apresenta
Setembro é o mês das artes visuais no Brasil. Recife, foco de manifestações artísticas tradicionais e de efervescentes vanguardas contemporâneas, participa do calendário nacional com a nona edição do SPA das Artes — Semana de Artes Visuais, uma realização da Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Cultura e Fundação de Cultura Cidade do Recife. Entre os dias 12 e 19, o sentido de
Considerando que um dos papéis
propagação norteia as instalações,
essenciais da arte é o de promover uma
discussões, intervenções urbanas e
reflexão crítica acerca da realidade, e
exposições descentralizadas. Dentro
o de propiciar os mais democráticos
daquilo que se propaga, e de tudo que
meios de fruição desse processo, a
converge, o convite é para que todos
ReviSPA surge, mais uma vez, como
participem da série de ações que darão
um veículo propagador de ideias.
à cidade, suas ruas e sua paisagem física e humana uma autêntica
Folheiem, compartilhem, distribuam,
condição de protagonistas.
circulem, contribuam... Estas páginas servem de combustível para que brotem novos olhares sobre o fazer artístico e como o Recife, na semana em que as artes visuais ocupam todo seu território, desdobra-se e se multiplica a partir deles. Luciana Félix Presidente da Fundação de Cultura Cidade do Recife
Esse conjunto reflete a diversidade de linguagens hoje presente nas artes visuais, da fotografia ao grafite, da videoarte à instalação. Os artistas e produtores contemplados promovem eventos de caráter performático, ações de difusão da cultura digital, pesquisas que integram arte e ciência, além de atividades que fazem circular bens culturais e seus criadores por O Conexão Artes Visuais possibilita
diversas regiões do país. As ações
a artistas, curadores, pesquisadores
são registradas pelos proponentes
e espectadores participar de uma
em textos, fotos e vídeos. O material
grande rede de troca de ideias
abastece o site do Conexão e servirá
e experiências no campo das artes
de base para a produção de um
visuais. O programa — realizado pela
catálogo, o que garante a difusão dos
Funarte com patrocínio da Petrobras,
resultados para um público ainda mais
por meio da Lei Federal de Incentivo
abrangente.
à Cultura — já se disseminou por todo o Brasil, alcançando grandes centros
A primeira edição do programa
urbanos e municípios menores.
viabilizou, em 2008, cerca de 300 atividades, oferecidas gratuitamente a
Em 2010, os trinta projetos viabilizados
mais de 80 mil pessoas, em 42 cidades.
pela segunda edição do programa
Para nós é um grato prazer saber que
ampliaram esse intercâmbio. Dois dos
muitos desses projetos continuam
proponentes contemplados publicaram
a evoluir, incentivando o trabalho
seu próprio edital para convocar
de outros artistas e atraindo novos
propostas de todo o país, uma
públicos para as artes. Esperamos que
novidade que torna o Conexão ainda
o SPA das Artes 2010 siga essa trilha
mais democrático. Quarenta cidades
de sucesso, propiciando cada vez mais
brasileiras recebem exposições,
olhares diversos para as artes visuais
intervenções, oficinas e debates. Além
no Brasil.
disso, livros e websites reúnem textos críticos e acervos artísticos, de forma a
Sérgio Mamberti
fomentar a documentação e a reflexão.
Presidente da Funarte
Sobre a política, o político e a arte.
Ao buscar sua gênese, o SPA revela-se
Assim a ReviSPA 2010, revista do SPA
como consequência do próprio cenário
das Artes, para além de apresentar
artístico do Recife: como um campo
os resultados das edições anteriores,
aberto para a discussão e a produção
pretendeu um pouco mais: pensar
da arte contemporânea — lugar onde
sobre si, sobre suas origens e dar conta
o político torna-se possível na arte. É
de apontar questões que envolvem a
preciso pensar o evento não só como
política das artes e a arte na política.
um ambiente para criar trabalhos artísticos, mas experiências que possam
Os textos que compõem esta ReviSPA,
ativar outras perguntas, diferentes
aos seus modos, falam do engajamen-
das que já estão postas, às questões
to e da articulação coletiva que o SPA
contemporâneas. E assim dar conti-
agencia. São pensamentos refletidos e
nuidade à criação de novos territórios
reflexivos acerca do experimentalismo
existenciais, estímulo à produção de
e do espaço para a criação livre que
novas subjetividades e inserção do
edificou o evento e o potencializa. Pen-
ruído no território discursivo (blocado)
sam também o relacionamento com a
contemporâneo.
cidade — com as questões contemporâneas que envolvem o viver urbano e a
Ana Luisa Lima e Raíza Cavalcanti
interação artística com este espaço tão
editoras
conflituoso — que o marca.
14
20
28
RE C / E
Márcio
xperi
Almeid
N otas s C a r g a o br e o c o letiv & D e sca o Laura rg a Sousa
Br ig a d a p o l as A r t í s t i í t ica cas : n a art e na p a arte ger ando olíti Raíza Cavalc ca an ti
36
42
ment/
a
Lug ar e lug ar s de inven ç es de Fabian r e s i s ã o, a de M t ência oraes
Das e x pe
riênc Ana Lu i as isa Lim a
estét
icas
AÇÕES
50
O art is d e c e ta , n a c o n n t e n as t r a- m Ana M ão aria M aia
56
66
E u Pr o — u ma me t o, Is t o éP e sc r i Michel ta d e o l í t i c o ine To a rr e m rres e ss o s
Conec t d e sc o u d e . Um pa ntrol inel e Opheli a Patr
72
icio Ar
rabal
A n otaçõ es pa r a u ma c onve Maria Moreir a
r sa
fotos daniela pinheiro denison lima
SPATIO | mostra de vídeo-arte | 2009
Júlio Leite nos outdoors do Museu Murilo La Greca | 2009
Sal達o Spacusados | Sesc Santa Rita | 2009
FOTOS窶アCERVO PAULO BRUSCKY
ATITUDE DO ARTISTA/ATITUDE DO MUSEU Paulo Bruscky | 1978
16
(((revispa)))
REC/Experiment/AÇÕES Dos anos 70 ao SPA das Artes Por Márcio Almeida
Durante a década de 70, o Recife viveu
Vater, Hélio Oiticica, José Roberto Agui-
um momento importante no circuito
lar, entre outros.
das artes visuais, especialmente no que diz respeito à arte conceitual e ao
No início dos anos 80, outras ações
experimentalismo.
concretizam a ocupação das ruas da cidade, possibilitando a formação de um
Ao longo desse período, foram realiza-
novo público para a produção de artes
das ações que apontavam a necessida-
visuais local, nacional e internacional.
de de ocupação de espaços alternativos
Entre outras, destaca-se a 1ª Exposição
para ações artísticas, entre outras, es-
Internacional de outdoor/Artdoor, com
tão a 1ª Feira de Arte do Recife no Pátio
participação de 190 artistas de 25 paí-
de São Pedro e o Manifesto/Boicote à
ses, e o projeto Esculturas nas Praças.
Pré-Bienal de São Paulo realizada no Recife, no Parque da Fecin, ambos os
Nesse mesmo período, surgiram vários
eventos organizados pela Associação
agrupamentos de artistas, entre eles
dos Artistas Plásticos Profissionais de
As Brigadas, que buscavam uma parti-
Pernambuco. Neste mesmo período, foi
cipação efetiva no campo político da
criada a equipe Bruscky e Santiago.
cidade. Realizaram inovadoras for-
Esses dois artistas foram de fundamen-
mas de propaganda político-eleitoral,
tal importância para a formação de
com pinturas de murais, driblando a
outros artistas e coletivos que viriam
censura estabelecida (a Lei Falcão). As
a surgir na cidade na década seguinte.
Brigadas Gregório Bezerra, Portinari e
Paulo Bruscky e Daniel Santiago reali-
Henfil eram formadas por artistas de
zaram ações, mostras, performances,
várias gerações, o que possibilitava
festivais e possibilitaram a vinda, para
uma importante discussão sobre as di-
a cidade, de artistas e obras impor-
ficuldades do circuito de artes visuais
tantes da vanguarda da arte nacional
do Recife, ao mesmo tempo em que
e internacional, como Christo, Regina
apontava possíveis soluções.
17
(((2010)))
Márcio Almeida é artista, Gerente Operacional de Artes Visuais e Design da Fundação de Cultura Cidade do Recife (FCCR) e coordenador geral do SPA das Artes.
Esses encontros estimularam o
Durante a década de 90, o Bairro
surgimento de vários grupos e cole-
do Recife é invadido por um grande
tivos de jovens artistas. Os grupos
número de artistas que instalam seus
Carasparanabuco, Mocinhos e Bandidos
espaços de criação e passam a fazer
e Formiga Sabe que Roça Come passa-
ações conjuntas, a exemplo do Tempo-
riam a utilizar as ruas como suporte
ral/PE, evento que envolveu shows de
para suas produções, dessa vez com
música, dança, intervenções urbanas
práticas mais conceituais, além de
e a pintura nos muros e fachadas do
promoverem uma grande divulga-
casario de parte do Bairro do Recife
ção dos eventos realizados por esses
e da exposição Da Zona ao Cais, que
grupos, como as pichações de formigas
consistiu em duas exposições simultâ-
em lugares estratégicos da cidade,
neas nos espaços Quarta Zona de Arte e
realizadas pelo Formiga Sabe Que Roça
Atelier do Cais, aos quais o público era
Come. Poderíamos destacar também o
conduzido por uma banda de música.
surgimento do coletivo Quarta Zona de Arte, a partir de 1987, que embora re-
Paralelamente, surgem vários coleti-
alizasse a maioria das ações no prédio
vos, entres os quais o Mercúrio 108 e
do coletivo, seus membros estiveram
o Molusco Lama, grupo formado por
diretamente ligados à Brigada Henfil.
artistas de vários segmentos, artis-
Além da preocupação com a formação
tas plásticos, músicos, designers e
de artistas e público, foram os primei-
videomakers, responsáveis por várias
ros a se instalarem no Bairro do Recife,
performances na cidade, principalmen-
num período em que esse bairro ainda
te em aberturas de exposições insti-
estava em decadência, e suas ações
tucionais ou relacionadas a artistas de
promoviam o deslocamento de um pú-
outros grupos, marcando suas insatis-
blico que só viria a frequentar o bairro
fações com o circuito estabelecido na
anos mais tarde, em decorrência de
cidade. A partir do referido coletivo,
sua revitalização.
surge outro grupo, o Telefone Colorido,
ACERVO CARGA E DESCARGA
Grupo Carga & Descarga
cujas ações estavam mais relacionadas
por iniciativa de alguns desses artis-
a experimentação em vídeo e curtas.
tas que na década de 80 e início de 90
Em 1995, surge o Subgraf, coletivo
formaram um circuito ainda precário
formado por artistas e designers inte-
de exposições e eventos curados e
ressados na cultura urbana e de rua e
organizados por artistas e coletivos.
cujas experimentações estavam ligadas
Identificando as principais carências
desde à tipografia às novas mídias. No
e possibilidades de atuação de uma
ano seguinte surgem os grupos Carga
política pública para o meio artísti-
e Descarga e Camelo e é inaugurado o
co local, os artistas lançam o projeto
Instituto de Arte Contemporânea IAC/
do SPA junto à Prefeitura do Recife,
UFPE, com uma exposição de interven-
através da Fundação de Cultura Cidade
ções urbanas. O Instituto foi ocupado
do Recife/Secretaria de Cultura, que,
pelo grupo Camelo por seis meses para
desde então, vem realizando o evento
um programa de exposições e debates
anualmente como uma das estratégias
sobre arte contemporânea. No mes-
de descentralização da cultura local e
mo ano, o Carga e Descarga promove
de acessibilidade. Através de um edital
performances, intervenções urbanas,
aberto para seleção de projetos de
vídeos experimentais e realiza no
intervenções urbanas, performances,
Bairro do Recife o Temporal/PE. Essas
exposições e oficinas a serem realiza-
aproximAÇÕES foram fundamentais
das durante o evento, além de pales-
na reestruturação do circuito de artes
tras e ações artísticas espontâneas, o
visuais local, ampliando as fronteiras
evento oferece à cidade a possibilidade
da produção e da experimentação.
de conhecer parte da produção contemporânea do Brasil durante uma semana
Na década seguinte surgem os gru-
no mês de setembro.
pos Aleph, N.A.V.E. (Núcleo de Artes Visuais e Experimentos) e Valdisnei.
O evento tem como característica
Em 2002, foi criado o SPA das Artes,
principal a capacidade de inovação
MÁRCIO ALMEIDA
Carga & Descarga | painel coletivo
e renovação, fruto de uma construção democrática com participação de grande número de pessoas que fazem a cena das artes visuais do Recife, refletindo e propondo o perfil e os formatos de cada edição. Em sua nona edição, o evento assume também o caráter aglutinador de ações, cujas parcerias são de fundamental importância. Com isso podemos pensar em setembro como um período em que a cidade vivencia inúmeras ações, exposições, seminários, SPA, mostras de vídeos, extrapolando todos os formatos de eventos até então realizados, com diferentes conteúdos reflexivos, possibilitando ao público a escolha de quando participar e do que participar. Fica lançado esse tratado das artes visuais para a cidade do Recife.
Quarta Zona de Arte | convite da exposição Quarta Dimensão
FOTOS窶アCERVO CARGA E DESGARGA
Carga & Descarga | Intervenテァテオes no Bairro do Recife
22
(((revispa)))
Notas sobre o coletivo Carga & Descarga inquietações a partir da prática de pesquisa. Por Laura Sousa
Honestamente, este não é um texto
pareceu-me conveniente, antes de citar
sobre o Carga e Descarga1. Levantar
o Carga e Descarga, propor a seguinte
dados sobre a trajetória e as moti-
questão: como investigar o meio2 das
vações do referido coletivo de arte,
artes visuais local a partir da existên-
no Recife da metade dos anos 1990,
cia de coletivos?
constituiu apenas o meu objetivo inicial para a sua escrita. Não demorou
Direciono minhas observações para o
muito, tornou-se evidente o desejo
que podemos chamar de carências não
de experimentação e de ousadia do
atendidas pelo meio de Arte. Longe de
grupo. Desejo identificado na multi-
querer criar regras para o entendimen-
plicidade de linguagens, de suportes e
to da formação de coletivos nos mais
espaços expositivos adotados. Assim
diferentes contextos, levanto exemplos
como nos conteúdos polêmicos e irô-
de tal perspectiva por acreditar ser a
nicos e na própria iniciativa de atuar
responsável por maior contundência
coletivamente.
e clareza nas ações da Arte e seus resultados. E esta clareza não está ligada
Nesse sentido, penso observar ne-
aos conteúdos de determinada produ-
cessidades de articulação que muito se aproximam das que levaram à existência do próprio SPA das Artes. Necessidades que faziam do coletivo o encontro entre todos que quisessem discutir a Arte e não, simplesmente, um agrupamento de artistas. Contudo,
1. Coletivo de arte que atuou no Recife entre 1996 e 1998, formado pelos artistas Maurício Silva, Flávio Emanuel, Márcio Almeida e Dantas Suassuna.
2. Meio, circuito, sistema, mundo da Arte. Lugares e modos sociais que permitem a circulação dos trabalhos e das falas dos artistas, dos críticos, curadores, pesquisadores, filósofos, agitadores culturais e do público (por que não?). Circulação e troca de influências contando, ainda, com os agentes que lidam com os aspectos burocráticos e de mercado: produtores, galeristas, gestores públicos, funcionários etc. Assim como os espaços físicos e seus formatos: as galerias, os museus, os centros culturais, as ruas. Tudo o que se estabelece e se torna quase mecânico nos modelos de proposição/reflexão, de compartilhamento, de fruição e de restrição.
23
(((2010)))
Laura Sousa é bacharel em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2008), com estudos aprofundados em História da Arte pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj, 2009). Pesquisadora integrante do Grupo P.I.A. – Pesquisas e Interações Artísticas, atualmente trabalhando em parceria com o MAMAM – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (2010). Tem desenvolvido pesquisa sobre os coletivos de arte da cidade do Recife.
ção, mas aos fatores relativos a uma
depoimentos dos personagens, publi-
existência não isolada.
cações e debates sobre uma história da arte pernambucana —, entendo que se
Desde a década de 1950, as artes
tornou tradicional, também, a cons-
(plásticas ou visuais, como se queira
trução de falas que personificam as
chamar) vivem a formação de cole-
intenções, isolam os trabalhos artísti-
tivos no Recife e em Olinda: Atelier
cos e deixam muitas lacunas sobre o
Coletivo da SAMR (década de 1950);
funcionamento do circuito das artes no
Oficina 154, Atelier + 10 (1960); Oficina
Recife. A partir deste enquadramento,
Guainases de Gravura (1970); Caraspa-
acredito que o pensamento sociológico
ranambuco, Quarta Zona de Arte (1980
que entende a “Arte como Sociedade”
e 1990); Molusco Lama, Camelo, Carga e
(Heinich, 2008, p.28) favorece a supe-
Descarga (1990), são alguns exemplos.
ração de limites entre a História Cultu-
Quanto às intenções, arrisco, igual-
ral e a Sociologia da Arte. Esta tendên-
mente, apenas listar algumas: discutir
cia não é uma novidade e, obviamente,
a estética modernista e a função social
não defendo que estas disciplinas
do artista; buscar meios de formação
possam encerrar a compreensão sobre
de artistas e de movimentação do
o circuito das artes no Recife. Mas que
mercado; discutir os suportes e as
produzam, enfim, um entendimento
linguagens da arte contemporânea;
sobre as suas articulações.
experimentar novas maneiras de fazer, expor e fruir arte; novos conteúdos e
A presença de coletivos, geralmente,
novas formas de diálogo.
pode ser vista como resposta a uma apatia ou inércia de experiências e
Diante disso, tornou-se comum pensar
questionamentos, revelando as ações
em uma tradição recifense na forma-
que precisam vir à tona dentro ou fora
ção de coletivos de arte. Como pesqui-
dos “regulamentos” da legitimação.
sadora — procurando ter acesso aos
Portanto, percebe-se, também,
24
(((revispa)))
a necessidade de o sujeito se reconhe-
Em conversa recente, o artista Flávio
cer dentro desse meio social e de cons-
Emanuel3 expôs a importância, naquele
truir conceitos. Neste sentido, os que
momento, do ato de apresentar publi-
se interessavam pela movimentação
camente escolhas e definições estéticas
artística no Recife, nos anos 1990, vi-
que resultaram em diferentes propos-
venciaram debates e o confronto entre
tas para as mais diversas expressões
os mais variados discursos. Concep-
artísticas. Desde então, o Carga e Des-
ções sobre a estética e o mercado da
carga se transformou, para mim, em
música, das artes visuais, do cinema
um ponto de partida e não de chegada,
etc. diante de novas instituições locais
tendo sua origem ligada às relações
e modos de expansão.
construídas entre os agentes do meio de cultura local e não apenas na união
Feito este recorte, o Carga e Descarga,
de quatro artistas. Seria impossível
entre outros coletivos, recepcionou
trilhar todos os seus caminhos em um
vários artistas em seus projetos que
texto tão curto. Sendo este último uma
exploraram o uso da tecnologia e do
recusa à intenção de descrever memó-
espaço público. Como no caso do vídeo
rias e trajetórias, pode-se dizer que é
Sacrossantos Eróticos, que fez parte de
um convite à abordagem dos coletivos
uma exposição de mesmo nome, onde
a partir das ações políticas e questio-
em que erotismo encontra situações de
nadoras de seus integrantes acerca do
culto que envolvem religião, moral e,
sistema de arte.
até mesmo, o fazer artístico. Ou a mostra Temporal/PE que envolveu interven-
Dentre os vários artistas e intelectuais
ções nos muros e fachadas do Recife
que frequentaram os bares e os
Antigo e a realização de shows na rua.
debates situados, muitas vezes,
3. Entrevista cedida à autora em 30/07/2010. Flávio Emanuel destacou, também, a presença de artistas de outros coletivos nos projetos realizados pelo Carga e Descarga.
25
no Bairro do Recife, muitos iniciaram suas atuações a partir do reconhecimento de outros artistas locais e da recepção de seus trabalhos em salões universitários ou de caráter mais tradicional. A década anterior (1980) foi marcada, também, por trabalhos em áreas públicas, tendo a organização das Brigadas um grande destaque no momento de redemocratização política nacional. Em seguida, por exemplo, um coletivo como o Formiga Sabe que Roça Come extrapolou o uso dos museus e galerias ocupando prédios históricos, como o Chanteclair, a praia de Boa Viagem ou os jardins do Museu do Estado e compondo “uma série de exposições itinerantes”4. Em vários sentidos, o contato com instituições de arte ainda era pouco frequente e artistas como Paulo Bruscky e Daniel Santiago já haviam virado referências quando o assunto era experimentar e atuar de forma independente. 4. Ver o catálogo Quadragésimo quinto e quadragésimo sexto Salões de Artes Plásticas de Pernambuco; p. 169.
ACERVO CARGA E DESCARGA
(((2010)))
Carga & Descarga | Intervenções no Bairro do Recife
26
(((revispa)))
Anos depois, a estruturação do Museu
tecnológicas e de mercado que se
de Arte Moderna Aloísio Magalhães
tornaram significativas no universo
(MAMAM), em 1997, foi entendida
artístico-cultural recifense da segunda
como uma atualização das práticas no
metade dos anos 1990 em diante.
terreno das artes visuais na cidade. A partir deste modelo, gestores
Após estas considerações (em parcas
municipais e estaduais, invariavel-
ou insuficientes palavras), acredito que
mente, passaram a viabilizar(?), ou
nos resta investigar se essas mudanças
a determinar, os rumos conceituais
foram pautadas na observação dos
e de legitimação no circuito de arte
modos e práticas próprios do nosso
local. Não pretendo, aqui, aprofundar
meio de arte, correspondendo a
o debate sobre a recepção das novas
problemáticas específicas. Assim como
formas de se profissionalizar e
considero importante pesquisar se a
recorrer às instituições. No entanto,
nossa tradição em formar coletivos
parece-me evidente a perda de um
revela algum tipo de lucidez nas
comportamento que resultava em inte-
propostas e ações dos que estão
rações que não obedeciam a editais,
inseridos no sistema de arte local.
contrapartidas sociais e calendários culturais. Meu esforço, neste caso, é o de chamar atenção para uma dinâmica própria de nosso circuito artístico
REFERÊNCIAS
que, mesmo considerada atrasada, nos
Catálogo Quadragésimo quinto e quadragésimo sexto salões de artes plásticas de Pernambuco. Governo do Estado de Pernambuco, sem data.
permitia discutir o espaço urbano, a ausência do objeto de arte, a mistura de linguagens e outros temas desde
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. Lisboa: Editorial Presença, 1996.
os anos 1970. Porém, tal ponto de vista
HEINICH, Nathalie. A Sociologia da Arte. Bauru: Edusc, 2008.
não propõe que se fechem os olhos diante das muitas transformações
ENTREVISTADO Flávio Emanuel.
ACERVO CARGA E DESCARGA
Carga & Descarga | Intervenções no Bairro do Recife
FOTOS DENISON LIMA
AINDA SEM TÍTULO Clarissa Campello | 2009
30
(((revispa)))
Brigadas Artísticas a política na arte gerando a arte na política Por Raíza Cavalcanti
Quando a política entra na arte, muita
comunista. Este é o momento em que a
coisa pode acontecer. A arte pode ser
arte sacrifica-se em prol do político, da
capturada por um objetivo educativo
mensagem revolucionária, do apoio a
e politizador; pode tornar-se veículo
um projeto social amplo que liberte os
para a propagação de uma ideologia
sujeitos capturados pelo capitalismo,
política; pode ser um meio para
alienados de sua condição de povo, de
artistas engajarem-se em um projeto
classe e de cidadão.
humanista universal de libertação do sujeito. A arte pode, também, engajar-
E o Recife viveu de maneira intensa
se na própria arte e buscar, através da
esse momento de captura da arte pela
pesquisa por diferentes linguagens e
política. Desde, pelo menos, meados
meios, tensionar o artístico e levá-lo
dos anos 1950, com o nascimento
ao político, ao questionamento do
do Atelier Coletivo, que fazer política
estatuto da arte, do artista e da
através da arte tornou-se uma das
sociedade. Porém, neste segundo
principais características do discurso
caso, creio que se trate mais de uma
artístico da cidade. E desde, pelo
questão de perceber o político na arte,
menos, meados de 1950, que a tradição
ou seja, a possibilidade crítica dentro
de reunir-se em coletivos para
do artístico.
produzir, pensar e debater o circuito de arte local também se tornou uma
Para falar da entrada da política na
marca da produção artística recifense.
arte, é preciso remeter à questão do
Esses dois elementos reunidos: a união
engajamento político-ideológico de
em coletivos e a produção artística
artistas e obras; da enunciação direta
voltada para a política, estão na origem
e clara de objetivos sociais, demo-
de um dos movimentos mais impor-
cratizantes e educativos; do explícito
tantes da história da arte da cidade: as
alinhamento a uma ideologia política
Brigadas Artísticas.
de esquerda — marxista, socialista ou
31
(((2010)))
Raíza Cavalcanti é jornalista e cientista social. Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, onde desenvolve pesquisa sobre o SPA das Artes. Integrante do grupo de pesquisa independente P.I.A. – Pesquisas e Interações Artísticas. Vive e trabalha no Recife.
Nas Brigadas, mais uma vez, a política
Eu sempre fui comunista, ativista e participei de
entra na arte. Mas agora, ao invés de
vários grupos, tendências estudantis e essas coisas
defender um projeto político mais
de política. Então sempre fiz política. Quando eu
amplo de educação e valorização
tinha dezoito pra vinte anos a gente ainda estava na
do cidadão nordestino, os artistas
ditadura, né? (sic) Antes da abertura. E ainda era
engajavam-se nas recém-liberadas
proibido partidos políticos, partidos de esquerda,
campanhas políticas. O engajamento,
não existia ainda o PT. Tudo isso ainda tava lá, laten-
agora, acontecia no contexto de uma
te. E para mim estava muito ligado: as questões da
ditadura recém-acabada; partia de uma
estética com as questões éticas, com a sua postu-
necessidade de situar-se numa posição
ra política. Na verdade, naquela época as coisas
(a favor ou contra o regime militar), de
formavam blocos: você era de esquerda, então você
afirmar-se como de esquerda — a favor
era liberal nas questões morais, você fumava maco-
da liberdade e da democracia — em
nha... era um monte de coisas que estavam juntas,
oposição a quem era de direita. O
tá entendendo? O cara era de direita, então ele era
artista se via inserido em um ambiente
moralista, ele era contra o aborto, ele detestava
que exigia dele uma posição, uma
ouvir falar em rock’n roll. Existia na época ainda a
resposta, uma definição:
guerra fria, né? (sic) Existia a crença no socialismo versus capitalismo. A coisa, sob o ponto de vista ideológico, ainda tinha esse conflito, ainda existia o muro de Berlim (...). Então se percebia esse confronto: quem era de esquerda era socialista, quem era de direita era capitalista. Essa era a dicotomia. Então a política estava bem presente. Mesmo que a pessoa não militasse politicamente, normalmente, a pessoa tinha que arrumar um lado para estar. Tinha que se posicionar de um lado ou do outro. Ou você estava contra o regime militar ou você estava a favor. (Maurício Castro, entrevista concedida em maio de 2010)
FOTOS HUMBERTO ARAÚJO
Brigada Henfil | mural coletivo
E para mostrar este posicionamen-
oposição. Então, as Brigadas Artísticas
to, era preciso engajar-se. O caráter
surgem como uma forma de burlar
combativo e conteudístico da arte dos
a lei, de fazer campanha através dos
anos anteriores, voltou-se à difusão
murais pintados nas paredes da cidade
de ideais ligados aos partidos políticos
do Recife:
e tornou-se um veículo de campanha para os candidatos da época. Este novo
(…) as Brigadas surgiram como uma alternativa à
engajamento situava-se em torno do
Lei Falcão. A Lei Falcão era uma lei que proibia
desejo de renovação política na cidade;
a propaganda política na televisão. A propagan-
de apoiar os candidatos que foram
da política em geral. Aí, na campanha, a pessoa
banidos e exilados durante o regime
dava um texto, eles editavam só o que queriam do
militar (como Miguel Arraes, por
texto e botavam lá. Aí não tinha a possibilidade de
exemplo); de trazer de volta à cidade
propaganda. Então as pessoas começaram a ceder.
(e também ao país) a democracia.
A primeira que existiu foi a Brigada Portinari (...). No início era Luciano Pinheiro, Cavani, Cleriston e
Num cenário de abertura democrática
pintavam pra Roberto Freire. Aí as pessoas doavam
recém-instituída, ainda havia a proibi-
os muros da casa e eles iam lá e faziam um painel
ção da propaganda política. O governo
políti... ops, um painel artístico. Era como se fosse
militar exercia rígido controle sobre o
uma brecha, né? (sic) Aí o negócio cresceu e todo
material de divulgação dos candidatos,
mundo viu que aquilo ali, além de ser uma coisa
editando seus depoimentos na TV, por
impressionante — de surgir uma pintura enorme
exemplo. Ou seja, a Lei Falcão (criada
no meio da rua — também era como se fosse uma
em 1976, durante o regime militar por
participação, uma adesão política dos artistas.
Armando Falcão, então ministro da
(Maurício Castro, entrevista concedida em maio de 2010)
Justiça) ainda estava em vigor, censurando as campanhas dos políticos, especialmente daqueles mais ligados à
Os artistas, então, passaram a dividir-
Eu participei, lá pra 1982, comecei par-
se entre várias Brigadas, sendo as mais
ticipando de uma Brigada que pintava
conhecidas a Henfil e a Portinari. Estas
para Gregório Bezerra e Mano Teodósio.
duas foram as maiores e as que mais
Era uma Brigada que eu participa-
reuniram artistas em torno delas. A
va, (sic) acho que Ronaldo Câmara parti-
Portinari é a mais antiga, criada para
cipava também e George Barbosa e mais
fazer a campanha do retorno de Arraes
umas pessoas. Depois disso aí já tem o
à política. E a Henfil é a última, surgida
PT. Quer dizer, o PT já existia desde essa
em torno da campanha de Lula para
época, mas eu não tinha participação.
presidente. Mas, em meio a essas
(Maurício Castro, entrevista concedida em maio de 2010)
duas, existiu, pelo menos, mais uma brigada menor, conhecida como Gregó-
O engajamento nas Brigadas iniciou a
rio Bezerra:
carreira de muitos artistas e, também, resultou na participação de muitos
Tinha uma Brigada também Gregório Bezerra, que
destes na gestão política, coordenando
era uma coisinha menor, praticamente era meio
e criando projetos para a área da cultu-
que a Henfil. Mas da Gregório Bezerra eu também
ra na cidade. A necessidade de engaja-
fiz parte de algumas coisas assim. (sic) Foi antes
mento político ampliou-se e passou a
um pouquinho, aí depois a Henfil também surgiu,
uma participação efetiva, pensando em
aí ficaram meio as duas, aí depois ficou mais a
projetos e soluções para a área cultural
Brigada Henfil mesmo. (sic) Tive uma participação
do Recife. Novamente, os elementos
assim grande mesmo, todas as vezes que o pessoal
união em torno de coletivos e engaja-
se engajou, eu estando junto.
mento político aparecem na história
(Fernando Augusto, entrevista concedida em junho de 2010)
da arte recifense, desta vez para gerar o Coletivo 13 — grupo formado para apoiar a candidatura de João Paulo para prefeito. Os participantes desse coleti-
FOTOS HUMBERTO ARAÚJO
Brigada Henfil | mural coletivo
vo iriam compor, posteriormente, par-
(…) eu venho de toda uma trajetória de movimen-
te da equipe responsável pela adminis-
to estudantil, eu participei de D.A’s. Participei da
tração cultural da prefeitura. São eles
Brigada Henfil, que era uma brigada formada por
os criadores do SPA das Artes do Recife,
pessoas mais ligadas ao PT. Participei do Coletivo
projeto que, antes de um evento anual,
13 (formado) na campanha de João Paulo. Eu venho
é uma política para as artes visuais da
tendo uma aproximação e uma participação com
cidade. Foram os artistas engajados,
a política muito grande que culminou com essa
reunidos coletivamente, que pensaram,
gestão municipal em que eu tive uma participação
geraram e fizeram existir o SPA:
muito forte, não só dentro do SPA, mas também dentro do Conselho Municipal de Cultura que eu participei durante anos. (sic) (…) Naquele momento em que foi criado o SPA, eu diria que era um momento muito rico, porque existia um número de artistas pensantes, a fim de fazer alguma coisa e com condições organizativas. Eu acho que isso vem muito da experiência de campanha, de DCE, de D.A’s, de movimento estudantil, toda essa coisa porque a gente foi de uma geração de luta mesmo estudantil, de participação política mesmo. (Zé Paulo, entrevista concedida em junho de 2010)
Fui da Brigada Portinari. A Brigada Portinari
O engajamento, o político, o coletivo:
aconteceu na década de 1980, no retorno de Arraes,
elementos que persistem na história
né? Foi criado um elo entre os artistas e a política
artística do Recife há, pelo menos, ses-
e funcionou muito bem isso. Aí os artistas come-
senta anos geraram o evento de arte
çaram a, de um certo modo, intervir dentro da
mais importante da cidade da última
política cultural que existia, de uma forma muito
década. A política na arte acabou pos-
diretamente, né? E coincidiu na época de João Pau-
sibilitando a arte na política, na medi-
lo, quando ele se candidatou à prefeitura, que nin-
da em que levou artistas a se inserirem
guém achava que ele pudesse chegar. Mas a gente
na máquina pública municipal para
tinha um trabalho de base muito bem feito e (..), na
fomentar e ampliar o circuito de artes
época, o movimento artístico aqui tava muito efer-
visuais local. Os coletivos surgidos com
vescente. A gente já vinha numa série de momentos
o intuito de, entre outras coisas, ser
em que os artistas se reuniam e criavam atelieres
uma solução para a falta de institui-
coletivos. Então, no início, as reuniões políticas pra
ções que promovessem e distribuíssem
preparação da campanha eram feitas no atelier co-
a produção local, geraram a articulação
letivo do Submarino. Por isso que criou o Coletivo
política dos artistas, ainda em torno do
13, que era um nome bastante sugestivo que era a
ideal político de esquerda. Os artistas
questão do coletivo e do 13 que era do PT. (sic)
articulados penetraram a administra-
(Rinaldo, entrevista concedida em julho de 2010)
ção pública e passaram a ser gestores e criadores do circuito artístico local.
Tive uma participação assim grande mesmo, todas
Sendo assim, eis que acabamos por
as vezes que o pessoal se engajou, eu estando jun-
desvendar a genealogia do SPA das Ar-
to. Aí depois essa coisa do Coletivo 13 tinha muito
tes: ele é filho da articulação, da união
a ver com essa coisa da Brigada Henfil.
coletiva, do engajamento, da política
(Fernando Augusto, entrevista concedida em junho de 2010)
na arte e da arte na política.
FOTOS窶アCERVO PAULO BRUSCKY
MINOPAULO Paulo Bruscky | 1978
38
(((revispa)))
Lugares de invenção, lugares de resistência Por Fabiana de Moraes
A primeira imagem que me vem ao
ção e de participação em ações coleti-
espírito, quando paro para pensar na
vas e em redes de colaboração.
minha experiência francesa, é a de uma festa. Festa no sentido de cele-
É interessante notar como ações
bração em convívio; festa como lugar
artísticas, coletivas ou individuais,
de convívio, de mistura e de troca
praticadas por essa arte dita ‘contex-
discursivas, envolvendo matérias,
tual’ (Ardenne) ou ‘relacional’ (Bour-
corpos, cenários, sonoridades, escritas,
riaud) são determinadas por condições
escritas e mais escritas.
políticas e, sobretudo, econômicas que regem os circuitos. A partir do que
Falo de festa como ‘santificação’,
tenho vivido na França, posso apontar
como ‘modalidade particular da ação
alguns aspectos que considero globais,
e da vida’ (Agamben), como instante
que também concernem aos modos
de pontuação de fatos, de feitos, de
operatórios de amigos artistas que
projetos. Pontuação que não significa
trabalham no Brasil.
pausa, mas movimento, troca, dinâmica, conflito e confronto de ideias.
Em definitivo, vivemos o final da era
E, finalmente, emergem desse estado
da autonomia da arte, essa herança da
de coisas conclusões ou simplesmente
modernidade; é condição para a arte,
aberturas para o devir, para o que se
hoje, fazer participar, reunir, confron-
está por realizar. Essa ‘festa’ que eu
tar, partilhar aquilo que outrora ‘não
até associo ao evento carnavalesco,
era arte’; os novos espaços interligam
ritual e, sobretudo, alegórico, pode ser
propostas e se relacionam de outra
presenciada em acontecimentos nos
forma com o público. Além disso, o
quais a arte é vetor para experiências
controle institucional é abolido em prol
de partilha. E aqui chego ao ponto de
de ações de proximidade, de modos
partida para um balanço do que foram
relacionais em que o artista é o centro
esses anos — quase dez — de observa-
do processo, é propositor diretamente
39
(((2010)))
Fabiana de Moraes é jornalista, crítica de arte e curadora independente. Há cerca de dez anos, vive e trabalha entre Paris e Rio de Janeiro.
ligado à sociedade. A dimensão coleti-
excludente, apesar de alguns editais
va é evidente.
lançados aqui e ali visando à promoção da arte jovem. Lembro que percorri al-
O valor dos trabalhos é redimensiona-
guns desses squats, participei das mais
do e mensurado a partir de outros cri-
loucas celebrações, em que a arte era o
térios. A obra é fruto de uma dinâmica
centro de interesse geral, com todas as
de cruzamentos, trocas entre artistas,
suas linguagens. Na época, as amea-
residências, laboratórios. Vive-se uma
ças de expulsão eram tanto motivo de
nova economia da arte.
receio quanto motor para a elaboração dos projetos de ação junto à sociedade,
***
às instituições políticas, à mídia etc.
Nos anos 90, em Paris, nós vivemos
O engajamento desses artistas tinha
intensamente a experiência dos squats,
por objetivo primeiro exigir das instân-
aqueles prédios abandonados — muitas
cias locais e da sociedade, de maneira
vezes condenados à demolição — que
geral, visibilidade e reconhecimento
eram tomados por associações e cole-
do trabalho que ali se realizava. Isto
tivos de artistas que ali se instalavam.
porque a natureza do squat não era,
Os squats serviam, ao mesmo tempo,
num primeiro momento, artística. Ela
como habitação para os artistas, lugar
era sintoma de crise social, era solução
para a produção e para exposição dos
para os sem teto — na maioria dos
trabalhos. Eles também eram o ponto
casos, imigrantes — que ocupavam
de partida de artistas jovens em busca
edifícios abandonados ou condenados
de espaço, de escuta, de troca. Afinal,
à demolição. O squat era, então, um
o circuito de arte parisiense já funcio-
lugar de resistência por excelência.
nava como muralha intransponível e os museus e galerias sustentados pelo
O squat da Grange aux belles ficava
Estado atuavam de maneira seletiva e
perto do Canal Saint Martin, num
40
(((revispa)))
bairro popular do leste de Paris. Antes
ou improdutivos são incorporados às
de ser fechado e definitivamente
políticas culturais — faca de dois gu-
interditado pela polícia, em 2000,
mes. É que a única garantia de pereni-
o espaço vivia graças às atividades
dade, de estabilidade, é a aquisição de
desenvolvidas por um coletivo de
uma ‘legitimidade política’, ao mesmo
artistas. As festas eram maneira de
tempo em que a instituição ocupa o
atrair a vizinhança para experiências
papel de contra-modelo, esclerosada,
diversas em torno da arte. Acolhimen-
inadequada.
to era a palavra guia para a política ali praticada, pois os artistas viviam com
A apelação squat foi quase que total-
suas famílias e instauravam relações
mente substituída por friche, palavra
com a vizinhança que serviam como
francesa que faz referência a imensos
alternativa ao clima por vezes inóspito
espaços desativados, galpões, usi-
da rotina de uma grande cidade. Após
nas, depósitos, que são ocupados por
anos de reivindicação por uma legali-
associações de artistas. A friche mais
zação da ocupação, o squat foi fechado,
conhecida é La Belle de Mai (A Bela
as janelas bloqueadas com concreto, as
de Maio) e fica em Marseille. Em seu
entradas vedadas.
projeto, consta que a friche é guiada pelo princípio da escrita. Ou melhor,
Assim, os anos 2000 exigiriam outras
de escritas múltiplas que se formam ao
estratégias: a resistência pelo con-
longo dos projetos, das intuições, das
fronto com as decisões governamen-
convicções…
tais teria de ser revista. Hoje, a festa ainda existe, os lugares ainda existem
Esses novos territórios, configurações,
e resistem graças a subvenções do
redes e conexões essencialmente urba-
Estado francês. Outrora marginaliza-
nos têm mobilizado um número impor-
dos, ameaçados, hoje, os movimentos
tante de artistas, críticos e produtores
de ocupação de espaços abandonados
culturais. Eles comprovam a urgência
41
(((2010)))
daniela pinheiro
das práticas experimentais que não mais se limitam ao artístico, lançando mão de elementos pertencentes aos âmbitos social, econômico, urbano, político durante os processos. Partidários de ações críticas em relação a aspectos sociais preocupantes, esses lugares de invenção e de organização coletiva logo mostram que não cabem em classificações, critérios e outras limitações inerentes aos aparatos institucionais. Grande paradoxo que, ao mesmo tempo, motiva teóricos e agentes culturais a considerarem tais manifestações como processos determinantes do paradigma artístico contemporâneo.
SPATIO Fernado Peres | 2009
FOTOS DANIELA PINHEIRO
SPATIO Fernado Peres | 2009
44
(((revispa)))
Das experiências estéticas Por Ana Luisa Lima
É sempre necessário um bom tempo
nome daquela pátria mãe gentil (para
de leitura e (releituras) da história tal
a economia da época, nem sempre foi
qual nos é contada para começarmos a
uma questão de cor).
perceber as entrelinhas: os contextos, os pré-textos, os lugares da fala dos
Não se trata de negar, absolutamente,
que nos contam sobre nosso passado.
que os atos de Pedro I e Isabel foram
Não raro, o que “ficou” para trás é
importantes para algumas mudanças
celebrado, mas apenas as porções que
necessárias naqueles momentos.
contingentemente interessam aqui no
Contudo, é ingenuidade pensar que
presente; o resto negamos. Ou fazemos
eles sozinhos foram precursores de
pouco caso.
quaisquer mudanças. É preciso acabar com os heróis. Tanto quanto os anti-
Celebramos Dom Pedro I e a indepen-
heróis. A ideia de heroísmo só torna
dência (que não veio) e nos furtamos
embaçada a possibilidade de enxergar
de enxergar tantos movimentos
a força das ações coletivas.
independentes que reclamavam autonomia do seu próprio país. Muitos
Arbitrariamente — como a cor do céu
sangraram, pereceram nesta luta
no Recife a despeito das estações do
antes do (mitológico) grito. Ou ficar a
ano: um dia é azul, outro, cinza —,
pátria livre ou morrer pelo Brasil. Ainda
celebra-se Oswald e a Antropofagia.
assim celebramos o Dom, mesmo
E a questão não passa por deixar de
sem a pátria efetivamente livre, e
celebrá-los, mas de lembrar que antes
me questiono se nosso Pedro alguma
do paulista (ou em momento simul-
vez esteve próximo de morrer pelo
tâneo), já havia outros modernismos,
Brasil. Fazemos festa para Isabel e
entre estes, o pernambucano que,
esquecemos os torturados líderes
provavelmente, foi influência para
junto aos seus irmãos negros e outros
aquele (e vice-versa) — assim aponta
abolicionistas; tantos mortos em
Paulo Herkenhoff.
45
(((2010)))
Ana Luisa Lima é pesquisadora e crítica de arte por anelo; diletante por vocação. Editora da revista de arte Tatuí desde 2006. Crítica de arte convidada do espaço expositivo Sala Recife (PE) desde 2009. Foi curadora do I Salão Universitário de Arte Contemporânea – UNICO (SESC-PE). É pesquisadora integrante do Grupo independente de pesquisa P.I.A. – Pesquisas e Interações Artísticas, hoje atuando em parceria com o MAMAM – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – Recife-PE. Editora da ReviSPA 2010.
Trago à tona esse panorama para
SPA. Se há uma crise, é pouco provável
que pensemos o SPA das Artes.
que seja do evento.
Nos últimos anos, só se fala de sua crise. Pergunto-me: do quê ao certo?
Não é preciso ir muito longe de
Na tentativa de me posicionar no
Pernambuco para perceber a sensação
presente, fui em busca do passado
de incômodo. Passaram-se quase dez
(ainda que recente, mas, para a
anos e já não há frescor. Muito pelo
maioria de nós, já tão distante porque
contrário, deve faltar muito pouco para
desmemoriados — destino?). E ao ler
que cheguemos ao completo colapso.
a história viva sendo contada ali do
As políticas públicas não se fazem
meu lado, dei-me conta de que o SPA
suficientes. A “geração” 2000, no
tem sido construído, desde o início,
entanto, acostumou-se a ver cada vez
por uma coletividade. Ora, não veio
mais forte a institucionalização da arte
de um a concepção do evento. Eram
(será que algum dia aprenderá a viver
muitos os grupos que atuavam naquele
sem editais?). A crise é geral e advém
momento-gênese, e não o faziam de
elementarmente da falta de vontade
forma pontual, estavam embalados
de posicionamento: no pensar e no
por uma vontade coletiva nacional
agir. Fala-se mal da instituição e do
de mudança na raiz daquela ordem
mercado, mas os querem desesperados
político-governamental.
e tolamente: quando fazem com que suas produções (artísticas e/ou
Mudou-se o governo, mas não a forma
teóricas) sejam apenas ativadas pelas
de pensar e fazer política, ainda assim,
demandas daqueles.
este contribuiu para que acontecessem ações importantes no âmbito da
Penso que resolveremos a crise (ou
cultura que possibilitaram certo
daremos um passo para) quando mini-
frescor no campo das artes. E dentre
mamente soubermos de qual arte esta-
tantos exemplos nacionais, temos o
mos falando. Aos poucos fui dando-me
46
(((revispa)))
conta de que, quando falamos em arte,
arte (acessíveis a todos) substanciais
não a compreendemos coletivamente
em nosso país.
nos mesmos termos. Contudo, uma maioria, de maneira pragmática, resol-
Ao invés disso, as forças e vontade de
veu (querer) entender arte dentro de
mudança logo se arrefecem quando po-
um sistema específico de legitimação
líticas públicas são, por vezes, leviana-
institucional-mercadológico.
mente, criadas para cumprir demandas muito específicas de escoamento de
Esse assunto tem urgência por ser
uma produção de arte também muito
debruçado em busca de uma discussão.
específica: jovem. Porque fácil de fazer
O pensamento capitalista reificante já
especulações de valor de mercado
está tão entranhado que, quando se
sobre. Daí se justificam os mapeamen-
fala em valor de uma obra, associa-se
tos feitos por instituições privadas
imediatamente ao valor de mercado.
e tantos outros eventos e formatos
Mas e o valor imaterial-simbólico? E
megalomaníacos de exposições (todos
o seu valor enquanto acontecimento?
estes com dinheiro público).
Penso que a obra de arte traz em si valores capazes de ativar outras econo-
Se formos pensar o SPA das Artes
mias (trocas) que não só a do capital.
nesses moldes, de fato, há uma crise.
O que vende hoje, ou não, não deveria
O orçamento do evento foi encurtado;
ser imediatamente um problema. A
nesse sentido, também o valor dispo-
proposição de arte que não tem lugar
nível para a disputa por um pedaço
para acontecer, que não está próxima
deste através do edital. Eu prefiro
e acessível, que não pode ser fruída,
pensar, contudo, arte e SPA das Artes
seria isto com o que deveríamos estar
sob outro foco.
mais preocupados. Pensar, por exemplo, política pública como algo que nos
Talvez devamos aproveitar que o
assegure a permanência de coleções de
termo “artes visuais” já não consegue
47
(((2010)))
abarcar a quantidade de linguagens,
Na experiência estética, enquanto
assuntos, ações, proposições hoje
experiência nua, faz-se um lugar de
entendidos como campo de atuação da
construção da subjetividade através
arte contemporânea, para mudá-lo e
da troca simbólica capaz de acionar
com isso também deixar para trás as
a (re)invenção do espaço, do tempo,
associações equivocadas em torno da
do uso vulgar das coisas e situações
arte e mercado. Híbridas, conectadas,
cotidianas. Um lugar político por
entrelaçadas, as linguagens redefinem
natureza, onde são possíveis as
parâmetros, reposicionam fronteiras.
construções simbólicas coletivas:
Por que não chamá-las apenas de
imaginário comum, não no sentido
experiências estéticas?
de igualdade, homogeneidade, mas de compartilhamento. Se pensarmos em
Despida dessa veste supérflua
experiência estética como aconteci-
(especulação de mercado), o que
mento — e penso mesmo que a obra de
fica da arte é a experiência estética
arte é acontecência, deixa-se acontecer
capaz de ativar não só construções
sempre a quem se dispõe ao encontro
de subjetividade, mas também
—, é possível entendê-la como algo que
economias (trocas) diversas que não
reverbera e extrapola a experiência do
só a do capital. A experiência estética
corpo de um indivíduo apenas.
pulsante desperta a experiência nua: porque de uma verdade só possível
É preciso pensar o SPA das Artes
encarnada — percepção, vivência,
para muito além de mero provedor
embora por vezes compartilhada,
de bolsas para produção de obras de
única daquela pessoa. Diferente
arte (e legitimador destas). Sonhado e
se fôssemos pensar a “experiência
concebido, desde o início, por grupos
pura” como se pudéssemos atribuir
que se posicionaram e buscaram
uma única verdade, um algo ligado à
transformações sócio-políticas
essência e distante do corpo.
através da coletividade, o evento
48
(((revispa)))
ainda consegue se resguardar como
pode sentar com amigos para algumas
um agenciador de experiências
cervejas —, não se deixe de celebrar os
estéticas e estésicas — porque também
outros tantos.
afetivas. Não à toa, construíram-se, a partir destas experiências, relações
Daqui a muitos anos, quando eufóricos
interpessoais diversas. Estas formaram
quiserem beber e se alimentar antro-
redes que deram conta da criação de
pofagicamente deste nosso momento,
outros eventos-irmãos como o Fora do
saibam que nos construímos, como
Eixo (DF) e o S.E.U. (RS).
pessoas e como história, de alegrias e feridas. Tomara que ao celebrar tal
A cada nova edição, coordenadores,
santo herói tenham em mente que até
produtores e demais colaboradores
este foi construído por Joãos, Márcios,
do SPA procuram (re)pensar seu
Beths, Fernandos, Josés, Maurícios,
formato em busca de torná-lo cada
Paulos, Rodrigos, Moacires, Julianas,
vez mais democrático: tanto na forma
Clarissas, Danieis, Jomards, Anas,
da distribuição de bolsas de incentivo
Raízas, Fernandos, Danielas, Irmas,
para produção de obras (experiências
Maíras, Camilas, Krishnas, Michelines,
estéticas), quanto no que diz respeito
Maicyras, Brunos, Lucianas, Lúcias,
à recepção destas pelo público, so-
Marias, Aslans, Izidórios, Alexes, Fer-
bretudo, local. Ainda assim, há os que
nandas, Fabianas, Manuelas, Marcelos,
(inertes) apenas reclamam da crise,
Renatos, Eduardos, Lauras, Ophélias,
como se não fossem co-responsáveis.
Bárbaras, Gils, Cristianos, Diogos, Ma-
Talvez estes sejam os criadores,
rianas, Jonathas, Flávios,
porque também esperam por eles, dos heróis. Mas, se for uma questão de tradição brasileira e resolverem escolher um para herói ou santo — sou a favor dos dias de ócio em que se
49
ACERVO PAULO BRUSCKY
(((2010)))
PERSONA (SELO DE ARTISTA) Paulo Bruscky | 1993
FOTOS DENISON LIMA
NA ABA DO MEU CHAPÉU Carolina Santos | 2009
52
(((revispa)))
O artista, na contra-mão de centenas Por que pensar Flávio de Carvalho na 29ª Bienal de São Paulo e no SPA? Por Ana Maria Maia
Era dia de Corpus Christi, em 1931. As
A ação, muito anterior a uma menta-
ruas do centro de São Paulo adensavam-
lidade que a pudesse assimilar ou a
se de fiéis para o cortejo em celebra-
uma academia artística que a pudes-
ção da doutrina católica. Dentre eles,
se reconhecer como performance ou
participando do evento que reunia
happening, como depois o fora tentati-
anualmente a sociedade paulistana
vamente categorizada, nasce do desejo
praticante, estava Flávio de Carvalho
de Flávio de Carvalho de, enquanto
(1899–1973). Chapéu na cabeça, adepto
artista, integrar-se à lógica de vida de
de um modernismo antropófago e
seu tempo para deflagrar, ao menos,
da hipótese de que as cidades latino-
o desrecalque e a reflexão coletivos.
americanas deveriam desnudar-se dos
Dar-se como uma espécie de reagente
arcaísmos morais e culturais herdados
que suscitaria, de dentro da regra e do
pela colonização europeia — dentre
status quo, transformações qualitativas
estes, a religião —, o engenheiro e
de matéria e pensamento: a estranheza,
artista propôs-se a caminhar no sentido
o desvio, o escape. A Experiência N.2
contrário ao da multidão ostentando a
debruça-se sobre aquilo que não cabe
inadequação de sua individualidade e
em seu tempo, sobre o fato de sempre
de suas provocações gestuais e verbais.
haver algo que não cabe e que por isso
“Eu sou apenas um […] “vocês são
intimida a uns e incita a outros. Sobre o
centenas“ 1, dizia Carvalho, naquela que
poder da arte de, sendo ela própria uma
viria a ser, além de um caso de ordem
oportunidade de subversão da realida-
e polícia, sua antológica Experiência
de (muito mais que a mimese direta),
N.2, relatada em livro e amplamente
criar novos acordos e revelar irredutí-
rechaçada pela imprensa e pela opinião
veis desacordos entre os homens.
pública da época. Por isso mesmo, pelo alcance que tem 1. CARVALHO, Flávio. Experiência N.2 — uma possível teoria e uma experiência. Rio de Janeiro: Ed. NAU, 2001. p. 25.
em comentar o lugar utópico da arte na sociedade em tão simples gesto, a obra
53
(((2010)))
Ana Maria Maia é mestranda em História da Arte pela Faculdade Santa Marcelina e assistente de curadoria da 29ª Bienal de São Paulo.
atravessa as décadas e mantém-se viva
das contra-narrativas que a arte pode
como proposição. É peça fundamental
oferecer como motriz de mudança.
numa 29ª Bienal de São Paulo que 2
aproxima arte e política acreditando
E por mudança não se deve entender
que ambas são capazes de interromper
a óbvia superação do passado e con-
os consensos e alargar, a partir da dese-
sequente adesão a modas presentes
ducação dos sentidos e do uso articula-
apenas. O salto histórico que a inclusão
do da linguagem, a dimensão crítica e
deste artista moderno, com um de seus
criativa da vida partilhada. Na exposi-
mais antigos trabalhos, promove numa
ção, intitulada Há sempre um copo de
mostra dedicada à arte contemporânea
mar para um homem navegar segundo
indica que sua atualidade não advém
o verso do poeta alagoano Jorge de
de parâmetros cronológicos. Advém,
Lima (1893–1953), a Experiência N.2 não
sim, de como pode, idos os anos, tocar
só exemplifica, junto com os demais
questões ainda em aberto, revelar os
artistas e obras participantes, o infinito
fios soltos de uma discussão acalorada
de atuação contido na própria arte, seu
no início do século XX sobre a vanguar-
copo de mar, sua dimensão sempre
da artística, a resistência à industria-
política. Ela também reafirma o valor
lização da própria cultura e o convívio
da transgressão, da negligência aos
intensificado nas metrópoles modernas.
dogmas e às disciplinas constituídas,
O remetimento brusco a este feixe pro-
2. A 29ª Bienal de São Paulo, sob a curadoria geral de Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias (Brasil) e com colaborações dos curadores convidados Chus Martinez (Espanha), Fernando Alvim (Angola), Rina Carvajal (Venezuela/EUA), Sarat Maharaj (África do Sul/Inglaterra) e Yuko Hasegawa (Japão).
da rebeldia de Flávio de Carvalho, como
3
blemático através da Experiência N.2 e
3. DE LIMA, Jorge. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 24
numa montagem cinematográfica que justapõe planos de uma trilha narrativa manufaturada pelo editor, valida a busca por análogos de hoje; faz o tempo de criação e o tempo de fruição, neste caso, transbordarem um pelo outro adentro.
54
(((revispa)))
OCEANO Bárbara Rodrigues | 2009
O fim das vanguardas artísticas históricas já foi anunciado há quase 30 anos; a economia da cultura sofisticouse numa íntima relação com o capital privado e com o corporativismo promocional; as cidades adoeceram em soluções fortificadas e verticais para o descontrole do convívio intensificado. O excessivo rigor dogmático e comportamental dissolveu-se ao ponto da total multiplicidade de crenças, gêneros e escolhas; da negação, por conseguinte, de qualquer baliza majoritária para o ser e para o estar no mundo. Somos livres, mas já distópicos. Estamos em trânsito global, comunicamo-nos instantaneamente, mas carecemos de projetos e alinhamentos que nos motivem a partilhá-los. Na era das minorias e de um pretenso elogio às individualidades, embora que pasteurizadas, perdemos de vista aquilo que, por oposição, também nos constitui. O artista, na corrente contrária aos centenas, como o fez Flávio de Carvalho nos instantes de embate com a
DANIELA PINHEIRO
procissão católica, funda a possibili-
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(((2010)))
dade de um ser e de um estar outros
alcance e efeitos incertos. O artista
no mundo. Em qualquer circunstância,
como um anacrônico, em caso de
esta é sua licença e simultaneamente
considerar-lhe nunca correspondente
sua responsabilidade: a de irromper as
à marcha de progresso e à otimização
condições do contexto espaço-temporal
dos meios de produção e vida de um
que vivencia a partir dele mesmo. De
tempo. Talvez melhor perceber-lhe
dentro da máquina social e da agenda
diacrônico, uma vez que estabelece,
pública, dissipar a energia contida na
em comunhão com os mecanismos do
rotina e gerar rearranjos estéticos e
próprio tempo, as digressões e fissu-
intelectuais, sejam eles demonstráveis
ras que abrem caminho para histórias
e apreensíveis ou não. Descondicionar
e concepções de peculiar e derivante
o ir e vir daqueles que não imagina-
cronologia. Sua marcha, por assim
riam mais nada caber na normalidade
dizer, é sua só.
do dia-a-dia. Infiltrar as ditas contranarrativas nas ruas, nos grêmios, na mídia e fóruns de debate da cidade. É por isso que, de 1931, a atuação de Flávio de Carvalho estabelece comunicação direta, embora virtual e provocada, com 2010, com a 29ª Bienal e com esta nona edição do SPA. Por bem definir o lugar e o papel do artista na sociedade; por mantê-lo à margem sendo sempre central e pertencente; reconhecer o valor de sua rebeldia, não como um programa social, mas como uma exemplaridade problemática, de
FOTOS DANIELA PINHEIRO
OCEANO Bรกrbara Rodrigues | 2009
58
(((revispa)))
Eu Prometo, Isto é Político uma escrita de arremessos Por Micheline Torres
Os lugares obrigam os homens a intercâmbios. Milton Santos
Em outubro de 2007 estive em Reci-
Ou Das coisas e pessoas nascem coisas,
fe, depois de alguns anos longe, para
das pessoas e coisas nascem relações.
apresentar CARNE no SPA das Artes. Este (re)encontro com Recife, sua cena
Ou Compartilhando, Roubando e Em-
e suas pessoas, mudou a mim e ao
prestando Simultaneamente.
trabalho de maneira afetiva, potente, definitiva.
Ou “Eu prometo, diante da bíblia e do tribunal, que tudo que será dito aqui
Este texto deambula por este ponto,
corresponde à verdade, nada mais que
de trás pra frente, pra trás, até chegar
a verdade, amém”.
aonde me encontro agora: EU PROMETO, ISTO É POLÍTICO, um novo trabalho
CARNE começou no fim de 2006, como
que, junto a CARNE, forma o projeto
um trabalho-resposta às questões do
Meu Corpo é Minha Política.
curso de performance ministrado por Daniela Mattos e Alexandre Sá, no Par-
As palavras aqui, pois, se arremessam
que Lage, Rio de Janeiro. Construí uma
no desejo de compartilhar, a partir de
ação de 10 minutos.
uma prática insistente, estratégias,
No início era somente eu e um frango.
instrumentos, dinâmicas de produzir,
Apresentei estes pequenos 10 minutos
transitar, conversar, afetar e ser afeta-
no Rio de Janeiro, em São Paulo e em
do no fazer artístico, entendendo esse
Recife.
fazer artístico como uma prática que
Nestes lugares eu era “uma pessoa da
vaza suas bordas, que se arroja, pra
dança contemporânea”.
frente, pra trás, em rotas improváveis. Depois de Recife e das duas intensas O projeto como um todo trata disto:
semanas no SPA das Artes, conhecen-
corpo e política, ou, Da arqueologia de
do o trabalho e convivendo com os
estar com pessoas e lugares.
artistas Rodrigo Braga, Juliana Notari,
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(((2010)))
Micheline Torres é bailarina, coreógrafa e performer. Formada em balé clássico e dança contemporânea. Estudou Artes Cênicas na UNI-RIO e Filosofia na UFRJ. Trabalhou por 12 anos como bailarina e assistente da Lia Rodrigues Companhia de Danças. Desde 2000, desenvolve trabalhos próprios situados entre a dança contemporânea, a performance e as artes visuais. Atualmente desenvolve o segundo trabalho do projeto Meu Corpo é Minha Política, contemplado com o prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança de 2009. O primeiro trabalho deste projeto, chamado CARNE, foi apresentado no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Vitória, Salvador, Brasília, França, Portugal, Noruega, Holanda, México, Argentina e Cuba. Integrante do coletivo internacional Sweet and Tender Collaborations (www.sweetandtender.org).
CARNE, visto por Nicolas Boudier
a crítica Clarissa Diniz e a intensa cena artística do Recife, o trabalho cresceu e eu me perguntei: quem manipula quem? Quem come quem? Que imagens podem deslizar entre sexualidade, canibalismo, maternidade e ícones femininos? Voltei ao Rio, olhei para o meu corpo, peguei nas mãos os garrotes e mergulhei mais na investigação. Trabalhei como uma cirurgiã-coreógrafa fazendo performance. Terminei o CARNE e levei-o para Vitória, Salvador, Brasília, Paris, Porto, Oslo, Holanda, México, Argentina e Cuba. Nos três primeiros lugares eu era das artes visuais, nos últimos, uma bailarina contemporânea. Segui pelos caminhos que o trabalho apontava e por outros que apareciam pelo caminho e que eram abertos a facão de cortar cana-de-açúcar. Depois me perguntei se era dança contemporânea, se era performance ou se era... um trabalho.
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(((revispa)))
CARNE, visto por Manuel Vason
Acho que é um trabalho, não importa a categoria. Ou melhor, importa sim, para alargar e friccionar os espaços, e outras coisas e discussões caberem. Mas, espere, para quem não conhece o trabalho, de que serve esse texto? Uma conversa o que é, para que serve? Comecei fazendo essa pergunta, pois queria alguns comparsas de criação. Mas ao mesmo tempo trabalhar sozinha me era essencial. Estava sozinha e no meio de uma residencia artística na França, uma residência para trabalhar o CARNE. Trabalhei, me embrenhei, li coisas, escrevi, construí ações... Mas percebi que aquilo não cabia mais no CARNE, que eu já estava construindo outro trabalho sem me dar conta.
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(((2010)))
Ok, cortei o cordão umbilical, o mais forte, e deixei outros fios dependurados. E comecei EU PROMETO, ISTO É POLÍTICO. Isso já eram meados de 2008. Tive a possibilidade de trabalhar em outra residência artística, esta em Portugal. Estaria lá com uma artista norueguesa, mas eu precisava propor um trabalho para aquele 1 mês de residência. Não tive dúvidas, cerzi alguns fios que eu já tinha construído, estruturei numa proposta de investigação e lá fui eu com Mia Haugland Habib, norueguesa de família israelense, trabalhar sobre EU PROMETO,ISTO É POLÍTICO, em Portugal. Programas de residência e sua natureza de deslocamento propiciam outros traçados que nos fazem rever as dinâmicas de um processo artístico e/ou um produto artístico? O processo foi deveras interessante e fiquei bastante afogueada com o resulCARNE, visto por Sille Dons Heltoft
tado. Mas eu moro no Brasil, ela mora na Noruega, sem dinheiro, sem suporte político-econômico-cultural que me
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(((revispa)))
abrigasse nesse começo de pesquisa,
O que significa dizer que estamos
como fazer?
transformando práticas de performance em produção de outros
Fiz sozinha, segui a pesquisa sozinha,
espaços de criação e troca?
da maneira que pudesse e senti que o trabalho todo seria este e desta manei-
Mas o lugar onde o processo da pesqui-
ra: sozinha-acompanhada. E entendi
sa mais teve seu chão, embora seja
isso como uma estratégia, um instru-
um pouco desequilibrado fazer essa
mento de experimentar colaboração,
comparação entre os lugares, com suas
entorno e encontro.
intrínsecas diferenças, porém equipotentes importâncias no labor, embora
Quais são as estratégias para se
isto, o lugar que cimentou e, ao mesmo
maquinar experimentações?
tempo, me fez duvidar de muitas convicções que apurei no caminho, o lugar
A pesquisa se seguiu em lugares e con-
foi o México, por 1 mês que vivi lá.
textos bem diversos, onde eu pudesse trabalhar.
No México não apresentei nada do EU PROMETO, ISTO É POLÍTICO. Não de-
Não, não me acho super heroica por
senvolvi a pesquisa nem sozinha nem
construir isso ou deveras brava e ousa-
acompanhada.
da. Vejo muitos e abundantes artistas ao lado, mais próximos ou mais distan-
No México apresentei o CARNE em
tes, que trabalham e engendram traba-
duas cidades, num contexto para es-
lhos em situações as mais diversas.
pecialistas e “formadores de opinião” e em outro para “leigos afoitos por co-
Da adversidade vivemos. Encontros,
nhecer outras coisas” e que me deram
tensões, pressões, restrições, pergun-
um dos acolhimentos mais generosos
tas, atritos.
e abrasados que já recebi.
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(((2010)))
No México coordenei uma mesa sobre
A razão dessa índole Robin Hood da
gênero e performance e outra mesa
produção de pensamento é abrir espaço
sobre artivismo.
para a visibilidade de quem vive abaixo
No México andei muito, muito, nas
mentos e outros pensadores, pois mui-
ruas e conversei com as pessoas e
tos desse brilhantes pensadores dos paí-
entrei onde eu conseguisse.
ses supra citados já passam dos 50 anos
da linha da miséria de outros pensa-
de serviços prestados ao “surgimento de No México eu entendi, experienciando
outros possíveis” e ainda é difícil ouvi-
e concordando, a importância de des-
los, enquanto o abecedário do Deleuze
centralizar e olhar para os lados.
fala alto e ainda está na letra R.
E transitar mais e mais pela América. De Redistribuição. E se interessar, ler e falar mais sobre pensadores do Brasil, Eslovênia, Ar-
Nada sobre nacionalismos e/ou reserva
gentina, México, Costa Rica, Colômbia,
de mercado epistemológico.
Índia, Itália, Equador, Moçambique, Venezuela, Hungria, Portugal, Angola,
Nada sobre Deleuze e o fato de ele
Sérvia, Guatemala, China, Cabo Verde,
ser o mais citado em praticamente
Montenegro, Croácia, Uruguai, Rússia,
todas as teses, monografias, ensaios,
Polônia, Nigéria, Iugoslávia, Paraguai,
resenhas, orelhas de livros, matérias
África do Sul, Espanha, Egito, Congo...
de jornal, artigos de filosofia, arte, so-
e outras localidades.
ciologia, agricultura, ciência, literatura, além de alta gastronomia francesa.
O resto do mundo: local onde vivo e trabalho.
Nada disso em particular, tudo isso ao mesmo tempo.
64
(((revispa)))
Ah! E o México foi transformador (de
Depois do México, teve São Paulo,
voltagem) não por “olha como eles
Noruega, Cuba e Rio de Janeiro. Estive
fazem as coisas com pouco dinheiro!”,
com artistas diferentes e experimen-
ou por “olha que exótico este lugar!”.
tamos maneiras de construir juntos,
Mas pela experiência de pensamento e
apontar diferenças e funcionar sobre
produção em um encontro auto-gerido,
distintas localidades, nacionalidades e
construído por cada participante a par-
condições materiais. Durante o proces-
tir de suas próprias ideias e projetos.
so artístico, estiveram inevitavelmente
E por exercitar como nossas estraté-
em jogo os assuntos de colaboração,
gias, escolhas e comprometimentos
continuidade e as condições econômi-
artísticos/éticos têm repercussões em
cas do entorno.
nossas criações, em nosso entorno. Tecemos como esses pontos encostamAs diferenças foram se endemoniando
se aos interesses de cada um de nós e
a partir daquele país.
chegamos a um lugar diferente a cada vez. Ou melhor, apontamos caminhos
Ambular, andejar, deambular, discor-
juntos, mas cada um chegou a seu pró-
rer, errar, passear, perambular, per-
prio lugar, carregando e sendo carrega-
correr, pervagar, tumultuar, vaguear.
do pelos outros. E a linha do trabalho
Olhar os lugares e as pessoas.
permaneceu sendo esticada em minhas
Tornar este trajeto politizado:
mãos, transitando entre pessoas e
passível de discussão, passível de
lugares, carregando e sendo carregada
escolha, passível de crítica.
pelos rastros dos encontros.
Ok, seguindo (com alguma cronolo-
Tivemos um compromisso em comum:
gia?), já que desengatilhei na fala de
compartilhar, roubar e emprestar
uma experiência (não só) pessoal, para
simultaneamente.
falar de construções outras.
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(((2010)))
Colaboração e o entorno econômico,
“Um arremesso começa sempre antes e
vontades e diferenças, como pros-
só finda depois, como se cada arremes-
seguir? Perguntas constantes para
so comportasse dois sentidos.
respostas incompletas e móveis.
Um que segue e não sabemos nunca se volta e outro que já segue voltando,
Trabalhei com (queridos) artistas-cola-
uma dobra do sensível.
boradores. Nada do que pesquisei com
O futuro desse gesto é seu eterno re-
eles, em sua expressão formal, pode
torno, sua variação por acúmulo.
ser visto no trabalho artístico. Mas a
É preciso pensar uma dramaturgia do
presença e passagem deles são cons-
arremesso, de como jogar as coisas,
titutivas do edifício todo. E para eles
de como se jogar nas coisas, de como
aceno com palavras, com roupas, com
jogar junto...”
máscaras, com ganas, com dúvidas,
Alexandre Veras
com movimentos, com conversas. Sim, uma conversa o que é, para que Este texto é um arremesso.
serve? (quem disse isso foi o Deleuze...)
EU PROMETO, ISTO É POLÍTICO é um arremesso.
Lembrar de se contradizer. Alimentar também esse vírus, esse veneno, essa intriga.
FOTOS DENISON LIMA
VOLUME BASE Cristiano Lenhardt | 2009
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(((revispa)))
Conectude. Um painel descontrole.
Vai pra ponte que partiu! contra o controle remoto, pontes de contato. Ophelia Patricio Arrabal
http://tiny.cc/conectude
Sexo é ponte beijo é ponte
O Brasil é um país que prefere pontes
abraço é ponte
a margens, a ponte conecta, a arte
aperto de mão é ponte
conecta. Recife cidade dos rios, pontes
Salada mista de pontes!
e overdrives — impressionantes es-
O corpo humano é nossa ponte para o
culturas de lama. Quando a ponte une
mundo e para outros corpos.
duas margens, o seu corpo de ser-
A ponte traz em sua conformação a
pente, de concreto, madeira, metal ou
ideia de viagem, a ponte é o inter-ser-
pensamento se torna terreno de troca,
sideral, a passagem, o caminho, o meio
confluência, mixórdia de fronteiras.
do caminho.
A ativação deste fluxo confronta dois
O “cavalo” é a ponte entre as entidades
lados que se encontram em suas seme-
xamânicas espirituais e nós.
lhanças e diferenças, a ponte é espaço prefere o que é semelhante para chegar
Pontes e viagens no tempo e no espaço
ao outro. A circulação horizontal dos
http://tiny.cc/collider
de hibridismo, de assimilação. O Brasil
transportes coletivos que conectam todo o corpo da cidade é ponte que une
No dia 10 de setembro de 2008 foi
múltiplas margens. O uso camuflado
ativado o maior acelerador de partí-
do transporte coletivo como interven-
culas do mundo (se você está lendo
ção urbana reconecta o contemporâneo
isso no futuro distante ele não deve ser
ao nosso ancestral atávico e ressigni-
mais tão grande). O LHC (Large Hadron
fica os espaços da cidade. Transporte-
Collider — Grande Colisor de Hádrons)
ponte. Hiperconexão pavimentada, a
foi projetado para atirar partículas de
ponte é ao mesmo tempo o meio entre
prótons umas contra as outras quase à
as coisas e o devir......o devir deve ir!
velocidade da luz.
69
(((2010)))
Ophelia Patricio Arrabal é graduada em Filosofia na Universidad de Salamanca em 2008. Vivendo entre Brasil, Colômbia e Espanha desde 2003 vem desenvolvendo trabalhos de crítica de arte. Publica textos em blogs e sites especializados, catálogos e exposições por todo o mundo. Seus últimos textos publicados foram no catálogo do projeto ´S.E.U.´de Porto Alegre e na publicação de Terra Una, ecovila com residências artísticas em Minas Gerais, Brasil. Foi co-curadora da Bienal especial de Guadalajara 2009; em 2008, 2009 foi curadora-assistente do projeto ´Cartografias da carne – Art in America, Latinitudes`, financiado pelo ´Fondo Nacional de las Artes de Colômbia´. Trabalhou também como tradutora de Caetano Veloso nos filmes do diretor espanhol Pedro Almodóvar.
O equipamento está a 100 metros
no ar. A ponte teve sua construção
debaixo da terra na fronteira da França
iniciada em 1640 por ordem do conde
com a Suíça, onde os prótons serão
Maurício de Nassau, feita em madeira,
acelerados no anel de colisão que tem
sendo considerada a primeira ponte de
cerca de 27 km de circunferência e
grande porte do Brasil e a mais antiga
8,6 km de diâmetro. O equipamento é
da América Latina.
o maior e mais complexo instrumento científico já construído, e também o
Arte-ponte > propontes
mais caro — com um custo estimado
http://tiny.cc/ponteparaonada
em US$ 8 bilhões. Os cientistas esperam que a liberação maciça de energia
A reflexão sobre as pontes em nosso
causada pelo choque das partículas
mundo é atravessada pelas questões
seja capaz de recriar as condições que
entre real e virtual; telecomunicação
existiam no universo imediatamente
e comunicação presencial; conectude
após o Big Bang.
e embotamento anestésico meio-massa. Vivemos submersos numa verda-
28 de fevereiro de 1643, foi o dia
deira trama hiperespacial de conexões.
da inauguração da ponte Recife,
Mas para que e para quem servem
atualmente chamada Maurício de
estas pontes? O que elas conectam
Nassau. O Conde Nassau queria
e que tipo de transporte se dá através
chamar muita gente para prestigiar a
delas? O crescimento multiexorbitado
sua obra, então espalhou a notícia de
e a descartabilidade da indústria da
que faria um boi voar sobre a ponte.
comunicação promovem construções
O Conde utilizou um couro de boi em
que levam o nada a lugar nenhum.
formato de balão inflável, amarrado
Arte ocupa pedaços de pontes para
em cordas finas sobre roldanas
criar situações tanto no nada, quanto
controlado por marinheiros, o que
no lugar nenhum.
fazia com que o boi desse cambalhotas
70
(((revispa)))
http://tiny.cc/pontes
perigoso. As pontes são uma ótima imagem para essa conexão entre risco
Internet é a ponte do mundo contem-
e gozo, por sua forma tubular e/ou
porâneo por excelência. Mas qual é a
fálica, que sempre avança sobre um
qualidade das relações que essa rede
vazio para atingir outra extremidade,
estabelece? E se por um lado podemos
e que sempre temos que penetrar para
nos conectar com pessoas de outros
chegar do outro lado. O problema das
continentes, onde estão nossos vizi-
pontes ciberdélicas do universo virtual
nhos locais? O mundo se transformou
é que nós podemos apenas ver e ouvir
em uma imensa vizinhança? Ipanema
o outro lado, e poucas vezes chegamos
está mais perto de Saint-Germain-des-
até ele. Nessa dinâmica, nosso estar
Prés do que de Boa Viagem? As indi-
no mundo tende à reduzir-se à uma
vidualidades indivisíveis, irredutíveis,
experiência audiovisual. Aliás, o termo
inabarcáveis, se resumem agora a um
audiovisual, muito em voga, é também
perfil no Orkut, Twitter ou Facebook?
de suma importância para as análises da arte hoje. E por tudo isso é inevitá-
O que a internet oferece às angústias
vel voltarmos ao problema das janelas
contemporâneas é uma infinidade
que se sobrepõem como no desktop,
de ofertas de relações seguras, sem
criando muros, uma sobreposição eter-
riscos, assépticas. Entretanto esse tipo
namente atualizada de janelas.
de relação pode promover um imenso tédio existencial, uma masturbação
É claro que não podemos cair de forma
infinita sem nunca alcançar o gozo
tão simplificada na questão da inter-
prometido por essas ofertas. Porque
net, como se a web fosse um universo
o gozo está diretamente ligado ao
paralelo ao Planeta Terra; não podemos
risco. Everything is sweetened by risk.
enveredar pelo já mais que desgastado
Todo o contato tem seu risco. Viver
e demodê cultura X natureza. É claro
é ir entre o que vive e viver é muito
que o mundo concreto está totalmen-
(((2010)))
te conectado, envolvido e amarrado ao mundo virtual. Existem muitos mundos, supermundos, hipermundos, submundos, desmundos, imundos e vagabundos. Existem pontes para todos os lados, e nossas relações telecomunicáveis sempre podem se desdobrar em relações presenciais e corporais que se fortalecem mutuamente e se reinventam a cada dia. http://tiny.cc/supernature Não cabe cair em um discurso profético corrupto de meia esquerda festiva naturebista contra a tecnologia, a Internet etc. Minha crítica à hegemonia das relações telecomunicativas não se constrói como um julgamento moral ou de valor, mas quer chamar a atenção para um outro território que, por seu relativo abandono, evasão ou entropia, se mostra disponível a novas ocupações e novas proposições. O espaço relacional, sensorial, corporal, envolvente. O espaço coletivo, o espaço público. E mais uma vez as pontes nos levam para a rua. Estamos chegando.
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FOTOS DANIELA PINHEIRO
PIRATテグ Coletivo Filテゥ de Peixe | 2009
74
(((revispa)))
ANOTAÇÕES PARA UMA CONVERSA com Maria Moreira
sobre o Piratão do Filé de Peixe
um procedimento... um procedimen-
a potência do procedimento Piratão
to no espaço narrativo que instaura
está em ativar o espaço narrativo que
uma forma distribuída e constitui um
circunda a transferência de arquivos
objeto liminar... procedimento e não
entre o Filé de Peixe e os participado-
performance, pois nem o corpo e seus
res do evento, trazendo `a baila várias
gestos, nem mesmo os objetos utili-
questões relevantes...
zados, são ativados como suportes de significâncias em si...
por exemplo, a adoção do pregão “1 é R$5, 3 é R$10” reverencia a inte-
o evento armado em praça pública, a
ligência combativa dos sobreviventes
duplicação da precariedade do aramado
da precariedade do “circuito inferior
dos camelôs, o pregão emulado –
da economia”1... e, a reboque dessa
“1 é R$5, 3 é R$10”, os DVDs encarta-
reverência, os conflitos do circuito são
dos de forma artesanal, numa estética
encampados pelo Piratão: devemos
de quase cordel eletrônico, todos os
criminalizar o vandalismo hacker da
elementos funcionam como um álibi
duplicação infinita dos arquivos, ou
na arquitetura do procedimento, que
questionar a lógica proprietária dos
multiplica e converte um arquivo em
autores e distribuidores que insistem
narrativas partilhadas...
em reprimir as potencialidades multiplicadoras de acesso e inclusão das tecnologias digitais?
1. “Numa perspectiva relacional, o circuito inferior representaria, para o geógrafo brasileiro [Milton Santos], um subsistema da economia urbana. Nesse caso, só é possível entendê-lo através do reconhecimento de seus múltiplos entrelaçamentos com o circuito moderno capitalista (o circuito superior). Assim, o sistema simples de produção de bens e prestação de serviços vincula-se à divisão técnica e territorial do trabalho. Vislumbra-se, na formulação de Santos, uma leitura do trabalho informal e, portanto, do comércio nas favelas cariocas, de uma forma que não o classifica simplesmente como precário ou o idealiza. Ele reconhece sua existência concreta, suas relações e atos, e os desejos e forças de pessoas reais que procuram construir alternativas para suas vidas.” Souza e Silva, Jailson de. Considerações sobre a Identidade Econômica e Social dos Comerciantes das Favelas Cariocas. Disponível em http://www.museudapessoa.net/sescrio/artigos_identidade.shtml
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Maria Moreira é crítica de arte. Coletivo Filé de Peixe há 4 anos realiza ações de intervenção urbana com base no audiovisual e projetos de ocupação artística em espaços não convencionais. Desde 2009 desenvolve o projeto PIRATÃO, que ao modo e preços praticados pelos camelôs piratas dos grandes centros urbanos, comercializou mais de 2800 vídeos de autores clássicos e recentes, da produção videoartística nacional e internacional. www.coletivofiledepeixe.com
o Piratão é como uma “feira
“liminaridade”3 é um conceito de
experimental”2 investigativa... e a
antropologia, referente aos ritos de
forma distribuída que o procedimento
passagem, `as vivências de estados
instaura no espaço narrativo remete
de suspensão das condições culturais
ao formato instalação, onde percursos
vigentes, quando um tempo-lugar
sobrepõem espaço e duração, abrindo
transitório se abre para o exercício de
um convite ao pensar junto... a forma
uma nova ordem de classificações... a
distribuída também é uma dispersão
imersão conjunta nesse estado transi-
composta por lugar, duração, atores
tório faz aflorar a “communitas”4, uma
e resíduos específicos — os encarta-
experiência purificadora de indiferen-
dos... enquanto experiência direta, tal
ciação social, que anula o tempo estru-
conjunto disperso é vivido como uma
tural e as projeções entre os indivíduos
constelação articulada de sentidos suge-
e permite experienciar o não-saber...
ridos e/ou em transformação... quando o território dessas questões consteladas
um procedimento que, como o Piratão,
aponta para a transformação do “habi-
configura-se como objeto liminar, abre
tus”, ou a transformação da consciência
para seus participadores uma “commu-
cultural do grupo, a pertinência do
nitas”, uma experiência que, mesmo
questionamento faz com que a totali-
transitória, possibilita uma vivência de
dade do procedimento seja apreendida
não-saber sobre uma nova ordem de
como um único objeto liminar...
classificações e possíveis...
2. Uma das proposições listadas por Helio Oiticica no Item 5: Tendência a uma arte coletiva, no Esquema Geral da Nove Objetividade. In: Ferreira, G; Cotrim, C. [orgs] Escrito de Artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, p. 166.
3. Turner, Victor. “Liminaridade e Communitas“. In: O processo social – estrutura e antiestrutura. Petrópolis, Vozes, 1974. 4. Idem
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(((revispa)))
em relação ao Piratão, repetimos, o
fábrica pirata, sessão 24 horas, e a
objeto liminar não é o DVD encartado,
surpreendente batalha de Mcs com os
mas o procedimento como um todo...
camelôs originais, que levou a reflexões
sem negar suas controvérsias, nele se
compartilhadas no ato e convites para
realiza como experiência a possibilida-
novas confraternizações...
de de um acesso expandido a um arquivo geral, multiplicado e distribuído
a elaboração conjunta entre proposi-
face a face, em liberdade e leveza... o
tores e participadores dessa estratégia
Filé de Peixe intui essa “liminaridade”,
conversacional bem modulada, é o
quando insiste que o encartado só pode
que reorigina o potencial significante
ser adquirido no evento presencial, ou
das apropriações do Piratão e devolve
seja, só quando imerso na sua peculiar
seus resíduos materiais a condição de
“communitas”...
marcos sobre uma dobradura unindo experiência e reflexão...
a disposição jubilosa dos participadores, que não se negam a “pensar junto” as questões levantadas, é uma constante ao longo das várias edições do Piratão, espalhadas num “movimento polinizador” do Norte ao Sul do país, durante o seu primeiro ano de vida... o júbilo em pensar junto é a ferramenta de acolhimento mais preciosa da estratégia conversacional de longa duração, que aos poucos vai surgindo no acúmulo das variações de procedimentos desenvolvidos pelo Piratão...
77
(((2010)))
PIRATテグ Coletivo Filテゥ de Peixe | 2009
fotos bruna gonçalves denison lima
SPA Tamarineira | mesa de debate | 2009
INVENTÁRIO Cris Soares | 2009
DESVIO PARA O BRANCO Katalina Leão | 2009
Tigre Dente de Sabre | bate papo | 2009
Palestra Fundaj | 2009
Palestra Centro Cultural Correiros | 2009
Abertura SPATIO Izid贸rio Cavalcanti | 2009
MEMBRANAS DO MUNDO V芒nia Sommermeyer | 2009
PREFEITURA DO RECIFE
COORDENAÇÃO GERAL DO SPA
prefeito João da Costa
Márcio Almeida
vice-prefeito Milton Coelho SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO secretária (interina) Ceça Britto diretora de propaganda e criação Kássia Araújo SECRETARIA DE CULTURA
COORDENAÇÃO geral de produção | produção executiva
Lia Menezes COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Enaile Lima
secretário Renato L
PRODUÇÃO
assessoria executiva Fernando Duarte
Roberta Garcia e Maria Simonetti
FUNDAÇÃO DE CULTURA cidade do recife
Assistentes De Produção
presidente Luciana Félix
Lucianna Amorim e Roberto Bruscky
assessoria especial Bode Valença diretor de gestão de equipamentos culturais Fábio Cavalcante diretora de desenvolvimento e descentralização cultural e coordenadora do programa multicultural Luciana Veras gerente operacional de artes visuais e design Márcio Almeida
EQUIPE DE APOIO
Rildo Patrício, Mauricéia Lucena e Marquinho Varella Coordenação De Design
Raul Kawamura Coordenação De Registro Audio Visual
Mateus Sá Coordenação De Formação
Regina Buccini Assessoria De Comunicação
Ana Quitéria, Eva Duarte e Jaciana Sobrinho Mapa Das Artes
Eva Duarte PROJETO Gráfico
Zoludesign Registro Fotógrafico
Núcleo de Produção Oi Kabum! Recife Registro Audiovisual E Vinheta
Celso Costa | Caramiolas Projetos Afins Multimídia
www.spa2010.artesvisuaisrecife.org spadasartesrecife@gmail.com
PARCEIROS INTERNOS
Centro de Design do Recife CFAV – Centro de Formação de Artes Visuais Museu Murillo La Greca
Revispa 2010 Edição e Redação de textos
Ana Luisa Lima e Raíza Cavalcanti
MAMAM no Pátio
Colaboradores
Memorial Chico Science
Ana Maria Maia, Coletivo Filé de Peixe, Fabiana de Moares, Laura Sousa, Maria Moreira, Micheline Torres, Opavivará Coletivo, Ophelia Patricio Arrabal.
MAMAM – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães Biblioteca Popular de Afogados Biblioteca Multicultural Nascedouro
Agradecimentos
DGETEC – Diretora Geral de Tecnologia em Educação e Cidadania
Aos nossos painhos e mainhas, Márcio Almeida, equipe SPA 2010, Jomard Muniz de Britto, Daniel Santiago, Clara Ianni Crocodilo, Claudia Freire, Juliana Notari, Cristhiano Aguiar, Maurício Castro, José Paulo, Fernando Augusto, Rinaldo, Maurício Silva, Flávio Emanuel, Dantas Suassuna, Marcelo Silveira, Reanto Valle, Gil Vicente, Clarissa Diniz, Beth da Matta, MAMAM – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Grupo P.I.A. — Pesquisas e Interações Artísticas, Núcleo Fora do Eixo, S.E.U., revista Tatuí e aos feriados dos heróis e santos.
Programa Multicultural Parcerias
Instituto Sérgio Motta Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj Intrépida Trupe Sala Nordeste | Ministério da Cultura | Centro Cultural Banco do Nordeste APOIO
Núcleo de Produção Oi Kabum! Recife Caramiolas Projetos Afins Multimídia
Agradecemos especialmente a Paulo Bruscky por gentilmente ter cedido suas imagens.
Sesc Santa Rita Fundarpe / Casa da Cultura Centro Comunitário Salão Capela Zoludesign Tom Produções Agradecimentos
Manoel Constantino, Beto Resende, Jacqueline Moraes, Christina Simão, Beth da Matta, Mateus Sá, Regina Buccini, Raul Kawamura, Alice Vinagre, Bitu Cassundé, Evandro Sena, Silvana Café, Germano Rabello, Fernanda Lisboa, Adriana Vaz, Renata Galvão de Melo, Cecília Pessoa, Márcio Laranjeira, Catarina Lyra, Valéria Martins, Irenice Bezerra, Fátima Ferraz, Abraão de Barros Mareira, Tereza Marinho, Rita Marise, Cotonifício Othon Bezerra de Melo S/A, Dona Nida e a todos funcionários da FCCR que colaboraram com a realização do SPA 2010.
Esta revista foi produzida entre julho e setembro de 2010. A Zoludesign utilizou no projeto gráfico a fonte Nexus Sans e a família Olsen, comissionadas pela Fontfont; e as fontes OCR A e Saturday SansICG. A pré-impressão, a impressão, a encadernação e o acabamento foram realizados na Gráfica Única, com tiragem de 2.000 exemplares, impressos sobre papel offset 90 g/m2 para o miolo e cartão Duodesign, 300 g/m2 para a capa.
PATROCÍNIO
PARCERIA
REALIZAÇÃO
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, VENDA PROIBIDA
APOIO