Como entender os textos mais polêmicos da Bíblia – Evangelho de João

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Copyright©2014 por Jaziel Guerreiro Martins

Coordenação editorial: Priscila Laranjeira

Todos os direitos em Língua Portuguesa reservados por:

Capa: Igor Braga

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) MARTINS, Jaziel Guerreiro Como entender os textos mais polêmicos da Bíblia – Evangelho de João / Jaziel Guerreiro Martins – Curitiba : A.D. Santos Editora, 2014. 14x21 cm. ; 104p. ISBN 978-85.7459-336-4 1. Hermenêutica Bíblica. 2. Estudos Bíblicos. I. Título.

CDD 220

1ª Edição: Março / 2014 – 2.000 Exemplares

Proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios a não ser em citações breves, com indicação da fonte.

Edição e Distribuição:

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Sumário

Prefácio.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . V

Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VII

1 O que significa o “Verbo” no capítulo 1?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 2 Qual a finalidade de Jesus

transformar água em vinho?.. . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

3 O que Jesus quis dizer

com nascer da água e do espírito?.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

4 Jesus quebra tabus ao falar com a mulher samaritana.. . . . . . . 37 5 Por que João insere o milagre do capítulo 5

em seu evangelho?.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

6 Por que Jesus fez lodo para curar o cego de nascença?.. . . . . . 57 7 Por que Jesus demorou tanto para visitar

a Lázaro que estava à beira da morte?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

Conclusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

Bibliografia.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

Sites da Internet. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

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Prefácio

Q

uando alguém se converte a Cristo, imediatamente recebe a orientação de que comece a ler a Bíblia, o que, com toda a certeza, é extremamente necessário e relevante para a vida cristã. Não raras vezes se lhe sugere que comece pelo evangelho de João, por ser simples e mais apropriado para este início de jornada. E, então, o novo NA FÉ começa a ler: “No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus” (Jo 1.1). “Verbo?! Como assim?” E este é apenas o primeiro verso do livro... Teólogos têm se debatido por quase dois milênios procurando o significado que João pretendeu dar às palavras que utilizou nesta abertura, o que atesta a complexidade da passagem. De qualquer forma, temos que concordar: há certas passagens em João que não são simples de serem compreendidas ou explicadas. Esta e uma série de outras passagens polêmicas do Evan­ge­lho de João são alistadas, analisadas e debatidas pelo Dr. Jaziel Guerreiro Martins, na presente obra. Pessoalmente, tive o privilégio de ter sido aluno do professor Jaziel, nos anos 90. Algumas das características do mestre Jaziel em sala de aula transparecem visivelmente também em sua obra literária.

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Destaco primeiramente a erudição. Tratar de temas como os abordados no livro demanda um saber aprofundado na área, além de uma cultura vasta e variada. Junte-se a isto a precisão. Em muitos dos temas (veja-se a abordagem sobre o Logos, como exemplo) há uma linha muito fina entre afirmações corretas e possíveis afirmações contraditórias e, nestas horas, a linguagem necessita ser extremamente precisa. Contundência é outra característica do texto, que vai direto ao assunto, sem rodeios, fazendo afirmações fortes e impactantes. Finalmente, a obra não deixa de trazer aplicações práticas relevantes para nossos dias, em todos os textos analisados. Meu desejo é que o conteúdo sirva de edificação e crescimento para todos os seus leitores, quer sejam teólogos, estudantes ou leigos, assim como foi para mim. Dr. Claiton André Kunz, biblista Faculdade Batista Pioneira

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Introdução

O

Estudo do Novo Testamento continua sendo e sempre será relevante pelo seu conteúdo salvífico apresentado em torno da pessoa, obra, milagres e ensinos de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Nele é retratada a maior revelação de Deus em toda a história: a encarnação de Jesus. Isso é por si só assaz fundamental para qualquer cristão, estudante de Teologia, exegeta ou pregador da mensagem cristã. Sem o conhecimento de Cristo e de sua mensagem, não existe Cristianismo, nem mesmo boas novas a serem apresentadas aos que carecem da graça e da misericórdia de Deus. Enquanto o Antigo Testamento aponta para a esperança futura de um Messias que viria para redimir o Seu povo, o Novo Testamento apresenta a chegada desse Messias e Rei que veio para reinar nos corações dos homens. A importância do Novo Testamento não está em mostrar um novo Deus, nem que algo novo surgiu na história: o Novo Testamento fala com clareza do cumprimento das profecias veterotestamentárias com a chegada do Messias esperado. Muito embora os judeus da época de Jesus aguardassem um Messias guerreiro e libertador, cuja função seria uma libertação política do Império Romano, o Novo Testamento apresenta um Reino de Deus que não é terreno; é celestial, espiritual, transcendental e acima de tudo, com uma mensagem

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de mudança nos indivíduos através da fé no próprio Jesus e do arrependimento dos pecados. O Evangelho de João é um livro fundamental no entendimento da pessoa e obra de Jesus Cristo. Diversamente dos livros Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) que tentam narrar os fatos que ocorreram na vida de Jesus de forma cronológica, este Evangelho procura mostrar sob o ponto de vista teológico e filosófico que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus. Daí a razão pela qual não existe preocupação com cronologia ao se narrar os fatos da vida de Cristo. Ele é um livro que se preocupa mais com a lógica segundo a qual o autor se propôs a escrever, do que com aspectos puramente cronológicos. O Evangelho de João é dividido da seguinte forma: a) Parte Introdutória do livro (capítulo 1), que é o Prólogo e as primeiras testemunhas acerca de Jesus; b) o Livro dos Sinais (capítulos 2 a 12), em que o autor escolhe sete sinais que vão crescendo em importância e significado, culminando com o maior milagre realizado por Cristo, qual seja, a ressurreição de Lázaro; c) o Livro da Paixão (capítulos 13 a 20), em que João descreve os últimos ensinamentos de Cristo aos seus discípulos durante seus últimos dias, bem como sua morte e ressurreição; d) o Apêndice ou Escrito Posterior (capítulo 21) escrito por um dos discípulos de João ou por ele mesmo. Nosso objetivo é tentar responder algumas perguntas que sempre têm sido levantadas pelos estudantes de João, sejam membros de igrejas, alunos de Teologia ou pastores. Muitos não compreendem os mistérios apresentados no Prólogo de João, em particular o desenvolvimento teológico-filosófico da palavra “verbo” em Português, que é a tradução do termo helênico “Logos”. Há outros que não conseguem entender o porquê nem o significado do milagre realizado por Jesus Cristo em Caná da Galileia: a transformação da água em vinho.

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Introdução  | IX

Por conseguinte, há vários outros temas de difícil compreensão no Evangelho de João, mas que, analisados com muito estudo, perspicácia e profundidade, podem nos trazer compreensões impressionantes sobre o raciocínio do autor do Evangelho ao escolher determinados milagres e diálogos só contados por ele. Destarte, podemos verificar o que é nascer da água e do Espírito, e perceber o significado da conversa de Jesus com uma mulher samaritana. Em relação aos milagres, João insere sete sinais que normalmente retratam uma afirmação do Cristianismo ou da pessoa de Cristo, em contraste com a crença, a superstição e a religiosidade dos judeus, mostrando sempre sua messianidade e divindade, como nas curas realizadas do paralítico no tanque de Betesda, do cego de nascença do Tanque de Siloé e a ressurreição de Lázaro. Quem lê o livro com cuidado sempre há de perceber que o autor do Evangelho caminha invariavelmente para um clímax no Livro dos Sinais, mostrando a superioridade de Cristo sobre o Judaísmo e a Lei dos Judeus. Assim, é essencial que se analise de forma técnica, científica e acima de tudo espiritual, os vários temas que o Evangelho de João aborda. Este livro não tem a função de analisar todos os objetivos de João, autoria, data, local de escrita e demais elementos introdutórios que podem ser encontrados nos comentários de João. Sendo Jesus Cristo a máxima revelação de Deus e o Messias prometido nas páginas do Antigo Testamento, o propósito é lançar luz e entendimento para que o leitor possa entender, pesquisar, analisar, discutir, debater e aprimorar seus conhecimentos de questões importantes inseridas no Evangelho de João. Questões mais aprofundadas e abrangentes relacionadas ao tema devem ser discutidas a partir de leituras de livros relacionados na bibliografia As Igrejas estão cada vez mais exigentes em termos de expectativas. Com isso, o ministro precisa ser um bom pregador e um bom conhecedor da Bíblia. O cristão precisa se aprofundar cada vez mais no conhecimento e no entendimento das Escrituras,

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trazendo enriquecimento às pessoas que estão a sua volta. Daí a grande importância e necessidade do surgimento deste livro. Espera-se que o leitor tenha um grande aprendizado e que o uso deste material seja enriquecedor no entendimento da vida de Jesus Cristo, seus ensinos, seus milagres e sua paixão descritos por aquele que tem sido conhecido como o Evangelho do amor: o Evangelho de João. Uma excelente leitura! Jaziel Guerreiro Martins

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1 O que significa o “Verbo” no capítulo 1?

O

Prólogo Introdutório de João (versos 1 a 18 do capítulo 1) tem toda a aparência de haver sido ou um poema ou um hino cristão primitivo, com comentários entremeados, vazados em forma de prosa. É até possível que esse hino ou poema tivesse existido em aramaico e alguns teólogos tenham tentado traduzi-lo para o aramaico, restaurando assim o poema. A Escola de Cambridge, na Inglaterra, tem exposto outra ideia: este Prólogo seria uma adaptação de um hino em louvor à Sabedoria, e que nele se pode captar a linguagem usada nos livros de Provérbios, Sabedoria de Salomão e Eclesiástico, de acordo com a tradução da LXX. Se essa teoria expressa a verdade, os versos 6 a 8 e o verso 15 devem ser considerados como interpolações vazadas em forma de prosa, acrescentados por motivos polêmicos. Há outros que afirmam que dificilmente ele foi escrito como poesia, mas sim em prosa rítmica. Sem importar qual dessas teorias expressa a verdade, ou se existe ainda outra teoria

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diferente que esteja mais próxima da verdade, fato é que parece perfeitamente claro que a suposição de que se trata de um hino ou poema provavelmente seja a suposição correta. O Prólogo do Evangelho de João é a abertura do livro, cujo tema é o “Logos” (Verbo) de Deus, pré-existente, encarnado, rejeitado e, no entanto, aquele que revela Deus aos seres humanos, bem como o doador da autêntica filiação, ou seja, da nossa participação na natureza do próprio Logos; e isso, para todos aqueles que confiam em sua missão divina. Os temas subordinados do Prólogo são vida e luz, glória e verdade, bem como o conflito que ruge entre a luz e as trevas. O Prólogo de João é onde está contida a substância e o tema central do evangelho inteiro de João. A Palavra Eterna de Deus, originária de toda existência, aquele que é Vida e Luz, tornou-se carne, “tabernaculou” entre nós, foi testemunhada por João, rejeitada pelo seu próprio povo, embora tivesse sido acolhida por alguns, os quais receberam o poder de serem feitos filhos de Deus. Ele foi a perfeição, o zênite, o clímax, o término da revelação que Deus quis fazer de si mesmo; revelação essa parcialmente feita na lei, mas plenamente declarada na pessoa de Jesus Cristo. De acordo com Agostinho, João, como sentisse ser opressivo andar sobre a face da Terra, abriu o seu tratado, por assim dizer, com o estrugir de um trovão; ele se elevou não meramente acima da terra e de todo o círculo dos ares e do firmamento, mas até mesmo acima de toda hoste de anjos e de toda sorte de poderes invisíveis, tendo chegado até Àquele por quem foram feitas todas as coisas ao dizer “No princípio era o Verbo”. Todo o restante corresponde à sublimidade desse começo, e ele se refere à divindade de nosso Senhor como nenhum outro o fez. Veremos em seguida uma exposição dos versículos do Prólogo em que o tema do Verbo é tratado. No princípio – Temos aqui uma óbvia referência às palavras iniciais do Antigo Testamento, que descrevem a criação original. Essa alusão ao livro de Gênesis se torna bem patente quando

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O que significa o “Verbo” no capítulo 1?  | 3

lembramo-nos que qualquer judeu podia falar constantemente do livro de Gênesis e citá-lo como “be reshith”, isto é, “No princípio”. À base dessa observação, alguém menos avisado pode insistir que a frase empregada pelo autor do Evangelho seja uma mera referência à criação original. Se assim fosse, essa frase ensinaria meramente a preexistência do Logos, mas não a sua eternidade. Devemos observar que versículo não diz: no princípio o Logos se tornou, ou foi criado, mas sim, que ele já era. Naturalmente que isso não requer que o Logos seja eterno, mas tão somente que já existia antes da criação, conforme a conhecemos. Porém, qualquer indivíduo que tenha estudado o ensino sobre o Logos, a começar por Heráclito, passando pelo Estoicismo, Neoplatonismo, por Filo que é um judeu neoplatônico, jamais poderia afirmar que o Logos poderia ter tido um começo, ou que poderia fazer parte da criação. Isso seria algo totalmente alheio a qualquer noção que fora proferida no mundo antigo acerca da natureza do Logos. Não se pode encontrar em parte alguma do pensamento antigo, uma única linha que recomende a teoria de um Logos que não seja eterno. Assim sendo, João faz uso da expressão “No princípio”, utilizando-a no evangelho como equivalente à “eternidade passada”, ou seja, o autor traspassa a ideia do princípio inserido em Gênesis, o qual estabelece um ponto distinto no tempo, a criação. Ao contrário, faz menção da eternidade passada, onde o Logos sempre existiu. Em Gênesis 1.1 o historiador sagrado começa do princípio e vem descendo, assim mantendo-nos na vereda do tempo. Mas aqui, o autor sagrado começa no mesmo ponto e vai subindo, conduzindo-nos dessa maneira, à eternidade que antecedeu o tempo. Em Gênesis, “No princípio” inicia a história da primeira criação; aqui a expressão inicia a história da nova criação. Nessas duas obras de criação o agente é sempre a Palavra de Deus. Platão se utilizou dessa palavra “princípio”, arché, fazendo referência à força originadora, ou aquele que começa, aquele que gera. Se olharmos para Apocalipse 3.14 veremos que Cristo é

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referido como o princípio da criação de Deus, palavras estas que significam que Ele é o agente primário, o iniciador da criação, a força ou energia criadora, e jamais isto significa que ele foi a primeira coisa a ser criada. Esse uso também aparece no evangelho apócrifo de Nicodemos, onde Satanás é intitulado de “arché” da iniquidade, significando claramente que ele é o personagem que trouxe o mal à existência, é o originador do mal. Mas, aqui em João, Cristo é o originador do bem, de todas as coisas, sendo que “viu Deus que tudo era bom”. Embora haja diversas maneiras de alguém chegar à mesma conclusão mediante as diferentes interpretações do vocábulo “arché”, sempre se chega à conclusão de que aqui é ensinada a eternidade do Verbo de Deus. Nenhuma outra interpretação é possível quando nos lembramos da antiga noção acerca da natureza do Logos. Qualquer outra interpretação seria um escárnio de séculos de filosofia especulativa, a qual desenvolveu a doutrina do Logos, e que o autor desse evangelho descobriu ser tão apropriado como veículo de seus esforços ao ensinar algo sobre a natureza do Cristo Eterno. Na verdade, João está elevando essa frase de sua referência a um ponto no tempo, o começo da criação, para o tempo de preexistência absoluta, antes de qualquer ato de criação, o que já é mencionado no terceiro verso desse prólogo. Esse princípio de João nunca teve começo. Ver João 17.5; 1 João 1.1; Efésios 1.4. Era – Essa elevação do conceito aparece não tanto em arché, que simplesmente abre espaço para o mesmo, mas aparece principalmente na palavra “ein” (era), que denota existência absoluta. Compare com o texto de João 7.58. O ser humano tem existência, existe; o Logos não existe: ele É. Abraão, Isaque, Israel, Davi, Pedro, existem; mas Deus é. “Eu sou” em João possui dois ensinos (mostra que ele é Deus e mostra o que Deus é). Em Apocalipse fala-se “dAquele” que era, Aquele que é, Aquele que há de vir (não fala que será, pois se ele vai ser um dia “o que não é”, significa que falta alguma coisa para ser; e, se

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falta alguma coisa para ser, não pode ser o que é). Nele não há mudança nem sombra de variação, Ele é o mesmo ontem, hoje e para sempre. Se ele chegar a ser no futuro algo que não é, é porque progrediu ou regrediu. Se regrediu é porque piorou, se progrediu é porque melhorou, mas o Ser divino nunca pode ser melhor ou pior do que sempre foi, pois então não seria Deus. Ao invés de “veio à existência”, verbo empregado nos versos 3 e 14, referindo-se à criação que veio a existir e ao Verbo Logos, quando se tornou carne, o autor usa o verbo SER. Quando se refere à encarnação e à humanidade de Jesus, ele usa a expressão “veio à existência”, mas ao referir-se ao Cristo pré-encarnado ele usa a expressão ERA. O Verbo – A palavra traduzida por Verbo é a palavra grega Logos. É difícil traduzir tal palavra, mas ela pode ser traduzida por Verbo, Palavra, Ideia, Razão, Fala, Sabedoria, Palavra em Ação. Nas escolas gregas, o Logos significava o princípio de razão ou ordem imanente no universo, o princípio que dá forma ao mundo material e constitui a alma racional no ser humano. Para Heráclito, e depois para os estóicos, o Logos seria a razão universal, a força criadora eterna, a energia sustentadora e orientadora, a alma do mundo. Acreditavam os estóicos que o Logos estivera com o Supremo Bem, como sendo sua própria razão, desde toda a eternidade. É o logos Endiathetos. Posteriormente, essa razão procedeu da essência de Deus, conforme a própria decisão de Deus, como o Logos proforikos, a Palavra que se originou em Deus, que criara o mundo de acordo com a sua razão e mediante a Palavra que procedeu Dele. Também acreditavam que algo do Logos encontrava-se em todos os homens. A razão, como um embrião, encontra-se implantada dentro deles. É o logos espermátikos. No entanto, na filosofia grega, o Logos seria uma força cósmica, material, impessoal, diferente do Cristianismo que atribui personalidade a ele. A palavra “Logos” também tem seu pano de fundo no Antigo Testamento. Nele, a palavra indica Deus em ação, em

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especial na criação, na revelação e na libertação. Não há diferença entre Deus falar e Deus agir: “Haja luz e houve luz”. A palavra do Senhor é uma terminologia que pode ser perfeitamente personificada no Antigo Testamento. A palavra do Senhor age como um mensageiro, como um agente de Deus. No Evangelho de João, com todo esse pano de fundo, o Logos aparece como uma força criadora, uma força controladora; mas acima de tudo ele é uma pessoa. Ele é uma personalidade de natureza divina, ele é Deus. Ele é Deus de Deus, gerado na eternidade, mas não feito. Ele é consubstancial com o Pai Eterno. É ele quem revela a Deus, é ele que serve de conexão entre Deus e nós, motivo pelo qual lhe convinha compartilhar das naturezas divina e humana, pois somente um ser totalmente divino e totalmente humano é que poderia fazer essa ponte de ligação. O Logos veio a fim de aproximar Deus dos homens; veio a fim de entregar os homens de volta a Deus, ao ponto em que os homens viessem a participar da essência divina, conforme ela se manifestou no Logos, na pessoa do Filho, no Cristo, porquanto finalmente todos seremos inteiramente transformados em sua imagem. Essa doutrina do Logos é a mais elevada, a mais sublime do sistema bíblico, embora venha sendo peremptoriamente ignorada pela igreja, que só volta as suas vistas para questões comparativamente iniciais do perdão dos pecados e a mudança de endereço para o céu. O evangelho, entretanto, envolve muito mais do que isso; a doutrina do Logos nos faz lembrar qual é o ensinamento central do evangelho de Cristo, a saber, a transformação dos cristãos segundo a própria imagem de Cristo. O Verbo estava com Deus: Algumas traduções dizem: “face a face com Deus”, expressando a opinião de que as palavras “com Deus” dão a entender comunhão, e não mera presença ou caráter distinto de pessoas. A preposição usada por João na língua em que escreveu sugere não apenas existência em justaposição, mas intercâmbio e comunhão entre pessoas. Denota relacionamento entre pessoas iguais e, portanto, personalidades separadas. Como

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diz Crisóstomo: “Não em Deus, mas com Deus, como pessoa com pessoa, e isso eternamente”. O Logos é possuidor de autoconsciência, tendo uma personalidade distinta, mas ao mesmo tempo, desfruta da comunhão com Deus Pai. Embora existisse eternamente com Deus, o Logos estava em perfeita comunhão com Deus. “Pros”, com o acusativo, na língua grega, apresenta-nos um plano de igualdade e intimidade, face a face um com o outro. Não é como um anjo que simplesmente assiste na presença de Deus, é alguém que está no mesmo nível de Deus. Alguém que se comunica de igual para igual. A eternidade não fora solidão para Deus, nem Deus foi um solitário. Deus nunca estivera a sós, porque com ele estava o Verbo, e este Verbo era ao mesmo tempo Deus. Deus é amor e quando não havia kosmos, mundo, humanidade, criaturas para serem amadas por Deus, o objeto do amor de Deus, o qual é fonte eterna de amor, era o Logos. Deus é amor, mas quando não havia criatura a quem Deus demonstraria o seu amor? Ao filho, pois Deus sempre foi amor, desde os tempos eternos e quem ama precisa manifestar esse amor a alguém, senão manifesta egoísmo, egocentrismo, amor próprio. Deus é amor e sempre foi amor no sentido de que ama a alguém. Quando não havia criatura para amar, ele sempre amou o Filho, que é o objeto de seu amor desde sempre e eternamente. Jesus orou: “Aquele amor com que me amaste antes da fundação do mundo” (João 17.24). Daí a necessidade da existência da Trindade. Não é um capricho, é uma necessidade em Deus se comunicar, pois só pode ser Deus se ele se comunica, se demonstra amor e para isso precisa haver uma segunda e uma terceira pessoas na Trindade: o Pai ama eternamente, o Filho é o amado do Pai eternamente, e o Espírito Santo é o próprio Amor, eternamente. Há, portanto, no ser eterno de Deus, uma vida social. Há conhecimento mútuo e comunhão entre as pessoas da Deidade. Por isso, devemos entender Deus como sendo pessoal, ele é tri-pessoal em lugar de unipessoal.

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O Logos está face a face com Deus, contrariamente ao homem que virou as costas para Deus. Através da obra de Cristo na cruz, passamos a ocupar a posição que ele ocupa desde o princípio. Nós, também, estamos virados na direção do Pai, podemos contemplá-lo virados na direção do rosto do Pai, pois Cristo Jesus nos uniu a ele. e o Verbo era Deus: aqui temos a ideia que completa o que tenciona ser uma declaração gradual acerca da natureza do Logos. A frase anterior conserva a distinção entre pessoas, pois o Logos estava face a face com Deus; nesta frase preserva-se a unidade de substância ou de natureza essencial. Começa-se a perceber que cada declaração que o autor faz vai explicando a anterior. O Verbo é eterno, razão pela qual deve ser considerado divino. Porém, essa divindade não significa que não possa existir distinção entre pessoas, porquanto o Logos estava com Deus e, por isso mesmo, é distinto de Deus Pai. Isso, no entanto, não significa que existam dois deuses, pois o Logos é Deus, idêntico em essência; é apenas parte de uma única essência divina, é uma segunda subsistência na essência eterna da divindade. Esta última declaração bíblica é a maior das três, e incorpora as outras em si mesma. O Verbo era Deus, não o Deus, como alguns afirmariam. Nem seria correto afirmar que Deus era o Verbo. O Logos é destacado na Trindade, mas a Trindade toda não é Verbo. Embora o Verbo seja Deus, Deus é muito mais do que o Verbo. E o Verbo se fez carne: uma das doutrinas mais salientadas no Evangelho de João é esta: a encarnação do Logos foi real. Jesus Cristo, além de ser Deus, totalmente Deus, foi um homem autêntico, e não uma espécie de corpo fantasmagórico. Ele sofreu as tristezas humanas e teve uma morte vergonhosa. Essa expressão contém a ideia central do prólogo do livro. A história antiga, anterior à encarnação, foi uma preparação para a vinda de Cristo, como cumprimento de todos os tipos simbólicos, profecias e as mais nobres aspirações dos homens. A história do mundo, após esse acontecimento, é subserviente à propagação e ao triunfo

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do cristianismo, até que Cristo venha a ser Tudo em Todos. Deus mesmo se manifestou em carne. Ele participou de nossa natureza para destruir as forças do mal, quando da sua morte. Satanás e todos os seus seguidores foram destruídos pela morte de Cristo na cruz, que triunfou de todos eles e os expôs publicamente na cruz. Ele assumiu nossa natureza para que, por nossa vez, pudéssemos assumir a sua natureza. Ele participou da nossa miséria, para que pudéssemos participar de suas riquezas e de sua plenitude. Ele andou em nosso mundo de trevas, para que pudéssemos participar de sua luz. Ele experimentou nossas fraquezas, nossas limitações humanas, para que pudéssemos participar de sua vida eterna. Ele veio para ser o Caminho para Deus, o Pai, mas também é o Pioneiro, o primeiro a andar por esse caminho. De todas as palavras que expressam a natureza humana, João selecionou a mais vil e desprezível, isto é, “carne”, vocábulo que no Antigo Testamento denota a porção mais inferior, perecedora, corruptível do homem. Mesmo assim, o Logos de Deus não desprezou a “carne” e, por isso, se tornou homem no sentido mais absoluto do termo. Cristo nunca pecou e, no entanto, tomou sobre si aquela natureza humana que se deixara envolver demasiadamente no princípio do mal e, assim, ficara debilitada, a fim de que pudesse elevar essa natureza até os lugares celestiais. Habitou entre nós: a palavra grega traduzida por habitou, na verdade, quer dizer “tabernaculou”, “armou a sua tenda”. O autor do evangelho quis fazer uma alusão ao tabernáculo, armado no deserto, onde o Senhor veio habitar no meio de seu povo. Havia manifestações visíveis da presença de Deus, como no caso da coluna de fogo e da nuvem que pairavam por cima da tenda da congregação: isso servia de sinal externo da presença e da manifestação de Deus. Deus em forma perfeitamente real, habitava com o seu povo antigo.

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10 |  Como entender os textos mais polêmicos da Bíblia – Evangelho de João

Nas páginas do Antigo Testamento o tabernáculo era o lugar da habitação de Deus e o lugar do encontro de Deus com os homens. Assim, o Logos veio ter com os homens, tornou-se homem, era Deus manifesto aos homens, era Deus mesmo habitando entre a humanidade e Cristo era também o lugar, o ponto de encontro entre Deus e os homens. Deus deu provas incontestes e indubitáveis, pois como eles viam a núvem e a coluna de fogo no Antigo Testamento, agora se pôde ver a glória de Deus em Cristo Jesus. Vimos a sua glória: resplandecia em Cristo Jesus uma glória maior que a glória do Antigo Testamento, a ponto dos homens terem dificuldades em suportar tais manifestações, como na transfiguração de Cristo. Nos milagres operados por Cristo, essa glória se evidenciou de forma toda especial. Tal glória também se manifestou na vida e no caráter perfeitos de Cristo, no cumprimento da ideia absoluta do que seja um verdadeiro homem. Veio para o que era seu e os seus não o receberam: essa expressão pode ser traduzida por “sua casa”. Isso se refere aos judeus, a raça no seio da qual Jesus nasceu. Jesus era o cumprimento das profecias acerca do Messias, e sua missão visava primariamente às ovelhas perdidas da casa de Israel. Eles provavelmente o reconheceram apenas parcialmente, suas mentes estavam embrutecidas e, por essa razão, não o receberam. Mas a todos quantos o receberam: isso significa compreender quem é o Logos, reconhecer plenamente sua mensagem e sua vontade, aceitar seus ensinos, sua moral, sua ética, sua conduta. Não é um simples “aceitar a Jesus” como pregado em nossos dias. Aos que creem em seu nome: crer é confiar absolutamente, é muito mais que um mero acreditar, muito mais que simples crença. Crer é dedicar-se, entregar-se de corpo e alma a Cristo. Crer é permitir a transformação da sua vida, sua moral e sua ética. Crer é uma qualidade, uma expressão, um atributo da alma humana, em que a pessoa toma uma decisão na vida que produz a

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O que significa o “Verbo” no capítulo 1?  | 11

radical transfiguração de seu próprio ser. Crer é renunciar a velha vida, participar da nova vida em Cristo, ser iluminado por ele, conhecê-lo profundamente e ser profundamente conhecido por ele. É se encontrar com o próprio Deus na vida. Deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus: os resultados desse recebimento demonstram certa modalidade de poder divino, o qual dá começo à transformação de vida do cristão em um verdadeiro filho de Deus, feito segundo a imagem de Cristo e a compartilhar da mesma essência divina. É um direito. Em Adão, com a entrada do pecado no mundo, o homem perdeu seu direito à filiação divina, perdeu seu contato com Deus, perdeu a presença do altíssimo. Mas, através do Logos que se fez carne, Deus vem ao homem e pelos méritos de Cristo, dá aos seres humanos a possibilidade de novamente voltarem a Deus, de se comunicarem com ele, de terem a presença viva e constante de Deus conosco. O evangelho de João mostra que o Logos é o eterno e unigênito Filho de Deus e que através dele, nós também nos tornamos Filho de Deus ao crermos nele. Deus se tornou filho do homem para que o homem se tornasse Filho de Deus. Por fim, esse prólogo do livro (capítulo 1, versos 1 a 18) antecipa a temática de toda a obra do Evangelho. Na vida e no ministério de Jesus de Nazaré, a glória de Deus foi revelada de maneira única e perfeita. O Logos é o máximo revelador de Deus; é através dele que o mundo foi criado; é através dele que a vida de Deus é passada aos homens; é ele a luz que ilumina todo homem que vem ao mundo; ele é o unigênito de Deus (o único gen) através do qual podemos também nos tornar filhos de Deus. Nós que éramos inimigos da luz, com as costas viradas para Deus, agora podemos através de Cristo, através do Logos que se tornou carne (uma impossibilidade para os gregos), ser justificados pela fé e ter livre acesso à presença de Deus.

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