organizaĂ§ĂƒO eder chiodetto
Sou uma cabra perdida num labirinto de sombra e luz, faz música torta na noite de dentro, como num pântano de memórias e inventos, uma caixa de esquecimentos, um baú de desmemórias. Lembro da minha infância, os que se foram, os que vão nascer. Silêncio. Com o resto do sono, escrevo um ideário de desaparecimentos, bordo com luz paisagens desbotadas pelo olhar: de certo modo estamos todos desaparecendo. Sou uma cabra perdida num labirinto de paredes nuas e frias e a morte depositando lodo nos versos e manchas escuras na pele dos homens. Não tenho sonhos nem identidade. Durmo. Uma lua de sangue vem beijar minha pálpebra. Sem mapas, bússola ou rotas, nem direção certa, sigo como um fantasma, vagando em círculo. Sinto-me um touro de mármore na chuva, sem fio de Ariadne e as gotas apagam minha imagem, por entre rostos pálidos e sem face e corpos sem matéria.
iezu kaeru
I am a goat lost in a labyrinth of shadow and light, it makes music crooked in the night of the inside, like in a swamp of memories and inventions, a box of oblivions, a chest of forgetfulness. I remember my childhood, those who are gone, those who will be born. Silence. With the rest of the sleep, I write an ideology of disappearances, I embroider with light landscapes discolored by the gaze: in a way we are all disappearing. I am a goat lost in a labyrinth of cold and naked walls and death depositing mud in the verses and dark blemishes on the skin of men. I do not have dreams nor identity. I sleep. A bloody moon comes to kiss my eyelid. Without maps, a compass or routes, nor the right direction, I go on like a ghost, wandering in a circle. I feel like a marble bull in the rain, without Ariadne’s thread and the raindrops erase my image, among pale faceless faces and bodies without matter.
Labirinto de cabras e o touro de mármore Cá nesse labirinto de símbolos que constelam em gravidade vertiginosa, imagens fabulam códigos de acesso ao êxtase enquanto sangram pelos quadrantes de seus cortes abruptos. Lapsos de memória, signos em transição, sensores que farejam o alhures e intuem o devir.
Eder Chiodetto
Mitra, o deus do Sol, da sabedoria e da guerra na mitologia persa, surge nesse labirinto convocando uma existência futura e espiritual, libertada da matéria, golpeando até a morte um touro, cujo sangue faz brotar a vida no cosmos. Via-crucis do renascimento que purifica e redimensiona nossa débil noção do espaço sideral que nos encarcera nesse vão de almas suplicantes. Não há morte, há gestos e impermanência em constante rotação. Imagens se encontram para comungar a beleza trágica e poética de fragmentos do nosso trânsito por um planeta que aguarda a cabra anunciar seu derradeiro posfácio. Cabra é todo ser. Cabra macho, cabra fêmea. Cabra absoluta. A besta que existe em nós. Conjunção magnífica das forças profundas que nos animam. Libido primal. O gozo que antecede a morte pela assunção do prazer sem freios do instinto. Carl Gustav Jung dobrou esquinas, irrigou assim a beleza desse labirinto: A profusão de símbolos animais nas religiões e nas artes de todos os tempos mostra até que ponto é importante para o homem integrar na sua vida o conteúdo psíquico do símbolo, isto é, o instinto… O animal, que é no homem a sua psique instintiva, pode tornarse perigoso, quando não é reconhecido e integrado na vida do indivíduo. A aceitação da alma animal é a condição da unificação do indivíduo, e da plenitude do seu desabrochamento. A alma mítrica de Iezu Kaeru, o artista solar, nos convida nessa roda de fogo de imagens instáveis a desabrochar os sentidos, a reordenar as pulsões da percepção fatigada por símbolos óbvios. Aqui o que parece ser já aconteceu e ficou soterrado no cemitério das insignificâncias ou está em plena ebulição na busca de novas aporias. Viver é bicho indomesticado que desperta com olhos renovados a cada novo sol que a órbita da Terra descreve em misteriosas elipses a excitar e desgastar a matéria orgânica. Cabra de sentidos e impulsos lunares que reinventa a lógica a golpes de luz. Tudo o que você vê é o espelho de ti. Cabra absoluta. Touro indomável.
Labyrinth of Goats and the Marble Bull Here in this labyrinth of symbols that constellate in vertiginous gravity, images fable access codes to ecstasy while bleeding from the quadrants of their abrupt cuts. Memory lapses, signs in transition, sensors that smell the elsewhere and sense the becoming. Mitra, the god of the Sun, wisdom and war in Persian mythology, emerges in this labyrinth summoning a future and spiritual existence, free of matter, beating a bull to death, whose blood makes life on the cosmos sprout. Via-crucis of the rebirth that purifies and resize our weak notion of the outer space that imprisons us in this void of pleading souls. There isn’t death, there are gestures and impermanence in constant rotation. Images stumble upon one another to commune with the tragic and poetic beauty of fragments of our transit through a planet that waits for the goat to announce its ultimate afterword. The goat is every being. Male goat, female goat. Absolute goat. The beast within us. Magnificent conjunction of the deep strengths that animate us. Primal libido. The joy that precedes death by pleasure assumption without having to curb one’s instinct. Carl Gustav Jung turned corners, thus irrigating the beauty of this labyrinth: the profusion of animal symbols in the religions and arts of all times shows to what extent it is important to man to integrate in his life the psychic content of the symbol, meaning, the instinct. The animal, who is in the man, his instinctive psyche, can become dangerous, when it’s not recognized and integrated in the individual’s life. The acceptance of the animal soul is the condition for the individual’s unification, and for the plenitude of their blossoming. Iezu Kaeru’s Mitric soul (of the Sun god Mitra), the solar artist, invites us to this circle of fire of unstable images to blossom the senses, to reordain the impulsions of the perception fatigued by obvious symbols. Here, what seems to be has already happened and it was buried in the graveyard of insignificances or it’s in complete ebullition searching for new difficulties. Living is a non-domesticated animal that awakens with renewed eyes at each new dawn that the Earth’s orbit describes in mysterious ellipses, exciting and wearing out the organic matter. Goat of senses and lunar impulses that reinvent logic by strokes of light. All you see is the mirror of yourself. Absolute goat. Untamable bull.
Explicação do fato
Torquato Neto
Parte I Impossível envergonhar-me de ser homem. Tenho rins e eles me dizem que estou vivo. Obedeço a meus pés e a ordem é seguir e não olhar à frente. Minúsculo vivente entre rinocerontes me reconheço e falho e insisto. E insisto porque insistir é minha insígnia. O meu brasão mostra dois pés escalavrados e sobram-me algumas forças: sei-me fraco e choro. E choro e nem assim me excedo na postura humana: sofro o corpo inteiro, pendo e não procuro a arma em minhas mãos. Sei que caminho. É só. Joelhos curvam-se, amaziam ao chão que queima e me penetra e eu decido que não posso envergonhar-me de ser homem. A criança antiga é dique barrando o meu escôo e diz que não, não me envergonhe. Não me envergonho. Tenho rins mãos boca órgão genital e glândulas de secreção interna: impossível. No entanto sinto medo e este é o meu pavor. Por isso a minha vida, como o meu poema, não é canto, é pranto e sobre ela me debruço observando a corcunda precoce e os olhos banzos.
Parte II Também tenho uma noite em mim tão escura que nela me confundo e paro e em adágio cantabile pronuncio as palavras da nênia ao meu defunto, perdido nele, o ar sombrio. (Me reconheço nele e me apavoro) Me reconheço nele, não os olhos cerrados, a boca falando cheia, as mãos cruzadas em definitivo estado, se enxergando, mas um calor de cegueira que se exala dele e pronto: ele sou eu, peixe boi devolvido à praia, morto, exposto à vigilância dos passantes. Ali me enxergo, à força no caixão do mundo sem arabescos e sem flores. Tenho muito medo. Mas acordo e a máquina me engole. E sou apenas um homem caminhando e não encontro em minha vestimenta bolsos para esconder as mãos, armas, que, mesmo frágeis, me ameaçam. Como não ter medo? Uma noite escura sai de mim e vem descer aqui sobre esta noite maior e sem fantasmas. como não morrer de medo se esta noite é fera e dentro dela eu também sou fera e me confundo nela e ainda insisto? Não é viável. Nem eu mesmo sou viável, e como não? Não sou. O que é viável não existe, passou há muito tempo e eram manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva e eu menino. eram manhãs e tardes e manhãs sem pernas que escorriam em tardes e manhãs sem pernas e eu sentado num tanque absurdamente posto no meio da rua, menino sentado sem a preocupação da ida. E era todo dia. Havia sol e eu o sabia sol: era de dia Havia uma alegria do tamanho do mundo e era dia no mundo. Havia uma rua (debaixo dum dia) e um tanque. Mas agora é noite até no sol.
Parte III
Explanation of the fact
Vou à parede e examino o retrato, irresponsável-amarelo-acinzentado-testemunha. Meus olhos não se abrem e mesmo assim o vejo. E mesmo assim te vejo, ó menino, encostado à palmeira de tua praça e sem querer sair.
Part I Impossible to be ashamed of being a man. / I have kidneys and they tell me I am alive. / I obey my feet / and the order is to go on and not look ahead. / Miniscule being among rhinoceroses / I acknowledge myself and I fail / And I insist. / And I insist because to insist is my insignia. / My crest shows two flayed feet / Some strengths remain: I know I am weak / And I cry. / And I cry and not even then I exceed in the human posture: / I suffer my entire body, I lean in and do not look for / the gun in my hands. / I know I walk. Just that. / Knees bend, joining the ground that burns / and it penetrates me and I decide I cannot / be ashamed to be a man. / The ancient child is a dam barring my outflow / And they say, no, do not be ashamed. / I am not ashamed. / I have kidneys hands mouth genital organ / and glands of internal secretion: / Impossible. / However I am scared / And this is my fear. / That’s why my life, like my poem, / is not a song, it’s lamentation / and I lean on it / Observing the precocious humpback / and the sad eyes.
E mesmo assim te penso dique, desolação de seca na caatinga, noite de insônia, canção antiga ao pé do berço, prata fósforo queimado poço interminável, seco. Ouço teu sorriso e te obedeço. Eu que desaprendi a preparação do sorriso e não o consigo mais. Estou preso a ti, ainda agora, apesar do cabelo escurecido, as mãos maiores e mais magras e um súbito medo de morrer, amor à vida, tolo. tenho preso a ti a palavra primeira e o primeiro gesto de enxergar o espelho: ouço-te, sou mais desgosto em mim, incompreensível. À tua ordem decido não envergonhar-me de existir nesta forma disforme e de osso carne algumas coisas químicas e uma vontade de estar sempre longe, visitando países absurdos. Não posso envergonhar-me de ser homem. tenho um menino em mim que me observa e ele tem nos olhos (qual a cor?) todas as manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva e eu menino, que me alumiava. Tenho um menino em mim e ele é que me tem: por isso a corcunda precoce e os olhos banzos: tenho o corpo voltado à sua procura e meu olhar apenas toca, e leve, a exata matriz da calça molhada em festa vespertina da bexiga.
Part II I also have a night so dark in me / that I confuse myself in it and I stop / and in slow cantabile I pronounce / the words of the dirge to my corpse, / lost in it, the somber air. / (I recognize myself in it and I am terrified) / I recognize myself in him, / not the closed eyes, speaking with a mouthful, / the hands crossed in a definitive state, seeing himself, / but in the blinding heat that emanates from him / and that’s it: he is me, / a manatee washed up on the shore, dead, / exposed to the vigilance of the passersby. / There I see myself, forced into the coffin of the world / without traceries and without flowers. / I am very scared. / But I wake up and the machine swallows me. / And I am just a man walking / And I cannot find in my clothing / Pockets to hide the hands, guns, that even fragile, / threaten me. / How not to be afraid? / A dark night comes out of me and it comes down here / Over this bigger night without ghosts. / How not to die of fear if this night is beast / and inside it I am also beast and I confuse myself in it and / I still insist? / It is not viable. / Not even I am viable. And how? I am not. / What’s viable does not exist, it’s been gone a long time / and they were mornings and afternoons and mornings with sun and rain / and I, a boy. / They were mornings and afternoons and mornings without legs / that flowed into afternoons and mornings without legs / And I, sitting on a tank absurdly put in the middle of the street, / a boy sat down without the worry of departure./ And it was every day. / There was sun / And I knew it / Sun: it was day / There was a joy / the size of the world / and it was day in the world. / There was a street / (under the day) / and a tank. / But now it is night even on the sun. Part III I go to the wall and examine the portrait, / irresponsible-yellow-grayishwitness. / My eyes do not open and even then I see him. / And even then I see you, oh boy, leaned onto the palm tree of your square / without wanting to leave./ And even then I think of you as a dam, / drought desolation in the scrubland, sleepless night, / ancient song at the crib’s foot, / silver / burnt match / endless well, dry. / I hear your smile and I obey. / I, who unlearned the preparation of the smile / and I can’t do it anymore. / I am stuck to you, even now, / despite the darkened hair, / the hands bigger and skinnier / and a sudden fear of dying, love of life, fool./ I have stuck to you the first word / and the first gesture of seeing the mirror: / I hear you, I’m more disappointed in myself, incomprehensible. / At your command I decide not to be ashamed of existing / in this deformed shape made of bones / flesh / some chemical things / and a will to always be away, / visiting absurd countries. / I cannot be ashamed of being a man. / I have a boy in me that watches me / and he has in his eyes / (what is the color?) / all the mornings and afternoons and mornings with sun and rain/and I, a boy, who illuminated myself. / I have a boy in me and he is the one who has me: / that’s why the precocious humpback / and the sad eyes: my body is dedicated to looking for him / and my gaze just touches, lightly, / the exact matrix on the pants / wet from the bladder’s vespertine party.
Governo de Pernambuco Government of Pernambuco
Paulo Henrique Saraiva Câmara
governador de pernambuco Governor of Pernambuco
Raul Jean Louis Henry Júnior vice-governador Vice governor
iezu kaeru
© iezu kaeru
fotografias Photographs
2018. Tiragem: 1000 exemplares
concepção Conception tratamento de imagens Images processing Vídeo Video coordenação Coordination produção Production texto Text
Antonieta Trindade
organização Organization
secretária de cultura Secretary of culture
Silvana Meireles
secretária executiva Executive secretary
Tarciana Portella
Gerente de Políticas Culturais Manager of cultural policies
Jarbas Araújo Jr.
Assessor de Fotografia Photography assessor
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) Foundation of the Historical and Artistic Heritage of Pernambuco
Márcia Souto
presidente President
Guido Bianchi
iezukaeru@gmail.com
Trilha sonora original Original soundtrack
Secretaria de Cultura Secretariat of Culture
Todos os direitos reservados.
Eder Chiodetto
Concepção editorial Editorial concepcion texto Text
Zianne Torres
K41i kaeru, iezu, 1981 -
iezu kaeru Ticiano Arraes (Arraia Produções)
Labirinto de cabras e o touro de mármore / fotografias de iezu kaeru, textos de Torquato Neto, Eder Chiodetto, iezu kaeru ; tradutor: Suellen Carrol ; Eder Chiodetto, curadoria. – [Recife] : Ed. do Autor, 2018.
design gráfico Graphic design
produção executiva Executive production
Paula Sá
apoio administrativo Administrative support
Oia Coletivo Bruna Leite
comunicação Communication
Suellen Carroll
tradução PARA O INGLÊS English translation
Liliana Tavares (COM Acessibilidade Comunicacional) audiodescrição Audio description
72p. : 56ils. Texto em português e inglês. ISBN 978-85-922936-1-1 1. FOTOGRAFIA – RECIFE (PE) – EXPOSIÇÕES – CATÁLOGOS. 2. KAERU, IEZU, 1981 – FOTOGRAFIAS. I. Torquato Neto, 1944-1972. II. Chiodetto, Eder, 1965-. III. Carrol, Suellen. IV. Título. CDU 77 CDD 779 PeR – BPE 18-425
vice-presidente Vice-president
André Brasileiro
gerente de equipamentos culturais Manager of cultural equipment
Gustavo Duarte de Araújo
Este catálogo foi editado em 2018 e integra a exposição fotográfica itinerante Labirinto de Cabras e o Touro de Mármore, de iezu kaeru. O projeto contou com a curadoria de
superintendente de gestão do funcultura
Eder Chiodetto (SP) e recebeu incentivo do
Superintendent of Funcultura management
Funcultura/PE para realização em três regiões
André Cândido
do estado: Sertão (SESC Triunfo), Zona da
Superintendent of planning and management
Garanhuns). No projeto gráfico são utilizadas
superintendente de planejamento e gestão
Mata Norte (SESC Ler Goiana) e Agreste (SESC as famílias tipográficas Kohinoor (Indian Type Foundry) e Dosis (Impallari Type). Impressão em papel Couché Fosco 250g/m2 e Couché Fosco 115g/m2 pela Gráfica FacForm.
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS Special Thanks
Mãe Vera, Leta Vasconcelos, Valkiria Dias Porto, Eder Chiodetto, Raquel Santos, Fotô Editorial, Thiago Nunes (filho de Torquato Neto, detentor e herdeiro legítimo dos direitos de sua obra, e que autorizou a reprodução do texto), Edvanio Jancy, Bruna Leite, Michelly Pessoa, Gustavo Bettini, Piera Lobo, Edvaldo e Taiudo (Gráfica FacForm), Marcelo Peregrino, Liliana Tavares, Vicentão, Dona Eliane, Ricardo de Sá Torres, Zuila de Sá Torres, Jane (Secretaria de Garanhuns), Rita de Cássia Brandão, Gibson Galdino, César Brandão, Kids Mania, Tonho, Bora Restaurante, Família Fideles, Isaac José e Jorge Eduardo, Os Caretas de Triunfo. FÁBRICA DE CRIAÇÃO POPULAR – SESC TRIUNFO: Cristiane Campos, Patrícia Carla Almeida, Aurilene Oliveira, Jean
I S B N 9 7 8 - 8 5 - 9 2 2 9 3 6 -1-1
Farias, Ana Carolina Cardoso; SESC LER GOIANA: Socorro Costa, Rosineide Galdino, Anderson Menezes, Luana Beatriz, Murilo, Izaias Neto; SESC GARANHUNS: Ivânia Cristina Barbosa Barros, Janse Ricardo Reis, Josimar Araújo, Edijane Calado, Fernando, Geicy Albuquerque.
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conteúdo disponível em audiodescrição
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