Kafka de Crumb e Logicomix

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2 Livro introduz ao estranho mundo de Franz Kafka

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SALVADOR SEXTA-FEIRA 13/8/2010

HQ Biografia em quadrinhos Kafka de Crumb, de David Z. Mairovitz e Robert Crumb, ganha edição de luxo pela Desiderata

PEDRO FERNANDES

Quando se trata de descrever uma situação fora do comum ou extremamente burocrática é comum que as pessoas usem o termo “kafkiano”, mesmo que não tenham lido nenhuma linha de A Metamorfose ou O Processo, do tcheco Franz Kafka. É isso que os clássicos fazem, rompem de tal forma as próprias fronteiras que são lançados no território da banalização. Basta lembrar o que aconteceu com Mozart, que hoje tem seu rosto vendido nas ruas de Salzburgo e Viena, na Áustria, em qualquer superfície, inclusive em bombons de chocolate. O mesmo acontece na Praga turística dos dias atuais com Kafka. Talvez faltem os bombons. Ele foi capaz, mesmo com a densidade e o tormento que permeiam sua obra, produzida na Boêmia, pré-comunista e antissemita, de inspirar trocadi-

lhos infames com baratas na música pop brasileira. Aí você começa a pensar em como mais uma história em quadrinhos pode contribuir para frear a vulgarização da obra de Kafka. A resposta está no desenho de Robert Crumb e no texto de David Zane Mairowitz, autores de Kafka de Crumb (Introducing Kafka), que acaba de ganhar nova edição, pela Desiderata, com prefácio do cartunista Allan Sieber. A primeira vez que foi publicado no Brasil, foi pela Relume Dumará, em 2006, numa edição simples. A atual é mais luxuosa, ganhou capa diferente da edição americana e tem dimensões maiores.

Adaptação

Como bem lembra Allan Sieber, essa onda de adaptações de clássicos para os quadrinhos acaba por reduzir os livros a uma linguagem simplória que não

faz jus a complexidade do original, ou então servem principalmente para aladear o virtuosismo do desenhista. Não é o caso de Kafka de Crumb, que não é exatamente uma adaptação das obras do escritor tcheco. É mais uma biografia analítica com passagens em quadrinhos. É quase desnecessário falar da beleza do traço ao mesmo tempo direto e detalhista do mestre Robert Crumb. Ele capta

Com um texto bastante analítico, Mairowitz fala da infância vivida em uma família judia não-praticante

com precisão os cacoetes da alma e do corpo perturbado do nosso herói. As cenas de sua obra são reproduzidas de forma bastante expressiva e levemente irônica, como é do hábito de Crumb, mesmo durante as passagens mais perturbadoras.

Análise

Com um texto bastante analítico, Mairowitz (conhecido por sua obra ensaística) fala da infância vivida em uma família judia não-praticante e até envergonhada de suas origens. Embora isso não o tenha impedido de se deixar influenciar pelas histórias fantásticas que corriam no gueto onde vivia. O escritor destaca, sobretudo, a relação com o pai autoritário, Hermann Kafka, que nunca lhe deu importância, mas que o marcou profundamente e ajudou a moldar seu caráter e, por conseguinte, sua obra.

“O pavor que Kafka demonstrou em toda a vida frente ao PODER, tornado famoso em seus livros O Processo e O Castelo, começa com Hermann Kafka. Mas ele nunca se rebelou. Em vez disso, transformou seu medo em autorrebaixamento ou doença psicossomática”, diz o autor em uma passagem do livro. O medo das mulheres, o pavor do sexo e seus relacionamentos amorosos concretizados apenas em extensas correspondências, também ajudam a entender um pouco Kafka e sua obra, onde as personagens femininas exercem sempre papel de distração e armadilha para o personagem principal. Antes de funcionar como resumo para preguiçosos, os quadrinhos ajudam a explicar a vida do autor e abrem o apetite para um mergulho mais profundo mundo de Kafka.

KAFKA DE CRUMB / ROBERT CRUMB E DAVI ZANE MAROWITZ

Editora Desiderata/ 184 páginas / R$ 39,90

Desenho de Crumb capta Kafka

Robert Crumb / Reprodução

LANÇAMENTO

Mostra Pixcodélics, hoje, no Animaí

História sobre a vida do matemático Bertrand Russell reflete sobre a busca por verdades absolutas

O Animaí! 2010 – IV Encontro Baiano de Animação exibe hoje e amanhã, na Sala Alexandre Robatto (Biblioteca Central dos Barris), a série de desenhos Pixcodélics, de Marco Alemar e Caio Mário Paes de Andrade. Com 65 episódios de cerca de 5 minutos cada, Pixcodélics estreou, em 2005, para toda a América Latina, no canal por assinatura Cartoon Network. Na série, os personagens Pix, Nerd, Hack e Mary Chat (todas com formato de emoticons) têm de salvar a internet dos planos de dominação do Dr. Ping e seu assistente Katslock. Hoje e amanhã, às 18 horas.

PEDRO FERNANDES

Baianos representam o Brasil na Espanha Os baianos da Escola de Dança, Arte e Cultura Galega e Espanhola representarão a Bahia no V Dia da Galicia Exterior. O evento reúne, hoje, em Santiago de Compostela, na Espanha, grupos folclóricos de emigrantes espanhóis e descendentes de 30 centros galegos de nove países. Os 19 representantes da Edace desfilarão pelas ruas da cidade e apresentarão as danças Xota de Cardelle e Regueifa de San Salvador. O grupo baiano de gaitas Os Celtas e outros três grupos brasileiros também participarão do encontro. Estima-se que cerca de seis mil pessoas vão participar do encontro.

Alecos Papadatos e Annie Donna / Reprodução

A busca pela verdade, ou pelo menos a história de uma das tentativas entre milhares ao longo da existência humana, é do que trata Logicomix, biografia em quadrinhos do matemático e filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970), que acaba de chegar ao Brasil pela editora Martins Fontes. Escrita pelos gregos Apóstolos Doxiadis e Christos H. Papadimitriou e com arte do também grego Alecos Papadatos e da argelina Annie Donna, a HQ toma a jornada de Russell para refletir sobre a Razão e o como ela pode criar armadilhas que justificam mesmo atos irracionais como a guerra. Descendente de família nobre, Russell foi criado em uma dessas mansões silenciosas onde há regra para tudo e onde apenas o uivo do vento não faz segredo sobre alguma coisa. Mas foram justamente os quartossempre trancados à chave e os livros proibidos lacrados em armários que despertaram a sua curiosidade e sua necessidade de chegar às verdades ocultas. Ainda garoto descobriu as reais circunstâncias da morte de seus pais, o fantasma da loucura que pairava sobre os gens da sua família e, mais tarde, desejou chegar aos fundamentos de todos os princípios matemáticos. Ele acredita, até então, que uma vez desvendados esses segredos, todos os problemas da humanidade estariam resolvidos.

São os próprios roteiristas e artistas que aparecem em conversas em intervalos regulares para explicar aqui e ali determinado conceito mais refratário, o contexto histórico, ou apenas para expor suas próprias angústias em relação à história que está sendo contada, que normalmente casam com a do leitor. Mais que contar a vida do pensador, pacifista, péssimo pai e marido, galanteador, o mérito da HQ é mostrar o labirinto em que a mente se arrisca quando tenta ver a vida, suas imperfeições e improvisos, sob a dureza da lógica.

LOGICOMIX / DOXIADIS, PAPADIMITROU, PAPADATOS E ANNIE DI DONNA

Martins Fontes / 350 páginas / R$ 65

A história passa pela infância de Russell e sua descoberta de todos os princípios matemáticos

Logicomix acaba sendo muito didático, às vezes até escolar, embora não se torne enfadonho

Claro que ele só pôde descobrir parte dessasverdades, especialmente no que diz respeito aos princípios matemáticos. Russell levou mais de dez anos para concluir a obra que daria conta deles e ainda assim não cumpriu seu pleno objetivo, embora tenha estimulado outros matemáticos a continuar a persegui-lo.

Didatismo

Não precisa saber muita coisa sobre matemática e filosofia, ou conhecer nomes como Gödel e Wittgenstein para se envolver com Logicomix. Na verdade não é preciso saber quase nada desses assuntos, pois o livro acaba sendo muito didático, às vezes até escolar, embora não se torne enfadonho.


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