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Os Mรกgicos ascarados E duardo C ardoso
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Para as รกguas e seus arredores
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A primeira grande travessia A to
Ăşnico
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Pe r s o n a g e n s Bar tolomeu e Ondine. Salmácio e Dégas, filhos de Bartolomeu e Ondine. Um amigo: S é f i r o . Clarinetistas, três poetas e alguns vagabundos.
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“Silêncio e Lua... Cemitério e Natureza” Jules Laforgue
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Cena
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Salas vazias e paredes incompletas. Uma galeria profunda em espiral. DĂŠgas deita-se no chĂŁo, suspira e fala:
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Dégas Não paro de questionar e seria um erro ter alguma opinião; perco-me no caracol frio de um devaneio em que pergunto e uma imagem aparece, como se fosse o que desejo. Foi o significado das chamas que me deu nome? Imagens mostram direções incompletas: apenas um filho de tirano, um filho da noite e magistral na rebeldia, como o fogo. Mantenho sonhos ouriçados de não fazer guerras, mesmo sendo batalhas de fala, pois estarei mudo. Gestos não se parecem com sons, nem com silêncios e mostram como é preciso que a vontade imagine o suficiente para realizar o que lhe é o bastante. Já não posso mais ser daqui.
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Cena
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No teto do cenĂĄrio, um enorme, antigo e decadente lustre aceso. Bartolomeu esfrega os olhos com as mĂŁos duas vezes; as luzes do lustre apagam-se.
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Bar tolomeu Todos os mistérios me fazem crer que posso a cada dia criar, projetar incessantemente tudo o que se passa pela minha retina. Gerei homens perfeitos, meus filhos; claro que não podem ser infelizes, claro que são homens de peito aberto e vontades controladas; o que será dos dois? Furioso e descabido medo que acomete as cabeças que são um pouco sombrias; certas coisas não posso controlar e preciso me precaver disso: como? Ainda não sei, mas devo arquitetar. Enorme e doce, enorme e livre! Ó sonhos em que não sou mais o senhor! O sangue só traz intrigas, eu as quero, mas são dispendiosas, procuro mais os sonhos, agora eles são de virtudes. Reina o tempo aqui e agora, às vezes poderia devastar através do tempo. Pensamentos implacáveis! Devo ser mesmo um monstro difícil de apaziguar... 23
Cena
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As luzes acendem-se.
Vemos Bartolomeu deitado im贸vel sobre uma cama escura. Ondine entra. Bartolomeu levanta-se lentamente; os dois conversam:
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Bar tolomeu Será que existem mesmo coisas que eu não posso mudar? Mesmo conhecendo os esforços infrutíferos da Terra ou da Natureza para criar, por si só, homens realmente humanos, vou estar cada dia mais próximo da minha inumanidade.
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Ondine Seus delírios de grandeza estão aumentando. Poderia ter uma vista mais sutil e veria todas as coisas instáveis.
Bar tolomeu Parece que fala comigo, mas estou longe daqui.
Ondine Espero que algo reflita nos seus olhos e que isso faça acalmar a fúria de seu sangue. 27
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Bar tolomeu Ainda lhe ouço pouco e sou triste por isso; sou todo sentidos, meu raciocínio é só paixão, nada do que espero pode minha prudência trazer-me; nada mais humano do que esperar dos dentes uma vontade de devorar. Preciso arquitetar sempre e com precisão.
Ondine Parece atormentado por coisas tolas. Mas o que posso eu fazer, senão suportar sua fúria e fazer com que o pesar de meus filhos seja acalentado?
Bar tolomeu Salmácio está vindo. Deverá consolar seu irmão e levá-lo para o Sol. Precisa de mais luz, parece ter uma paixão guardada, precisa de um pouco mais de ar. 29
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Ondine Sairá de um labirinto e terá devaneios na beira dos rios.
Bar tolomeu Falar é falar-se. E fala-se do que não se sabe quando nos sonhos lança-se na água - podemos lembrar de Ofélia a escorrer lentamente pelo rio? 31
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Ondine Falo o que desejo, mas às vezes... antes falo: o mundo, o Sol radiante, a exterioridade apaziguadora: vou embora com Dégas, será a ruína de Bartolomeu! O mundo será o de fora.
Bar tolomeu Esse meu corpo pouco animado, não me é mesmo muito leve. Peço para ser aliviado; peço... não me ouvem. Preciso misturar mais e melhor o conselho e a ação, pois só assim tenho um instante.
Ondine Confesso minhas imagens e me adapto a elas. Pensamento e sonho: você acha que sou presa a ti Bartolomeu?
Bar tolomeu Disse agora mesmo que suportará meu inferno: nunca me esquecerá. 35
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Ondine Posso deixá-lo, então, sua pena e sua fúria aumentarão. Só terá Natureza e devaneio ou Natureza e doença amorosa.
Bar tolomeu Já vi as suas forças, mas, por ora, por favor, pare de me atormentar! Nem sabemos ainda o que está por vir. Quando aparenta a morte a forma de uma sonoridade apaziguadora, pode ser que a tristeza no coração de um sonhador seja serena. Não reconheço no meu sono senão a possibilidade da melancolia; não cesso de pensar na morte.
Ondine Não se apagam ecos nem espelhos sem sofrer, monstros repetitivos das entranhas e dos emaranhados. Falo sem cessar, mas não afasto a morte. Pacifíco meu coração. 37
Cena
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Salmácio levanta-se de uma paisagem seca e arenosa.
O vento é forte.
A Lua cheia nasce amarela e gigantesca no horizonte marítimo.
O caminho de saída torna-se estreito; Salmácio caminha, fala e canta através do vento:
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Salmácio Sonhei com a partida de Dégas. Algo acontece, vejo o medo da queda. A confecção de algum veneno de linguagem, vejo que se transforma em desejo: um homem evoca sua inconsciência para sentir o desgosto do outro. Parece agora com o maior sofredor deste mundo...
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Salmรกcio
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c a n t a ...
Canção Flores de ferro! Uivos de chumbo! Envolvem-me a cabeça tenebrosa!
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Ao longe, aproxima-se um homem. SalmĂĄcio reconhece ser seu amigo SĂŠfiro.
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Cumprimentam-se com reverência. Séfiro entrega para Salmácio um papel dobrado e lacrado com o nome de seu irmão. Salmácio lê:
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Espero não o matar com minha dor. Sonhei com minha partida; este escrito não mostra a dramaturgia do meu devaneio; preciso contar-lhe com minha voz e receio que não haja tempo. O que é primeiro não é a plenitude e sim a fenda e a fissura, a erosão, o dilaceramento. Tenho uma falta viva que me torna desfalecente, inacessível e inexprimível, exceto pelo grito de uma feroz abstinência... Dégas.
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Salmácio Um emaranhado em sua cabeça. O temor humano: conhece-se só uma vida, a própria, e muitas vezes nem isso.
Séfiro Está doente e parece envenenar-se cada dia mais.
Salmácio Não vejo encenação: a vida acredita na morte? Vontades confusas; guerra e vida alegórica: distingui-las com maestria. As vitórias da Virtude terminam no homem teórico. Como acalentar seu drama?
Séfiro Venha, devemos partir, vamos preparar a viagem. 49
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Estão prontos para partir. Os dois são vistos saindo da cidade à meia-noite com a Lua acima de suas cabeças. Caminham um dia e uma noite. São trilhas perigosas e escuras. Chegam pela parte alta da cidade, são vistos de longe por Ondine que se aproxima.
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Cena
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Ondine Estávamos à sua espera. Ajude Dégas. O pressentimento é o de que não haja mais tempo. Pelo mais elementar do correr das águas, deixou-se seduzir, sua perturbação constrói mentiras verdadeiras, engana-se com a miragem de um rio. Talvez não haja mais nada que possamos fazer... 53
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Salmácio tenta falar e sua boca fecha-se. Emudecido, aperta Ondine entre os braços. Séfiro sai. Bartolomeu aproxima-se. Os três abraçam-se calorosamente. Aparentam força. As luzes apagam-se.
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Cena
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Escuta-se o mover de seus passos numa rapidez obstinada durante um longo espaço de tempo.
Flores noturnas e pequenos arbustos ocupam todo o espaço, iluminado pela penumbra da Lua. A rua ali esconde tudo o que passa e de noite é sombrio e úmido, o céu só pode ser visto por trás das folhas das árvores maiores.
Solitários trocam breves palavras:
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Bar tolomeu Lembro-me agora o que inventei, lembro-me o quanto não fui feliz na minha morada arquitetada.
Salmácio Um artista celeste esquece-se dos deuses e dos mortais, pois possuem uma origem comum e retornam a lugares primordiais. A Natureza é base para todos, mas ela mesma não possui uma única sustentação.
Ondine Longe, solitário e combativo, caiu para dentro da história. Passa pelo mundo e não importa o quanto aflore, é visto claramente debaixo de uma água que escorre. Parece-me: digo isso a você, Bartolomeu, a aceitação passa pela água. 58
Continuam a caminhar. Descem uma ponte escura, seguindo a margem de um rio. Seus passos vão diminuindo a força. Faz-se silêncio. Num campo vasto, em frente a casa de Dégas, impõe -se um único e enorme portão de ferro. 59
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Bar tolomeu Pode ser um veneno a infâmia da imensidão. Ou a imensidão do silêncio sobre as águas um aviso para os que estão vivos. Caminhos trepidantes da errância.
Salmácio A morte e o exílio sobre as águas... sempre as águas.
Bar tolomeu O que pode ter a água?
Salmácio A imaginação da infelicidade e da morte encontram na água uma imagem natural. 61
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Bar tolomeu O barqueiro e as ninfas?
Salmácio O barqueiro humaniza a travessia. A viagem que nunca acaba: o túmulo do fogo e dos homens, junto com o Mar, é a vitalidade sepulcral sobre ressonâncias de um tambor metálico.
Bar tolomeu A dissolução da infelicidade.
Salmácio Cotidianamente a tristeza mata-nos, a tristeza é a sombra que cai na água.
Bar tolomeu Pode ser que a água seja o espelho dos céus, poupando-nos do orgulho e da vingança. 65
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Aproximam-se da entrada da casa de Dégas. Nenhum barulho, nem sinal de movimento. Entreolham-se longamente no silêncio. Passam-se alguns minutos. Ondine, com lágrimas nos olhos, percebe o portão entreaberto. entram.
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Avançam na escuridão. Pode-se ouvir passos, agora. Somente passos estão em cena e misturam-se à escuridão. Depois de alguns instantes cessam-se os passos.
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Vagarosamente acercam-se de uma luz Ali, no chão, percebem Dégas, caído. Ouvimos Ondine a chorar. Não há mais nada a fazer. Desesperam-se por uns instantes. Saem, mas demoram a sair...
muito fraca.
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Do lado oposto ao port達o,
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aparecem poetas, clarinetistas e vagabundos, entoam um canto fĂşnebre:
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Canção Sombras! Ó Sombras! Suas obras são as únicas A percorrer a Terra!
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FIM
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“O que pode ter a água?” é uma boa pergunta para esticarmos a conversa Érica Zíngano
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Se o leitor atento buscar a repetição do título, Os Mágicos Mascarados, por entre as páginas lidas há pouco, nada encontrará. Essa ausência, reiterada no decorrer das cenas, permite-nos desconfiar de que o nome da peça pode funcionar como uma charada, um truque nada distante do universo da prestidigitação – onde o nome, aproximando ou abrindo rasgos, refere-se à escrita que nomeia? Eis um problema inscrito no campo da linguagem. Assim, partimos da suspeita de que, assinalado apenas no início, o título desafia a própria dramaturgia, já que, nesse trabalho de Eduardo Cardoso, as máscaras, que fazem parte do universo dramático, estando na base de todo o teatro clássico, passam a se moldar ao rosto da linguagem, constituindo-lhe uma espécie de segunda pele, porque o grande drama da peça, encampado e levado a cabo por Dégas, mas também vivido por todos os outros personagens, ao circularem em torno do seu conflito, é a encenação do drama da linguagem. Ainda que a língua seja portadora de alguma feitiçaria ou magia, e essa poderia ser a origem do conflito, é pela tônica do artifício, praticado pelo artífice, que a linguagem, 73
vestindo-se de máscara (uma forma de afirmar, reforçando, a representação), revela-se como lugar da artimanha para o hábil manuseio das palavras, abrindo espaço para que todos os personagens, cada um a seu modo e em intensidades específicas, duvidem de sua natureza e questionem sua possibilidade – e eu me pergunto se não seria mesmo este um dos sentidos da escrita, o de por em xeque, em estado permanente de tensão, sua própria razão de ser. Seguindo, então, a verve do mistério, encoberta pela máscara, naturalmente inscrita no jogo do duplo, prestemos alguma atenção a esta dupla camada, linguagem e representação, retomada pelo viés da mágica e daquilo que mascara. No entanto, antes de avançarmos por essa problemática, percebendo como a linguagem torna-se uma linha de relevo, ganhando destaque durante a peça, demoremo-nos um pouco mais em outros elementos que, por serem rastros, também foram espalhando evidências pelo caminho, à medida que fomos atravessando as páginas. O texto de Eduardo Cardoso é extremamente sucinto e explora, ao máximo, o estado poético das palavras: abre grandes frestas 74
por entre as cenas, ao escrever com os brancos e com aquilo que não se pode dizer, os silêncios, que se impõem para nós, leitores, como pontos ativos, espaços de reflexão, deixados para darmos continuidade, quando passamos a escrever, com nosso gesto de leitura, os inúmeros não-ditos das falas. Assim, no contexto de uma escrita lacunar, tanto a dedicatória, quanto a epígrafe ganham relevância, reverberando sentidos, porque servem de abertura para os enigmas eclipsados ao longo das cenas. Para continuarmos a conversa pelo veio da água, puxemos o fio de endereçamento da peça, “para as águas e seus arredores” (p.5), que convoca a força e a movência dos estados líquidos, além da transformação, suscitada por esse elemento, contaminando suas margens, ao trazer para a terra a possibilidade de mudança – como se toda a escrita também pudesse se dissolver em devir, uma oferenda às correntes aquáticas que, com a violência do movimento, trazem a mutação. Já a epígrafe do poeta simbolistadecadentista Jules Laforgue, “Silêncio e Lua... Cemitério e Natureza” (p.11), traz para a linha de frente do texto o campo das sensações, onde tudo que ocorre entre o calar e a luz de 75
prata, bem como o lugar no qual repousam os mortos e a potência de vida, emanada pela própria natureza, é solicitado para lhe agregar sentido, revelando também o processo de composição muito presente nesse trabalho de Eduardo Cardoso, que opera com justaposição de elementos, formando analogias entre eles, e exigindo do leitor o papel ativo de fazer e de refazer elos e relações. Por esses pequenos indícios, não podemos falar em inocência de escrita, mas em consciência, por isso mencionar a imagem do artífice, porque há uma mão por trás de cada personagem que pensa e pesa seus gestos, arquitetando-os em palavras, em falas, não revelando desconhecimento algum nos nomes escolhidos para nomeá-los – tudo significa, tem uma razão de ser no texto. Quando Eduardo Cardoso monta o quadro que os anuncia, ele solicita do leitor um repertório anterior de referências, que obviamente está a serviço das novas feições propostas, porque cada personagem reescreve um retrato antigo: Ondine está para o folclore europeu, ligada ao imaginário das águas, assim como Bartolomeu está para os mares 76
portugueses, sem sair do universo aquático, já que é um pirata do séc. XVII. Da mesma forma, Salmácio e Séfiro, que rememoram a mitologia grega, com a presença da Náiade atípica Salmacis e do vento do oeste Zéfiro. Além disso, também há uma série de outras imagens que circula no texto, como Ofélia ou mesmo o barqueiro Caronte, misturada à sua escrita para lhe agregar mais uma camada de sentido – sem falarmos em Dégas, que, se a curiosidade do leitor persistir, também encontrará ecos em outras imagens. Como foi dito no início, o embate com a linguagem, envolvendo sua superfície de mascaramento, parece ser o grande mote da peça, porque não sabemos, de fato, de que mal sofre Dégas, um mal que, na sua não-nomeação, pode ser lido por essa perspectiva, já que, em vários momentos, torna-se perceptível um desconforto em relação à língua, que passa a ser problematizada por diferentes questionamentos dos personagens: seja Dégas, com “batalhas de fala” (p.15), seja Bartolomeu, quando diz que “falar é falar-se” (p.29), ou até mesmo Salmácio, ao mencionar o “veneno de linguagem” (p.39), é como se a escrita fosse permanentemente colocada em 77
xeque, pois, como evidencia o bilhete de Dégas, “esse escrito não mostra a dramaturgia do meu devaneio” (p.44). No instante de sua enunciação, a máscara da linguagem revela-se contra o poder da magia e encena seu drama, sua dupla face – e, afinal, como escapar disso? Talvez a água possa ser um caminho. Por isso, é impossível não mencionarmos que a peça foi estruturada num ato único, “A primeira grande travessia” (p.7), deixando em suspenso a ideia de uma segunda, que está relacionada à morte, evocada desde a primeira cena pela fala de Dégas, quando expõe seu conflito “já não posso mais ser daqui” (p.15). Ao longo das cenas, a morte torna-se um fantasma recorrente, trazida pelas falas dos outros personagens, que manifestam diferentes preocupações com seu estado, e é em torno dele que a peça gira até seu estopim, quando a morte passa a ser encenada pelas próprias mãos de Dégas, numa perspectiva trágica, porque termina por suicidar-se, sem nos ser dito como. Com esse gesto, o enredo da peça volta em vertigem para o seu início, fechando-se em círculo, mas, ao mesmo tempo, abrindo-se, ao 78
refazer a imagem da Uróboro, que reafirma a ideia de uma segunda travessia, “serpente que morde a própria cauda e simboliza um ciclo de evolução encerrado nela mesma. “Esse símbolo contém ao mesmo tempo as idéias de movimento, de continuidade, de autofecundação e, em conseqüência, de eterno retorno.” (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2002, p. 922)1. Na imagem da serpente, reside o salto para a volta como diferença, daí a possibilidade de abertura, porque, ao retornar, a repetição não é tal e qual, pois dá início a uma segunda travessia, que, apesar de ter uma origem trágica, a morte pelo suicídio, pode depositar na água uma enorme crença, apostando na transformação e na mudança, propriedades desse elemento. Assim, deixamos ao leitor o convite para imaginar essa segunda travessia, tal qual no poema “Versos escritos nágua”, de Manuel Bandeira: “Os poucos versos que aí vão,/ Em lugar de outros é que os ponho/ Tu que me lês, deixo ao teu sonho/ Imaginar como serão.” (BANDEIRA, 1993, p. 123)2. 79
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CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos – mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 17ª ed. Coord. Carlos Sussekind. Trad. Vera da Costa e Silva, Raul de Sá Barbosa, Angela Melim e Lúcia Melim. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2002.
2 BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1993.
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___________________________ autor Eduardo Cardoso ilustração capa Marina de Botas projeto gráfico Zzui Ferreira revisão e posfácio Érica Zíngano
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papel p贸len bold 90g capa papel Cart茫o Supremo 250g formato 110mmX160mm fontes Joanna MT| Big Caslon| Trajan Pro tiragem 1.000 c贸pias 83
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