A Igreja Cidadã - O Evangelho real, socialmente inserido e biblicamente responsável

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Copyright©2018 por João Batista Pestana Soares (Battista Soarez) Todos os direitos reservados por: A. D. Santos Editora Al. Júlia da Costa, 215 80410-070 Curitiba – Paraná – Brasil +55(41)3207-8585 www.adsantos.com.br editora@adsantos.com.br

Capa: APS Foto do autor na orelha do livro: ShMaraba Studio Arapongas Diagramação e projeto gráfico: Manoel Menezes Revisão Técnica: Cleonice Correia Araújo Revisão ortográfica: Karolina Becker Trápaga Coordenação editorial: Priscila Laranjeira Impressão e acabamento: Gráfica Patras

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) SOAREZ, Battista A igreja cidadã – O evangelho real, socialmente inserido e biblicamente responsável / Battista Soarez – A.D. Santos Editora, Curitiba, 2018. 352 páginas. ISBN – 978.85.7459-479-8 1. Bíblia – Crítica e Interpretação 2. Organização Religiosa – Responsabilidade Social 3. Igreja e Cidadania CDD 342-71 1ª edição: Arte Editorial / SP: 2007 2ª edição: julho de 2018 Proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios a não ser em citações breves, com indicação da fonte.

Edição e Distribuição:


Dedicatória A todos os profissionais da igreja: médicos, psicólogos, assistentes

sociais, jornalistas, engenheiros, pedagogos, administradores, enfim, aos demais técnicos especializados. Tornem o potencial de vocês objeto de fé para remover “montanhas”. Vocês sãos instrumentos da justiça na ação do poder de Jesus Cristo entre os homens no mundo. Sem vocês, Deus não pode fazer nada pelo povo que sofre sem pão, sem segurança e sem salvação. Enfim, vocês são — em começo, meio e fim — a igreja cidadã.

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Sumário Dedicatória....................................................................................iii Prefácio...........................................................................................7 Apresentação................................................................................11 Introdução....................................................................................15 Capítulo 1 A CIDADANIA NO CONTEXTO DA PRÁTICA TEOLÓGICA PÚBLICO-SOCIAL...................................23 Capítulo 2 IGREJA, JUSTIÇA E QUESTÃO SOCIAL.......................67 Capítulo 3 ONDE ESTÁ O FENÔMENO CHAMADO IGREJA?.................................................................................73 Capítulo 4 DEUS PLANIFICOU UMA IGREJA CIDADÃ..............87 Capítulo 5 COMO SE PLANIFICA A IGREJA CIDADÃ.................99 Capítulo 6 A IGREJA CIDADÃ É UMA COMUNIDADE-AÇÃO...................................................113 Capítulo 7 IGREJA CIDADÃ: INSTITUIÇÃO PLANIFICADORA DE ESTRUTURAS SÓCIO-HUMANITÁRIAS...............................................131 Capítulo 8 PLANEJAMENTO E AÇÃO DA IGREJA CIDADÃ...............................................................157 5


Capítulo 9 ANALISANDO SITUAÇÕES PARA PLANEJAR ESTRATÉGIAS DE EVANGELIZAÇÃO E IMPACTO........................................................................177 Capítulo 10 QUALIDADE EM GESTÃO COMUNITÁRIA E EDUCAÇÃO PARA O EVANGELHO........................207 Capítulo 11 ADMINISTRAÇÃO, ESTRATÉGIA E DESENVOLVIMENTO DA IGREJA CIDADÃ............249 Capítulo 12 PRÁXIS TEOLÓGICA E INTERVENÇÃO SOCIAL: PLANOS, PROGRAMAS, PROJETOS E AÇÕES ESTRATÉGICAS...............................................................309 Anexos........................................................................................339 Evangelho integral — um desafio para a Igreja*...................339 Fé comprometida com obras* A igreja deve se portar como agente da justiça social?...........343

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Prefácio Quando o Brasil celebrou os quinhentos anos de sua descoberta

por Pedro Álvares Cabral, centenas de artigos foram escritos para explicar por que o país “não deu certo”. Origem colonial, importação de degredados, corrupção em larga escala desde os primórdios, entre outros fatores, foram invocados para se tentar entender a desigualdade social. A chegada dos primeiros missionários ocorreu em 7 de março de 1557, pouco mais de cinquenta anos depois do descobrimento. Pensando bem, um tempo mais que suficiente para imprimirmos o agradável tempero do sal nesta terra em que “tudo o que se planta dá”. Costumam falar que Deus é brasileiro, o que certamente não procede. Entretanto, creio que o Pai viu o potencial futuro desta terra do pau-brasil ao nos plantar neste país bonito por natureza. O “abençoado por Deus” dependeu e sempre irá depender de nós. Quando examinamos as fotografias que os brasileiros tiram dos evangélicos, temos dificuldade em reconhecer nossa imagem. Até a década de 1970, recebemos pechas que variavam do “sisudo” ao “ignorante”, passando também pelo “alienado”. Por certo os adjetivos são injustos, mas infelizmente mantivemos uma inexplicável ausência em períodos conturbados da história. Houve exceções, mas estávamos confinados no saleiro enquanto do lado de fora o terror corria solto. Nos últimos anos, a fotografia mudou de matizes. Passamos a ser conhecidos pela ênfase no dinheiro. Segundo os formadores de opinião, o “vil metal” transformou-se em objeto de cobiça e cele7


bração nas comunidades evangélicas. Mais uma vez, injustiça sem precedentes. “Mas, e as obras sociais realizadas pelos evangélicos?”, podem perguntar alguns irmãos. É verdade, elas existem, mas os esforços ainda não surtiram o efeito desejado. Felizmente, não foi feita uma enquete perguntando aos brasileiros quais são os religiosos que realizam o melhor trabalho na área social. Provavelmente ficaríamos numa posição desconfortável. Todavia, o gigante brasileiro continua desnutrido e sem o tal berço esplêndido, surrupiado há muito tempo. Como uma imensa mangueira furada, cada vez que um orifício é tapado há uma vazão maior em outro ponto. Após denodado esforço, os índices de mortalidade infantil foram reduzidos. No entanto, a violência subtrai o acréscimo conquistado. A média nacional de redução na expectativa de vida foi de 2,7 anos. No Rio de Janeiro, a violência diminuiu incríveis 3,8 anos do tempo médio de vida dos homens. O trabalho social não pode ser circunscrito à atividade de um departamento da igreja. Em alguns lugares, são doadas cestas básicas com parcimônia. Porém, se a família beneficiada não comparece às reuniões da igreja, é gentilmente lembrada do atendimento “espontâneo”. As pessoas esquecem-se de que no ato de dar somos apenas os responsáveis pela assinatura do cheque. Os fundos e a solidez estão a cargo daquele que possui reservatório inesgotável de amor e graça para aquinhoar a humanidade necessitada. O foco está sempre nos outros, nunca em nós. A verdadeira “indústria” da esmola também deve ser combatida com vigor. Os carentes precisam receber mais do que um prato de comida. Devem ter a oportunidade de tornarem-se cidadãos. Do país e do Reino. Devem administrar sua própria dignidade. Em nome de Jesus, devemos combater a infiltração dos padrões mundanos nas igrejas. O homem espiritual não é medido pelo que 8


possui, ao contrário do que a mídia tenta estabelecer como paradigma de avaliação do sucesso. “Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber”, disse o Senhor. Por onde Ele passou, deixou impressa a marca da assistência aos necessitados. Foi conhecido como “amigo de pecadores”. O perfume da graça exalava suave e acentuadamente de sua vida. Qualquer lugar que pisasse tornava-se sagrado. Suas mãos eram um prolongamento das mãos divinas. Seu sorriso era a manifestação do amor que virou gente. Por você, por mim e por aqueles que ainda têm a compreensão embotada e esperam a luz brilhar nos corações enodoados pelos infortúnios do pecado. É hora de resgatar o suave aroma que deve perfumar a nação. Nós somos este bom perfume e fomos criados para as boas obras. Sem elas, a fé é destinada a jazer no descanso das catacumbas eclesiásticas. Diante desse enorme desafio, Battista Soarez brinda-nos com a obra A igreja cidadã – O evangelho real, socialmente inserido e biblicamente responsável, que busca resgatar o papel dos crentes como instrumentos de justiça. Mas ele vai além e esmiúça o caminho a ser seguido pelas lideranças evangélicas que reconhecem o papel da igreja como agente transformador da sociedade, tanto no campo espiritual quanto no vastíssimo desafio de contribuir para mudanças radicais no quadro de pobreza e injustiças deste imenso e abençoado país chamado Brasil. A partir do capítulo 4, Battista Soarez mostra o “caminho das pedras”, detalhando todos os passos a serem dados nas diferentes situações vividas pelas diferentes igrejas em diferentes regiões do país. Você encontrará a descrição de sua realidade particular e o melhor caminho para fazer de sua igreja um agente de mudanças, tanto do homem interior quanto do homem exterior. 9


Não olhe para os obstáculos, que realmente são muitos, e sim para o potencial de sua liderança e de sua igreja. Comece a fazer sua parte. Seja exemplo para os colegas que atuam em sua região. Mostre que a igreja do Senhor Jesus pode ser a instituição (organização e organismo) usada para transformar o Brasil. Leia este livro devagar, absorvendo cada conceito, e depois recomende-o para todos os seus amigos e liderados. Eude Martins da Silva

Diretor executivo da Editora Vida por mais de 20 anos e pastor da Assembleia de Deus, em São Paulo. Atualmente é diretor na Sociedade Bíblica do Brasil (SBB).

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Apresentação Jesus veio ao mundo para tornar funcional o seu Reino, que já

existia na eternidade, alcançando depois expressão em uma família, em um povo e agora na igreja. As prerrogativas do Reino de Deus estão estabelecidas nos Evangelhos, mais propriamente no chamado Sermão do Monte (Mateus 5—7). A igreja deveria orientar-se por esses padrões, mas a história contemporânea mostra uma realidade bem diferente: uma igreja preocupada consigo mesma, ensinando uma salvação que por vezes se torna utópica, persistindo em um evangelho voltado para si mesma e, o que é pior, para um sistema de religiosidade que impõe barreiras à prática do verdadeiro Evangelho da Justiça, praticado e ensinado por Jesus. Nenhuma igreja ou denominação será capaz de estabelecer padrões sociais conformes os ditames do Reino de Cristo sem o devido respaldo de quem realmente vive ou viveu em uma coletividade verdadeira, em que todos “tinham tudo em comum” (Atos 2.44). Somente o Evangelho de Cristo, juntamente com a igreja, tem autoridade e poder para moldar a pessoa, o caráter e a sociedade. A igreja (que tem a autoridade de Cristo) está inserida no vaivém das ondas da sociedade pós-moderna, onde tudo é relativo, onde cada um vive para si mesmo. Na tônica dessa realidade, pergunta-se: Foi esse o ensino que o Mestre deixou nos Evangelhos? Essa é a autoridade que a igreja está usando? Seria essa a teologia que deixava os ouvintes maravilhados, “porque Ele [ Jesus] os ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Marcos 1.22)? A igreja está no caminho certo, seguindo aquele que é “o caminho, e a verdade, e a vida” ( João 14.6), mas pelo lado errado da via, não levando em conta a verdadeira prática da justiça de Deus. 11


No livro A igreja cidadã, Battista Soarez resgata os padrões bíblicos da prática da justiça de Deus. Em outras palavras, significa a missão integral da igreja pela perspectiva da unidade e da comunhão comunitárias. A igreja inserida na comunidade com o intuito de não apenas “salvar a alma”, mas também de cuidar da estrutura física do ser humano, o corpo. Gosto da definição de Timóteo Carriker, que diz que “missão é tudo que a igreja faz fora das quatro paredes”. Eu diria, ainda, que o Evangelho tem que ser vivamente atuante dentro e fora do portão, num esforço de superação à superficialidade da ética social no âmbito do Evangelho do Cristo de Deus que veio para transformar e mudar a trajetória espiritual dos homens no mundo. Nesta definição, pode-se observar a proposta do Senhor Jesus em moldar um povo por meio da pregação dentro dos templos, mas principalmente fora deles, no meio do povo — lá fora, onde estão as pessoas as quais Jesus chama “pobres”. Battista Soarez enfoca com muita propriedade que “pobres são aqueles que não põem o seu coração nos tesouros da Terra”. Portanto, ele diz, “pobres são os despossuídos de presunção e de orgulho e assumidos em humildade e no reconhecimento de suas necessidades no contexto da questão social bem visível na realidade do mundo”. A igreja precisa parar e perguntar: “Onde estão os pobres? Os doentes? A viúva? O órfão?”. Muitos estão excluídos das comunidades por estar nessa situação. E, depois de respondidas essas questões, a igreja deve ir atrás dessas gentes que são objeto de estudo e da ação do Evangelho. Esta é uma característica do Reino/igreja deixada por Jesus: um Reino de Justiça no mais amplo significado do termo. Em uma das frases mais importantes deste livro, o autor resume verdades que ecoarão na mente dos amantes da missão integral: “Diante das questões sociais e dos clamores que ecoam na sociedade, 12


a igreja cristã é um templo que precisa ser derrubado e reconstruído”. Esta declaração de Battista Soarez atinge os nossos sentimentos, muda as nossas atitudes e desperta a nossa consciência para a responsabilidade de um fazer social acima de tudo respaldado na verdade do Deus da justiça. As ideias do pragmatismo e da teologia da prosperidade afastam os mais pobres do Reino, lançando-os em um caminho sem volta. Tais ideias estão inseridas na mente da liderança, gerando uma busca por coisas novas para levantar recursos que nunca chegam do lado de fora da igreja. A missão comunitária da igreja cidadã não é uma nova doutrina nem invencionismo teológico, e sim uma teologia antiga que foi esquecida pela igreja dos dias atuais. Quem tem fome de Deus também tem fome de justiça! Esta é a verdade que lateja em nossa consciência moderna. Como leciona o autor desta obra, a verdade é que a igreja é a mensagem para todos os pobres: às famílias carentes que mendigam o pão; à população de rua que sofre ao relento; à prostituta que se obriga a vender o corpo para não ter que morrer de fome; aos escravos das drogas e do tráfico por não ter paz existencial; aos homens e mulheres mergulhados na violência doméstica por não terem estrutura e inteligência emocionais; aos adúlteros insaciáveis dominados por carência emocional e pela indefinição de identidade pessoal que os aprisionou numa grave pobreza de caráter; ao trabalhador que tem os seus direitos sociais negados; ao empresário desonesto escravo da ganância e de uma ambição avarenta; aos políticos corruptos que roubam o bem público por serem escravos da falta de dignidade e de uma consciência medíocre. Leia este livro com atenção, admire-o e saia das quatro paredes, dos “quartos de dormir”, antes que as pedras comecem a clamar e que os não-convidados sejam chamados para as bodas. Pr. Aguinaldo Castanheira

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Introdução Falar de cidadania no ambiente da cristandade é trazer à baila uma

espécie de teologia pública na práxis social. Mais precisamente é falar do papel social da igreja Corpo de Cristo que, na sua tarefa missionária, se autodescobriu como igreja corpo social em Cristo. É a igreja corpo social em movimento, una, perfeita em unidade ( João 17.23), identificada como sendo capaz de atuar no âmbito da realidade social, no que diz respeito às questões urgentes como a pobreza, a violência, a política, a corrupção, a cidadania, a bioética e, enfim, todas as expressões da realidade social, que contribuem drasticamente para as desigualdades sociais. No âmbito global, tudo se resume numa palavra que tem dominado a questão social na contemporaneidade, isto é, a palavra “violência” (do latim violentia, que quer dizer “opressão” e “tirania”) como revelação do mal.1 Na etimologia bíblico-hebraica, os hebreus originalmente usavam a palavra Shoah para classificar o mal como algo “terrível”, associado à intenção de eliminar da história da humanidade o povo [escolhido] da antiga aliança, assim como a intenção de eliminar Cristo [o Justo] da nova aliança. Os povos do mundo antigo praticavam violência contra os judeus na condição de povo de Deus. Os líderes religiosos e políticos dos dias de Jesus praticavam vários tipos de violência no contexto da sociedade, inclusive contra pobres, mulheres, crianças e, finalmente, contra o próprio Cristo, o maior defensor dos excluídos e das causas sociais. Portanto, 1 Ibraim Vitor de Oliveira e Márcio Antônio de Paiva (orgs.). Violência e Discurso Sobre Deus: da Desconstrução à Abertura Ética. São Paulo: Paulinas; Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2010, p. 11. Os autores abordam as circunstâncias políticas e ideológicas no contexto da banalidade do mal. “É óbvio — eles dizem — que o mal está presente em quaisquer lugares”. Eles utilizam o termo hebraico Shoah para expressar o mal como evento “original”, mas também explicam que, mesmo em se tratando de algo terrível, esta palavra não poderá ser elevada como referência “única” para a memória de todo um povo e da humanidade inteira.

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o mal, na figura das desigualdades sociais, sempre esteve presente na história da humanidade, desde os tempos remotos. Trazendo o tema para os dias atuais, temos a visão do mal social como a realidade do mundo contemporâneo e as expressões da questão social presentes no âmbito da sociedade moderna e seus males sociais. Algumas questões que se apresentam no atual cenário social levam-nos a questionar e refletir sobre o destino da sociedade e, mais além, da humanidade, e isso de modo socialmente globalizante. Nações desfeitas, dizimadas por guerras, fome e pestilência. Em diferentes partes do mundo, a miséria generaliza-se, assumindo proporções alarmantes. Trata-se de um processo historicamente desencadeado a partir de fatores econômicos, políticos, sociais, culturais e, por que não dizer, religiosos. O enfrentamento desse processo, cujas consequências alastram-se e se agigantam drasticamente, requer mudanças profundas que transformem efetivamente os indivíduos e a sociedade. Medidas paliativas e superficiais implementadas por governantes e representantes políticos omissos e descompromissados já demonstraram a sua ineficácia — a prova disso está no crescimento alarmante do desemprego, da violência, do analfabetismo e de outras mazelas sociais que expressam a degradação da vida humana. Sem contar as “guerras” de acusações por motivos político-partidários. E isso afeta gravemente a vida do cidadão comum. Diante disso, pergunta-se: qual tem sido a atuação de lideranças políticas, intelectuais e religiosas? A mesma que mereceu a censura de Jesus em referência aos escribas e fariseus (Mateus 23.1-39)? “Devorais as casas das viúvas, sob pretexto de prolongadas orações...” (Mateus 23.14). Esta foi uma provocação de Jesus para o mundo dos seus dias e que hoje é algo ainda muito real. Naquela época, as viúvas, bem como os órfãos, representavam um dos segmentos mais vulne16


rabilizados da população pobre, aos quais deveriam ser destinadas ações estruturantes de proteção social.2 O desenvolvimento das sociedades e a sua complexidade em diferentes áreas (econômica, política, cultural, intelectual, religiosa) assentam-se no aprofundamento de um fosso de desigualdades que tem gerado inúmeros contingentes de “viúvas” e “órfãos” destituídos dos direitos mais elementares necessários à vida digna: moradia, trabalho, educação, saúde, alimentação, etc. Em diversas nações, os números aumentam. O que dizer do Brasil, onde os desfavorecidos somam cerca de 50 milhões (ou mais), de acordo com estatísticas divulgadas pelos diversos meios de comunicação? O Brasil campeia os primeiros lugares em termos de desigualdades e concentração de renda.3 A corrupção sufoca a dignidade e os direitos sociais de toda a nação. E o que nos diz a Palavra de Deus a esse respeito? Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos (Tiago 5.4 — RA).

E esse clamor Deus tem levado à sua igreja (em diferentes denominações). Deus tem, também, clamado pela justiça de seu povo. Esse clamor expressa-se no olhar de cada criança na rua a mercê 2 Sendo uma instituição social, a igreja pode desenvolver vários programas de desenvolvimento sustentável, administrando projetos sociais junto a comunidades carentes. Algumas igrejas criam associações ou fundações para facilitar o seu trabalho social e a captação de recursos nacionais e estrangeiros. No nosso caso, criamos em 1997 o Instituto de Pesquisa Ensino e Ressociabilização (IPER), que viabiliza a busca de projetos sociais para implementar em comunidades carentes a ressocialização de drogados, prostitutas e outras iniciativas. Isto resultou, em 2008, na criação do Projeto Nova Alcântara, no qual hoje trabalhamos com Educação do Campo em regime de colaboração com o governo do Estado. 3 Estudos mostram que a concentração de renda no Brasil é o principal fator gerador da pobreza. Não havendo distribuição de renda adequada, o dinheiro da população fica acumulado nas mãos de apenas 10% dos habitantes, representados pelas classes dos políticos, empresários e funcionários de alto escalão. Somados a isso, vêm os impostos que, por serem muito altos, agravam a situação da população de baixa renda, impedindo condições econômicas administráveis.

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da criminalidade e da prostituição, no desespero de pais e mães de família desempregados e sem qualquer fonte de renda. Se expressa, ainda, no abandono e na luta dos sem-teto e sem-terra que, sem horizonte de justiça, buscam um “cantinho” em algum lugar do país para repousar sua luta e poder ganhar o pão para sustentar sua família de forma digna e honesta. O mundo, historicamente, desenvolve-se e se moderniza à custa da exploração, da espoliação e da exclusão. E o que fazer? A Palavra de Deus afirma, exortando-nos: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.2). O texto evidencia a necessidade de um novo entendimento, de uma nova concepção que fundamente a construção de um novo mundo, isto é, de um novo reino onde impere a vontade de Deus com seu poder e sua sabedoria. Neste sentido, indagamos: e a igreja? Qual tem sido a sua atuação na construção do reino de igualdade e justiça? Reservamo-nos a ousadia de algumas considerações críticas. Quantos recursos investidos na construção de templos e concessão de privilégios para lideranças quase sempre inoperantes! Não seriam mais bem aplicados na recuperação de vidas estraçalhadas pelos efeitos da fome e da miséria, na restauração dos “verdadeiros templos” do Espírito Santo? Jesus afirmou: “Derribai este templo, e em três dias o levantarei” ( João 2.19). A limitada compreensão humana associou o Templo com a imensa construção de pedras que levara anos para ser edificada. Jesus referia-se, porém, ao seu corpo: Templo perfeito do Espírito Santo, morto e ressuscitado em três dias a fim de nos resgatar para a verdadeira vida. “Eu vim para que tenham vida e a tenham com abundância” ( João 10.10). Vida com abundância é o mesmo que vida plena, digna em todos os sentidos. É vida com liberdade para viver e liberalidade para ser. 18


Observamos assim que o Templo Verdadeiro é o Corpo de Cristo, e quem renasce em Jesus torna-se templo verdadeiro, templo de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo: “Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo” (1Coríntios 3.16,17). A Palavra é clara e leva-nos a refletir sobre os milhares de templos de Deus que vêm sendo destruídos em todo o mundo, em função da cobiça, da ganância, do egoísmo e da obediência cega a dois perigosos deuses: o dinheiro e o poder. Em tese, a justiça de Deus, por ação do Espírito Santo que habita no cristão consciente de seu papel, clama para a reversão desse quadro, impelindo a igreja a refletir sobre o verdadeiro sentido de sua missão, sobre o conteúdo de sua evangelização. Para tanto, até que ponto ela entende o seu papel (ou missão) de agente social entre Deus e os homens? Será que a igreja tem noção de sua alta responsabilidade e que essa responsabilidade deve ser socializada em um contexto de justiça e igualdade, no âmbito das necessidades humanas? É o que tentaremos mostrar neste trabalho de reflexão socioteológica. A igreja, bem como a sociedade de modo geral, tem presenciado e vivido momentos de fortes e históricas conturbações, tanto no âmbito sóciopolítico-cultural quanto no religioso. A espiritualidade do homem na modernidade anda notadamente esgotada.4 Isso se deve, entre outros fatores, à decadência moral daquele que se diz racional: o ser humano, no seu complexo universal. 4 Malcolm Smith. Esgotamento Espiritual: Quando Fazer Todo o Possível Não é Suficiente. São Paulo: Vida, 1991, p. 9. O autor diz que “esgotar-se espiritualmente é coisa que ocorre à semelhança do que está acontecendo no mundo secular”. Ele explica que viver mediante regras e ritos não é ser cristão; é ser religioso. O Evangelho não é uma religião que dependa de fórmulas para barganhar favores divinos. O Evangelho é relacionamento dinâmico com Deus por meio de Jesus Cristo.

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Diante disso, restam-nos algumas interrogações. Que espírito animará o brasileiro no século xxi? Estará ele disposto a rever conceitos? A reformular pontos de vista? A reconquistar a dimensão espiritual de sua existência que a competição e o individualismo da sociedade moderna acabaram por lhe roubar? Acreditará ele que a sociedade do futuro não se assentará em bases puramente materialistas, mas em uma junção de esforços em que os valores do espírito terão papel significante? Dentre as respostas a tais questionamentos, apontamos a atuação da igreja como parte da sociedade consciente e planificada por Deus, a qual deve planejar a evangelização dos povos sob uma perspectiva diferenciada, avançada e coerente com as questões que se colocam à sociedade. Deve ter consciência de que a expressão “Reino de Deus” vai além de pregar e orar. É de fundamental importância, pois, que a igreja assuma a sua posição dentro da sociedade organizada e inicie um programa de superação das injustiças e desigualdades, com base nos critérios da Palavra de Deus. É preciso mexer nas estruturas sociais — provocar o impacto que o poder da graça, ou do Evangelho, possa causar nos segmentos geralmente manipulados por interesses espúrios — a partir de uma mentalidade que se digne promover a evangelização do futuro mediante uma interpretação dos caminhos da consciência humana na avidez de compreender a si mesma para, então, compreender os rumos da própria existência. A evangelização moderna ainda tem muito que aprender de Jesus, com base no que Ele ensinou nos Evangelhos, durante a sua caminhada entre os homens na Terra. Isso no sentido coletivo: alguém vendo o “outro”, este vendo o “outro” e esse “outro” vendo as necessidades daquele “outro” (Mateus 7.12). Assim, é preciso entender que todos devem trabalhar em função de todos, isto é, do bem comum. E essa conscientização “para o coletivo” é também tarefa da igreja. 20


O homem é um ser de relações, portanto é coletivo.5 A igreja se faz com e pela coletividade dos homens. Não há igreja-comunidade sem relacionamento. Neste livro, a nossa contribuição apóia-se no argumento exposto acima. Digo contribuição porque, ao ler esta obra, penso que o leitor estará mais apto a compreender a fé e a exercê-la, utilizando o conhecimento obtido para recuperar vidas no sentido de serem integradas no Reino do Deus Todo-Poderoso, o Criador do ser humano em sua complexidade existencial.

Questões para reflexão em grupos de estudo 1. Que pontos em comum existem nas relações da cidadania com as

políticas públicas e sociais? A teologia pode manifestar interesses neste campo e criar uma tendência que pode ser chamada de teologia publica?

2. Como se podem avaliar as desigualdades sociais do ponto de vista

econômico, político, cultural e religioso?

3. Trace um paralelo entre igreja, igualdade, justiça e cidadania.

4. A igreja atual tem sido uma instituição conscientemente partici-

pativa?

5. A evangelização é uma atividade coletiva. Por quê?

5 O homem é um ser de relações porque é um ser socialmente antropológico e, portanto, dotado de costumes, crenças, comportamento e organização social. Isto faz com que ele seja totalmente dependente de relações com o outro. Daí porque se diz que a antropologia — estudo e reflexão acerca do homem — é a ciência do outro.

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Capítulo 1

A CIDADANIA NO CONTEXTO DA PRÁTICA TEOLÓGICA PÚBLICOSOCIAL

A teologia moderna tem seguido itinerários históricos que têm

vislumbrado profunda evolução e experiências nos últimos tempos num ritmo que nos têm levado a novas e profundas transformações, numa perspectiva de futuro em que a própria evolução da sociedade e da humanidade global nos impulsiona para uma transformação incessante. A ideia de teologia pública parte de uma visão inspirada na teologia planetária e academicista que toma pé a partir do fim do século XX e início do século XXI. O teólogo David Tracy, em sua obra A imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo,6 ressalta a necessidade da teologia cristã para a cultura do pluralismo. Tracy divide a teologia em três grandes áreas e direciona a interpretação dos “clássicos religiosos cristãos” aos públicos teológicos, conforme podemos ver a seguir: • Teologias fundamentais. Estas teologias estão relacionadas ao público universidade, exatamente por conter um discurso acessível a todas as pessoas e por vislumbrar um apelo à experiência e à racionalidade acadêmica. • Teologias sistemáticas. As teologias sistemáticas estão representadas — porém, não esgotadas — pelo público igreja. Isto ocorre, 6 David Tracy. A Imaginação Analógica: a Teologia Cristã e a Cultura do Pluralismo. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2006.

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segundo o autor, pelo fato de a igreja reinterpretar o poder revelador da tradição cristã. • Teologias práticas. São as teologias relacionadas ao público sociedade, obviamente por propor a práxis social como um critério para o sentido de verdade e a prática da justiça em relação aos homens que sofrem os males sociais no mundo. As teologias práticas, portanto, dialogam com a sociedade no quesito “expressões da realidade social”. Nesta linha de raciocínio, Tracy entende o pluralismo como um enriquecimento fundamental da condição humana, ao afirmar um pluralismo que, responsavelmente, “deve incluir a afirmação da verdade e dos critérios públicos para tal afirmação”.7 Por conseguinte, a maneira como Tracy sustenta a afirmação da verdade é formulada de uma maneira em que o autor considera como pano de fundo do problema para a teologia o discurso sobre a natureza e a realidade de Deus que deve desenvolver critérios e discursos públicos, e não privados (no sentido de particularizados ou internos). Assim, segundo o autor, o caráter público que a teologia deve alcançar precisa falar “de” e “para” três públicos: o público igreja, o público universidade e o público sociedade. Trata-se, portanto, de uma intuição planetária que inspirou e guiou a pesquisa teológica e a conduziu a um debate não só universitário, mas também sociológico em relação às expressões da questão social contemporânea, como as desigualdades e a práxis da justiça social no combate a elas. E aqui cabe a discussão a respeito de uma igreja cidadã. No Brasil temos um fato recente. Foi num momento oportuno — basicamente em 15 de março de 1999 — que o Conselho Nacional de Educação (CNE), por meio do Parecer CES 241/99, aprovou o reconhecimento dos cursos teológicos, embora preservando a 7 Idem, p. 11-12.

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Capítulo 1

histórica realidade da separação entre igreja e Estado. Percebeu-se que a partir daí os serviços da igreja no campo social ficaram mais evidentes, embora no âmbito geral, a igreja ainda continue com um nível de inércia elevado no que concerne a práxis do Evangelho social. Todavia, não se pode negar o papel social da igreja no que diz respeito ao ponderamento da sua praticidade sobre questões urgentes no âmbito da política, da cidadania, da bioética, do meio ambiente, do desenvolvimento urbano e rural, e assim por diante. Portanto, as discussões a respeito de uma igreja cidadã, uma espécie de teologia pública prática, requer de nós, a igreja, uma reflexão mais aprofundada que vá além daquilo que é meramente técnico e/ou meramente religioso. Uma enérgica discussão sobre a práxis teológico-social será tanto mais salutar e benéfica quanto maior foi o seu reconhecimento em termos de estudos e pesquisa acadêmica como contribuição crítico-construtiva aos grupos acionários no campo das atividades sócio-evangelizacionais. Desta maneira, a conquista do lugar público por parte dos operadores do Evangelho cristão no espaço prático-social levou o saber cristológico à legitimidade do reconhecimento teológico, conduzindo-o da esfera científica ou epistemológica para o espaço político e prático-social. A partir de uma sequência de pregações que fiz sobre o fazer da igreja no âmbito da cidadania, foi possível pensar numa discussão de cunho teológico-prático que não permanecesse restrita a membros de igreja e/ou aos gabinetes e salões eclesiais, destinada ao consumo interno dos sujeitos religiosos. Assim como a sociologia e outras ciências sociais e humanas, a teologia deveria se prestar para alguma coisa que viesse contribuir, ao lado de outras áreas do conhecimento, para a transformação da realidade social. Ela precisa construir um caráter acadêmico, político e público de modo a não perder de vista sua visibilidade espiritual. Além disso, a teologia serve de fonte de apoio para outras ciências nas suas mais variadas especializações e aplicações metodológicas. Ela pode dialogar “com” e servir “de” 25


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apoio para a sociologia, para a antropologia, para a psicologia, etc. Nessas relações de áreas do conhecimento há um diálogo possível e, portanto, uma contribuição no que concerne aos problemas sociais e existenciais do ser humano. Por conseguinte, a teologia (ou conhecimento teológico) hoje não é apenas “coisa de igreja”, mas uma área do conhecimento que ajuda a desvendar os problemas existenciais da humanidade, inclusive no âmbito da cidadania. Em boa parte dos países ocidentais a teologia ficou fora das instituições acadêmicas que, desde o iluminismo, têm sido reconhecidas pelo Estado como necessárias para a organização e o desenvolvimento das sociedades. Mas, isso deveu-se ao fato de a igreja medieval ter dominado o conhecimento com a sua teologia de repressão e cegamente dogmática, controlando e proibindo todo tipo de estudo científico e sua produção no mundo. O que parece é que os revolucionários do mundo científico se vingaram da igreja — por causa do que ela fez no período medieval — criando novas ciências e evitando qualquer tipo de influência metafísica e teológica. Logo, a revolução do conhecimento deixou de fora do espaço acadêmico a teologia e suas tendências de conhecimento sobre a verdade absoluta. Todo conhecimento agora precisa passar pela comprovação dos métodos científicos. A verdade teológica, a partir de então, não tem valor científico, haja vista que não tem como comprová-la. Assim, a igreja não teria mais chance de impor suas dogmáticas e dominar o mundo. No entanto, o mundo mudou e a teologia tem ganhado novos rumos e percorrido novos caminhos. Seu objeto de estudo, agora, já não é apenas com relação às questões verticalistas referentes à divindade, mas também às relações horizontais a partir do conhecimento do sagrado e a ação interventiva de Deus no mundo por meio dos homens que o buscam e pregam seus valores éticos e morais. Agora, no contexto mundividente, a teologia já tem uma lógica social no seu discurso sobre a sua visão de mundo e de sociedade. 26


Capítulo 1

No mundo atual, seus estudos sobre questões referentes ao conhecimento do sagrado e de seus atributos incluem suas relações com o mundo de “coisas” e com os homens que protagonizam sua evolução. A verdade teológica, portanto, já não é meramente religiosa e/ou meramente dogmática, mas um conjunto de estudos sistemáticos contributivos com as transformações da realidade social. Temas como ecologia, educação, pobreza, desemprego, violência, saúde, família, sexualidade, modernidade, geração de renda, desenvolvimento e outros estão cada vez mais presentes nos debates cristãos e constituem-se temas do discurso teológico no diálogo da igreja com a sociedade. E mais: estes temas transformam-se em atividades práticas dos movimentos de Eclésia social no seu esforço por corrigir deformações sociais no âmbito da realidade social no que diz respeito a suas expressões e todo tipo de desigualdades.

1. Teologia, cidadania e as expressões da questão social contemporânea As evidências das desigualdades sociais como a marginalidade, a violência, a pobreza, o analfabetismo, o desemprego, o aborto, a má distribuição de renda e, enfim, tantas outras mazelas sociais, são expressões da questão social contemporânea que afligem profundamente a sociedade humana do século XXI. São expressões da realidade social que interessam à esfera pública. Todas essas expressões, em conjunto, formam uma realidade banal do mal social, que é um conjunto de fatores degradantes da sociedade. De acordo com um pensamento antigo dos neoplatônicos e assimilado pelo cristianismo na época de Agostinho, o mal é a privação do bem. Tomás de Aquino também assimilou esta ideia e tentou combater o mal social criando a teologia social da igreja, conhecida como tomismo e mais tarde desenvolvida pelos seus seguidores teóricos com o nome de neotomismo. 27


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Todo o problema do mal social, na sua forma mais simples, parte do postulado de uma tendência contínua para o aumento das desigualdades sociais. De fato, a má distribuição de renda e da riqueza gera profundas fraturas sociais e, consequentemente, aumenta o problema das desigualdades e, portanto, da marginalidade.8 Ocorre que a igreja, com o conhecimento e o público que ela tem, pode entrar na luta para corrigir estas fraturas sociais. E o instrumento para isto é a sua teologia. Surge, então, uma espécie de teologia pública prática no tecido das relações igreja-sociedade. Diríamos, pois, que a igreja é o agente de transformação. A teologia pública prática é o objeto de debate para gerar transformação. O homem, inserido e organizado em grupos sociais, é o sujeito alcançado por esta transformação. E o resultado de impacto, finalmente, é a própria transformação, como redução das desigualdades. Diante do quadro das expressões da questão social contemporânea e, portanto, das desigualdades sociais, a igreja com sua teologia atuando no espaço público entra em ação com sua atitude de ressignificação da assistência sócio espiritual às pessoas que sofrem não só com o mal do pecado, mas, também, com a consequência do pecado, isto é, com o mal da realidade social. As expressões da questão social, portanto, são consequência natural do pecado [mal social] no mundo. Existem, aí, fatores que podem levar a uma tendência a longo prazo no sentido da equalização da dinâmica social. Ou seja, menor proporção de pessoas sem condições de acesso a um nível de vida econômico satisfatório, bem como outras mudanças na 8 Em minhas palestras nas igrejas e no meio universitário, tenho dito que concordo com Dermeval Saviani quando diz que a marginalidade é, de fato, um fenômeno acidental que afeta individualmente a um número maior ou menor dos membros da sociedade o que, no entanto, constitui um desvio, uma distorção que não só pode como deve ser corrigida. A evangelização, assim como a educação, emerge aí como um instrumento de correção dessas distorções. Constitui, pois, uma força homogeneizadora que tem por função reforçar os laços sociais, promover a coesão social [com o senso de convivência comunitária] e garantir integração e reintegração de todos os indivíduos no corpo social de Cristo: a Igreja do Senhor.

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Capítulo 1

estrutura sócio ocupacional, a diminuição nas diferenças de renda, sexo, idade e questões de natureza racial. Também se leva em conta um aumento na progressão dos índices das diferenças econômico-sociais. Como a igreja, com sua teologia social, vai lidar com estas questões? No aspecto socioeconômico, por exemplo, os efeitos redistributivos são limitados pela importância contínua das formas não progressivas de incidência do desenvolvimento. Os efeitos desses e de outros fatores sobre a situação social das pessoas na sociedade contemporânea não parecem ter sido suficientes para eliminar outros fatores que operam na direção oposta. A igreja, na práxis teológica, deveria e deve suscitar debates a respeito de questões sociais e cidadania como a política do idoso, da criança e do adolescente; os danos ecológicos e ambientais, a questão da mulher, da pobreza,9 das drogas, da má distribuição de renda, do desemprego e, enfim, das desigualdades sociais em todos os níveis. Por conseguinte, as desigualdades entre classes e profissões inspiram uma certa interpretação à adaptação da tese geral a respeito da dissolução da estrutura de classes. O descaso da igreja a respeito dessas questões seria completamente incorreto e injusto. Numa perspectiva sociológica moderna, as desigualdades em sua natureza social evidenciam tendências diversificadas, dentre as quais algumas se reduzem enquanto outras, ao contrário, se intensificam e se alastram. Tal dinamicidade não é simples consequência do fenômeno da globalização e da pós-modernidade, mas, de fato, ela se encontra no centro de nossa vida social e de suas tensões 9 O teólogo brasileiro Leonardo Boff (Cristianismo: O Mínimo do Mínimo, PetrópolisRJ: Editora Vozes, 2011, p. 95), na sua teologia da libertação, afirma categoricamente que, partindo dos mais oprimidos e marginalizados, Jesus comparece como libertador. Os pobres e oprimidos são os privilegiados do Reino de Deus. Isso se deriva, diz ele, “da essência do próprio Deus que, sendo vida, sente-se atraído por aqueles que menos vida têm porque, pela opressão, a vida lhes é negada”.

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em âmbito antropossociológico. Faz-se necessário, por conseguinte, também situá-la na experiência dos atores sociais para que, a partir daí, se possam tirar algumas conclusões no âmbito da análise teológico-sociológica. Em síntese, a crítica teológico-sociológica, que se pode fazer, tende a provocar a visão cristã no sentido de que é preciso transformar as desigualdades num objeto sociológico e/ ou num objeto de teologia político-social, já que, nesse campo, a relação com os valores sociológicos e com a política sempre está visivelmente presente nos discursos das teorias sociológicas e agora nos discursos da teologia pública e social. Como a igreja vê, por exemplo, a questão da pobreza? A pobreza é, em essência, um fenômeno presente em todos os países da América Latina. Um fenômeno que gera outros fenômenos de degradação social. No Brasil, o fenômeno da pobreza alimenta outro fenômeno socialmente degradante, que é o fenômeno da violência, o qual está impregnado na cultura social, na educação, na comunidade da periferia, na área urbana mais desenvolvida, nas comunidades campesinas, nas instituições, nas ideologias e, finalmente, na política. Ou seja, a violência acaba se consagrando como cultura social na esfera humana da vida. E o que a igreja, como agente da justiça e do amor de Deus, pode fazer? O peso da pobreza, numa definição contemporânea do termo, passou progressivamente para as extremidades da vida da classe trabalhadora e da classe média de baixa renda. Todavia, continua sendo um problema das classes em geral. Umas como protagonistas e vilões, outras como vítimas. Portanto, tanto a pobreza quanto a violência são um problema de todos e que afeta a todos. A pobreza, na sua extremidade, gera violência e a violência, na sua expressão sociológica, alimenta a pobreza. E o que a igreja pode e deve fazer? 30


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A disparidade das expressões da questão social contemporânea, enfim, é mantida em parte devido ao descaso das instituições sociais, entre elas o governo, a sociedade civil e, em particular, a igreja. Isto é, a igreja na condição de organização social-espiritual é, portanto, agente de transformação da realidade assim como a escola e a família. Neste momento histórico, consigo pensar em teologia pública prática como a construção de um efetivo discurso social para a igreja na América Latina. Um discurso que, na práxis social, pressupõe a definição de estratégias político-sociais capazes de contemplar não somente as desigualdades sociais nas suas diversas dimensões e níveis, mas também os segmentos que compõem a sociedade como um todo, com as suas necessidades específicas de mudança e transformação. Uma característica fundamental, substantiva e procedimental nestas estratégias é o reconhecimento da responsabilidade conjunta dos institutos sociais, face ao Estado, na sequência das organizações sociais no atendimento à multiplicidade de demandas no âmbito da sociedade contemporânea com todos os seus problemas. Nesta perspectiva, é de grande importância a sinergia entre esses institutos e instituições da sociedade civil no caminho da desejada transformação da realidade em relação às desigualdades sociais, com base no reconhecimento do diferente e da diversidade como riquezas a serem exploradas e não como “uma coisa” a ser meramente observada, negada ou marginalizada. Neste mesmo prisma, é fundamental compreender, do ponto de vista da teologia pública prática, a importância de desencadear amplo movimento capaz de dinamizar os discursos teóricos e as qualificações que existem nesses diferentes espaços e de criar redes de interação social que as façam saltar do nível potencial discursivo para o nível real estratégico. Organicidade dessa natureza exige visão e resultados de impactos políticos que traduzam entendimento estratégico das medidas capazes de promover a transformação social pretendida e planejada, 31


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sendo possível converter em ação concreta a decisão de parcela significativa dos principais atores sociais da sociedade em geral, dentre eles a igreja de Jesus com sua práxis teológica. Este entendimento é extremamente necessário, embora nem sempre consensualmente obtido. É um processo de reengenharia que exige análise das propostas originadas dos diversos grupos de interesses e opiniões que definem os conteúdos programáticos a serem efetivamente articulados. Além disso, é precípuo que isto seja submetido democraticamente à análise coletiva nos espaços de inserção social em que, enfim, formam-se consensos em torno das demandas sociais e necessidades de mudança e transformação. Como práxis teológica, portanto, entendo ser este o papel da igreja na qualidade de Corpo de Cristo e, ao mesmo tempo, corpo social em Cristo, sendo assim agente de transformação.

2. A prática teológica e as desigualdades de oportunidade Não se pode negar que um dos principais temas contemporâneos com os quais a igreja tem de lidar é o fato de que as sociedades ocidentais estão adquirindo uma fluidez cada vez mais crescente. A ciência e a técnica crescem numa proporção que nos leva a acreditar que a diferença econômica e outras diferenças, entre os estratos sociais, é apenas um detalhe que está se tornando menos nítido. No entanto, pressupõe-se que o movimento entre essas posições seja mais frequente e a oportunidade para esse movimento seja distribuída com maior igualdade. Faço parte da igreja evangélica desde 1983 e nunca vi este segmento da igreja cristã inserido nos debates sobre temas sociais relevantes. No entanto, sempre defendi e continuo defendendo a ideia de que a igreja deva ter uma ideologia fundamentada nos princípios da justiça de Deus, pregados por Jesus no Sermão do Monte, e assim 32


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possa contribuir com a luta em favor da distribuição de igualdade de oportunidades. Falo de ideologia no sentido de que a igreja — corpo social em Cristo e, portanto, Corpo de Cristo — tenha uma predisposição para formação e debate das ideias em termos de convicções e convenções políticas e sociais, e não de qualquer outra coisa que não seja isto tão somente. Dizem que a “homogeneidade interna, as características distintivas e o caráter hereditário da classe trabalhadora estão se enfraquecendo à medida que os indivíduos adquirem a posição de classe em vez de herdá-la, e, bem assim, o crescimento contínuo do número de empregos qualificados abre novas vias de acesso para a mobilidade social ascendente”.10 No entanto, as evidências são frágeis, embora afirmativas desse tipo sejam comuns na natureza dos debates contemporâneos. Até mesmo nas análises sócio-políticas gerais vemos cientistas sociais fazendo esse tipo de afirmação, no papel de especialistas técnicos. Como jornalista e cientista social, observo que a evidência contradiz definitivamente algumas das proposições da tese mencionada acima. Há muitas dúvidas nesse cenário. Como igreja, entendemos que as disparidades totais na oportunidade de ascensão e descensão sociais é uma questão de compreensão da justiça de Deus. A teologia social da igreja, uma vez atuando no espaço público, criaria a possibilidade de filhos de pessoas pobres conseguirem status profissional, em igualdade de oportunidade, de modo a assumirem igualmente o seu direito de serem cidadãos e, portanto, de exercerem seu direito de cidadania no espaço social. Se a igreja exercer seu papel político — não estou falando de política partidária, mas, sim, de política participativa — como instituição consciente do seu significado social, será plenamente possível um filho da quebradeira de coco babaçu do interior do Nordeste, por 10 J. H. Westergaard. Sociologia: o Mito da Ausência de Classe. In: Robin Blackburn. Ideologia na Ciência Social. São Paulo: Paz e Terra, 1982, p. 119.

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exemplo, se tornar um médico ou um advogado de sucesso, profissões que, na ideologia do sistema dominante neoliberal, sutilmente só são possíveis de serem exercidas por filhos de burgueses — isto é, dos membros da classe dominante.11 Neste sentido, uma teologia pública prática constitui-se instrumento adequado e necessário no combate às expressões da questão social por parte da igreja. Num justo reconhecimento de causa, a Igreja Católica é a única igreja cristã que se vê inserida no mover social em relação aos fatos sociológicos que afligem a humanidade. Como instrumento de ação ao debate das políticas públicas e sociais, a teologia social pública constrói seu discurso a partir dos fatos e dados sociais como, por exemplo, a distribuição das oportunidades de condições no prisma das tendências de mobilidade social nos âmbitos da educação, da saúde, da assistência, das políticas sociais, da questão agrária (cujo foco é o homem do campo) e de outras que também sugerem a perspectiva de transformação e alterações significativas para o futuro. Nunca vejo a igreja como uma instituição fora do contexto de luta pelas transformações sociais. Eu a vejo sempre como uma organização agente de mudança e transformação. As intervenções na realidade social, por parte da igreja, sempre caminham no sentido das mudanças e/ou transformações na política social em geral que podem resultar de vários relatórios e estudos comparativos nos âmbitos local, regional ou nacional. Assim, as desigualdades sociais estarão sendo combatidas por meio das políticas públicas e sociais protagonizadas pela práxis social da Igreja de Jesus Cristo. Ela sempre será um “corpo transformador”, “um corpo em transformação” e “um corpo em movimento”. Os planos, programas e projetos da 11 Os dominantes são os que detêm o “poder político”, o “poder econômico” e o “poder intelectual”. Isto é, os governantes, os altos executivos, os grandes empresários e os grandes produtores de conhecimento e informação (como, por exemplo, escritores, jornalistas, juristas, donos de grandes editoras, grandes comunicadores e os proprietários dos grandes meios de comunicação).

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igreja sempre serão construídos no sentido de desempenhos relativos aos sistemas sociais. A profundidade desse processo de instrumentalidade da práxis social da igreja, por via da teologia pública e social, vai variar conforme a geração de novas formas de implementação das proposições efetivas da igreja nas estruturas da esfera social. Isso nos desafia à participação nos serviços de intervenção social nas desigualdades sociais. A luta pela redução das desigualdades como resultado do trabalho efetivo da igreja, enfim, daria à sua imagem institucional um caráter mais pedagógico no processo de intervenção na realidade social.

3. A igreja a serviço da política e a política a serviço da igreja Quando o meu editor em São Paulo, Magno Paganelli, propôs o desenvolvimento deste tema a respeito do livro a Igreja Cidadã (2007), pensei em alguns objetivos que poderiam ser atingidos a partir de uma discussão efetiva a respeito da tarefa da igreja no campo social, que seria basicamente uma espécie de teologia pública prática. Então, imaginei na seguinte sequência: (1) método de analise, (2) conceitos centrais, (3) sujeitos e atores sociais, (4) influências e relações de convivência comunitária, (5) desafios e processos politizados, (6) apropriação do conhecimento objetivo e subjetivo. 3.1. Método de análise A primeira coisa que é preciso imaginar no tema que discute a cidadania como teologia pública prática é o método de estudo, em que se podem adquirir os fundamentos teológicos e metodológicos de uma análise das políticas de estratégia e ação da igreja. Então, aqui se deve pensar numa dialética social voltada para o cenário da 35


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pesquisa e do debate no cenário social da cristandade. E este é o método. Logo, a ideia de atividade da igreja — por meio de planos, programas, projetos e ações estratégicas — levou-nos a pensar numa metodologia de planificação na busca de resultados satisfatórios. 3.2. Conceitos centrais A discussão teológica no espaço público e, portanto, no contexto da cidadania, busca familiarizar-se com os conceitos centrais, concepções teóricas e paradigmas das políticas sociais, enquanto políticas públicas no universo da sociedade no seu amplo sentido e significado. Daí se extrai os conceitos centrais, que são elementos em que há uma tendência de os indivíduos se considerarem fundamentalmente iguais, podendo legitimamente reivindicar, enquanto cidadãos, a igualdade de oportunidades e de direitos. Estas reivindicações são capazes de reduzir as desigualdades reais. Nesta compreensão, a igualdade é um valor significativo e as desigualdades são variáveis injustas — ainda não definidas ao certo — que aparecem como um escândalo e/ou como verdadeiros fantasmas sociais. 3.3. Sujeitos e atores sociais Quem discute a teologia no espaço público — enquanto instrumento de debate e participação no processo de transformação da realidade social — busca conhecer as pessoas, isto é, os indivíduos na qualidade de sujeitos de direitos e atores “das” e “nas” políticas sociais. O homem, enquanto ser social, transforma-se (na sua individualidade) e transforma (na horizontalidade) na medida em que ele atua com a sua racionalidade objetiva.

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3.4. Influência e relações de convivência comunitária Enquanto área de conhecimento universal, a teologia pública procura compreender a influência das dimensões interacionais das políticas institucionais, bem como as relações dinâmicas entre as instituições sociais comunitárias que caminham na direção de uma sociedade harmoniosa na qualidade de campo de atuação. (Sim, as comunidades humanas são campo de atuação da igreja). De modo geral, nas sociedades pós-modernas, o relacionamento entre os indivíduos está se tornando cada vez mais complexo. As tecnologias modernas têm roubado das pessoas a capacidade de se relacionarem harmoniosamente. Nunca os homens tornaram o relacionamento tão escasso como na história humana atual. O mundo atual é um mundo de violência e de mal-entendidos que se opõe à esperança posta por alguns no progresso da humanidade. O mundo dos humanos sempre foi conflituoso, mas em nossos dias há novos desafios para a igreja se preocupar, colocando-os no seu projeto de debate evangelizacional. Na verdade, a evangelização nada mais é senão um convite para a convivência comunitária, isto é, um chamado para se viver a experiência profunda de relacionamento. Nada mais é senão uma absoluta comunhão vivenciada em coletividade. 3.5. Desafios e processos politizados A igreja, praticando a teologia no espaço público como instrumento de debate e ações estratégicas, precisa dominar os desafios políticos da sociedade no contexto contemporâneo da globalização e da pós-modernidade. Neste ponto, convém ver que as forças de mercado — tanto no sentido capitalista como no aspecto de produção científica — afetam a igreja de diferentes maneiras. Supõe-se que os mercados globais registrem a operacionalidade coletiva nos processos de desenvolvimento, diversificando o cenário político drasticamente. A igreja, querendo ou não, está envolvida nesse pro37


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cesso. A única maneira de superar pontos negativos em relação a isso é se envolvendo no debate político e social. Não para tirar vantagens de políticos e da política, mas para que ela se torne participativa cultural e socialmente e, assim, vislumbre uma certa facilitação no processo de macro-evangelização e sociabilidade estrutural. Afinal de contas, a igreja é composta por cidadãos e cidadãs civis que participam civilmente da vida em sociedade atuando como pessoas de direitos e deveres sociais. 3.6. Apropriação do conhecimento objetivo e subjetivo A própria igreja é instrumento de transformação. Quando ela evangeliza um criminoso, por exemplo, e este aceita a fé cristã, é realizado todo um trabalho educativo e de ressocialização desse sujeito alcançado. Ele, então, se regenera e se reintegra socialmente. Ao fazer isso, a igreja está realizando o seu papel de agente de transformação social. Por isso ela precisa se apropriar dos conhecimentos centrais da realidade social, tais como: política, descentralização, governança, padrões educacionais, violência, questão agrária, ecologia, meio ambiente, população de rua, prostituição, corrupção, família, desenvolvimento social, poluição, lixo urbano e reciclagem, pobreza, desemprego etc. O conhecimento [objetivo e subjetivo] é uma poderosa arma que pode ser utilizada pela igreja no combate aos males sociais. O século XX teve o poder de construir um extraordinário potencial de autodestruição em todos os aspectos: do ético-juridicismo ao econômico-social. Entramos no século XXI com um punhado de interrogações e conflitos para resolver. Se não mantivermos o equilíbrio espiritual entre verticalização e horizontalização, dificilmente, como igreja, conseguiremos superar os desafios existentes no mundo atual. O conhecimento [intelectual-espiritual] é o alicerce da estrutura do poder de ação da igreja no cumprimento da sua tarefa espiritual social. Do contrário, a igreja será apenas uma 38


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observadora impotente e até refém dos que criam ou detêm o poder dominante. Como disse Dermeval Saviani, “dominar o que os dominantes dominam é questão de libertação”.12 E o que os dominantes dominam? Obviamente, é o conhecimento. Tais pontos vislumbram uma análise que mira as influências interacionais no cenário das políticas sociais no que concerne a importância de se definir a noção de política do ponto de vista da teologia. É isto que a torna efetivamente e de fato uma teologia atuante no espaço social e público. Em que tal noção, por parte da igreja, poderá ser definida como um conjunto de discussão que precede um também conjunto de decisões explícitas ou implícitas. E que, por conseguinte, podem incluir orientações que possam definir decisões futuras, projetar ou condicionar ações e, portanto, orientar a execução de decisões no contexto do mover-se da igreja na qualidade de “Corpo de Cristo” e “corpo social”. Isto significa que a igreja tem compromisso — e sério — com as políticas sociais e públicas. Não como partidária, mas como organização social religiosa, a igreja poderá estudar, pesquisar e propor leis junto aos legislativos. Ela, por meio de suas associações e fundações, tem direito ao acesso a recursos públicos para patrocinar suas ações no campo da sua prática social. Basta, para isso, que ela esteja organizada jurídica, institucional e socialmente. A igreja organizada e politizada tem controle de execução no que concerne à sua administração e gestão das suas instituições sociais, inclusive na área de educação, saúde, assistência, meio ambiente e agrodesenvolvimento. Se a igreja está consciente e socialmente organizada, ela vai entender que deve ter boas relações com a economia de mercado e com a sociedade civil por um viés de coordenação e articulação das políticas de atividades sociais. 12 Dermeval Saviani. Escola e Democracia — Teorias da Educação e o Problema da Marginalidade. São Paulo: Cortez Editora, 2004.

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Uma possível maneira de abordar as políticas de atividades sociais consiste exatamente em fazer a distinção entre os níveis de ação e de complexidade da práxis socioevangelística da igreja. Atuando com sua teologia no espaço público, a igreja poderá, então, distinguir as políticas religiosas e sócio institucionais voltadas para o nível estratégico, para o nível de planos, programas e projetos em questões sociais específicas. Nisto surgem algumas perguntas: • Como oferecer e desenvolver atividades sociais que possam responder satisfatoriamente a objetivos da qualidade e da eficiência? • Os recursos captados junto ao poder público e/ou setor privado — sabe-se que, além do poder público, há organizações nacionais e internacionais que financiam projetos sociais gestados por instituições sociais legalmente constituídas — têm fins e objetivos específicos? Quais? • Como se devem projetar os espaços institucionais no que se refere à distribuição das ações comunitárias e/ou coletivas, para fins evangelizacionais? • Qual deve ser a especificidade de projetos elaborados na atuação da igreja junto às comunidades alcançadas? Qual é, de fato, a necessidade mais premente do público-alvo? O que quero dizer com estes questionamentos? Quero dizer que uma organização cristã quando utiliza a teologia como instrumento de debate e atuação no espaço público tem, de fato, um conjunto de pontos discutíveis e de decisões a serem tomadas, para indicar as expectativas e orientações da sociedade ou comunidade-alvo em relação à ação da igreja. Além disso, uma teologia pública prática visa assegurar debate e ações para uma possível adequação entre as necessidades sociais da comunidade beneficiária e os serviços prestados pela igreja por meio de suas instituições sociais e dos seus eixos principais, sendo alguns deles os seguintes: 40


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• Estabelecimento de mecanismos de controle aos quais o sistema de atividades sociais integrais deve se submeter. • Incentivo de inovações e criatividade no fazer social pertinente. • Garantia de gestão administrativa e financeira do sistema de atividades das políticas sociais públicas e comunitárias. Entendemos, desta forma, que o mundo moderno reconfigurou não somente as instituições responsáveis pela produção do conhecimento em larga escala, mas também a necessidade de produção nos serviços práticos de outras ações produtivas de cunho político e cultural. Diante disso, a igreja precisa ter uma linha de pensamento com uma ressignificação de conhecimento institucional e político na estrutura e no funcionamento das suas atividades desenvolvidas no campo social. Sendo assim, não se fala mais apenas em teologia pública, mas também em teologia social. Tanto a teologia pública quanto a teologia social são teologias, como o nome indica, intimamente relacionadas ao sistema público e social. Nas sociedades democráticas — onde as eleições são o sistema de designação dos governantes — as políticas sociais se encontram frequentemente no centro dos debates eleitorais. Logo, essas políticas são constantemente avaliadas e discutidas pelos protagonistas da política partidária, e muito pouco pelos operadores do Evangelho, que se constituem o Corpo de Cristo na esfera da comunidade-mundo. Um dos objetivos que a teologia pública deve considerar e avaliar, na práxis missionária da igreja, é o de verificar a adequação entre os elementos da práxis social e as necessidades socioculturais. A partir disto, entendemos que as avaliações por parte da igreja originam informações sobre a eficácia dos investimentos em planos, programas e projetos, e confirmam a dominação do conceito de atividade e produção no sistema evangelizacional da igreja. Esta compreensão leva a outro objetivo: o de fornecer os argumentos pertinentes para o debate sobre teologia pública prática, no intuito de fazer surgir 41


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novos paradigmas na práxis sociodimensional da “igreja Corpo de Cristo” versus “igreja corpo social”. Neste aspecto, as discussões entre os atores da práxis do Evangelho pontuam uma argumentação e apresentação dos avanços das práticas sociais sob a forma de elementos concretos a convencer, impressionar e envolver seus interlocutores no processo de atividades producentes. Tenho dito nas minhas palestras sobre o trabalho social-evangelístico da igreja que as políticas de atividades sociais do Corpo de Cristo — agência de Deus na Terra — servem claramente aos objetivos de estratégias missionárias. Essas políticas servem também para justificar o papel social da igreja no mover comunitário enquanto agente de transformação da realidade social. Neste ponto, pastores, evangelistas e demais líderes eclesiásticos devem conhecer-se como atores politizados que — embora não sendo políticos partidários — estarão sempre à procura de resultados produtivos para alimentar a efetividade das ações empreendidas, como parte de uma campanha missionária, por exemplo, na comunicação de programas e projetos socioevangelísticos na práxis missionária. De fato, o efeito esperado dessa práxis teológico-social é, antes de tudo, missiológico. O investimento nas inovações e estratégias missionárias não é realizado a menos que sua eficácia seja comprovada e, na medida do possível, verificada. Os resultados positivos devem ser reimplementados para obtenção de novos resultados. Assim, a igreja é um corpo espiritual sempre producente no tecido social. E esta é a sua ação plenamente e efetivamente política no contexto da cidadania e na implementação de seus projetos.

4. Teologia no espaço público: fraternidade, cidadania, democracia e evangelização Do ponto de vista bíblico, a igreja foi chamada para ser comunidade e viver em comunidade. Na primeira epístola do apóstolo 42


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Pedro, a comunidade encontra-se efetivamente organizada como uma fraternidade. Isto significa que ela vivia como uma associação civil não reconhecida em sua totalidade pelo poder romano. Mas, basicamente, ela era tolerada num momento político permissivo para as associações da época. Biblicamente falando, as estruturas sociais e legais da época apostólica proporcionaram um certo modelo associativo em que se configurou a comunidade cristã vista em Atos 2 e 1Pedro. Vemos que tal identificação foi compartilhada pelo grupo cristão da época com várias outras associações de então na Ásia Menor, aparecendo em dois termos presentes, que diferençava a comunidade interna da comunidade externa. Desta maneira, a palavra “fraternidade” caracterizava a denominação interna da comunidade. E a palavra “cristão” emplacava a denominação que configura a comunidade externa (veja 1Pedro 4.16). O princípio básico é de que onde há comunidade há fraternidade, onde há fraternidade há cidadania, e onde há cidadania há democracia. Democracia é a soberania comunitária no plano e no fazer societário, onde há empoderamento e distribuição equitativa de poder numa harmoniosa convivência entre os componentes do grupo e/ou corpo social. Fraternidade e cidadania designam comunidade em sua dimensão primordialmente local. As pessoas cristãs que vivem em comunidade e a ela pertencem têm identificação com uma cidade ou com um território mais vasto. As pessoas reunidas em um mesmo lugar e que vivem como membros uns dos outros desenvolvem relações fraternais com um senso de cidadania organizativo e producente. São homens e mulheres, jovens e adultos, que participam de um mesmo espírito de amor e unidade, reciprocidade e compartilhamento. Nesta altura, a política comunitária assume caráter pedagógico, em que as relações sócio comunitárias são efetivamente educativas. Pedagogicamente falando, a educação comunitária acontece 43


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ao longo de toda a vida, basicamente observando quatro pilares, os quais são: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. 4.1. Aprender a conhecer Neste primeiro pilar, a igreja-comunidade busca combinar uma cultura geral e vasta, com a dinamicidade de trabalhar com efetividade a partir da especificidade de conhecimento e objetivos. Este aprender a conhecer inclui o autoconhecimento e o conhecer uns aos outros como princípio evolutivo do Evangelho do Senhor Jesus Cristo. 4.2. Aprender a fazer Como corpo social e fraternal, a igreja do Senhor Jesus tem o poder de adquirir qualificação e competências que tornem os participantes do corpo comunitário aptos a aprender situações novas e trabalhar com espírito de equipe. Aprender a fazer traz a luz o que tange às diversas experiências sociais e de trabalho producente na práxis missionária, com espontaneidade no contexto comunitário, educativo e fraternal visando o desenvolvimento humano integral alternado e/ou combinado com o trabalho comunitário. 4.3. Aprender a conviver O aprendizado do viver juntos comunitariamente vislumbra o desenvolvimento da compreensão do “outro social” e a percepção das interdependências. Em espírito de coletividade, a arte de conviver torna a igreja uma agente de transformação por meio da realização de projetos comuns e preparada para gerir conflitos. Exercita-se no respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e da cultura da paz. 44


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4.4. Aprender a ser No ambiente da igreja-comunidade, os participantes do corpo social aprendem a “ser” para melhor desenvolverem a personalidade e, assim, estarem sempre capacitados para agirem com autonomia, discernimento e responsabilidade. Com esta consciência, aprende-se a não negligenciar nenhuma das responsabilidades de cada participante do corpo comunitário. Logo, não se pode negligenciar a memória, nem o raciocínio, nem o sentido estético, nem a capacidade física e nem a aptidão para a comunicação nas relações comunitários. No âmbito da política de organização comunitária, o amor cristão se mistura com a solidariedade nos sofrimentos e nas dificuldades compartilhadas entre os integrantes. Nesta dimensão do sentido de comunidade as pessoas se protegem e se defendem umas às outras. Todo o Novo Testamento fala da igreja como sendo uma comunidade cristã, unida pelos princípios da justiça de Deus ensinados pedagogicamente por Jesus e pelos apóstolos. Onde está, porém, o maior desafio para a igreja de Jesus? O maior desafio para a igreja de Cristo é que ela é um conjunto de comunidades formadas em uma minoria mergulhada numa maioria hostil num mundo tenebroso. Neste mundo tenebroso, a igreja, por ser minoria, sofre pressão social em vários aspectos. Ela, por vezes, não sabe lidar com isso. Os cristãos são membros de uma fraternidade e, consequentemente, exercem um direito de cidadania nem sempre realizado ao certo. A igreja não compactua com alguns valores e normas do comportamento praticados no mundo secular. Por isso, os cristãos são estigmatizados, discriminados e vencidos em questões culturais, legais e políticas. É aí que entra a importância da teologia no espaço público, uma vez que a igreja poderá utilizá-la como instrumento de debate e inserção social. Logo, fala-se de inserção social, comunidade, fra45


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ternidade, cidadania e democracia como coesão social e mobilidade social para que, num contexto da práxis do Evangelho social, trabalhe-se a redução das desigualdades por meio da distribuição de riquezas e de oportunidades. A evangelização, num contexto de inteligência espiritual, está entranhada em cada um desses processos. Então, uma teologia pública prática discute as expressões da questão social e reflete os fatores de coesão social para compreensão dos indivíduos como atualidade em matéria de condições de vida, inclusive de pobreza e de oportunidades limitadas. Os debates da igreja, no campo da teologia pública e social, tornam-se produtores de sentido e de estratégias evangelizacionais e formas de solidariedades inovadoras para o exercício da cidadania nas estruturas sociais. Uma conversa com Magno Paganelli levou-me a pensar em teologia pública prática como um conjunto de variáveis e condicionantes sociais a partir dos quais a igreja torna-se capaz de definir suas estratégias e sentido sócio-organizacionais para um efetivo exercício de macro-evangelização que começa com estudos e análises sociais no intuito de descortinar como os indivíduos envolvidos no protagonismo das atividades do Evangelho social podem organizar suas percepções e práticas, criando novas alternativas e possibilidades de alcance e transformação. Esta práxis evangelístico-social é a ênfase colocada na compreensão por parte do discurso da teologia no espaço público, dos novos processos sociais pelos quais passam a igreja, seus objetos e agentes de estruturação. Então, ela caminha neste propósito, realçando evangelização, educação, assistência e a vitalidade de inclusão do sujeito pobre e marginalizado no tecido social. Isto nos permitirá compreender as dinâmicas político-sociais contraditórias tanto do ponto de vista da coesão social como da democracia a que elas são capazes de gerarem. O problema latino-americano põe sobre a mesa da questão social contemporânea uma inversão de perspectiva frente à tendência dominante, em que se 46


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enfatizam os problemas sociais que afligem o continente de maneira generalizada. As dificuldades que se apresentam caem sobre nós em forma de certos conservadorismos nas instituições e nas esferas públicas, impedindo que a sociedade de fato entenda e gere coesão social para uma força maior de ação e busca de resultados. A igreja não pode deixar de identificar os recursos inteligentes positivos de integração social e de criatividade sociocultural existentes em nossas sociedades para aplicar nos seus métodos de evangelização, no cumprimento efetivo da grande comissão mundial (Mateus 28.19-20). Do ponto de vista teológico-prático, enfim, pensar em estratégias de debate para impactar a sociedade com proposições e projetos de transformação social inclui, sem sombra de dúvida, que a igreja faça a elaboração de planos, programas, projetos e ações estratégicas de políticas sociais eficazes e socialmente justas. E depende, sobretudo, de nossa capacidade de identificar o momento histórico e as estruturas sociais de nossas igrejas a partir de uma consciência de construção de relacionamentos e novos discursos capazes de aglutinar novos consensos que, transformados em ações integralizadas, permitirão a transformação da realidade social em relação às suas desigualdades. Esta práxis teológico-social é a igreja implementando sua visão de projeto de sociedade com a qual a maioria dos cidadãos pode se identificar e, de repente, perceber que o Evangelho da justiça de Deus, pregado pela igreja, pode se tornar um valor central para suas vidas de desigualdades sociais como consequência do mal social causado pelo pecado.

5. Teologia pública missionária como ortopraxia comunitária Este item é uma adaptação de uma mensagem que preguei no ano de 2015, cujo título foi “Missiologia comunitária e ortopraxia: uma igreja-movimento em busca do ideal perdido”, baseada na carta de 47


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Paulo aos Efésios (4.1-6), com outras referências como, por exemplo, a carta paulina aos Gálatas. Lembro-me que, àquela época, eu estava pregando uma série de estudos sobre princípios da justiça de Deus e vida relacional da igreja Corpo de Cristo que, ao mesmo tempo, é igreja corpo social em Cristo. “Ortopraxia” é um termo que tomei emprestado da medicina para aplicar na práxis missiológica comunitária. Na medicina esta palavra significa “correção mecânica de deformações”. Aqui apliquei ortopraxia com o sentido de que, na práxis missionária, o envolvimento social da igreja com a comunidade acaba por corrigir deformações sociais como, por exemplo, as transformações da realidade no que diz respeito às expressões da questão social contemporânea como o analfabetismo, a pobreza, a fome, a violência etc. Entendi que este texto da epístola escrita pelo apóstolo missionário tem um conteúdo muito específico e enérgico sobre a unidade da igreja e a práxis social da vida em comunidade, objetivando combater os males sociais e políticos como inimigos externos da ação missionária-evangelizadora da igreja do nosso Senhor Jesus Cristo. O texto diz:

“Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados, com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor, esforçando-vos diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz; há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Efésios 4.1-6).

O texto bíblico acima mencionado não deixa dúvida quanto ao chamado da igreja para ser comunidade viva estabelecida e firmada no vínculo da paz; para viver em comunidade e, portanto, exercer a funcionalidade comunitária. A igreja moderna é feita de muitos grupos que, se tivessem consciência da unidade universal do Corpo 48


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de Cristo, estariam dentro de um único grupo empenhado com a determinação espiritual “una” do “fazer parte”, num espelho social pleno de harmonia numa simetria de conformidade e resignação. Como disse Rubem Martins Amorese: “a igreja deveria ser alternativa para todas as adversidades”.13 Dos anos 1980 para cá, há uma diferença acentuadamente brusca na vida da igreja cristã ante o processo fenomenológico da globalização. Fenômeno este que trouxe alguns benefícios, mas, também, muitos malefícios para a comunidade da fé. A missão da igreja no mundo assumiu uma conjuntura social fragmentada, ocasionada por forte disputalidade atômica e espisoteamento (ou espeloteamento)14 da práxis do verdadeiro Evangelho de Jesus no cerne da comunidade mundo. A reflexão seguinte nos clareia algo em torno desta tônica bíblico-teológica, conforme os subitens abaixo. 5.1. Fé viva aplicada numa comunidade em situação de risco O apóstolo Tiago (1.25-27) diz que a lei perfeita é a “lei da liberdade” e orienta aos crentes — grupo universal — a considerarem atentamente esta lei, afirmando que aquele que não se mantém apenas ouvinte negligente, mas operoso praticante, esse será bem-aventurado no que realizar. A ortopraxia comunitária, na práxis missionária, leva a igreja a transformar a realidade local por meio de relacionamentos na efetiva “participação conjunta”, onde o termo 13 Rubem Martins Amorese. Icabode: Da Mente de Cristo à Consciência Moderna. São Paulo: Abba Press Editora, 1993, p. 103.

14 Paulo, em Efésios 4, parece demonstrar ter percebido uma certa deformidade ou algumas práticas na vida cotidiana das comunidades cristãs da época, feitas sem critérios, isto é, fora de uma determinada ética social relacional, devido as difíceis circunstâncias em que os crentes se encontravam naquele momento. Então, o apóstolo resolve instrui-los a servir uns aos outros como bons “despenseiros da multiforme graça de Deus”. Como antônimo da palavra “ovençal”, o termo despenseiro é aplicado àquele que serve e/ou distribui mantimentos a outrem. Na situação de Efésios, trata-se da motivação à prática da hospitalidade vinculada ao amor gerado em Deus e por Deus.

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usado pelos apóstolos é koinonia que, traduzida, quer dizer “comunhão”. Comunhão, na etimologia bíblica, tem um amplo sentido. Quer dizer provedor de mantimentos, vida em comum, mordomia, distribuidor gratuito, ecônomo e despenseiro, que é antônimo e [ao mesmo tempo] com sentido de “ovençal”. A diferença de “ovençal” para “despenseiro” é que o primeiro cobrava impostos e, com o recurso arrecadado, provia a casa, o palácio, a comunidade etc.; enquanto que o segundo fazia tudo gratuitamente, sem cobrar nada, tudo era de graça. Ele recebia de graça e distribuía de graça. Eles levavam a sério a Palavra do Senhor que lhes havia ordenado: “De graça recebeste, de graça dai” (Mateus 10.8). Sem querer ser provocativo e ao mesmo tempo sendo objetivo na argumentação que busca discutir pontos essenciais da fé viva e não morta (Tiago 2.14-17), é importante enfatizar que a consciência comunitária, hoje, perdeu sua razão de ser em vista do que se tornaram os comportamentos da fé cristã, transfigurando-se nos efeitos da divisão da comunidade corpo-universal. Os seguintes aspectos explicam a funcionalidade do Corpo de Cristo fundada na justiça, na retidão, na compaixão, na misericórdia, na graça e no amor como qualidades absolutas de Deus: • Fé-vida: mover comunitário (Tiago 2.14-17). Tiago explica que uma fé viva e não morta é o tipo de fé que vai além da individualidade. É uma fé que se move no meio da coletividade (v. 27), com larga produção de resultados direcionada para o próximo: o “outro” social. • Fé viva é vida comunitária em família (Efésios 4.5,6). Eugene A. Nida, grande especialista em antropologia missionária, disse que “o homem é mais do que um indivíduo; ele é um membro de uma “família” muito grande, quer seja o clã, a tribo ou a nação”.15 15 Eugene A. Nida. Comunicação e Estrutura Social. In: Ralph D. Winter & Steven C. Hawthorne. Missões Transculturais: Uma Perspectiva Cultural. Vol. 3. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 1987, p. 5019.

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