Como se Deus não existisse | Eliézer Magalhães

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Magalhães, Eliézer M188c Como se Deus não existisse / Eliézer Magalhães. – Curitiba, PR: A.D. Santos Editora, 2023.

16 x 23 cm

ISBN 978-65-89636-43-4

1.Literatura brasileira – Romance. 2. Filosofia e cristianismo. I.Título.

CDD B869.3

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

2ª edição – fevereiro de 2023.

Proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios a não ser em citações breves, com indicação da fonte.

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Prefácio

É impossível falar sobre o livro “Como se Deus não existisse” sem falar sobre o autor, pois o mesmo é o reflexo da preocupação para com as pessoas que, influenciadas pelas filosofias da pós-modernidade têm assumido uma postura cética para com a existência de Deus e sua revelação, a Bíblia Sagrada.

A preocupação de Eliézer Magalhães reflete a sua própria jornada de vida e fé. Dono de uma mente brilhante, com grande capacidade lógica, criado em um lar cristão com valores fortes, precisou responder, por si mesmo, muitas questões que levanta neste romance.

Sua preocupação é responder o que o grande apóstolo Pedro nos ensinou em sua carta: “Tenham no coração de vocês respeito por Cristo e o trate como Senhor. Estejam sempre prontos para responder a qualquer pessoa que pedir que expliquem a esperança que vocês têm.”

Apesar de ser uma ficção, retrata situações que tenho visto e ouvido, diariamente, de várias pessoas e que retratam a realidade, tanto do ceticismo como de uma fé viva em um Deus pessoal que se revela àqueles que o buscam com inteireza de coração.

Assim, espero que a leitura de “Como se Deus não existisse” o surpreenda e o ajude a perceber as possibilidades do poder e de graça de Deus em sua própria vida.

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Paschoal Piragine Jr.
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. 5 Sumário Prefácio 3 O nascimento de um cético 7 Sonhos 12 Reminiscência ou revelação? 19 Lugar incomum 30 Silêncio 35 A explosão e o poema 37 Orgulho 49 Túneis 52 De volta aos trilhos 57 Criados ou evoluídos? 61 Acordada 73 De partida 75 Invadindo e arrombando 81 O coração do problema 84 Confrontos na escuridão 93 Absoluto ou Relativo? 95 Passos perigosos 106 Certo ou errado? 110
6 . Desconcerto 120 Que Deus é esse? 123 A última refém 129 E conhecereis a verdade 131 Entre lágrimas 141 Antes e Depois de Cristo 144 Por uma porta 152 A Bíblia no banco dos réus 154 Sem Saída 163 Muito mais que um Livro 165 A escolha 171 Morrer ou viver 174 O Jardim Secreto 176 Acordado 187

O nascimento de um cético

Ovento oriental trouxe consigo uma massa de ar quente vinda do litoral, enquanto do Sul o frio planava silenciosamente sobre o planalto paranaense. Como de costume, o ponto de encontro entre as forças da natureza se deu em Curitiba, que a mil metros de altitude se revela bela e delicada, incólume e habituada às inúmeras pancadas de chuva e frequentes alterações climáticas durante o dia. O ar abafado curitibano foi rapidamente substituído por uma chuva fina e entediante, gélida, como o usual; circunstância já afeiçoada por Marcelo, pois quando tal clima invade a cidade, pode levar dias para ir embora. Logo, ele se acomoda confortavelmente em sua cama sob dois edredons pesados, preparando-se para dormir.

A cortina aberta à sua frente revela um céu negro, porém sem estrelas. Após ajeitar a cabeça no travesseiro, observa através da janela as imensas nuvens cinza a deslizar vagarosamente na imensidão. Ouve o vento frio assoviando entre as árvores, e a lua crescente que entre uma nuvem e outra se revela intocável. Imagens e sons que transportam seus pensamentos a uma memória longínqua de sua infância.

Marcelo se recorda de estar deitado sobre a relva do quintal de sua antiga casa de infância ao lado de seu pai, observando um céu estrelado que se descortinava de um ponto ao outro do firmamento. Acompanhada por um sentimento de paz e segurança, a lembrança se misturava ao cheiro de grama verde e ao arrepio de uma brisa fresca soprando em sua pele. Um tempo muito feliz de sua infância. Ali, deitados lado a lado observando as estrelas e as nuvens, seu pai lhe disse: “Nunca duvide

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que Deus o ama, meu filho, ainda que possa parecer o contrário!” – Respirou profundamente e levantou o braço apontando para o Cruzeiro do sul –

“Olhe para as estrelas! Mesmo quando as nuvens não nos permitem vê-las, sabemos que ainda assim elas estão lá”. Seu pai abaixou o braço, envolvendo-o, e continuou – “O amor de Deus por você, meu filho, é como as estrelas. Certas nuvens da vida podem às vezes dificultar nossa visão, e nos impedir de enxergar o seu amor. Os problemas, as angústias e os sofrimentos que muitas vezes passamos são como estas nuvens que sobrevoam nossas cabeças, impedindo que a luz do amor de Deus brilhe sobre nós. Mas, a verdade, meu filho, é que o amor dele está sempre lá, inabalável acima de toda circunstância temporal que possa ocorrer. As nuvens vêm e vão, e nenhuma tempestade dura para sempre. Nunca se esqueça disso”. Seu pai o abraçava forte, e Marcelo sentia-se seguro. Uma marca indelével, impressa em sua alma como uma escritura na pedra.

Uma semana depois, numa madrugada fria sua mãe saiu aflita ao receber uma ligação misteriosa. Após aguardá-la por longas horas na casa de um vizinho, sua mãe retornou com o rosto inchado e os olhos vermelhos. Algo havia acontecido com seu pai. Aquela noite terrível seria fincada como uma martelada em seu coração, e as noites seriam todas nubladas a partir de então.

Por que isso havia acontecido justamente com seu pai? Por que ele teve que morrer? Marcelo não sabia o que pensar naquela idade. Aos poucos ele se entregou ao luto que silenciosamente dominou seu interior, sufocando sua inocência venenosamente. Era como se Marcelo também tivesse morrido com seu pai.

Com o tempo Marcelo desenvolveu uma personalidade introspectiva, e ao crescer foi aos poucos se convencendo de que seu pai estava profundamente equivocado, pois não conseguia aceitar a existência de um Deus num mundo com tanto sofrimento. Ele não entendia como poderia existir um Deus que permitisse um pai de família morrer de maneira tão súbita deixando a esposa e um filho pequeno. O “Deus de amor” que seu pai costumava lhe falar quando pequeno passou a parecer um personagem de historinha infantil. Um conto de fadas! Um conto de terror!

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Após tantas lembranças, boas e doloridas, o cansaço finalmente venceu seus olhos, que se renderam ao sono.

Marcelo é um homem inteligente e culto, sempre atento às novidades. Lê o seu jornal diariamente, suas revistas quinzenais, além de ler em média dois livros por mês. Para ele a leitura é como alimento para a mente.

Com seus trinta e dois anos, Marcelo tem duas faculdades cursadas e um mestrado em andamento. Cursou Direito e Filosofia, e agora faz um mestrado na área de direito tributário. Estudou num colégio público quando criança, e precisou se esforçar muito para cursar as duas faculdades. Sua mãe, que trabalhava como empregada doméstica, trabalhou duro para sustentá-lo. Muitas vezes ele pensou em largar a faculdade para trabalhar e ajudar no sustento da casa, mas sua mãe nunca permitiu.

Além de sua mãe, apenas uma pessoa tem lugar em seu coração: sua namorada, a vibrante Kelly. Ele havia namorado outras mulheres antes, mas nenhuma o tinha fascinado tanto quanto a Kelly. Havia algo em sua voz que o conquistou desde a primeira vez que a ouviu. Como se o timbre levemente rouco de suas cordas vocais o tivesse enfeitiçado. Havia uma suavidade doce e tão feminina que prendia totalmente a atenção enquanto ela falava, além de ser empolgante e sempre de bem com a vida. Marcelo era totalmente apaixonado por ela. Ele amava sua pele morena e cabelos castanhos cuja textura única faziam de Kelly uma mulher de beleza rara. Seus olhos verdes contrastavam com seu rosto moreno de uma maneira tão graciosa que era comum ver as pessoas se distraírem quando ela passava. Entretanto, diferente de outras mulheres que buscavam atrair a atenção para seus corpos por meio de roupas sensuais e atitudes provocativas, Kelly fugia de qualquer vulgaridade. Ela não queria ser sensual, mas sim feminina e bonita. E ela conseguia!

Marcelo sabia que Kelly era uma garota preciosa demais para ser tratada como mais uma, não só pela sua beleza exterior, mas porque era séria, tratava a todos com respeito e era muito divertida! Não era raro Kelly surpreender Marcelo com suas ideias, deixando-o atônito por

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causa de suas conclusões excepcionais. Para Marcelo ela é uma “mulher pra se casar, pois é linda e possui conteúdo”, dizia orgulhoso aos seus amigos.

Só havia um problema com Kelly, dizia Marcelo. Com seis meses de namoro ela começou a frequentar uma igreja evangélica, convidada por uma amiga. Aos poucos ela se tornou frequentadora assídua. Para Marcelo, foi ali onde começaram os seus problemas. Kelly passou a levar muito a sério os assuntos da Igreja e da Bíblia, mas Marcelo havia se tornado ateu. O cristianismo dela era como uma pedra no seu sapato, da mesma forma que o seu ateísmo se tornava uma pedra no dela!

No início era difícil para Marcelo ter que ouvir repetidamente de sua namorada algumas frases como: “Deus fez isso”, “Deus falou comigo”, ou um mero “Deus o abençoe”. É claro que o desejo de estar com ela era tão grande que ele suportava estes pequenos inconvenientes. Porém, chegou um momento do namoro que um simples: “Se Deus quiser” lhe fazia ter calafrios. Foi num destes dias que tiveram a primeira e também última briga a respeito de Deus. Marcelo despejou palavras e conceitos filosóficos a respeito do que, em suas palavras, era a “maior farsa de todos os tempos”. Recitou Nietzsche, Marx, proferiu pensamentos de Sartre, acusou a Bíblia de ter sido forjada, e terminou seu discurso de desabafo discorrendo sobre o evolucionismo de Darwin. Suas convicções revelavam o quanto ele havia lido e refletido sobre o assunto. O tema havia se tornado emocionalmente e intelectualmente importante para ele, mostrando-se abruptamente para sua namorada como se uma barragem houvesse se rompido.

Embora Kelly soubesse que Marcelo não cria na existência de Deus, ela ainda não havia percebido a grandeza de sua aversão e profundidade em sua fundamentação ateísta. Ficou tão surpresa que se calou em todo o discurso. Marcelo não sabia se o silêncio dela era por falta de argumentação, ou simplesmente por estar chocada com o que ouvia. De fato, ele estava tão inflamado que seu desejo era tão-somente despejar o que preenchia seu coração.

A “conversa” terminou seca e o silêncio durou duas semanas. Após tentar contatá-la inúmeras vezes, foi ela quem ligou para ele. Kelly afir-

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mou estar perplexa com o que havia ouvido, mas que iria respeitar sua posição se ele respeitasse a sua. Ela falou que daria uma chance ao relacionamento dos dois, mas caso outra conversa similar ocorresse, terminaria o namoro pois jamais abandonaria Deus e a igreja. Ela ressaltou que somente assim eles poderiam continuar o namoro. Ela disse: “vou continuar orando por você”, e ele deu de ombros, aceitando a proposta. Ela deixou claro que Marcelo não poderia tentar convencê-la a sair de sua igreja, o que ele aceitou sem reclamar.

Algum tempo depois estavam aparentemente tão bem quanto antes. Como num oceano mítico que na superfície ostenta serenidade, mas que no profundo abriga criaturas ameaçadoras, assim havia se tornado o relacionamento dos dois. Começaram a navegar em águas perigosas, sempre na iminência do inesperado! Embora Marcelo soubesse que para Kelly era um incômodo namorar um ateu, ele agora afirmava, mais a si mesmo do que aos outros, não haver mais problema namorar uma cristã. Afinal, “se faz bem para ela, que mal deve haver?”, repetia como um mantra.

De vez em quando Kelly ainda repetia a Marcelo que continuava a orar por ele, e como de costume, as palavras entravam por um ouvido e saiam pelo outro. Marcelo desconsiderava, e respeitosamente afirmava que um dia ela entenderia que oração alguma jamais seria respondida, pois não havia Deus algum para ouvi-la. Kelly, no entanto, respondia sempre com uma pergunta: “Mas, e se Deus existir?”

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Sonhos

Durante seu sono profundo, naquela cama forrada de edredons, Marcelo sonhava com Kelly. Um dia antes ele a havia pedido em casamento, e agora ela dominava sua mente. Em seu sonho, calmamente passeavam de carro pelas ruas de Curitiba. Via o lindo sorriso de sua namorada enquanto ela dirigia seu celta preto em direção ao Alto da XV. Passavam pela praça do Expedicionário, erguida em memória dos brasileiros que lutaram na Segunda Guerra Mundial e seguiram em direção ao Jardim Botânico.

Seus olhos verdes pareciam hipnotizar Marcelo naquele sonho agradável. Ao subirem o viaduto sobre a rodovia, indo em direção ao Jardim das Américas, notou que Kelly aumentou substancialmente a velocidade. Um grande carro escuro os ultrapassava violentamente, batendo em sua lateral esquerda, empurrando-os inesperadamente contra a mureta do viaduto. O semblante até então alegre de Kelly se fechou e o sonho se tornou pesadelo. De repente, o telefone tocou.

Eram duas horas da manhã quando o telefone chamou. O aquecedor elétrico mantinha o quarto numa temperatura agradável, enquanto do lado de fora uma névoa fria e densa tomava conta da paisagem.

O toque seco do telefone na madrugada silenciosa rendeu a Marcelo um salto e como a cabeceira da cama encontrava-se debaixo de uma pequena prateleira de mogno repleta de livros, a batida de cabeça foi inevitável. Após derrubar alguns livros e ter seu sono profundo interrompido por um importuno telefonema histérico, atendeu assustado a ligação.

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– Alô – Segurou o telefone com uma das mãos, enquanto com a outra massageava a cabeça.

– Alô! – Uma voz masculina respondeu do outro lado.

– Quem fala? – Marcelo respondeu nervoso.

– O senhor conhece alguma Kelly Marques?

– Oi?

– Você conhece...

– Sim! É a minha namorada! – Falou olhando para um porta-retratos sobre o criado mudo.

– Ela acabou de bater o carro e está inconsciente. Usei o celular dela para chamar o último número que ela havia ligado – Marcelo sentiu como se acabasse de receber um choque de mil volts – Imaginei que fosse o número de um parente, pois quando...

– Ela bateu o carro? – Segurando a respiração, Marcelo tentava digerir a notícia e o sonho que havia acabado de ter. Teria ele sonhado mesmo, ou era algo de sua cabeça? Ele estava acordado, ou ainda dormindo? Ele pensava.

– Sim, o carro está totalmente destruído! E ela está inconsciente! Ela perdeu muito sangue ...

– Mas como ela está? Aliás, ONDE ela está? – Sua mente começou a girar.

– Acho que a ambulância já está chegando...

– Mas... – Marcelo estava em choque e não sabia o que fazer.

– Peraí... – Disse o rapaz do outro lado do telefone, quando o som de uma sirene tomou a ligação – a Ambulância chegou! – Foi então que num único salto Marcelo saiu da cama e começou a trocar de roupa com o telefone no ouvido.

– Para qual Hospital irão levá-la? – Perguntou rapidamente.

– Eles disseram Cajuru, porque é o mais próximo. Mas... – Obrigado! Eu estou indo para lá – e desligou.

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Marcelo rapidamente pegou uma calça jeans e uma camiseta preta, e em alguns segundos estava pronto. Lembrou-se do casaco quando saía do quarto, pois sabia que do lado de fora a temperatura estaria baixa. Ao entrar no carro, naquela madrugada fria e silenciosa, engoliu seco, os pensamentos sombrios que sobrevinham em sua mente. Desejava imaginar que seu sonho e o acidente de Kelly não passariam de um susto e uma infeliz coincidência.

Ao dirigir pela rua sentiu um peso no peito ao se lembrar de que no dia anterior havia pedido Kelly em casamento. Dirigindo para o hospital, lembrava-se da surpresa em seu rosto ao vê-lo da sacada de sua janela. Ele estava vestido com uma roupa típica dos anos trinta, usando chapéu, gravata borboleta e terno antigo, acompanhado de dois amigos, um tocando violão e outro saxofone, ajudando-o a realizar uma serenata surpresa. A imagem do sorriso de Kelly ao ser surpreendida não saía de sua mente. Imagens de alegria que se misturavam às imagens de terror de seu sonho estranho.

As ruas vazias na madrugada de Curitiba o permitiram chegar em poucos minutos ao hospital. A entrada branca com paredes recém pintadas e a ambulância nova estacionada em frente pareciam promover uma imagem de modernidade e eficiência. Afinal, um hospital tão bonito e apresentável deveria cuidar bem de seus pacientes. Após estacionar, Marcelo entrou decidido pela porta. Preocupado com o que poderia encontrar, contudo sem se deixar vencer pelo medo, seguiu resoluto em direção ao recepcionista. A imagem do rapaz sentado em frente a um computador novo, diante de uma fila de pessoas que aguardavam ser atendidas, era um quadro que resume os enormes contrastes de uma cidade que se diz de primeiro mundo num país de terceiro. Marcelo, que já conhece como as coisas realmente acontecem na cidade que é apelidada de “Capital Social”, furou a fila e foi direto ao atendente.

– Por favor, preciso saber onde está a moça que bateu o carro e acabou de chegar! – Dirigiu-se de maneira enfática e objetiva.

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– Senhor, é preciso respeitar a fila... – O atendente respondeu com um olhar entediado.

– Por favor, eu preciso saber! Como ela está?

– Naquela portinha atrás do senhor há uma assistente social, ela poderá te ajudar! – Falou calmamente.

– Eu não quero saber de assistente social! Eu quero saber da minha namorada! – Marcelo começou a se exaltar.

– Senhor, por favor ... – Marcelo sabia que se esperasse na fila poderia demorar horas até ser atendido. Ele precisava agir com intrepidez para que o rapaz lhe atendesse logo. Já havia presenciado pessoas com problemas sérios terem seus atendimentos protelados por causa da burocracia e da falta de pessoal, enquanto outros eram rapidamente atendidos porque “chutaram o pau da barraca”.

– Uma simples pesquisa no seu sistema resolve o problema. Eu sei que você pode me ajudar! Eu sou advogado e você não quer problemas comigo –O atendente olhou com desdém – Eu estou apenas te pedindo um favor – Marcelo falou olhando nos olhos do atendente, quase que suplicando

– Se algo acontecer com ela, eu vou culpar você por não ter me permitido vê-la! – Enquanto falava um rapaz negro que estava sentado próximo do recepcionista assistia a cena com bastante interesse. Sentado no banco de espera, o jovem possuía uma barba malfeita, usava uma calça jeans azul e uma camiseta polo amarela. Marcelo tentava convencer o atendente quando o rapaz se levantou, aproximando-se ao mesmo tempo que um policial militar também se achegou.

– O que tá acontecendo? Algum problema? – Perguntou o policial, interrompendo Marcelo.

– Este senhor não quer respeitar a fila – Respondeu o atendente.

Eu só quero saber da minha namorada, seu guarda!

– Seu guarda o caramba! – O policial praguejou! – Mais respeito ao falar com uma autoridade! – O recepcionista soltou um sorriso cínico, esperando ver o policial chamar a atenção de Marcelo.

– Desculpa, eu ... – Marcelo não sabia o que dizer.

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– E você rapaz – Falou voltado ao atendente – Não tá vendo que o homem tá desesperado? Custa responder à pergunta dele?

– Mas ...

– Seja humano e perceba a aflição de alguém que tá precisando de você! Cê nunca precisou de ninguém? – O policial deu uma lição.

– Mas eu ... – gaguejou o recepcionista.

– Mas nada! Atenda o rapaz! Se o Brasil tivesse mais gente boa, que se importasse com os outros, não ia precisar ter tanto policial como eu na rua –Marcelo parecia aliviado com a intervenção do policial, pois se dependesse do atendente, ele ficaria sentado até o momento que quisesse. O policial continuou: – Por isso, preste a atenção! Não é de hoje que vejo sua indiferença neste hospital. Seja homem!

– Si .. Sim Senhor! – O atendente abaixou a cabeça.

– Obrigado seu ... policial! – Respondeu Marcelo enquanto o policial voltava ao seu lugar.

– Qual o nome dela? – Perguntou o atendente com um olhar apático.

– Kelly Marques.

– Só um pouco, deixe-me ver ... – O rapaz sentado próximo ao atendente se colocou em pé, em frente a Marcelo, querendo dizer-lhe alguma coisa. Mas Marcelo não o percebeu, atento às mãos do atendente que digitavam e mexiam calmamente o seu mouse.

– Ela bateu o carro e me disseram que estava sendo trazida para cá –Marcelo sussurrou.

– Só um pouco ...

– Meu Deus, eu estou muito nervoso ... Não sei o que fazer – Imediatamente parou para pensar no que havia acabado de falar: “Meu Deus”?

– Não tenho nada aqui. Que horas você disse que foi o acidente? – O atendente respondeu ainda com os olhos no monitor.

– Foi há pouco tempo. Há trinta minutos falei com alguém ...

– Não tenho nada no meu sistema!

– Mas ... – Os olhos de Marcelo mostravam desalento.

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– Senhor – O atendente falava agora com os olhos em Marcelo –Não posso fazer nada, desculpe, ela não está no meu sistema, e há mais de duas horas não vem qualquer ambulância para cá. Estamos sobrecarregados nesta noite.

– Mas se ela não está aqui, onde pode estar?

– Desculpe-me, não posso ajudá-lo! Talvez ainda não tenha dado tempo para a ambulância chegar, ou ela foi para outro hospital! Lamento!

Por um momento Marcelo ficou com o olhar perdido no atendente, mas após alguns segundos deu lugar ao próximo da fila. Cabisbaixo, tentando digerir tudo, sentou-se desorientado num banco próximo. “Talvez não tenham chegado ainda!”, pensou. “Ou será que a levaram para outro hospital?”. Não conseguia entender o que havia acontecido.

Decidiu esperar até uma ambulância chegar.

Marcelo sentia a sua cabeça rodar. Com as duas mãos na nuca e o pé direito batendo no chão repetidamente, ele lutava para não se entregar ao desespero. Embora a ansiedade aos poucos o dominasse, sendo racional como era, tentava não se render às emoções. O rapaz negro que o observava, educadamente se sentou ao seu lado.

– Sua namorada bateu o carro? – perguntou puxando conversa.

– É … e eu não sei onde ela está … – Marcelo respondeu olhando para o chão.

– Fica tranquilo que as coisas vão melhorar – Disse o rapaz.

– Eu estou confuso e angustiado – Marcelo confessou, enquanto levantava a cabeça, voltando-se para o rapaz com um olhar pesaroso. Estava tão desnorteado que não se importava em falar com um estranho –Ontem eu a pedi em casamento! Agora, com este acidente, meu mundo inteiro parece estar desabando.

– Você a pediu em casamento?

– Sim! – Abaixou novamente a cabeça

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– Não consigo imaginar a sensação de um dia noivar e no outro passar o que você está passando – O rapaz suspirou.

– Mas ela não é minha noiva!

– Você falou que a pediu em casamento!

– Sim. Infelizmente esta é uma longa história ...

– Bom … não quero me intrometer na sua vida pessoal. Mas sabe o que mais me intriga nesta noite? – Perguntou o rapaz.

– O quê? – resmungou Marcelo – É que eu sonhei com você! – Marcelo levantou novamente a cabeça, fixando um olhar desconfiado no rapaz.

– Como assim? Do que você está falando? Você nem me conhece! – Eu sonhei com um acidente de carro, moço. Neste acidente havia um homem e uma mulher – Marcelo escutava atentamente – A moça tinha olhos verdes e cabelos castanhos. Dirigia um carro preto que foi empurrado por uma van também preta.

– De onde você tirou tudo isto? – Marcelo perguntou.

– O homem do meu sonho, moço, era você! Eu sonhei com você, tenho certeza disso! Sonhei com sua namorada e com o acidente! – Marcelo ouvia sem entender nada. – Também sonhei que estaríamos sentados aqui neste hospital conversando sobre o acidente! Por isso vim para cá, para falar com você! No início pensei que fosse coisa da minha cabeça, mas o sonho foi tão vívido que eu não consegui ficar em casa. Eu tinha que vir. Agora eu tenho certeza de que foi Deus quem me mandou aqui!

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Reminiscência ou revelação?

Osom do vento cortando caminho entre os prédios se ouvia de longe. O silêncio na noite curitibana se revestia de um frio cortante e envolvente, abraçando árvores e casas, carros estacionados e vigias noturnos que faziam ronda pelas vielas soturnas da capital paranaense. As nuvens cinzas que cobriam a cidade como um véu enegrecido, sob a melodia do vento dançavam acima das cabeças numa coreografia extasiante. Tal qual uma noiva gótica, Curitiba transparecia na escuridão daquela noite de inverno. Linda, fria e perigosamente misteriosa.

Marcelo pegou seu celular e rapidamente ligou para o número de Kelly, entretanto, a ligação acabou na caixa postal. Ficou pensando no que deveria fazer. Seu celular estava com a bateria baixa, e imediatamente decidiu ligar para alguns hospitais próximos. Um a um, ele ligava perguntando se Kelly havia sido levada, mas a resposta era sempre a mesma: “Não”. Ao tentar ligar para hospitais mais distantes, sua bateria acabou. Respirou fundo e se consolou com a ideia de que talvez a ambulância ainda não tivesse chegado.

Marcelo olhou para o rapaz ao seu lado, que não tirava os olhos dele e decidiu sair de dentro do hospital para poder respirar melhor e conversar com o rapaz. Assentado num banco ao lado de uma ambulância, deixava seus olhos perdidos em algum lugar do outro lado da rua, aguardando que a ambulância de Kelly viesse de lá. Inebriado pela noite estranha e abatido pelos acontecimentos da última hora, sua

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curiosidade enigmaticamente se voltava àquele rapaz estranho sentado ao seu lado.

Enquanto brigava contra os pensamentos de derrota e desânimo, sua mente se via curiosamente capturada pelo mistério do sonho que havia tido pouco antes da ligação. Um enigma que ficou ainda mais interessante com o rapaz que disse ter sonhado com ele. Com o cheiro de grama molhada que vinha com a brisa, e sob o som do gotejar do orvalho que se juntava na ponta de uma telha, e que ocasionalmente caía sobre a lataria da ambulância, Marcelo começou a conversar.

– Garoto! – Falou virando-se para o rapaz – Sua estória é muito estranha! Eu tenho certeza de que existe alguma explicação lógica. Sonhos não se tornam realidade! – Marcelo conhecia as explicações que Freud dava a respeito dos sonhos, e não acreditava em interpretações sobrenaturais.

– Com certeza deve haver algum equívoco!

– Você crê em Deus? – O rapaz perguntou enquanto Marcelo franzia a sobrancelha e se endireitava sobre o banco. – Sabe moço, não é a primeira vez que tenho um sonho deste tipo. De vez em quando Deus me faz sonhar coisas que ainda não aconteceram, e quando percebo, acontecem exatamente do jeito que sonhei.

– Como assim? – Marcelo falou enquanto observava um médico se aproximar. Ele estava do lado de fora descansando e ficou interessado na conversa.

– Sonhei que um carro preto era empurrado por uma van também preta sobre um viaduto. Acho que o viaduto é aquele que leva ao Jardim das Américas. – Marcelo cerrou as sobrancelhas – A pancada foi tão forte que o carro capotou e acabou batendo num poste logo depois do viaduto.

– Você sonhou com um carro preto batendo, e isto é muito vago. – Marcelo tentava racionalizar, mas sabia que o fato do rapaz falar detalhes tão específicos, como a cor do carro e até o viaduto, era algo espantoso. Mais espantoso ainda era que Marcelo nem sabia se o acidente de fato havia acontecido naquele viaduto, apenas que ele também havia sonhado o mesmo!

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– Enquanto o carro capotava, – O rapaz continuou – Me lembro de ouvir nitidamente sua namorada gritar – Olhou fixamente nos olhos de Marcelo – Ela gritava o seu nome, Marcelo! – Falou com seriedade. – Seu nome ficou gravado na minha memória! Marcelo!

– Mas … – Marcelo não sabia o que dizer.

– Depois sonhei com este hospital. Por isso vim até aqui. Eu sabia que o encontraria neste lugar. Sinceramente, não sei como explicar ... algo me dizia para vir.

– Como assim, “algo lhe dizia”? – Perguntou Marcelo, enquanto o médico próximo a eles prestava a atenção com interesse.

– Já disse que não sei explicar. É algo muito intuitivo e estranho de dizer. Por isso lhe perguntei se você acreditava em Deus, pois creio que foi Ele quem me enviou até você. – Marcelo lançou outro olhar cético.

– O mais estranho de tudo, garoto, é que eu tive um sonho muito parecido nesta mesma noite! Aconteceu um pouco antes de me ligarem dizendo que a Kelly havia batido o carro. Sinceramente, não consigo entender o que está acontecendo. Acredito que o meu discernimento a respeito desta situação esteja muito confuso no momento. Mas uma coisa é certa, não foi Deus! –Marcelo respirou fundo e olhou para o rapaz novamente. – Qual o seu nome?

– Daniel. Meu nome é Daniel!

O médico, que até então ouvia silenciosamente, se aproximou de maneira que tanto Marcelo quanto Daniel se voltaram a ele.

– Você experimentou um Déjà vu. – Afirmou o médico, encostado em uma ambulância ao lado de Marcelo.

– Como? – Indagou Marcelo.

– Não pude deixar de ouvi-los, desculpem-me a intromissão! – Respondeu o médico que aparentava ter uns cinquenta anos de idade. Seu cabelo levemente grisalho e seu olhar manso transmitiam simpatia e

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confiança. – Permitam-me apresentar-me. – Ele continuou. – Meu nome é Josué!

– O senhor é médico? – Marcelo o indagou fitando-o nos olhos.

– Sim. Estou respirando um pouco de ar fresco aqui fora. – Falou calmamente.

– Meu sonho não foi um Déjà vu. – Respondeu Daniel.

– Mas é o que parece! – O médico falou.

– Pelo que eu já li, um Déjà vu é uma confusão da mente, uma mistura de memórias. – Argumentou Marcelo. – É fruto da combinação de recordações antigas com fatos atuais, e que surgem do nada. O Déjà vu pode ser desencadeado por meio de cheiros, palavras, sons, músicas, ou qualquer lembrança relacionada à memória original, dando a entender que já vivemos aquele momento. A mente mistura as sensações passadas e presente. Você tem a impressão de que aquele momento já aconteceu, mas de fato ele nunca ocorreu! – Marcelo parou e olhou para o médico. – Entretanto, meu sonho não parece ter sido um Déjà vu.

– Sim, e eu quero falar outra coisa! – Disse Daniel. – Se fosse um Déjà Vu, não teria como eu ter sonhado a mesma coisa! Como podem duas pessoas sonhar a mesma coisa?

– Eu tenho outra interpretação. – Falou o médico. – A ciência não tem, até hoje, uma definição do que realmente sejam os Déjà Vu. Só há teorias!

– O que você acha que são? – Perguntou Marcelo.

– Um Déjà Vu sempre ocorre de maneira inesperada, quando você menos imagina. – O médico sentou-se ao lado de Marcelo. – Eu creio que Deus nos deixa ter pequenas amostras do futuro para que, quando as vivermos, possamos experimentar o assombro de sua intervenção. – Marcelo franziu a testa. – É provável que alguns Déjà Vu sejam realmente apenas pequenos fenômenos neurológicos despertados por gatilhos de memória! – O médico ignorou o rosto fechado de Marcelo e continuou. – Mas creio que há Déjà Vu que vêm de Deus, pois apontam para algo além daquilo que podemos ver e conhecer. É como um aviso, simplesmente isso. Um alerta vindo de Deus nos dizendo que Ele sabia que estaríamos exatamente onde estamos, fazendo precisamente o que estamos fazendo. Penso que o Déjà Vu é uma das

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inúmeras migalhas da imensa trilha deixada pelo Criador para que pudéssemos chegar até Ele. Como outros elementos deixados por Ele na natureza, os Déjà Vu são vestígios da eternidade em nossa temporalidade; é o vislumbre do infinito em nossa finitude.

Por um momento Marcelo quase se convenceu de que algo místico estava realmente acontecendo; porém, tinha evidente repúdio à ideia de que aquilo tinha a ver com um ser superior.

De cabeça baixa, Marcelo se lembrou de René Descartes. Sabia que o grande filósofo havia tido três sonhos muito estranhos numa certa noite e que, ao interpretá-los, criou o famoso método cartesiano, aplicável a todo e qualquer campo do saber. Ao transcrever a interpretação dos sonhos para um livro, mudou drástica e definitivamente o rumo da filosofia, da matemática, das artes e da ciência moderna. Seu Discurso do Método foi um separador de águas para o pensamento moderno. Talvez a própria ciência não existisse do jeito como hoje a conhecemos se não fossem aqueles três sonhos de Descartes! O próprio Descartes considerou seus sonhos como inspirados por Deus, embora os céticos posteriores tenham ignorado esta interpretação. Marcelo sabia que não só Descartes cria na iluminação divina, mas também Blaise Pascal, Isaac Newton, Robert Boyle, Francis Bacon, Michael Faraday, Samuel Morse, e inúmeros outros cientistas. Marcelo, no entanto, pensava diferente.

– Deus? Não acredito em Deus! – Respondeu Marcelo, indiferente. – Se fosse Deus o responsável por estes Déjà Vu, então tudo não passaria de uma grande brincadeira! Este Deus em quem vocês acreditam não passaria de um piadista! Isso, se ele existisse. Há muito tempo que eu já não acredito em contos de fadas! – Olhou fixamente o médico. – Deus não existe, doutor, quanto antes você despertar desta ilusão, melhor! Pensei que os médicos fossem mais inteligentes, imunes a esta crendice popular. Desculpe-me. – Fixou o olhar nos olhos do médico. – Mas isso eu não engulo! Isso é baboseira de ignorantes religiosos que não gostam de pensar!

– Você não me pareceu ser uma pessoa irrazoável. – Falou o médico. –Você acha que tudo pode ser explicado por meio da ciência?

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Como se Deus não existisse

– Me admira ouvir esta pergunta de um médico. Pensei que médicos soubessem melhor do que a maioria de que o que existe é o que está diante de nossos olhos. – Replicou Marcelo.

– Muito pelo contrário. Não posso falar em nome de todos os médicos, mas o que eu sei é que a nossa realidade física é apenas um dos lados da moeda chamada ser humano. Há um outro lado sobre o qual neurologistas, psicólogos, psiquiatras e filósofos só podem especular. Podemos estudar tudo o que um cérebro é capaz de fazer, por exemplo, e mesmo assim não entender o que é um pensamento. Estudar todos os hormônios e não entender o que é o amor, a paixão, ou a sensação de vislumbre que temos quando observamos algo belo.

– O que você quer dizer com isso? – Perguntou Marcelo. – Você é um dualista?

– Se dualista para você quer dizer uma pessoa que separa a realidade das coisas em termos de imateriais e materiais, então com certeza eu sou! Ainda que a realidade seja muito mais complexa do que apenas duas dimensões.

– Eu não sou um dualista! – Respondeu contundentemente. – Sou materialista, pois considero que apenas o mundo material e físico existe.

– Então você é um reducionista! – Falou o médico soltando um sorriso. – Pois qualquer pessoa que se diz materialista precisa reduzir tudo ao mundo material. Ou seja, os sentimentos humanos como o amor, a alegria, a raiva, a paixão, são apenas produtos da bioquímica de nosso cérebro. Ou seja, ilusões! Se nossos sentimentos são apenas resultados de reações bioquímicas, então não temos nenhum poder de escolha, e somos incapazes de tomar decisões contrárias ao que nosso corpo e a realidade material exige.

– Não sei se concordo com você. O que nossa liberdade tem a ver com isso?

– Veja. Se você é apenas um ser material, então o seu corpo é o responsável por suas decisões, e você não tem poder nenhum de escolher o contrário do que ele exige. As escolhas que você toma, na verdade, são meramente ilusões. – O médico sorriu novamente. – Veja, é lógico que fisicamente estamos debaixo da contingência de nossos corpos, que vez ou outra nos demanda dormir, comer, e satisfazer outras de suas necessidades. Mas ainda assim temos escolha de dizer não a ele. Há faquires na Índia que ficam sem comer por muitas semanas e até ignoram a dor, andando sobre brasas incandescentes. Há também aqueles homens e mulheres que, resistindo às demandas sexuais de

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seus corpos, passam a vida inteira em celibato deliberado. Como explicar estes casos, se somos apenas seres materiais? Se a realidade física e material manda no ser humano, como ele consegue dizer não a si mesmo e se controlar?

– Nunca havia pensado deste ângulo. Mas ainda não estou convencido de que exista outra realidade além da física. Acho que esta ideia toda é fruto da imaginação. – Marcelo falou abaixando a cabeça. – Isso é invenção de religiosos!

– Na verdade, este princípio está tão presente ao nosso redor, que vários filósofos do passado já falaram dele. Sócrates, Platão e Aristóteles, por exemplo, eram dualistas. É autoevidente perceber que o mundo é tanto material quanto imaterial!

– Concordo que estes filósofos eram dualistas. – Respondeu Marcelo levantando novamente a cabeça. – Mas o que eles falavam não tem nada a ver com o que você está dizendo.

– Não? Tem certeza? – O médico levantou-se e ficou de frente a Marcelo. – Platão trabalhou muito a ideia dos universais e dos particulares. Conhece este conceito?

– Conheço, mas quero ouvir aonde você quer chegar.

– Certo. Platão entendia que tudo no mundo físico é uma expressão particular de algo universal que existe numa realidade que ele chamava de mundo das ideias, ou das formas. Quando eu falo a palavra “triângulo”, por exemplo, você imediatamente imagina um triângulo, pois a ideia universal de triângulo existe fora da nossa realidade física, acessível a nós por meio de nossa mente. Ou seja, cada triângulo que eu desenhar será apenas uma expressão particular da verdade universal de que um triângulo sempre tem três lados e três ângulos.

– Sim. – Interrompeu Marcelo. – Platão também acreditava que a justiça, a verdade, e o belo eram realidades universais.

– Isso mesmo! – Sorriu o médico. – Há um diálogo em que Sócrates conversa com um homem chamado Cálicles sobre o que é justo. Sócrates argumenta que a justiça é uma realidade imaterial universal. Ele chegou a dizer que é melhor sofrer injustiça do que praticá-la. Ele afirmou que a justiça e a verdade são boas para a alma, enquanto a injustiça e engano a corrompem!

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Como se Deus não existisse

– Aonde você quer chegar?

– Veja, Platão disse que a justiça, a verdade, e o belo, por exemplo, são realidades universais e imateriais. Se elas não são verdades universais, imateriais e provenientes de outra realidade, então o que chamamos de verdade, justo e belo, são apenas ilusões de nossa mente.

– Mas será que não são realmente meras ilusões? – Marcelo falou com um sorriso irônico.

– Se você realmente quer ser coerente com o materialismo, então você deve admitir que não tem liberdade de escolha, pois todas as suas ações são produzidas por causas físicas. Tudo é um efeito dominó na bioquímica de seu corpo, e você não tem poder algum de mudar os resultados, pois não há nada além do corpo. Você é só uma máquina biológica refém de sua bioquímica. Não poderá mais dizer que ama a sua namorada, por exemplo, apenas que possui atração por ela. Afinal o amor é uma ilusão, pois verdades imateriais não existem! Se ela te trair, não poderá ficar ofendido, pois ela não teve escolha! Também não pode reclamar se alguém um dia te assaltar, pois como a justiça é ilusória, o assaltante só fez o que era melhor para ele, pois também não teve escolha! – O médico respirou fundo, e continuou. – Veja rapaz, sua experiência humana te mostra que o amor existe, assim como o que é justo, verdadeiro, e que temos alguma liberdade de escolha. Ser materialista é estar em contradição consigo mesmo!

O médico ainda falava, quando um Chevette antigo dobrou a esquina cantando pneus, entrando abruptamente pelo portão do hospital. Com o susto da freada repentina do carro a poucos metros de onde se sentava, Marcelo levantou-se de supetão, enquanto o barulho atraía a atenção daqueles que estavam do lado de dentro. O carro parou em frente aos três, e de dentro do Chevette dois homens armados saltaram para fora, um com uma escopeta e outro com um revólver. O que segurava a escopeta era um rapaz que aparentava ter uns vinte e poucos anos, vestindo uma calça jeans rasgada no joelho, uma camiseta e uma jaqueta velha; o que segurava o revólver era um adolescente que não parecia ter mais de quinze anos, usando uma bermuda larga, uma camiseta do Chicago Bulls, e um boné virado para trás.

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– Cê é médico? – Gritou o adolescente.

– Sim! – Respondeu Josué.

– Você vem com a gente! Entra no carro, agora! – Vociferou o rapaz que segurava a escopeta.

Daniel se levantou assustado com a situação, enquanto Marcelo observava atônito os rapazes e suas armas. Do lado de dentro do hospital, o policial que dava guarda sacou sua arma rapidamente ao ouvir os berros vindos do lado de fora. Caminhou cuidadosamente até a porta, enquanto fazia sinal para que todos ficassem em silêncio do lado de dentro. O adolescente estava perto da porta quando o policial avistou o outro rapaz segurando a escopeta. Embora não tenha visto o bandidinho quase do seu lado, aproximando-se astutamente da porta de entrada, o policial gritou de dentro, apontando seu revólver para o outro rapaz:

– Larga a arma! Agora! – Em rápido reflexo, o rapaz com a escopeta agarrou Daniel que estava em pé, derrubando Marcelo para trás do banco.

– Se você atirar, o cara morre! – A expressão no rosto de Marcelo era simplesmente de pânico.

– Larga a arma! – Gritou novamente o policial enquanto o adolescente armado se aproximava sem ser visto, por debaixo da janela.

– Eu só quero o médico! Entra no carro, véio! – Mas o médico não se mexia.

– Larga ele! – Gritou o policial com a arma apontada.

– Eu já disse que ele vai comigo! E o médico também! – O rapaz vociferou de volta.

O nível de adrenalina estava a mil no coração de todos naquele estacionamento. Tanto Marcelo quanto o médico olhavam apreensivos, esperando ver quem daria o próximo passo. A tensão era palpável naquele ar frio e denso da madrugada. Observando o adolescente

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Como se Deus não existisse

armado pronto para atacar o policial, a resposta parecia óbvia quanto ao que estava prestes a acontecer.

O adolescente avançou na mão do policial, que disparou sua arma ao ser surpreendido. O tiro acertou a janela de trás do Chevette, fazendo com que o barulho assustasse a todos. Do lado de dentro do hospital, uma gritaria descontrolada se iniciou, fazendo do lugar um pandemônio pior do que já costumava ser nos dias mais tensos da semana. Marcelo, ao ver uma oportunidade, correu para trás da ambulância, e juntamente com o médico, procurou se esconder do lado de dentro. O bandido e o policial lutavam pela posse de um dos revólveres. Como a arma do policial havia sido lançada longe, ele se segurou no bandido tentando arrancar dele seu revólver. Por fim, em meio à luta deixaram o revólver cair, disparando outro tiro, agora na carroceria da ambulância.

A luta do policial com o adolescente passou a ser só no corpo a corpo. O policial dava uma surra no garoto, que aguentava as pancadas como se estivesse acostumado a apanhar. O tiro que acertou a ambulância fez com que Marcelo pensasse que estava sendo alvejado pelo outro bandido. Ao ver que a chave da ambulância estava na ignição, ligou rapidamente o veículo, e mesmo agachado, colocou na marcha ré, e acelerou.

O rapaz com a escopeta ainda segurava Daniel, observando a luta de seu companheiro com o policial. Ao ouvir a ambulância ser ligada, rapidamente deu um pulo para trás, apenas um segundo antes de quase ser atropelado. Tudo acontecera num piscar de olhos!

O policial segurou o adolescente com as duas mãos e o lançou para o lado de dentro do Chevette, passando pela janela quebrada. Ao ver a ambulância passar de ré, correu para o outro lado, a fim de pegar o outro assaltante desprevenido. Foi neste momento que a ambulância acertou o poste que segurava o telhado da pequena entrada do estacionamento. O barulho fez com que as pessoas do lado de dentro do hospital, que não paravam de gritar, sentissem um pequeno tremor na estrutura do prédio. O impacto tremeu toda a construção, e o telhado veio abaixo! Isso no mesmo momento em que o policial se aproximava por trás do outro rapaz armado. Ele foi surpreendido por vários qui-

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los de telha e metal despencando sobre suas costas. Com o barulho, o rapaz da escopeta olhou para trás, e viu que por meio metro havia se livrado de também ser soterrado por aquela cobertura. Calmamente o bandido caminhou com a escopeta na mão até a janela da ambulância, e disse para Marcelo, batendo no vidro com a arma:

– A brincadeira acabou! Se tentar ser herói morre todo mundo! Tá entendendo?

– Si .. sim .. – Respondeu Marcelo.

– Você, o médico e o garoto vêm comigo! – Falou sorrindo – Entrem no Chevette!

Obedecendo imediatamente, tanto o médico quanto Marcelo e o rapaz entraram naquele Chevette antigo. Colocaram o adolescente desacordado no banco da frente e se sentaram na poltrona de trás que estava forrada de vidro da janela quebrada e com inúmeras marcas de sangue. O policial desaparecera por debaixo dos escombros, enquanto a gritaria do lado de dentro do hospital ressoava pelas ruas na noite curitibana. Marcelo agora não pensava mais no misterioso sonho que havia tido no início daquela noite, ou onde estaria a sua namorada, mas sim no pesadelo que literalmente atropelou sua madrugada. A confusão de sentimentos como a tristeza, a ira, e o medo se diluíam na adrenalina que percorria por suas veias.

Sabia que se Kelly estivesse com ele naquele momento de infortúnio, com certeza diria algo como: “Fique tranquilo meu amor, Deus está no controle!”. Ainda que Marcelo rejeitasse a ideia de confiar num ser superior, naquele momento pensou: “Se Deus realmente existe, este seria um bom momento para Ele aparecer!”.

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Lugar incomum

Revestida por nuvens negras e espessas, a lua reinava soberana sobre o céu de Curitiba. Sua luz atravessava as montanhas negrumes do céu, criando um efeito artístico na imensidão sem estrelas. O frio cortante parecia ter vindo para ficar, enquanto o som do vento assobiando ao longe trazia à noite uma espécie de sensação fantasmagórica. Os uivos de alguns cães faziam dueto com a lua e o vento, enquanto de longe o barulho austero de um carro barulhento trazia o caos para a calmaria da noite.

O Chevette antigo trovejava pelas ruas de Curitiba. Turbinado, cantava pneus a cada curva. Acelerava tanto que o barulho impedia até os pensamentos de serem ouvidos por aqueles que estavam dentro do carro. O Chevette costurou um caminho tortuoso deixando Marcelo e o médico sem noção de onde estavam sendo levados. Por fim perceberam que estavam no Jardim das Américas, subitamente adentrando no campus da maior universidade da cidade. Ao entrar pelo portão, que já estava aberto, o Chevette dirigiu-se diretamente a um prédio bem no centro da universidade. Marcelo e o médico se olharam tentando entender o que faziam naquele lugar. O pensamento de Marcelo vagava entre o céu e o inferno, navegando entre o sonho onde Kelly se acidentava, e a imagem do telhado despencando sobre o policial. Sua garganta havia secado, seus músculos se contraíam, e no seu peito o coração bombeava como uma britadeira, testando os limites de sua ansiedade.

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– Desce todo mundo do carro, e em silêncio! – Falou o rapaz apontando a escopeta para todos. Marcelo e o médico desceram assim que a porta se abriu, seguidos por Daniel. O bandido não queria perder tempo, e os empurrou na direção de um dos prédios. – Anda logo! – Gritou. – Já demoramos muito! – O adolescente que estava inconsciente já havia despertado. Visivelmente atordoado e mancando de uma das pernas, ele vinha atrás de todos com um revólver na mão.

A faculdade estava deserta. Os prédios ladeavam árvores frondosas que se derramavam bucolicamente sobre a paisagem, apenas deixando passar o som do vento que soprava das ruas. Nenhuma alma viva se via em qualquer lugar. Após abrir cuidadosamente a porta de metal com a chave que estava em seu bolso, o rapaz colocou todos para dentro do prédio, trancando-a novamente. Ao subirem pelo corredor escuro, o corrimão pintado de azul celeste transparecia na escuridão, revelando nuances do caminho em meio à penumbra. Chegando ao último andar, observaram uma placa de madeira sobre a porta de onde se aproximavam. Debaixo da porta, uma luz revelava que a sala não estava vazia.

O prédio estava totalmente escuro e como o som melancólico da brisa passava pela fresta da janela causando uma sensação fantasmagórica, Marcelo sentia um arrepio subir pela espinha. Como invadia a escuridão daquele corredor de maneira furtiva, e com duas armas apontadas para ele, Marcelo sentia-se caminhando para uma execução. Ele não fazia ideia do que o aguardava no restante daquela noite. Ao se aproximar da porta Marcelo e os outros conseguiram ler a placa de madeira: “Biblioteca”. Mais uma vez eles se entreolharam, sem entender nada.

A Biblioteca estava com as luzes acesas, e alguns alunos sentados e deitados sobre as mesas de estudo, enquanto quatro homens armados andavam de um lado para o outro, cuidando do lugar. Eram três corredores entre as estantes, sendo que nas paredes as mesas para leitura serviam de cama para alguns estudantes exaustos.

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Eliézer Magalhães

Como se Deus não existisse

Três pessoas, Catatau? Três pessoas? Será que você não consegue fazer nada direito? – Gritou um homem com um boné azul, enquanto a dupla trazia Marcelo, o médico e Daniel pela porta. O homem usava uma camiseta preta com manchas de sangue na gola e na barriga. Por baixo de seu boné azul, seu cabelo loiro escapava pelas bordas, contrastando com seus olhos também azuis. De estatura alta e magra, e fumando dentro da biblioteca, visivelmente não dava o menor valor a qualquer regra de conduta que se espera ter em uma biblioteca.

– Não teve outro jeito, tinha um policial ... – Desculpou-se Catatau.

– Traz o médico aqui, seu irmão já perdeu muito sangue!

Segurando firmemente o braço do médico, Catatau o puxou até fundo da biblioteca. Seguindo-o, Marcelo caminhava ao lado de Daniel, que tremia a cada passo que dava. De lábios cerrados e olhos inquietos, Marcelo tentava absorver tudo o que estava ao seu redor. Cada passo que davam era acompanhado pelos olhos dos rapazes armados observando através das estantes.

“O que eu estou fazendo aqui?” se perguntava Marcelo. Passou os olhos em cada um dos alunos presentes. Viu um estendido sobre uma mesa num sono profundo e outro acariciando os cabelos da namorada que descansava no chão. Uma menina chorava silenciosamente no canto da parede, enquanto outra lia um livro, sem se importar com o que acontecia.

– Entreguem os celulares! – Falou um dos homens.

– Eu não tenho celular!

– Respondeu Daniel enquanto Marcelo entregava o seu. Ao tentar seguir o médico até o final da biblioteca, foi interrompido por outro homem armado, que ordenou que se sentasse junto aos alunos, encostado na parede.

Do lugar onde haviam se sentado, olhando-se para o fundo da biblioteca não se via muita coisa, apenas o reflexo vermelho de uma poça sob uma mesa. Ouviam-se gemidos de dor vindos da mesma dire-

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ção, mantendo os alunos acordados e ansiosos. “Afinal, o que será que está acontecendo aqui?”, pensou Marcelo.

– O que aconteceu com ele? – Indagou o médico ao ser posto diante de um rapaz ferido, deitado sobre uma grande mesa.

– Vidro! – Respondeu o homem com o boné azul enquanto soltava uma baforada de seu cigarro.

– Vidro?

– Ora. Vidro, caramba! Vidro é vidro!

– Como isso aconteceu? Preciso saber o que ...

– Saber o que aconteceu não é da sua conta! – Respondeu o homem.

– Como? – O médico enrugou a testa. – Eu só preciso de alguns detalhes ...

– Se você fizer o seu trabalho, vai ficar tudo bem! Quanto menos souber, melhor! – Deu uma pitada no cigarro e voltou a falar soltando a fumaça pelo nariz – Faça o seu trabalho. – Respondeu rispidamente. – Ninguém mais precisa se machucar! – Deu uma baforada na cara do médico – O problema dele é vidro, ele está todo cortado. Só isso! Se ele se recuperar, ninguém sairá ferido daqui.

– Mas e se ele não se recuperar? – O médico olhou para o homem esperando uma resposta, mas ele virou as costas e saiu.

Encostados na parede, longe do barulho, Marcelo e o garoto esperavam ao lado de um casal de namorados. Daniel, o rapaz que havia sonhado com Marcelo, parecia tão nervoso que não conseguia mexer um músculo sequer. Do jeito que se sentou, ali ficou. Marcelo observava o estudante ao seu lado acariciar afetuosamente os cabelos da namorada. A adrenalina que havia sido injetada no seu corpo agora começava a esmaecer, amortecendo calmamente os seus sentidos. Ao olhar o casal, era impossível não se lembrar de Kelly. Pensava em seus cabelos e nos seus olhos. Lembrava-se do quão carinhosa e delicada ela

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Como se Deus não existisse

sempre o tratava. “Afinal, como será que ela está? E aonde?”, pensava encostando sua cabeça na parede.

Inebriado pelo esvanecer da adrenalina, seus nervos até então tensos queriam se entregar ao cansaço. Ao mesmo tempo em que suas pálpebras começaram a pesar, os pensamentos de Marcelo surgiam em sua mente como uma avalanche de questionamentos: “Onde está Kelly?”, “Será que ela está bem?”, “Que sonho foi aquele que eu tive?”, “Como este rapaz sonhou o mesmo que eu?”, “Como eu vou sair daqui?”. Marcelo trafegava entre mundos naquele estado semiacordado. “Preciso sair daqui!”, repetia a si mesmo. Querendo vencer o sono, começou a balbuciar como se estivesse em transe.

– Não tem como sair daqui! – Falou o rapaz que acariciava os cabelos da namorada.

– Como? – Reagiu Marcelo, percebendo que havia falado alto.

– Você disse que precisa sair daqui! – Falou o rapaz enquanto passava lentamente as mãos entre os cabelos de sua namorada. Os dois eram loiros e com olhos claros, por volta dos vinte anos de idade.

– Eu? – Respondeu Marcelo, ainda tentando despertar.

– Eles não vão nos deixar sair até que descubram uma maneira de fugir com o dinheiro.

– Dinheiro? Que dinheiro?

– O dinheiro nas sacolas brancas! – Apontou para quatro sacolas próximas às estantes do outro lado da sala, próximo a um rapaz com uma escopeta sobre o colo. – O que eles assaltaram eu não sei. – Continuou o rapaz. – Mas parece ter muito dinheiro ali. – Marcelo arregalou os olhos e sacudiu a cabeça. Foi quando lhe veio um pensamento: “Uma quantia tão grande de dinheiro seria motivo de sobra para aqueles marginais matarem qualquer um que atrapalhasse seus planos”. O que ele pensou ser um sequestro equivocado, na verdade era um assalto, no qual ele e aqueles estudantes se tornaram reféns de assaltantes violentos, cujo plano desconhecido poderia até envolver a morte de alguns ali.

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No pronto socorro do Hospital Evangélico, duas enfermeiras correm apressadamente para atender um chamado urgente. O auto falante do hospital chamava alguns médicos para a sala de emergência, enquanto três ambulâncias iluminavam com suas luzes giroscópicas as paredes do lado de fora. Várias macas colocadas lado a lado aguardavam o atendimento emergencial naquela noite fria e úmida. Logo em frente à porta de uma das ambulâncias, a maca de uma moça inconsciente aguardava, deitada com um colete cervical e outras proteções pelo corpo.

– O que aconteceu? – Perguntou um médico enquanto colocava suas luvas e máscara.

– Um acidente! – Respondeu uma das enfermeiras enquanto empurrava uma das macas.

– Droga! E eu que pensava que esta noite seria tranquila! Qual deles é o mais crítico? – Perguntou o médico enquanto outros enfermeiros se aproximavam.

– O homem ali está ... – A enfermeira começou a responder, mas o médico segurou sua mão impedindo-a de continuar. Ele havia se virado e percebido a moça inconsciente sobre uma das macas. Atônito, parecia enxergar algo que a enfermeira não havia visto. Após alguns segundos, ele falou:

– Chamem o Dr. Silas! – Falou com os olhos fixos na moça.

– O dermatologista? Ele não faz plantão a noite ...

. 35 Silêncio

Como se Deus não existisse

–Isso! Chamem ele agora!

–Mas doutor, ele deve estar dormindo! – Respondeu a enfermeira sem entender nada. Afinal, para quê chamar um dermatologista para uma emergência como aquela?

–Acorde-o! Ligue até ele atender. Ele deve vir para cá urgentemente! –Falou enquanto empurrava, ele mesmo, a maca da moça em direção a uma das salas.

–Mas doutor ...

–Diga a ele para vir o mais rápido possível ... urgente! – E com os olhos apontou para a moça deitada na maca que empurrava.

–Mas ...

–Diga a ele que a Kelly acabou de dar entrada no pronto socorro! Ele não vai demorar mais do que alguns minutos para chegar!

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