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SUPER

HOJE Quatro longas em dois anos, após um jejum de quase dez. O ator baiano Bertrand Duarte troca a publicidade pelo cinema, vira sócio de uma produtora e investe na carreira Texto PEDRO FERNANDES Fotos IRACEMA CHEQUER

«Quando vi a repercussão do meu trabalho em Pau Brasil no Festival do Paraná, vi que é o que eu sei fazer» Bertrand Duarte, ator

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omeça com um louco que voa de cima do Elevador Lacerda. Termina com a mesma audácia de quem, no perrengue, comete a loucura de criar um negócio sem saber muito bem o que está fazendo, e ainda assim dá certo. Mas o fim pode ser apenas temporário e ganhar sequência na vida real. Vinte anos depois de Superoutro (1989), de Edgard Navarro, o ator Bertrand Duarte, casado com a atriz Adria Sandrade e pai de dois filhos, um de 21 e outro de 14, não quer falar em recomeço, em retomada. Sua carreira de ator, embora encoberta pela de publicitário, segundo ele, estava viva em papéis na TV e no cinema. Seu último longa-metragem antes do retorno às telas foi Alma corsária (1996), de Carlos Reichenbach, onde interpreta um poeta inspirado em Augusto dos Anjos. Este é um grande momento na filmografia de Reichenbach, segundo o crítico de cine-

ma e professor da Faculdade de Comunicação da Ufba André Setaro. “A ficha filmográfica de Bertrand Duarte é pequena para o seu imenso talento. Penso que o cinema brasileiro poderia ter se enriquecido mais se tivesse o intérprete de Superoutro em maior número de filmes”, diz. No início dos anos 1990, Bertrand montou com um sócio uma agência de publicidade para ganhar dinheiro e ganhou. Com o suporte financeiro de um negócio próprio e bem-sucedido, achava que podia se tornar mais exigente na escolha das produções para as quais era convidado. Agora acontece o inverso. Com o conforto de quem soube fazer negócio, deixou a publicidade como atividade secundária. Não está interessado, diz, em ser sócio de agência, mas continua a prestar consultoria para alguns clientes em parceria com empresas, como a Olhos D’água. Não há como negar. O ator que deu vida ao maluco de rua criado por Edgard Navar-

ro faz agora uma reentrada bastante intensa, com prêmio de melhor ator no Festival de Cinema do Paraná, por Pau Brasil, de Fernando Bélens, e com Dawson, Isla 10, do chileno Miguel Littín, indicado a melhor filme no Festival de Roma deste ano e na disputa pela indicação ao Oscar. “Ele é um ator inteligente, que coparticipa da criação das cenas. O filme cresce com isso”, diz Fernando Bélens. Ainda em fase de finalização, há também O homem que não dormia, de Navarro, e Conselheiro, de Walter Lima, no qual faz participação como um profeta. O último começou a ser rodado na década de 1990, com recursos da extinta Embrafilme. Com a recuperação dos negativos, Walter, que integrou a produção brasileira de Dawson, Isla 10, convidou Bertrand para filmar uma espécie de prólogo. Além disso, participou do clipe de Tirem esses eletrodos de mim!, do Retrofoguetes, no qual interpretou um cientista.


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Três momentos da performance de Bertrand: a peça teatral A Morta; a série da TV Globo Memorial de Maria Moura; e o filme Pau Brasil

O primeiro encontro com a reportagem da Muito foi marcado durante a gravação de sua cenas em Conselheiro. Vestido de saco de estopa, com barba falsa e a pele escura de maquiagem, ficou quase impossível reconhecer o ator, salvo por sua voz suave e ao mesmo tempo potente. “Fiquei com receio, porque, fisicamente, ele não tem nada a ver com o personagem. Mas Bertrand é um grande ator e a maquiagem resolveu”, diz Walter. Com este, são quatro longas em dois anos, após um jejum de quase dez. “Acho que a gente tem um start aí”, diz Bertrand. Start foi uma palavra que usou muito durante a entrevista e a usa no sentido não apenas da tradução para o português, que é começo, mas no de transformação, mudança de caminho. E sua vida é cheia deles. A palavra loucura chega à ponta da língua para explicar essas mudanças bruscas, mas a justificativa para suas sortes e reveses está na firmeza da crença em si mesmo. No modo como fala sem modéstia dos trabalhos que realizou tanto nas artes quanto na publicidade. Se é questionado sobre qual das duas profissões prefere, responde na lata que o que gosta mais é de ser ator. “Quando vi a repercussão do meu trabalho em Pau Brasil, no Festival do Paraná, vi que é o que eu sei fazer. Mas não sou um publicitário medíocre”, trata de ressalvar. A fogueira das vaidades onde ardem ora publicitários, ora atores, ganha mais combustível com o dois-em-um que é Bertrand. Mas é só conversar mais um pouco para entender que, quando fala bem do ator, é com a consciência de quem sabe que arte também precisa ser vendida para sobreviver. “Acho que a gente tem que saber trabalhar melhor os projetos de comunicação dos produtos. Os cineastas sabem fazer filmes, mas poucos sabem vender. Temos que nos aliar à propaganda. Estamos dentro de uma estrutura que tem de atrair o público. A gente não está em uma Cuba. Você não faz filmes para ser visto de graça”.

ÊXODO A primeira mudança determinante é a vinda para Salvador e a consequente migração dos escritórios para os palcos. “Faço parte dessa galera do êxodo rural, que vem tentar uma oportunidade na cidade grande”. Na capital, ele se formou no curso técnico de administração e começou a trabalhar na área de marketing de uma empresa multinacional. Nascido José Bertrand Duarte de Oliveira, em Senhor do Bonfim, em 11 de outubro de 1959, filho de bancário e dona de casa, ficou na cidade até os 2 anos. A família mudou-se para Juazeiro e ficaram lá até que completasse 17 anos. Vieram para Salvador à procura de melhoras, e há muito tempo que não volta à cidade DIVULGAÇÃO

Bertrand Duarte recebe o prêmio como melhor ator pelo longa Pau Brasil no Festival de Cinema do Paraná, este mês

onde foi criado. Naquelas bandas, agora, só vivem parentes distantes com os quais não mantém contato há muitos anos. Em Salvador, fez o curso de formação de atores na Escola de Teatro da Ufba e lá conheceu diretores que começaram a chamá-lo para suas montagens. Em seis anos, de 1980 a 1986, fez 12 peças. Seu primeiro papel foi num infantil, Estória de ventos e lenços, com direção de Antônia Adorno. Atuou ainda em montagens como O rei da vela (1982) e A morta (1983), ambos textos de Oswald de Andrade, com direção de Walter Seixas. Foi em O rei da vela que André Setaro o viu pela primeira vez . “Fui com a pulga atrás da orelha, porque tinha assistido a montagem de José Celso Martinez Correia, que pensava definitiva. Ainda que não se possa comparar, a peça revelou, para assombro geral, um excelente ator: Bertrand

Duarte, que tinha uma forte presença no palco, revelando-se um extraordinário intérprete”, lembra. Seu último trabalho no teatro foi irônica e auspiciosamente o segundo start na vida: o encontro com Navarro. A peça era Deus (1986), escrita por Woody Allen, e seria a montagem de formatura do diretor. Um besteirol existencialista típico do seu escritor. Ali começava a parceria quase simbiótica que resultou num dos mais festejados produtos do cinema baiano. Dois anos depois, ator e diretor se encontrariam no média-metragem Superoutro, que conta a história de um homem que sai noite adentro a quebrar vidraças para acordar a humanidade, dança Faraó, do Olodum, na Avenida Sete, recita Castro Alves, Gregório de Mattos, Raul Seixas e voa. “É um filme tosco, com uma verba tosca, mas com uma alma grande”, diz Navarro.

Para ele, o sucesso se deve à convergência de talentos envolvidos na produção. Especialmente o do protagonista, que se entrega à visceralidade do personagem. ”Ele é um ator que se disponibiliza. É uma massa de modelar na mão do diretor. Não que não discuta. Às vezes, é até chato, mas não cria dificuldade. Na hora de trabalhar, entende que tem de se jogar. Ele confia em mim. É uma confiança mútua“, diz Navarro. E Bertrand confirma. ”Você tem exemplos no cinema de atores que se tornam meio que o alter-ego do diretor, como Klaus Kinski e Herzog. Comigo e Edgard, acontece a mesma coisa. Em Deus ele me dava um mote e eu até passava do ponto que ele queria. Essa interação gerou um produto tão genuíno que explicam sua longevidade e atualidade“. Com a autoridade de quem o dirigiu lá no começo e o vê atuar agora, Navarro


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STOP Plano Collor. Estratégia de sobrevivência. Depois de perder o emprego de apresentador que tinha na época na TV Itapoan, Bertrand procurou um jeito de ganhar dinheiro. “Nos anos 1980, fiz muita propaganda como ator. Sempre gostei de observar esse mecanismo da comunicação. Lia muito. Mergulhava nos anuários de propaganda”. Achou então que já bastava para abrir uma agência de publicidade junto com Miguel Silveira, embora muitos lhe dissessem que era loucura. Esse projeto, que era para ser de sobrevivência, cresceu. “Deixei uma agência com um faturamento de só um cliente de

R$ 12 milhões por ano. Ultrapassamos as fronteiras da Bahia. Tivemos clientes nacionais. Fizemos algumas marcas locais, como Mitchell, a The Planet, a Ramarim”. Nos últimos dois anos, com os projetos na área de cinema, não apenas em longas, mas também em curtas começando a se avolumar, chegou o momento em que tinha de decidir quais eram as suas prioridades. Isso e também o não-entendimento em relação ao projeto da agência com os outros sócios. “Entramos em acordo, e vendi a minha participação”. Mas isso não o coloca longe do mundo dos negócios, pois começa uma parceria com a Truque Produtora de Cinema e une o útil ao agradável, pois agora está perto do que gosta de fazer. “Estamos fazendo uma parceria, reunindo forças para criar novos espaços para a empresa. Bertrand traz trabalhos e novas ideias. A figura dele é importante porque transita entre a publicidade e o cinema, assim como a produtora. É o nosso diferencial”, diz Sylvia Abreu, dona da Truque. Entre as novas ideias está a criação de conteúdo audiovisual para a TV e, possivelmente, para a internet. Entre os novos projetos está a concretização de uma promessa firmada entre ele e o diretor de teatro Fernando Guerreiro que já completou mais de 20 anos. Se prometeram que fariam um trabalho juntos. Nunca aconteceu. Mas agora a coisa ganhou corpo e a peça na qual Guerreiro dirigirá Duarte já tem autor, nome e elenco. Siameses conta a história de gêmeos momentos antes da cirurgia que os vai separar. O texto é do maranhense Zen Salles. “Ele é da nova turma de dramaturgia do Sesi em São Paulo e escreveu um texto para mim e para o João Signorelli, que tem uma semelhança comigo. Quando mostrei para Fernando, ele se apaixonou”. O espetáculo, que deve estrear primeiro

«A ficha filmográfica de Bertrand Duarte é pequena para o seu talento. O cinema teria se enriquecido mais se o tivesse em maior número de filmes» André Setaro, crítico de cinema

Bertrand Duarte experimenta o estranhamento de um louco em Superoutro, de Edgard Navarro

FOTO ARQUIVO PESSOAL

acredita que ele está cada vez mais convincente, mais maduro. “Ele sabe contracenar, tem fé cênica, e isso ajuda os outros atores a acreditarem também”. A preparação do ator para Superoutro contou com a ajuda do diretor Fernando Bélens. Eles já se conheciam do grupo Teatro da Encruzilhada, com o qual saíam pelas ruas da cidade para fazer experimentações e performances. “Eu tenho formação em psiquiatria, e Edgard achou que dava samba. Naquela época não existia isso de preparação de atores”, conta Bélens. O trabalho começou com ensaios fechados e, depois, foi para a rua, onde Bertrand circulava entre as pessoas como se realmente fosse um louco. A ideia era produzir e experimentar o estranhamento e a solidão de um louco. Este é o trabalho pelo qual ele sente mais orgulho e ao qual sabe que deve a sua carreira. Foi na ida para o Festival de Gramado de 1989, com o prêmio de melhor ator, que ele conheceu Carlos Reichenbach e outras pessoas com as quais veio a trabalhar. De quebra, o papel lhe rendeu a posição de ator-fetiche de diretores dessa geração.


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em São Paulo, fala de relações de dependência e da necessidade de se libertar do outro. “A gente tenta há duas décadas fazer algo juntos e não consegue. Virou lenda. Tenho até medo que isso não aconteça”, brinca o diretor. Para ele, entre as qualidades de Bertrand, estão o seu viés crítico na interpretação e a sua multimidialidade, a facilidade com que transita entre cinema, teatro e TV. “É impressionante como ele se adapta à linguagem de cada veículo”. Para além da capacidade de adaptação, Bertrand carrega consigo uma outra vantagem. Não tem preconceito contra a TV ou seus gêneros considerados menos nobres, como a telenovela. Sabe o que se tem a ganhar quando se coloca o rosto na tela da Rede Globo. Se ela chamar, ele pega o avião e vai. Se adequa ao ritmo diferente de tudo que está acostumado. “Me chama-

vam num dia de tarde e no outro, pela manhã, já estava gravando”. Fez Renascer (1993), de Benedito Ruy Barbosa. Interpretou Nestor, o investigador que Donatela põe no encalço de Flora em A Favorita (2008), de João Emanuel Carneiro. Também fez minisséries como Memorial de Maria Moura (1994), ao lado de Glória Pires. Não se preocupa com o tamanho, mas com a qualidade e a relevância do papel. “Os bons autores sabem abordar a realidade. Pegar um papel que tenha identificação com o público é maravilhoso. Mas ainda não fiz o papel que queria”. Fala num tom como se soubesse que ainda pega esse tal papel. Sabe que as coisas começam com starts, e o seu, como louco, audacioso, vendedor, é acreditar primeiro para que os outros levem fé. «

«É impressionante como ele se adapta à linguagem de cada veículo» Fernando Guerreiro, diretor


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