POESIAS
DE
JOÃO BOSCO
DA
ENCARNAÇÃO
POESIAS
DE
JOÃO BOSCO
DA
ENCARNAÇÃO
Objetos
1 O poeta
O
POETA É DE BRONZE.
RÍGIDO,
APARENTEMENTE
RÍGIDO.
SENTADO,
UMA PERNA
SOBRE A OUTRA, UM TEXTO SOBRE ELAS.
O
POETA ESCREVE OU
LÊ?
NÃO
POSSO VER,
assim como não vejo sua face metálica. Talvez faça as duas coisas ao mesmo tempo: lê e escreve, ou seja, copia. Copia o que já está, de alguma forma, escrito em algum
lugar. Dentro de si, no mundo, na existência. O poeta é apenas aparentemente rígido, e quando um sopro o alcança, o poeta vive, e o poema acontece.
2 O amor
Diz do amor, sensata luz, que ĂŠ com prata que se escreve. Sobre extrato vermelho, como se amor sobreposto a paixĂŁo.
Um frasco pequeno, é certo, porque contem concentrado, não precisa ser grande. Por que não ouro? Ouro reservou-se para a sabedoria. O amor é prata, sobreposto ao
vermelho sangue, já que paixão é prazer e dor, ao mesmo tempo. Ou será dor e prazer? Mas vem do fundo, não se sabe de onde. Só que é um prata, à deriva, no vermelho.
3 O tempo
O relógio é redondo. Babilônico, sumério. Sessenta, trezentos e sessenta. Um círculo, e nossa vida é circular. O minuto, o dia, o ano. O mundo, a
existência, tudo é circular. O relógio marca, incessante, a cada instante um pulso. Um relógio, nós somos. “Horo”, “lógica”. E existimos à razão do momento, efêmeros, devorados
e vomitados, sendo e n茫o sendo, pelo deus do tempo. Cronol贸gicos!
4 O silêncio
Olho para o lápis e é como se o lápis olhasse pra mim.
Em silêncio, conversamos e pactuamos o silêncio.
Mas quero não ser fiel para poder dizer que combinamos, mais eu que o lápis, um silêncio que eu, contraditório, desobedeço, porque o silêncio jamais poderá ser dito!
5 Poesia
Livros! Me acerco de livros como se de um contingente de guarda-costas. Sinto-me seguro. Sรกbio e belo. Pudera. Tenho Pessoa e
Quintana. A infância na escola, sonhando com versos. Tenho Cecília e Florbela. Adolescente, sonhando o amor. A vida, alguma coisa querida, que jamais irei conquistar. Estão ali,
eu sei, nos livros de poesia, os quais, quem sabe, um dia, poderei neles entrar! Quando eu souber caligrafia.
6 Astúcia
O tabuleiro de xadrez é grego. Invés de torre, uma coluna, não sei se dórica ou jônica. Invés de rei, um conquistador:
Alexandre! Sim, aquele grande. Grande pelos seus feitos, nĂŁo pelo tamanho. Porque, estrategista que era, comandava pela astĂşcia e conquistava. O tabuleiro de xadrez
invoca guerra. Mas eu quero sossego. De estratÊgia, astúcia e guerra, eu nada entendo. No tabuleiro dourado, as peças colocadas aleatoriamente, parecem mais uma festa,
todo mundo conversando. Serรก por isso que eu nรฃo conquisto aquilo que eu nem sei do que se trata?
7 Profundidade
Velas na parede. Um quadro mostrando jangadas. Umas amareladas pelo poente, outras coloridas, em pleno dia. N達o sei se idas, n達o sei se vindas.
Ora tem vento, ora é tranquilo, na superfície. Lembro-me de já ter dito: esse mar tranquilo, esse mar profundo. Esse mar em que não me molho: o mar dos teus olhos!
8 Fidelidade
O que sugere o olhar do border collie? Sentado, orelhas em pé, pronto para alguma coisa, o cão olha, com atenção, à espera de um comando. Assim são meus belos
cães, como na estatueta sobre a mesa. Inteligente o olhar, a pose elegante. Fiel, à espera de um sinal. A nobreza do cão, sua firmeza e disposição. Acompanha-me toda
a natureza ancestral de um guerreiro determinado: inspiração! Posso tudo com ele. É fiel, sujeita-se, se submete. E nessa submissão, ele me conquista, me torna seu, mais do que é meu.
Ah! Os c達es! Quanto temos que aprender.
9 Sabedoria
Como lembrança da Sabedoria, pende a cabeça de Aristóteles sobre um pedestal. A cabeça só, porque o resto não importaria. É branca, com verniz
dourado, como lhe convém. Arrancada de uma estátua, parece, daquelas que ficam só do pescoço para baixo, decepada, violentamente preservada, como lembrança da Sabedoria.
Pois os sรกbios sรฃo assim, eu acho: sem corpo, flutuando a cabeรงa num pedestal dourado.
10 A Justiça
Palas Atenas, Minerva, deusa sempre, uma figura de mulher! Pois a Justiça Ê feminina, com sua veste longa e discreta, acompanhando a
figura imponente que leva a mão esquerda numa também longa e impiedosa espada. E a outra, delicadamente, carregando um livro.
A capa do livro mostra uma balança e está escrito
Justiça, quando deveria ser “A Justiça”. A Justiça agora é assim: está num livro, e a balança é só uma figura. enquanto a espada inclemente ameaça impor-se à força.
A Justiça é forte, é feminina, é mãe. Tem os olhos vendados; mas esperamos sempre que olhe por nós. Quando nos interdita, cremos ser proteção.
11 Santidade
Vejo a figura de São Francisco. É uma pequena estátua, na qual está ao seu lado um cão. Ou será um lobo? Na mão, um pombo.
E outro no ombro. É calvo no alto da cabeça, circundando-lhe a calva o cabelo de frade, unido à barba. Sua túnica franciscana. Um cordão na cintura e um rosário. Os pés descalços,
parece caminhar olhando para o céu. O lobo, um cão. O pombo, um coração. Vai caminhando, consigo a natureza.
12 Objeto Sujeito
Sujeito e Objeto são, em concreto, a relação onde o Sujeito faz e o Objeto sofre. Não! Quero dizer. Van Gogh pintou objetos: sabe quem é o
sujeito? Eu, que ao vê-los, me lembro do sujeitinho e seu mundo, seu quartinho. Eu me sujeito, escorreito, feito um soldado em posição de sentido; sentindo, quieto,
diante do Objeto, a presenรงa do Sujeito. Somos Sujeito Objeto! Sรฃo Objeto Sujeito.
13 Luz
Velas são enfeites. Já não se acendem mais para auxiliar a vista ou o caminhar das almas. O cheiro das velas, nas noites escuras, ou nos velórios
tristes, nas igrejas defumadas, enegrecidas, o cheiro da parafina escorrendo, derretida, 茅 agora s贸 enfeite; o desenho gracioso, escorrendo, enquanto queima, nas noites alegres de
natal, abolem todas as tristezas, e a vela ĂŠ resumida a alegria. Em casa, no dia a dia, nĂŁo se acendem mais: sĂŁo inertes e apagados enfeites, ainda que diversas as cores e formas.
Luzes temos outras, mas, ainda, nenhuma iluminação.
14 Passado
Restaurei a velha lanterna, que funciona a 贸leo e pavio, que roubei a meu pai (o qual era meu tio!), como adiantamento da heran莽a.
A herdar era só lembrança de um tempo confuso que não sei se alegre ou triste. Só sei que existe esse passado que não passa, como o ferro escondido
sob a ferrugem que removi da lanterna. É formosa a peça, retorcida a fogo, arrebitada ao calor, não sei quem foi seu autor, nem sei de quanto tempo é testemunha essa lanterna que,
de velha, vira antiga. E o passado não Ê triste nem alegre. É apenas precioso, como tudo o que fica.
15 Angústia
A angústia também é um objeto. Máscara sem olhos, pegamos, moldamos, sentimos. Está num canto esquecido, entre uma estante e
um instante, em que nos sentamos, eretos, o coração batendo rápido. Sentamos, eretos, respiramos, fundo, expiramos, devagarinho. Para não deixar se
apagar o ser vacilante e fraco, que, cansado e confuso, quase desiste. Como um bicho que foge, ĂŠ um resto de ar. Sentamos, eretos,
respiramos, fundo, expiramos, devagarinho. A angústia é um objeto, não de concreto, mas que também pegamos e guardamos, entre uma estante e um instante.
16 Autom贸vel
Freou em cima de mim! Que susto! Aqui n茫o vim para morrer, - em absoluto!, no dia em que nasci.
V茫o dizer que foi de prop贸sito, porque sou antissocial e quis estragar a festa, et cetera, et cetera, et cetera.
Ah! Meu senhor! (Meu Deus!) Acione a seta, quando n達o for em linha reta!
17 Tacho de doce
Verso por verso vou compondo minha doenรงa. Versos perversos (ร um jogo!) Mel, sangue, minha crenรงa.
Sangue melado. O que Deus quer? Despejar-me num tacho, jogar-me ao fogo, eu acho. E manter-me apurado como um doce aรงucarado.
18 A estrada
O que ninguĂŠm entende ĂŠ que eu gosto do lugar distante. A estrada, longe da partida, longe da chegada!
O longe é o lugar mais belo; é o lugar distante. Como a linha do horizonte, no oceano. Nunca se alcança, é referência, esperança. Longe é onde não
estou. Daqui ao longe é uma distância! É muito distante. Pode ser o passado, a infância, ou o futuro, sonhado, incerto. Mas nunca o presente.
19 A palavra
Somos caixinha em que se confinam sentimentos. Segredos, tormentos. Abri-la ĂŠ possĂvel, dizendo palavras. Esvaindo no vento,
palavras s達o sopradas; Express達o de vida. E respiradas; Inspira巽達o.
20 S贸 para completar vinte
S贸 para completar vinte, vim te dizer, nesse dia vinte, que a poesia 茅 sua. Fa莽a dela o que quiser,
inclusive nada, se nada lhe aprouver.
Cave Canem
Meus cães
Tenho dois cães, e quando me sento, no jardim da praça, deitam-se junto a mim, cada um olhando para um lado: um para a frente, outro pra trás.
Olhar ĂŠ guardar. Passam e veem-nos belos, mas temem seus dentes grandes.
Ora, eles guardam o belo que hĂĄ, e a aparĂŞncia mostra o belo selvagem, dos grandes caninos.
Tenho orgulho deles, porque representam algo de mim: o belo selvagem, admirado e temido.
Quando estou sem meus c達es, e vejo outros c達es e seus donos, fa巽o quest達o de
dizer: eu também tenho cães.
Mas digo, consciente de que isso pouco importa aos outros. É a mim mesmo que eu digo: eu também tenho cães. Eu também olho para
os lados, ressabiado, com a presença do outro.
É a mim mesmo que digo o discurso. A poesia eu digo para mim mesmo. Como a emoldurar a minha própria
imagem, num espelho, delimitar, na forma, para me reconhecer.
O que n達o impede que olhem, admirem e temam esse belo selvagem.
Ent達o, eu digo dos meus c達es,
com a superioridade de quem tem intimidade com o belo selvagem:
Esses dentes. Não fazem nada. Mas, se alguém se aproxima além do possível, meus belos cães rosnam.
Então eu digo: bem. É da sua natureza, resguardar-se assim.
Dicotomia dos c達es
Meus c達es s達o carinhosos e ariscos, um deita-se sob a mesa de escrever, e o outro, sob a mesa de comer.
Quando querem, passam a ro巽ar
as pernas da gente, como se fossem gatos. Quando queremos, nĂŁo suportam afagos.
Quando querem, metem o focinho sob as mãos da gente, e esperam um pedacinho, ou um pedaço
grande, do que vamos comer.
Dão unhadas e patadas, querendo atenção, para algo sério que os aflige, e logo em seguida, como se nada acontecesse, deitam-se na forma de esfinge.
Uma orelha relaxada, a outra em pé, logo eles dormem. Pois até dormindo estão de guarda. A dicotomia do Homem.
Instintos limitados dos cães
Meus cães passeiam com guias. São pequenas cordinhas amarradas no pescoço, não muito curtas, nem compridas. Liberdade limitada. É que precisa haver
controle. Sen達o, uma cadela no cio, do outro lado da rua, um macho excitado. Atravessa a rua, pode ser atropelado pelo destino. Vai saber a que leva o instinto.
Meus cĂŁes comem biscoitos
Meus cĂŁes comem biscoitos de forma barulhenta. Com seus dentes grandes, mastigam que dĂĄ gosto!
A mulher os teme, e se assusta
imaginando que vão comê-la assim, mas digo que não fazem mal.
Na verdade, se ela insiste na sua agonia histérica e solitária, digo que não mastigam qualquer
coisa, penso comigo, quase em voz alta.
Ela nĂŁo ĂŠ importante para os meus famintos cĂŁes, que preferem os biscoitos, porque fazem (mais) barulho.
É pelos biscoitos barulhentos que, como qualquer um de nós, sentam, deitam, rolam, e graciosamente estendem a patinha.
Passeio com meus cães
Passeio com meus cães pelas ruas da cidade. Enquanto um para e cheira, o outro quer andar. Um deles é contemplativo, o outro, por ter muita agilidade, é mais ativo.
O cheiro dos meus cães
Meus cães não gostam que tirem o cheiro seu. Detestam rodo, balde e vassoura. Não suportam detergente e toda química.
Não querem que desarrumem a bagunça e destruam o fedor, como se rasgassem sua carteira de identidade.
É assim, nessa confusão aparente aos outros,
que se reconhecem e se sentem em casa.
É assim que se defendem, se estabelecem e delimitam território. E são eles mesmos!
Orgulho de cães
Meus cães andam, lado a lado, pelo passeio, com aparente indiferença, como se não notassem que alguns mostram medo e outros admiração.
Mas gostam quando, na pracinha, as mães apontam e dizem às criancinhas, que são dois cães tão bonitinhos. É a realização!
Eles cruzam olhares, e, lado a lado, a passos elegantes, de modo mais que
perfeito, pelo passeio, vão caminhando. Silenciosa satisfação.
Meus cães são frágeis
Meus cães mostram os dentes, grandes como de lobos. Mas, no fundo, e não muito, são muito bobos.
Eles temem, por exemplo,
o trovão, ou o rojão, e correm para debaixo de qualquer lugar.
Qualquer lugar, como corremos para um templo, nos momentos indecifráveis, é melhor que
qualquer outro lugar.
São bobos de dar dó. Recolhem o rabo, por entre as pernas. Os meus cães são frágeis.
Meus cães morrem
Porque para tudo há um tempo, meus cães morrem.
E não haverá mais cocô para pegar, xixi para lavar.
Nem o barulho do biscoito, sob os grandes
dentes, nem rosnado para o gato!
NĂŁo haverĂĄ medo e nem alegria, nem gato e nem rato.
A casa fica vazia, vazia de ruĂdo, de tudo que havia.
Epitรกfios
A alma
A alma pode ser doce ou amarga. Sei que tem músculos, nervos, e entranhas, aliás, bem estranhas. A alma é úmida, ao que me parece. O sangue as
umedece, vivifica (até certo ponto!), e mata. Aos poucos, para não dar na vista. A alma seria, também, respiração e movimento.
Alma de barro
A argila se molda com ĂĄgua, depois seca ao vento, e faz-se a cura ao fogo.
Eis aĂ uma alma, que, como todas,
feita de barro, acaba virando p贸.
Entre a vida e a morte
Entre a vida e a morte, Fazemos coisas, Ignorando que Tudo que começa, Tem um fim. Fazemos coisas para fugir. Não da morte,
Que não sabemos o que é. Entre a vida e a morte. Existe algo de que fugimos: A loucura!
Ilha
A vida é como uma ilha, cercada de morte por todos os lados. A morte dos outros, porque a própria, é indizível, como se a ilha afundasse no mar.
Imortal
Caso lhe conforte, e se nada se perde, e nada se cria, mas, tudo se transforma, a morte da alma é mudança de forma, de modo que essa transformação,
mais que nuança, é essência da alma, ou seja, na morte, é imortal. Mas, veja, no entanto, que a forma e a essência, na diferença, são algo igual.
Inexistir
A tragédia da morte é o deixar de existir, porque inexistir é nunca ter existido. É, quando muito, personagem de uma invenção que chamamos lembrança.
Morrer de repente
Desculpe, se eu morrer de repente, e atrapalhar seus planos. É que sou gente, e morrer Ê humano.
NĂŁo tenho medo
de morrer, mesmo de repente. Só não quero ser inconveniente, e eu entendo que o cemitério é lúgubre.
Por isso, desculpe, desde já, atrapalhar sua alegria, se por um desses
dias, eu parar de existir. Por favor, continue a rir.
Mundos escuros
Quando a urna foi entrando, pouco a pouco, na gaveta escura, entrei junto: minha vida tambĂŠm escureceu. Percebi, entĂŁo, que eram mundos
diferentes, embora escuros ambos: Você, do mundo dos mortos-vivos, atÊ agora presente na ausência, e eu, do mundo dos vivosmortos, ausente na presença.
VocĂŞ, em paz. E eu. Azar o meu, que continuo aqui.
Sobre o Eu
Materna
Eu tenho receio de que aquela mulher que me mostra o seio, queira ser minha m達e. E me enche os olhos, quem sabe a boca. E me torna, assim, menino.
Eu sou pequenino e ela ĂŠ louca.
Momento
O cavalo é Momento, o cavaleiro é Eu. Momento jamais se perdeu, mas Eu tem seus tormentos!
Momento é tão leve que Eu nunca se atreve a frear seus galopes.
NĂŁo entende a beleza, porĂŠm, dessa Leveza, que encanta, sendo golpes.
Momento, na sua destreza, engana seu montador, que sofre uma dor, destruidora tristeza.
Essa dor, que a sente na forma de um prazer e assim, sem se atrever
a tentar frear Momento, no pr贸prio ausente de si, seu leve tormento!
O påssaro Enquanto todos estavam presos, Por evidente pavor E primitivo medo, Às ideias de ser a favor Ou contra, Um påssaro passou ileso Por entre os torpedos!
Todos sofrendo com a sua crenรงa, Enquanto que o pรกssaro do deserto Mostrava-se forte, esperto, Na sua indiferenรงa.
A lua
A lua é um balão, que rouba luz, fingindo iluminar a escuridão.
Autorretrato
Olho no espelho para me pintar. E me vejo ao contrĂĄrio: sou um menino refratĂĄrio, chapĂŠu de um lado, olhar fascinado.
Biografia
I - Os fatos (Sobre o Eu)
Nasci de parteira, sobre a esteira, no ch達o da cozinha.
Ainda ali, criancinha, por um acidente,
me mudaram para um hospital, fui criado por freiras.
Ganhei o nome do santo da sua congregação. O nome e a ambição!
Fiquei lá quanto tempo, não sei.
N達o vi mais minha m達e, com minha tia fiquei.
A mulher morreu de repente, n達o me lembro o dia, mas era bem quente.
Outra m達e que se foi,
outra tia que veio. Tanta confusão, e eu no meio.
O viúvo casou bem logo, e eu, que nem era parente seu, cresci na família da estranha.
Aprendi a ser só,
e que o estranho era eu. Um menino que se acanha e nas moças causa dó!
Quantos amores como refúgio! Ventres a me proteger, e eu teimando em
ser ou n達o ser.
Foi assim que aprendi a fazer verso e a fazer rima. E cavalgando encima da palavra, comigo mesmo eu converso.
Estudei tanto para compreender
que me tornei doutor, e assim disfarcei a dor.
Defendendo e acusando, ganhei dinheiro e o mundo inteiro, mas, meu gozo ĂŠ a solidĂŁo.
Ainda na velhice, como antes eu já disse, eu converso,
através da rima e através do verso, comigo mesmo, sem rigor, à esmo.
Assim estou acima
do mundo, do universo, na minha própria condição.
II - Significado (Sobre o Outro)
Mas a Humanidade não me é estranha, pois em sua entranha,
existem apenas solitรกrios.
Eis a clara identidade: expulsos pela forรงa da maternal unidade,
vamos, pela vida, passo a passo, tentando colar pedaรงos,
tentando curar feridas.
De amor em amor, de braço em braço, procurando o caco perdido.
Que é existir, senão, como um vaso rompido, querer preencher
aquele espaรงo que chamamos solidรฃo?
O Verbo
No início era o Verbo. Não há antes do início, tudo é ainda mero início, tudo é Verbo, ação, movimento. E fim!
O fim é um novo início. E, como Verbo, ação, movimento. É assim que eu vim, é assim que eu vou. Sendo.
E outros Eus virão, e outros Eus irão. Sendo.
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Mas, nós não o reconhecemos!
No início era o Verbo. Verbalizar. Como se a alma saísse assim, e liberta,
pudesse sobreviver. Erguer-se, falar. E questionar.
Reconhecer-se, no espelho d’água. Encantar-se, verbalizar: Eu!
E outros Eus virão, e outros Eus irão.
Sendo.
E sendo, somos, e acreditamos. Sonhos, sonhamos.
Entristecer tambĂŠm ĂŠ verbo.
Perdido em Veneza
Ficar perdido é uma beleza, se for nas vielas de Veneza.
Lugar onde nunca há certeza, se é por aqui ou por ali.
É um pouco como a vida, ou um amor de perdição.
Ouvimos o sino de São Marcos, enquanto, no Gran Canale, passam os barcos.
Acelera o coração, e é estranho parecer com Dirk Bogard, em “Morte em Veneza”.
Andamos em círculo, enquanto a Laguna vai dourando com o entardecer.
Vis찾o de Assis
Um arco se forma por paredes de pedra, emoldurando os telhados e os campos mais longe.
Uma l창mpada pendurada,
e uma janela fechada, são detalhes.
Francisco um dia viu aquele campo extenso, e saiu em direção ao mundo.
Aquela janela fechada, porém,
continua um mistério.
É como os olhos cerrados, há uma alma, um mundo, ali dentro.
E um mundo lá longe, além do vale, através do qual, com suas desgastadas
pantufas, como eu as vi, pisou com delicadeza.
Eu também fui descendo até lá, procurando segui-lo. Olhei para trás e Assis era apenas um ponto, no morro. A lâmpada e a
janela, se tornaram lembrança.
Mas, uma janela fechada encerra um mundo. Um verdadeiro mistĂŠrio!
Cidade Eterna
Cidade Eterna: Ave Caesar
"Ave Caesar morituri te salutant." Os que vão morrer saúdam o Imperador. Das arquibancadas se viam os espetáculos, mas do podium, próximo do imperador, é que se ouvia a
saudação dos destinados. A morte como espetáculo, fascinava como um alívio, excitava como vingança, pelo ódio aos que sucumbiam. Era a fraqueza que instigava.
A fraqueza que todos temiam, o pavor que todos carregavam, acreditando que os gritos impetuosos os livraria de si mesmos.
Cidade Eterna: Duodecim Tabulae
Diz-se dos gauleses, que, ao atacarem Roma, destruíram as doze tábuas da lei romana, quando já ia-se destruindo, nos atos finais,
o próprio grandioso império.
Tais tabletes, a primeira legislação publicada, para que os plebeus soubessem seus deveres, foram colocados no fórum, a grande praça
pública, onde havia lojas, fornos e trabalhadores.
Mas, a gente ociosa, que, entre as refeições, discutia política e direito, comendo pães, cereais e legumes,
quem sabe também alguma carne, fazia discursos.
Não é certo, porém, que quando os bárbaros deram o golpe final, restasse ainda alguém, distraído, no portentoso
fórum!
Quando o papa voltasse, encontraria o que fora pântano e cloaca, depois animada praça, como destroços de guerra, quase nenhuma pedra
sobre pedra, e apenas fragmentos da chamada “Duodecim Tabulae�, fragmentos da Cidade Eterna.Duodecim Tabulae.
Cidade Eterna: gustus sanguinis
Vindo do Esquilino, de repente, vĂŞ-se a escultura do Coliseu. Pedras brutas foram transformadas em arcos, e os arcos, em monumento. JĂĄ o poeta Marcial
teve oportunidade de cantá-lo, enquanto, à sombra de sua enorme parede, contemplava a grandeza do feito humano. Mas foi o sangue dos mártires que o consagrou, como recordação da
malvadeza com que se faz a Hist贸ria. Sangue filtrado pela areia fina, pisoteada pelos animais ferozes. Enquanto outros, aplaudiam o majestoso espet谩culo.
Cidade Eterna: Methodus Medendi
Galeno, o médico, com seu “Método Terapêutico”, salvava vidas. Galiano, o imperador poderoso, com o poder da espada, pela espada foi morto.
Todos querem viver, mas regozijam na morte.. A morte dos outros!
Das sete colinas se ouvem os barulhos do povo, ressoando nas pedras do Coliseu, uma s贸 voz
enfurecida.
Matar ajuda a viver; ĂŠ terapĂŞutico assassinar. Expondo a raiva por aqueles que morrem, matando-os, respiram melhor.
Cidade Eterna: Navigare necesse
Plutarco diz, de Pompeu, general romano, que aos soldados amedrontados, sentenciou: "Navigare necesse; vivere non est necesse." “Navegar ĂŠ preciso,
viver não é preciso!” Romanos práticos, conquistam o mundo, na labuta, na luta, a nave em movimento. O trabalhador mecânico, como peça da engrenagem, não vive, navega.
Invés de otium, negotium. É utilidade! Retornando, porém, ao estado grego de contemplação, parece mais útil o inútil, o ócio é mais negócio! Viver é preciso, navegar, nem tanto.
Mais que navegar, viver. Viver o otium, otium litteratum, a Ăştil inutilidade da poesia.
Cidade Eterna: panis et circencis
O homem forte lança mão do gládio e arma o golpe. Os jogos em honra aos deuses já começaram. A gente toda grita estridente. A vida do mártir está nas mãos do
César, é o que parece. E ele não conhece clemência. O mártir, porém, goza a coroação do sacrifício, a espada acima de si. Testemunha, assim, um novo Deus. Enquanto pão e
circo, o espetáculo é o poder do César. Ignora-se, porém, que num futuro pouco distante, na fraqueza residirá a força. E mil deuses serão derrotados.
Cidade Eterna: Satyricon
Fellini, numa grua, sobre um caminhão, filmava as ruas da Cidade que encontrou.
Já esteve submerso, através de Cinecittà, no mais profundo da
Cidade Eterna, com seu Satyricon, que leu da obra de Petr么nio.
Petr么nio dormia o dia inteiro, porque a noite era de prazeres, diria T谩cito.
Suicidou-se aos
poucos, por ter prazer no ato de morrer, ap贸s uma viv锚ncia de prazeres.
Como em Satyricon. Uma hist贸ria de gente que goza e que morre.
Cidade eterna: Urbi et Orbi
As pedras do Coliseu estão lá. Há quanto tempo. Tantos passaram, e passam, e passarão. Cidade Eterna, cidadãos breves!
De Longe, o venerável Beda já disse: “Enquanto o Coliseu resistir, Roma resistirá. Até lá, o mundo não acabará!”
Mas até as pedras se desmancham no ar.
Vamos viver Roma enquanto o Coliseu estiver resistindo. Vamos viver o mundo enquanto houver existĂŞncia.
Nostalgia
Publicado originalmente em 1996, Scortecci, S達o Paulo.
1
Essa noite estranha, ĂŠ uma noite de medo, pavor de mim mesmo.
Quando penso e me vejo pensante,
ouço o ruído incessante - enervante do mar, tenho medo.
Do latido de um cão longínquo, tenho medo.
E receio tanto
a escuridão silenciosa da noite.
E me assusto tanto com o barulho da folha seca e do vento tenebroso na encosta.
A existência só e a coexistência só
de um mundo de mortos me amedrontam, apavoram.
E tenho um pavor imenso de ser e de sentir.
Queria ser apenas algo e n達o querer.
O pavor do silĂŞncio noturno, povoado de fantasmas que riem do meu temor, o medo da morte porque parece uma noite de silĂŞncio profundo, faz ouvir minha
fraqueza, um cão latindo ao longe, triste, um som de silêncio no ouvido, enlouquece e assusta como se houvesse - e talvez haja algum estranho na escuridão.
E me assusto com a escuridão e o silêncio - nadas que reinam em mim.
Vazio que reina em mim - tudo possível e impossível.
Alma solitĂĄria jogada num abismo, vĂŞ-se lĂĄ de cima do penhasco onde o mar encontra as pedras, um grunhido, um bafo ofegante -monstro nas minhas costas infinitas, do tamanho da
escuridão que esconde o mar dos olhos e nos ouvidos preenche a imaginação.
2
Apareceu na praia, no vaivém das ondas. Branca decomposição, parecia alguém, mas já não era ninguém.
3
É tão encantador o pé da montanha com sua tristeza feia, que não sei se existe feiura ou beleza.
O vento frio varre a noite
e eu não sei da poesia, se é triste, mais que triste, a morte do poeta.
Lua que clareia a noite, há sombra em tua face branca da bandeira que te feriu,
do vermelho do sangue, do açoite.
Por que há poesia se nem tempo existe, e eu, tão morto, desde que vi o sol se por?
Lá onde eu surgi, cá onde estou, é a mesma coisa.
Um pé de morro esconde o sol!
Por existir a poesia - se é que não a sonhamos se morre, tinta fria e espremida, sem jamais ter sido lida, no nosso vão viver?
É só o martírio daquele que foi posto no mundo para chorar a sambra e a morte, que é feito, de sorte, um cristo ensanguentando.
É dever cantar a dor
e sofrer profundamente em meio aos risos, deixar morrer a mente, o corpo, a alma, de um tĂŠdio infernal, que bem ou mal se escreve e se deixa ser e de ser um pouco.
Um deleite doloroso o da morte do poeta, rosas, espinhos. Encanto da beleza da morte - fogo que se consome.
Mas a montanha - mistĂŠrio que esconde a luz
do sol ĂŠ esse sonho que andei sonhando. Desde que nasci!
(Dia da morte de Carlos Drummond de Andrade)
4
O poema! O que aconteceu que ninguĂŠm leu, nem mesmo eu?
5
Irei para o céu? Não sei se irei. Para onde eu irei eu não sei.
Virá a mim o céu? Palavra alguma o dirá. Deixe-me deitar
enquanto tenho olhos para fechar.
6
Sim, a serpente desliza no chรฃo quente do jardim.
O menino a pega no braรงo como se fosse um pรกssaro.
Espanta o horror, a ausĂŞncia de calor do corpo seu.
A beleza do feio, mesmo quando, dilacerando o veio, com seu dente sorridente, manifesta a vida.
No primeiro momento, confesso, quando a serpente deslizou estranha pelo chĂŁo quente, senti repulsa.
Depois, porĂŠm, a vi, como um bicho qualquer, procurando a sombra,
como um homem que tem sede, quando a vi mostrar o dente, no seu suposto sorriso de serpente.
7
Quando as folhas caem no chão por onde passo, e os ipês florescem, penso em quem amo e como lhe escrevia na primavera.
Quando o chão
por onde passo amarelece e eu, com cuidado, passo, e as folhas, feito outono, na primavera, me encantam como uma pintura, penso em quem eu amo, na esperanรงa que depositamos.
8
Carne é o que somos que nos pensamos e, atrás da carne que nós vemos, o que será que temos, o que será que somos que não pensamos?
9
Frondosa árvore, os galhos brigam ao balançar do vento, sem saber, de longínquos e altos, das raízes fortes que os sustentam e unem.
Não descem ao chão.
De tão antigas raízes, sumidas na terra, não sabem que são, e a seiva que borbulha, vermelha e calda, dando-lhes sustentação.
Decepado um deles, pela força eólica, caído na terra, secando, a morrer, lembra o veio que falta, semita agora, no chão do jardim. Um galho não é árvore.
10
Escorregando, empurrado pelo vento, sem poder me segurar.
Ser levado pelo rio caudaloso sem parar pra
descansar.
Tempo, leva longe a juventude.
Vida, enquanto morro, vou vivendo.
11
Ave cinza da cor do cĂŠu, com seu grunhido doente de ave demente.
Belonave bela, tĂŁo cinza assim como um monstro
que corta os ares com seu estridente gume.
Vem, fera dos ares, ao meu encontro, trazendo a lume tua luz incandescente de estrela cadente, teu grito estridente de ave demente que engole a gente.
12
Amei-te por me amar.
Ideia de ideia amada!
Como se o verbo n達o significasse a morte.
Como se a morte, ideia inabsurda, nĂŁo presumisse a vida.
O mundo Ê do tamanho da minha cabeça!
O que mais poderia haver
sen茫o amar a pr贸pria ideia de amar?
13
Olho e me vejo olhando aquele objeto olhado.
Sou, entĂŁo, objeto de mim, tambĂŠm olhado, mansamente observado,
sem ser notado.
E me vejo, possuĂdo, eu mesmo debruçado, manso, conformado, com o simples acontecer de ver, observando, observado!
14
Todos os dias, no mesmo lugar, passo bem devagar ao encontrar dois gnomos a marchar.
Gemeozinhos, esquisitinhos,
um par t達o feinho de homenzinhos baixinhos.
Eles, soberbos, eu olho esquivo, e me sinto pequeno, menor que eles, pequenos gigantes.
Um par t達o belo e
t達o grande, de t達o feinhos que s達o.
15
É a vida o templo de Cronos, no trono, poderoso, ansioso por nos revelar?
Existem, além do relógio,
misteriosas linhas que os homens metódicos não conseguem enxergar.
A palavra amor pertence à poesia!
O que podemos ver são apenas os passos dados.
Basta ver como olhos captam, na escurid達o, a luz do escuro.
16
O vento venta na janela. Não vejo o vento, só sinto o seu alento. O rastro invisível que o Ser deixa entrever no Tempo.
Jamais verei o vento. Só sentirei que passa e bate a vidraça da janela.
Só saberei, com muito esforço, que o Tempo é o desdobrar do
modo (de ser) do Ser!.
O vento não é a batida da janela e nem o Ser se escraviza no desenrolar do Tempo!.
Existe alguma coisa que não sabemos.
17
A cidade, de madrugada, dorme em silêncio. É possível ouvir os corações desencantados em cada janela fechada à espera do dia.
Enquanto dorme, o homem é frágil. Tem apenas fé de que nada acontece e que sempre amanhece.
Enquanto dorme, no entanto, o homem não sente
o encanto da corrente que prende e o leva, certamente, para mundos medonhos, para longe de seus sonhos!
18
Eu vejo um filósofo no escritório.
Uma criança chora e diz ao homem fardado: Papai, não vá!
Um beijo, o último,
a mulher lhe dá.
Na bruma noturna, a luz reluzente é poder.
Eu vejo quem chora e quem não chora mais.
Por entre os bosques,
na manhã de sol, mil deles estão deitados.
Crianças. Crianças que correm dos estrondos presunçosos!
Eu vejo um álbum de fotografia. Sou reticente
diante do retrato do mundo!
Viver e morrer, obrigado. Por nada!
19
Ler Kant ou assistir televisão? Eis a questão!
Tudo é Razão, dizia o senhor pensante. A dúvida é só um instante.
20
Sobre o processo eu me confesso:
O fedor do calabouço diz ao homem: És rato!
A burocracia dos
papĂŠis, por sua vez: Igual aos outros!
A caneta que apena, ora descansando: Dever cumprido!
21
A poesia é espírito e paira por sobre os sons da música e das palavras, ou da música das palavras.
A pintura é corpo,
colorido ou discreto, cujo espírito é o todo, sem apalavras, apenas poesia.
A poesia está na poesia e nas pinceladas, nos desenhos, no murmúrio das cores
entrelaçadas.
No murmúrio da canção ao vento, no lamento das águas, no silêncio do retrato.
22
Sonhei com você esvoaçando feito bandeira por debaixo d'água.
Procurei lhe pegar as mãos, mas sua solidez logo se desfez
assim que a toquei.
N達o quis acordar mais. Mas, de senhor que me julguei, nesse sonho de um bravo, acabei dominado, me entreguei, me tornei seu escravo.
23
Quando eu for rei, e um dia o serei, ditarei a sorte. Advento advém.
Dos pobres então ditarei a morte. Os miseráveis, porém, nem morte terão.
24
Ser o que se ĂŠ a cada instante: aspirante de um absurdo momento durante a eternidade!
Eis o que se ĂŠ:
verdadeiro e justo na autenticidade do ser que se ĂŠ! Na essĂŞncia e na origem da obra de arte!
Ser Belo ĂŠ ser justo e vero. De sorte que o fogo, que ilumina e aquece,
se consome no pr贸prio tempo que parece lhe dar a vida e eterna idade!
25
Vejo, e mais que vejo, sinto um desejo de viver a fotografia e dar um beijo na melancolia do momento da vida.
Vejo e sinto e sofro
de um sentimento de luz: não existe momento que não seja tudo; não é triste fitar a fotografia, porque o eterno, contudo, já se reflete naquele melancólico tormento de um só momento,
que, sendo um instante, ĂŠ um constante presente.
26
Celebram o tempo.
Mas, que alegria pode ter o Artista, que, arrebatado pela Verdade, s贸 celebra a Morte?
27
Eu louvo ao Senhor porque existo, quando sou, de essência, desnecessário.
Eu louvo ao Senhor porque descubro que,
desnecessário, passo a ser, de essência, por ser, parte da criação amada.
Mas não entendo, Senhor, o sacrifício. Sou tragicamente ignorante.
Como superar a Morte pela Morte? Como aderir ao Calvário e por quê?
A vida, que chama Vida, é senão subir o Gólgota, meu Senhor,
e não entendo por que é assim, de uma razão tão inescrutável!
Por que o sofrimento, a dor do parto perene, que experimentamos nascendo sempre sob gritos
e crescendo de n贸s mesmos?
Senhor, eu louvo a Vossa Bondade e confesso minha fraqueza: por que o homem abandonou o Para铆so, em busca de si mesmo? E com o suor do
rosto labuta até morrer de morte natural, natureza fracassada?
Eu louvo a Vossa Sabedoria, Senhor, e peço que me faça compreender. Meu martírio é caminhar para onde não sei,
mas que percebo que pereço a cada passo, onde perco o pouco que tenho: uma túnica e as sandálias!
Se choro, é de péssima sensação de que nada sou. É de cansaço de
andar com os pés descalços pela areia e pelas pedras do caminho empoeirado. É de louvor que choro, porque choro de fraqueza e reconheço: Sou uma criatura
que procura o seu Senhor.
Tantos senhores na face da terra. Mas s贸 V贸s Sois o dono verdadeiro, que cuida de suas ovelhas.
E a despeito, n茫o Fazes sofrer as
criaturas. Por isso peço: Mostrai-me a sombra fresca, a água limpa, para me recompor.
Por isso peço: Dai-me fé que recompõe o andante, de que no fim do caminho
encontrarei me b谩lsamo, meu descanso. Perdoai-me, Senhor, pelo medo, pelo fracasso. Dai-me ajuda para andar ap贸s meus joelhos vacilarem. Levai-me, Guia, pelo rastro
do Cordeiro.
Perdoai-me o pavor, o choro aterrorizado de um pobre andarilho pela face da Terra, a indagar por qu锚! S贸 em V贸s terei resposta.
Quando a face
obscura do meu oposto me atentar e um buraco de nada me apavorar, perdoai-me pela fraqueza indigente e dai-me a m達o divina para cruzar o abismo fatal.
Dai-me um sinal de perdão, a luz eterna; conduzi-me ao lado da Mulher e reconhecei, por Misericórdia - não por Justiça! essa débil existência. Quando, Senhor, me esfacelar
pelos rochedos, recolhei meus pedaços e curai minhas feridas; dai-me nova vida e fazei-me caminhar em direção ao altar da vida.
NĂŁo pela minha vontade,
nem pelo meu v達o orgulho, Senhor, fazei-me digno, quando indigno que sou, de imolar-me sobre a pedra de Abra達o; n達o me abandoneis como desprezada criatura.
N찾o sacrifiqueis pomba, nem rola, nem carneiro.
N찾o me desprezeis como indigno de morrer junto com seu Filho Amado, que por n처s se
ofereceu.
S贸 assim, Bendito, alcan莽arei meu destino, de vos servir, e assim somente, me ser谩 dado ser o que sou: Tornar-me o nada que V贸s socorreis do
Fogo Eterno.
Que n達o morra em v達o, despreza criatura, Senhor da Vida e da Morte. N達o pela minha vontade, mas para Vossa Gl坦ria. Nem por Vossa
Necessidade, mas por minha salvação, concedei-me, por Bondade, morrer no Vosso Altar, Senhor.
Não sou digno, Ó Senhor, de ver Vossa Face, mas uma só palavra
de Sua Boca Santa me salvarรก.
Por isso peรงo: Olhai com Misericรณrdia o vosso filho aflito que geme das dores da Vida e concedei-lhe morrer em Vosso Altar.
Porque morrer por Vós é não morrer em vão. É despertar para a Vida Verdadeira, que todas as criaturas anseiam. É o descanso em Vossa Morada, é o que não entendo,
mas meu coração ardentemente pede. Não posso querer por meu coração nesse tesouro, Senhor, mas não será pela minha vontade, que nada pode, Deus Bendito e Bondoso. Apenas imploro ao Senhor da Vida
e da Morte, a Graça de morrer pela Vida, e de ser Vosso servo eternamente.
Esse o meu descanso, esse o meu Réquiem, Pai. Essa a minha alegria, que Sois Vós, Senhor,
que aprendi a chamar de Pai.
(tentativa de interpretação do Réquiem, de Mozart)
28
Quando me vi, jรก me vi vendo o que me via!
Espantado, olhei e me espantei com o espanto dos olhos que me olhavam.
Quando me vi jรก me vi no mundo que me acolheu, moribundo de nascimento.
Quando me conheci por gente, foi quando conheci o mundo
que existiu pra mim.
E nĂŁo fui indiferente e nem o mundo permaneceu estranho: compreendemos e pertencemos. NĂŁo sou, nem ĂŠs. Apenas somos!
29
O tempo tem aliados: a รกgua e o vento. No sussurro o vento gasta montanhas; teimosa, a รกgua escava rochas eternas.
Com o tempo, porém, é que a água é forte, é que o vento dirige a sorte dos mastros das palmeiras.
Mas o tempo tem mais aliados: a experiência e a mesquinhez.
Uma emoldura o Belo, a outra apodrece a gente. O que nos dirige a sorte?
Esse tempo! SĂŁo tempos. de suor e lĂĄgrimas, sĂŁo tempos se fim, eterno tempo.
E o nosso amor, o que aconteceu? Por acaso esvaneceu?
Tempo, malvado tempo. Transforma o que é no seu mesmo contrário.
Não vá fazer do
amor, 贸 tempo, suporte do desfalecer, de que juramos jamais querer!.
30
O cavalo é Momento, o cavaleiro é Eu. Momento jamais se perdeu, mas Eu tem seus tormentos!
Momento é tão leve que Eu nunca se atreve a frear seus galopes.
NĂŁo entende a beleza, porĂŠm, dessa Leveza, que encanta, sendo golpes.
Momento, na sua destreza, engana seu montador, que sofre uma dor, destruidora tristeza.
Essa dor, que a sente na forma de um prazer e assim, sem se atrever
a tentar frear Momento, no pr贸prio ausente de si, seu leve tormento!
31
Na pequena cidade o velhinho, na esquina, olhava nada, ouvia o silĂŞncio.
Todo dia ĂŠ assim e os dias passam.
Na cidade que cresce, o velhinho, na esquina, olha o prÊdio alto, ouve o trânsito dos carros.
E pensa: enfim, a cidade cresce e melhora.
Mas logo se aborrece, quando se lembra: justo agora, quando ĂŠ chegada a minha hora?
32
Formas, como as quero. Formas, como me querem! Tomam minhas mĂŁos a contornĂĄ-las, meus sentidos a senti-las. Mais que formas,
são contornos da substância; um coração, dois corações a palpitar. Penetro nas formas, ou melhor, as formas me envolvem: apenas me diluo na fragrância.
33
NĂŁo conheci Emily pessoalmente, de vĂŞ-la com os olhos, sua tez sofrida de quem entendeu a vida atravĂŠs da morte.
Não admirei seus olhos tímidos nem o forte semblante frágil da discrição.
Quando cheguei, Emily já havia partido há tempo.
Mas li seus recados!
Escreveu e engavetou. Descreveu a morte como doce regalo.
Morri pela Beleza, me disse, me confortou; disso, Emily, eu tenho certeza!
34
O velho, doente, a cabela abaixa e se espanta com a mulher que grita. As crianças correm pelas muitas caixas de flores, cuja beleza se agita.
O homem lĂŞ e olha
por cima a vida. Contempla a tenra idade de tĂŁo fogosa, correndo, sem juĂzo, pela avenida docemente enfeitada, tĂŁo formosa.
Observa a mĂŠdia idade, nada ajuizada, da mulher fazendo urgente seus
torpores sem notar as flores de tão atarefada.
E depois lança o olhar na desesperada espera do velho que, em seus temores, se esquece, no juízo, também das flores.
35
Corpo, corpo, eis meu horto! Devia ser a calma extensão da alma. É o seu revés.
Quando ocorre através do olhar, o sentido
alerta, uma porta aberta, veem-se pelos titubeantes olhos da alma os esc贸lios.
36
O amo tem um Boi. O pe達o cuida do Boi. O amo tem um Boi. O pe達o tem mulher; a mulher ter叩 um filho.
O amo tem um Boi. O pe達o tem mulher.
A mulher tem um desejo. O amo tem um Boi; e esse Boi uma língua.
O amo tem um Boi. A língua do Boi desejo. A mulher quer a língua do Boi. O peão mata o Boi
ou o menino que vai nascer.
O amo tem um Boi. O amo tem um pe達o. O pe達o mata o seu Boi. A mulher morreu, com ela o menino.
O amo renasce o Boi. O pe達o perde a
mulher, o filho. O amo tem um Boi. O pe達o cuida do Boi, pois o Boi tem um pe達o!
(Auto do Boi, Maranh達o)
37
Que direi de ti, senão que é leve como a luz, instantâneo como um átimo, eterno como a eternidade?.
Que direi de ti,
se palavras nĂŁo te comportam?.
NĂŁo ĂŠ melhor me calar, pensamento?!
38
Queria tornear seu corpo, esculpir aspiração, respiração.
Queria musicar seu coração, respiração, sonoro ofegar.
Queria pintar suas cores quentes, entrementes, na luz nascente.
Queria escrever seus gestos, completos, de vida e vigor.
Queria filmar seus olhos, nos olhos vibrar o olhar com a m達o que sente.
Ah! Poesia, verdade, melancolia.
Formas, cores,
prazeres. Silêncio, silencio. Sufoco um ciclo, um cio, meu zelo.
Sem fim, um universo inteiro, em expansão, numa explosão, sorri pra mim.
Compreendo, num
instante, contemplo: É tudo tão distante.
Os livros na mesa, na estante.
Onde está teu ser, Filosofia?
Ao redor, tudo é espanto.
39
Quero (tocar) seu corpo: expressĂŁo da alma, tempestade calma (na minha palma).
Quero (tocar) sua alma: invisĂvel,
indivisĂvel (ininteligĂvel).
Quero (tocar) seu segredo: diversidade, identidade (Verdade).
40
Tirei fotografia em Aparecida. Fiz como meu pai fazia, retratei a minha vida!
O que faรงo nesse instante em breve serรก distante
e meu filho dirĂĄ de seu pai: Tudo ilusĂŁo, a vida se vai!
Estranho documento o que comprova o momento: Fotografia de Aparecida ignora o devir da vida!
41
Sou grego! Profundamente, n達o nego! Sou eu, esquecido, esquecendo, numa ilha do mar Egeu!
“Tudo é, nada ainda aconteceu!”
42
O poeta é operário? Se o obrar diário de um trabalhador é obrar no amor
sua obra é bela. E através dela conhecemos a beldade
que ĂŠ forma da Verdade.
Mas o poeta como tal nĂŁo encontra trabalho igual. A obra de arte, a poesia, fruto da melancolia
que escapa do profundo,
escapa junto da sua própria essência: não é mais nada, é clarividência.
O poeta opera o instrumento mas a poesia, seu fundamento, é a música dos acordes:
aprende a soar concordes,
embora o Belo que desperta seja o Belo mesmo que concerta pela renĂşncia de seu provocamento, a extrema alegria de um tormento.
O poeta é operário?, perguntaram. Talvez seja sim!, retrucaram. Só não é fabricante; seu espírito, ao contrário, é o do errante
que não tem morada certa e paira constante por
portas abertas dos corações sequiosos de sua lira de acordes preciosos.
Não é do tormento a Beleza, mas o Belo que, com certeza, só se esclarece em quem renuncia
e se dissolve tĂŞnue na poesia.
Entende que pode ser bruto fechando-se no seu absoluto ou sendo Belo como a escultura que perde algo pela sua formosura.
A obra do poeta ĂŠ, portanto, atravĂŠs da obra do espanto que a Verdade provoca, a obra que apenas convoca
o Belo em quem escuta, como corda que
labuta na sua doce ira e harmoniza a outra, que delira
e forma um s贸 esp铆rito, o ser contrito, provocante e provocado, poeta escultor, poeta esculturado.
43
Estranha poesia a do Sert茫o dos Alves. Dela, todo dia, O Senhor nos salve.
Buc贸licos pinheiros entre regatos graciosos,
dias inteiros de momentos ociosos.
Não há tempo, como que por encanto, e de banho não há costume.
Não se guarda a contento
dia santo, todo dia ĂŠ do rebanho, toda roupa ĂŠ do estrume.
Num verde monte, sem horizonte, a casa velha: tantas bocas quanto janelas.
FogĂŁo Ă lenha, mulheres prenhas, queijo mineiro, mosquiteiro.
Pouco roçado, triste folia: dinheiro minguado, barriga vazia.
Pito de palha,
fumo picado. Que n達o trabalha se chama aleijado.
Que o Senhor nos salve daquela beleza, daquela natureza, do Sert達o dos Alves.
44
Às vezes, detesto amá-la, mas nunca amei detestá-la. Apenas palavras? Oh não! Meu Deus, são frases da lavra da dor no coração de quem,
por viver em contradição, assim faz o mal que não quer, mesmo ao pretender o bem!
45
O mar me atrai, mas tenho medo, pois o mar me trai.
Na sua profundidade, n達o se sabe, pode haver uma cidade inteira
de homens submersos.
Escrevo esses versos invejando esses imaginados suicidas que encontraram a vida no fundo do mar.
Talvez me venha a
calhar perder o medo, num arremedo de Atlântida, e mergulhar de vez na esplêndida profundidade que me atrai, trai por ser fiel e me engole e devolve a vida: Um mar em que não
me molho, o mar dos seus olhos!
46
Ouvindo Schubert:
Por que me encanto com o grave canto de um instrumento baixo?
SerĂĄ porque ĂŠ nobre - eu acho! -
ou porque causa um sentimento que não encobre que a própria vida é grave?
Ou porque. (pausa) sua cantiga é suave?
47
Vai a jangada de Macei贸 a Fortaleza, com a destreza do jangadeiro.
Vai, jangadeiro, porque a jangada a铆 parada,
vela recolhida, nada me diz.
Quero vê-la içada, velha molhada, carregada pelo vento.
Como nos livros da minha infância, ter medo
de sua coragem no mar.
48
N達o queria morrer no ver達o - noites quentes.
Tamb辿m no inverno, queria n達o - tardes vermelhas.
Nem de noite,
nem de dia. Sob estrelas, entre o verde.
Queria, como um santo, ascender enquanto acendia.
Em plena luz do dia, que, se fosse noite, eu faria.
49
Numa pรกgina do jornal, mortos em Ruanda. Embaixo a propaganda de ofertas de TVs. Os mortos vejo mal, sรฃo os preรงos que quero ver.
50
Não sou poeta voluntário, sou poeta convocado. Se mereço um salário, é o soldo de um soldado.
Não faça o poeta
ficar calado, nem tire a obra ao operĂĄrio.
NĂŁo tire ao plantador o arado, nem pense a manhĂŁ sem orvalho.
51
Acordei, o coração em chamas. Como quando um fantasma chama, no meio do sono, no meio da noite.
Tenho sonhos povoados de lindos
e terríveis rostos. Eu me prostro nesses sonhos diante do mais vulgar de mim.
Não há razão, só coração - posso dizer assim? -,
que, perturbado pelo escuro, pelo claro, com que me deparo pela fresta de uma porta, sufoca a vista, me pesa os olhos, atormenta as faces que se evaporam e v達o-se embora prometendo
retornar.
***
Uma gota e uma outra, duas delas, aos milhares.
Explodem no telhado, no seu vĂŠrtice,
feito vertente, uma cachoeira de brincadeira, um rio caudaloso invade o jardim.
Logo cedo, ai de mim!
Depois se evapora, vai-se embora.
Até um outro dia, uma outra horada manhã.
Quando adormeço, a tempestade, logo no começo, me invade de desrazão!
Sou eu mesmo ou um fantasma de mim que, rondando o jardim, como colibri, a esmo, invade uma janela e n達o sabe sair dela?
52
Outono, folhas mortas rastejando pelo chão. Um gato espia o cão. A moça joga fora, amassada, a folha branca de papel dobrada. E com ela o coração.
O dela, o meu,o mundo, a vida.
Não importa, pois – se efêmeros nossos dias nossas vidas, nossos versos, nossa dor, são meros tons de amarelo empurrados pelo
vento. Assim, ao desalento, como as folhas mortas numa tarde de outono, quando o sol se esconde e a chuva fina, Ă espreita, retine na secura, as folhas jazem
escorreitas. Como delas se esperava.
Cantos
Esses “cantos” foram publicados, pela primeira vez, em coletânea, pela Folha Carioca Editora Ltda., Rio de Janeiro, 1980
Aspectos da manhã urbana
As chaminés arrotam seus excrementos negros. Gente morre na praça e as meninas olham.
Os escapamentos dos carros
tossem sua fumaça negra e o colostro escorre dos seios. O que isso quer dizer? Que as virgens se foram? Que a pureza morreu? Não! Certamente,
que outras purezas virão!
O sol é tímido em luz, sob a neblina de óleo, mas atrevido em queimar e fazer escorrer suores, em provocar auto-
orgasmo nas carnes de todos.
Como ĂŠ bonita a manhĂŁ primaveril! Doce como a primeira de todas, alegre como a flor que explode, entusiasmante como o amor juvenil.
Na praรงa, a fonte cospe cristais, as meninas olham, de outras os cristais escorrem.
Canto da aurora primeira
À Sandra
ICHÁ, que quer dizer mulher
“Eis agora aqui, disse o homem, o osso dos meus ossos e a carne
da minha carne.” Gen. 2,23
Vou cantar as belas manhãs que trazem o Sol para beijar meu ser e despertá-lo da relva macia, como a vida que me surpreendeu numa aurora
primeira.
Quando os gorjeios alegres começam e o brilho do orvalho ainda resiste, sou o que contÊm as aragens e a espuma que varre a praia na primeira luz do novo dia.
Vou cantar as belas manhãs quando acaricio seu corpo que desperta no mormaço, à procura de espaço para correr. E me recolhe, afoito menino.
No primeiro banho de mar bravio, quando modelo sua alma com as mĂŁos, de tĂŁo palpĂĄvel e palpitante, no primeiro fruto que arranco, e seus dentes, como a onda, explodem em mim.
Sou como a areia que espera seu carinho para ser suavizada. Sou como a praia que espera sua luz para comeรงar o dia. Sou como o mar que se excita no seu leve beijo para ter vida e graรงa.
És, pois a minha manhã, a mais perfeita autora, que afugenta a noite, e me implanta a vida.
És, pois, a aurora primeira,
que o céu, com cuidado, fez soprar neste então corpo vazio, e deu-me à luz, à luz do dia.
O Fogo da Vida
Todas as madrugadas, quando eu passava, lá estava ele, com sua dança sensual, a me fascinar. Eu o batizei “Fogo da Vida”.
Porque (o fogo), para ser fogo,
precisa queimar. Como o tempo, que precisa passar. Como o rio, que precisa fluir. Como o vento, que precisa vagar.
Como tudo, que precisa, para ser,
deixar de ser!
Tal como a vida, que precisa morrer!
O fogo n達o sabe que queima, e assim se destr坦i. O tempo, se eterno, n達o existiria. O rio, se n達o passasse,
n達o o seria. O vento, estagnado, n達o haveria.
A vida, como as chamas, se n達o caminhasse pra morte, j叩 morte seria. Como as cinzas, ou, ainda, nem fogo haveria!
Por isso é que o “Fogo da Vida” me impressionava. Porque a vida me impressionava, com seu mágico devir.
Poema da tarde
O poema da tarde, leve brisa de verĂŁo, quer ser um alĂvio como sopro de vida, que faz a alma escapar, num leve suspirar, do contido peito.
O poema da tarde Ê o Sol rubro que se esconde, Ê o dançar das folhas, como bailarinas sensuais, a convidar a noite para uma aventura de amor, acenando mansamente.
O poema da tarde s贸 quer dizer, sussurrando, que um dia que vai prenuncia outro que vem, e quando despertar seu amor, h谩 de vir do Oriente, um raio de luz cruzando o mar.
O poema da tarde é manso e macio, pois não provoca ansiedade. Ao contrário, seu vento quente faz flutuar com graça as aves de encontro ao céu, na derradeira luz que
se esvai.
O poema da tarde Ê liberdade como o sonho mais belo, como o desejo mais puro do braço amado que ampara o Universo a fugir. E seu rastro Ê como
de um cometa que perfuma os devaneios.
O poema da tarde aquece o sentimento de ternura pelo corpo querido, que, doirado, na areia quente, faz debruรงar a
existência. E espera os lábios que fervem para se dissolver no seu ser.
O poema da tarde é um mistério. E como um sopro de vida faz romper a carne contida,
quer arrebentar, nostalgicamente, a prisão de si mesmo. Quer fundar o paraíso que para nós, pequeninos, nele moremos.
O poema da tarde, cantam os pássaros,
ao compasso do mar e ao bailado das palmeiras. E os que o compreendem sĂŁo os que amam, os que fazem da vida, num instante, um poema de entrega ao CĂŠu.
Questão de aparências
O moço da fazenda não quis ser peão da fazenda foi pra cidade foi ser peão da cidade peão de terno e gravata
O moço da cidade não quis vestir o terno e gravata foi pra fazenda foi pra fazenda.
Filosofia e Poesia, duas irmãs, segundo Nietzsche (em “A filosofia na idade trágica dos gregos”)
Poemas sobre a Natureza
Poema sobre a água,
princípio
único, de acordo com Tales de Mileto
Segundo
o
primeiro
filósofo
conhecido, é a Água, o úmido, o princípio de tudo.
Poema
Quente e Ăşmido, desperta o sentido. Assim ficamos grudados, nossos corpos suados.
A
chuva
insemina
a
terra, trovejando
o
seu
o
macho,
orgasmo. O
cĂŠu,
como
berra, ao ejacular em espasmo.
Somos
nós,
e
toda
a
gente, líquidos,
seminais,
e
quentes. Somos um, quando você me afaga pois,
então,
“Tudo
é
um”, e água.
Anaximandro
O princípio de tudo, a arqué, é o apeiron,
que
consiste
na
dinâmica
de
cada
coisa
se
transformar
no
seu contrário.
Poema
A noite vem do dia, e a morte vem da vida. O frio vem do quente, e seca o que é úmido.
Tudo é dicotomia, uma luta apetecida
pelo único presente, que
destrói
e
é
destruído.
Mas se o oposto é igual, só
brinca
de
eterna
mutação, pode
não
passar
ilusão, não há bem nem mal!
Anaxímenes
de
O
princípio
de
tudo
é
o
ar,
que, ao se condensar, origina o líquido
e
o
sólido,
e,
na
rarefação, faz surgir os gases, os
ventos,
o
oxigênio
e
o
fogo. A alma é feita de ar, porque os mortos não respiram!
Poema
Quando me embriago do ar que, com ansiosa calma,
você está a expirar, apreendo a sua alma.
Condensado,
é
seu
corpo, líquido na umidade, e
sólido,
com
elasticidade, no
movimento
em
que
fico absorto.
Rarefeito, pronuncia sons,
o
ar
que
são
trágicos
gemidos bons, e
por
magia,
nos
vai
e
vão
cingindo, almas
são
fogo,
se fundindo.
Poemas sobre o movimento
Parmênides
nega
o
movimento,
alegando que o “vir-a-ser” é a forma dos contrários, a eterna
oposição
do ser
e
do não-
ser, mas que não chegam a se transformar um no outro.
Contra as
o
movimento,
proposições
Eleia,
de
seguindo
segundo
Zenão o
de
mestre
Parmênides, o movimento é uma ilusão.
1.Argumento
Imagine
um
da móvel
dicotomia que
está
– no
ponto A e quer atingir o ponto B.
Este antes
movimento de
é
atingir
impossível, o
ponto
pois B,
o
móvel tem que atingir o meio do caminho entre A e B, isto é, um ponto C. Mas para atingir C, terá que
primeiro
atingir
o
meio
do
caminho entre A e C, isto é, um ponto D. E assim, ao infinito.
Poema
Correr suave até você,
dar-lhe um beijo e um abraço, parecia a mim tão fácil. Mas era o meu desejo
que não deixava ver que somos dois pontos! E entre nós, um outro: havia um obstáculo!
Até este ponto, outro, e outro.
Pois
numa
eterna
constância, somos
ilhados,
somos
sós, cercados
pela
circunstância.
2.Argumento
de
Aquiles
–
Imagine uma corrida entre um atleta velocista (Aquiles) e uma tartaruga. dada
Suponhamos
para
vantagem
a
inicial
que
tartaruga em
é
uma
distância.
Aquiles
jamais
a
porque
quando
ele
ponto
de
onde
partiu,
ela
já
uma
nova
alcançará, chegar
ao
a
tartaruga
terá
percorrido
distância;
e
quando
ele atingir essa nova distância, a tartaruga já terá percorrido uma
outra
nova
assim, ao infinito.
Poema
Tamanha insensatez!
distância,
e
Tento alcançar você, e vou apertando o passo, como o veloz Aquiles fez.
Você vai no seu compasso, muito vagarosamente, como a displicente e tranquila tartaruga.
A cada passada minha, mais de mim se distancia. É o que eu chamaria de uma eterna fuga!
3.Argumento
da flecha – Uma
flecha em voo está a qualquer instante um
em
objeto
repouso.
Ora,
está
repouso
em
se
quando ocupa um espaço igual às
suas
se,
a
ocupa próprias
próprias flecha espaço
em
dimensões voo
igual
dimensões,
e
sempre às logo
suas a
flecha em voo está em repouso.
Poema
Éramos jovens, outrora, tão cheios de esperança. Mas nossa vida voou como uma flecha no ar!
Somos maduros, agora, e só restou a lembrança. Nossa vida nada mudou, e tampouco irá mudar!
Tudo é diverso, embora sejamos a mesma criança.
O mundo, ao fundo, passou; nós não saímos do lugar!
4.Argumento
impossível porque,
do
estádio
atravessar antes
de
o se
-
É
estádio; atingir
a
meta, deve-se primeiro alcançar o ponto
intermédio
percorrer; ponto,
antes
deve-se
da de
distância atingir
atingir
o
a
esse ponto
que está no meio do caminho desse ponto; e assim ao infinito.
Poema
Tenho, adiante, a meta. E tenho um caminho. Segundo me parece, é uma linha reta.
Vou por aí, sozinho, numa discreta e solitária caminhada, que só a mim carece.
Mas, em cada parada,
me distraio, ando a esmo. A meta é a própria estrada. É o trajeto do “Eu mesmo”.
Poemas sobre o movimento
A favor do movimento (segundo os fragmentos de Heráclito de Éfeso)
Segundo Heráclito, tudo flui (panta rei).
O
ser
é
isso,
a
eterna
mudança. Um dos fragmentos mais
conhecidos de Heráclito é: “Até o próprio segunda
rio, vez,
no já
qual não
entrais é
o
pela
mesmo
que era da primeira vez” - Esse fragmento de
contrapõe-se
Parmênides
diretamente
ao
de
à
teoria
Eleia,
argumento
e da
flecha, de seu discípulo Zenão de Eleia, acima referido.
Poema
Éramos jovens, outrora,
não parecia haver mudança. Mas o tempo nos arrastou, como um rio arrasta pro mar!
Somos outra pessoa e, agora, já nem temos lembrança. Nossa vida muito mudou, e muito ainda irá mudar!
Todo momento, embora aparente alguma semelhança, é diverso do que passou; nunca mais irá voltar!
Esse
argumento
permite
uma
reflexĂŁo sobre o tempo, no sentido cotidiano,
banal,
que
psicologicamente nos afeta.
Poema
Hoje, vi como o tempo ĂŠ fluido. Porque tinha tempo, tive o tempo perdido e tudo me parecia lento.
Acompanhei a massa, vaguei por ruas e praças, parei para ler jornais, e todos eram parciais.
Também dei meus palpites, mas acharam esquisitice. Então, caprichei na caligrafia: “esse foi mais um dia!”
Mais Poemas
Teu segredo
Mais que tirar a tua roupa, quero descobrir-te, e com a minha boca, engolir-te.
Quero, com meu dedo, com muita calma, tocar o teu segredo,
sentir a tua alma.
Porque, ser menino ĂŠ se ver no feminino, e a mim mesmo, por espanto, no
teu
encanto.
voraz
A cor da Rosa
Qual é a cor que a Rosa tem? Lembra-se de algum dia ter admirado a flor? Qual é a cor que a Rosa tem? Sabe qual é a função dos seus acúleos? Acúleos não são
espinhos. As Rosas são flores solitárias, de lóbulos denteados, e de cores várias, tanto quanto os sentimentos. Tem as vermelhas da paixão, que, por dignidade, eu misturo às violetas.
Para evitar aborrecimentos. E tĂŁo jĂĄ, nĂŁo precisar das pretas.
A visita
Todos os dias ela bate Ă minha porta. JĂĄ me vendo uma figura morta, se nĂŁo abro, ela empurra. Depois me espia, senta-se ao meu lado,
e vendo-me emburrado, com
amargo hĂĄlito,
sussurra: Tenho de ir embora. Ainda nĂŁo chegou a sua hora!
Joia escondida
Você me deixou ver, um pouquinho, sua joia. Não tinha o direito. Ouvíamos “Shine On Your Crazy Diamond”, lembra-se? Meus quinze anos de muito sonho
e paixão. Eu quis tocar, com as mãos, mas você não deixou! Não pense que passou. Até hoje eu tenho guardada, de tão intensamente que olhei, a visão do brilho da joia que só pude admirar.
Me fez para sempre um sonhador.
Pichação
Pichei no muro, onde você vivia, que te amava. Fui um tanto obscuro, fiquei no anonimato. Você desconfiava, e me esperou, até que a frase se apagou.
Mas, eu sequer sabia o que era amar. E hoje sei que, de fato, eu s贸 queria sonhar.
Siciliana
Era bruna, mourisca, e parecia que, de tempos antigos, eu já a conhecia. Trocamos olhares ambíguos, era belíssima, e eu a encontrei em Palermo, depois em Taormina.
Ali, aos pÊs do Etna, no antigo teatro grego, mostrou-se uma menina cobiçada, e, isolada, era uma ilha: reservada, misteriosa, mas era dada - e se exibia. E explosiva, - e explodia. Como o vulcão.
Fiquei encantado, mas, - “peccato!”, havia já um amor, um rufião! Rodei o mundo inteiro e me sentia ali, olhando para o Jardim de Naxus, como “a casa mia”, enquanto ela, simplesmente, me via como um
estrangeiro.
Sedução
A morte, no meu caso, é doce. Como sou homem, é como se fosse uma mulher. Assume a feição feminina e bela, e me seduz.
Resplandece como raios de luz. E me chama, como quem diz: repousa! Flertamos de forma clandestina. Pois sou casado. E minha esposa, ciumenta, ĂŠ a vida!
Caminhar
Caminho, através do qual eu caminho, enquanto reflito, faço jogos de palavras e poesia. Jogos de palavras. Se caminhar trôpego, sem ar,
nรฃo verei o que hรก depois daquela curva, no final desse caminho.
Um amor perdido no tempo
Os meninos jogavam bola e eu preferia ficar com Mirtes. Ela comigo. IncrĂvel que a menina mais bonita da escola, preferisse deitar-me no colo
e passar a mão nos meus cabelos! Seus olhos verdes, sua mão macia, suas ancas que davam gosto vê-la andando. Mais que a Bel, de coxas grossas, que ela detestava. Disse que queria sair com ela, passear dando-lhe a
mão, talvez beijá-la. Ela não disse sim, nem não! Naquele momento, só queria acarinhar minha cabeça, repousada sobre a perna dela. E os meninos sentiam inveja! No dia seguinte, não vi Mirtes.
Nem no outro, nem no outro. E isso jĂĄ faz mais de quarenta anos! Gostaria de vĂŞ-la novamente. Para saber o que ganhei, o que perdi.
O gaviĂŁo
O dia ĂŠ nublado e o vento bate de um lado a outro. O gaviĂŁo mergulha e vasculha. Depois, volta ao galho alto de onde veio. Olha, olha e olha.
O gavião vasculha, enquanto
mergulha,
mas não encontra o que procura. Na verdade, não procura, há algo que o estimula, mas não sabe o que é. É um tormento. Inquieto, olha para os lados,
ameaça um voo, daqueles rasantes, que só uma ave de rapina sabe dar. Talvez o vento o confunda, e permanece lá, impávido, no galho. Atormentado, isto sim! Porque gaviões foram feitos
para dar voos rasantes, e alcançar, com o bico duro, alguma coisa, que só depois, saberá o que é.
A chuva Que tempo faz agora! Essa chuva ĂŠ um tormento. Ora, nĂŁo! Todo tempo ĂŠ bom. Algumas vezes nos faz olhar para fora, outras vezes para dentro.
Um amor perdido no tempo
Os meninos jogavam bola e eu preferia ficar com Mirtes. Ela comigo. IncrĂvel que a menina mais bonita da escola, preferisse deitar-me no colo
e passar a mão nos meus cabelos! Seus olhos verdes, sua mão macia, suas ancas que davam gosto vê-la andando. Mais que a Bel, de coxas grossas, que ela detestava. Disse que queria sair com ela, passear dando-lhe a
mão, talvez beijá-la. Ela não disse sim, nem não! Naquele momento, só queria acarinhar minha cabeça, repousada sobre a perna dela. E os meninos sentiam inveja! No dia seguinte, não vi Mirtes.
Nem no outro, nem no outro. E isso jĂĄ faz mais de quarenta anos! Gostaria de vĂŞ-la novamente. Para saber o que ganhei, o que perdi.
Piquenique à beira do Tejo
Podia ter ido à Mouraria, ver o Tejo lá de cima. “Ai, como eu queria ver o sol brilhar naquelas águas!”
Ou ao Castelo de São Jorge,
ver o gatos, as macieiras. E a cidade, lĂĄ embaixo, entre os ramos de oliveiras.
Iria de bonde, amarelo! Pegava na Praça do ComÊrcio, assim de turistas, passava pela Alfama.
Talvez o Chiado, seu comĂŠrcio ruidoso, seus cantadores vaidosos, seus lugares movimentados.
Mas quis caminhar todo o cais atĂŠ a torre de BelĂŠm, ver bem de perto o
Tejo, mesmo ouvindo todos os “ais”
da mulher a carregar a cesta, enquanto puxava os cães. “Que coisa besta!”, repetia em lamentações.
“Do lado de lá é a
Almada!”, observava ele, para amenizar a teimosia. “Iremos lá, qualquer dia!”
“A pé é que não vou!”, retrucava ela, e dizia “ai”, “Ah! Um dia vai!”, “a pé não vou.”
Eis que, com a discussão, chegam ao Padrão dos Descobrimentos, e, de logo ali, ao Jardim da Torre. “Que era perto, não era não!”
Avenida da Índia, Avenida Brasília. Havia, que maravilha!,
um passado glorioso.
Exceto quando o rei medroso, e pegou a família e fugiu. O refúgio era o Brasil, que, até então, para nada serviu.
História muito antiga, mudemos de assunto,
minha amiga, e olhemos essa arquitetura, essa nau de pedra dura,
a precipitar-se, im贸vel, por s茅culos, no rio antigo, mas sempre novel, que vai dar no mar.
O Tejo vai para o oceano, como se mar já fosse. Assim os marinheiros já com saudade içam os panos.
E à beira do Tejo, então, vendo as grandes naus saindo, alguém dá um adeus
desapercebido, aos que nunca mais voltarĂŁo.
Ă€ beira do Tejo, agora, num gramado sombreado, os dois, muito admirados, pĂľe-se a olhar a torre.
“Que torre antiga, minha amiga! Daqui saiu Cabral, para em abril chegar ao Brasil!”
E dentro da sacola, também olha: “Oba! Sardinhas, chouriços.” Diz o maridinho aguado. “E belas Patas-de-
veado!”
“E pasteizinhos de Belém.” com gosto, completa a dona. “Muito quentes, como convém!”
Mas, ambos, cansados, os pés descalços, a doer,
logo adormecem, a roncar e a gemer.
E os cães farejam a bolsa e o cheiro lhes apetece. Os donos adormecem, nãos lhes custa fuçar nas cousas.
A mochila aberta guarda, na certa,
um tesouro tentador. E fuçam, pois cachorro é fuçador.
A mulher ainda cochila E os cães agora também. O atônito marido dá um grito: “Comeram tudo da mochila!”
“Até os pasteizinhos de Belém?” “Pois que faltam coisas!”, diz, incrédulo, a responder, como se visse coisa do além.
“Minhas “Patas-deveado!” Diz a mulher ao ver o marido apavorado.
“Estas não! Aqui estão.”
“E como comeram bem! Até os pasteizinhos de Belém, que muito quentes, queimam a língua da gente!”
Disse a esposa, apressada,
enquanto enfiava pela goela as belas Patas-deveado amarelas. Assim, com gosto, lambia a m達o.
O marido a chutar o c達o que, h叩 pouco, era seu amig達o, e a assustar a cadela,
que punha o rabo entre as pernas.
Até que bateu a canela e chamava a mulher, gritava pra ela: “Me acuda, está a doer!”
“Ouça! Estão a tocar Nelson Ned!”, disse a esposa,
entusiasmada. “Mas, isso não me impede de doer. Passe logo a pomada.”
De repente, porém, lá pelos lados do convento de Belém, vinha a música que fazia parar o mundo e entrar num sonho profundo:
“O que é que você vai fazer domingo à tarde?”, cantava também, enquanto pegava a mão da mulher e com ela dançava em vaivém.
Até que, tão cansados, sentam, pesados, na
grama, ele já não reclama, e o cachorro lambe o machucado.
Ele, que se parecia com Saramago, e muitas vezes era um desaforado, estava ali, tocado, agora: “Você me namora?”,
Perguntou à mulher querida. “Fiquemos na grama deitados”, respondeu ela, e atrevida, beijou-o e disse: “Meu namorado!”
Quem ia dos Jerônimos para a torre de Belém,
ficava atônito ao ver os dois se dando bem,
aos beijos e abraços, com pouco caso dos mil turistas que lhes faziam vista.
Até que a música parou, e ele novamente se enfezou,
criou novo drama, e do colo afastou a dama.
Podia ser uma tarde perfeita, em frente à Torre de Belém. Mas ela, e os cães também, ficaram à espreita.
Estes com o rabo
entre as pernas, ela com o coração partido, com muita, muita pena de um domingo perdido.
Parecia aquela mulher que o marido imaginou, no muro da torre, a sofrer,
dando adeus ao desconhecido
que nunca viu e nem iria mais ver. Porque uma vez no mar, teria de certo morrido, ou resolveu nĂŁo voltar.
Afinal ĂŠ isto a
saudade: essa estranha capacidade de sofrer como se perdesse aquilo que jamais se teve.
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