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lamour é uma palavra de origem inglesa. Em português, seus sinônimos são encanto, fascínio, charme. Ela pode ser definida ainda como magnetismo ou capacidade de atração. Conseguimos, aqui e ali, nos aproximar de sua definição, quando nos referimos ao mundo dos ricos, das celebridades, da alta-costura, dos restaurantes exclusivos e das bebidas refinadas. Mas talvez nada disso exprima com perfeição o conceito, pelo fato de ele ser originariamente francês, como nos diz A Essência do Estilo, de Joan DeJean. O livro ex-
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plica as origens desta abstração, que nasceu na França do século 17 graças a Luiz XIV, obcecado por estilo e beleza, que importou centenas de cisnes brancos só para dar um toque de elegância ao Sena. Rodear-se do bom e do melhor não tinha a ver apenas com os arroubos de futilidade do Rei Sol. A cornucópia delirante de sapatos, perucas, tecidos, rendas, móveis, louças e toda sorte de quinquilharias caríssimas foi estratégia para tirar o país da bancarrota. Se não tinham o que exportar, Luiz XIV inventou o luxo e fez o mundo desejar ardentemente, transformando a França na detentora do seu monopólio.
Obviamente que esse estímulo à criatividadefezcomqueopaísseesmerasseainda mais na produção de artigos de luxo, tomando a dianteira que ocupa até hoje, especialmente na culinária e na moda. Sem perderdevistaaqualidade,aregradecada uma das criações e reinvenções era tornar chique e caro. Não é à toa que Louis Vuitton, Hermés, Chanel, Don Pérignon se pronunciam com sotaque francês.
Não que a moda não existisse. O que foi criado durante seu reinado foi a grife, o nome do costureiro. Sua simples menção seria sinônimo de elegância e status, e isso fez toda diferença. Se hoje temos coleções quesedividememestações,coresquemudam a cada temporada, maisons de alta-costura, mídia especializada e o resto do esquema, foi Luiz XIV o responsável.
BENS DE CONSUMO
SEMANA DE MODA
Pensemos na Itália renascentista. Todas as condições econômicas e culturais eram favoráveis para que obras-primas da arte e do pensamento fossem produzidas. No ca-
LUXO para todos Luiz XIV inventou o conceito de luxo como uma marca de sotaque francês. A história cheia de glamour está em A Essência do Estilo, de Joan DeJean
Texto PEDRO FERNANDES pfernandes@grupoatarde.com.br Ilustrações ANITA DAMINONI www.flickr.com/photos/anitadominoni/
so da França, isso também aconteceu no campo da produção de bens de consumo. Seu rei soube muito bem capitalizar esse potencial por meio da publicidade, fazendo todos acreditarem que os seus produtos eram os melhores do mundo, sendo ele mesmo e sua corte garotos-propaganda, e Paris, o meio onde ela era veiculada. Um monarca viciado em beleza, auxiliado por seu contrôleur general des finances, uma espécie de ministro das finanças, Jean-Baptiste Colbert, um papa do protecionismo, inflexível em tudo que dissesse respeito à economia do país, resultou na primeira economia em que o principal produto de exportação era o bom gosto.
Sem muitas reservas de ouro e prata, a política econômica era levar ao mínimo as importações e exportar ao máximo. Colbert chegou a proibir a importação de tecidos finos e porcelanas chineses e ordenou que similares fossem produzidos. “Colbert assegurou-se de que todos os artigos que Luiz XIV considerasse essenciais para promover sua imagem de o mais rico,sofisticadoepoderosomonarcadaEuropa fossem produzidos na França e por trabalhadores franceses; depois, certificou-se de que o maior número de pessoas seguisse servilmente os ditames do Rei Sol e adquirisse os artigos de luxo que o rei exibia em Versalhes”, diz DeJean.
A primeira semana de moda, ou uma versão rudimentar dos eventos que conhecemos hoje, aconteceu em Paris, quando a era dos alfaiates e costureiras celebridades era uma realidade. A preocupação em estarem elegantes fez com que, anos antes, nas vésperas de um baile promovido em Versalhes, duas damas da corte sequestrassem a costureira mais famosa do reino para que mais ninguém, além delas, usasse seus serviços mágicos. Talvez para evitar medida tão extremada e ainda assim ter o controle do que seria elegante, a marquesa de Berry, em julho de 1715, reuniu mulheres de estilo, alfaiates e modistas para decidir quais seriam os tecidos, as cores e os modelos que fariam parte do novo estilo que elas queriam ditar para o resto do mundo. Desde 1670 já se entendia que a moda não tinha a ver com exclusividade, mas com imitação. O excitante era usar primeiro e depois ser copiada, para então lançar outra tendência. Para que esse novo prazer fosse possível, toda a estrutura que temos teve que ser criada naqueles anos. O mundo conheceu os primeiros designers de renome, as primeiras marcas, as estações de moda, as publicações especializadas. Le Mercure Galant, publicado pela primeira vez em 1672, trazia ilustrações de figurinos e textos dirigidos sobre a última moda da corte.
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O conceito de celebridade também começou a aparecer nessa época. Ilustradores reproduziam figurinos das damas da corte, muitas vezes sem seu conhecimento. Eles as desenhavam em seus supostos quartos, deitadas em seus supostos canapés, vendendo, além da roupa, o estilo de vida daquelas pessoas. Durante a guerra da Sucessão Espanhola (1702-1713), pelo fato de a França ter ficado do lado oposto ao da Inglaterra, os portos ingleses se fecharam para as exportações francesas. Apenas modelos de vestidos femininos podiam passar, depois que as inglesas, que não queriam ficar fora da moda, muito protestaram.
REVOLUÇÃO A revolução promovida na moda aconteceu também no âmbito dos modos. Foi
A ESSÊNCIA DO ESTILO Joan Dejean Civilização Brasileira 350 páginas R$ 59
nessa época que surgiram regras de etiqueta adotadas até hoje, como a forma de servir refeições à francesa (pratos postos à mesa para que os convidados se sirvam) e o uso de garfos e colheres. Elas foram produtos do trabalho de chefs, maîtres d’hotel e traiteurs (donos de tratorias), que, assim como os costureiros e modistas, tiveram sua ascensão com os golpes de marketing da nobreza. O simples ato de cozinhar alimentos foi transformado numa ciência de combinação de sabores e essências com o lançamento, em 1651, do primeiro livro de receitas na acepção contemporânea do termo, por François Pierre, chef profissional que comandava a cozinha na casa de um nobre. Para dar um toque de maior credibilidade ao livro Le Cuisinier Français, ele assinou como La Varenne, seu precursor e cozinheiro de Henrique IV (1553-1610). A partir daí, a gastronomia, ou a haute cuisine, começou a se desenvolver, e, pela primeira vez, a culinária pôde ser descrita com termos como sutil, refinado, delicado, civilizado. Para uma legítima culinária francesa, eliminaram-se as especiarias orientais, usadasnopreparodosalimentosportodaaEuropa.Noz-moscada, canela, gengibre e outros, restringindo importações, foram substituídos por ervas nativas – salsa, cebolinha, tomilho. A separação entre doce e salgado foi instituída, criando-se a sobremesa. Com a fama que os cozinheiros ganharam, nasceram as tratorias, os primeiros restaurantes. Além de atenção com o sabor da comida, os traiteurs também priorizavam a ambientação. “Como continua a acontecer em todos os restaurantes franceses que aspiram ao status de haute cuisine, eles se preocupavam com a atmosfera do lugar. Sua convicção de que a maneira de dispor os pratos e servir a comida era tão importante quanto a própria comida mostrou-se bastante lucrativa”. As tratorias se espalharam por Paris, que se tornou a capital mundial da gastronomia. Eram tantas que, em 1690, um guia, o precursor do Michelin e GaultMillau, informava os endereços mais deliciosos da cidade. O hábito de comer fora, antes impensável para os membros das classes abastadas, passou a ser elegante. A época inspirava novidades até numa das mais sólidas produções francesas, como a de vinhos. E a inovação daquele século foi a invenção do champanhe pelo monge beneditino Dom Pérignon. Como a produção era pequena, só privilegiados podiam consumi-los. Uma garrafa custava 8 livres (hoje, cerca de US$ 400). O champanhe foi inventado quando estavam sendo criadas as condições para que a sua história de sucesso fosse possível, e a França lançava as bases de conceito e sofisticação que perduram. Sempre que uma garrafa é aberta, suas bolhas ainda cintilam à luz das velas e dos espelhos dos salões de Versalhes. «