de suas colegas para conseguir clientes, o que por muitas vezes ocasiona mal estar. Algumas de suas colegas não se comunicam, gerando muitos desconfortos entre trançadeiras e o próprio cliente, porque existe um empurra-empurra entre as mesmas para ver quem vai conseguir atendê-los, por isso elas ficam com desespero em chamá-los. ‘’Existe uma preocupação com a crise atual do país, houve uma queda muito grande de frequência nas nossas barracas’’, atesta Silvia Santos. A profissional teve uma história de vida sofrida, morou em ocupações porque não tinha como pagar seu aluguel e durante um tempo perdeu sua consciência e ficou internada em uma clínica psiquiátrica. Conheceu através de sua avó o meio de subsistência que até hoje a faz sustentar sua família toda: cinco filhos, sendo dois adultos e os outros três que ainda precisam de seus cuidados. Sua filha aprendeu com ela a trançar e sempre que pode ajuda a mãe na barraca. Para não deixar a crise atual econômica afetá-las, trançadeiras utilizam de um método estratégico infalível e simples para chamar clientes, que é um cartaz
para as suas barracas e ainda levam seus amigos familiares para garantir também um penteado’’, como nos conta Silvia Santos. As trançadeiras do Pelourinho costumam ficar de 6 a 16 horas em pé, às vezes até sem conseguir se alimentar direito por não terem tempo, então quando chega um cliente elas querem logo pegar e aproveitar por não saber quando terão essa oportunidade novamente. A renda mensal chega a ser até menos que um salário mínimo. Em relatos dessas profissionais existem dias em que ganham nada, ou até de 15 a 20 reais e outros que ganham até a 400 reais. A herança das tranças foi trazida pelos escravos de diversos países do continente africano, eram bem mais que um simples adorno para as cabeças, pois as formas de trançar os cabelos tinham vários significados: podiam indicar status social e até sinalizar que a pessoa em questão estava interessada em se casar.
Antes de haver escrita, as mulheres mais velhas trançavam suas filhas, netas e parentes. Neste momento, passavam o conhecimento por meio de tradição oral. A trançadeira exerce, portanto, um papel fundamental na formação da identidade do negro. ‘’Hoje somos ricos em diversidades e está cada vez mais amplo o mercado das tranças, são diversos penteados, materiais mais novos, resistentes e coloridos, que fazem do nosso trabalho uma arte e instrumento de luta contra o Racismo.” Lea Calazans Devido a tantos anos de escravidão no Brasil, os descendentes de africanos não obtiveram real reconhecimento da sociedade de sua cultura e costume, mesmo com o fim da escravatura. Ficaram à margem, todavia priorizavam padrões europeus já existentes na época, não levando em conta que somos um povo de diversidades culturais, onde negros, brancos e índios juntos formaram nosso país.
FOTOS: KALIANDRA LARISSA
ou isopor com as fotos de seus trabalhos com tranças variadas em cabelos variados, quase que impossível passar pelas ruas do centro histórico e não escutar elas ou suas ajudantes em insistência dizendo: ‘’Vem amigo, colocar seu tererê, trancinha!’’. ‘’Desde pequena minha mãe fazia muitos penteados envolvendo tranças nagô, pois era fácil, prático e durava mais tempo. Com 5 anos de idade, na escolinha da alfabetização, uma colega de classe estava trançando o cabelo de outra colega, me interessei e depois desse dia venho trançando cabelos com frequência”, relata Lea Calazans. Lea abre sua barraca somente aos domingos, durante a semana trabalha em uma ótica para equilibrar sua renda familiar, por ser uma profissão ainda não legalizada como tal. Para elas e suas colegas de profissão existe uma certa dificuldade em manterem sua renda mensalmente com o cenário grave de crise atual. Trançar os cabelos, além de questão de estética, segundo Lea ajuda no fortalecimento e crescimento do cabelo, por estar próximo da raiz capilar, além de estar em contato com ancestralidade. Muitas mulheres estão deixando de alisar seus cabelos e assumindo seus crespos, aumentando ainda mais a procura pelos penteados afros, difícil não andar por Salvador e ver alguém sem um black power, trança, dread e outros muitos penteados. ‘’Existe nas tranças uma forma de levar adiante toda a nossa ancestralidade, hoje muitas mulheres e até homens querem ter um penteado afro, uma trança nagô, e qualquer dessas heranças deixadas pelos nossos ancestrais”, valoriza Lea Calazans Além disso, elas se garantem através de fidelização, conquistando a simpatia de seus clientes fazendo-os querer voltar e fazer um novo penteado ou manter o mesmo.’’E realmente com até menos de um mês eles retornam
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ARTIGO
Texto:
Daiane Santiago*
COTAS RACIAIS NAS UNIVERSIDADES:
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esde o início do século XXI, com o advento das ações afirmativas voltadas para a ascensão dx negrx, o Brasil vive um momento de ebulição em torno das questões raciais. Para constatar essa informação, basta fazer uma busca no Google e encontrará uma infinidade de produções jornalísticas, acadêmicas e sites especializados na temática. Impõese o fato de que as discrepâncias sociais a partir do “gradiente de cor” se configuram em um problema a ser combatido. Falando nisso, estamos em plena Década Internacional de Afrodescendentes 2015/2024. O período foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) e tem como objetivo realizar um esforço mundial para o satisfató10
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rio aproveitamento de direitos, bem como, para a participação efetiva e igualitária da população negra na sociedade. Diante desse cenário, que preconiza a garantia e o fortalecimento dos direitos desse grupo, será que o Brasil tem feito sua lição de casa? Trago algumas informações para nos ajudar a refletir. Embora xs negrxs representem, segundo dados IBGE de 2014, 52,9% da população brasileira, essa população também é maioria entre os mais pobres do país. Negrxs ganham 42% menos do que brancxs. E mais, de acordo com relatório final da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens, um jovem negro morre a cada 23 minutos no Brasil. Para finalizar esses dados estarrecedores, de acordo com a ONU,
A RACA É HUMANA? mulheres negras são as maiores vítimas de homicídio de mulheres no País. Curiosamente, mesmo com indicadores sociais tão preocupantes que acometem essa parcela de brasileiros, uma relevante conquista dessa população ainda causa muita polêmica e protestos acerca da sua legitimidade: a Lei n°12.711 de 2012, conhecida como a Lei de Cotas, que reserva vagas para negros nas instituições de ensino superior do país. A inserção de ações afirmativas voltadas para a população negra em uma sociedade que não se enxerga ou pelo menos não se assume segregacionista rendeu debates acalorados, manifestos de repúdio da parte de intelectuais e das elites brasileiras. Ou seja, só reafirmou o que já se sabia, não vivemos em uma democracia racial.
Para se pensar em educação da população negra no Brasil é interessante voltar no tempo e destacar alguns aspectos de um passado que ainda insiste em se impor. O decreto nº 1.331-a, de 17 de fevereiro de 1854, art. 69, determinava que as pessoas mantidas na condição de escravas não poderiam se matricular, nem frequentar escolas. Quase um século depois, no texto da Constituição brasileira de 1934, mais precisamente no art. 138, uma das recomendações era: estimular a educação eugênica. Ora, se o Estado brasileiro tinha nas suas diretrizes de educação orientações baseadas na prática da eugenia, como essa educação iria se desenvolver de modo favorável às pessoas negras? Ainda assim, os que repudiam as cotas se valem de uma novembro 2016
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infinidade argumentos. Confesso que alguns bastante criativos. Ora afirmam que vivemos uma democracia, com livre concorrência e todos podem ascender socialmente, sem distinção de cor. Outros alegam preocupação com a criação de guetos nas universidades e a instalação de tensões raciais nos moldes americanos. Outros evocam a ciência que, através do projeto genoma, comprovou que não existem raças. Todo frequentador de internet já deve ter visto por aí a frase: “A raça é humana”. Ainda tem os preocupados com a qualidade do ensino, com a reforma na educação de base, com o mérito. Outros, por sua vez, afirmam não ter culpa pelo passado escravagista brasileiro. Alguns mais convictos usam todos esses argumentos juntos.
Pois bem, procurando respostas, a primeira pergunta que vem à cabeça é: onde estavam essas pessoas quando já no inicio do século XXI a presença de alunxs negrxs nas universidades brasileiras não chegava a 3%? Em algum momento as classes predominantes nas graduações do país tiveram um conflito ético e se perguntaram por qual motivo a universidade não tinha presença de uma diversidade étnica que fosse condizente com a sociedade brasileira? Hoje pregam que raça é humana, sim, é verdade, o problema é quando se apropriam desse discurso e querem implantar essa lógica ao campo social. Não há como esquecer que a ciência já foi usada de maneira conveniente pelas elites. Utilizaram-se do racismo científico, darwinismo social e da eugenia
– essa última teve ressonância inclusive aqui no Brasil –, teorias que justificavam e estimulavam a prática de atitudes discriminatórias e racistas. Ademais, de que forma podemos medir o mérito no Brasil com tantos grupos de privilégios? Existe igualdade de ensino entre um aluno de escola pública e um aluno de escola privada? Por fim, lamentavelmente, o racismo institucional, já tão arraigado no país, faz com que uma formação superior não seja garantia de que a população negra irá acessar satisfatoriamente o mercado de trabalho. De acordo com a Rede Angola, houve um aumento de 230% no número de negrxs nas universidades. Para além do resultado, que ainda está aquém do necessário, a discussão sobre políticas afirmativas na sociedade
Para se pensar em educação da população negra no Brasil é interessante voltar no tempo e destacar alguns aspectos de um passado que ainda insiste em se impor.
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brasileira trazem um legado incomensurável. Um deles é incitar um debate acerca da situação social da população negra brasileira. A partir do momento em que o governo, por pressão dos movimentos sociais, insere cotas raciais nas universidades, automaticamente admite-se que não vivemos em democracia racial, tão pouco em uma sociedade com igualdade de oportunidades para todos. É essencial, que mesmo entre PECs que extirpam direitos e manifestações de ódio por toda parte, essas discussões se mantenham vivas e em pauta da sociedade. Por coincidência, escrevo este artigo em pleno Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, e reflito acerca dos desafios que as políticas de ação afirmativa enfrentarão nos próximos anos devido à instabilidade política que enfrenta o país. Quando me perguntam quanto tempo de cotas eu acho necessário para que cheguemos a uma situação de igualdade respondo que quando for algo normal encontrar pessoas negras em ambientes tão demarcados pela branquitude, como a política, a justiça e outros espaços de poder. Quando a vulnerabilidade social, conferida pela cor da pele, não for mais uma realidade. Neste caso, poderemos repensar a necessidade de Ações Afirmativas.
* Daiane Santiago é jornalista formada pela FSBA, pesquisadora, e autora do TCC “Ações afirmativas no Brasil: análise dos quadros (frames) da cobertura do jornal Folha de São Paulo sobre a lei de cotas raciais nas universidades”. novembro 2016
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DIÁLOGOS
DESAFIOS NO SILÊNCIO ILUSTRAÇÕES: FREEPIK
Onde e quando a sociedade é mais cruel
Os desafios que o surdo enfrenta na vida acadêmica, trabalho e na família. Como lidar com esses fatores e o que se pode melhorar. Texto: DIDICA VASCONCELOS
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x i s tem muitos graus de surdez e, pouca gente sabe, ainda existem casos em que a pessoa não sabe que tem alguma perda auditiva. Do mais leve ao grau mais profundo, o maior inimigo do surdo é o isolamento da sociedade. Em sua maioria, ou ouvintes não têm paciência em se comunicar, no geral até tentam, mas como não são compreendidos ou não compreendem, acabam desistindo. Com toda tecnologia disponível hoje, um simples celular serve para manter um mínimo de diálogo. As pessoas que têm surdez em geral sabem ler e escrever, portanto, a escrita é sempre uma alternativa para viabilizar a comunicação entre ouvintes e não-ouvin14
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tes. Para o ouvinte é difícil de se imaginar não escutando. Muitos até comparam a sensação de estar com as orelhas mergulhadas na água ou na areia da praia. Um oco sem sons mais com muitas sensações. Mike dos Santos tem 21 anos grau de surdez leve. Escuta com auxílio de aparelho e fala dentro das limitações. Trabalha no setor de digitalização do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia. No primeiro encontro me recebeu com um sorriso largo e cheio de perguntas. Queria saber o porquê do interesse por quem é surdo e onde iria ser divulgada a matéria. Pude encontrá-lo algumas vezes e em todas fui recebida com um largo sorriso e total disponibilidade em falar da sua trajetória. Mike me falou que não
viu dificuldades, apesar de ser o único surdo na família. Foi durante a alfabetização que sua mãe descobriu a perda auditiva e imediatamente procurou ajuda profissional. Isso o permitiu se desenvolver e ser inserido em todos os lugares, no entanto, mesmo escutando e falando pouco, hoje prefere ter a mãe por perto em algumas ocasiões. “Sempre fui inserido e nunca vi dificuldade na comunicação porque escuto com ajuda do aparelho e consigo falar”. Mike falou que sua maior dificuldade na sociedade mesmo é a comunicação, tem vergonha, não por ser surdo, mas é mais pelo modo de falar que geralmente é muito rápido, baixo e até mesmo embolado, como ele mesmo me descreveu. Aprendeu a linguagem de sinais sozinho, tudo pela internet (You Tube), e pra-
Aprendeu a linguagem de sinais sozinho, tudo pela internet (You Tube), e praticando com os amigos.
ticando com os amigos. Foi a 8 surdos com graus de surdez parceria do TRT da Bahia com a diversos, mas com o mesmo Associação de Pais e Amigos de comprometimento com o traDeficiente Auditivo do Estado balho. Já o calouro do curso de adda Bahia (Apada-Ba), firmada em agosto de 2012, que, através ministração na Faculdade Sode um convênio, possibilitou a cial da Bahia, Lucas Andrade contratação inicialmente de 25 Cabirta, de 25 anos, é portador profissionais com deficiência de surdez profunda, está super auditiva. Eles prestam serviços empolgado com a trajetória que ao Setor de Digitalização, vintem pela frente. A coordenadora do curso, Roculado à Secretaria de Coordenação Judiciária de 2ª Instânsilene Maria Cruz, falou sobre a chegada de Lucia. O trabalho desenvolvido cas. “Ele veio transfeao longo desse tempo deu rido do curso de Educerto, e o TRT baiano tem cação Física, onde servido de modelo para outros órgãos - como não se sentiu confortável, mas a sua Ufba e Procuradoria chegada no curso do Governo do Estado, de Administrapor exemplo, que já visitaram o setor para ção foi normal, só tomamos um conhecer a dinâmipouco mais de ca do trabalho e o cuidado no senexemplo de inclusão social e inserção no tido de trabalhar mercado proporcom essa deRosilene Maria Cruz manda, porque cionado pela iniciaCoordenadora do curso de precisávamos tiva. Hoje o setor te Administração da FSBA
de orientação. Em seu primeiro contato, Lucas procurou a coordenação com o pai, e demonstrou interesse de fazer administração. Ele sugeriu conhecer o curso antes de fazer a transferência definitiva. Lucas foi orientado a assistir a uma aula para se decidir sobre a transferência, que estava acontecendo na época do Painel de Administração. Com a matrícula, o Centro Multidisciplinar de Apoio Pedagógico e Psicossocial (Cemapp), ajudou ele orientando nos processos de matricula, escolha de matérias e junto a co ordenação. A coordenadora Rosilene falou que, desde 2010, a instituição adota a exigência do MEC, que é a disciplina de Libras, além disso a instituição deve ter um intérprete de Língua Brasileira de Sinais para o estudante que tem deficiência auditiva. O intérprete o acompanha nas aulas e nas atividades extra sala. As avaliações são aplicadas novembro 2016
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APRENDER
VOCÊ PRECISA
Todo intérprete precisa ter bom conhecimento nas duas línguas, no português e na linguagem de sinais. igualmente para todos os alunos, as mudanças são pontuais, frisando o grau de necessidade do indivíduo. O estudante surdo usa a libras pra se comunicar com a intérprete, que o acompanha todo o tempo, que traduz para a linguagem falada. A intérprete da instituição Vanderlita Gomes falou um pouco sobre sua função e nos informou que é preciso ter bom conhecimento nas duas línguas, no Português e na Lín-
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LIBRAS gua Brasileira de Sinais. Para passar os termos técnicos dos textos acadêmicos, ela precisa entrar em contato com os professores para eles disponibilizarem os assuntos e, então, ela debate com o estudante. No caso do Lucas, estudante surdo do curso de Administração da FSBA, que é bem esclarecido e tem boa leitura, apesar de não conhecer todo o vocabulário do Português, ela o ajuda a compreender o significado das palavras. “Eu preciso do apoio dos professores, instrutores muitas vezes da informática, assim consigo passar os termos dos textos da maneira mais fiel possível”. Mas precisamos ter um certo entendimento sobre a matéria, se algo eu não entendi ou o estudante não entendeu, eu peço ao professor para explicar de uma outra maneira, mais lúdica, para que eu possa passar o assunto de maneira correta”, confidenciou Vanderlita. Sérgio Cabirta, de 53 anos,
FOTOs: didica vasconcelos
pai de Lucas descobriu a surdez do filho aos 6 meses do garoto. Após a descoberta foram para São Paulo em consulta com um especialista para que Lucas fosse aparelhado e fizeram tratamento com fonoaudiólogo. Percebendo poucos progressos no desenvolvimento dele, introduziram primeiro o Português sinalizado, método Perdoncini de alfabetização, método de Silvestre também para alfabetização, até chegar a Libras com uma intérprete que ministrava aulas em casa para toda a família. Tios, primos, além do pai, mãe e o próprio Lucas faziam as aulas. Dois primos, o pai e a mãe ainda se comunicam com Lucas de forma rudimentar com uma Libras básica. Os outros familiares esqueceram, mas sempre procuram ajuda quando estão com Lucas. “A grande dificuldade da surdez é a comunicação e infelizmente ainda estamos muito longe de um sistema educacional realmente inclusivo, em que Libras seja ensinada desde a pré -escola e por toda a vida escolar e acadêmica. Falta muito pra não só os surdos como também para os portadores de outras deficiências terem oportunidades mais justas na sociedade”, declarou Sérgio Cabirta. Ele também ressaltou que o termo “deficiência” é inadequado e até grosseiro. O certo é “portadores de necessidades especiais”. A médica Claudia Maria Andrade Cabirta, de 51 anos, percebeu que o filho não escutava e não demorou a procurar mais informações e o que poderia ser feito. “Lemos vários livros, entrou em contato com otorrinolaringologistas, fonoaudiólogas, pedagogas, psicólogas. Tudo o que poderia ser feito eu e o pai dele se-
Lucas Andrade Cabirta, estudante do primeiro semestre de Administração.
guimos as orientações. Sempre mostramos para Lucas que ele é inteligente e capaz. Dos relatos, o que se tira das dificuldades vem da sociedade, da falta de paciência com a pessoa que tem alguma deficiência, a falta de preparação de profissionais e de familiares em receber o indivíduo portador de surdez. Com uma sociedade melhor e preparada, ou seja,
capacitada para entender a realidade estaremos aptos a vencer os preconceitos e tornar o mundo mais humano. Existem quatro níveis de surdez, a leve que apresenta uma perda de até 40 dB (impede a percepção perfeita de todos os fonemas da palavra, mas não impede aprender a linguagem), a surdez moderada com perda de 40 a 70 dB (esse encontre-se no nível da percepção das palavras, sendo necessário uma voz com certa intensidade), a surdez severa com perda de 70 a 90 dB e a surdez profunda, que apresenta perda auditiva acima de 90 dB. Existem os surdos oralizados que estão no primeiro nível de perda auditiva, esses sabem ler, escrever e conseguem conversar dentro dos seus limites. novembro 2016
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Indiofuturismo
Voz nova no cenário musical brasileiro, Caru destaca a importância de resgatar nossas raízes indígenas. Texto: Nina Lacerda
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na Carolina Oliveira, 26, conhecida apenas como Caru – o apelido vem da abreviação de “carulina” – cresceu em meio a uma família de músicos. Seu tio, maestro; sua tria, maestrina; e ela, desde criança, cantava. Formada em arquitetura pela Ufba em 2013, só iniciou de fato a carreira musical depois de concluir o curso. Sua primeira gravação foi um cover da música Falando de Amor, de Tom Jobim. “O dono do estúdio fez um vídeo meu enquanto gravava e publicou no Facebook. Ninguém acreditou que a voz era minha”, contou Caru. Depois de trabalhar a voz com aulas e dominar o violão, guiada pelo professor Hamilton Almeida, a jovem arquiteta deu início à gravação do seu primeiro EP, A Terra e O
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Tempo, que ficou entre os cinco melhores discos do ano de 2015 na avaliação feita pelo site El Cabong. De acordo com a cantora, “as pessoas aqui [de Salvador] não abraçam o trabalho de quem está começando”. Portanto, a divulgação inicial de seu primeiro projeto foi por conta própria. Seu primeiro show foi um sarau dentro da própria casa, em que o material de seu trabalho foi divulgado pela própria em suas redes sociais. Com bisavô tupinambá, Caru se vê imersa na cultura indígena e no xamanismo desde que descobriu sua ascendência. O seu atual projeto, Indiofuturismo, propõe uma releitura contemporânea da aura de seus antepassados, com uma linguagem visual que remete sempre à natureza. De acordo com a jo-
vem, não se trata de “bater pé no palco ou fazer barulho com a boca. Não é nada folclórico, nem fico falando sobre índio no show”, explicou. “É sobre ver o mundo pelo olhar do índio, entende? Amar as pessoas e a natureza porque somos também a natureza. É respeitar, agregar, divulgar. Trazer o índio na letra, em mim, no show, e agregá-lo ao futuro – e é aí que as batidas eletrônicas entram”. Caru conta que todos os objetos que usa em seus shows foram presentes dados por índios de uma tribo em Piracanga, onde costuma ir para fazer contato com seus antepassados através de retiros espirituais e rituais xamânicos. Com a participação de músicos como Beto Marcio (violonista e compositor) e Vanessa Melo (clarineta), Caru afirma
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
“A situação de investimento em cultura no Brasil, portanto em Salvador também, é precária. E, além de ser precária, o que já existe de dinheiro vai sempre para o mais do mesmo. Não sei se é medo de investir no novo, mas a gente sempre fica se perguntando como ele aquele mesmo ritmo batido sempre ganha patrocínio. Não há incentivo”.
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querer “que esse projeto dê voz pra quem queira fazer o mesmo. A cultura indígena precisa ser explorada, principalmente na Bahia. Em Salvador, a gente vê muito trabalho relacionado à cultura africana, acho ótimo; mas não somos só África. Somos índios também, e falta a divulgação dessa cultura por aqui”. Com relação aos músicos da banda, a cantora diz contar com o destino. “Vanessa [Melo], por exemplo, apareceu por acaso. Ela que deu sentido à minha música Sentido, na primeira vez que pedi a ela que tocasse [clarineta]”, brinca. A gravação do primeiro clipe do CD, “Desapareça”, disponível para visualização no YouTube, foi feita em apenas um dia. Com direção de Gabriel Malaquias (fotógrafo, arquiteto e amigo da cantora), pretende passar uma visão que a compositora teve em uma vivência xamânica com o intuito de ter visões ancestrais. “Não percebi que foi um aviso para o câncer de garganta que tive depois”, conta. Quando perguntei o porquê do nome “Desapareça”, Caru fez um desabafo. “Na verdade, esse título é direcionado a todas as pessoas que não respeitam a natureza, que não cuidam dela, que não são gratos. É um pedido para que eles desapareçam, saiam daqui”. Depois de ter feito um circuito de shows patrocinado pela livraria Saraiva, em 2015, e mais vários outros de divulgação de seu atual projeto em lugares como a Casa Da Mãe e o Teatro Gamboa Nova, Caru se mudou para o Rio de Janeiro no fim de Outubro. Sua agenda por lá inclui outra série de shows, divulgação do Indiofuturismo e planejamento de projetos futuros. Quando questionada sobre o atual investimento feito pelo estado na Cultura, a compositora mostrou desapontamento.
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COLETIVO
#TamoJuntas
Em combate à violência contra mulher Texto: Bárbara Carolina Aguiar e Caroline Rodrigues
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Me chamo Maria, tenho 48 anos e era casada com João há mais de 20. No início, João implicava muito com os tipos de roupas que eu usava e a maneira com que me maquiava. Pedia para eu não exagerar. Para mim, os cuidados com minha aparência influenciavam diretamente a minha autoestima, mas fui cedendo aos pedidos do meu marido. Eu achava que a atitude do João não passava de zelo e cuidado com a mulher que ele amava. Mas, com o de-
correr dos anos, eu comecei a duvidar das atitudes de João. Comecei a perceber que o excesso de zelo era, na verdade, abuso. As brigas se tornaram constantes e a agressão verbal começou a fazer parte do meu relacionamento. Até que um dia, sem pensar duas vezes, João me deu um soco no rosto. Meu mundo caiu. O homem que eu amava estava se transformando em um monstro. A partir daí, as coisas começaram a piorar, e eu a me esconder. Sentia muita vergonha em desabafar com
alguém – mesmo sendo familiares, porque as pessoas não entendem. Acham que a culpa é sempre da mulher. Até que um dia, depois de sete anos convivendo em um ambiente familiar hostil, resolvi procurar ajuda. Soube de um coletivo de mulheres que auxiliavam outras mulheres vítimas de violência doméstica. Depois daquele momento, grandes lutas começaram a ser travadas: eu contra a sociedade machista, eu contra o João e, principalmente, eu . contra mim mesma
”
Fotos: Caroline Rodrigues
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asos como o de Maria – personagem fictício – acontecem cotidianamente em Salvador. Segundo dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-BA), de janeiro a março de 2015 foram contabilizados ao todo 9.795 ocorrências entre homicídios, lesão corporal, estupro e ameaça. Mas, apesar do número expressivo, na capital baiana existem poucos lugares de apoio à vítima de violência doméstica. É o caso do coletivo Tamo Juntas, com sede no bairro de Nazaré, que surgiu através de um post em uma rede social feito pela advogada Laina Crisóstomo, de 29 anos, que rapidamente chegou ao número de 65 mil curtidas no Facebook. “Minha ideia inicial foi criar uma rede de solidariedade mesmo. A perspectiva é essa”, conta a presidente do coletivo. O grupo se destaca por oferecer atendimento psicossocial e jurídico totalmente gratuito. Inclusive é o único na capital baiana que dá às mulheres vítimas de violência acesso a pro-
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fissionais sem cobrar nenhum valor por isso. Além disso, o coletivo organiza mutirões com temas sempre voltados para o empoderamento da mulher, concedendo o poder de participação social às mulheres e garantindo que possam estar cientes sobre a luta pelos seus direitos, como a total igualdade entre os gêneros. Para Laina, é importante empoderar as mulheres através do conhecimento e abordar temas que elevam a autoconfiança da mulher em diversos quesitos. Além de advogadas, psicólogas e assistentes sociais, algumas mulheres e até estudantes de cursos de psicologia e assistência social também dão apoio ao trabalho voluntário multidisciplinar realizado pelo coletivo. Os mutirões de conscientização e empoderamento são abertos ao público e realizados todos os meses. Neles as palestrantes estimulam, principalmente, a autoestima entre as mulheres e como elas devem se posicionar diante de um parcei-
ro agressor. Os mutirões ainda oferecem espaço para expressão da arte com convidadas que levam música e poesia. Há também momentos de compartilhamento entre elas, como almoço e até um bazar colaborativo. Nele as voluntárias levam objetos que não utilizam mais de pulseiras à roupas e até livros – para serem distribuídos às mulheres que vão ao mutirão de forma gratuita, visando, segundo Laina, evitar o consumismo em excesso e desnecessário. O evento também distribui algumas cartilhas e folders informativos sobre os tipos de violência contra a mulher e outras questões abordadas nos mutirões. Já os atendimentos jurídico e psicológico são semanais. Apesar de ser sediado em uma igreja, o Tamo Juntas não tem vínculo religioso. A advogada responsável pelo coletivo, Laina, conta que os casos ouvidos geralmente são no seguinte ritmo de agressão: verbal, e física. E que ocorrem ainda casos de violência contra os bens, quando os maridos
obrigam as mulheres a cederem seus cartões de créditos e neles fazem dívidas grandes que muitas vezes não são pagas, sem que ela tenha direito de utilizar o próprio cartão para benefício próprio. E que há ainda casos onde o homem possui bens como imóveis e carros no nome da vítima, deixando-lhe dívidas, deixando em dívida a ficha econômica da mulher. A psicóloga Rosa Cláudia Almeida, de 49 anos, especialista em psicoterapia de abordagem psicocorporal, explica que o primeiro sinal que pode indicar violência doméstica é a tendência ao isolamento social. “A vítima geralmente apresenta baixa autoestima, ansiedade e estresse, neste caso, ocasionado pelo excesso de tensão. Tudo isso colabora para presenças menos frequentes nos eventos familiares”, afirma a profissional. A Psicoterapia Corporal é uma forma de psicoterapia orientada para o corpo. A abordagem terapêutica combina o trabalho com processos energéticos, movimento, postura, expressão emocional, imagens, análise psicológica e experiência relacional. O processo terapêutico inclui experiência corporal e interação entre cliente e terapeuta, que induz o paciente a lidar com a intimidade afetiva, dificuldades sexuais e como
compreender e dissolver formas repetitivas e dolorosas de se relacionar. A psicóloga explica também que o apoio da família nestes casos é fundamental. Segundo Rosa Cláudia, os parentes da vítima devem protegê-la e direcioná-la à Delegacia da Mulher mais próxima. Para ela, a maior barreira que a mulher vitima de agressão doméstica enfrenta é o medo. “Muitas dependem emocionalmente dos parcei-
ros. Acham que não vão conseguir redirecionar a vida após o término do relacionamento, mesmo a relação sendo abusiva. Outras têm medo do agressor atentar contra a vida delas”, explica. Muitas mulheres vítimas de violência doméstica em Salvador têm achado uma saída através do coletivo. É o caso de uma vítima de 45 anos que, após a ajuda do Tamo Juntas, passou a ver a vida sob outro prisma. “Não vivia a minha vida. Tinha hora para sair e hora para chegar. Eu era totalmente controlada pelo meu parceiro”. Ela conta ainda que tentou procurar ajuda, porém, ressalta a importância do acesso a profissionais capacitados como psicólogos, advogados e até mesmo os delegados responsáveis pelo caso. “Não adianta procurar assistência de um profissional que não entende o contexto da mulher agredida”, explicou. Hoje, para ela, a vida tem outro sentido. Liberdade, autoestima e independência são os pilares da essência daqui para frente.
A idealizadora do coletivo, Laina Crisóstomo, ressalta que neste multirão as participantes tomaram conhecimento sobre os tipos de violência contra a mulher. novembro 2016
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z COMPORTAMENTO
OS PLURAIS DO FEMINISMO
e TEXTO: Vanessa Brunt
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teclado não tem calado. O assunto não tem morrido. O debate, as críticas, as lições, os dedos incansáveis e as vozes alarmantes prosseguem em crescente ascensão. A explosão dos choros escondidos não foi incitada apenas pelo caso em que mais
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de 30 homens estupraram uma garota. Ao som do passado e à luz do céu profundo, o feminismo continua a desafiar peitos por tantas mortes. Mas será que um dos conteúdos mais debatidos diariamente nas principais redes sociais (Instagram, Facebook, Snapchat, Twitter, entre outras) é
assim tão uniforme? Os embates não ocorrem somente entre os que se determinam como “não feministas” e os que se intitulam “feministas com orgulho”. Os bate-bocas nas redes sociais – e fora delas – têm acontecido dentro dos grupos dos vários, dos divergentes “feminismos”. Dentro de tantas divisões,
O teclado não tem calado. O assunto não tem morrido. O debate, as críticas, as lições, os dedos incansáveis e as vozes alarmantes prosseguem em crescente ascensão.
existem sete que hoje são consideradas principais. Grupos que estão se fixando como identificadores e balizadores de ideias e ideais, ganhando reconhecimentos em meio a conversas sobre feminismo e determinando lugares de fala. Mas, afinal, quais são esses plurais que causam tantas fragmentações,
somas e novas polêmicas?
Feminismo Negro O Feminismo Negro surge da ideia de que a mulher negra, por sofrer de uma dupla opressão, não é totalmente representada por outros “feminismos”. A vertente agrega, no Brasil,
pautas como o genocídio da juventude negra, a intolerância religiosa para com matrizes africanas e o impacto desse tipo de discriminação na vida das mulheres negras. “O feminismo negro surge como uma forma de lembrete de que o histórico do nosso país deixou muitos vestígios preconceituosos e injustos e precisam ainda de luta. Hoje, com o tema do feminismo crescendo tanto nas redes sociais, abraçar outras temáticas, como a questão do racismo, é uma maneira de abrir os olhos da população também para o fato de que uma causa não precisa derrubar outra para se sobressair. Todas estão de alguma forma conectadas entre si.”, afirma Valdirene dos Santos, 42 anos, empregada doméstica que segue a vertente. A produtora cultural Fernanda Souza, 25 anos, pensa diferente. “O ponto negativo do feminismo negro hoje é que ele acaba por excluir mulheres brancas, já que, muitas vezes, as negras participantes da vertente entendem que somente elas podem lutar por uma causa que inclui o racismo”, afirma a baiana que mora em São Paulo e participa de grupos como “Fotografas Feministas” no Facebook.
Feminismo Plusize O Feminismo Plusize segue duas causas. A primeira é a da luta pela equidade* e a segunda a da busca pela quebra dos “padrões sociais estéticos”. A vertente rebate noções ‘gordofóbicas’ e está conectada com outros segmentos do feminismo que estão surgindo, os quais buscam combater, em primeira instância, diversos padrões impostos pela sociedade. A jornalista Naiana Ribeiro, fundadora da Revista Plus, afirma que as mulheres gordas sofrem um preconceito duplo. novembro 2016
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“Sofri por muitos anos querendo me encaixar em todos os padrões de beleza. Acabava usando roupas que não me traziam autoconhecimento ou conforto, tudo para parecer mais magra ou mais inclusa”, conta. Ela lembra que passou a estudar o assunto e encontrou “algo que pôde abrir a minha mente e me aceitar mais”. “Quem disse que aquela pessoa que é gorda não cuida da saúde? Quem disse que é uma pessoa preguiçosa? Magreza não é sinônimo de vida saudável. Todas as formas são, sim, lindas, contanto que busquem cuidado, saúde e corrida pelos sonhos.”, finaliza a jornalista.
Femismo “Femismo” é a palavra que define o inverso de “machismo”, ou seja, carrega a ideia de que a mulher deve ser superior ao homem. Supõe-se que a criação e o uso do termo foi uma forma encontrada pelas feministas para denominar os preconceitos ao sexo masculino praticados por outras feministas dentro do movimento social do feminismo. O enfoque de algumas das pessoas que seguem o Femismo é de que os homens precisam “sentir na pele” o que as mulheres passaram e passam e que, portanto, devem ser ‘rebaixados’ para que o crescimento da mulher seja respeitado para, após, ocorrer um equilíbrio entre os direitos e deveres [respeito] entre os gêneros. Juliana Brêtas, dona do site feminista Superela*, que se identifica com diversas vertentes, explica que, para muitas feministas, o femismo não é considerado uma vertente da causa. “Sou contra qualquer forma de intolerância. Ninguém merece ser rebaixado, o que acontece conosco nessa sociedade machista é um 26
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erro e nós não devemos repetir esse mesmo erro. É por isso que essa vertente não é sequer considerada como feminista, sendo dita, muitas vezes, como o oposto do feminismo”, constata a empresária.
Feminismo Radical O feminismo radical se desenvolveu durante a segunda onda feminista, no final dos anos 60 e começo dos anos 70. O nome acaba sendo utilizado, erroneamente, em muitos casos, para identificar a ideia levantada pelo “Femismo”, porém engloba outras noções. Na vertente Radical, as participantes não aceitam transgêneros. Motivo: a vertente não aceita homens ou qualquer pessoa ‘não nascida mulher’. “Feminismo radical não é aquele cuja prática vem de mulheres que odeiam homens e nem provém de autoritarismo. Ser feminista radical significa a busca por eliminar todas as causas subjacentes a esses e outros diversos problemas”, afirma Larissa de Luna, 17, estudante de jornalismo. “A erradicação da prostituição é uma bandeira levantada desde sempre dentro do feminismo radical, pois, da nossa perspectiva, esta condiz com o estupro (no caso da indústria pornográfica, prostituição e estupro filmado) e que não deve ser reformado e nem legalizado, mas destruído”, finaliza a estudante no seu texto do site http://www.festivalmarginal.com.br/.
Feminismo Queer e Feminismo Interseccional As feministas que seguem o Feminismo Queer afirmam que “quem se identifica como mulher tem direito de estar na luta”. Aceitam, portanto, transgêneros, lésbicas e ou-
tros. Também chamada de “Colcha de retalhos do feminismo”, o segmento Interseccional discute gênero, racismo e sexualidade, apoiando o Feminismo Lésbico, Negro e outros, sendo a vertente mais receptiva a homens como participantes do movimento feminista. Muitas das feministas da vertente são também as que levantam bandeiras no ‘Feminismo Queer’. Fundadora do blog Teoria Criativa e redatora de muitos textos sobre feminismo, Gabriela Barbosa afirma que segue a vertente interseccional. “O patriarcado faz mal às pessoas. Em graus diferentes, claro, mas sempre é nocivo. E vai ser muito mais difícil combatê-lo se ficarmos preocupadas em quem pode se dizer feminista ou não. Creio que mulheres e homens trans podem, e muito, se dizer feministas, mas ainda não tenho uma opinião formada sobre os homens em si, e a vertente intersecional deixa essa dis-
cussão. Algumas mulheres que seguem essa vertente afirmam que sim, que os homens podem ser ditos como feministas, outras afirmam que podem seguir a causa, mas sendo ditos apenas como ‘pró-feministas’*”, esclarece a blogueira.
Feminismo Liberal
tuições como o Congresso, os meios de comunicação e em lideranças de empresas diversas. “Este segmento colocou a hastag #HeForShe em primeiro lugar nos Trend Topics do Twitter por mais de dois dias seguidos. A hastag foi criada pela atriz Emma Watson, que é
também embaixadora da ONU Mulheres. O discurso de Patricia Arquette sobre igualdade salarial no Oscar, o fenômeno Beyoncé e as campanhas de Watson são apenas alguns exemplos de grandes alcances da vertente”, explica a advogada Débora Aguiar.
Fotos: Vanessa Brunt
Acredita-se, na vertente liberal, que gradativamente as mulheres podem vencer desigualdades, caso elas lutem por equidade* entre homens e mulheres, sem defesas para que surjam novos tipos de submissões entre seres humanos. O Feminismo Liberal busca lutar, por meio da criação de novas leis, para proteger o gênero feminino de abusos físicos e/ou psicológicos pelo sexo oposto. A vertente também busca, em suas formas de legalizações, a ascensão de mulheres em cargos adentrados em insti-
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˜ Diferente, nao! CULTURA
s n a r T
Fotos: EDIELSON SANTANA
A inserção do trans no ambiente escolar é um enorme desafio, que inicia desde a utilização dos banheiros até o uso do nome social. Texto: EDIELSON SANTANA
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inegável que os avanços em relação a orientação sexual e identidade de gênero tenham evoluído significativamente nos últimos anos e ações para a inserção dos transexuais já tenham sido tomadas, para que tenham seus lugares respeitados e seus nomes reconhecidos, no entanto o preconceito que parte dos heterossexuais ainda é visível e retroage algumas conquistas trans. O medo, a vergonha e a atenção foram alguns dos motivos que impediram que muitas pessoas não demonstrassem como se sentiam, como gostaria de se vestir e tinham comportamentos diferentes do seu gosto, tendo em vista os desafios de serem reconhecidos e os exemplos de muitos trans que já foram discriminados, como no caso divulgado pelo jornal A 28
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Tarde em março deste ano, em que houve falta de informação e desrespeito com a trans Ariane Sena, que realizou uma prova na Uneb e foi tratada como um homem, sendo dirigida a um banheiro masculino e se recusando a entrar, pediu auxílio a coordenação do processo seletivo e foi conduzida a um banheiro feminino . “As pessoas trans são constantemente desrespeitadas e violentadas” é o que afirma o psicólogo Gilmaro Nogueira. No ambiente escolar, os avanços ocorrem de forma mais lenta. Após um ano de publicação da resolução nº12, de janeiro de 2015, que estabelece parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais nos sistemas e instituições de ensino, os avanços notados são poucos e muitas
vezes causam transtornos ao aluno. Algumas instituições de ensino superior já cumprem a lei e colocam o nome social em evidência nas diversas atividades desenvolvidas no ambiente, como fala Pedro Scooby “Na lista de presença meu nome social é respeitado”. O não cumprimento da lei parte de algumas escolas que não entendem a necessidade de um reconhecimento sólido dos indivíduos trans. A falta de respeito desenvolvida por alunos que não entendem sobre o tema ou não querem aceitar, é visível em alguns depoimentos de jovens e adolescentes, como um aluno de uma escola em Salvador que afirmou que não teria coragem de entrar no mesmo banheiro que um trans tenha entrado, porque sentiria vergonha de dividir o banheiro com pessoas diferentes dele.
“As escolas devem ter um ensino voltado para o respeito a todos e compreensão das diferenças que ocorrem entre as pessoas” afirma Cristiane de Santana, Professora de ética da Escola Maritel, no bairro de Canabrava, quando questionada sobre a necessi dade dos alunos trans serem inseridos de forma pacífica nas escolas e ressalta que em suas aulas sempre busca falar das diferenças que existem entre os alunos, para que assim eles possam desenvolver o conhecimento acerca do tema e tenham respeito a todos, independente de ser igual ou diferente deles.
A divisão dos banheiros A compreensão sobre o tema é um requisito que precisa ser diariamente retomado pois “muita gente, não compreende que a transexualidade é uma identidade de gênero e não uma doença ou patologia” ressalta o psicólogo Gilmaro. O uso dos banheiros para trans é uma das maiores conquistas ao longo dos anos. Na escola Maritel, localizada no bairro de Canabrava, os banheiros são unissex, no intuito de que todas as orientações sexuais possam ter acesso aos banheiros sem nenhum tipo de constrangimento, como afirma a diretora do colégio Maria Telma “foi melhor construir os banheiros dessa maneira, para que todos fossem inseridos na escola, apesar de que nunca tivemos alunos trans”. O caso de Ariane Sena, foi algo que poderia ser evitado, tendo em vista que todos que
A orientação sexual é definida através do compõem o ambiente escolar, deveriam ser os primeiros a conhecerem sobre o tema, sendo dentro das instituições de ensino que começa a formação do conhecimento e posteriormente o respeito. Pedro Scooby, não encontra adversidades para usar banheiro no lugar onde estuda. Aluno da Unifacs, ele afirma que os colegas não se importam com isso” e ainda ressalta que a instituição não estabeleceu critérios para o uso dos banheiros e que “não teria lógica eu usar banheiro feminino”.
“As pessoas trans são constantemente desrespeitadas e violentadas”
desejo ou atração física e afetiva se refere a como nos sentimos em relação ao afeto e sexualidade. O correto é orientação, e não opção, porque não é algo que podemos mudar de acordo com nosso desejo.
A identidade de gênero faz referência a como nos reconhecemos dentro dos padrões de gênero estabelecidos socialmente.
O nome social é a identificação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida. Publicado em decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, esta lei já está em vigor. novembro 2016
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“Ainda somos uma sociedade que trata a homossexualidade como um destino imperfeito” Deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ)
Texto: Caroline Lina e Mônica Marques Edição: Bárbara Souza 30
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SOUL: Quem é Jean Wyllys?
Fotos: DIVULGAÇÃO
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le é o primeiro parlamentar na Câmara dos Deputados a tirar do armário o inadiável debate sobre homofobia. Por três vezes, conquistou o prêmio Congresso em Foco como melhor deputado federal do Brasil. Em 2015, foi eleito pela revista britânica The Economist como uma das 50 personalidades públicas mais influentes do mundo na defesa da diversidade, figurando ao lado de nomes como o do Prêmio Nobel, Dalai Lama, e do presidente dos Estados Unidos, Barak Obama. Baiano nascido em Alagoinhas e sob o signo de peixes, Jean Wyllys foi descrito pela publicação inglesa como um parlamentar que “dirige a primeira plataforma eleitoral dos direitos homossexuais no Brasil”. Um dos mais novos cidadãos soteropolitanos, o jornalista, professor, escritor e deputado Jean Wyllys conversou com a reportagem da SOUL.
JEAN WYLLYS: Bom...Pergunta dificílima de responder porque nenhum de nós sabe direito quem é a gente, a gente está sempre por se descobrir, a vida inteira, acho que a gente só tem a conclusão de quem somos nós de fato quando a gente morre ou quando tá perto disso, né? Mas eu poderia dizer que, a partir da narrativa que tenho de mim mesmo, que eu sou um cara brasileiro, típico sabe? Típico brasileiro que sai do Brasil profundo, que nunca contou com oportunidades iguais, que arregaçou as mangas e foi em busca do seu pedaço de existência, sabe? Eu sou um cara honesto, intelectual e materialmente, sou um cara generoso, tem uma bondade em mim que eu nem sei de onde vem, talvez de meu signo, pisciano, sou um cara dos mistérios, gosto dos mistérios, de me relacionar com os mistérios, sou amigo dos meus amigos, amigo dos meus irmãos, da minha mãe, gosto das artes, de música espe-
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cialmente, de literatura, sou escritor, sou jornalista, estou deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, sou isso.
SOUL: Recentemente, você re-
cebeu o título de cidadão soteropolitano (proposição da vereadora Aladilce Souza, do PCdoB-BA), o que isso significa para o Jean? E o que isso significa para Salvador? JEAN: (risos) Bom... é muita pre-
tensão dizer que isso significa para Salvador, eu acho que o reconhecimento, me reconhecer como cidadão legítimo da cidade, é reconhecer um sentimento que eu já tinha antes, de que a cidade, está em mim e eu estou na cidade; Parte do que eu sou hoje, e do que eu vou carregar comigo até o fim dos meus dias veio da daqui, foi essa cidade que meu deu, ela me deu régua e compasso, né? Então pra mim foi emocionante receber esse título, saber que agora eu sou soteropolitano, posso dizer, com, inclusive como se fala aqui, com gaboli32
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ce, eu posso me gabar de que eu sou soteropolitano e acho que a cidade ganha à medida que reconhece uma figura pública que é ética, que é honesta, que faz a melhor política, a política no melhor sentido da palavra, não a melhor política, mas a política no melhor sentido da palavra. Eu acho que Salvador ganha com isso. Esse título não é um título que pode ser banalizado, não pode ser dado a qualquer um, então nesse sentido a cidade ganha por reconhecer uma figura que ama, que a ama profundamente.
SOUL: E para o movimento LGBT?
Acho importantíssimo para o movimento, porque eu sou um homossexual assumido e com orgulho da minha homossexualidade, num país de cultura ainda homofóbica, apesar de todos os avanços que o movimento LGBT fez ao longo desses anos, e da visibilidade que nós ganhamos por conta desse trabalho do movimento,
JEAN:
nós ainda somos uma sociedade muito homofóbica, e uma sociedade que ainda discrimina muito os homossexuais, e uma sociedade que trata a homossexualidade como um destino imperfeito. Então ver um deputado federal que é reconhecido internacionalmente, como uma figura ética, comprometida com a justiça, com os direitos humanos, ver esse deputado ser homenageado e ganhar o título é muito bom para as novas gerações de gays e lésbicas. Faz com que eles vivam sua homossexualidade e, até mesmo sua transsexualidade, embora eu não seja transexual, mas muitas pessoas transexuais gostam e se identificam comigo, com orgulho, sabe, Mônica? Que as pessoas entendam que ser homossexuais não vai conduzi-las a um destino imperfeito, não vai conduzi-las ao fracasso necessariamente, entende? Ter uma referência positiva num mundo em que os homossexuais quase nunca foram referências positivas e quando foram tem sua
“Um homossexual para virar referência ele tem que apagar sua homossexualidade, não se pode falar da homossexualidade dele. E eu não, eu falo da minha homossexualidade”
homossexualidade apagada, como é o caso, por exemplo, de Pierre Verger, que ninguém fala da homossexualidade dele. Como foi o caso daquele matemático que desenvolveu o código que permitir inclusive identificar os nazistas, que foi condenado por sua homossexualidade, a obra dele não importou. Importou a homossexualidade e condenou. Como não importou a obra de Oscar Wilde que também foi condenado. Então um homossexual para virar referência ele tem que apagar sua homossexualidade, não se pode falar da homossexualidade dele. E eu não, eu falo da minha homossexualidade mesmo recebendo todas as honrarias. Eu falo e faço questão de falar por isso, para as novas gerações.
SOUL: Isso fortalece o movimento?
JEAN: Sim, muito!
SOUL: Para tratar das questões de gênero a SOUL tem como princípio a Empatia , você é um deputado da Empatia?
JEAN: Sou empático, que estimula a empatia nas pessoas e a empatia é se colocar no lu-
gar do outro. Você não é outro, mas você é capaz de se compadecer diante da dor do outro, se solidarizar, se colocar no lugar dele e de fazer este deslocamento, e sem empatia, ser empático. Eu sempre fui empático a minha vida inteira, ser empático com coisas que não são as minhas necessariamente, mas que são as minhas na medida em que sou humano e que cada ser humano, não importa qual sua etnia, qual sua orientação, qual sua identidade de gênero, qual sua procedência, se há um
ser humano vítima de injustiça e de violência isso tem que afetar a todos e todas nós, como diz Ernest Hemingway, citando John Donne, o poeta: “não importa por quem os sinos dobram, eles dobram por você”. Na verdade não pergunte por quem os sinos dobram, porque eles dobram por você na medida em que há um ser humano atingido por violência, por injustiça, nós devemos nos colocar ao lado desse ser humano.
SOUL: E assim é o seu mandato?... JEAN: Assim é o meu mandato, assim é a minha vida, um reflexo da minha vida, de valores que me foram dados pela minha família, pela minha mãe, pela igreja católica, a esquerda católica, é bom que se diga, porque não é toda igreja católica que tem empatia, que desenvolve empatia, pelos valores trazidos pelos autores todos que eu li, pela minha formação acadêmica. novembro 2016
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Foto: Carla da matta
COMPORTAMENTO
Como já diria o cantor Falcão,“Paz sem voz não é paz. É medo!”
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mbiente acolhedor, a GEDEM (Grupo de atuação em Defesa das Mulheres), localizada no bairro de Nazaré, funciona em uma casa antiga, com uma recepção, espaço para crianças com livros e brinquedos e salas reservadas para atendimentos particulares em grupo. O espaço conta com profissionais qualificados para o 34
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O combate à violência doméstica começa a partir de um grito, que só é silenciado quando denunciado. Texto: CARLA DA MATTA E DANIEL SERRANO
atendimento e amparo a vítimas de violência doméstica. Psicólogos, assistentes sociais, policiais, promotores e advogadas ouvem e atendem diariamente casos de todo e qualquer tipo de agressão. Como a grande maioria destes funcionários são mulheres, quem sofre algum tipo de violência se sente mais acolhida. Além de ouvir denúncias, encaminhar e amparar vítimas, o
Grupo de Atuação em Defesa da Mulher trabalha na prevenção e disseminação da Lei Maria da Penha e do Direito Penal de Gênero, cuidando de todo e qualquer tipo de discriminação contra a mulher. Na própria GEDEM são oferecidos cursos que integram e aproximam atividades com defesa e proteção a mulher, como por exemplo, arte marcial (defesa pessoal), cursos de
“A PAZ DO MUNDO COMEÇA EM CASA”
Nome dado a campanha de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em 2008. A violência contra a mulher, considerada “a mais escandalosa forma de violação dos Direitos Humanos” pela Anistia Internacional, é um fato assustador, enfrentado no cotidiano dos brasileiros e, principalmente, brasileiras. Presente em periferias e bairros nobres, atinge mulheres negras, brancas, trans, solteiras, casadas e em relacionamentos estáveis, sejam esses homo ou heterossexuais. Na unidade doméstica, a queixa vem das esposas, mães, irmãs, funcionárias domésticas, babás e todas que convivem e vivem um vínculo familiar por laços naturais ou por vontade própria. Mas os agressores cada vez mais são os que têm, ou tinham, relações amorosas com a vítima. Uma em cada três mulheres é vítima de violência doméstica e sete em cada dez delas são assassinadas e tem como autores do crime parceiros ou ex-parceiros. Muitos acham que é violência apenas a que envolve força e contato físico, quando há algum tipo de hematoma. Mas a Lei Maria da Penha prevê como Violência Doméstica e Familiar toda e qualquer ação ou omissão, referente ao gênero feminino, que lhe cause: morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, moral ou patrimonial, pertencendo às
seguintes categorias. Em 2012 estimava-se que 2 milhões de mulheres eram espancadas por ano e a cada 15 segundos uma era agredida. Quatro anos depois os números ainda assustam. No segundo trimestres de 2016, dez mil queixas foram prestadas somente em Salvador, onde existe mais um agravante; enquanto o número de denúncias feita por mulheres brancas diminuiu, o de mulheres negras aumentou em 54,3% no mesmo período de três meses. E quando se fala de mulher negra e trans, a preocupação é ainda maior.
PARA COMBATER, A FORMA É DENUNCIAR Algumas mulheres ainda apresentam queixas de como são tratadas nas delegacias. Quando vão denunciar, reclamam de como são tratadas por alguns profissionais que ainda deixam transparecer que as vítimas são culpadas. Além do medo de muitas mulheres em efetivar as denúncias, algumas ainda carregam o estigma e a vergonha, por isso algumas delas ainda se culpam ao serem agredidas. “Elas acreditam que de alguma forma tenham que passar por essas situações, seja pela questão histórica da inferioridade da mulher ou até mesmo por dependência econômica e/ou emocional (como em casos que mulheres sofrem agressões de membros mais próximos da família, a exemplo de parentes como pais, filhos e/ou companheiros). Algumas relatam que continuam convivendo, aceitando o que é imposto a elas e até mesmo passando por cima de marcas emocionais e físicas, só para evitar ainda mais conflito. Essa é uma ideia completamente errada que temos que trabalhar muito para desconstruir”, acrescenta Livia Vaz, atual coordenadora do Gedem. Pelo fato das questões his-
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maquiagem, que servem não só para disfarçar hematomas como também para que as mulheres voltem a se cuidar e se sentir mais bonitas. Cursos de oratória, capacitações e oficinas de produção de currículo para incentivá-las a voltar ao mercado de trabalho. Além do apoio psicológico oferecido, há reuniões e grupos de apoio.
SERÁ QUE ESTÁ TUDO BEM MESMO? Você ouve ofensas, xingamentos, intimidações, chantagens e proibições que acabam afetando a sua auto-estima e a sua independência? Se a resposta for Sim, você está sendo vitima da Violência Psicológica. Duvidam com freqüência de sua palavra, fazem parecer que você não tem palavra ou fazem falsas acusações atingindo a sua integridade? Cuidado, se a resposta for positiva, você está sofrendo da Violência Moral. É impedida de usar métodos contraceptivos ou faz sexo quando não tem vontade só para agradar o parceiro? Caso esteja acontecendo, você está sendo vitima de Violência Sexual! Você está sendo sujeita a chutes, tapas, beliscões, queimaduras, murros e etc, ou está sendo impedida fisicamente de fazer algo? Se alguma dessas ações estiver acontecendo: Atenção! Denuncie! Você está sendo vitima de Violência Física Controlam seus gastos de forma exagerada, não permitem que gaste a sua própria renda, usam o dinheiro pra te chantagear ou danificam seus pertences pessoais? Se estiver sofrendo com isso, com certeza você está sendo vítima da Violência Econômica, ou também chamada de Patrimonial. novembro 2016
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tóricas e do machismo estarem impregnadas na cultura brasileira e, nesse caso, também na baiana, a promotora Livia ainda disse que mudanças devem começar a ocorrer desde a educação, por isso a equipe de comunicação do Ministério Público já trabalha na produção de encartes ilustrados para crianças, e também para mulheres com baixa escolaridade. Muitos dos folhetos e livros apresentam uma linguagem mais simples e de fácil entendimento, com a ajuda de imagens e uso da didática ao explicar leis, medidas a serem tomadas, direitos e etc. Como a exemplo do encarte “Conversando francamente sobre: Violência Doméstica e Familiar”, que trata das diferentes formas de violência e como devemos lutar contra ela. Com o lançamento das cartilhas de fácil entendimento, espera-se ainda que multiplique entre as mulheres o conhecimento sobre a lei, sobre os direitos, alternativas, grupos de debates e de apoio, onde elas podem começar a retransmitir as informações, compartilhar experiências, criar e passar coragem umas com as outras, a fim de acabar com a desconfiança que muitas ainda têm sobre o procedimento de denúncia dos agressores. Encartes também voltados para o público masculino também foram desenvolvidos, a
proposta parece ser bem parecida; informar e combater tanto o machismo como a violência contra a mulher. A cartinha dessa vez chama-se “Papo de homem” e nele existe um “Controle de agressividade para não perder a cabeça” que serve tanto para aqueles que conhecem, ou são homens que já se envolveram com violência doméstica. Outros temas, como: definição do machismo, conceito de violência doméstica, álcool, drogas, como agir com os filhos, questões judiciais, Lei Maria da Penha e contatos para ajuda são encontrados no mesmo folheto. E já que o machismo
de gênero que na verdade não existe e, justamente por isso, não é aceitável sofrer agressões e nem imposições por essa condição, mas sim fortalecer-se para combater e denunciar. Depois do passo da aceitação da agressão e da necessidade da ajuda, as vitimas, ou ofendidas podem, e devem prestar queixa em toda e qualquer delegacia, não somente nas especializadas em mulher (como o caso da Gedem, Deam ou Vara de Violência Doméstica). As agredidas fisicamente ainda podem fotografar as lesões, ou procurar um posto de saúde mais próximo e solicitar um relatório de agressão no momento do atendimento, e a partir daí providenciar com maior facilidade um inquérito policial que a depender, pode evoluir e transforma-se em uma Medida Protetiva de Urgência, para os casos mais graves. Essa medida de proteção vem a partir do boletim de ocorrência, que uma vez feito, o juiz tem 48 horas para analisar a denúncia e decidir como proceder com o caso. Avaliando a gravidade e a segurança da vítima, medidas como estabelecimento de um limite mínimo de distância onde o acusado fica proibido de ultrapassar em relação à mulher, proibição do contato total, inclusive com familiares ou amigos da assistida, e distanciamento dos filhos (caso tenham),
É no Subúrbio Ferroviário que se encontra o maior número de vítimas da violência doméstica em Salvador.
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é um dos grandes causadores da violência e do “se sentir superior” do homem, apenas por pertencer a um gênero, diminuir, ou até mesmo combater essa diferença já é um grande passo para evolução, visto que para muitas mulheres esse ainda é um sentimento presente, onde se destaca a inferioridade
são tomadas imediatamente. “Os bens da vítima também podem ser protegidos por meio das medidas protetivas. Essa proteção se dá por meio de ações como bloqueio de contas e indisposição de bens”. Em casos mais extremos o juiz pode fazer o encaminhamento da vítima e seus dependentes para programas oficiais ou comunitários de atendimento e abrigo, locais estes secretos, para o distanciamento do agressor, principalmente quando há risco de morte. Além de providencias como essas, a autoridade responsável pelo caso, sempre que achar necessário pode requisitar a força policial. Quando o agressor descumpre o aviso e a Medida Protetiva é considerado crime de flagrante, ou crime de desobediência, logo, podendo desta forma ser dada voz de prisão ao infrator. Para não haver risco de chantagem do agressor para com a vítima, nem de desistência da mulher quanto a acusação de agressão, a lei determina que a mulher somente poderá renunciar a denúncia perante o juiz, e enquanto isso, ela será notificada em todas as estâncias da investigação e processo, inclusive quanto a entrada e saída do agressor na prisão. Nessa estância a autoridade também pode determinar o comparecimento obrigatório dele em programas de reeducação e recuperação, como também uma nova prisão caso seja pego novamente em flagrante.
Outra forma de garantir o cumprimento das Medidas Protetivas de Urgência é através da Ronda Maria da Penha. Quando acionados ou procurados pelas assistidas, pelos agressores estarem se aproximando, a ronda vai ao encontro dos agressores já acusados e repreendem-no pelo descumprimento da ordem judicial, além de fazer o encaminhamento das vítimas à Rede de Atendimento à Mulher vítima de violência doméstica. “Com início de suas atividades em março de 2015, no Subúrbio Ferroviário soteropolitano, local com o maior número de vítimas de violência doméstica da cidade, a RMP (Ronda Maria da Penha) já conta com a atuação de cerca de 60 profissionais qualificados, que fizeram parte das três turmas que concluíram a capacitação em 2015.”. A RMP também esteve presente dentro do circuito do carnaval soteropolitano em 2016.
OUTRAS FORMAS DE PRESTAR QUEIXA Mulheres vítimas de violência encontram ajuda da tecnologia no combate os crimes de gênero.
Aplicativo #VivaVoz:
“A Lei Maria da Penha está em pleno vigor. Não veio para prender homem, mas para punir agressor. Pois em mulher não se bate nem com uma flor” – Tião Simpatia em “A Lei Maria da Penha em Cordel”
O aplicativo que serve para denunciar agressões está disponível desde março de 2016 na
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“Feminicídio é crime previsto no Código Penal Brasileiro, inciso VII , § 2º do Art 121: “matar cônjuge, companheiro ou parente consangüíneo até terceiro grau, em razão dessa condição”. O inciso VI, § 2º do Art 121 (Matar alguém) também define feminicídio como “matar mulher por razões da condição de sexo feminino”.
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cidade de Salvador. Idealizado pela estudante Louise Cordier. “Um dia estava lendo relatos de casos de assédio/abuso. Pelo fato de sofrer e ter vivenciado junto com a minha amiga, aquilo causava em mim uma indignação. Sentia que precisava fazer alguma coisa. Conversei com o CEO da Equilibra Digital, Pedro, ele repassou para a equipe, e dessa grande conversa, surgiu o aplicativo Viva Voz”, relata Louise sobre o que a motivou a criar o aplicativo. Louise acompanhou o drama da amiga que foi abusada e violentada pelo ex-namorado. Após sete meses de investigação da polícia, Louise viu a amiga ceder às ameaças do ex-companheiro e ao medo, desistindo de continuar com a denúncia. “Não houve indignação da minha parte, mesmo que a minha vontade fosse vê-lo preso”, comenta. Sem fins lucrativos, o Viva Voz tem como objetivo criar um banco de dados que auxilie delegacias, instituições e quem mais se interesse pelo combate a violência sofridas pelas mulheres. Realizar a denúncia é simples: a vítima aponta qual a categoria de violência que sofreu (moral, física ou sexual), informa também o local e onde ocorreu. Após feita a ocorrência, a geolocalização da mesma entrará no mapa da cidade onde a denúncia foi feita, juntamente com o horário e a descrição, caso a vítima queira compartilhar o ocorrido. Ainda não existe qualquer tipo de parceria ou qualquer participação do poder público. Apesar desta ausência, Louise afirma que ela e a equipe que administra o aplicativo estão abertos a possibilidade de ter esta relação com o poder público. A promotora e coordenadora do GEDEM- BA disse que a ideia do aplicativo já existia, mas faltava dinheiro, e até hoje, de fato, nenhum órgão tem acesso as informações postadas
lá, e essas informações também não servem como denúncias, até porque qualquer um pode baixar o aplicativo e fazer uma denúncia falsa. Por enquanto ainda não há nenhum mecanismo de como comprovar a veracidade dessas denúncias, se a polícia for atrás para investigar uma por uma das postagens do aplicativo, o tempo gasto será muito enquanto fatos reais são relatados todos os dias nas delegacias. A demanda é muita e o trabalho também. “O aplicativo não serve como queixa formal. Inclusive, muitas mulheres que nós atendemos, e vem até aqui, ou em qualquer outra delegacia de polícia, sequer tem um telefone de contato, e algumas nem mesmo dinheiro para a passagem do ônibus para fazer o BO, quanto mais um smartphone”. Se por um lado já era difícil acreditar em denúncias feitas pelo telefone, é ainda mais complicado apurar as feitas por essas novas ferramentas que demandam maior poder aquisitivo e não são de tão fácil acesso e anonimato. Duvidas como “qual o retorno que as mulheres teriam após fazer denúncias por esse aplicativo?”, são questões que também preocupam a promotora Lívia. Sobre esses outros meios de denunciar, a coordenadora do Grupo de atuação em Defesa das Mulheres ressalta a importância de ir a delegacias, mas não descarta os telefonemas para o 180 (central disponível 24 horas para registros, relatos e orientações), principalmente para mulheres que já estão sob a medida protetiva. “No Espirito Santo já funciona, e ajuda muit o a po-
lícia a controlar e estar
presente na hora e lugar certo das agressões, mas ainda não existe o botão do pânico aqui na Bahia. Ele funciona da seguinte forma: Mulheres que já estão em medida protetiva recebem o equipamento e acionam quando estão correndo perigo; seja pelo agressor estar se aproximando ou por já estar sofrendo algum tipo de agressão”. Além de o dispositivo despertar a viatura mais perto do local onde se encontra a vítima, através do sinal de gps, ele ainda grava o áudio em um raio de cinco metros, para melhor identificação dos policias. “Dispositivos como esse funcionam através de bateria, então quando está prestes a descarregar, a central manda uma mensagem para o celular da mulher pedindo para que ela carregue, e enquanto isso a monitoria continua sendo feita. Se no prazo de três dias não ocorrer retorno na vítima nem o carregamento do equipamento, uma viatura é encaminhada para o endereço da vítima, ou para o último lugar em que o GPS do dispositivo sinalizou”. Essa é uma fiscalização que ocorre para saber da segurança da mulher. A Violência Doméstica no Brasil ainda é muito comum, e a principal arma da mulher para combater este mal, é denunciando. Não se cale, nem se conforme. Não aceite sofrer. A lei existe para proteger toda e qualquer mulher agredida, independente do nível de parentesco com o agressor (afetivo ou consanguíneo). Basta a vitima ser, ou considerar-se mulher. Seja você hetero, homo ou trans, no que se refere aos agressores, podem ser enquadrados homens ou mulheres, independente de orientação sexual e do relacionamento em que assumem. Denuncie e recomece.
Entrevista com a idealizadora do aplicativo #vivavoz, Louise cordier. Como surgiu a ideia do aplicativo? Um dia estava lendo relatos de casos de assédio/abuso. Pelo fato de sofrer e ter vivenciado junto com a minha amiga, aquilo causava em mim uma indignação. Sentia que precisava fazer alguma coisa. Conversei com o CEO da Equilibra Digital, Pedro, ele repassou para a equipe, e dessa grande conversa, surgiu o aplicativo Viva Voz. O que te motivou a criá-lo? Após ouvir o relato da minha amiga que foi abusada e violentada pelo ex-namorado. Então, para ajudá-la, resolvi ligar para a Central de Atendimento a Mulher, e mesmo sem todos os dados necessários, fiz a denúncia para que o indivíduo fosse devidamente punido. Após sete longos meses, a polícia foi a sua casa, saber se a mesma gostaria de continuar com a denúncia. Ela desistiu, pois o medo de que o infeliz concretizasse as ameaças (de matar a ela e a todos que ela amavam) foram maior do que a vontade de fazê-lo pagar pelos danos que lhe causou. E não houve indignação da minha parte, mesmo que a minha vontade fosse vê-lo preso. E essa história, além de todas as outras que li e vivenciei todos os dias, me inspirou a criar um aplicativo para que nós mulheres, tenhamos a coragem de continuar ajudando a nós mesmas e umas a outras. O aplicativo registra os casos de violência onde aconteceram e qual seria sua “categoria” (física, moral e sexual). O que é feito com as denúncias? Existe a participação do poder público (participação da delegacia da mulher, por exemplo)? Após feita a ocorrência,a geolocalização da mesma entrará no mapa da cidade onde a denúncia foi feita, juntamente com o horário e a descrição docaso a vítima queira compartilhar o ocorrido. Ainda não existem parcerias com as autoridades, mas estamos abertos a essa possibilidade. Como você acha que o aplicativo pode ajudar a mulher vitima de violência? O aplicativo pode ajudar a nós, mulheres, a compartilharmos com outras vítimas os abusos sofridos através de relatos, a geolocalizar os locais onde ocorreram os assédios, a denunciar o agressor, e acima de tudo a nos unirmos contra toda e qualquer tipo de violência contra a mulher. E com relação na tentativa de combater futuros casos? O aplicativo pode ajudar? Caso sim, como o “Viva Voz” pode ajudar? Muito em breve, sim. O #VivaVoz gera um banco de dados, com estatísticas georeferenciadas, que ajudam às autoridades competentes e às entidades não governamentais à tomarem medidas para ajudar a combater a violência e na prevenção de novos casos, desenvolvendo estratégias e aplicando nas áreas de risco levantadas pelo APP. novembro 2016
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COMPORTAMENTO
TRANsEXUALIDADE
XMÍDIA
DESRESPEITO E PRECONCEITO
Texto: Théo Meireles
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alvador, 6 de outubro de 2015. “Travesti é encontrado morto após cliente descobrir a surpresa na hora H. A vítima, identificada como Luiz Carlos S.J. de 27 anos, foi encontrada com os pés e mãos amarrados, sinais de espancamento e mais de trinta perfurações no corpo. Segundo informações preliminares do laudo pericial, a suspeita é de que Luiz provavelmente foi esfaqueado depois de morto”. Feira de Santana, março de 2016. “Travesti é linchado após reagir a chacota. Segundo informações de populares, o homem estava na fila de uma lotérica na Av. Visconde do Rio Branco, no centro, quando foi alvo de piadas e reagiu. ‘Em questão de segundos juntou uma multidão e
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começou a agredi-lo’. O travesti, identificado como Jorge, está internado e seu estado de saúde é desconhecido”. Os relatos acima são verdadeiros - apenas os nomes foram alterados em respeito à identidade das vítimas - esse é o retrato da leitura da transgeneridade na mídia. Desrespeitoso, fruto da falta de qualquer que seja a busca por informações. A população trans (nomenclatura que contempla todas as identidades transgênero) não é reconhecida nas pesquisas e censos feitos no Brasil. Inscrições no Enem e o mapa da violência ainda são as formas tidas como “seguras” de estabelecer uma estatística da existência dessa população. Mas e as mulheres trans, que se prostituem para sobreviver? Segundo a Antra (Associação Nacional de Transexuais e Travestis), cerca de 90% dessas mulheres trabalham como prostitutas.
E as pessoas trans que não terminam sequer o primeiro grau por conta da disforia e do preconceito? E aqueles e aquelas que morrem como indigentes? A mídia consolida essa falta de assistência às pessoas trans. São espaços ocupados pelo oportunismo sobre o sofrimento. A imprensa, ainda em sua grande maioria, utiliza dos casos de violência praticados contra pessoas trans para aumentar a audiência do que é publicado. São crimes cruéis, marcados pelo ódio gratuito à legitimação de uma identidade que é do direito ao livre arbítrio de cada um. Essa conduta desonesta explora o sofrimento da condição em que as pessoas trans vivem, às humilhações as quais estão sujeitas e às violências as quais estão expostas. A sociedade consome esse conteúdo e acaba por contribuir diretamente para este cenário desprovido de respeito.
Na mídia baiana são poucos os portais de conteúdo jornalístico que repercutem a importância da assistência às demandas de pessoas trans, que abordam com respeito às identidades que transcendem o padrão hegemônico binário, que reconhecem talentos e conquistas. Os espaços estão aí para serem preenchidos e os direitos garantidos constitucionalmente devem ser concedidos de forma igualitária. O lugar da população trans não é dentro do armário e, aqui fora, todos merecem ser respeitados e legitimados.
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ARTIGO
MULHERES DE LUTA
Texto: Natalia Silveira
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ediram a uma f e m inista que escrevesse um texto sobre feminismos. Isso mesmo, só sei falar de feminismo no plural, dadas as nossas múltiplas potências e desafios. Como referência às feministas negras brasileiras, d e v o lembrá-los que “nossos passos vêm de longe” e por isso peço licença para compartilhar um pouco dos meus pensamentos e impressões sobre a maior revolução cultural promovida no último século. Ainda há tanto o que caminhar... As que vieram antes de nós sobreviveram às guerras que historicamente usurpam o 42
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corpo feminino por meio do estupro como dominação étnica, sobreviveram às fogueiras da inquisição, sobreviveram ao colonialismo usurpador dos corpos indígenas, sobreviveram à chibata e ao incansável domínio patriarcal dos senhores escravocratas, sobreviveram a quatorze horas diárias de trabalho nas fábricas, sobreviveram ao marido, ao patrão e ao Estado. Desculpem a repetição da palavra, mas este texto só pôde ser escrito graças às nossas sobreviventes, pois com elas aprendemos a resistir. A história dos feminismos no Brasil dialoga com a de muitos outros países em que mulheres reivindicaram, como sujeito coletivo, a sua ascensão ao status de cidadãs. Além disso, e talvez até mais importante, é com os femi-
nismos que descobrimos e reconstruímos o significado da experiência de vida feminina a partir do ponto de vista das mulheres, e não mais dos homens. Quando mulheres passaram a compartilhar suas experiências de vida em rodas de conversa promovidas pelas primeiras organizações feministas, já no século XX, é que passamos a nos dar conta de que nenhuma característica biológica poderia determinar nossas vidas, a despeito do defendido pelas Ciências. Com Simone de Beauvoir aprendemos que a biologia não é destino. O movimento feminista brasileiro, inclusive, foi um importante articulador na resistência à Ditadura Militar. Em virtude do contexto, o movimento não se articulou em uma frente única; pelo contrário, nossas feministas se encontravam em luta nas mais várias frentes, como na luta por moradia, no partido comunista, na resistência armada contra o governo autoritário, no movimento de saúde (importante articulador da reforma sanitária) e no movimento pela anistia. Concomitante, criaram também a imprensa feminista por meio de duas revistas de circulação nacional e clandestinas, a Brasil Mulher e a Nós Mulheres. Compreendendo a existência de uma ordem de gênero patriarcal que se revela racista, capitalista, colonialista e heterocentrada, este texto poderia se destinar a pensar os muitos desafios que temos a enfrentar hoje. Seria possível citar, por exemplo, o quan-
to o congelamento de gastos proposto pelo governo federal afeta diretamente a saúde das mulheres pobres e negras, especialmente. Este é o público que mais demanda atendimento na rede pública de saúde. Ou ainda, seria possível pensar nas últimas propostas legislativas com o fito de restringir (ou seria extinguir?) o direito ao abortamento legal e seguro. Como exemplo, vale destacar o famigerado Estatuto do Nascituro que teve como um de seus proponentes o deputado Luiz Bassuma. Este projeto de lei pretendia instituir a “bol-
Com Simone de Beauvoir aprendemos que a biologia não é destino.
ainda que, segundo dados da OMS, o aborto ilegal é a terceira maior causa de morte materna na América Latina, além da ilegalidade constituir um importante fator para o alto número de abortos. Contudo, as mulheres de classe média conseguem pagar por um procedimento mais seguro, enquanto as negras e pobres acabam morrendo em decorrência de procedimentos inseguros. Seria também relevante destacar o posicionamento de certo deputado federal - que já assumiu publicamente que espancaria seu filho caso este fosse homossexual e defendeu abertamente o regime militar - ao defender que mulheres devem receber salários inferiores aos homens, pois engravidam e gozam de licença maternidade. Mesmo considerando que enfrentamos um momento de ataque aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e observando a conjuntura política de ofensiva a valores democráticos, decidi não me centrar nos problemas. Desejo destacar o que a
sa estupro” – caso a vítima de estupro engravidasse e não quisesse abortar, o nascituro proveniente dessa violência teria direito à pensão alimentícia, no valor de um salário mínimo, a ser paga pelo “genitor”. Vale destacar novembro 2016
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história dos direitos humanos nos revela: nenhum direito social foi conquistado sem luta. Nos últimos anos, assistimos no Brasil ao crescimento a passos largos dos estudos de gênero nas Universidades, com cada vez mais revistas especializadas na área e a consolidação de grupos históricos que protagonizaram a entrada deste campo no país. É o caso, por exemplo, do recém-criado Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo na Universidade Federal da Bahia que mantém o bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade como curso de graduação na respectiva instituição de ensino. Além disso, vimos também o que algumas de nós têm nomeado como primavera feminista: a eclosão de grupos feministas por todo o país e a maior visibilidade dada a algumas de nossas demandas. É o caso da Marcha das Vadias (mobilização que teve início no Canadá e se espalhou pelo mundo, a fim de denunciar a cultura do estupro) e ainda da Marcha pelo Empoderamento Crespo realizada em Salvador na última semana, protagonizada por mulheres negras convidando-nos a repensar criticamente nossos referenciais estéticos e de modo de vida. Não podemos esquecer também da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver, que ocorreu em Brasília no ano de 2015 e aglutinou mulheres negras de todo o país contra o genocídio da juventude negra, em defesa do Estado Democrático de Direito, da igualdade racial, de gênero e pela efetivação dos direitos humanos. Há ainda inúmeras páginas cujo conteúdo é voltado para o empoderamento na perspecti44
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va feminista, como o Blogueiras Feministas, o Blogueiras Negras, o Escreva Lola Escreva, Think Olga, Capitolina e Lugar de Mulher. Organizações de advocacy feminista, como é o caso da CEPIA, que desenvolve pesquisas na área da violência contra mulheres
Desejo destacar o que a história dos direitos humanos nos revela: nenhum direito social foi conquistado sem luta.
e organiza estrategicamente pressão política para o desenvolvimento de projetos de lei a fim de assegurar os direitos das mulheres; o CFEMEA, que acompanha projetos legislativos e anualmente apresenta uma análise sobre o orçamento da União a fim de perceber o quanto de recursos públicos são d e s t i n a dos para os direitos das mulheres; e ainda o Instituto Anis de bioética, que tem atuado prioritariamente na área dos direitos sexuais e reprodutivos e acaba de assessorar a ANA D E P (Associação Nacional de Defensores Públicos) para o ingresso de uma ação junto ao Supremo
Tribunal Federal para a proteção dos direitos violados na emergência de saúde pública do zika vírus, pois compreende como a epidemia afeta diretamente a vida de milhares de mulheres e famílias. Ainda na nossa primavera feminista, quero destacar especialmente o papel das estudantes secundaristas no movimento de ocupações das escolas públicas. Recentemente, foi lançado o documentário Lute como uma Menina, já disponível no youtube. Sem entrar no mérito da relevância do movimento, o protagonismo feminino merece nossa atenção por revelar a possibilidade de nós mulheres exercermos o poder de liderança tanto na política – lugar historicamente renegado a nós –
quanto em nossas vidas. Com o lema “nada sobre nós sem nós”, o movimento das ocupações nas escolas acaba por recuperar um pouco do que aprendemos com os feminismos. Nada sobre a vida das mulheres sem as mulheres. O ataque constante aos direitos conquistados indica o quanto temos incomodado os grupos sociais mais conservadores. Por mais que estes grupos ainda permaneçam nas instituições de poder, é inegável o avanço feminista e o quanto temos salvado a vida das mulheres. E também dos homens. A cada dia, mais mulheres (e mesmo os homens) se identificam com a luta feminista e passam a questionar a ordem
de gênero em que estamos inseridos. Nossas vitórias podem não estar estampadas nas capas dos grandes jornais, mas se revela em cada mulher que consegue sair do ciclo de violência doméstica, em cada mulher que se olha hoje no espelho e se reconhece como dona de seu próprio corpo e de sua vida, em cada mulher que descobre poder tanto quanto seus colegas homens. Seguimos.
* Professora do curso de Direito da Faculdade Social da Bahia (FSBA) e da da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Ufba.
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ENTREVISTA
Jorge Gauthier, jornalista, editor do Me Salte “Se os veículos de comunicação ignorarem, por mais tempo, a comunidade LGBT, vão perder público”
Texto: Bianca Andrade e Nathália Nascimento
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Edição: Bárbara Souza
Jornalista, adora Beyoncé e não abre mão de uma boa fechação”, assim se descreve Jorge Gauthier, criador e editor do site mais baladado do momento, o Me Salte. Em pouco mais de seis meses de existência, o canal LGBT do jornal Correio já superou a marca de quatro milhões de acessos. Comandado por Jorge, o Me Salte aborda diversidade e identidade de gênero, e busca traduzir o universo LGBT e contribuir para o combate à homofobia por meio da informação. “À exceção dos extremistas loucos e psicopatas sociais, na grande maioria das vezes (o preconceito) é uma questão de falta de informação. Hoje, a principal missão do Me Salte é informar”, afirma Jorge. Ele recebeu a reportagem da SOUL na redação do Correio e conversou durante quase uma hora sobre diversidade e gênero, representação e ativismo inteligente, erros e acertos da imprensa brasileira e baiana na cobertura de fatos e temas LGBT, além de contar detalhes sobre a rotina e os bastidores da produção do Me Salte, e revelar novidades que o site trará em 2017. Uma delas é o evento que vai fazer “Salvador parar”. Como é a interação com o público leitor nas redes sociais? “Menina, é um tal de mandar nudes (risos)”. Babado. Confira!
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SOUL:
Por que “Me Salte”?
o nome
Jorge Gauthier: Menino é as-
sim... Menino ó! Os gêneros estão trocados, eu chamo todo mundo de menino, de menina, é tudo misturado. Eu tenho um amigo que morava em Pernambués, e lá tinha uma coxinha de uma travesti chamada Coéoba - Coéoba de ‘coé o babado’ não é da companhia elétrica, não. E aí toda vez que alguém começava a falar alguma coisa com ela, ela sempre falava “Me salte”, isso ó há mil anos. E eu fiquei com isso guardado na cabeça, na caixinha de ideias. E o ‘Me Salte’ é isso, é uma gíria, é o “me deixe, não me pegue, me deixe ser livre”, e eu acho que casa com a ideia do canal que é justamente isso, dá o sentido de liberdade.
em 2008, que foi um sistema que eles iam montar quando o jornal estava sendo reformulado para atender as ligações de leitores. Só que nessa época, o jornal não tinha essa dimensão que tem hoje. Certamente se tivesse um Alô Redação hoje teria de fato trabalho. Eu fiquei em pânico porque o telefone não tocava, e aí eu falei ‘ó, se o negócio não tocar vão me mandar embora’. E aí eu co-
mecei a catar coisa, comecei a fazer ronda, e o Alô Redação foi inserido no site, do site eu fui para o impresso, para o Mais, só que sempre quando tinha algum buraco ‘ah tem que fazer uma matéria de economia, sei lá’, eu falava ‘eu vou, eu vou’, e assim eu já passei por tudo quanto é canto aqui. Pode parecer um pouco maluco, ‘ó, a gente tem que ir para tal especialização, você precisa se formar nisso’, eu discordo completamente. Eu acho que você precisa sim, é importante
SOUL: Você cobriu várias edito-
rias durante sua trajetória, com destaque para saúde e segurança. O que, de fato, o despertou para criar o Me Salte? Como é feito o Me Salte, hoje? Sua rotina, recursos e prioridades. Jorge: Hoje aqui as coisas estão híbridas, e estão sendo cada vez mais, só que eu já sou híbrido de antes. Entrei aqui em 2008, no Alô Redação, que foi uma seleção enorme, de sete mil pessoas para escolher um programa de estágio pra Rede Bahia, que só teve uma edição, porque deu tanto trabalho, que até doutor Júnior (Antonio Carlos Júnior, presidente da Rede Bahia) teve que fazer entrevista. Eu entrei para o Alô Redação novembro 2016
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“A gente não vai mudar o mundo, mas eu acho que muita gente tem informação, e com a informação respeita, entende. Não precisa concordar, mas respeitar.”
você ter uma base de formação, de conhecimento em determinada área, só que eu acho que o jornalista tem que ser generalista sim. O cara tem que chegar numa coletiva da Braskem e saber o que perguntar, ele tem que chegar a uma coletiva de cultura e saber o que perguntar. Eu acho que esse foi o meu direcionamento. Fui que eu cheguei ao Me Salte, e ele é um aditivo na minha vida, um projeto que eu
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desenvolvi que eu criei e o jornal convidou para que o projeto fosse abrigado no jornal, é como se fosse freela que eu faço, mas hospedado aqui no Correio*.
SOUL: E a rotina de produção...
Jorge: Hoje como é que funciona? É internet. Sete dias na semana, sem feriado,
sem dia santo. Tem dias que eu passo o dia inteiro em função do ‘Me Salte’. Eu venho pra cá, chego aqui às 7h, saio daqui às 17h cuidando de economia. Nesse meio tempo, quando tem alguma notícia importante, aí é até um acordo que eu fiz com Linda Bezerra (editorachefe do Correio): como eu estou aqui para fazer economia, se eu parar para fazer qualquer coisa que for do Me Salte, eu ligo o meu cronômetro e conto quanto tempo eu fico, para no final eu compensar. Aí eu saio daqui, vou pra casa e continuo fazendo o Me Salte. Madrugada, festas e afins, são todas em função do Me Salte.
SOUL: Tem algum repórter com você? Jorge: O repórter sou eu, o editor sou eu, o pauteiro sou eu.
Eu, eu mesmo e eu também. Muito raramente, mesmo, Naiana (Naiana Ribeiro, jornalista) que é a ativista de engajamento aqui do jornal, que tem uma afinidade com o assunto me socorre. Eu tenho uma preocupação com o Me Salte está lá com o meu nome e eu formei até então uma carreira sem problemas. Já fiz matérias muito complicadas, de mexer com gente muito importante, mas nunca recebi um processo na vida. Pode acontecer que esteja algum a caminho (risos), mas nunca tive e eu me orgulho disso, não porque as pessoas processadas, por exemplo, fizeram um mau trabalho, mas acho que está ligado a minha correção no exercício da profissão. É em função mais da minha preocupação de cuidado com o conteúdo mesmo. Não que eu não confie nas outras pessoas, mas eu preciso ter o crivo das informações que vão pra lá.
pessoas trabalhando comigo, mas eu tenho que no conteúdo estar de olho nisso. Principalmente por se tratar de um tema de diversidade, de gênero, de identidade, qualquer termo errado, não é que uma errata vá resolver. Um termo errado ofende a pessoa e magoa. Diferente de uma errata que você dá de uma empresa que “ah era 5 mil e agora é 50”, tem um prejuízo financeiro, mas o prejuízo sentimental, emocional de identidade, ele não é reparado com errata simples.
SOUL:
E o nível de exigência dos leitores do Me Salte é muito alto, por ser uma mídia especializada? Jorge: Sim, e quando você escreve para a internet, a tendência é que você publique sem nem ler. É tentador, às vezes é o furo do dia e você vai ali no piloto automático. Eu quando estou escrevendo fora do Me Salte é quando eu
erro mais. É um tal de escrever com x, quando eu percebo que estou em economia é um ‘Meu Deus, socorro!’ (risos). Porque de fato é uma mídia especializada, então requer um cuidado redobrado e uma atualização de informação e de conteúdo. Eu tenho o manual de comunicação LGBT, da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), que tem os termos e tal, mas eu fico o tempo inteiro ligado, vai que tem uma atualização 2.0.
SOUL: Qual o maior serviço que o Me Salte presta à sociedade?
Jorge: A informação. Acho que o grande problema do preconceito hoje que tem é a falta de informação porque às vezes tem aquela famosa frase “ah, não tenho nenhum preconceito com gays, tenho até amigos que são”, aquela frase clássica de quem tem preconceito. Não que sejam os homofóbicos
SOUL:
Agora, o Me Salte está crescendo, você acha que vai conseguir manter sozinho até quando? Jorge: Não sei, eu tenho a certeza que vai chegar o momento que eu vou ter que me dedicar exclusivamente a ele, mas não sei se agora e nem como vai ser isso. Assim, o canal assumiu um corpo que eu não pensava, em pouco tempo. A gente lançou em 1º de abril, e hoje já são quatro milhões e pouquinho de visualizações, uma projeção que eu tinha feito para 2 anos, com referência em um outro produto aqui da Rede, que era um produto de sucesso ligado ao público LGBT, que tinha 30 mil visualizações/ mês, e eu queria fazer algo próximo disso. Às vezes em uma nota eu consigo 30 mil, então ganhou uma proporção muito grande. Mesmo que eu venha a ter cem
“Um termo errado ofende a pessoa e magoa. Diferente de uma errata que você dá de uma empresa que “ah era 5 mil e agora é 50”, tem um prejuízo financeiro, mas o prejuízo sentimental, emocional de identidade, ele não é reparado com errata simples. “
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completamente, é que às vezes as pessoas falam isso achando que estão falando de uma forma tranquila, e na grande maioria das vezes, à exceção dos extremistas loucos e psicopatas sociais, é uma questão de falta de informação. Hoje o Me Salte tem a tarefa de informar. A gente não vai mudar o mundo, porque realmente o caráter e o pensamento de algumas pessoas são incorrigíveis, não tem jeito, elas não vão mudar de forma alguma, mas eu acho que muita gente tem informação, e com a informação respeita, entende. Não precisa concordar, mas respeitar.
SOUL: Na abertura dos Jogos
Olímpicos 2016, tivemos uma representante trans, Lea T, puxando a delegação brasileira, porém nem todo mundo conseguiu ver a modelo porque seu tempo na tela foi muito curto. É possível afirmar que há um boicote a pessoas trans na mídia?
Jorge: Acho que nesse caso es-
pecificamente da Olimpíada não. Mas de uma forma geral, a mídia, e quando eu falo mídia eu falo todos os veículos de comunicação mesmo, tem uma tendência a utilizar trans, travestis, gays, lésbicas e todas as letras da sigla do gênero, de forma pejorativa e jocosa, e ou na violência. Nos programas jornalísticos televisivos (é enfático), quando é que você tem travesti? Quando tem na Pituba, algum assalto. Tem a travesti que assalta? Tem a travesti que assalta, assim como tem hetero que assalta e mata todo dia, estão no mesmo pacote. Tem um projeto incrível aqui 50
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em Salvador chamado “Trans pra Frente”, está na oitava edição, que é com pessoas transexuais, tem palestras, rodas de conversas, apresentações artísticas, várias coisas. Será que isso tá na mídia? Não tá.
SOUL: Você acha que a imprensa especializada reproduz o olhar elitista da mídia brasileira? Você acha que esse é um padrão na mídia brasileira? Jorge: Sim. A figura do especialista é sempre a gente pensar em quem represente uma entidade X, Y, que em tese teria mais autonomia para falar sobre determinado assunto. Só que quando você vai para a comunidade LGBT isso não é pensado. Na Bahia até pouco tempo só o GGB (Grupo Gay da Bahia) falava, e eles falavam sobre qualquer assunto ligado a população LGBT. É obvio que o GGB tem um papel importantíssimo para a comunidade, mas, por exemplo, Milena Passos, através da Atras (Associação de Travestis de Salvador), da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil), que são entidades que ela representa, tem muito mais conhecimento sobre a população transexual do que Marcelo Cerqueira (presidente do GGB). Tem uma coisa que normalmente o movimento TT fala que é “Nada para nós, sem nós”. Então de que adianta você fazer uma matéria sobre travestis e transexuais, sem ouvir as pessoas trans? Às vezes eu nem preciso ir para uma entidade, uma pessoa fora da associação pode ter uma história bem mais interessante e pode agregar muito mais conteúdo do que alguém que ta lá envolvido com burocracia.
SOUL: Famosos que assumem uma orientação sexual LGBT, como foi o caso de Fernanda Gentil, recentemente, viram
notícia com grande visibilidade. Já assuntos de interesse da causa, como políticas públicas, saúde e eventos específicos, por exemplo, não são veiculados ou não ganham destaque. Por que você acha que isso acontece? Seria desinteresse dos jornalistas ou dos veículos?
Jorge: O repórter, pensando em processos de redação, normalmente, não tem autonomia para se pautar. Com raras exceções dos repórteres especiais. Então, isso vai das chefias de reportagem, das editorias, da linha de produção mesmo dos veículos. Têm veículos que não se interessam pela pauta LGBT. Só vai [cobrir] quando é o critério de noticiabilidade do famosinho, que assume que é LGBT. Então, acho que passa por um ajuste desses critérios de noticiabilidade. Se os veículos ignorarem, por mais tempo, a comunidade LGBT, a comunidade LGBT não vai mais acessá-los. Segundo o IBGE, 25% da população brasileira é LGBT. Aí você faz uma conta rápida: Se cada LGBT tem, no mínimo, uma mãe, um amigo... é quase todo mundo! Essas pessoas são invisibilizadas e se você não se vê representado, você não acessa. O veículo de comunicação, normalmente, quer ser acessado. Seja ele site, TV, jornal, rádio... Então, acho que precisam se atentar para essa demanda da sociedade, da comunidade LGBT, e ajustar seus critérios de noticiabilidade para não irem só para o lúdico, mas também para as outras questões. Se os veículos não se ajustarem nos seus critérios de noticiabilidade para a pauta, vão perder público.
SOUL: Geralmente os órgãos
ligados ao poder público que tentam implementar políticas para o público LGBT, são os
“Os veículos precisam se atentar para essa demanda da sociedade, da comunidade LGBT. Se não se ajustarem nos seus critérios de noticiabilidade, vão perder público.”
que têm os menores orçamentos, as verbas menores. Apesar disso, você considera que importante que se tenha essas entidades?
Jorge: Tem que ter! Se tem uma coisa que é fundamental é a ocupação de espaços. Por muito tempo Paulete Furação foi coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da População LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros). Ter alguém dentro de uma reunião de secretárias que é LGBT faz a diferença, porque por mais que você tenha um orçamento pequeno, você tem uma voz que é inversamente proporcional. Você tem uma voz que reclama que grita. Às vezes é um tiro surdo? É ninguém escuta, mas é importante ter alguém para dar visibilidade às instituições que são muito fechadas.
SOUL: Como você analisa a cobertura feita pela mídia baiana para assuntos LGBTs?
Jorge: Hoje, tirando o Me Salte no padrão de canal de notícias jornalísticas sobre comunidade LGBT, é muito diferente, quase não existe. Os que existem tendem a usar o erotismo, que é um caminho legal, o Me Salte também tem isso, mas usam para a sexualização única e exclusiva, que é uma vertente. Fora isso, eu cito um canal, de São Paulo, o NLucon (http://www.nlucon.com), voltado para pessoas trans, que pra mim é um dos veículos mais atenciosos com a causa, com boas pautas. Fora isso, você vai para produções muito rasas ou muito gayzista.
SOUL: O jornalista e pesquisador Wilson Bueno defende que, no caso do jornalismo
ambiental, a imprensa especializada precisa “militar” em defesa do meio ambiente. Você acha que no caso da cobertura LGBT, a mídia especializada precisa ser militante?
Jorge: Eu sempre fugi dessa coisa de militância, mas chega uma hora que não tem jeito. É diferente de uma pessoa que faz uma matéria de ocasião por oportunidade. Que às vezes nem sabe a diferença apenas estudou para fazer aquela matéria. Mas quando você de fato está incluído naquele movimento, você entende esse processo. Mais do que militância, é o engajamento na causa. Eu não faço militância cega, eu estudo e se está ali eu vou falar, porque o Me Salte não existe assim para agradar, não está ali par dizer “Somos gays e vivemos em um mundo linnovembro 2016
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“Eu não faço militância cega, eu estudo e se está ali eu vou falar, porque o Me Salte não existe assim para agradar, não está ali par dizer “Somos gays e vivemos em um mundo lindo e maravilhoso”, o Me Salte está ali para falar da parte invisibilizada, mas também para pegar no pé. Eu já tive matéria que incomodou militante, que chegou pra mim e reclamou e eu falei “Olha queridney, a matéria vai pro ar e se reclamar eu coloco mais”.
do e maravilhoso”, o Me Salte está ali para falar da parte invisibilizada, mas também para pegar no pé. Eu já tive matéria que incomodou militante de 1900 e bolinha, que chegou pra mim e reclamou e eu falei “Olha queridney, a matéria vai pro ar e se reclamar eu coloco mais”.
SOUL: Em uma matéria da Car-
ta Capital, feita em junho deste ano, a revista afirmou que a mídia brasileira é cúmplice das atitudes homofóbicas por não ter um porta-voz que possa falar sobre o assunto. Você concorda?
Jorge: Não acho que precise de um porta-voz para evitar que os crimes aconteçam pela mídia. Eu acho que os jornalistas precisam se informar sobre as temáticas sobre os assuntos. Eu acho que de fato, dentro das redações, empresas de comunicação têm muita lésbica, muito gay, poucos travestis e transsexuais, tem que realmente alguém fazer o papel de 52
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formiguinha, de brigar e de bater boca, mas não acho que precise de um porta-voz, de um salvador da pátria para fazer isso.
SOUL: Você concorda com a
premissa de que se a sigla LGBT fosse substituída, por exemplo, por Movimento Gay, a causa poderia ganhar mais força?
Jorge: Eu acho que incomodar
pelas diferenças e fundamental. Então você sair de uma sigla GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), e tirar o L de trás do G, e colocar o movimento lesbofeminista na frente (LGBT) é uma coisa importante. Acho que o G deveria ir para o fundo, porque o gay, homem branco é o machista em potencial, que em algum momento pode agir de forma preconceituosa dentro do movimento. E partimos para uma questão até maior, para o desenvolvimento de políticas públicas é
fundamental que você entenda a percepção de que existem diferenças. As demandas de saúde de um homem gay são umas, as de um homem trans são completamente diferentes. Então pra você desenvolver política você precisa saber que cada um é diferente, colocar todo mundo no mesmo saco não vai adiantar.
SOUL: Com apenas sete meses de lançado, o canal Me Salte foi indicado como melhor mídia LGBT da Bahia de 2016 no prêmio “Melhores do Ano”. Ao que você atribui essa indicação? Jorge: Foi uma surpresa mes-
mo, esse prêmio é feito por
ências. Acho que tem muito jornalista que trabalha para ganhar prêmios. Eu trabalho no caso do Me Salte para visibilizar toda a opressão que a comunidade LGBT sofre historicamente. Eu não vou mudar o mundo, mas posso mudar parte dele.
SOUL: Como é a interação do
público do Me Salte nas redes sociais?
Jorge: Menina, é um tal de
mandar nudes (risos). Já recebi mensagem uma mensagem pedindo opinião na foto. “Jorge, tô querendo mudar minha foto do Grindr, você acha melhor essa ou essa?”. E eu “Binho, escolha aí a que você
achar melhor” (risos). Mas é muito bom.
SOUL: Em 2017, teremos novidades no Me Salte?
Jorge: Ano que vem? Ainda
tem coisa esse ano. Tem uma série agora, que só faltam dois homens trans para entrevistar, que estamos fazendo sobre o uso do nome social. Tem outra, essa eu não posso falar e pro ano que vem, além da festa de um ano do Me Salte, mais um grande evento em Salvador, a gente vai parar essa cidade (risos), para junho de 2017, vai ter o maior evento para população LGBT que já houve na história deste país, que o Me Salte vai fazer, mas também é segredo.
ILUSTRAÇÃO: FREEPIK
artistas da Bahia, e eles que indicam quem são os mais representativos. É obvio, é um negocio que deixa você lisonjeado, o canal tem sete meses, pouquíssimo tempo produto de mídia, mas as pessoas se sentem representadas. E isso é uma coisa que tem sido muito positiva, o meu nome já mudou, eu já fui Jorge de Irmã Dulce (Gauthier é autor da biografia de Irmã Dulce), Jorge do PCC (o jornalista fez matérias sobre a facção) e agora é Jorge do Me Salte. Acho que assim você dar visibilidade, a quem é invisibilizado é uma coisa que me deixa mais feliz. Eventualmente os prêmios são c o n s e q u -
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CRÔNICA
Ver as diferenças das pessoas como vemos as diferentes flores Texto: Íris Leandro
C
erto dia embarquei em uma viagem com uma missão: encontrar uma flor sem cheiro. Para isso teria que cheirar todas as flores do mundo. Comecei pelos lírios, sempre soube de sua grande variedade e imaginei que começando pelo mais difícil, chegaria menos cansada ao final. Enc Z ontrei lírios de cor rosa, amarela, branca, laranja, violeta, verde claro, verde escuro...muitos. Os tamanhos também variavam, alguns chegavam aos 25 cm de diâmetro. Nessa brincadeira minha casa se tornou um jardim. Lírios, margaridas, jasmins, orquídeas, ipê, jacarandá, onze horas, rosas, duas amigas, flor-do-pau-brasil, flor-de -maio e todas as mais que ali couberam. O cheiro daqueles tantos perfumes me deixava perdida entre os tantos sentidos que a natureza desperta. Tornamo-nos como íntimas. Passei a saber diferenciar cada uma delas só pelo toque, ou identificar o ressecamen-
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to pela tonalidade do caule. Agora não só o cheiro me interessava, era desde a raiz até as pétalas. Pesquisei efusivamente (em livros, sites e enciclopédias) todos os tipos de flores que contemplavam o mundo. Analisei fotografias – que, apesar de frias, me permitiam ter uma noção básica de detalhes das plantas –, consultei especialistas, enfim, fiz de tudo para encontrar a flor que não tinha cheiro. Passava dias sem dormir nessa busca. Durante um destes dias conheci a flor de laranjeira e descobri que dela se extraía um óleo mágico, que acalmava. Quem sabe se aquele óleo não serviria para acalmar meu coração agoniado por encontrar a falta de cheiro em uma flor?
jo. Mas eu sabia... aquilo poderia levar dias e dias. Soube respeitar os sinais e cessei a minha busca. Resolvi acreditar naquela plantinha e, de certa forma, em mim. Depois daí, quando saí de casa, tudo estava diferente. Eu nunca mais deixei de ver as pessoas como flores, como no sonho. Eu as via com a sua beleza única, desenhada em cada traço diferente de cada néctar. Sempre que via alguma meio murcha, dava um jeito de enchê-la de vida de novo. Assim estava composto o grande jardim que saiu de minha casa para as ruas: flores de diferentes tamanhos, com raízes que se encontravam de formas diferentes, algumas com frutos e outras sem. Algumas até carnívoras e, por que não, belas? Flores híbridas que vieram da união de três espécies. Todas tinham a sua função e importância, ali. E a minha viagem terminou com a confiante espera do tempo da flor.
ILUSTRAÇÕES E FOTO: FREEPIK
Três colheres de sopa para 1 litro d’água, assim recomendou o vendedor da feira. Eu desdenhei da flor e inverti as medidas: era um litro de água de laranjeira para três colheres de sopa d’água. Dormi profundamente, um sonho estranho. As pessoas haviam se transformado em flores. Eram enormes caules com cabeças cercadas de pétalas. Vi até o meu chefe do trabalho sorrindo em corpo de margarida. No meio do sonho, apesar da grande euforia em que me encontrava, não desviei do meu objetivo: encontrar a bendita flor sem aroma. Pensando nisso, mentalizei a flor e inspirei fundo. Quando acordei tinha se materializado ao meu lado, em minha cama, um belo caqueirinho de terra batida, fértil, e dele brotava uma plantinha. Imaginei logo de cara que dali nasceria uma flor sem cheiro, é claro, já que esse era meu dese-
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SERVIÇOS Por: Caroline Rodrigues
Centro Baiano Anti-Aids (CBAA) TAMO JUNTAS O coletivo Tamo Juntas oferece atendimento gratuito multidisciplinar a mulheres vítimas de violência. Duas vezes por semana os atendimentos são feitos com psicólogas, assistentes sociais e advogadas que dão apoio às vítimas de violência emocional e física. Esse grupo ainda realiza mutirões mensais, no qual são realizadas palestras sobre a violência contra a mulher, feminismo e empoderamento. Rua do Cabral, 142 - Nazaré, Salvador - BA, 40055-010 (71) 98222-1052 / 99170-2357 Tamo Juntas
Blog Guia Gay Salvador Neste blog o público LGBT soteropolitano pode conferir dicas de restaurantes, bares, shows, points, cinemas, mapas gays, apoio turístico e eventos em geral que a comunidade LGBT pode se agradar em visitar.
GRUPO GAY DA BAHIA (GGB) O Grupo Gay da Bahia é uma associação sem fins lucrativos que defende os direitos humanos de gays no estado da Bahia. Neste grupo, através de parcerias com outras entidades, são feitas iniciativas como palestras, passeatas e afins, visando o combate ao preconceito e a homofobia. São realizadas também reuniões semanais para discutir assuntos que interessam à comunidade homossexual, como direitos humanos, prevenção da Aids e HIV e outras doenças, entre outras temáticas. Os dias dos encontros são especificamente nas quartas e sextas, das 20h às 22h. O local ainda possui o maior arquivo homossexual da América do Sul, que está aberto à pesquisa científica. Sede - Rua Frei Vicente, 24 – Pelourinho - CEP 40.022-260. (71) 3322-2552 Grupo Gay Bahia Ggb
www.guiagaysalvador.com.br
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O centro Baiano Anti-Aids atua com prioridade na prevenção da saúde, por meio de palestras sobre o tema, distribuição de preservativos, entre outras atividades. E ainda oferece assistência social através de assistência jurídica e aplicação política. Rua Frei Vicente das Chagas, 24 – Pelourinho - CEP: 40.030-125 (71) 3322- 2552 (71) 9989-4748 marcelocerqueira@atarde.com.br
Cinema/ Hotel Vídeo Bahia Cabines No Vídeo Bahia Cabines, o público LGBT pode assistir filmes ligados ao interesse dessa comunidade, alugando quartos com camas amplas e televisões. Funcionamento de segunda a domingo, das 13h às 21h30. Rua do Salete, 2, sala 6, Barris. (71) 3328-2017 www.videobahiacabines.com/
Centro Municipal LGBT Salvador
Avenida Oceânica, 3.731, Rio Vermelho. 3202-2750 / 3202-2758
Restaurante Zanzibar La Bouche Bar e Creperia O La Bouche Bar e Creperia oferece deliciosos crepes acompanhados de shows voltados ao público LGBT, como perfomace de artistas travestis, de transformistas como Valerie O’rarah e convidadas, entre outros. Há também atrações com música MPB, tendo no elenco André Caldeiras, Cristiano Leão, Gal Borges, e Célia França. Rua Dias D´Ávila, Beco da Off, Barra.
O Zanzibar é um restaurante tradicional de comida africana e possui público. Nele é servido almoço, jantar e bebidas. O espaço é adequado para quem gosta de apreciar a culinária africana. O local foi aberto em 1970 e foi ponto de encontro de artistas em meio ao período ditatorial no Brasil. Hoje, além de uma boa degustação, o público, que em sua maioria se constitui em mulheres, pode também curtir uma boa música em noites de sexta e sábado e ainda nas tarde de domingo. Aberto em geral nas quintas das 18h às 22h, nas sextas e sábados das 12h às 20h e domingos, das 12h às 18h.
(71) 8879-5311. LaBouche Bar Creperia
Rua Jardim Federação, 40, Federação. (71) 3332-2260
crm-lgbt@salvador.ba.gov.br
Site MAMU Neste site, as mulheres que sofreram violência podem encontrar um mapa de locais em Salvador que acolhem as vítimas. http://www.mamu.net.br/
ILUSTRAÇÃO: FREEPIK
O Centro Municipal LGBT de Salvador opera com um serviço multidisciplinar gratuito, com assistências social, jurídica e psicológica. Tudo para dar todo o suporte necessário ao público soteropolitano de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. São disponibilizados também programas de incentivo profissional e acadêmico. O centro possui ainda um sistema online de denúncia no endereço http://observatorioracialelgbt. salvador.ba.gov.br/denunciar para os casos de agressão de qualquer característica: sexual, doméstica, assédio, entre outros. O funcionamento é de segunda a sexta, 8h às 17h.
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www.fsba.edu.br
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(71) 4009-2840