textos jurĂdicos (Para a constituinte de 1987-1988 e sobre outros temas)
ALAOR BARBOSA Membro
Efetivo
do
Instituto
dos
Advogados de Goiás; do Instituto dos Advogados Brasileiros; da Academia Goiana de Letras; da Associação Nacional de Escritores; da União Brasileira de Escritores de Goiás; da União Brasileira de Escritores de São Paulo; da Academia Morrinhense de Letras; da Academia de Letras do Brasil; do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Consultor Legislativo do Senado Federal (aposentado). Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília, Curso de Mestrado em Direito pela Universidade de Brasília.
Alaor Barbosa
textos jurídicos (Para a constituinte de 1987-1988 e sobre outros temas) Apêndice I O caso da proibição judicial do livro Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa Apêndice II Ação de reparação por dano moral proposta por Alaor Barbosa 1. Petição Inicial ao juiz da 6ª Vara Cível de Goiânia 2. Impugnação à contestação Apêndice III Anistia: requerimento de Alaor Barbosa ao Ministro da Justiça via Comissão de Anisita
Goiânia, 2012
Copyright © 2012 by Alaor Barbosa Programação Visual: Adriana Almeida Revisão: Ilustrações:
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP BIBLIOTECA MUNICIPAL MARIETTA TELLES MACHADO B Barbosa, Alaor. Textos jurídicos e Políticos: A constituinte de 1987 1988 / Alaor Barbosa. Goiânia: EDITORA, 2012. 000 p. ISBN 1
. CDU:
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS – É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio sem a autorização prévia e por escrito da autora A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal Brasileiro. IMPRESSO NO BRASIL Printed in Brazil 2012 Contatos com o autor: alaor.b@terra.com.br
explicação útil
Reúnem-se neste volume alguns textos de natureza jurídica que produzi algum tempo depois que assumi, em 1º de fevereiro de 1985, mediante concurso público de provas e títulos, o cargo de Consultor Legislativo (então chamado de Assessor Parlamentar) do Senado Federal. Nessa mesma ocasião, iniciei dois cursos de Mestrado na Universidade de Brasília, não só por necessidade intelectual, mas também, no caso de um deles – o de Direito –, por precisão e conveniência profissionais, pois eu pressenti e previ a Assembleia Nacional Constituinte, em via de ser logo convocada, deveria impor aos assessores do Senado, além das tarefas de rotina do trabalho na Casa, uma ingente dedicação extraordinária às tarefas da elaboração da nova Constituição do Brasil. Vários dos textos aqui compilados decorreram dos estudos feitos, com tais motivações, na UnB e no Senado. Alguns outros foram ocasionados por outras circunstâncias, algumas delas ulteriores. Relendo-os algum tempo atrás, verifiquei, suponho que com acerto, que, por sua natureza e conteúdo, bem mereciam – e merecem – um esforço para lhes conferir a relativa perpetuidade dos textos impressos, eis que foram produzidos com muito cuidado e afinco. Reúno também neste volume, em dois apêndices numerados, diversos documentos constantes de dois processos de ações judiciais:
da ação requerida, em meados do ano de 2008, na comarca do Rio de Janeiro, contra a editora do meu livro Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, com o fim de lhe alcançar a proibição, a qual foi, por erro, deferida em “tutela antecipada”, ou seja, de modo liminar; e da ação de indenização por dano moral que propus, na comarca de Goiânia, Capital do meu Estado natal, contra a pessoa que cometera contra mim (antes mesmo de ajuizar a ação de proibição do meu livro) os crimes de calúnia, injúria e difamação. Julgo útil tornar públicos os documentos processuais principais dessas duas ações. Elas encerram, em especial a primeira, graves questões de ordem constitucional: de liberdade de expressão do pensamento e de criação intelectual. As duas ações pendem ainda de sentença. O Autor espera que as publicações deste volume contribuam para que ambas as sentenças venham a ser proferidas na forma e com a significação devidas, isto é, fazendo justiça. Alaor Barbosa
sumário
Assembleia Nacional Constituinte: a expectativa prudente . . . . . . . . . . . . . . . 9 Bicameralismo ou unicameralismo?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 Estrutura do Poder Legislativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 Norberto Bobbio e o positivismo jurídico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 CPI e Constituição: um caso concreto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 Partidos políticos: aspectos do fenômeno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161 Dois temas importantes: biografias “não-autorizadas” e limites de citações de livros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 Poder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares. . . . . . . . . 231
Assembleia Nacional Constituinte: a expectativa prudente (Texto publicado na Revista de Informação Legislativa,
do Senado Federal, ano 23, n. 91, julho a setembro de 1986)
Controvérsia sobre o caráter da próxima Assembleia Nacional Constituinte. Sociedade civil. Ideias sobre o poder constituinte. Sieyès, Lassalle, a experiência inglesa, Karl Loewenstein, Paulo Bonavides. Os fatores reais de poder na sociedade brasileira e sua representatividade no processo constituinte. A Constituição necessária e possível.
Prepara-se a sociedade brasileira para elaborar uma nova Constituição. O Congresso Nacional acaba de aprovar a proposta de emenda à Constituição, a ele submetida pelo Presidente da República, de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte ou, dizendo melhor: de atribuição de poderes constituintes originários ao Congresso Nacional que se elegerá no dia 15 de novembro de 1986. Muita discussão tem excitado à convocação da Assembleia Nacional Constituinte. A discussão focaliza fundamentalmente a questão do caráter que deve ter essa assembleia. Uns a querem autônoma, exclusiva, independente do Congresso Nacional. Esses não queriam que a emenda fosse aprovada e a condenavam por considerá-la incorrespondente aos 9
anseios nacionais e populares do momento atual da nossa história. (A propósito, registremos, de passagem, que, quando se fala em “anseios populares”, “anseios nacionais” etc., fala-se por uma espécie de auto delegação de poderes. Embora a maioria esmagadora do povo não tenha noção alguma de Constituição e de Assembleia Constituinte, os que falam em seu nome lhe atribuem uma consciência e vontade que uma apuração por via eleitoral certamente não verificaria.) Em contraposição a essa corrente, existem aqueles que julgam legítimo a próxima Constituição ser feita pelo Congresso Nacional mesmo, transformado, temporariamente, Assembleia Constituinte. A corrente dos propugnadores de uma Assembleia Constituinte autônoma e exclusiva – esse o seu slogan amplamente difundido por meio da imprensa e de congressos, sobretudo de advogados – se 1° representa principalmente na Ordem dos Advogados do Brasil e na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Vale a pena observar, também de passagem que essas duas entidades muitas vezes são consideradas, por uma convenção informal, porém difusa, como representativas e intérpretes da “sociedade civil” – uma sociedade civil contraposta ao Poder Estatal ou Governamental constituído, representado pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo e, quiçá também, pelo Poder Judiciário: enfim, Pelo Estado. Sob essa ótica, a Ordem dos Advogados do Brasil e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil é que representam o povo brasileiro, ou a “sociedade civil”. Confesso minha perplexidade diante dessa ideia. Não sei bem o que é “sociedade civil”. Não compreendo a ideia de que da “sociedade civil” se excluam os Partidos Políticos, a classe (tão diversificada) dos trabalhadores da cidade e do campo, os empresários, os Deputados e Senadores, o Presidente da República e seus Ministros, os juízes etc. Não consigo perceber a realidade ôntica e autônoma de algo que, existente embora dentro da sociedade brasileira, dela se possa distinguir com a denominação de “sociedade civil”. Esse adjetivo “civil” tem, convencionalmente, uma denotação que o contrapõe a ou o diferencia de militar e de eclesiástico. Na expressão “sociedade civil”, tal como é uma empregada por aqueles que se dizem representantes dela, não parece ser essa a acepção do adjetivo. Parece, antes, que a sociedade civil a que se refere é a sociedade em geral, ou o povo, ou a Nação, enquanto realidades distintas ou dis10
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tinguíveis do Poder Estatal ou Governamental. Assim, realizando um esforço de conceituação difícil e ainda, parece-me, não tentado, julgo perceber que a “sociedade civil” seria a sociedade brasileira enquanto fonte do poder, mas que, embora teoricamente fonte do Poder, não o tem sido, no Brasil, por causa de razões históricas, políticas e econômicas que não vem ao caso, agora, examinar. Discernindo a existência de uma separação, de fato, entre a Nação e o Estado, entre a Nação e o Poder Estatal, aqueles que falam em “sociedade civil” estão, penso eu, a identificá-la com a Nação. Sociedade civil é a Nação. Nesse caso, da “sociedade civil” fariam parte todas as classes sociais e todas as categorias profissionais, sem exclusão, inevitavelmente, dos militares e, ainda com mais razão, dos diversos cleros. Eis que então se patenteia esta contradição: se a “sociedade civil” é a Nação, e se a Nação é o conceito de urna realidade universal não excludente, então, forçada e logicamente, no conceito de “sociedade civil” se incluem também os partidos políticos, os Deputados e Senadores eleitos pelos partidos políticos, o Presidente da República e seus Ministros, os juízes e todos os integrantes e agentes do Poder Estatal. Nesse caso, extraída a consequência inelutável do raciocínio, desaparece toda e qualquer contradição entre “sociedade civil” e o Poder Estatal representado pelos governantes, legisladores e juízes. É tempo de fazer, a propósito da questão da Assembleia Constituinte, algo que no Brasil não é costume: uma análise em profundidade. Este é Este é um país em que os fatos e acontecimentos quase todas às vezes se produzem por força de convicções formadas sem nenhuma análise prévia, sem nenhuma meditação, sem uma reflexão profunda. Este é um País em que homens atuam, no mais das vezes, levianamente – sem saber por que o fazem. O problema da Assembleia Nacional Constituinte é bem um exemplo disso. É lamentável e contristador verificar o quão superficialmente se focaliza e discute esse tema, no Brasil. Seria risível, se não fosse, por consequências danosas, dramático, constatar que no Brasil a sua maioria atua em obediência a ideias feitas e simplistas. Vive-se muito no Brasil de ideias feitas, de lugares-comuns, de clichês importados passivamente. E o pior é que, como não existe no Brasil uma continuidade no refletir sobre os problemas, cada geração se vê na contingência de enfrentar os mesmos problemas que as gerações Poder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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anteriores enfrentaram (e não resolveram), como se fossem problemas novos e nunca antes defrontados. No Brasil a experiência intelectual, moral e psicológica de uma geração não se transfere para as gerações seguintes, imediatas ou mediatas. Toda geração enfrenta os problemas de modo inaugural, de forma inédita, sem se valer da experiência das gerações antecedentes. Essa verificação chega a ser desalentadora, quando se verifica, por exemplo, que da riquíssima experiência das gerações que viveram o Segundo Império no Brasil nada se transmitiu às gerações supervenientes. Problemas como federalismo versus centralismo, ou da independência econômica nacional, tão bem encarados e equacionados no século passado, apresentam-se às gerações atuais sem que tenham assimilado nada ou quase nada da experiência e do pensamento dos brasileiros de cem e de cento e poucos anos atrás. No Brasil, cada geração é obrigada a criar a sua própria experiência, em estado de virgindade, em estado de esquecimento completo da experiência das gerações precedentes. Um trabalho de Sísifo. Será verdade que o Brasil precisa de uma Assembleia Constituinte autônoma, exclusiva e, como dizem os amantes de slogans, soberana? Aqueles que defendem a ideia dessa necessidade nunca, é certo, pararam um minuto sequer para se perguntarem e em seguida responderem esta pergunta muito simples: qual a garantia que temos de que urna Assembleia Constituinte exclusiva será democrática, popular, progressista e transformadora, como se supõe que os seus defensores querem ou gostariam que ela fosse? Em outras palavras: que é que nos assegura que a próxima Assembleia Constituinte, se exclusiva, não será uma assembleia majoritariamente conservadora ou mesmo reacionária? Aqueles que defendem e preconizam a realização desse tipo de Assembleia Constituinte expõem-se, portanto, a um risco imenso de frustração. Sem medir a sua responsabilidade, constituem esse risco e a ele expõem toda a sociedade brasileira, ao induzirem-na à mesma espécie de ilusão que se entregam. Querem uma Assembleia Constituinte exclusiva, pura mente constituinte, embalados pela miragem de que uma assembleia desse tipo, e só por ser desse tipo, elaboraria, necessariamente, inevitavelmente fatalmente uma Constituição mais autêntica, mais democrática, mais fiei aos interesses da Nação e do povo. São pessoas evidentemente bem intencionadas, essas que pensam 12
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assim. Mas a boa intenção não assegura que não estejam enganadas. Na verdade, estão enganadas, na medida em que se deixam embalar por palavras ocas. Um dos juristas mais conhecidos dentre os defensores dessa ideia é o Professor PAULO BONAVIDES, da Universidade do Ceará. Em livro que publicou há pouco mais de um mês, intitulado Constituinte e Constituição e em que reuniu artigos divulgados em jornais nos últimos anos, ele incorporou à tese da necessidade de uma Assembleia Constituinte autônoma e exclusiva a da imperiosidade do referendum popular, sem o qual, em sua opinião, não teria a Constituição, elaborada embora por Assembleia Constituinte exclusiva, uma legitimidade completa. Diz PAULO BONAVIDES: Afigura-se-nos que, de um ponto de vista estritamente demo crático, a teoria de poder constituinte sem o referendum do povo não concretiza a legitimidade total das instituições. A referida teoria apareceu, porém, consorciada necessariamente com o princípio representativo, que só em parte é democrático. Nesse caso a Constituinte, não levando ao povo sua obra para que seja referendada pelo cidadão, terá uma dose menor de legitimidade, porquanto se poderão fazer sem remédio Constituições que não correspondam aos anseios e expectativas do corpo político sobe rano, ou seja, a Nação mesma, o elemento popular integral, base suprema de todos os poderes.
A ideia de Bonavides sobre Assembleia Nacional Constituinte ainda é a de SIEYÈS, acrescida desse apêndice do referendum popular. Como se vê, uma ideia caracteristicamente do liberalismo burguês do século XVIII. O Abade SIEYÈS formulou sua teoria num pequeno ensaio famoso, publicado em 1788 – Qu’est-ce que le tiers Êtat? No capítulo quinto desse livro, intitulado “Ce qu’on auroit dú faire. Principes à cet égard”, diz SIEYÈS: Jamais on ne comprendra le mécanisme social, si l’on ne prend le parti d’analyser une société comme une machine ordinaire, d’en considérer séparément chaque partie et de les rejoindre ensuite Poder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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en esprit toutes l’une après l’autre, afin d’en saisir les accords et d’entendre l’harmonie générale qui en doit résulter. Nous n’avons pas besoin ici d’entrer dans um travail aussi étendu. Mais puisqu’il faut toujours être clair, et qu’on ne l’est point en discourant sans principes, nous prierons au moins le lecteur de considérer dans la formation d’une société politique trois époques, dont la distinction préparera à des éclaircissemens nécessaires. Dans la première on conçoit un nombre plus ou moins consi dérables d’individus isolés qui veulent se réunir. Par ce seul fait ils forment déjà une nation: ils en ont tous les droits; il ne s’agit plus que de les exercer. Cette première époque est caractérisée par le jeu des volontés individuelles. L’association est leur ouvrage; elles sont l’origine de tout pouvoir. La seconde époque est caractérisée par l’action de la volonté commune. Les associés veulent donner de la consistance à leur union; ils veulent en remplir le but. Ils confèrent donc et ils conviennent entre eux des besoins publies et des moyens d’y pouvoir seroit nul. Il ne réside que dans l’ensemble. Il faut à la volontés individuelles en sont bien toujours l’origine et en forment les élémens essentiels; mais considérées séparément, leur pouvoir seroit nul. Il ne réside que dans l’ensemble. Il faut à la communauté une volonté eommune; sans l’unité de volonté elle ne parviendroit point à faire un tout voulant et agissant. Certai nement aussi ce tout n’a aucun droit qui n’appartienne à la volonté commune. Mais franchissons les intervalles de temps. Les associés sont trop nombreux et répandus sur une surface trop étendue, pour exercer facilement eux-mêmes leur volonté eommune. Que font-ils? Ils en détachent tout ce qui est nécessaire, pour veiller et pourvoir aux soins publics; et cette portion de volonté nationale et par conséquent de pouvir, ils en confient l’éxercice à quelques-uns d’entre eux. Nous voici à la troisième époque, c’est-à dire, à celle d’un gouvernement exercé par procuration. Remarquons sur cela plusieurs vérités. 19) La communauté ne se dépouille point du droit de vouloir; c’est sa propriété inaliénable; elle ne peut qu’en commetre l’exercice. Ce principe est développé ailleurs. 2º) 14
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Le corps des délégués ne peut pas même avoir la plénitude de cet exercice. La communauté n’a pu lui confier de son pouvoir total que cette portion qui est nécessaire pour maintenir le bon ordre. On ne donne point du superflu en ce genre. 3º) II n’appartient donc pas au corps des délégués de déranger les limites du pouvoir qui lui a été confié. On conçoit que cette faculté seroit contradictoire à elle-même. Je distingue la troisième époque de la seconde, en ce que ce n’est plus la volonté commune réelle qui agit, c’est une volonté commune représentative. Deux caractères ineffaçables lui appar tiennent; il faut le répéter. 1º) Cette volonté n’est pas pleine et illimitée dans le corps des représentans; ce n’est qu une portion de la grande volonté commune nationale. 2º) Les délégués ne I’exercent point comme un droit propre, c’est le droit d’autrui; la volonté commune n’est lá qu’en commission. Actuellement je laisse une foule de réflexions, auxquelles cet exposé nous conduiroit assez naturellement, et je marche mon but. Il s’agit de savoir ce qu’on doit entendre par la tution politique d’une société, et de remarquer ses justes rapports avec la nation elle-même. Il est impossible de créer un corps pour une fin sans lui donner une organisation, des formes et des lois propres à lui faire remplir les fonctions auxquelles on a voulu le destiner. C’est ce qu’on appelle la constitution de ce corps. Il est évident qu’il ne peut pas exister sans elle. Il l’est donc aussi que tout gouvernement commis doit avoir sa constitution; et ce qui est vrai du gouvernement en général, l’est aussi de toutes les parties qui le composent. Ainsi le corps des représentans, à qui est confié le pouvoir législatif ou l’exercice de la volonté commune, n’existe qu’avec la manière d’être que la nation a voulu lui donner. Il n’est rien sans ses formes constitutives; il n’agit, il ne se dirige, il ne commande que par elles. A cette nécessité d’organiser le corps du gouvernement, si on veut qu’il existe ou qu’il agisse, il faut ajouter l’intérêt qu’a la nation à ce que le pouvoir publice délégué ne puisse jamais devenir nuisible à ses commettans. De là une multitude de précautions Poder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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politiques qu’on a mêlées à la constitution, et qui sont autant de règles essentielles au gouvernement, sans lesquelles l’exercice du pouvoir deviendroit illégal. On sent donc la double néeessité de soumettre le gouvernement à des formes certaines, soit intérieures, soit extérieures, qui garantissent son aptitude à la fin pour laquelle il est établi et son impuissance à s en écarter. Mais qu’on nous dise d’après quelles vues, d’après quel intérêt on auroit pu donner une constitution à la nation elle-même. La nation existe avant tout, elle est l’origine de tout. Sa volonté est toujours légale, elle est la loi elle-même. Avant elle et au-dessus d’elle il n’y a que le droit naturel. Si nous voulons nous former une idée juste de la suite des loix positives qui ne peuvent émaner que de sa volonté, nous voyons en première ligne les loix consti tutionnelles, qui se divisent en deux parties: les unes règlent l’organisation et les fonctions du corps législatif; les autres déterminent l’organisation et les fonctions des différens corps actifs. Ces sont dites fondamentales, non pas en ce sens, qu’elles puissent devenir indépendantes de la volonté nationale, mais parce que les corps qui existent et agissent par elles, ne peuvent point y toucher. Dans chaque partie la constitution n’est pas l’ouvrage du pouvoir constitué, mais du pouvoir constituant. Aucune sorte de pouvoir délégué ne peut rien changer aux conditions de sa délégation. C’est ainsi et non autrement, que les loix constitutionelles sont fondamentales. Les premières, celles qui établissent la législature, sont fondées par la volonté nationale avant toute constitution; elles en forment le premier degré. Les secondes doivent être établies de même par une volonté représentative spéciale. Ainsi toutes les parties du gouvernement se répondent et dépendent en dernière analyse de la nation. Nous n’offrons ici qu’une idée fugitive, mais elle est exacte.
Vê-se que SIEYÈS baseia sua teoria do poder constituinte na ideia do contrato social. Ora, a ideia do contrato social, formulada por JEAN-JACQUES ROUSSEAU, é uma ideia concebida sem nenhum 16
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fundamento na realidade histórica. Nunca, jamais, em lugar algum, ocorreu a hipótese de ROUSSEAU – de um grupo de indivíduos isolados decidirem se reunir para formar uma sociedade. Isso é uma concepção puramente intelectual – não tem liame com a realidade histórica. O homem é um ser histórico e social: e as comunidades humanas se formaram historicamente por um processo de evolução iniciado na noite dos tempos. Impossível determinar em que momento começou a se formar o agrupamento dos seres humanos. Quer dizer: os homens se juntaram uns aos outros naturalmente, e não por meio de uma convenção, de um contrato. Não aconteceu isso de os indivíduos se reunirem numa impossível assembleia, numa clareira de mata, ou floresta, e, após discutirem cláusulas do contrato, combinarem de viver juntos, renunciando cada qual a uma parcela de sua liberdade... Isso é uma falácia, que vale menos que uma alegoria. Por conseguinte, nunca, em lugar nenhum, os homens decidiram constituir um Estado. Os Estados se formaram evolucionariamente, a partir de uma convivência de homens, de indivíduos, a partir da existência concreta de comunidades. As comunidades preexistiram, sempre, aos Estados, o que significa que os Estados também têm tido, ou tiveram, formas embrionárias, ou evoluíram de formas menos complexas para formas mais complexas: das tribos ditas primitivas aos Estados hodiernos, complexíssimos. Na realidade, o que SIEYÈS chamou de poder constituinte é o poder da comunidade, ou povo – como se diz imprecisamente – de estabelecer leis para si e de formar seus próprios governos. Porém, o chamado poder constituinte, poder inerente às comunidades, ou ao povo, ou à nação, esse poder é um poder permanente e incessantemente exercido pela comunidade, ou povo; um poder que se exerce, com a mesma força e significação essenciais, em cada momento em que se edita uma lei. Desprezado, aspecto da legitimidade, pode-se dizer que toda vez que uma lei é editada no seio de um povo o poder constituinte desse povo é por ele exercido. Não há, pois, distinção entre poder constituinte e poder constituído. Não há distinção ontológica: ônticamente, o poder constituinte, que troca o sistema presidencial de governo por um sistema parlamente, é o mesmo poder “constituído” que edita uma lei ordinária relativa ao divórcio. Não por acaso disse SIEYÈS: Poder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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On conçoit facilement ensuite comment les loix proprement dites, celles qui protègent les citoyens et décident de l’intérêt commun, sont l’ouvrage du corps législatif formé et se mouvant d’aprés ses conditions constitutives. Quoique nous ne présentions ces dernières loix qu’en seconde ligne, elles sont néanmoins lei plus importantes, elles sont la fin dont la constitution n’est que le moyen. On peut les diviser en deux parties: les loix immédiates ou protectrices et les loix médiates ou directrices.
Quer dizer: a única distinção entre poder constituinte e poder constituído tem um caráter complementar artificial. É aquela decorrente da norma, convencionada pelo legislador constituinte, segundo a qual a Constituição não pode ser modificada em um ou mais pontos declarados fundamentais. Assim, na Constituição brasileira, conforme uma tradição republicana que remonta a 1891, a Federação e a República não podem ser objeto de emenda constitucional. Não houvesse na Constituição essa tal norma, e não haveria diferença alguma entre o legislador ordinário – investido do poder de reformar a Constituição – e o constituinte. A Inglaterra não conhece, não conheceu nunca essa distinção entre legislador constituinte e legislador comum, ordinário, constituído. No entanto, é lá que a Constituição se revela mais diuturna. Na Inglaterra revela-se com mais nitidez o fato de que o poder constituinte é um poder que se exerce cotidianamente, incessantemente. Nem se pode compreender, senão como uma contradição nos próprios termos, a ideia de que o poder constituinte possa renunciar a si mesmo, possa suspender o seu próprio exercício, como uma respiração que resolvesse suspender-se até quando fosse necessário voltar a exercer-se. A ideia de poder constituinte originário, como uma entidade todo-poderosa que de vez em quando entra em cena, revela ser contraditória em si mesma, no momento em que se considera que ele, o poder constituinte, para entrar em ação depende sempre de que alguém o convoque, o coordene, lhe dê forma (forma dat esse rei) para que, sob forma de assembleia de representantes, entre em atividade. Ora, que poder constituinte é esse que, para cumprir o seu papel de constituir, depende de ser primeiramente constituído? 18
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A nação, ou a comunidade, historicamente (e não por um impulso contratualista) formada, historicamente sedimentada, é que tem poder constituinte; e ela o exerce diariamente, seja nos momentos de clímax, como quando forma uma assembleia dita constituinte, seja em momentos de vida rotineira e ordinária, como quando vota uma lei de alteração de imposto de renda. O poder de constituir o Governo, de modificar o eu ordenamento jurídico, é um poder inerente ao povo, que o exerce incessantemente, repito. Aqueles que falam cm “Assembleia Nacional Constituinte livre, autônoma, exclusiva e soberana” o fazem como se uma Assembleia Constituinte pudesse desempenhar o papel de fundar uma nova sociedade, no caso atual do Brasil, reestruturar a sociedade brasileira de forma inteiramente nova e original. Ora, essa é uma visão metafísica da realidade, das coisas, da história: uma visão contratualista superada, insustentável, ingênua mesmo. Falar em “contrato social” depois de DARWIN depois das conquistas da antropologia moderna é manifestar um espírito gravemente anacrônico. Nenhum ser humano participou, jamais, da cerimônia ou solenidade de celebração do contrato social de ROUSSEAU. As sociedades humanas emergiram da nebulosa, das várias nebulosas sócio humanas formadas e evolvidas nos confins da história humana – da ante pré-história humana... E, se entramos na história, isto é, na fase visível e palpável da história da humanidade, que data de muito pouco tempo – quatro ou cinco mil anos –, vemos que todas as sociedades políticas tiveram a sua Constituição – ou não teriam simplesmente existido, e que Constituição, na acepção moderna (conjunto de normas reguladoras do Estado e das relações entre o Estado e a sociedade, formalmente estabelecidas por meio de mecanismos socialmente convencionados), é fenômeno recente, bem recente. FERDINAND LASSALLE, considerado o fundador da socialdemocracia alemã, em 1863 proferiu uma conferência, a que deu o título “Sobre a Constituição”, em que formulou esta definição de Constituição: “a soma dos fatores reais do poder que regem um país”. A palavra “soma” é da tradução. Talvez se traduzisse melhor a ideia de LASSALLE com a palavra conjunto”: “Constituição é o conjunto dos fatores reais do poder que regem um país”. Esses fatores não se somam, mas se juntam, se coordenam, se inter-relacionam. Diz LASSALLE: Poder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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Assim, pois, todos os países possuem ou possuíram sempre, e em todos os momentos da sua história, uma Constituição real e verdadeira. A diferença nos tempos modernos – e isto não deve ficar esquecido, pois tem muitíssima importância – não são as Constituições reais e efetivas, mas sim as Constituições escritas nas folhas de papel. De fato – continua LASSALLE – na maioria dos Estados modernos vem aparecer, num determinado momento de sua história, uma Constituição escrita, cuja missão é a de estabelecer, documentalmente, numa folha de papel, todas as instituições e princípios do governo vigente”. Formula uma hipótese: “Vamos supor – diz ele – por um momento, que um grande incêndio irrompe e que nele queimaram-se todos os arquivos do Estado todas as bibliotecas públicas, que o sinistro destruísse também a tipografia concessionária onde se imprimia a Coleção Legislativa e que ainda, por uma triste coincidência – estamos no terreno das suposições – igual desastre se desse em todas as cidades do país, desaparecendo inclusive todas as bibliotecas particulares onde existissem coleções, de tal maneira que em toda a Prússia não fosse possível achar um único exemplar das leis do país. Suponhamos isto. Suponhamos mais que o país, por causa deste sinistro, ficasse sem nenhuma das leis que o governavam e que por força das circunstâncias fosse necessário decretar novas leis. Julgai que neste caso o legislador, completamente livre, poderia fazer leis a capricho de acordo com o seu modo de pensar?.
Põe LASSALLE a questão de se podia, então, o legislador prussiano suprimir a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros; e, ainda, se o Governo podia privar das suas liberdades políticas a pequena burguesia e a classe operária. Já que desapareceram todas as leis, podia ser feito tudo isso? Suprimir a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros – não, não era possível, porque o poder real, ou o que ele chamou de “os fatores reais do poder” existentes e atuantes na Prússia daquela época não o permitiria. 20
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Quanto a abolir as liberdades políticas da pequena burguesia e da classe trabalhadora, a resposta de LASSALLE é positiva. “Infelizmente” – diz ele – “sim; poderia, mesmo que fosse transitoriamente; os fatos nos demonstram que poderia”. Em seguida, diz LASSALLE: Mas, e se o Governo pretendesse tirar à pequena burguesia e ao operariado não somente as suas liberdades políticas, senão sua liberdade pessoal, isto é, se pretendesse transformar pessoalmente ao trabalhador em escravo ou servo, tornando à situação em que viveu durante os tempos da Idade Média? Subsistiria essa pretensão? Não, embora estivessem aliados ao rei a nobreza e toda a grande burguesia. Seria tempo perdido. O povo protestaria, gritando: antes morrer do que sermos escravos! A multidão sairia à rua sem necessidade de que os seus patrões fechassem as fábricas, a pequena burguesia juntar-se-ia solidariamente com o povo e a resistência desse bloco seria invencível, pois nos casos extremos e desesperados também o povo, nós todos, somos uma parte integrante da Constituição.
Aplicando-se ao Brasil a hipótese de LASSALLE, verificamos que, dado conjunto de fatores reais de poder existentes no Brasil de hoje, é o impossível uma Assembleia Nacional Constituinte tão livre e soberana que possa pegar o país em estado de tábula rasa e começar tudo de novo, do ponto zero. E não só por isso: mas também porque o Brasil não é nem há como poder ser uma tábula rasa. O Brasil é uma história de mais nem de quatrocentos anos. Durante esses mais de quatrocentos anos, muita coisa se sedimentou em nossa vida e em nosso ser social e nacional, que, sob pena de se cometerem violências trágicas, não pode ser ignorada, afastada ou desconsiderada no momento de fazer um novo papel escrito para nos reger. Na verdade, uma Constituição não passa mesmo de uma folha de papel, como a denomina FERDINAND DE LASSALLE. Diz ele:
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Tenho demonstrado a relação que guardam entre si as duas Constituições de um país: essa Constituição real e efetiva, inte gralizada pelos fatores reais e efetivos que regem a sociedade, e essa outra Constituição escrita, à qual, para distingui-la da primeira, vamos denominar de folha de papel.
A experiência inglesa demonstra que a Constituição de um país não precisa ser forçosamente, escrita – uma folha de papel, um documento. Demonstra principalmente que não precisa consistir num documento organicamente total: a Constituição da Inglaterra consiste em alguns documentos escritos que se sucederam através das épocas, superpondo-se uns sobre os outros – e que, nem mesmo na sua soma, ou no seu conjunto ordenado, esgotam a Constituição toda, que é bem mais do que neles se contém. O significado da experiência inglesa serve principalmente para impugnar o caráter de verdade universal que se tenta atribuir, nos países que acompanham a vertente de experiência francesa de Constituições escritas e elaboradas por Assembleia Constituinte, à ideia de Assembleia Constituinte livre e soberana. A experiência inglesa coloca no Parlamento o poder constituinte permanente. Os ingleses fazem isso da maneira mais natural. O Parlamento e urna Assembleia Constituinte permanente, cotidiana. Uma Assembleia Constituinte que atua, é claro, com as limitações impostas pela realidade social constituída, pré-constituída – realidade social, fruto de uma evolução histórica, cujo início se perde na bruma dos tempos. A experiência inglesa demonstra que a ideia de uma assembleia de representantes da Nação, convocada especialmente para elaborar uma Constituição e que, pronta a Constituição, ou se dissolve para que se forme outra assembleia, investida de poderes constituintes limitados, fato de ser ela mesma constituída, ou então se transforma em assembleia poderes constituintes limitados, derivados da sua primeira e anterior fase não é nenhuma verdade científica. O que caracteriza a verdade científica é principalmente, a sua validade universal. Ora essa ideia de Assembleia Nacional Constituinte se revela muito parcialmente válida, quando se verifica que, transposto o estreito Canal da Mancha, dela nem sequer tem tomado conhecimento, para se elaborar, através do 22
Textos Jurídicos (Para a constituinte de 1987-1988 e sobre outros temas)
tempo, uma Constituição que se tem revelado muito mais eficaz do que as Constituições Europa continental. Nem pelo critério da eficácia a ideia da assembleia especialmente dotada de poderes constituintes originários conseguiu se provar o melhor caminho, na história do mundo onde surgiu e mais frutificou: o mundo ocidental. As Constituições numerosas que foram feitas, até agora, por sucessivas Assembleias Constituintes originárias têm tido uma existência muito breve. Enquanto isso, a Constituição inglesa – que é em grande parte consuetudinária e a norte-americana, que é fruto do “costume” encontrado pelas decisões judiciais, sobrevivem às intempéries histórico-sociais, e permitem as mutações trazidas por essas intempéries. Diz-se que os ingleses preferem uma ordem de habeas corpos cum prida a uma solene declaração de direitos. E que preferem, também, falar em liberdades, a falar em Liberdade. Os ingleses são um povo empirista, prático, não metafisicista. Não é por acaso que a Constituição deles não precisou ser, na sua maior parte, escrita. E que as partes escritas dela são documentos (Magna Charta, Petition of Rights, Bill of Rights, Act of Settlement etc.) elaborados ao longo de mais de setecentos anos, Um hoje, outro daqui a quatrocentos anos, mais outro daí a sessenta anos, e assim se compôs o conjunto de documentos escritos que integram a Constituição da Inglaterra. A qual, portanto, não tem idade. Formou-se devagar. E, é claro, continuará a evolver, segundo o mesmo processo e método – método que é uma paradoxal falta de método. A Constituição dos Estados Unidos é escrita. E vai fazer, dentro de um ano, duzentos anos de existência. Nesses dois séculos, sofreu 21 emendas. Das quais a mais importante é a que aboliu a escravidão dos negros, a Emenda n° XIII. Embora classificada como rígida, não o e na verdade tanto como se pensa. Muitas foram as emendas que sofreu. Além disso, a verdadeira Constituição dos Estados Unidos tem de ser encontrada não no seu texto original, mas no repositório das decisões da Suprema Corte: na interpretação judicial da Constituição. Todos os estudiosos do sistema constitucional norte-americano demonstram ser ele uma obra do construtivismo judicial, uma obra do tempo, uma obra incessante das gerações. KARL LOEWENSTEIN, descrevendo o Poder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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sistema presidencialista dos Estados Unidos, ressalta essa constatação, afirmando: O milagre da República americana não se baseia em sua Constituição; aconteceu apesar dela.
A ideia de que a Constituição de um país deve ser o bastante plástica flexível para acolher e permitir todas as mutações decididas pela sociedade de por intermédio de mecanismos democráticos estabelecidos pela Constituição mesma é uma intuição que tivemos e que, para nossa satisfação, encontrou confirmação em KARL LOEWENSTEIN. Diz ele no seu livro Teoria da Constituição: De um ponto de vista puramente teórico – e com isso entramos no tema propriamente dito – uma Constituição seria aquela ordem normativa conformadora do processo político segundo o qual todos os desenvolvimentos futuros da comunidade, tanto da ordem política como social, econômica e cultural, pudessem ser previstos de tal maneira que não fosse necessário mudar as normas reguladoras. Cada Constituição integra, por assim dizer, tão-só o status quo existente no momento de seu nascimento, e não pode prever o futuro; no melhor dos casos, quando esteja inteligentemente redigida, pode tentar levar em conta desde o princípio necessidades futuras por meio de destaques e válvulas cuidadosamente colocados, ainda que uma formulação demasiado elástica possa prejudicar à segurança jurídica. Assim, pois, é preciso resignar-se com o caráter de compromisso inerente a qualquer Constituição. Cada Constituição é um organismo vivo, sempre em movimento como a vida mesma, e está submetida à dinâmica da realidade que jamais pode ser captada através de fórmulas fixas. Uma Constituição não é jamais idêntica a si mesma, e está submetida constantemente ao panta rhei heraclitiano de tudo o que vive.
Constituição é algo elaborado por um poder, poder denominado pela ciência política e jurídica de “poder constituinte”. Mas 24
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quem é que tem esse poder constituinte, esse poder de constituir não a sociedade, não a Nação, não o povo – que são realidades preexistentes, mas o Estado? Quem faz a Constituição são os donos reais do poder. O poder constituinte pertence, evidentemente, a quem tem, de fato, no interior da sociedade, o poder de ditar e editar as normas. Esse poder pertence às classes dominantes. Estas é que modelam o Estado de acordo com os seus interesses: à sua imagem e semelhança. FERDINAND LASSALLE, ao responder à pergunta sobre de onde proveio a aspiração moderna de ter Constituições escritas, esclarece bem esse ponto: “somente pode ter origem” – diz ele –, “evidentemente, no fato de que nos elementos reais do poder imperantes dentro do país se tenha operado uma transformação. Se não se tivessem operado transformações nesse conjunto de fatores da sociedade em questão, se esses fatores do poder continuassem sendo os mesmos, não teria cabimento que essa mesma sociedade desejasse uma Constituição para si. Acolheria tranquilamente a antiga, ou, quando muito, juntaria os elementos dispersos num único documento, numa única Carta Constitucional”. E LASSALLE argumenta, mais adiante, mostrando que ao regime feudal, na Prússia, correspondeu uma Constituição regime absolutista, uma Constituição absolutista; e, com a Revolução 1848, que para LASSALLE foi como um incêndio que houvesse destruído toda a legislação até então vigorante, instalou-se uma Assembleia Nacional Constituinte que se frustrou e acabou dissolvida, porque não cuidou de transformar o exército “tão radicalmente, que não voltasse a ser instrumento de força ao serviço do rei contra a nação”. Uma Assembleia Constituinte não é uma força abstrata, livre de quaisquer condicionamentos. Ela existe e atua dentro da sociedade, é uma unidade necessariamente pré-constituída, como bem observa CARL SCHIMIDT. Em outras palavras: uma Assembleia Constituinte não é nem livre, nem soberana. Ela é a expressão das forças sociais dominantes, um– instrumento de ação legiferante, de ação constituinte, dessas forças. Não existe, não pode existir uma Assembleia Nacional Constituinte livre e soberana. Livre de quê? Soberana para o quê? Livre não é, por ser uma composição variada, uma composição de forças diversas, díspares, opostas ou divergentes entre si. As Poder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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alianças que no interior dela, da assembleia, se formam é que constituem a maioria – e a decisão da maioria é que fixa o resultado do funcionamento da assembleia. Ela não tem liberdade senão de atuar como resultado de um sistema de forças: prevalecerão as forças mais poderosas que dentro dela se representam. A Assembleia Constituinte nasce e atua condicionada – fruto das condições sociais e históricas em que aparece. Soberana para quê? Nenhuma Assembleia Constituinte que se reúna, no Brasil, hoje, terá soberania bastante para substituir a língua portuguesa como língua oficial da nação; para abolir o habeas corpus; suprimir o mandado de segurança; abolir o direito de petição; o de reunião; alterar as fronteiras do país; abolir o Poder Legislativo; extinguir os Estados-Membros da Federação; abolir o direito de propriedade individual de todos os bens; abolir as Forças Armadas; abolir o casamento entre sexos diferentes e permitir o de sexos iguais; abolir o direito a remuneração do trabalho; abolir o direito ao nome; abolir o sigilo da correspondência etc. Nenhuma Assembleia Nacional Constituinte pode, no Brasil de hoje ou em qualquer país de qualquer época, fundar instituições inteiramente novas. Por mais revolucionária que ela seja. Isso porque, sobre os seus integrantes, atua o peso avassalador de uma coisa que se chama a cultura nacional, que é o conjunto de valores e bens, crenças e convicções e ideias, princípios e aspirações, de que se entretece a organização e viver de uma comunidade humana. A próxima Assembleia Nacional Constituinte brasileira atuará sob o peso da realidade presente, que é o resultado de um já longo passado do homem brasileiro, influído pelo homem ocidental, moldado pelo homem universal. Uma Assembleia Constituinte não faz esse papel escrito (no dizer de Frederico da Prússia), que é uma Constituição escrita, livremente descondicionada dos fatores sociais e históricos presentes e atuantes no momento em que ela se reúne. AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO, no seu livro Curso de Direito Constitucional Brasileiro, o diz muito bem, embora o diga de passagem, se referir às Leis Constitucionais n° 6 13 e 15, de 12 e 26 de novembro de 1945, as quais como que balizaram, de alguns modos, a 26
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Assembleia Nacional Constituinte de 1946. Diz AFONSO ARINOS, na página 231 do segundo volume da sua obra: A primeira deu à futura Assembleia o nome de Constituinte, para marcar bem que ela não era o Parlamento ordinário, e declarou expressamente que a mesma (sic) tinha “poderes ilimitados” para votar a Constituição do Brasil. É claro que esta expressão “poderes ilimitados” deve ser tomada somente no sentido jurídico, como significativa de que a Assembleia não teria limitações jurídicas à sua ação. Limitações de outra natureza – éticas, históricas, econômicas e sociológicas – ela não poderia deixar de ter.
AFONSO ARINOS aponta, aqui, com uma concisão perfeita, um dos aspectos mais importantes da questão da Assembleia Constituinte. Uni aspecto em geral ignorado pela maioria das pessoas que, leviana e superficialmente, discutem essa questão. Os que preconizam uma “Assembleia Constituinte livre, autônoma, exclusiva e soberana” não percebem que não existe, não pode existir uma Assembleia Constituinte absolutamente soberana. Juridicamente, sim, ela é soberana. Mas, politicamente, eticamente, historicamente, economicamente e sociologicamente, sua soberania é limitada por imposições concretas da realidade. É pena que mesmo juristas que sabem disso não extraem desse conhecimento as lições e Consequências devidas, as quais uma reflexão sincera não pode escamotear. PAULO BONAVIDES – que citaremos para exemplo – diz, no artigo “Constituinte aberta: a Revolução sem Armas”, que abre seu volume Constituinte e Constituição: Assembleia Constituinte e referendum constituinte, eis o binômio insubstituível que há de coroar, em termos de legiti midade formal, a ação constituinte em vias de concretizar-se. Dissemos legitimidade formal, porque não ignoramos o poder do fato sociológico, a intensidade normativa do social, a força da compulsão dos interesses estabelecidos, a dependência política e ideológica do constituinte numa sociedade de classes e, sobretudo o nó de instituições que representam um passivo histórico, imPoder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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possível de desfazer-se com tinta e papel, mediante decreto constituinte, por mais poderosa que seja a vontade daquela assembleia ou por mais ilimitadas que sejam teoricamente as suas faculdades de reforma e os seus poderes de intervenção e criatividade institucional.
Esse trecho do pensamento de PAULO BONAVIDES é o mais inteligente de tudo o que ele já escreveu a respeito dessa matéria. Quase tudo o que ele tem afirmado se compõe de lugares-comuns do constitucionalismo que vem do contratualismo rousseauniano filtrado por SIEYÈS. Aqui, neste passo, não: BONAVIDES se revela moderno e lúcido. É simplesmente ir ao ponto certo, pôr o dedo na ferida, falar do real e do concreto, e não do metafísico, falar da “intensidade normativa do social”, da “força de com pulsão dos interesses estabelecidos”, da “dependência política e ideológica do constituinte numa sociedade de classes” e do “nó de instituições que representam um passivo histórico, impossível de desfazer-se com tinta e papel, mediante decreto constituinte, por mais poderosa que seja a vontade daquela assembleia ou por mais ilimitados que sejam teoricamente as suas faculdades de reforma e os seus poderes de intervenção e criati vidade institucional”. Assim se exprimindo, PAULO BONAVIDES revelou compreender que uma Assembleia Constituinte não pode ser instrumento de transformação – porque ela não pode ser senão o que é: expressão de uma realidade. Se uma transformação se fez ou está se fazendo, a Assembleia Constituinte a exprimirá. Mas se nenhuma quebra ocorrer na correlação de forças sociais concretas, na correlação entre dominantes e dominados, entre interesses díspares e às vezes conflitantes, então não se espere que a Assembleia Constituinte possa fazer aquilo que não foi feito antes. Toda Assembleia Constituinte é apenas um poder homologatório de uma transação ou de uma decisão majoritária. Quando dentre as diversas forças sociais não emerge uma dotada de maior força para impor os seus interesses e concepções de vida, opera-se urna transação: um consenso entre adversários impotentes. Quando uma das forças, porém, como aconteceu em 1964, no Brasil, ou na Rússia Soviética de 1918, se sente suficientemente forte para impor suas próprias con28
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cepções, então a Constituição efetiva e real se documenta e formaliza como expressão dessas concepções. Toda sociedade tem o poder de organizar o “seu” Estado. Esse poder pertence, de fato, isto é, politicamente, às classes e organizações existentes no interior da sociedade que detém o poder real de dominação. Toda Assembleia Constituinte, embora tenha o nome de nacional (palavra que possui uma denotação de realidade global supra classes), é, sempre, um instrumento, um intérprete, uma expressão dos interesses e ideias dessas classes e organizações. O poder constituinte pertence, teoricamente, às classes de como um todo, mas é exercido, na prática, por quem o possui sociedade de fato. Uma reflexão sobre a próxima Assembleia Nacional Constituinte brasileira tem de conter, preliminarmente, uma descrição verdadeira e minucio– a da realidade social, política, econômica e cultural do Brasil de hoje, a fim de se verificar quais são os fatores reais de poder na sociedade brasileira atual, e de que modo e forma esses fatores reais de poder deverão se representar na Assembleia Constituinte. Uma missão para a sociologia, mais do que para a ciência política e o direito. Grosso modo, divisamos na sociedade brasileira atual um conjunto de forças sociais diversas e complexas na sua composição. Há uma classe capitalista compósita e variada, integrada por empresários de todas as dimensões: o chamado empresariado nacional, de capital nacional e interesses coincidentes com o do desenvolvimento de uma sociedade mais ou menos independente no plano das relações econômicas internacionais. Há urna outra classe capitalista, difícil de separar da primeira, mas na qual predomina o seu caráter de sócia menor das empresas capitalistas estrangeiras, as chamadas multinacionais. Essa classe não tem interesse num desenvolvimento brasileiro independente, autônomo; insensível mesmo a esse interesse, floresce enquanto classe, como sócia, delegada e preposta do capital internacional. Localiza-se principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, como a outra. Existe a classe dos proprietários rurais, subdividida em camadas diversas: proprietários enormes, grandes, médios, pequenos, pequenininhos. Em sua composição entra um elemento novo: o proprietário rural capitalista e o multinacional. A estatística ainda não nos informou de quantas são as Poder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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propriedades rurais que no Brasil pertencem a grandes empresas multinacionais operantes em nosso País. No âmbito dessas propriedades, que se estendem por milhares de hectares, não vigoram os conceitos prevalecentes na propriedade rural tradicional brasileira: nelas, as relações de trabalho, por exemplo, são de conteúdo e caráter eminentemente capitalistas, e por isso os trabalhadores têm condições de vida privilegiadíssimas, em comparação com os das propriedades tradicionais. Existe a classe mais numerosa dos trabalhadores urbanos, apesar de desorganizados para uma ação de defesa dos seus interesses de classe, constituem, principalmente nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, uma força social e política considerável. No interior dessa classe, é preciso também fazer distinções que não é uma classe homogênea. Entre os trabalhadores urbanos, as cate gorias profissionais se diferenciam umas das outras de modo nítido: têm um nível de remuneração muito mais alto do que outras. Há mesmo aqueles que, a propósito de certas categorias dos metalúrgicos, por exemplo, chegam a usar a expressão “aristocracia operária”, para assim classificar aquelas categorias que recebem uma remuneração que lhes confere um status privilegiado. Talvez seja possível, na definição dos interesses das categorias de trabalhadores urbanos, componentes da amplíssima “classe operária”, distinguir entre os que trabalham para empresas brasileiras e os que trabalham para empresas multinacionais. Parece certo que entre eles não há homogeneidade de interesses, visto que os empregados de empresas multinacionais contam com alguns privilégios e uma diferença de tratamento que os distinguem sensivelmente dos empregados de empre sas brasileiras. Dentro desse complexo social, movimentam-se também os profissionais liberais, que determinadas injunções têm descaracterizado rapidamente em relação ao seu modelo tradicional, transformando um grande contingente deles em assalariados. Tais são, por exemplo, os advogados e os médicos – aqueles, em grande número, empregados, hoje em dia, de empresas capitalistas, inclusive multinacionais, estatais e outras, e estes jungidos à Previdência Social. Finalmente, resta a “classe” dos indivíduos sem qualificação profissional, deserdados e desamparados, integrantes do numeroso exército do que MARX chamava de “lumpemproletariat” – massa informe e disponível. 30
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Duas organizações formidáveis atuam no interior dessa sociedade assim tão por alto, descrita: a Igreja Católica Apostólica Romana e as Forças Armadas. A Igreja Católica Romana constitui o principal dos cleros atuantes em nossa sociedade. Até três décadas atrás, era conservatista e mesmo reacionário o papel desempenhado pelo clero católico. Durante esse período, dividiu-se ele em três correntes filosófico-políticas; uma, tradicionalista, que continua a desempenhar uma função frenadora de todo impulso de transformação social, política, econômica, cultural; outra, que se responsabiliza pela chamada Teologia da Libertação, assumiu papel e uma missão de caráter revolucionário, propondo-se a promover, de modo radical, a mudança da atual estrutura sócio-econômico-político-cultural da sociedade brasileira; e uma terceira, moderada, que se situa em posição de equilíbrio entre as duas primeiras. Não importa investigar se essa tripartição do clero católico corresponde ou não a um comportamento planificado da alta hierarquia católica, a manobrar, unitariamente, por meio de três correntes divergentes no que seria apenas a estratégia de manutenção do poder temporal da Igreja. Interessa apenas constatar que correntes atuam fortemente e influentemente no seio da sociedade brasileira, compondo um embate permanente e cotidiano entre as forças “progressistas” da Teologia da Libertação e as conservadoras do forças então, de Religião Tradicional. As Forças Armadas têm-se apresentado, nas duas últimas décadas, como uma organização unida, orientada por alguns princípios mais ou menos indiscutidos e aceitos por todos os militares. Essa unidade, todavia, é apenas aparente. É de todo presumível que a mesma divisão que atinge a sociedade brasileira, quanto às opções políticas que se lhe apresentam, alcançam o estamento militar, o qual, de resto, também, não tem uma alcança formação social homogênea, dividido que é em classes, inclusive quanto a sua origem. O que ocorre é que o controle político-ideológico tornou-se, nos os últimos vinte e um anos, muito mais rígido e severo no seio das Forças Armadas. Não se viram, ao longo desse período, como se viam no passado, oficiais nacionalistas e mesmo comunistas, atuando, dentro e fora das Forças Armadas, com certa desenvoltura na ostentação e afirmação de suas convicções políticas. Mas é presumível – repito – que continue a haver, lá dentro, a mesma divisão antiga. Porém, é ainda mais forte a presunção, assim me parece, de que a orientação Poder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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política imposta e dominante nos últimos vinte e um anos continue a prevalecer dentro das Forças Armadas do Brasil. Essa orientação não é nem nacionalista nem permeável a qualquer sopro de socialização econômica. Em outras palavras: a posição anticomunista das Forças Armadas presumivelmente continua a ser a mais forte no seio delas. Acho possível e mesmo indispensável distinguir, ainda, no panorama descritivo da composição da sociedade brasileira, uma classe que não é classe na sua conceituação econômica e sociológica, mas que o é, talvez, num sentido psicológico: a dos intelectuais. Ela retira os seus elementos integrantes de todas as classes sociais – porém, na sua maior parte, compõe-se de elementos integrantes da pequena-burguesia assalariada: professores universitários, jornalistas, escritores, artistas de um modo geral. É uma “classe qualitativa”, digamos assim. E muito influente, por causa da força de irradiação de suas manifestações. Desempenha um importante Papel de fermentação de ideias. Tem, a seu favor, o fato de que é a única “classe” social capaz de pensar contra os seus próprios interesses individuais e de classe. Somente um intelectual é capaz de, sendo capitalista, preconizar a extinção da classe dos capitalistas; ou, sendo latifundiário, trabalhar contra a classe dos latifundiários; ou, sendo aristocrata, trabalhar, como Joaquim Nabuco, contra a aristocracia dona de escravos. A próxima Assembleia Constituinte brasileira deverá refletir o estado atuai da correlação de forças políticas, econômicas, culturais, sociais, religiosas e filosóficas existentes e atuantes no seio da sociedade brasileira. Há, aparentemente, uma neutralização recíproca entre essas forças, neste momento, de modo que nenhuma delas poderá impor suas concepções de modo excludente das demais. A próxima Constituição brasileira deverá resultar, portanto, de uma transação, de um compromisso, ideologicamente misto, compósito, plural, abrangente. Isso porque, repetindo, as diversas forças atuantes na sociedade brasileira, neste momento, exercem um papel umas em relação às outras, de freios e contrapesos, de modo que se anulam reciprocamente. Se não se modificar o atual sistema de representação popular e de eleição de candidatos, de modo que a composição da futura Assembleia Nacional Constituinte tenha urna maioria de delegados comprometido, com os interesses autênticos e as aspirações vitais da sociedade bra32
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sileira, de nada adiantará ter-se uma Assembleia Constituinte pura, exclusivamente constituinte. Se não se alterar o atual sistema eleitoral por outro que lhe seja superior e melhor, em função da necessidade de se escolherem representantes imbuídos de um pensamento democrático, emancipacionista, abolicionista, igualitarista, e, permita-se-me a palavra, patriótico, mais do que um risco, haverá a certeza de virmos a ter uma Assembleia Constituinte tão conservadora, tão infensa a mudanças reais e profundas na ordem social c política e econômica e cultural e moral da Nação, quanto pode sê-lo um Congresso Nacional assim caracterizado. O que importa é a natureza, o tipo, o caráter, o conteúdo do delegado à Assembleia Constituinte. O rótulo da Assembleia não importa nada. Congresso Nacional com poderes de Constituição originária, ou Assembleia puramente Constituinte – tanto faz: se os homens e mulheres que lá dentro estiverem a representar a sociedade brasileira não forem pessoas seriamente comprometidas com os interesses nacionais e populares, se não forem expressões desses interesses, a Nação será frustrada, gravemente, pela Constituição que sair de tal Assembleia. Se prevalecer, na escolha dos delegados à próxima Assembleia Nacional Constituinte, o sistema atual de representação política, é certo que ela vai refletir a atual correlação de forças sociais e políticas e econômicas existentes no interior da sociedade brasileira. Não poderia ser de outro modo. Somente uma mudança nos sistemas de representação e eleição poderia permitir uma mudança na representação das classes sociais e, portanto na composição político-ideológica da futura Assembleia Constituinte. Em 1788, no seu ensaio panfletário, justamente famoso, Que é o Terceiro Estado?, o Abade Sieyès perguntava: “Que é o Terceiro Estado?” E respondia: “Tudo”. Podemos hoje, pela analogia do número, da força e da legitimidade dos interesses, perguntar também: “Que é a classe trabalhadora?” e a resposta seria também esta: “Tudo”. Mas, assim como o Terceiro Estado – a burguesia compreendia, então, também os trabalhadores e camponeses –, embora correspondesse à quase totalidade da nação francesa, não tinha representação proporcional nos Estados Gerais, isto é, no Parlamento da França, e nenhuma participação no governo do país, assim também, no Brasil, a classe mais numerosa, aquela cujo desenvolvimento coincide com o desenvolPoder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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vimento nacional, a classe dos trabalhadores, não se vê representada, na proporção devida e justa, no seio do congresso Nacional e não participa, de forma alguma, no governo do nosso País. Resolver essa contradição é o desafio cuja resposta certa conduziria o Brasil ao encontro do seu caminho na história. Essa resposta deverá precisará ser construída nas próximas décadas – mas quanto antes, melhor. O que faz a legitimidade de uma Assembleia Nacional Constituinte é a autenticidade da representação popular e nacional nela contida. Não adianta nada uma Assembleia Constituinte se convocar e instalar e realizar, com o rótulo de livre, soberana e exclusiva, se nela não estiverem representados, autenticamente, todos os segmentos da sociedade. Mas não é suficiente que estejam representados todos os segmentos da sociedade; é indispensável que estejam representados os segmentos majoritários da sociedade. De nada adianta a Assembleia Nacional Constituinte se rotular de livre, soberana c exclusiva, se nela forem majoritários os empresários, os fazendeiros, a alta classe média, a plutocracia, os banqueiros. A bandeira de uma Assembleia Nacional Constituinte livre, soberana e exclusiva pode levar a uma completa frustração dos verdadeiros objetivos de uma Assembleia Constituinte. Ela contém perigos que a maioria das pessoas que discutem o assunto não estão enxergando. A questão é simples, porém difícil. Para que a próxima – e qualquer – Assembleia Nacional Constituinte seja autêntica (embora nem livre, nem soberana, pois isso é impossível) é preciso que a eleição, isto é, a escolha dos constituintes seja feita de forma que assegure uma escolha de representantes da maioria do povo, entendida a palavra povo como significando algo diferente da burguesia, da alta classe média, da plutocracia, dos fazendeiros. O problema não é de rótulo, nem de palavrório; mas, sim, estrita‑ mente eleitoral. O que é preciso é que a legislação eleitoral seja modificada a fim de se assegurar uma composição popular – e, pois, nacional – da Assembleia Constituinte. Se a eleição de 15 de novembro de 1986, que escolherá os Constituintes – Deputados e Senadores –, for feita de modo que se torne livre 34
Textos Jurídicos (Para a constituinte de 1987-1988 e sobre outros temas)
de privilégios econômicos à eleição dos constituintes, de modo que se impeça eleição de uma maioria de ricos apenas por serem ricos, e se assegure mecanismos eleitorais que permitam que um candidato pobre, por melhor do que um rico, seja eleito, então teremos, em 1987, uma Assembleia Constituinte capaz de fazer uma Constituição conveniente ao Brasil. Então, pouco importará que a Assembleia Nacional Constituinte seja ao mesmo tempo o Congresso Nacional – não exclusiva, portanto. É preciso refletir sobre o essencial e não sobre as aparências induzidas por palavras altissonantes. O processo pelo qual e ao longo do qual se elaborará a resposta a tal desafio premente deve pautar-se num esforço de criatividade que, até hoje, não foi realizado em nosso viver nacional. Cultura reflexa e de originalidade escassa, imitadora e repetidora do que se faz nas culturas que nos servem de modelo principalmente desde a nossa independência política, o Brasil se mostra particularmente submisso aos moldes estrangeiros e incapaz de criar a partir de sua própria experiência no plano da sua organização política, da estruturação de suas instituições. Tudo aqui é transplantado da Europa e dos Estados Unidos. É hora de jogarmos fora as ideias feitas e recebidas com o selo da sua origem – e criarmos as nossas. E é tempo de extrairmos das experiências alheias lições que nos sirvam. Para se chegar a uma Constituição que possa ser, assim, um modelo ideal de Constituição política, é preciso que tenhamos a coragem de assumir uma práxis genuinamente nacional, ladinamente brasileira. Umas das primeiras constatações que devemos fazer é a de que a sociedade brasileira é irredutível a um modelo estático de Estado: temos de assumir os riscos da dinamicidade, que, se é inerente a toda sociedade humana, é uma característica ainda mais específica da sociedade brasileira. O Brasil muda a todo o momento – e a nossa Constituição tem de ser o instrumento da nossa mudança e da nossa mutabilidade. A melhor Constituição para o Brasil será aquela que, sem se expor a mutilações e desobediências, acolha, com a plasticidade conveniente, as mudanças que não podem nem devem ser impedidas, quando formuladas e reivindicadas e processadas como resultado de uma opção consciente da maioria da Nação. Para que isso aconteça de uma forma Poder Legislativo, Congresso Nacional, Comissões Parlamentares
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cheia de sabedoria e prudência, é preciso que a Constituição contenha os mecanismos eficazes de verificação e apuração e asseguramento de opções verdadeiramente conscientes. É preciso, em suma, que a Constituição estabeleça mecanismos verdadeiramente democráticos de verificação e asseguramento da vontade nacional.
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Bicameralismo ou unicameralismo? (Texto publicado na Revista de Informação Legislativa,
do Senado Federal, ano 24, n. 93, janeiro a março de 1987)
O Poder Legislativo deve ter uma ou duas câmaras? Ou mesmo mais de duas? Essa é uma discussão antiga. Um dilema enfrentado por todos os que experimentaram a responsabilidade de organizar um Estado. Os argumentos e razões a favor e contra cada um dos modelos são muitos e diversos. Cada modelo tem os seus adeptos. Deixemos de lado o modelo multicameral, do qual ninguém mais cogita. Falemos apenas do uni e do bicameralismo. São duas correntes que se enfrentam e contradizem no campo das excogitações dos constitucionalistas e estadistas. Para dizer que o direito constitucional comparado “é instru mento imprescindível” na análise do problema, LUCAS VERDÚ per gunta: “Existe algum país onde não se haja colocado, nas discussões dos constituintes, o estabelecimento de uma ou duas câmaras?” JULIEN LAFERRIÈRE inicia o seu estudo sobre a organização dos parlamentos, no capítulo dedicado, no seu livro Manual de Direito Constitucional – que é de 1947 –, ao “sistema de duas câmaras”, com esta pergunta: “O órgão legislativo deve ser constituído por uma câmara única ou por duas Assembleias? Uni ou bicameralismo? Tal é o primeiro problema que coloca a existência dos parlamentos”. Em seguida, presta LAFERRIÈRE uma informação: a da predominância do bicameralismo, no tempo e no espaço. Diz ele: 37
“Desde logo, uma constatação de fato a consignar: até aqui pelo menos, no tempo e no espaço, o bicameralismo é de longe o sistema mais difundido. Salvo as de 1791, de 1793 e de 1848, todas as nossas constituições (da França) o praticaram. No mundo de antes da guerra, os países de câmara única eram uma fraca minoria; na Europa, a Bulgária, Luxemburgo, o Liechtenstein, a Lituânia, a Letônia, a Finlândia, a Turquia, os cantões suíços, sob a Constituição de Weimar de 1919 os países do império alemão à exceção da Prússia; a Espanha havia adotado a câmara única na Constituição republicana de 1931; a Grécia a ela havia retornado em 1935; nos Estados Unidos, um único dos quarenta e oito estados americanos, o Nebrasca, desde 1935; três das províncias do Canadá; Ontário, Manitoba, Colômbia britânica; na Austrália, o Estado de Queensland, desde 1922; na América Central, a Costa Rica, Honduras, o Panamá; na Ásia, o Irã, o Sião, o Iêmen. Quase todos os grandes Estados praticam o bicameralismo. Na história e no direito moderno, a dualidade das câmaras constitui a regra”.
Lembra ainda LAFERRIÈRE que o bicameralismo é uma instituição que: “se encontra nos sistemas políticos mais diversos: nas repúblicas, como a França, a Suíça, a Tchecoslováquia; nas monarquias, como a Inglaterra, a Bélgica, a Suécia; nos governos de caráter democrático ou nos regimes de inspiração oposta, como os Estados germânicos de antes de 1914, a Rússia czarista de 1906 ou a Itália fascista. Na França, é uma solução que pôde ser aplicada pelo Diretório, pelo Consulado, pela Restauração e pela Monarquia de Julho e pelos dois regimes imperiais, antes de o ser pela Terceira República.
No Brasil, prevaleceu sempre o sistema bicameral. Mesmo na Carta – inaplicada – de 1937. No Império, a Assembleia Geral se compunha de duas câmaras: a dos Deputados e a dos Senadores. Na República de 1891, o Congresso Nacional era formado por dois ramos: Câmara dos Deputados e Senado. 38
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A Constituição de 1934 alterou o sistema, declarando no art. 22 que o Poder Legislativo “é exercido pela Câmara dos Deputados com a colaboração do Senado Federal”. Quer dizer: continuou o sistema bicameral, mas o Senado passou a somente colaborar com a Câmara dos Deputados. Na Carta Constitucional da Ditadura do Estado Novo, o Poder Legislativo seria exercido pelo Parlamento Nacional com a colaboração do Conselho de Economia Nacional e do Presidente da República; e o Parlamento Nacional se compunha da Câmara dos Deputados e do Conselho Federal. Este Conselho era uma espécie de sucedâneo do Senado. Na Constituição de 1946, o Poder Legislativo era exercido pelo Congresso Nacional, que se compunha da Câmara dos Deputados e do Senado ado Federal. As Cartas de 1967 e 1969 mantiveram a estrutura do poder Legislativo tal como fixado na Constituição de 1946. Há quem vincule essas duas correntes – bicameralismo versus unicameralismo – a conteúdos ideológicos definidos. PABLO LUCAS VERDÚ, por exemplo, acha que, “salvo no caso dos Estados federais, os bicameralistas são conservadores, centristas ou reformistas”, enquanto “os monocameralistas são esquerdistas”. Deve-se atentar na ressalva feita por VERDÚ. Se se lhe dá o valor e ênfase exigidos pela verdade dos fatos, pode-se aceitar a afirmativa de VERDÚ como verdadeira. Nos países europeus de tradição parlamentar mais antiga, parece que, de um modo geral, os bicameralistas têm mais compromissos com posições, interesses e ideias conservantistas, em política e economia. Os esquerdistas, empenhados em mudar e transformar a sociedade na direção do socialismo e do comunismo, consideram a “segunda Câmara” uma fortaleza de resistência conservadora às medidas e ações reformistas ou revolucionárias acaso emanadas da “primeira câmara” – a câmara popular, a câmara de deputados do povo. Na Europa, esse caráter antinômico da dicotomia antiga parece ser, em regra, embora não sempre, é claro, um fato real e fácil de constatar. Observe-se que a denominação “câmara alta” apresenta, nesse adjetivo rebarbativo, uma denotação de ranço aristocrático muito significativo. Ela denuncia, aparentemente, uma realidade. É possível, porém, dizer que o caráter aristocrático denotado por esse adjetivo é mesmo mais uma aparência do que uma verdade. PABLO LUCAS VERDÚ assinala:
Bicameralismo ou unicameralismo?
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“Quando se fala de câmaras altas parece que se dá mais importância aos dados históricos e às competências especiais correspondentes a estas. Assim, em Inglaterra, a Câmara dos Lordes, aristocrática, com suas atribuições judiciais; nos Estados Unidos da América, o Senado para assegurar a participação dos estados-membros da união federal com suas faculdades de intervenção na política exterior e na confirmação de nomeações do Executivo.
Câmara alta, pois, não por ser aristocrática, mas por ser, na Inglaterra, também corte judicial, além de legislativa; e, nos Estados Unidos, por exercer controle sobre a política externa e sobre as nomeações do Executivo. PABLO LUCAS VERDÚ lembra que a expressão segundas câmaras Parece indicar, na Inglaterra e na Alemanha, de modo indireto, “o caráter secundário delas e talvez seu papel de câmara de reflexão ou moderação das decisões adotadas pelas câmaras baixas ou populares, mais veementes e progressistas (...)”. Argumentos pró-unicameralismo PABLO LUCAS VERDÚ resume o que em geral se diz a favor do unicameralismo: a) Sendo a lei a expressão da vontade geral e, portanto, um conceito concreto, deve receber expressão formal única. b) Uma câmara legislativa única atua com mais rapidez. A propósito, invoca-se aquela comparação feita por BENJAMIN FRANKLIN: um corpo legislativo dividido em duas câmaras é como um carro puxado por dois cavalos em direções opostas. c) A câmara única é mais econômica. d) A câmara única é mais progressista e democrática, mais popular. Argumenta-se também a favor do unicameralismo por meio de impugnações ao bicameralismo: a) O bicameralismo retarda o trabalho legislativo.
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b) O sistema bicameral é anterior à aparição dos partidos polí ticos, os quais passaram a controlar a vida política moderna. Assim, se um partido domina as duas câmaras legislativas, o que é feito numa se repete na outra; e se as câmaras forem dominadas cada qual por um partido diferente, os conflitos entre as câmaras serão insolúveis. Argumenta-se também contra o bicameralismo que a segunda câmara, ou câmara alta, é politicamente conservadora e mesmo rea cionária. Que a Câmara dos Lordes, modelo e paradigma de câmara alta, é, por sua origem e composição, um órgão conservador e muitas vezes reacionário. Que o Senado, na França, por exemplo, e em outros países, inclusive o Brasil, tem desempenhado uma função e papel de freio e resistência a transformações na ordem jurídica (no seu sentido mais amplo). A denominação mesma de uma das câmaras do Poder Legislativo – câmara alta – revela (é JULIEN LAFERRIÈRE quem o observa) a sua origem aristocrática e o seu caráter de “meio de resistência à democracia”. CARL SCHMITT, o jurista que serviu a Hitler, argumenta que uma democracia não se compadece com o sistema bicameral, “pois a democracia se baseia no suposto da identidade do povo unitário”. E acrescenta: “Uma segunda câmara, independente de toda signi ficação política, poria em perigo o caráter unitário do povo todo, introduzindo um dualismo precisamente para o Legislativo, que passa por ser expressão da vontade geral, da volunté generale, em um sentido especial. Onde quer que uma constituição queira acentuar bem a soberania da Nação, una e indivisa, e dominem talvez receios políticos quanto ao poder social de uma aristocracia, o sistema unicameral terá de ser praticado com rigor.
Um pouco antes, dizia CARL SCHMITT: “Para a introdução do sistema bicameral na maior parte dos Estados do continente europeu, foi decisivo o modelo inglês. Bicameralismo ou unicameralismo?
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Esse sistema tinha uma especial evidência para as ideias liberais do século XIX. Prestava-se bem a ser posto em consonância com o princípio da separação de poderes, e oferecia também a possibilidade de proteger o poder social de certos estamentos e classes contra uma democracia radical. Por isso, a ele se opuseram de igual modo pretensões, tanto liberais como conservadoras. Isso explica a grande difusão do sistema. Na Alemanha, como na França, a maior parte dos liberais considerou o sistema bicameral uma instituição razoável e prudente, e o construíram de diversas maneiras.
Bicameralismo Que é bicameralismo? PABLO LUCAS VERDÚ caracteriza o bicameralismo: 1) As câmaras são independentes uma da outra, de modo que a) uma Câmara pode não considerar urgente um projeto de lei assim declarado pela outra, b) uma câmara pode subordinar ao plenário um projeto de lei que a outra deixou ao exame de uma comissão, e c) as propostas de leis podem dirigir-se a cada uma das câmaras ou a ambas, indiferentemente. 2) A lei em um sistema bicameral perfeito é um ato complexo que dimana da cooperação imprescindível e igual de ambas as câmaras. Segundo VERDÚ, as duas categorias fundamentais de bicame ralismo existentes nas constituições da democracia liberal são as do bicameralismo próprio ou perfeito e do bicameralismo impróprio ou imperfeito. Bicameralismo próprio, ou perfeito, se caracteriza por se colocarem as duas câmaras em posição de paridade absoluta; embora cada câmara seja um órgão autônomo e diferente, é indispensável o concurso de ambas na elaboração legislativa. São exemplos de bicameralismo perfeito o da Bélgica da Constituição de 07 de fevereiro de 1831, com as modificações ulteriores; o das Leis Constitucionais da França de 1875; e o da Itália atual, da Constituição de 1947. No bicameralismo imperfeito ou impróprio, as câmaras não possuem paridade de poderes. 42
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São órgãos autônomos e distintos, mas sua colaboração mútua é em muitos casos dispensável na confecção das leis. Exemplos, o bicameralismo inglês atual, resultante das reformas feitas pelos Parliament Acts de 1911 e 1949; o da Constituição francesa de 27 de outubro de 1946. Acrescentemos os exemplos do Brasil: o da Constituição de 1934 e o da Carta ditatorial de 1937. Afirma PAULO BONAVIDES: “Ocorre o genuíno bicameralismo quando se acham as duas casas dotadas de igualdade de competência, exercida mediante decisões concordes, sendo o sistema bicameral, portanto, aquele em que a ordem constitucional estabelece um Parlamento ou Congresso composto de dois órgãos, que funcionam em forma de equilíbrio mútuo no plano interno da função legislativa.
Com razão, nota PABLO LUCAS VERDÚ que o bicameralismo reivindica “títulos de prestígio e antiguidade vinculando-se à Cons tituição inglesa”. E observa: “O bicameralismo inglês é totalmente fortuito, desde logo baseado na realidade social britânica e mantido, até hoje, com traços e características muito diferentes do bicameralismo de outros países.
Anota também que: O bicameralismo surgiu no Ocidente em função de motivos sociais e políticos. A estrutura social da Inglaterra se compunha, quando surgiu o Parlamento, de alta nobreza, pequena nobreza, clero e burguesia, que forma vam estratos politicamente separados. A Câmara Alta exprimia as forças sociais dominantes no país, a alta nobreza e o alto clero.
Diz PABLO LUCAS VERDÚ que Montesquieu concebia o parlamento bicameral como o equilíbrio do corpo dos nobres com a Câmara Popular, “não em virtude de motivos puramente mecâ Bicameralismo ou unicameralismo?
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nicos”, mas respondendo a uma exigência orgânica da vida social: a de que as “gentes distintas pelo nascimento, as riquezas e as honras tenham na legislação uma parte proporcionada das demais vantagens que têm no Estado”. JACQUES CADART, citado por PAULO BONAVIDES, também ensina: “Historicamente, o bicameralismo nasceu na Ingla terra, de maneira fortuita, como a maior parte das instituições britânicas. Nasceu no século XIV de uma divisão do Parlamento inglês, que se constituiu no século XIII: desde 1265, compreende todas as categorias de representantes que hoje possui. O bicameralismo britânico se consolidou progressivamente, reforçado com o aumento de poderes do Parlamento, partilhado entre as duas câmaras. No século XV, o fenômeno já se acentuara conside ravelmente, e a preeminência dos comuns, existente em várias ocasiões nos séculos XVII e XVIII, se tornou definitiva desde 1831, preeminência política que só veio a instituir-se juridicamente em 1911. Contudo, o declínio dos poderes dos lordes não impediu que esse bicameralismo se mantivesse até aos nossos dias.” (Institutions politiques et droit constitutionnel, Paris, 1975, pp. 330-31)
Vale ainda citar PAULO BONAVIDES também a respeito dessa questão. Diz ele: O sistema bicameral formou-se espontânea e precursoramente na Inglaterra, sendo produto de circunstâncias históricas e sociais. Nasceu de uma diferenciação de estados ou classes aristocráticas na Europa da Idade Média; consequentemente, da necessidade de representação distinta ou separada que essas classes postulavam em defesa de seus direitos e privilégios frente à cabeça política do trono, volvido para as inspirações do absolutismo.
E aduz: 44
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“Oferece o Parlamento inglês o modelo por excelência dessa divisão bicameral, oriunda, pois, da desigualdade e do divórcio ocorrido no seio da aristocracia. Na Câmara Baixa ficou a representação da pequena e média aristo cracia, aliada a uma burguesia emergente ou em formação, ao passo que na Câmara Alta tinham assento os grandes senhores, barões e cavaleiros, que foram na história parlamentar e representativa da Europa ocidental os primeiros a impugnarem a autoridade monárquica absoluta. Com o correr dos tempos, acabaram por aproximar-se da realeza, de quem se mostraram fiéis aliados, contrapondo-se de início à burguesia e depois às classes obreiras, principalmente quando estas, a datar do século passado, ingres saram, pelo sufrágio universal, na cena da participação política e militante.
Sobre a Câmara dos Lordes A Câmara dos Lordes evoluiu muito desde o seu início. Conserva ainda o seu caráter hereditário; mas, conforme demonstra JULIEN LAFERRIÈRE, ela nem sempre exerce um papel conservador, de freio às mudanças sociais, econômicas e políticas. Ultimamente, sobretudo após o Parliament Act, de 1911, transformou-se numa espécie de câmara de reflexão, na expressão de LAFERRIÈRE, que observa: Os ingleses conservaram a Câmara dos Lordes; eles a conservaram por respeito à tradição, por apego a uma instituição venerável, e também por dificuldade de reorganizá-la sobre bases novas. Mas, ao conservá-la, eles lhe reduziram consideravelmente a importância e o papel na vida política. Até à reforma eleitoral de 1832” – continua – “foi a Câmara dos Lordes que, no seio do Parlamento, desempenhou o papel preponderante na vida política inglesa, menos por suas atribuições formais, do que pela influência que o sistema eleitoral de então lhe permitia exercer sobre o recrutamento e a ação da Câmara dos Comuns. Mas, no curso do século XIX, com o enfraquecimento da preeminência política e social da aristocracia inglesa, com as ampliações sucessivas do corpo eleitoral, com o desen Bicameralismo ou unicameralismo?
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volvimento do espírito democrático, o povo inglês tomou consciência cada vez mais nítida de que não tinha senão um único representante verdadeiro: a Câmara dos Co muns eleita por ele. A teoria oficial pode muito bem afirmar que a Câmara dos Lordes representa a nação inteira. Esta fórmula aparece como uma simples ficção jurídica. O povo inglês não admite que, nas questões importantes, sua vontade, expressa por seus eleitos, possa ser obstada pela oposição da Câmara aristocrática que é a Câmara dos Lordes”.
O Parliament Act, de 1911, foi o desfecho de uma crise de conflito entre a Câmara dos Comuns e a dos Lordes. Depois desse ato, a Câmara dos Lordes viu-se destituída de alguns poderes importantes, principalmente em questões referentes à receita e despesa, para cuja apreciação passou a submeter-se, inclusive, ao instituto (tão execrado no atual regime constitucional do Brasil) do “decurso de prazo”. É o que informa JULIEN LAFERRIÈRE: Para as leis financeiras (money bills), isto é, as leis que têm diretamente por objeto as receitas e as despesas, e, em caso de dúvida, é o presidente da Câmara dos Comuns quem decide se um projeto é um money bill; se um money bill, votado pela Câmara dos Comuns e enviado à Câmara dos Lordes um mês ao menos antes do fim da sessão, não tiver sido adotado sem emendas pela Câmara dos Lordes no prazo de um mês, o projeto, a menos que a Câmara dos Comuns decida de outro modo, não será levado à sanção real, e torna-se ato do Parlamento pela significação do assentimento real, não obstante a oposição da Câmara dos Lordes.
Na evolução da Câmara dos Lordes, exerceram uma influência uito grande as reformas eleitorais de 1832. Essas reformas estenderam m o direito de voto aos trabalhadores industriais e depois aos do campo. Fácil imaginar que, a partir dessas mudanças, a composição da Câmara dos Comuns começou a se alterar. Os trabalhadores passaram a poder votar em candidatos próprios ou que se apresentavam como porta-vozes de interesses e direitos deles, trabalhadores. Não foi senão por isso que 46
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acabou por surgir um partido dos trabalhadores, o Labour Party. Esse partido tornou-se, com o passar do tempo, o outro grande polo da vida partidária inglesa, que durante muito tempo fora protagonizada por conservadores e liberais. À medida que se fortalecia o Partido Trabalhista, os liberais foram perdendo terreno. Hoje a polaridade na GrãBretanha é entre conservadores e trabalhistas. Observam JULIEN LAFERRIÈRE e PABLO LUCAS VERDÚ que a Câmara dos Lordes, na sua evolução, não tem sido um reduto conservador impermeável a toda transformação social, política e econô mica. Não. A aristocracia inglesa” – diz LAFERRIÈRE – “teve a virtude de rejuvenescer os seus quadros admitindo em seu seio indivíduos de outros estratos sociais, que souberam distinguir-se por seus méritos pessoais e pelos serviços prestados ao país”.
LAFERRIÈRE, um dos melhores conhecedores do sistema parla mentar europeu, apresenta umas informações muito esclarecedoras a respeito da composição íntima da Câmara dos Lordes. Conta ele: Mas se a hereditariedade faz da Câmara dos Lordes a assembleia da nobreza inglesa, esta não é uma classe fechada, fundada exclusivamente sobre o nascimento. Estabeleceu-se o costume de chamar ao pariato os homens de toda origem que se hajam distinguido no serviço do Estado, na diplomacia, no exército, nas funções civis ou coloniais, ou que conquistaram uma situação eminente nos negócios ou nas profissões intelectuais. A classe social representada pela Câmara dos Lordes se conserva seu fundo tradicional de aristocracia agrária, sofre um rejuvenescimento constante, ao menos na primeira geração, pela introdução de elementos novos, de sorte que ela representa não somente a aristocracia nobiliária, mas as diferentes categorias de superioridades sociais. Qualquer que seja, aliás, sua origem, os novos pares se identificam em geral com o espírito e com as tradições da instituição. A Câmara dos Lordes é essencialmente uma assembleia de caráter conservador, o que não deixa de dar Bicameralismo ou unicameralismo?
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lugar a sérias dificuldades, quando a maioria dos comuns e o ministério pertencem aos partidos políticos de esquerda.
Informa ainda LAFERRIÈRE: Representantes da velha aristocracia inglesa, um Lorde Londonderry, um Marquês de Salisbury, um Duque de Malborough encontram na Câmara dos Lordes elementos novos saídos do povo, Lorde Reading, Vice-Rei das Índias, ex-clerc-d’avoué, Lorde Snowden, ex-ministro das Finanças, outrora pequeno funcionário; Lorde Snell, que começou como groso de hotel. Duzentos e cinquenta pares possuidores de mais de três milhões de hectares representam os interesses da propriedade rural e frequentemente cumprem um papel considerável no seu distrito rural; muitos pares vêm da indústria; mais de trezentos administradores, de sociedades anônimas, de estradas de ferro, de bancos, de companhias de seguros; um grande número, antigos altos funcionários civis e militares. Se muitos pares são ricos, muitos também vivem nas suas terras em uma situação modesta.
Ainda esta outra informação de LAFEBRIÈRE: “Em setembro de 1933, a Câmara dos Lordes contava com 490 membros conservadores, 78 liberais, 13 socialistas, um independente, 151 membros de opinião não expressa. Até 1924, os trabalhistas não aceitavam participar da Câmara dos Lordes; eles se opunham ao princípio da hereditariedade, sentiam-se pouco à vontade nesse meio, e os Lordes não recebiam remuneração parlamentar. Em face da regra inglesa de que um ministro não tem entrada e nem palavra senão na câmara da qual é membro, quando o partido trabalhista chegou ao poder em 1924, foi preciso que o Ministério incluísse certo número de pares, a fim de ter porta-vozes na Câmara dos Lordes. M. Macdonald, para que o Governo do rei pudesse continuar’, propôs a criação de três pares, que foram tirados, aliás, dentre os liberais que se haviam 48
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convertido às doutrinas trabalhistas, Em seguida, alguns pares aderiram ao Partido Trabalhista. A hostilidade deste último contra o pariato se atenuou, e alguns de seus membros aceitaram ser nomeados para ele.
Argumentos pró-bicameralismo Costumam-se invocar os seguintes argumentos em favor do bicameralismo: 1) O bicameralismo assegura uma melhor e mais completa representação da opinião pública. O caráter complexo da opinião pública, a diversidade de matizes que contém, as mudanças repentinas e contraditórias que experimenta, se representa melhor em duas câmaras, principalmente se, se tem em conta que toda opinião pública apresenta duas tendências: uma progressista, com ânsias de reformas, e outra mais prudente, tradicional, que lhe serve de freio. O parlamento bicameral pode dar abrigo a ambas as tendências. 2) A dualidade é uma garantia frente ao possível despotismo da assembleia única. 3) A Câmara dupla serve para que o trabalho legislativo se efetue com maiores garantias de ponderação e perfeição. Na segunda câmara, mais reflexão e serenidade, e legislação mais perfeita, pois – diz PABLO LUCAS VERDÚ – “as deficiências que acaso escaparam no projeto elaborado pela primeira câmara podem ser sanadas no exame da segunda”. 4) O sistema de duas assembleias mitiga os conflitos entre o Legislativo e o Executivo, pois uma das câmaras, a segunda, pode servir de árbitro. 5) O sistema bicameral aproveita as personalidades de valor que não conseguem alcançar um lugar na câmara baixa. 6) A segunda câmara pode servir para estabelecer a represen tação corporativa ou de interesses econômicos. 7) O bicameralismo consolida a opinião parlamentar. ALVIM W. HOHNSON (The unicameral Legislative, The University Bicameralismo ou unicameralismo?
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of Minnesota Press, Minneapolis, 1938, pp. 51-52), apoiado em STORY, sustenta: O bicameralismo é uma garantia contra os grupos de pressão porque é mais difícil convencer duas assembleias do que uma. O parlamento bicameral, eleitas suas câmaras com procedimentos eleitorais distintos e com dura ção também diversa, é uma garantia frente às repentinas e caprichosas mudanças de opinião parlamentar, exigindo-se, para ser aceita, que antes demonstre ter-se consolidado realmente no país. 8) A segunda câmara continua o controle do Executivo quando
a Câmara Baixa houver sido dissolvida.
9) Em toda forma política democrática é necessário um órgão
fixo que opere como um freio e contenção em face de um espírito arriscado de reforma. BARTHELEMY-DUEZ e LAFERRIÈRE assinalam o papel conservador e tradicional do rei na monarquia. Nas formas republicanas é necessário, ainda mais, porque maior é a ânsia de inovação. A segunda câmara pode desempenhar com perfeição essa função. 10) O unicameralismo aparece em momentos de crise, de febre política; as revoluções começam com uma assembleia e terminam com duas. Diz JULIEN LAFERRIÈRE: A experiência mostra que a grande maioria das Constituições praticam o bicameralismo. Ela mostra igualmente que, quando países modificam o seu sistema, o fazem em geral para passar da Câmara única à dualidade das assembleias. Salienta ainda que, na França, as constituições mais frágeis foram aquelas de câmara única (a de 1791 e a de 1848). E observa que Uma série de razões parecem estabelecer bem claramente que as vantagens da dualidade das assembleias se sobrepõem aos inconvenientes que ela possa apresentar.
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Para LAFERRIÈRE, são as seguintes as vantagens da dualidade de câmaras: 1º – A dualidade de câmaras permite assegurar uma representação mais precisa da opinião do país pelo Parlamento, já que, havendo duas câmaras, com composição não exatamente idêntica, a tendência renovadora e progressista, que reclama reformas, e a tendência do apego ao estabelecido, o espírito de prudência, de tradição, de conservação, tendências essas que são reais dentro de toda sociedade humana, estarão representadas. 2º – Ela assegura mais estabilidade na opinião parlamentar. Ocorrem às vezes na opinião de um país reviravoltas bruscas que não são senão correntes passageiras, ímpetos momentâneos. Uni Parlamento composto de duas câmaras, se essas duas câmaras não foram eleitas do mesmo modo, será menos exposto a sofrer esses ímpetos de opinião efêmeros do que um parlamento composto de uma única assembleia. Assim, a dualidade das câmaras assegurará mais estabilidade à opinião parlamentar. 3º – A dualidade assegura um melhor trabalho legislativo. A objeção dos adversários do bicameralismo de que ele torna o trabalho legislativo mais pesado, difícil e lento, LAFERRIÈRE contrapõe a observação de que: O essencial para um país não é ter muitas leis, mas ter boas leis; não multiplicar as reformas apressadas, mas fazer reformas úteis e que respondam ao sentimento do país.
E aduz o constitucionalista francês que os parlamentos compostos de uma câmara única têm uma tendência irrefreável à superposição de leis. E mais: com frequência, um partido que detém a maioria na câmara única efetua, às pressas, reformas intempestivas que encontram resistências sociais diminuidoras da autoridade da lei. A dualidade” – afirma LAFERRIÈRE – “opõe uma barreira às reformas apressadas ou prematuras”.
E completa: Bicameralismo ou unicameralismo?
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“A experiência prova, aliás, que ela não impede que se façam leis rapidamente, quando a necessidade destas é verdadeiramente sentida”.
Em seguida, procura LAFERRIÈRE aprofundar e precisar o seu pensamento de que o bicameralismo assegura uma qualidade melhor ao trabalho legiferante: De outra parte, além da questão da oportunidade, a confecção da lei é uma obra técnica. As leis feitas por uma única assembleia arriscam ser adotadas muito apres sadamente. A discussão delas por uma segunda assembleia é uma garantia certa de que, examinada e debatida duas vezes, a lei será melhor, ou, ao menos, menos mal feita. A dualidade é uma garantia de maturidade na confecção da lei.
Mais: A dualidade é uma garantia contra o risco de despotismo de uma Assembleia única.
Aponta LAFERRIÈRE a tendência da câmara única de se considerai onipotente, em virtude de ser a única representante da nação. Essa tendência não pode se manifestar num regime de dualidade de câmaras. Essa dualidade é a aplicação, ao parlamento, da ideia de divisão dos poderes, com a garantia que é essa ideia para a liberdade. E cita MONTESQUIEU: O corpo legislativo sendo composto de duas partes, uma travará a outra pela sua faculdade mútua de impedir.
Cita BRYCE: Nos Estados Unidos, a necessidade de duas câmaras tornou-se um axioma da ciência política; ela se funda sobre a crença de que a tendência inata de toda assembleia a se tornar apressada, 52
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tirânica e corrompida, deve ser reprimida pela existência de outra assembleia igual em autoridade.
LAFERRIÈRE rebate o argumento de que a existência de duas câmaras aumenta os casos de conflitos, ocasionando conflitos entre as duas casas do parlamento. Contesta ele essa ponderação dizendo que o perigo de conflitos irredutíveis não pode ser exagerado. E que geralmente os desacordos terminam por transação, pela “adoção de uma solução mediana”. Obtempera LAFERRIÈRE que: No funcionamento do organismo constitucional, os conflitos mais frequentes e mais graves são aqueles que acontecem entre o Legislativo e o Executivo.
E sublinha: Se o parlamento é composto de uma única assembleia, o perigo é que o desacordo entre esses dois poderes, teoricamente iguais e independentes, seja insolúvel pacificamente e que a solução venha por meios violentos: golpe de força do Executivo ou golpe de força da assembleia. Isso é o que aconteceu com as nossas constituições de sistema unicameral. Com duas câmaras, ao contrário, a solução violenta dos conflitos entre o parlamento e o Executivo é menos temível. O mais frequente é que o conflito ocorra entre o Executivo e uma das assembleias. A outra assembleia servirá de árbitro. Se as duas câmaras se unem contra o governo, é quase certo que este cederá.
Mudança de caráter O caráter conservador, de resistência à democracia, de freio às mudanças radicais, que muitos atribuem à segunda câmara do Poder Legislativo, parece estar se diluindo cada vez mais. Esse caráter se agregou à segunda câmara nas experiências históricas e políticas dos países da Europa. Quando um CARL SCHMITT, por exemplo, atribui Bicameralismo ou unicameralismo?
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esse caráter ao sistema bicameral, nota-se que o faz de um ponto de vista particularmente europeu. Na Europa, uma dominação prolongada da aristocracia – a qual não se pode afirmar que em nossa época não mais existe – impregnou todas as instituições políticas de elementos aristocráticos muito fortes. A Câmara dos Lordes, na Inglaterra, e o Senado, na França, eram, foram e têm sido órgãos parlamentares representativos dos interesses sociais e econômicos das castas socialmente dominantes. A ideia de que uma câmara alta deve servir, dentro do meca nismo de funcionamento do Poder Legislativo, de freio aos ímpetos reformadores da câmara baixa, manifestou-se – retardatariamente – no Brasil, ainda viva, no episódio da reforma constitucional de abril de 1977. Então, o chamado “Pacote de Abril” criou a figura do senador eleito indiretamente – senador que pegou o apelido de “biônico”. O objetivo da criação dessa figura anômala, estranha, desautorizada, dentro do Senado brasileiro, foi claramente o de estabelecer, no interior dessa segunda câmara legislativa, uma barreira às mudanças políticas que o governo autoritário do General Ernesto Geisel previa pudessem ser feitas pelo Congresso Nacional. Os senadores “biônicos” deviam ser – e foram – um grupo de sentinelas fiéis ao Poder Executivo, uma tropa de confiança do governo militar. Apesar dessa manifestação seródia que teve no Brasil a concepção antiga do caráter e fim conservador da segunda câmara, a verdade é que essa concepção apresenta, hoje em dia, um interesse muito pequeno, quase meramente histórico. Como bem observa PAULO BONAVIDES, a chamada câmara alta evoluiu. Diz BONAVIDES: Onde a câmara alta sobreviveu, manifesta-a de última tendência inversa; aportou-se gradativamente de seu teor aristocrático até se converter numa duplicação da câmara baixa. Desfez-se assim o bicameralismo daquelas conotações reacionárias mais flagrantes, de modo que a instituição de uma segunda casa legislativa se tornou expediente neutro de conveniência, sobretudo técnica, com que atender primeiro a um determinado aprimoramento do processo de elaboração de leis, mais racional e mais eficaz, do que propriamente a uma receita política 54
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destinada a resguardar interesses e necessidades profundas de representação de classes ou grupos sociais. Nunca, porém, se logrou afastar por inteiro o arraigado ponto de vista de que a segunda câmara é órgão de controle da representação popular e, portanto deve sempre existir para contrabalançar os poderes da câmara baixa.
A experiência americana Nos Estados Unidos, ocorreu um fenômeno historicamente curioso e politicamente muito significativo: a segunda câmara – o Senado – nasceu, no plano federal, antes da primeira, a Casa de Representantes. É muito diferente da europeia, portanto, nesse ponto, a experiência americana. Nos Estados Unidos, o Senado fundou a nação. Quando as treze colônias começaram a se unir para lutar contra o despotismo da Inglaterra, de que maneira o fizeram? Primeiro organizaram, eletivamente, um Congresso Continental, composto de representantes de cada uma das colônias. Um Senado. Esse Senado, denominado Congresso, governou as treze colônias rebeladas, já em via de se converterem, cada qual delas, em Estado independente, durante a guerra da independência e mesmo durante os anos em que, após a independência, durou a Confederação. Quando a Convenção da Filadélfia se reuniu em 1787 para elaborar uma proposta de alteração das cláusulas da Confederação, que era essa Convenção? Um Senado – isto é, uma assembleia de representantes dos estados que se haviam unido em Confederação. Note-se que a Convenção da Filadélfia, abusando do mandato que recebera, ao invés de simplesmente alterar as cláusulas da Confederação, redigiu uma nova Constituição, que substituiu a Confederação por uma Federação. Essa Constituição foi depois submetida à aprovação das convenções estaduais, que a ratificaram, uma a uma. Somente após a entrada em vigor da Constituição federal – em 4 de março de 1789 – foi que surgiu a Casa de Representantes, ou Câmara dos Deputados. Que significa isso? Significa que, nos Estados Unidos, o povo só passou a ter representação após a adoção da Constituição federal. Esta não foi feita por uma assembleia constituinte segundo o modelo europeu e conforme a concepção de poder constituinte elaborada por Bicameralismo ou unicameralismo?
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SIEYÈS; mas sim por uma assembleia de caráter e estrutura senatoriais, entendida a palavra Senado na acepção que passou a ter, precisamente depois da Constituição federal dos Estados Unidos, de assembleia de representantes de Estados federados. Lembra VERDÚ que nos Estados Unidos se estabeleceu o bica meralismo não só “por exigência da forma federal, mas também por temor de possíveis excessos demagógicos”. VERDÚ se esqueceu de dizer que o bicameralismo na Federação americana foi também decorrência de uma tradição robusta e inafastável: como informa ANDRÉ MAUROIS, na sua História dos Estados Unidos, no período colonial “cada estado possuía uma legislatura composta de duas câmaras”. A experiência bicameral que vinha do período colonial em todos os estados, certamente condicionou e mesmo determinou que se considerasse indispensável uma assembleia de representantes desses estados na Federação estruturada pela nova Constituição federal. Escrevendo em O Federalista a respeito da necessidade de existir em toda república dos Estados Unidos um Senado, MADISON, um dos pais da Constituição federal dos Estados Unidos, arrola os seguintes argumentos. Primeiro: o Senado “deve em todos os casos ser um salutar controlador do governo”. O Senado “dobra a proteção do povo, por exigir a concorrência de dois órgãos distintos em qualquer esquema visando à usurpação ou à deslealdade, quando, não fora isso, a ambição ou a corrupção de um deles seria suficiente. Esta é uma preocupação baseada em princípios tão claros e agora tão bem compreendidos nos Estados Unidos, que seria mais do que supérfluo referi-los”. Segundo: “A necessidade de um senado é não menos indicada pela tendência de todas as assembleias únicas e numerosas em ceder aos impulsos de súbitas e violentas paixões e ser levadas por líderes facciosos a tomar resoluções intempestivas e perniciosas. Um órgão destinado a corrigir aquele mal deve logicamente não sofrer dele e, consequentemente, ser menos numeroso, além de possuir grande firmeza – o que exige que sua autoridade seja mantida ininterruptamente durante um período mais longo”. Terceiro: “Outro defeito a ser corrigido por um senado decorre da falta de devidos conhecimentos dos princípios e objetivos da le56
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gislação. Não é possível que uma assembleia de homens recrutados em sua maioria nas atividades de natureza privada, eleitos por um período muito curto e não motivados para devotar seus intervalos no exercício das funções públicas ao estudo das leis, dos problemas e dos justos interesses de seu país, seja capaz, isoladamente, de evitar uma enorme quantidade de erros no exercício do mandato legislativo. Pode-se afirmar, com a maior segurança, que uma parcela não desprezível das atuais dificuldades da América deve ser imputada aos erros de nossos governos e que tais erros são devidos mais às cabeças do que aos corações de seus autores. O que são, realmente, todas essas leis conflitantes, repetitórias e complementares que inundam e complicam nossos arquivos, senão provas irrefutáveis da deficiência de conhecimentos? São elas responsáveis também por tantas acusações feitas em cada sessão às resoluções toma– das na sessão anterior, fazendo ver ao povo as vantagens de um senado bem constituído”. Quarto: A necessidade de estabilidade do governo. O Senado fora concebido, pelos autores da Constituição, como um órgão de consulta permanente do Poder Executivo (o que ele deixou de ser na prática, sobretudo por causa do precedente constituído por George Washington, o primeiro Presidente, que se aconselhava com os seus secretários). Quinto: O Senado seria uma garantia de “governo seleto e estável”, capaz de assegurar a consideração dos países estrangeiros Essa consideração era para MADISON indispensável a todo governo. Sexto: A necessidade de “uma devida responsabilidade no go verno perante o povo”. Desenvolvendo esse argumento, explica MADISON que a responsabilidade por “uma sucessão de providências corretas e bem concatenadas” não pode ser conferida a uma assembleia, eleita para um período curto de tempo como o dos representantes do povo, cujo mandato era de dois anos e cuja composição, ademais, muito numerosa. “A adequada solução para esta falha” – diz MADISON – “deve ser um órgão adicional no ramo legislativo, o qual, desfrutando de suficiente estabilid‑ade para tratar daqueles objetivos que requerem continuada atenção e uma série de medidas possa ser efetiva e justificadamente responsabilizado pela respectiva consecução”. A esses seis argumentos, MADISON acrescenta ainda outro: o de que a instituição do Senado “pode ser algumas vezes necessária à Bicameralismo ou unicameralismo?
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defesa do povo contra ocasionais erros e enganos”. MADISON explica: “Assim como o senso ponderado e imparcial deve, em todos os go vernos, por fim prevalecer – e realmente prevalece –, também há determinadas ocasiões nos assuntos públicos em que o povo, estimulado por alguma paixão anormal ou uma vantagem ilícita, ou ainda iludido por embustes ardilosos de pessoas interessadas, possa clamar por medidas que, mais tarde, ele será o primeiro a lamentar e condenar. Nesses críticos momentos, quão salutar será a interferência de um grupo de cidadãos moderados e respeitáveis, a fim de deter a orientação errada e evitar o golpe preparado pelo povo contra si mesmo, até que a razão, a justiça e a verdade retomem sua autoridade sobre o espírito público! De quantos sofrimentos amargos o povo de Atenas não se teria livrado se seus governos tivessem providenciado uma salvaguarda contra a tirania de suas próprias paixões?”. Sintetizando suas reflexões sobre exemplos fornecidos pela História, MADISON afirma: “Nenhuma república sem senado teve vida longa”. Necessidade de uma segunda câmara Conta PABLO LUCAS VERDÚ que, em fins do século passado, BRUNALTI defendia o sistema bicameral inspirando-se em BIOBERTI (Del rinnovamento civile d’Italia, Paris e Turim, Ed. Bocca, 1851, t. 2, pp. 405-406), “apontando como nos mesmos países que careciam de Senado se sentia a necessidade de recorrer a diversas instituições (tribunal de cassação, conselhos provinciais, diferentes deliberações, maiorias qualificadas), que eram verdadeiras concessões em favor da segunda câmara”. Esse argumento é muito importante. É a constatação de um fato: o de que, quando se suprime a “segunda câmara”, sente-se a necessidade incontornável de criar-lhe um sucedâneo, uma entidade que lhe faça às vezes, que lhe cumpra a função, que lhe desempenhe o papel. Eliminar e criar um sucedâneo são o mesmo que não eliminar – e é o mesmo que reconhecer o erro da eliminação, ou a necessidade da coisa eliminada. A Carta Constitucional imposta ao país em 1937 fornece um exemplo disso. Eliminou o Senado – a segunda câmara –, mas criou um Conselho 58
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Federal para o lugar dele. Nos termos do art. 50 dessa falsa Consti tuição que todo o mundo despreza e ninguém lê, O Conselho Federal compõe-se de representantes dos Estados e dez membros nomeados pelo Presidente da Re pública. A duração do mandato é de seis anos.
De acordo com o parágrafo único desse art. 50, Cada Estado, pela sua Assembleia Legislativa, elegerá um representante. O governador do Estado terá o direito de vetar o nome escolhido pela Assembleia; em caso de veto, o nome vetado só se terá por escolhido definitivamente, se confirmada à eleição por dois terços de votos da totalidade dos membros da Assembleia.
Para ser membro do Conselho Federal, havia -– nos termos do art. 51 da Carta – um requisito grotesco: além de ser brasileiro nato, maior de trinta e cinco anos e eleitor, o candidato precisava ter exercido, “por espaço nunca menor de quatro anos, cargo de governo na União ou nos Estados”. Esse Conselho tinha a competência de legislar para o Distrito Federal e para os territórios, no que se referisse aos “interesses peculiares dos mesmos” (sic). E tinha a iniciativa dos projetos de lei sobre tratados e convenções internacionais, comércio internacional e interestadual, e regime de portos e navegação de cabotagem. Competia-lhe ainda aprovar as nomeações de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas, dos representantes diplomáticos, exceto os enviados em missão extraordinária, e aprovar os acordos concluídos entre os Estados. Essa instituição esdrúxula – que, como quase tudo da Carta de 1937, não existiu – seria presidida “por um ministro de Estado, designado pelo Presidente da República”. Em síntese, e repetindo: quando se suprime a segunda câmara, fica um vazio; esse vazio é em geral preenchido por outro órgão, com funções, atribuições e competências ou iguais ou semelhantes às da segunda câmara suprimida. Em outras palavras: o vazio criado pela supressão da segunda câmara em geral se supre por meio de outra câmara, só que ora mais ora menos mutilada. Bicameralismo ou unicameralismo?
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A necessidade da existência de um órgão investido de atribuições da espécie daquelas atualmente atribuídas à casa legislativa que, nas federações, cumpre um papel equivalente ou semelhante ao do atual Senado do Brasil se patenteia quando se verifica que tais funções são indispensáveis ao Poder Legislativo. Unicameral ou bicameral, o Poder Legislativo tem de desempenhar essa espécie de funções. Se unicameral, terá a assembleia de dotar-se e equipar-se de um, digamos, setor, ou departamento, ou comissão, ou que nome tenha, que desempenhe as funções de: 1º – rever, revisar ou corrigir o trabalho legislativo realizado pela outra câmara, no sentido de o aprimorar e escoimar de defeitos inevitáveis e que a prática quotidiana do Parlamento revela de maneira às vezes contundente; 2º – tribunal político, para julgamento dos membros dos demais Poderes do Estado; 3º – órgão de seleção dos ocupantes de cargos determinados; 4º – autorizar empréstimos ou acordos externos de qualquer na tureza, de interesse dos estados, do Distrito Federal e dos municípios; 5º – e outras funções respectivas ou relacionadas à estrutura federal do Estado brasileiro. Se um Poder Legislativo unicameral precisa assim, forçosamente, em sua estrutura, de um braço ou órgão ou “departamento” com funções correspondentes às de um Senado, então é melhor que se subdivida logo o Poder Legislativo em duas câmaras, a fim de que entre as duas se distribuam funções que, por natureza, não podem ser cumpridas por uma câmara só. Não se escolhe abstratamente Na questão bicameralismo versus unicameralismo não se pode decidir com abstração da realidade histórica dentro da qual se apresenta o dever ou a oportunidade de fazer a opção entre os dois modelos. A questão da estrutura do Poder Legislativo é eminente e fundamentalmente histórica. Tem de ser pensada à luz da experiência histórico-social de cada país. Não existe um modelo ideal de Poder Legislativo: não existe o Poder Legislativo, mas sim tantos exemplares de Poder Legislativo, quantas são as organizações estatais que os contêm – e todas elas o contêm. Não existe um arquétipo de Poder Legislativo aplicável 60
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ou imponível a todos os países ou a qualquer país. Os Estados Unidos têm o seu Poder Legislativo, como a Grã-Bretanha tem o dela, a França, a União Soviética etc. O Poder Legislativo é uma instituição social. Toda sociedade tem o seu Poder Legislativo, pois toda sociedade humana vive sob a disciplina de leis. Alguém faz essas leis. Ou o sacerdote, ou o rei, ou um conselho de anciãos, ou algo como o parlamento moderno. O parlamento moderno nasceu na Inglaterra. Atualmente não existe país que não tenha o seu parlamento. PABLO LUCAS VERDÚ comenta: O parlamento é uma instituição. Isto é, não está somente previsto nas normas constitucionais e regulamentares que o configuram, mais do que isso ele radica na sociedade política, é expressão de suas necessidades e veículo das ideologias que as modulam e justificam.
Essa mesma ideia é expressa por PAULO BONAVIDES: O bicameralismo (repartição do Legislativo em duas casas) e o unicameralismo (uma só Assembleia Legislativa), longe de constituírem apenas princípio teórico de aferição democrática de organização do poder no moderno Estado representativo, conforme fizeram valer certas po sições doutrinárias, devem também ser compreendidos como técnicas de construção do Poder Legislativo, aplicáveis de acordo com as peculiaridades políticas de cada povo, a par das aspirações e exigências concretas, resultantes do desenvolvimento histórico, da natureza do regime político, da forma de Estado adotada e das crenças e valores reinantes no interior de uma nação em determinada época”.
A história da gênese e evolução do parlamento moderno na cultura que primeiro o engendrou – a Inglaterra – demonstra que a estrutura dessa instituição social, que é o Poder Legislativo, é filha vagarosamente construída da história total de cada sociedade. Impossível um Parlamento francês igual ao Parlamento inglês. Impossível um Parlamento norte-americano igual ao soviético. Cada sociedade engendra o seu parlamento com características Próprias. Bicameralismo ou unicameralismo?
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Cada povo tem a sua história peculiar, dentro da qual e ao longo da qual se engendram e evoluem as suas instituições políticas. Por isso, nenhuma instituição política copiada, imitada ou transplantada alcança radicação autêntica. Funciona mal, por ser Postiça. A questão de saber qual estrutura do Poder Legislativo é mais Conveniente não pode ser debatida nem muito menos decidida apenas no plano das ideias. É certo que pode e deve ser discutida também no plano das ideias; no plano dos modelos abstratos. É sempre possível examinar, no arcabouço abstrato de uma instituição, virtudes e defeitos. Mas essa verificação só adquire valor operacional, à luz da práxis histórica. Não se pode saber se o bicameralismo é melhor ou pior do que o unicameralismo pensando de maneira abstrata. O que se deve fazer é examinar o unicameralismo ou o bicameralismo na realidade de sua prática quotidiana, de sua experimentação histórica, social e política. Não existe, assim, unicameralismo; nem existe bicameralismo. Existe o unicameralismo deste ou daquele país. Existe o bicameralismo norte-americano, o bicameralismo brasileiro, o bicameralismo inglês. Para se avaliar a conveniência, as vantagens e desvantagens, as virtudes e deficiências do sistema bicameral no Brasil, é mister analisá-lo em função da nossa experiência histórica, da nossa realidade peculiar, das necessidades próprias da sociedade nacional brasileira. Não adianta, de modo algum, não tem o menor sentido dizer-se a um cidadão norte-americano que o Senado dos Estados Unidos não é necessário ao funcionamento do Poder Legislativo. É que, nos Estados Unidos, o Senado corresponde a uma necessidade. Nasceu como resposta a uma necessidade, como solução de um problema, e continua a existir por ser a resposta adequada aos desafios políticos da sociedade norte-americana: os dilemas polí ticos norte-americanos dependem da atuação do Senado. Igualmente, não vá alguém preconizar, na Grã-Bretanha, a dissolução da Casa dos Lordes, increpando-a de supérflua ou excrescente. A experiência histórico-política da Grã-Bretanha ainda não aconselhou a supressão da sua câmara alta, que hoje é, lá, muito mais uma câmara de reflexão do que de legislação e de julgamento.
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Bicameralismo e federação Essa questão da necessidade de uma dualidade de câmaras do Poder Legislativo se torna bem mais clara quando se examina a estrutura dos Estados federais. Parece que o bicameralismo é inerente ao federalismo. Federação sem um parlamento bipartido parece ser uma estrutura defeituosa essencialmente. A experiência histórica ensina que dizer federação é dizer Poder Legislativo bicameral. Uma estrutura impõe a outra. Federação é uma composição de Estados – os quais precisam ter, de per si e no seu conjunto, representação política. O órgão de representação política dos Estados-membros de uma federação é uma estrutura mais ou menos típica. Nos Estados Unidos da América, chama-se Senado. Nesse outro grande Estado federal hodierno que é a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, é o Soviete das Nacionalidades, o qual forma, juntamente com o soviete da União, o Soviete Supremo, “órgão supremo do poder estatal da URSS”. O Soviete das Nacionalidades representa as repúblicas federadas, as repúblicas autônomas, as regiões autônomas e as circunscrições autônomas (art. 108, 109 e 110 da Constituição da URSS). Na República Federal da Alemanha, o poder Legislativo é exercido pela Assembleia Federal de Deputados, “representam todo o povo”, e pelo Conselho Federal, que representa os Estados. A Constituição – Lei Fundamental de 23 de maio de 1949 – expressa o caráter do Conselho Federal de uma forma exemplar: Art. 50 – Os Estados participam na legislação e na administração federais por intermédio do Conselho Federal. Mas o Conselho Federal não é eletivo: seus membros são nomeados pelos governos dos estados; e nele a representação dos estados não é paritária: varia de acordo com o número da população de cada estado.
Bicameralismo no Brasil No Brasil, o Poder Legislativo foi sempre bicameral, ainda que imperfeitamente no regime da Constituição de 1934. Não se pode falar Bicameralismo ou unicameralismo?
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da Carta Ditatorial de 1937 – em que se adotou também o sistema bicameral, com a segunda câmara transmudada em um Conselho Federal teratológico –, por não ter sido posta em prática em nenhum dos seus preceitos, além daqueles que lhe atribuíam poderes absolutos, mormente o art. 180. A segunda câmara do Poder Legislativo, no Brasil, foi sempre o Senado. A evolução do Senado tem percorrido uma trajetória de democratização progressiva, em sua composição. No regime da Carta Constitucional de 1824, os senadores eram vitalícios e escolhidos pelo Imperador de uma lista tríplice de nomes eleitos pelas províncias. A eleição nas províncias era feita por voto direto dos eleitores paroquiais, escolhidos, por seu turno, pelo voto direto dos eleitores de freguesia. Convém transcrever as normas da Carta de 1824 referentes ao Senado: Art. 13 – O Poder Legislativo é delegado à Assembleia Geral com a sanção do Imperador. Art. 14 – A Assembleia Geral compõe-se de duas câmaras: Câmara dos Deputados e Câmara dos Senadores ou Senado. Art. 40 – O Senado é composto de membros vitalícios, e será organizado por eleição provincial. Art. 41 – Cada província dará tantos senadores quantos forem metade dos seus respectivos deputados, com a diferença que, quando o número de deputados da província for ímpar, o dos seus senadores será metade do número imediatamente menor, de maneira que a província que houver de dar onze deputados dará cinco senadores, Art. 42 – A província que tiver um só deputado elegerá, todavia, o seu senador, não obstante a regra acima estabelecida. Art. 45 – Para ser senador requer-se: 19) que seja cidadão brasileiro, e que esteja no gozo de seus direitos políticos; 29) que seja pessoa de saber, capacidade e virtudes, com preferência os que tiverem feito serviços à Pátria; 39) que tenha de rendimento anual, por bens, indústria, comércio ou emprego, a soma de 800$00. 64
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Art. 46 – Os Príncipes da Casa Imperial são senadores por direito, e terão assento no Senado logo que chegarem à idade de 25 anos.
Tinha o Senado, portanto, em razão dos requisitos para dele fazer parte, um caráter mais conservador do que a Câmara dos Deputados. Porém, não há dúvida de que se diferenciava muito das câmaras aristocráticas europeias (Câmara dos Lordes e Câmara dos Pares da França), nas quais o provimento era feito segundo o princípio hereditário ou por escolha da Coroa, em todo caso sem eleição prévia, como observou AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO. De acordo com o art. 13 da Carta Constitucional, “o Poder Legislativo é delegado à Assembleia Geral com a sanção do Imperador”. A Assembleia Geral se compunha da Câmara dos Deputados e da Câmara dos Senadores ou Senado. O processo legislativo não se completava sem a participação das duas casas integrantes da Assembleia Geral. Além da atribuição de propor e aprovar projetos de lei, em conjunto com a Câmara dos Deputados, o Senado tinha atribuições de corte judicial, devendo conhecer dos delitos individuais cometidos pelos membros da família imperial, ministros de Estado, conselheiros de Estado e Senadores, e dos delitos dos deputados durante o período da legislatura; conhecer da responsabilidade dos secretários e conselheiros de Estado. Cabia-lhe expedir cartas de convocação da Assembleia, caso o Imperador o não houvesse feito dois meses depois do tempo determinado pela Constituição, reunindo-se para tal extraordinariamente. Cabia-lhe ainda convocar a Assembleia na morte do Imperador para eleger a Regência. Na Constituição da República de 1891, o Senado conservou as atribuições de corte judicial; mas perdeu a de convocar o Congresso Nacional em qualquer caso. Para eleger-se senador, a idade mínima diminuiu para 35 anos. A posição do Senado no quadro constitucional foi modificada fundamente na Constituição de 1934. Nos termos do art. 88, profundamente o Senado Federal incumbia “promover a coordenação dos poderes federais entre si, manter a continuidade administrativa, velar pela Constituição, colaborar na feitura de leis e praticar os demais atos da sua competência”. A representação dos estados diminuiu de três para dois Senadores. A idade mínima Bicameralismo ou unicameralismo?
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continuou a ser de 35 anos. A representação de cada estado passou a renovar-se pela metade, conjuntamente com a eleição da Câmara dos Deputados. As atribuições privativas do Senado Federal foram ampliadas, mas foi-lhe tirada à função de corte judicial, a qual passou à Corte Suprema nos crimes comuns do Presidente da República e nos crimes comuns e de responsabilidade dos ministros de Estado. Para os crimes de responsabilidade do Presidente da República e para os dos ministros de Estado, conexos com os do Presidente, a Cons tituição criou um tribunal especial. O Poder Legislativo foi atribuído à Câmara dos Deputados, “com a colaboração do Senado Federal”. A participação do Senado no processo legislativo passou a limitar-se a determinadas matérias, de caráter mais propriamente federal, como estado de sítio, sistema eleitoral e de representação, organização judiciária federal, tributos e tarifas, mobilização, declaração de guerra, celebração de paz e passagem de forças estrangeiras pelo território nacional, tratados e convenções com as nações estrangeiras, comércio internacional e interestadual, regime de portos, navegação de cabotagem e nos rios e lagos do domínio da União, vias de comunicação interestadual, sistema monetário e de medidas, banco de emissão, socorros aos estados, matérias em que os estados tivessem competência legislativa subsidiaria ou complementar. Um fato deve também ser observado na Constituição de 1934: as normas relativas ao Senado sofreram uma deslocação tópica muito significativa. Saíram do capítulo do Poder Legislativo e passaram para um capítulo à parte, especial, denominado “Da Coordenação dos Poderes”, dentro, ainda, do título I, que tratava “Da Organização Federal”. O Senado Federal foi focalizado, na Constituição de 1934, após o Poder Judiciário, o Executivo e o Legislativo. No regime da Constituição de 1946, o Senado recuperou sua competência corte judicial, para julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade e dos ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos com os do Presidente, para processar e julgar os ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República nos crimes de responsabilidade. O limite mínimo de idade continuou de 35 anos.
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As Cartas Constitucionais de 1967 e 1969 mantiveram as mesmas atribuições e competências conferidas ao Senado pela Constituição de 1946. O Brasil e o federalismo Ao contrário do que muita gente pensa e diz – repetindo impensadamente um lugar-comum infundado na realidade dos fatos –, a federação, no Brasil, não foi uma criação artificial, uma importação de modelo estrangeiro, uma imposição forçada dos fundadores da República. A federação correspondeu, no Brasil, ao atendimento de urna necessidade profundamente enraizada nas condições de vida da sociedade brasileira diversificadamente distribuída nas capitanias e depois províncias do país. Essa necessidade se expressou, com muita frequência, por meio de reivindicações, proclamações, denúncias, projetos, lutas partidárias, construções teóricas etc. Sempre houve, na história do Brasil, uma reivindicação de autonomia política e administrativa da parte das diversas regiões. O centralismo político e administrativo do Império nunca deixou de provocar oposição e denúncias severas dos pensadores políticos mais representativos do País. Quando se leem os publicistas brasileiros do século passado – um TOBIAS BARRETO, um TAVARES BASTOS –, verifica-se quanto era geral e profunda a reivindicação de autonomia e descentralização político-administrativa na consciência brasileira. O centralismo do período colonial, trazido por Portugal, e que prosseguiu, embora atenuado, durante o Império, é que foi uma solução artificial, imposta autoritariamente, de cima para baixo. Um centralismo que asfixiava, matava, abafava a vida política, mental e econômica das regiões em que se repartia o país. No processo de estruturação do Estado brasileiro, há um movi mento de sístole e diástole que alterna o predomínio das forças centralizadoras com a aceitação de princípios e normas descentralizadores, federalizantes. Atravessamos, atualmente, um período de predomínio, na consciência nacional, da corrente que pensa e concebe o Brasil como uma realidade diversificada necessitada de expressão constitucional, política e administrativa. Em outras palavras: predomina hoje no Brasil a tendência a entregar aos estados uma autonomia política e adminisBicameralismo ou unicameralismo?
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trativa maior, mediante a qual se propicie a prática de processos e procedimentos democráticos de participação do povo nas decisões e no controle dos atos político-administrativos. Propostas para o Senado A outorga de maiores competências ao Senado corresponderia precisamente a esse impulso de fortalecer a federalidade do Estado – brasileiro. Mais autonomia para os estados-membros: consequentemente mais força para o seu órgão de representação, a segunda câmara do Poder Legislativo – o Senado Federal, ou simplesmente Senado. PAULO BONAVIDES, no seu artigo tantas vezes citado aqui, diz que, em face do grande abalo sofrido, no Brasil, pelo sistema federativo, nos últimos anos, “há uma instituição cujos fundamentos devem justificadamente ser reexaminados. Essa instituição é, sem dúvida, o Senado. De sua reforma poderá resultar um fortalecimento da ordem federativa.
Diz BONAVIDES que, além da participação paritária junto da Câmara dos Deputados no exercício da função legislativa ordinária, abrem-se ao Senado, no âmbito da estrutura federativa, impor tantes tarefas que lhe assinam um lugar de hegemonia como ramo do Congresso Nacional. Essas tarefas” – declara o constitucionalista cearense – “deverão conter-se num quadro de competência, cujo alargamento se recomenda, em ordem a fazer da instituição um dos instrumentos mais idôneos, em ocasiões de crise, a preservar o sistema federativo e afiançar-lhe meios de contrastar os excessos políticos da cen tralização, concentrada na competência da União e nas atribuições do Presidente da República, titular do Poder Executivo”.
Sugere, então, BONAVIDES que se conceda ao Senado: 68
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“um certo controle tocante à legalidade dos atos do Executivo; que se lhe atribua a iniciativa, tutela e fiscalização da política nacional de planejamento; que se lhe outorgue competência ampla e poder decisório em matéria de intervenção federal; e se lhe confira, enfim, a faculdade de uma superintendência eficaz da política exterior.
Pensamos também que, numa linha de coerência com a ideia legislativa que uma das funções mais importantes de uma segunda câmara legislativa é a de revisar e aperfeiçoar o trabalho oriundo da outra câmara, precisa o Senado adotar normas de procedimento que assegurem autenticidade ao seu trabalho quando lhe tocar a tarefa de revisar. Se o Senado se contentasse em ser um mero homologador passivo das decisões da Câmara dos Deputados, estaria se degradando e negando a sua natureza e uma das suas funções mais sérias. Quem conhece bem – na sua intimidade – o processo legislativo, tal como se faz durante o seu quotidiano, sabe da necessidade inafastável de que o trabalho de uma câmara seja revisto por urna outra. É imensa a possibilidade de ocorrerem erros. A revisão pode corrigi-los a tempo. As razões de ordem técnica-justificadoras e exigidoras da existência de duas câmaras do Poder Legislativo juntam-se razões de ordem política – exigências de uma federalidade ampliada da estrutura estatal. Concluindo: é preciso abandonar, na discussão do dilema bica meralismo versus unicameralismo, a concepção antiga e obsoleta do Senado – ou da segunda câmara – como uma assembleia de representação de uma elite de proprietários conservadores e encasacados. Isso é coisa de uma Europa que, também ela, não existe mais. Abandone-se, de uma vez para sempre, a imagem do Senado como a de uma câmara alta, com o que tem este adjetivo de denotação aristocrática – no mau sentido, que não é o etimológico, desta palavra. Nada disso. Câmara alta, o Senado, sim – mas por causa da importância de suas competências e funções. Câmara revisora, sim. Câmara dos estados, sim. Assembleia de revisão, sim. Assembleia da Federação, sim.
Bicameralismo ou unicameralismo?
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Estrutura do Poder Legislativo (Seminário Interno de preparação do assessoramento do Senado Federal à Assembleia Nacional Constituinte)
Apresentação O Seminário Interno de Preparação do Assessoramento do Senado Federal à Constituinte, realizado no período de 1° de outubro a 07 de novembro de 1986 pela Assessoria do Senado Federal, teve por objetivo central expor e debater, de forma integrada e co-participativa, temas essenciais à elaboração da nova Constituição, permitindo, assim, o intercâmbio de ideias sobre Constituinte e Constituição entre os Assessores da Casa. Para tanto, elaborou-se uma pauta de temas constitucionais que foram desenvolvidos e debatidos no período citado, tendo atuado voluntariamente como expositores diversos Assessores de nosso quadro. O resultado obtido, que superou as expectativas, nos encorajou a realizar a presente publicação, que pretende difundi-lo a todos os setores interessados, em especial aos Senhores Constituintes. Na preparação do material publicado, procuramos manter a maior fidelidade possível às apresentações ocorridas durante o Seminário, especialmente no que tange aos debates, que se mostraram sempre interessados e profícuos. Para facilitar a publicação, dividimos as apresentações por diversos volumes, procurando manter a unidade temática – juntando, 71
num só volume, assuntos afins – e, sempre que possível, a ordem das apresentações. A ordem dos volumes a serem publicados é a seguinte: 1. Princípios de Elaboração Constitucional; 2. Estrutura da Federação; 3. Reforma do Sistema Constitucional Tributário; 4. Estrutura do Poder Legislativo; 5. Processo Legislativo; 6. Fiscalização Financeira e Orçamentária; 7. Poder Judiciário; 8. Das Relações Internacionais; 9. Direitos Políticos, Organização Partidária e Sistema Eleitoral; 10. Da Ordem Econômica; 11. Dos Direitos Sociais: Saúde e Saneamento; 12. Dos Direitos Sociais: Habitação; 13. Dos Direitos Sociais: Educação; 14. Dos Direitos Sociais: Cultura; 15. Dos Direitos Sociais: Comunicação; 16. Dos Direitos Sociais: Tutelas Especiais – Idosos; 17. Dos Direitos Sociais: Direitos Indígenas; 18. Controle da Constitucionalidade das Leis; 19. Direitos e Garantias Individuais; 20. Poder Executivo. Esperamos que a presente publicação, que certamente servirá de base para consulta, discussão e aprimoramento de ideias e princípios que nortearão e informarão o trabalho dos Assessores do Senado Federal, repercuta também fora do âmbito da Assessoria, como nossa contribuição inicial à Assembleia Nacional Constituinte. Assessoria do Senado Federal Diretor
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ESTRUTURA DO PODER LEGISLATIVO EXPOSITOR: Alaor Barbosa dos Santos. Data: 8-10-86 ROTEIRO DA EXPOSIÇÃO I O PODER LEGISLATIVO 1.1 – Posição Histórica 1.2 – Situação Atual no Mundo 1.3 – Situação no Brasil II ESTRUTURA, UMA QUESTÃO PRÉVIA. 2.1 – Unicameralismo ou Bicameralismo? III ARGUMENTOS PRÓ-UNICAMERALISMO IV ARGUMENTOS PRÓ-BICAMERALISMO V QUE É BICAMERALISMO VI SOBRE A CÂMARA DOS LORDES VII MUDANÇA DE CARÁTER DA SEGUNDA CÂMARA VIII A EXPERIÊNCIA AMERICANA IX NECESSIDADE DE UMA SEGUNDA CÂMARA X IMPOSSIBILIDADE DE SE PENSAR ABSTRATAMENTE A QUESTÃO XI FEDERAÇÃO E BICAMERALISMO XII O BICAMERALISMO NO BRASIL XIII O BRASIL E O FEDERALISMO XIV PROPOSTAS PARA O SENADO O SR. PRESIDENTE (Abelardo Gomes) – Damos início aos nossos trabalhos de hoje com a palestra sobre “A estrutura do Poder Legislativo”, que será proferida pelo Sr. Alaor Barbosa dos Santos, a quem, com muita alegria, passo a palavra. O SR. ALAOR BARBOSA – Prezados colegas, nosso assunto hoje, nesta manhã, é “A estrutura do Poder Legislativo”. Infelizmente, não ficou pronta a tempo a reprodução por fotocópias do roteiro e de uma pequena bibliografia que preparamos para ser distribuída. Mas tenho a impressão de que, ainda no decurso de nossas reflexões, essa distribuição será feita. Em todo caso, apresento uma lista dos itens que são entretítulos do texto escrito dessas reflexões: Unicameralismo ou Bicameralismo? Estrutura do Poder Legislativo
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Argumentos Pró-Unicameralismo; Bicameralismo; Sobre a Câmara dos Lordes; Argumentos Pró-Bicameralismo; Mudança de Caráter; A Experiência Americana; Necessidade de uma Segunda Câmara; Não se Escolhe Abstratamente; Bicameralismo e Federação; Bicameralismo no Brasil; O Brasil e o Federalismo; Propostas para o Senado. São estes os itens que constituem os marcos do roteiro que seguiremos. Antes de falar da estrutura do Poder Legislativo, parece-me aconselhável, do ponto de vista de método, falarmos, ainda que bastante rapidamente, a respeito do próprio Poder Legislativo. Estava vendo hoje uma fotografia, em um livro de História grega, de uma reprodução de uma casa de Atenas, uma casa construída, provavelmente, no século V ou IV antes de Cristo, no período mais feliz da História de Atenas. E fiquei encabulado na contemplação dessa casa. Parecia uma casa naquele estilo entre moderno e antigo, fim da década de 30, e com certas pretensões a uma modernidade mais atual, de certas casas de Goiânia. De certos sobrados de Goiânia. Fiquei pensando sobre isso, sobre aquela casa grega que me lembrava de muito mais um sobrado goianiense. Eu me perguntava, enquanto contemplava aquela gravura, se realmente é verdade aquele pensamento bíblico de que não há nada de novo debaixo do sol. Uma casa do século de Péricles, em Atenas, a me lembrar, pela sua estrutura, pela sua forma, pela sua aparência, uma casa do interior de um país sul-americano deste século. A associação de ideias não é despropositada. Quando se procura entrar mais profundamente no conhecimento das origens, não do Poder Legislativo, que este é conatural à própria sociedade humana, pois, onde há sociedade humana, há poder legislativo seja na pessoa de qualquer chefe, seja num Conselho de Anciãos, ou num chefe guerreiro, ou no sacerdote, mas um poder legislativo exercido por uma entidade, por uma instituição, por uma organização semelhante ou análoga ao parlamento moderno, tem-se de recuar até aos primórdios daquilo que se chama de herança ocidental. As referências principais ou obrigatórias ou que acodem ao nosso espírito de maneira mais imediata, quando se procura rastrear as origens dessas instituições, são sempre o binômio Inglaterra e França. O Parlamento moderno, o Parlamento como a entidade incumbida de realizar a obra legislativa da sociedade e de efetuar uma fiscalização e controle das atividades propriamente executivas, na verdade se con74
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figurou, em sua estrutura moderna, já na Inglaterra nos fins do século XVII e pode-se dizer que na França, tumultuariamente, apenas depois da Revolução Francesa e de maneira mais estável apenas depois da Carta Constitucional de 1814. No rastro das origens menos próximas, mediatas, do Parlamento, iríamos bem mais longe ao tempo. Há um autor de um livro a respeito da evolução do desenvolvimento da Constituição inglesa que faz uma abordagem muito interessante sobre um hábito que está na raiz do Parlamento da Inglaterra: antigos habitantes da Bretanha se reuniam e, democraticamente, com igualdade para todos, discutiam os problemas da comunidade. Esse autor, que exprime uma determinada corrente de investigadores históricos, mostra que esse costume de reunir-se a comunidade democraticamente para discussões e deliberações, localizado perfeitamente nas origens, nos primórdios da formação da Inglaterra, não nasceu lá na Inglaterra. Esse costume havia sido transplantado para lá pelos descendentes dos germanos, dos teutões, dos dinamar queses, que, por sua vez, o haviam recebido dos seus antepassados. Há uma aproximação, feita por essa corrente de investigadores históricos, entre esses povos que transportaram para a Inglaterra esse costume de assembleias democráticas e os povos que formaram a Grécia antiga. Como demonstração e exemplo dessa proximidade, desse parentesco, dessa origem comum, relembra-se a assembleia retratada nas narrativas de Homero, em que sempre sobressaíam aqueles chefes mais bem dotados da capacidade de comunicação verbal, como Nestor, um grande homem, prudente, que sempre, nas assembleias que se faziam para deliberar a respeito da condução da guerra no cerco de Troia, dava a contribuição da sua prudência, da sua autoridade intelectual e moral. Cita-se também o exemplo de Ulysses, que, nessas assembleias, também pontificava, pela prudência e pela astúcia. Essas assembleias primitivas do povo aqueano, os antigos aqueus da Grécia, desenvolveram-se e, mais tarde, se reuniam na Ágora, onde deliberavam e onde elegiam a princípio o Conselho dos 400 e, depois, o Conselho dos 500, e onde determinavam, deliberavam, faziam leis e decidiam sobre os rumos das políticas de paz e de guerra, e onde nasceu, por exemplo, o instituto do ostracismo, mediante o qual essas assembleias proscreviam da vida política de Atenas os homens que, pela aquisição de notoriedade, fama, Estrutura do Poder Legislativo
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prestígio e poder individual, parecessem constituir ameaça à estabilidade do Estado ateniense. Esses costumes, essas práticas democráticas, esse caldeamento de culturas nessa fusão de destinos históricos, que atravessaram as épocas e encontraram terreno propício para sobreviver na Inglaterra, são o antepassado institucional do Parlamento que começou a configurar-se de maneira moderna, em moldes modernos, a partir de fins do século XIII. Cita-se, geralmente, o chamado Parlamento Modelo, convocado pelo Rei Eduardo, na Inglaterra, em 1297, como o início formal do Parlamento inglês. O Parlamento inglês seguiu uma trajetória diferente daquela seguida pelos Estados Gerais da França. Na França, dava-se o nome de Estados Gerais àquela instituição que ali correspondia ao Parlamento inglês. Já com o nome de Parlamento, se referia, em França, a Cortes judiciais, que teriam sido o esboço malogrado das Cortes de Controle Constitucional, de controle da constitucionalidade das leis que vieram a ter como exemplo mais perfeito e puro a Suprema Corte americana. Os parlamentos judiciais franceses acabaram não tendo, por uma série de razões históricas, que não importa tentar estudar aqui, desenvolvimento algum, e os Estados Gerais também não se desenvolveram, a ponto de passarem mais de 200 anos sem se reunir, depois de um período muito longo, em que se reuniam apenas esporadicamente. Antes da reunião de 1789, os Estados Gerais se haviam reunido pela última vez ainda no ano de 1614, muito antes do reinado de Luís XIV. De 1614 a 1789 foi todo um interregno, durante o qual os Estados Gerais franceses ficaram sem se reunir e o Poder Legislativo se corporificou na pessoa do rei absoluto. Na Inglaterra, foi diferente a evolução do Parlamento. Essa diferença é explicada sob o aspecto jurídico-constitucional, sob o aspecto estrutural, sem descer, é claro, a razões de ordem histórica, sociológica, econômica, etc., por Maurice Hauriou, de uma maneira muito sugestiva e muito esclarecedora. Os Estados Gerais, na França, reuniam-se por ordens sociais. As diversas ordens sociais, os diversos estamentos, os três estamentos sociais de que se compunha a sociedade francesa – a nobreza, o clero e o chamado Terceiro Estado – não compunham uma universalidade dentro do Parlamento, dentro dos Estados Gerais. As decisões eram 76
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tomadas em separado. A nobreza votava em separado do clero, o clero votava em separado do Terceiro Estado, e o Terceiro Estado votava em separado do clero. Essa divisão – vou aqui me antecipar um pouco – foi responsável pelo fato de que, na realidade, os Estados Gerais franceses não tiveram nunca uma atuação legislativa e de controle das ações do rei de forma efetiva Ainda me antecipando um pouco mais, porque convém fazê-lo, a Revolução Francesa de 1789, na verdade, consumou-se, não propriamente na Tomada da Bastilha, naquelas movimentações de violência de camponeses e de peque nos burgueses, na agitação dos clubes. Na verdade, a consumação da Revolução Francesa operou-se no momento em que os Estados Gerais, convocado – não interessa por que – pelo Rei Luís XVI se transformaram em Assembleia Nacional, com o propósito de serem uma Assembleia Nacional Constituinte. Ainda muito mais importante do que isto, por força da maioria dos Estados Gerais, que era o Terceiro Estado, a burguesia, a pequena burguesia, etc., diluíram-se os três estamentos, de maneira que a Assembleia Nacional deixou de deliberar por intermédio da votação em separado, da reunião e votação em separado de cada uma das ordens em que se dividia a sociedade francesa. Em vez de se deliberar e de se colherem votos da nobreza, do clero e do Terceiro Estado, passou-se a deliberar e a se colherem votos da Assembleia como uma unidade, como uma totalidade. Então, pela primeira vez, o Terceiro Estado tornou-se maioria e as suas reivindicações, os seus desejos, as suas aspirações, as suas pretensões puderam não só ser atendidas como ser impostas à nobreza e ao clero. Esse fenômeno se relaciona com a bipartição do Parlamento inglês em duas Câmaras. Na Inglaterra, como nos Estados Gerais franceses, havia, também, no Parlamento essa estratificação, essa divisão em classes: nobreza, o alto clero, de um lado; o baixo clero e os Deputados eleitos pelos condados, de outro lado. Em determinado momento, o baixo clero decidiu não mais fazer parte do Parlamento, decidiu votar em separado do Parlamento composto pela nobreza e pelo alto clero. A essa decisão do baixo clero aderiu à classe inferior dos representantes dos condados, etc., que passaram a se reunir, também, justamente com o baixo clero, em separado. Assim, o Parlamento se bipartiu, passou a se reunir nas classes privilegiadas, dos lordes hereditários e dos lordes Estrutura do Poder Legislativo
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clericais, de um lado; de outro lado, por intermédio dos representantes do baixo clero e dos representantes dos condados. Os representantes do baixo clero e dos condados passaram, então, a ser a Casa dos Comuns, e a outra, do clero mais abastado e dos lordes, cuja entrada e participação nesta Casa Legislativa eram de caráter hereditário, submetidos a esse sistema de privilégios. A luta entre o Parlamento inglês e o Rei pela aquisição de poderes efetivos foi multissecular. A princípio o Rei detinha o Poder Legislativo, e nesse fato se exprime, de maneira muito clara, a distinção que se deve ter em vista entre Poder Legislativo e Parlamento. O Parlamento não é, necessariamente, o detentor do Poder Legislativo. Tanto é que o Rei deteve o Poder Legislativo ‘durante séculos. O Poder Legislativo só foi passar a residir no Parlamento praticamente nos fins do século XVII, com o triunfo, em 1688, das forças que nesse sentido atuavam e que se representaram no Bill of Rights. Podemos trazer uma ilustração moderna, hodierna e brasileira, do fato de que o Poder Legislativo nem sempre reside no Parlamento, com a experiência brasileira dos últimos anos de vários atos autoritários que temos tido no Brasil, em que o Poder Legislativo residiu na pessoa do monarca. Na Carta Constitucional, na Carta da ditadura de 1937, por exemplo, o art. 180 permitia a Getúlio Vargas legislar por decretos-leis e ele o fez abundantemente. De acordo com o AI-5, de 13 de dezembro de 1968, também se conferiu ao monarca todo o Poder Legislativo. Feito este breve e esquemático escorço histórico, podemos falar um pouco mais diretamente da estrutura do Poder Legislativo. Parece-me que a estruturação do Poder Legislativo é a tarefa que se apresenta em primeiro lugar a quem quer que se proponha a organizar um Estado. Quando se vê, por exemplo, a experiência norte-americana neste sentido, quando se vê a própria experiência brasileira, no momento da estruturação do Estado brasileiro, após a conquista da independência formal política, quando se vê, após a eclosão de determinados surtos revolucionários, o trabalho das lideranças e facções para estruturar o Estado. Nos Estados Unidos, por exemplo, quando se reuniu a Convenção de Filadélfia, em 1787, para fazer o texto de uma alteração das cláusulas então vigentes da Confederação, o primeiro problema que se propuseram os convencionais 78
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foi exatamente o de estruturar o Poder Legislativo. O mais era para ser tratado depois, como o foi. Na estruturação do Poder Legislativo, a primeira questão que se apresenta juntamente ou de maneira tão importante quanto a questão da representação, que é fundamental, é o da estrutura, é a de se escolher entre o Poder Legislativo exercido por uma ou por duas Câmaras. Esta pergunta, se o Poder Legislativo deve ter uma ou duas Câmaras, é aquela que primeiro se apresenta como desafio a todo Poder Constituinte. Vou citar, aqui, as palavras de Pablo Lucas Verdú. Ele pergunta: –”Existe algum país onde não se haja colocado, nas discussões dos constituintes, o estabelecimento de uma ou duas Câmaras?”. Julien Laferrière também toca neste assunto, aborda este problema perguntando: “O Órgão Legislativo deve ser constituído por uma Câmara única ou por duas Assembleias? Uni ou bicameralismo?”. Tal é o primeiro problema que coloca a existência dos parlamentos. Laferrière faz uma constatação de caráter puramente estatístico, talvez, mas que tem a sua significação política e jurídica, de que o bicameralismo é a estrutura predominante na maioria dos parlamentos existentes. Nos Estados Unidos, um único dos Estados americanos, Nebraska, é que havia optado pela estrutura unicameral. No mais, quase todos os grandes Estados praticam o bicameralismo. Diz ele que na História e no Direito Moderno a dualidade das Câmaras constitui a regra. Laferrière sublinha, também, o fato de que o bicameralismo se encontra nos sistemas políticos mais diversos: nas repúblicas, como na França; nas monarquias, como na Inglaterra, Bélgica, Suécia; nos governos de caráter democrático ou nos regimes de inspiração oposta, como os Estados germânicos antes de 1914, a Rússia czarista de 1906, ou a Itália fascista. Diz ele que, na França, foi uma solução aplicada pelo Diretório, antes de o ser pela Terceira República. No Brasil, prevaleceu, sempre, o sistema bicameral, mesmo na Carta de 1937, que não chegou a ser aplicada, em cuja vigência não tivemos Parlamento. No Império brasileiro, a Assembleia Legislativa, denominada de Assembleia Geral, se compunha de duas Câmaras: a dos Deputados e a dos Senadores. Na República de 1891, o Congresso Nacional era formado por dois ramos: Câmara dos Deputados e Senado Federal. Estrutura do Poder Legislativo
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A Constituição de 1934 alterou o sistema, declarando em seu art. 22: “O Poder Legislativo é exercido pela Câmara dos Deputados com a colaboração do Senado Federal”. Quer dizer, continuou o sistema bicameral, mas o Senado passou a somente colaborar com a Câmara dos Deputados. Parece-me que no projeto de Fábio Konder Camparato – não pude lê-lo com o vagar necessário – há um reaproveitamento desta relativa capitis diminutio da segunda Câmara, devido à qual o Senado da República deixa de ser propriamente uma Câmara revisora, nos termos em que o é atualmente no processo legislativo, e passa a fazer essa revisão mediante o poder de veto, apenas de veto, sem maiores alterações. Estou falando sem conhecer bem o Projeto Comparato, que ainda não pude ler com a calma necessária. Mas, numa leitura superficial que fiz, tive esta impressão. Na Carta Constitucional do Estado Novo, o Poder Legislativo seria exercido pelo Parlamento Nacional com a colaboração do Conselho de Economia Nacional e do Presidente da República, e o Parlamento Nacional se compunha da Câmara dos Deputados e do Conselho Federal. Quer dizer, a Carta de 1937 substituiu o Senado Federal por um denominado Conselho Federal. Esse Conselho era uma espécie de sucedâneo do Senado. Na Constituição de 1946, o Poder Legislativo era exercido pelo Congresso Nacional, que se compunha da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. As Cartas de 1967 e 1969 mantiveram a estrutura do Poder Legislativo tal como fixada na Constituição de 1946. Vamos ver agora alguns argumentos pró-unicameralismo. Extraí de Pablo Lucas Verdú uma parte do resumo das razões que se arguem em favor da superioridade do sistema unicameral. Primeiro, sendo a lei a expressão da vontade geral e, portanto, um conceito concreto, deve receber expressão formal única. Em segundo lugar, uma Câmara Legislativa única atua com mais rapidez. A propósito, invoca-se aquela comparação feita por Benjamin Franklin: “um corpo legislativo dividido em duas Câmaras é como um carro puxado por dois cavalos em direção oposta”. Terceiro, a Câmara única é mais econômica. Quarto, a Câmara única é mais progressista e democrática, mais popular. 80
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Argumenta-se também a favor do unicameralismo por meio de impugnações ao bicameralismo, como, por exemplo, a de que o bicameralismo retarda o trabalho legislativo. O sistema bicameral é anterior ao surgimento dos partidos políticos. Os partidos políticos passaram a controlar a vida política moderna, de tal maneira que, se um partido domina as duas Câmaras Legislativas, aquilo que se decide numa será repetido na outra, porque a vontade do partido manifestada numa Câmara evidentemente vai-se repetir na outra Câmara. Se ambas as Câmaras forem dominadas cada qual por um partido diferente, os conflitos entre as Câmaras seriam insanáveis. Outro argumento contra o bicameralismo, portanto a favor do unicameralismo, é o de que a segunda Câmara, tradicionalmente denominada Câmara Alta, é politicamente conservadora, e mesmo reacionária. A Câmara dos Lordes, por exemplo, modelo e paradigma da segunda Câmara, é, por sua origem e composição, um órgão conservador e, muitas vezes, reacionário. O Senado, na França, por exemplo, e em outros países, inclusive no Brasil, tem desempenhado uma função e papel de freio e de resistência a transformações na ordem jurídica, no seu sentido mais amplo. Carl Schmitt, aquele jurista que serviu a Hitler, argumenta que uma democracia não se compadece com o sistema bicameral, pois a democracia se baseia no suposto da identidade do povo unitário, e acrescenta: “uma segunda Câmara, independente de toda significação política, poria em perigo o caráter unitário do povo todo, introduzindo um dualismo precisamente para o Legislativo, que passa por ser a expressão da vontade geral, é a volontée génerale, em um sentido especial. Onde quer que uma Constituição queira acentuar bem a soberania da nação, una e indivisa, e domine talvez receios políticos quanto ao poder social de uma aristocracia, o sistema unicameral terá de ser praticado com rigor”. Ainda o mesmo Autor observa: “Para a introdução do sistema bicameral, na maior parte dos Estados do Continente Europeu, foi decisivo o modelo inglês. “Esse sistema tinha uma especial evidência para as ideias liberais do século XIX. Prestava-se bem a ser posto em consonância com o princípio da separação de poderes e oferecia também a possibilidade de se proteger o poder social de certos estamentos de Estrutura do Poder Legislativo
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classes contra uma democracia radical. Por isso, a ele se opuseram, de igual modo, pretensões tanto liberais como conservadoras. Isso explica a grande difusão do sistema. Na Alemanha, como na França, a maior parte dos liberais considerou o sistema bicameral uma instituição razoável e prudente e o construíram de diversas maneiras”. Vamos tentar agora caracterizar o bicameralismo. Características principais do bicameralismo: primeiro, as Câmaras são independentes uma da outra, de modo que uma Câmara pode não considerar urgente um projeto de lei assim declarado pela outra; segundo, uma Câmara pode subordinar ao Plenário um projeto de lei que a outra deixou ao exame de uma Comissão; terceiro, as propostas de leis podem dirigir-se a cada uma das Câmaras, ou a ambas, indiferentemente. As duas categorias fundamentais de bicameralismo, nas Constituições da Democracia chamada liberal, são as do bicameralismo próprio ou perfeito e do bicameralismo impróprio ou imperfeito. Esta é uma classificação clássica, apresentada por Pablo Lucas Verdún. Bicameralismo próprio ou perfeito se caracteriza por se colocarem as duas Câmaras em posição de paridade absoluta. Embora cada Câmara seja um órgão autônomo e diferente, é indispensável o concurso de ambas na elaboração legislativa. São exemplos de bicameralismo perfeito o da Bélgica, da Constituição de 1831, com as modificações posteriores, das leis constitucionais da França de 1875, a Constituição francesa de 1875; e o da Itália atual, da Constituição de 1947. No bicameralismo imperfeito ou impróprio, as Câmaras não possuem paridade de poderes; são órgãos autônomos e distintos, mas sua colaboração mútua é, em muitos casos, indispensável na confecção das leis. Exemplos, o bicameralismo inglês atual, resultante das reformas feitas pelos Parliament Acts de 1911 e de 1949; o da Constituição francesa, de 27 de outubro de 1946, e acrescentemos os exemplos brasileiros da Constituição de 1934 e da Carta ditatorial de 1937. Um constitucionalista brasileiro, Paulo Bonavides, caracteriza o bicameralismo assim: “ocorre o genuíno bicameralismo quando se acham as duas Casas dotadas de igualdade de competência exercida mediante decisões concordes, sendo o sistema bicameral, portanto, aquele em que a ordem constitucional estabelece um Parlamento, ou Congresso, composto de dois órgãos, que funcionam em forma de equilíbrio mútuo no plano 82
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interno da função legislativa”. Pablo Lucas Verdú observa que o bicameralismo invoca alguns títulos de prestígio e de antiguidade, vinculando-se à Constituição inglesa. Já nos referimos às origens da bipartição do Parlamento inglês em Casa dos Lordes, e em Casa dos Comuns, de maneira que esta é realmente uma tese absolutamente verdadeira. Ele nota o seguinte: o bicameralismo inglês é totalmente fortuito, desde logo baseado na realidade social britânica e mantido até hoje com traços e características muito diferentes do bicameralismo de outros países. Anota também que o bicameralismo surgiu no Ocidente em função de motivos sociais e políticos. A estrutura social da Inglaterra se compunha, quando surgiu o Parlamento, da alta nobreza, pequena nobreza, clero e burguesia, que formavam estratos politicamente separados. Paulo Bonavides, citando um autor francês chamado Jacques Cadart, repete esta mesma observação: “Historicamente, diz ele, o bicameralismo nasceu na Inglaterra de maneira fortuita, como a maior das instituições britânicas. Nasceu no século XIV de uma divisão do Parlamento inglês, que se constituiu no século XIII. Desde 1265 compreende todas as categorias de representantes que hoje possui. O bicameralismo britânico se consolidou pro gressivamente, reforçado com o aumento dos poderes do Parlamento partilhados entre as duas Câmaras”. Poderíamos falar, de maneira mais minuciosa, sobre a evolução da Câmara dos Lordes, a chamada Câmara Alta, ou a Segunda Câmara inglesa, para demonstrar que ela teve, durante a sua existência e atuação, um papel nem sempre conservador e reacionário, principalmente na sua flexibilidade, uma característica da tolerância inglesa, não tanto como instituição deliberativa, mas como instituição de eco e ressonância das opiniões que caracterizam o liberalismo tradicional da Inglaterra. A Câmara dos Lordes, a partir, porém, do Parliament Act de 1911 e do de 1949, sofreu uma diminuição de poderes e de competências. Este Parliament Act de 1911 foi o desfecho de uma crise de conflito entre a Câmara dos Comuns e a dos Lordes. Depois deste Ato, a Câmara dos Lordes viu-se destituída de alguns poderes importantes, principalmente em questões referentes à receita e despesa, para cuja apreciação passou a submeter-se, inclusive, ao instituto do decurso de prazo, instituto este tão execrado entre nós na vigência da atual Carta Constitucional. Estrutura do Poder Legislativo
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Para as leis financeiras, money-bills, isto é, leis que têm diretamente por objeto as receitas e as despesas e quem diz se elas têm esse caráter ou não é o Presidente da Câmara dos Comuns, se o money-bill votado pela Câmara dos Comuns e enviado à Câmara dos Lordes, um mês ou menos antes do fim da sessão, não tiver sido adotado sem emendas pela Câmara dos Lordes dentro de um mês, o projeto, a menos que a Câmara dos Comuns decida de outro modo, não será levado à sanção real e torna-se Ato do Parlamento; portanto, torna-se lei. Na evolução da Câmara dos Lordes exerceram uma influência muito grande as reformas eleitorais de 1832. Essas reformas estenderam o direito de voto aos trabalhadores industriais e, depois, aos do campo. Fácil imaginar que a partir dessas mudanças a composição da Câmara dos Comuns começou a se alterar, os trabalhadores passaram a poder votar em candidatos próprios ou que se apresentavam como porta-vozes de interesses e direitos deles, trabalhadores. Não foi senão por isso que acabou por surgir o Labour Party, o Partido dos Trabalhadores, que se tornou, com o passar do tempo, o outro grande polo da vida partidária inglesa, que, durante muito tempo, fora protagonizada por conservadores e liberais. Para exemplificar que a Câmara dos Lordes não tem a composição aristocrática predominante que se imagina tenha, cita Julien Laferrierre alguns fatos, como, por exemplo: representantes da velha aristocracia inglesa, um Lord London Derry, um Marquês de Salisbury, um Duque de Marlborough encontram na Câmara dos Lordes elementos novos saídos do povo: Lord Reading, Vice-Rei das Índias; Lord Snowden, ex-Ministro das Finanças, outrora pequeno funcionário; Lord Snell, que começou como groom de hotel; 250 pares possuidores de mais de 3 milhões de hectares representam os interesses da propriedade rural e, frequentemente, cumprem um papel considerável no seu distrito rural; muitos pares vêm da indústria; mais de 300 administradores de sociedades anônimas, de estradas de ferro, de bancos, de companhia de seguros; um grande número de antigos altos funcionários civis e militares. Se muitos pares são ricos, muitos também vivem nas suas terras em uma situação modesta. Em setembro de 1933, informa Laferriere, a Câmara dos Lordes contava 490 membros conservadores, 78 liberais, 13 socialistas, 1 inde84
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pendente, 151 membros de opinião não expressa. Até 1924, os trabalhistas não aceitavam participar da Câmara dos Lordes, opunham-se ao princípio da hereditariedade, sentiam-se pouco à vontade naquele meio e, além disso, os lordes não recebiam remuneração parlamentar. Em face da regra inglesa de que um ministro não tem entrada nem palavra senão na Câmara da qual é membro, quando o Partido Trabalhista chegou ao Poder em 1924, foi preciso que o Ministério incluísse certo número de Pares, a fim de ter porta-vozes na Câmara dos Lordes, quer dizer, o governo trabalhista, o Gabinete trabalhista inglês teve de se compor de pares, a fim de que pudesse ter voz na Casa dos Lordes. Mcdonald disse que, para que o governo do rei pudesse continuar, os trabalhistas fizeram essa capitulação ideológica e moral. Depois, alguns pares aderiram ao Partido Trabalhista, e a hostilidade dos trabalhistas contra a instituição do pariato, desse segmento parlamentar hereditário se atenuou, e alguns membros trabalhistas aceitaram até mesmo ser nomeados para essa corporação de pares. Vejamos, agora, alguns argumentos pró-bicameralismo. Os argumentos que se costuma geralmente invocar em favor do bicameralismo são de várias ordens. Os principais são os seguintes: primeiro, o bicameralismo assegura uma melhor e mais completa representação da opinião pública. O caráter complexo da opinião pública, a diversidade de matizes que contém, as mudanças repentinas e contraditórias que afetam a opinião pública, se representam melhor em duas Câmaras, principalmente se se tem em conta que toda opinião pública apresenta duas tendências principais: uma progressista, com ânsias de reformas; outra mais prudente, tradicional, que lhe serve de freio. O parlamento bicameral pode acolher essas duas tendências principais da opinião pública. Segundo, a dualidade de Câmaras é uma garantia frente ao possível despotismo da assembleia única. Terceiro, a Câmara dupla serve para que o trabalho legislativo se efetue com maiores garantias de ponderação e perfeição, mais reflexão e serenidade e se crie legislação mais perfeita, pois – aqui uma observação de Pablo Lucas Verdú –, as deficiências que acaso escaparam no projeto elaborado pela primeira Câmara podem ser sanadas no exame da segunda. Quarto, o sistema de duas Assembleias mitiga os conflitos entre o Legislativo e o Executivo, pois uma das Câmaras, a segunda, pode servir de árbitro. Estrutura do Poder Legislativo
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Quinto, o sistema bicameral aproveita as personalidades de valor que não conseguem alcançar um lugar na Câmara Baixa. Sexto, a Segunda Câmara pode servir para estabelecer a representação corporativa ou de interesses econômicos, como se tentou, aliás, em 37. Sétimo, o bicame ralismo consolida a opinião parlamentar. Alvin Johnson, apoiado em Story, sustenta que o bicameralismo é uma garantia contra os grupos de pressão, porque é mais difícil convencer duas Assembleias do que uma. Em linguagem moderna, diríamos que fica mais trabalhoso para os lobbies trabalhar em duas Câmaras do que em uma. O Parlamento bicameral, eleitas as suas Câma ras com procedimentos eleitorais distintos e com duração também diversa, é uma garantia frente às repentinas e caprichosas mudanças de opinião parlamentar, exigindo-se, para ser esta aceita, que antes demonstrem ter-se consolidado realmente no país. Oitavo, a segunda Câmara continua o controle do Executivo quando a Câmara Baixa houver sido dissolvida. É o caso do sistema parlamentar de governo em que há dissolução da Câmara dos Deputados, da Câmara dos Representantes. No Projeto de Constituição elaborado pela Ordem dos Advogados do Brasil, em colaboração com o Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, cujo exemplar eu julgava perdido e, afinal, encontrei, felizmente, é prevista essa dissolução da Câmara, mas com a continuação do Senado que, se não me engano, nesse período em que não se reintegra a primeira Câmara, acumularia as suas funções. Nono, em toda forma política democrática é necessário um órgão fixo que opere como um freio e contenção em face de um espírito arriscado de reforma. Barthélemy Durez e Laferrière assinalam o papel conservador e tradicional do Rei na monarquia. Nas formas republicanas, pensam eles que é necessário ainda mais, porque maior é a ânsia de inovação. A segunda Câmara pode desempenhar com perfeição essa função. Esse caráter conservador, de freio ao ímpeto renovador da Câmara dos Deputados, da chamada Câmara Baixa, que, tradicionalmente, se atribui à Segunda Câmara, é notável como preocupação até dos constituintes mais liberais. Mesmo na Constituição americana houve essa preocupação. André Mourois informa que se chegou a pensar, no contexto da elaboração da Constituição americana, em fazer com que não fossem eletivos os cargos de Deputados e de 86
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Senadores, a fim de subtrair a Câmara dos Deputados e o Senado à força da opinião popular, ao influxo das reivindicações que se temia fossem excessivamente radicais. André Mourois mostra que, no contexto social e político em que foi feita a Constituição americana, isso se compreende, era verossímil essa preocupação, porque os Estados Unidos atravessavam, naquela época, uma fase de grande turbulência social, em que as classes dominantes receavam, inclusive, uma revolução que viesse colocar em perigo os interesses da propriedade. Décimo, o unicameralismo aparece em momentos de crise, de febre política. As revoluções começam com uma Assembleia e terminam com duas. Vou citar aqui mais uma observação de Julien Laferrière, tirada do seu “Manual de Direito Constitucional”. Diz ele que a experiência mostra que a grande maioria das Constituições pratica o bicameralismo. Mostra igualmente esta experiência: quando os países modificam o seu sistema, o fazem, em geral, para passar da Câmara única à dualidade das Assembleias. Laferrière salienta que na França as Constituições mais frágeis foram aquelas de Câmara única, a de 1791 e a de 1848, e observa que uma série de razões parece estabelecer bem claramente que as vantagens da dualidade das Assembleias se sobrepõem aos inconvenientes que ela possa apresentar. Aqui ele apresenta outras vantagens da existência da’ dualidade de Câmaras: 1ª, a dualidade de Câmaras permite assegurar uma representação mais precisa da opinião pública; havendo duas Câmaras de composição não exatamente idênticas, a tendência renovadora e progressista que reclama reformas, e a tendência do apego ao estabelecido, isto é, os tradicionais partidos da ordem e da renovação encontram expressão adequada; 2ª, assegura mais estabilidade na opinião parlamentar, e explica que muitas vezes ocorre na opinião pública de um país uma reviravolta brusca que pode ser uma corrente passageira, que não corresponda a anseios e necessidades profundamente radicados no íntimo da sociedade; por conseguinte, a existência de duas Câmaras, o processo legislativo, o processo decisório cabendo a duas Câmaras, haverá mais segurança na apuração daquilo que realmente deseja, pretende ou necessita a sociedade; 3ª, a dualidade assegura o melhor trabalho legislativo.
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À objeção dos adversários do bicameralismo de que ele torna o trabalho legislativo mais pesado, mais difícil e mais lento, Laferrière contrapõe o argumento de que o essencial para um país não é ter muitas leis, mas ter boas leis, não multiplicar as reformas apressadas, mas fazer reformas úteis e que respondam ao sentimento do país. E ele aduz, ainda: “Com frequência, um partido que detém a maioria na Câmara única efetua, às pressas, reformas intempestivas, que encontram resistências sociais diminuidoras da autoridade da lei”. Aqui, para usar uma linguagem bem brasileira e particularmente carioca, é a lei que não pega. A lei que não pegou como aquela da anedota do elevador; uma pessoa entrou fumando no elevador; o ascensorista chamou a atenção dele, dizendo que não podia fumar, porque a lei proibia, e ele cariocamente respondeu: esta lei não pegou. Laferrière, na defesa do bicameralismo – ele é um bicameralista – acrescenta também o seguinte: “A dualidade é uma garantia contra o risco de despotismo de uma Assembleia única”. Essa questão do despotismo parece que, mencionada assim, in abstractu, pode parecer de somenos importância, ou difícil, de imaginar. Tenho a impressão de que os franceses têm uma grande experiência na carne do que é o problema do despotismo de uma Assembleia única: eles chegaram a aceitar e a colocar em prática o exemplo americano e inglês, primeiramente inglês, e depois americano, da divisão do Parlamento em duas Câmaras, porque tiveram a experiência dolorosa de uma Assembleia única em que havia um grande despotismo, eram Assembleias tirânicas, e em que a flutuação da maioria das opiniões levava a efeitos muitas vezes irreversíveis, apesar de trágicos. Ele cita Montesquieu. O Corpo Legislativo sendo composto de duas partes, uma travará a outra pela sua faculdade mútua de impedir; e cita também James Bryce: “Nos Estados Unidos a necessidade de duas Câmaras tornou-se um axioma da Ciência Política; ela se funda sobre a crença de que a tendência inata de toda Assembleia a se tornar precipitada, tirânica e corrompida, deve ser reprimida pela existência de outra Assembleia igual em autoridade. Laferrière, ainda rebate o argumento de que a existência de duas Câmaras aumenta os casos de conflitos, ocasionando conflitos entre as duas Casas do Parlamento, afirmando que o Perigo de conflitos irredutíveis não só não pode ser exagerado, 88
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como geralmente os desacordos se solucionam mediante transação, pela adoção de uma solução mediana”. No funcionamento do organismo constitucional, diz Laferrière, também que os conflitos mais frequentes e mais graves são aqueles que acontecem entre o Legislativo e o Executivo; e sublinha que, se o Parlamento for composto de uma única Assembleia, o perigo é que o desacordo entre esses dois Poderes, no Parlamento das Colônias, o povo não estava representado lá propriamente; estavam representadas lá as Colônias. Mais tarde, quando se instituiu o Senado, nele passaram a fazer-se representar os Estados, em que se transformaram as antigas Colônias. Foi esse Senado que governou durante a fase da Confederação o país, e convocou a Convenção de Filadélfia para fazer a Constituição. O Senado americano, pela sua estrutura, pelas suas atribuições e pelas características que assumiu de órgão principalmente de representação dos Estados-membros da Federação, passou a ser um exemplo, um protótipo, um modelo de instituição inerente ao regime federal, à Federação, ao federalismo. Isso é que traz algumas luzes diferentes ao enfoque do problema do Senado, da segunda Câmara, do bicameralismo, quando se intenta fazer uma Constituição, quando se intenta, portanto, reestruturar um determinado Estado, o Estado Federal. Aqui, caminhando já para a conclusão, quero defender dois pontos de vista: a Federação, a descentralização, ao contrário da tendência histórica dos últimos anos no Brasil, que parece irreversível, mas que não o é, a Federação é a mais genuína vocação da organização do Estado Nacional brasileiro. Este é um ponto de vista. O outro ponto de vista é o de que, na organização dessa Federação faz-se evidente a necessidade de uma segunda Câmara, como órgão de representação não só dos interesses e direitos dos Estados, mas também como de controle do Poder Executivo Federal. A vocação federalista, vamos dizer assim, do arquipélago social brasileiro, é uma vocação manifesta, expressa e consubstanciada no pensamento dos principais intérpretes dos sentimentos, aspirações e reivindicações nacionais do Brasil, desde que começamos a nos pensar a nós mesmos desde a nossa Independência de 1822. Tavares Bastos, Tobias Barreto, Rui Barbosa – que colocou na Constituição de 1891 os princípios enformadores da Federação, para citar apenas três dos nossos principais intérpretes, digamos, da Alma Estrutura do Poder Legislativo
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Nacional, nunca deixaram dúvida sobre a patente realidade de que as aspirações mais legítimas das diversas regiões do País foram de ordem federativa. Não precisamos lembrar exemplos históricos, inclusive de tendência até mesmo separatista, como a Confederação do Equador, e a nunca completamente sufocada vocação autonomista de São Paulo e do Rio Grande do Sul. De modo que a Federação no Brasil, a estrutura federal do Estado brasileiro responde a um impulso, a uma necessidade profunda desse arquipélago de várias sociedades que se chama Brasil. Acrescento ainda outra observação. O mundo moderno apresenta uma inequívoca tendência centrípeta. O Mercado Comum Europeu, o Parlamento Europeu, o Parlamento Latino-Americano, as organizações regionais, como a OEA, etc., indicam tendência de os diversos Estados renunciarem cada vez mais a uma parcela da sua soberania nacional em favor de uma coordenação de interesses, sob forma confederal ou federal. Ao mesmo tempo é inequívoca outra necessidade moderna, cada vez mais, até diria, agressiva, por causa dos métodos por que se manifesta: a necessidade psicocultural de autonomia. Exemplo: a Espanha, onde a Catalunha, os bascos, a Galícia erguem protestos contra a unificação e a centralização, até mesmo por métodos violentos; o tratamento e a solução dada pela União Soviética à diversidade de nacionalidades que nela se contêm, e o tratamento e a solução que lá se deram demonstraram a importância desse problema extremamente melindroso, da convivência, num mesmo Estado, de nacionalidades, de culturas diversas. Então, temos dois movimentos aparentemente opostos entre si, antagônicos, mas que se complementam, que convivem e procuram uma solução de transação e de conciliação, que é a tendência centrípeta, a tendência à diluição das soberanias nacionais, que outrora eram intocáveis, eram mitos, eram tabus, em favor de uma Federação internacional, e, ao mesmo tempo, uma vocação autônoma, autonomista profunda das várias culturas que existem pelo mundo afora. Essa exigência de respeito à identidade cultural é um dos móveis da reivindicação federalista no Brasil, e Tobias Barreto fala disso com muita veemência, e até com certo ressentimento individual, ao denunciar a supremacia, a hegemonia da Corte na consagração de 90
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talentos e de valores, em detrimento das Províncias, que muitas vezes tinham talentos superiores àqueles que se aglomeravam na Corte, mas que, como ele, Tobias Barreto, não tinham, por não estarem na Corte, divulgação e não se tornavam conhecidos em todo o País. Esse fenômeno da concentração econômica, cultural, etc., até hoje existe nas grandes metrópoles do País, em detrimento das províncias, em detrimento dos Estados-Membros, em detrimento das regiões periféricas. Sobre isto, volto a dizer com paradoxal orgulho, nós, goianos, temos uma privilegiada experiência. Vamos agora, para concluir, apresentar algumas propostas de inclusão na próxima Constituição de normas valorizadoras, ou caracterizadoras, ou atributivas de funções ao Senado, compatíveis com essa concepção do Senado, da segunda Câmara, como necessária à Federação. Duas ideias ficaram sem ser expostas, por míngua de tempo, que preciso, assim, sinteticamente, expor. Primeira, esse problema não pode ser pensado de maneira abstrata, tem de ser pensado à luz da experiência histórica de cada país, de cada sociedade. Cada sociedade tem uma experiência histórica própria, peculiar, e ela é que, pela criatividade dos seus filhos, deve engendrar as suas soluções. A experiência americana é uma, a experiência francesa é outra, a experiência soviética é outra, a experiência brasileira é outra. Por conseguinte, por coerência com a necessidade de fidelidade à experiência histórica peculiar de cada povo, é que se devem procurar sempre soluções não importadas, não transplantadas. Outra ideia que me ia esquecendo-se de expor: no estudo desse problema fiz uma verificação. Toda vez que se intenta, que se ensaia engendrar uma estrutura de Parlamento sem uma segunda Câmara de caráter revisor, de caráter controlador, com as várias atribuições que tem a segunda Câmara, toda vez que se intenta abolir a segunda Câmara, o que acontece? Sente-se necessidade imperiosa, inafastável de se criar um sucedâneo para a segunda Câmara. Todo sistema unicameral sente necessidade de se dotar, de se aparelhar de um braço, de um ramo, de um departamento, de uma comissão que desempenhe determinadas funções muito análogas àquelas que, na estrutura bicameral, se cometem a segunda Câmara. Quer dizer, quando é abolida a segunda Câmara, cria-se sempre um sucedâneo Estrutura do Poder Legislativo
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para ela, dadas as necessidades práticas, e políticas de funcionamento dessa Câmara única, de funcionamento ótimo. O seu funcionamento fica prejudicado, fica precário, alguns aspectos, mesmos nos países unitários, quando essa Câmara única não dispõe de um departamento, de uma comissão encarregada daqueles assuntos que tradicionalmente, no sistema bicameral, são entregues aos cuidados da segunda Câmara. Vamos concluir. A outorga de maiores competências ao Senado corresponderia precisamente a esse impulso de fortalecer a federalidade do Estado brasileiro; mais autonomia para os Estados-Membros, consequentemente mais força para o seu órgão de representação. Vou evocar aqui a Paulo Bonavides, que apresenta algumas sugestões. Primeiro, diz ele, que, em face do abalo sofrido pelo sistema federativo, no Brasil, se há uma instituição cujos fundamentos devem ser reexaminados é o Senado, e Bonavides diz que da reforma do Senado poderá resultar um fortalecimento da ordem federativa. Diz ainda Bonavides que, além da participação paritária junto da Câmara dos Deputados, no exercício da função legislativa ordinária, abrem-se, no Senado, no âmbito da estrutura federativa, importantes tarefas que lhe assinam um lugar de hegemonia como ramo do Congresso Nacional; aqui ele concebe o Senado como um ramo hegemônico no Congresso Nacional, como o é nos Estados Unidos, a partir até mesmo da sua inserção, na Constituição, em primeiro lugar. Essas tarefas, declara Paulo Bonavides, deverão conter-se num quadro de competência, cujo alargamento se recomenda em ordem a fazer da instituição um dos instrumentos mais idôneos, em ocasiões de crise, a preservar o sistema federativo e afiançar-lhe meios de contrastar os excessos políticos da centralização, concentrada na competência da União e nas atribuições do Presidente da República, “Titular do Poder Executivo”. Sugere, então, Bonavides, que se conceda ao Senado certo controle tocante à legalidade dos atos do Executivo; que se lhe atribua a iniciativa, tutela e fiscalização da política nacional de planejamento; que se lhe outorgue competência ampla e poder decisório em matéria de intervenção federal; que se lhe confira, enfim, a faculdade de uma superintendência eficaz da política exterior. Ele usa a palavra “superintendência”. Não sei qual o alcance, qual a compreensão da palavra, 92
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mas, em matéria de política externa, ousaríamos sugerir, Alvitrar que fosse mais do que uma superintendência, fosse a própria formulação da política externa; ela deve ser entregue ao órgão de representação dos Estados-Membros, ao órgão da Federação propriamente dito, e ao órgão que tem, tecnicamente, melhores condições, dentro do Parlamento, de fazer as melhores opções e estudar melhor os problemas internacionais que se apresentem, que é o Senado. Numa linha de coerência com a ideia de que uma das funções de uma segunda Câmara Legislativa é a de revisar e aperfeiçoar o trabalho oriundo da outra Câmara precisa o Senado adotar normas de procedimento que assegurem autenticidade ao seu trabalho, quando lhe tocar a tarefa de revisar. Aqui estamos falando com a nossa experiência de trabalho no Senado. Muitas vezes a revisão aqui é meramente formal, meramente simbólica, meramente homologatória do trabalho feito na Câmara dos Deputados. É preciso, então, que o Senado realmente tenha muito respeito pela sua função e pelo seu caráter de Casa revisora. Da necessidade da revisão não há o que falar. Os assessores mais antigos daqui devem ter uma coleção muito grande de casos folclóricos, que demonstram a falibilidade humana expressa na falibilidade dos Srs. Deputados. Já tive oportunidade de trabalhar em projetos vindos com erros crassos da Câmara dos Deputados. Na fase em que me preparava para o concurso, folheei e compulsei o processo de um projeto de lei que havia sido aprovado na Câmara dos Deputados, e que estava em vias de ser remetido ao Senado, em que a Comissão de Redação havia substituído o texto aprovado por outro. A Câmara aprovou uma coisa e o autógrafo dizia outra bem diferente. Na época mostrei o erro para a pessoa, lá na Câmara dos Deputados, que havia gentilmente me dado acesso aos projetos em andamento naquela Casa. É extremamente redundante argumentar sobre a necessidade da revisão, mas esta tem mesmo que ser feita. Não pode ser feita em caráter simbólico, como tantas vezes acontece e para isso é preciso que se criem mecanismos de autopreservação e autopoliciamento interno na Casa. Às razões de ordem técnica-justificadoras e exigidoras da existência de duas Câmaras do Poder Legislativo juntam-se razões de ordem política, exigências de uma federalidade ampliada na estrutura federal. Estrutura do Poder Legislativo
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Concluindo: é preciso abandonar, na discussão do dilema bicameralismo versus unicameralismo, a visão antiga e obsoleta do Senado ou da segunda Câmara como uma Assembleia de representação aristocrática e conservadora. Isto é coisa de uma Europa antiga. Abandone-se, de uma vez para sempre, a imagem do Senado como uma Câmara Alta. Nada disso! Câmara Revisora, sim! Câmara dos Estados, sim! Assembleia de Revisão, sim! Assembleia dos Estados, sim! (Palmas.) O SR. PRESIDENTE (Abelardo Gomes) – Cumprimentamos o nosso Colega Alaor Barbosa pela sua exposição. Passamos, agora, à formulação das perguntas. Em face do adiantado da hora, peço aos Colegas sejam breves nas suas formulações, porque todos preferiram formulá-las oralmente. A primeira questão é do Sr. Harry Schuler. O SR. HARRY SCHULER – Preliminarmente, manifesto minha esperança de que o que o prezado colega Alaor Barbosa trouxe de vocação federativa se concretize na próxima Constituinte, de vez que todos os movimentos revolucionários efetuados no País neste sentido sempre foram sufocados e as gestões políticas neste sentido conseguiram ser burladas. Trago um problema que o Colega não focalizou, e queria ouvir sua opinião sobre este assunto, porque ligado a esse problema do federalismo; ficou a aceitação implícita da existência dos Três Poderes – do Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Tenho para mim que a genial ideia que teorizou Montesquieu, que foi tirada do Parlamento inglês, da monarquia inglesa, o equilíbrio dos Três Poderes, a separação dos Três Poderes, que ele generalizou e teorizou isto, o Brasil já foi infeliz ao assimilar a ideia, porque, se não me engano, já na Constituição de 1891, alguém preocupado, talvez com o Poder Moderador que havia na República, inseriu, ao lado da independência de Poderes, a harmonia. Essa harmonia dos poderes que a nossa Constituição ainda hoje coloca ao lado da independência. Ao lado da separação, ela gerou, no País, uma hierarquia do Poder Executivo, ao ponto de subordinar o Poder Judiciário, por exemplo, na nomeação 94
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e promoção de magistrados, tanto na União quanto nos Estados, e também na própria composição dos tribunais. Fazendo um rápido adendo sobre o Senado, acrescento que foi exposto aqui, no Senado, pelos norte-americanos, num simpósio, que a causa principal que gerou a instituição do Senado norte-americano foi o conflito que houve na discussão da representação proporcional dos deputados, minoritários e majoritários. Então, o Congresso americano, na Constituição de Filadélfia, assimilou o Senado por causa dos Estados minoritários, que não teriam praticamente voz no Congresso. Queria que o colega desenvolvesse esse problema da harmonia. Se fosse possível, sua opinião a respeito do assunto, porque vai ser discutido aqui. Tenho para mim que na Constituição devia ser abolida essa referência à harmonia dos Poderes. Poder independente não pode ser harmônico; pode ser pela ação, pela postura. Quando o Poder Judiciário julga, ele tem de julgar com independência e plena decisão. Quando o Poder Legislativo vai apreciar ou julgar o Presidente da República ou um Ministro, não há para ele harmonia. Ele está diante de um conflito e tem que exercer o seu poder com independência. Parece-me que foi uma introdução prejudicial, nos nossos textos constitucionais, essa enaltecendo a harmonia entre os Poderes ao lado da independência. O SR. ALAOR BARBOSA – Esse problema dos Poderes é mais complexo, porque pode ser pensado em função de uma opção pelo sistema presidencialista ou de uma opção pelo sistema parlamentarista. Cada opção leva a consequências bem diferentes. Numa opção pelo sistema presidencialista surgem, nesse campo, problemas muito difíceis. Por exemplo, num Congresso de que participei em São Paulo, em 1983, o Congresso Nacional de Advogados Pró-Constituinte, tive a surpresa de ver o Ministro Victor Nunes Leal – que sempre se caracterizou, no País, por uma imagem de homem de ideais avançadas, um grande liberal – levantar-se contra a ideia de os Juízes dos Tribunais de Justiça, de os Desembargadores, os Juízes de todas as instâncias, de primeiro grau, dos Tribunais de Justiça Estaduais, do Tribunal Federal, dos diversos tribunais federais, serem escolhidos e nomeados pelo próprio Poder Judiciário. Alguém defendeu, lá, que se aprovasse uma moção neste sentido, que o Estrutura do Poder Legislativo
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próprio Poder Judiciário nomeasse os seus membros. Atualmente, para o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, os Ministros são nomeados pelo Presidente da República e os nomes são aprovados pelo Senado. Os Juízes de primeiro grau são nomeados pelos Governadores dos Estados; os Desembargadores, também. Essa intromissão do Governador no Poder Judiciário é denunciada por muita gente como uma intromissão indébita, que tira a autonomia e até a liberdade de decidir, muitas vezes, dos Desembargadores. Victor Nunes Leal foi contra, dizendo que é um perigo dar-se ao Poder Judiciário autonomia total. Ele achava que essa interdependência era necessária. O SR. HARRY SCHULER – É a mesma opinião do atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, de que não deve ter essa independência total de nomear, porque seria criada uma oligarquia... O SR. ALAOR BARBOSA – Exatamente. Ele usou esta expressão. O SR. HARRY SCHULER – Sou contrário a esta ideia, mas é a ideia dominante da classe jurisdicional. O SR. ALAOR BARBOSA – Ele usou esta expressão: oligarquia, familiocracia. O Poder Judiciário, realmente, não é puro. É uma estrutura fechadíssima, e se se der ao Poder Judiciário, uma completa autonomia, possivelmente teremos apenas sobrinhos, filhos e primos de desembargadores... Essas opções são difíceis, são melindrosas, são delicadas. Tenho a impressão de que essa interdependência talvez não seja a melhor solução, mas seja a menos ruim. O SR. PRESIDENTE (Abelardo Gomes) – O próximo a falar é o Colega Fran Figueiredo. O SR. FRAN FIGUEIREDO – Em primeiro lugar, cumprimento nosso Colega pela brilhante exposição que fez, embora se tenha fundado mais no aspecto estrutural do Poder Legislativo. O SR. ALAOR BARBOSA – Era o objeto do meu trabalho. 96
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O SR. FRAN FIGUEIREDO – Este é um aspecto importante, que o Colega expôs com riqueza de dados, abordando a questão da evolução histórica da instituição parlamentar. É muito importante, é um background indispensável à compreensão do problema na sua abordagem mais ampla. Entretanto, não é tudo, porque esta questão é muito vasta e muito complexa. Conta um historiador que, quando alguém fez uma pergunta a Thomas Jefferson, ele tomava chá, no hotel. “Mas por que essa criação da Câmara e do Senado?” Ele espantou-se um pouco, o chá entornou no pires, e então respondeu: “O Senhor está vendo?! Se um entornar, o outro o conterá”. Seria mais ou menos dentro dessa função de check and balance, de controle, de peso e contrapeso de Poderes. Uma coisa que eu queria fixar é que a análise estrutural só do unicameralismo ou do bicameralismo não é suficiente, porque podemos ter sistemas mascarados. Por exemplo, temos que investigar o que se oculta por detrás da realidade das coisas e podemos ter um sistema como o brasileiro, que se propõe a ser bicameral e que tem todas as nuanças, todas as características, do sistema unicameral. Ora, enquanto o Colega apresentava sua exposição, eu fazia uma reflexão sobre as atribuições do Senado Federal. Vejam a que conclusão cheguei: fiz um estudo da competência privativa do Senado e vi que este tem atribuições julgadoras: julgar Ministros, Presidente da República, mas são atribuições potenciais. Não me lembro de um caso em que o Senado Federal tenha julgado um Ministro e o tenha condenado àquela impossibilidade de ser funcionário público durante cinco anos. Isso nunca ocorreu. São atribuições meramente potenciais, portanto. A segunda: processar e julgar Ministro do Supremo Tribunal Federal. Isso tampouco ocorreu e dificilmente ocorrerá. Estão aí compondo um elenco de coisas inócuas. Não digo que não devam estar, mas são coisas que não implicam uma função efetiva. Depois dessa atribuição julgadora, temos outra função, a de chancela do Senado, que se explica através de um tríplice aspecto. Primeiro: aprovação de magistrados, embaixadores, etc. – isso é proposto pelo Executivo e o Senado tem quase que uma função de Estrutura do Poder Legislativo
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chancelar esses nomes. Segundo: a autorização de empréstimos, operações, etc., fixando os limites da dívida consolidada de Estados, Municípios, etc. Terceiro: suspender a execução de leis inconstitucionais, isso depois de uma providência anterior do Supremo Tribunal Federal. Temos ainda mais, no Senado, no elenco de atribuições, uma função legislativa atípica, uma função legislativa de segundo grau – o Senado legislando para o Distrito Federal, ou seja, com funções de Câmara Municipal. A essas funções chamo de funções degradadas do Senado Federal, de legislar para o Distrito Federal e a de suspender lei, até lei municipal. A meu ver, é um absurdo que o Senado suspenda uma lei municipal. Dei um parecer, recentemente, em que o Senado tinha que homologar uma decisão do Supremo Tribunal, suspendendo uma lei municipal. Isso me parece estranho na sistemática de controle de constitucionalidade. Temos, entre as atribuições do Senado, a função judiciária – julgar Ministros, etc.; a função legislativa de segundo grau – legislar para o Distrito Federal; a função de controle de contas – uma função executiva derivada. Neste plano de atribuições, o que resta ao Senado, enquanto função originária típica? Primeiro: julgar Ministros do Supremo Tribunal e do Executivo e julgar o Presidente da República. Não tem mais nada. Se considerarmos que o Senado tem capacidade de expedir resoluções ou de criar os seus cargos, essas duas outras atribuições são inerentes, são próprias da natureza do órgão. Todas as outras são funções de natureza derivada, ou seja, tudo mais que está na Constituição atribuído ao Senado, ele só atuará através de uma provi dência a priori. Vejamos: Art. 42, inciso III: “aprovar, previamente, por voto secreto, a escolha de magistrados...”. IV – autorizar empréstimos, operações... ouvido o Poder Exe cutivo Federal; VI – fixar, por proposta do Presidente da República e mediante resolução; VII – suspender a execução, no todo ou em parte.
Aí pergunto: o que sobrou para o Senado, enquanto órgão legiferante? O que sobrou, enquanto função legislativa típica? Ocorreu98
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-me a seguinte ideia: para usar um singularismo de linguagem, um bicameralismo não se faz como se pretende no Brasil, com uma concha virada para cima e a outra para baixo. Isso não é bicameralismo, porque se separa anatomicamente o edifício institucional e pensa que se tem um sistema bicameral; tem-se um sistema unicameral disfarçado, um sistema ambíguo, dentro de uma Federação, que também é uma Federação biônica. É bem verdade que a Federação brasileira deitou raízes, sedimentou-se, é uma Federação atípica e deve continuar sendo uma Federação. Não discuto isto, mas que ela é uma invenção, isto é; é um translado, isso ninguém discute. Há um aspecto positivo que não foi posto, em relação ao controle do Senado sobre a Câmara e vice-versa: O Senado tem duração de mandatos distintos, cujos 2/3 se renovam, de quatro em quatro anos. Temos essa renovação de mandatos que não é simultâneo, o que impede que a pressão popular implique uma legislação demagógica, porque, se há uma pressão muito grande contra a Câmara, o Senado, que não tem parlamentares dependendo do voto imediato, pode cortar essa tendência imediatista e demagógica. Há outro aspecto, terrivelmente pernicioso, que se refere ao Senado enquanto estamento burocrático ou da Câmara, dos dois estamentos altamente burocratizantes, algo extremamente absurdo: tem-se, então, um corpo legislativo com milhares de funcionários que nem sempre são eficientes. Isso é perigoso. Esta, a proposta que queria fazer, meu Colega, ao mesmo tempo em que o cumprimento pela brilhante exposição. O SR. ALAOR BARBOSA – O que foi dito é inteiramente procedente. Verdadeiro. Não tenho o que responder. Tenho que incorporar o que o Colega disse ao que eu expus. Estou atingindo meus objetivos. Quando aceitei ser o expositor aqui, foi por astúcia, foi para aprender. Estou aprendendo. O SR. FRAN FIGUEIREDO – É bondade sua. O SR. PRESIDENTE (Abelardo Gomes) –Com a palavra o nosso próximo interventor, Sr. Dario Viotti.
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O SR. DARIO VIOTTI – Trago mais um argumento em reforço à brilhante exposição que hoje ouvimos; lembro um fato, que servirá para a defesa do Senado. Foi aprovado na Câmara um projeto do Deputado Abdias do Nascimento criando a figura do crime empírico, que ninguém sabe o que seja de discriminação racial, com pena de 20 anos de reclusão, que pode ser aumentada, conforme as agravantes, para o dobro, ou seja, 40 anos de cadeia! Esse projeto passou. Pela informação que obtive do PRODASEN, estava retido na Comissão de Redação da Câmara, que, naturalmente, não sabe o que fazer com ele, pois seu conteúdo nem se entende qual seja. Exatamente para evitar a aprovação, por lapso, de projetos que sejam verdadeiros exemplares de teratologia jurídica, como esse, é que há necessidade absoluta de uma segunda Câmara, porque não é provável que um projeto dessa ordem passe por engano também aqui. Apenas trouxe este exemplo, e certamente os colegas poderão aduzir outros argumentos de natureza prática para a defesa dessa dualidade da Câmara, além dos diversos argumentos teóricos tão bem expostos pelo nosso Colega Alaor Barbosa. O SR. ALAOR BARBOSA – Realmente, tenho a impressão de que cada qual aqui tem uma pletora de casos e histórias a contar que ilustram essa falibilidade de uma Câmara Legislativa e, portanto, fundamentam a necessidade de uma revisão por outra Câmara. Voltando ao que falou o SR. Fran Figueiredo a respeito da potencialidade de tantas atribuições que ficam – a Corte Judiciária, por exemplo, o Senado é uma Corte Judicial, isso fica apenas como algo escrito na Constituição que não se coloca em prática, é como se fosse um ornamento político. Apesar de ser apenas uma espada de Dâmocles, ou algo em potencial, isso tem que ser previsto isto se dá com outros institutos constitucionais. Por exemplo, nunca ouvi falar de um impeachment no Brasil, e aí não é problema do Senado, é problema do Congresso Nacional. O impeachment, no tempo do Carlos Lacerda, quando ele combatia os governos de então, falava-se muito em impeachment, mas, concretizado, nunca houve.
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O SR. FRAN FIGUEIREDO – Nos Estados Unidos, o Senado vota impeachment de um Juiz Federal. O SR. ALAOR BARBOSA – Parece-me que é um costume político, problema de educação política. O SR. WALTER VALENTE – Também me parabenizo com o meu colega Alaor Barbosa pela excelente palestra e faço um pequeno reparo em tudo o que encontrei nesta longa exposição. Citou o Expositor a falibilidade humana dos Deputados, talvez por um lapso na exposição, ao comentar a necessidade da existência da Câmara revisora. Fico-me perguntando se eles não colocam este mesmo problema lá, na Câmara dos Deputados, quanto erro já saiu aprovado por esta Casa. No que pertence à minha dúvida, no cerne da questão, gostaria que me explicitasse melhor, para meu entendimento, esta sua proposta sobre formulação de política externa pelo Senado. Fico-me perguntando sobre a diretriz de Governo e sobre a própria existência do Ministério das Relações Exteriores, cujo funcionamento não conheço bem. Esta é a razão da minha intervenção, neste instante. O SR. ALAOR BARBOSA – Sobre o problema da falibilidade, a necessidade de revisão é mútua. Quando a iniciativa de projeto de lei é do Senado, é muito possível que a Câmara, ao revisá-lo, depare com erros que terá de corrigir. É a falibilidade do próprio Congresso Nacional. Daí a necessidade do controle da constitucionalidade das leis. O Congresso Nacional é policiado e fiscalizado pelo Supremo Tribunal Federal, pelos cidadãos; em caso de lei inconstitucional, o Juiz que vai aplicá-la pode deixar de fazê-lo, e a Procuradoria da República pode promover a declaração da sua inconstitu cionalidade, e o Supremo pode fazê-lo. Há mecanismos bastante amplos e complexos nessa inter-relação dos Poderes entre si: são mecanismos para a sanidade das leis. O Senado e a Câmara policiam-se mutuamente. Vamos supor que, apesar disso, a lei sai daqui inconstitucional ou mal feita, e lá fora, como tem vida própria, ela vai sofrer questionamentos, impugnações, poderá ter sua inconstitucioEstrutura do Poder Legislativo
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nalidade declarada ou as suas imperfeições denunciadas pelos juízes, advogados, juristas, e assim se faz, é o processo de vida. Com relação à política externa, há certas decisões que devem ser trazidas ao Senado, não podem ficar ao arbítrio exclusivo do Poder Executivo. Não sei como poderíamos fazer isto em norma constitucional, como poderíamos colocar isto na Constituição, não sei se se fazendo obrigatório o comparecimento do Ministro das Relações Exteriores ou a consulta ao Senado na tomada de determinadas decisões mais graves em matéria de política externa. Esta é uma proposta que faço. Está ainda um pouco vaga, mas encontrar-se-ia, depois, uma formulação concreta, sob a forma de norma constitucional. Nos Estados Unidos fazem esse controle, agora confesso que não sei bem como. Sei que o Presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado tem um poder enorme. Na época de William Fullbright, não se fazia nada sem a concordância da Comissão de Relações Exteriores. Na política de guerra americana, política de paz, intervenções, o Senado tem uma grande força nos Estados Unidos. Confesso que não conheço em detalhes o funcionamento, o mecanismo desse poder do Senado americano. O SR. FRAN FIGUEIREDO – Ele tem muita competência. O segredo da América do Norte está em duas coisas básicas: o Senado americano e o Supremo Tribunal Federal. É o segredo da vida americana. Rui Barbosa já dizia: “É difícil trasladar um Senado como o Senado americano ou uma Suprema Corte como a americana.” É uma questão cultural. O SR. ALAOR BARBOSA – É um assunto que ainda quero estudar, para ter um conhecimento melhor do problema. O SR. PRESIDENTE (Abelardo Gomes) – Há perguntas que estão formuladas por escrito. Nosso Colega Carlos Rosas pergunta: “Justificando-se o bicameralismo no plano federal, tendo em vista a necessidade de virem os Estados-Membros a ser representados através do Senado, indago sobre o motivo que justifique 102
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o bicameralismo no plano estadual, como o adotado em alguns países.
O SR. ALAOR BARBOSA – Não sei se é uma experiência estrangeira trasladável para o Brasil. Já tivemos na Primeira República. Não sei se todos os Estados tinham Senado Estadual. Muitos tinham. Goiás teve um Senado, durante toda a Primeira República. Tenho impressão, federalista que sou, de que a melhor solução é deixar-se à liberdade, à autonomia de cada Estado a opção. Há Estados que podem sentir a necessidade de ter também um Senado, e outros, não. É como outro problema, em que estava pensando outro dia: vamos ter a Constituinte, vai-se fazer a nova Constituição; e os Estados-Membros? Até hoje ninguém pensou nisto. As próximas Assembleias Legislativas, que se elegerão agora, vão ter também poder constituinte? Nem se tocou no assunto. Os Estados-Membros vão ter, então, que convocar a sua Constituinte, vão ter que resolver o problema de alguma maneira, vão ter que dar uma solução jurídica para isto? O SR. DARIO VIOTTI – Sobre este problema do Senado estadual, tenho uma ligeira intervenção a fazer. O Senador, eleito por um período maior do que o do governador torna-se muito mais independente. Sendo menos o número de senadores estaduais do que o de deputados estaduais, só pessoas de alto prestígio conseguem chegar ao Senado do Estado (ou ao Senado da República). Exatamente porque são pessoas de maior prestígio, e com maior tempo de mandato, se tornam menos influenciáveis. De modo que o Senado aumenta a independência do Poder Legislativo diante do Presidente da República ou do Governador do Estado. O argumento que, pelo menos em Minas Gerais, sempre se lançou contra a criação do Senado estadual é puramente de economia, dizendo-se que haveria aumento de despesas. Não sei por que razão haveria aumento de despesas, se em vez de 75 deputados, houvesse 50 deputados e 25 senadores; se o Poder Legislativo estadual fosse dividido em duas partes, sem aumento do número de parlamentares. Não haveria aumento de despesa, mas aumento da independência do Poder Legislativo perante o Executivo. Estrutura do Poder Legislativo
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Haja ou não uma Federação, o Senado se justifica por muitos outros motivos. Era apenas esta intervenção que gostaria de fazer, a propósito desta discussão sobre o Senado estadual. O SR. ALAOR BARBOSA – Muito sugestiva. Ainda não havia pensado neste aspecto. Creio que o Senhor tem toda a razão. A necessidade de independência, em face do Poder Executivo, parece que ainda é mais candente, mais sensível nos Estados. É um argumento, uma face do problema em que não havia pensado. O SR. FRAN FIGUEIREDO – Vai depender da competência que possam dar aos Estados para legislar. É questão de fundo. Qual a competência que se dá aos Estados? O Senhor me permite, estou sendo impertinente, mas a questão é muito momentosa. Qual a competência que se dá aos Estados para legislar? Sobre que matérias? Mantido o sistema atual, não adianta criar mais um Senado, porque não vai legislar absolutamente, em nada. O SR. ESTEVÃO MARTINS – Aproveito para ser também imper tinente. A outorga de competência, por parte da União, é um pseudofederalismo, porque o Estado não tem competência nata para legislar sobre a sua ordem social e legislativa. O SR. PRESIDENTE (Abelardo Gomes) – Essas questões, às vezes, são interessantes, porque o texto atual parece que não permite. O SR. ALAOR BARBOSA – O atual não permite, é claro. Estamos raciocinando em função da futura Constituição. Estamos em estado de tábula rasa, teoricamente. O SR. PRESIDENTE (Abelardo Gomes) – A propósito, a sexta questão, do nosso colega Tereso Torres, formulada por escrito, permito-me lê-la:
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“Haveria meios de distinguir quando predomina num projeto o interesse dos Estados ou o interesse do povo, a fim de conferir-se base prática, para sustentar-se que o Senado representa os Estados e a Câmara dos Deputados representa o povo? Está o ilustre expositor de acordo com o fato de dar-se igual peso à participação do Senado e à participação da Câmara, mesmo que o interesse seja majoritariamente só dos Estados ou só do povo?
O SR. ALAOR BARBOSA – Os lindes que os separam são difíceis de ser precisados. É muito difícil precisar o que seja interesse prevalente, prioritário, do Estado. No Estado moram populações; o povo mora lá. Aliás, é nos Estados e nos Municípios que o povo mora. Diz Franco Montoro que “o povo não mora na União, mas nos Municípios”. É muito difícil. Há determinadas questões com algumas nuanças que permitem certa caracterização como de interesse de Estado, como as questões tributárias. É claro que em questões de legislação civil, penal, não haveria possibilidade de distinção. Há questões de ordem tributária, orçamentária, em que muitas vezes transparece o interesse peculiar de um Estado e, às vezes, até de um Município. Depende de cada caso. Quanto à segunda parte da sua questão, quando houver um caso em que se detecte a prevalência do interesse de Estado-Membro sobre o interesse nacional, interesse peculiar, ainda assim creio que a participação deva ser paritária, por causa da necessidade do policiamento, do aperfeiçoamento mútuo, do aprimoramento mútuo. Além disso, devido ao fato, que não pode ser afastado, de que, mesmo quando se constatam pontas de interesses prevalecentes de Estados-Membros ou de Municípios ou conflitos entre Estados, haverá sempre, na base, o interesse popular envolvido na questão. Desta forma, não se pode abandonar, em caso algum. a participação paritária das duas Casas legislativas num processo legislativo, num processo de decisão. Penso assim. O SR. PRESIDENTE (Abelardo Gomes) – A próxima questão será formulada oralmente. O SR. RAIMUNDO DE LIMA – Apoio, inteiramente, as conclusões a que chegou o caro Colega Alaor Barbosa sobre os arguEstrutura do Poder Legislativo
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mentos favoráveis ao bicameralismo. No entanto, estou preocupado, de certa maneira, com a eficácia do nosso Seminário, os dividendos que podemos colher, em termos operacionais – vamos dizer assim – depois desses debates todos, dessas palestras todas. No caso desta palestra de hoje, no tema de hoje, a Assessoria poderia, não digo influir, porque, talvez, o verbo seja muito forte, mas contribuir, pelo menos, para a Constituinte, para que alguma coisa se coloque na Constituição, resolvendo problemas que foram aqui apresentados e debatidos. Fico preocupado como poderíamos obter essa eficácia. Depois das nossas conclusões, como fazer valer? No caso da justificativa do bicameralismo, três aspectos são fundamentais, justificando a segunda Câmara como revisora, para não deixar passar erros. Cito, aqui, um segundo acontecimento, que é também um caso teratológico, complementando o que O SR. Dario Viotti falou. Está começando a vir da Câmara – e estou dizendo que parece que está começando, porque parece que sempre vem mais – inclusive já passaram dois ou três projetos de Decreto Legislativo aprovando recomendações da OIT. Por sua constituição, a OIT – Organização Internacional do Trabalho aprova convenções. E quem as assina tem um prazo, depois, para os Poderes competentes internos ratificarem a convenção. Uma vez ratificada, a convenção entra para o ordenamento jurídico do Estado-Membro da Convenção. As convenções são formuladas em termos imperativos, e, da mesma forma que lei, são disposições. Assim, aprovada uma convenção, é lei. E lá tudo está afirmativo, tudo imperativo. A recomendação, não. Quando a OIT percebe, pelas discussões prolongadas, pelas sucessivas conferências anuais sobre determinado tema, dificuldades para ser aprovado, por tremendas objeções ou porque uma pequena parte dos Estados-Membros está a favor, que ainda vai levar muito tempo até que evolua, geralmente o Executivo da OIT dá, como solução intermediária, como uma espécie de encaminhamento de solução, a aprovação de uma recomendação. A recomendação, como a própria palavra indica, está recomendando que se faça alguma coisa. Há, por exemplo, a Recomendação n° 116, sobre a duração da jornada de trabalho. A recomendação, às 106
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vezes, tem até um discurso histórico, dizendo por que a duração do trabalho deve tender para ser menor, apresentando, ao final, como ideal, a duração do trabalho semanal de 40 horas. Então, aprovou-se essa Recomendação nº 116 com esse texto, que não é imperativo, não é afirmativo, mas de recomendação. O Governo Geisel mandou para o Congresso, já há muitos anos, duas recomendações, cujos processos passaram por minhas mãos. A Constituição da OIT fala que, uma vez aprovada a recomendação, o Estado-Membro deve remeter ao órgão competente – olhem a diferença da Convenção – para aprovar aquilo que foi recomendado, transformando em lei. Então, teria que haver um projeto de lei convertendo em lei aquilo que está sendo aceito através da recomendação ou, então, tomar medidas que julgar cabíveis. Finalmente – fica implícito – se achar que não tem medida alguma para ser tomada, tomar apenas conhecimento da recomendação. Não precisa nem ficar a favor. A Câmara mandou para cá a aprovação da recomendação como Decreto Legislativo. Como vai entrar para o ordenamento jurídico brasileiro uma recomendação? Isto no tocante à Câmara revisora. Quanto à segunda, a importância da segunda Câmara é no sentido de se ter um Poder equilibrador, complementador, de maior ponderação, que, evidente, quando há duas Câmaras, há essa oportunidade de maior ponderação em torno das matérias. O trato das matérias fica muito mais aprofundado, muito mais ponderado. Acrescento, principalmente na terceira parte, sobre a importância da segunda Câmara, no caso das federações. Há colegas, aqui, que põem em dúvida o problema da Federação Brasileira, perguntando se existe mesmo no Brasil uma Federação. Podemos até colocar isso em segundo plano e verificar, historicamente, sociologicamente, que o Brasil é um País continental, tendo regiões – não digo que coincidam exatamente com as divisões geográficas por Estados, para dizer que cada Estado corresponde a uma cultura diferente ou a uma cultura absolutamente própria e distinta das outras –, com culturas bastante distintas e definidas. Assim, justifica-se a Federação no Brasil como a junção, com um Governo Federal, um Poder Federal, mas ele se legitima na medida em que representa em que realiza as aspirações, os anseios, os interesses daquelas difeEstrutura do Poder Legislativo
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rentes regiões, que se caracterizam perfeitamente, histórica e sociologicamente. Há muitos séculos que isso se foi formando no Brasil. Então, a existência do Senado é relevante mesmo numa Federação como a brasileira, que não foi igual à americana, confederação de Estados absolutamente independentes com anterioridade, sociologicamente e historicamente havendo diferenças regionais, justificando-se, por causa disso, a Federação. O Poder Federal deve ser, para se legitimar, um retrato das partes que estão aglomeradas naquele Poder Federal. Só se legitima desta maneira. O Senado Federal deve ser a Câmara que reflete esses interesses, essas aspirações dessas diversas regiões. Desta forma, devemos lutar para conseguir que os poderes do Senado Federal sejam principalmente relacionados com essa representação local. O SR. ALAOR BARBOSA – O que o colega Raimundo de Lima trouxe foram reflexões que enriqueceram muito, tudo o que foi dito. Temos que incorporar; não há o que comentar. Concordo inteiramente, porque está robustecendo e enriquecendo as reflexões feitas. Só tenho que agradecer. O SR. PRESIDENTE (Abelardo Gomes) – Com respeito àquela preocupação sobre os efeitos práticos que possa haver dos nossos trabalhos, devo dizer, primeiro, que já sugeri a O SR. Edgard Proença que todas as contribuições fossem transcritas, para que possamos tê-las como subsídios à mão, e, eventualmente, subsídios que possam ser entregues na mão de parlamentares para consulta. O segundo elemento é no sentido de que estamos pensando que, assim que terminarem os trabalhos legislativos – porque entre as eleições e o dia 5 de dezembro haverá uma corrida contra o relógio –, logo na semana subsequente, antes de suspendermos as atividades, durante 3 manhãs, poderemos debater formas de como vai-se processar o processo legislativo na Constituinte, e o processo legislativo ordinário, que tem que ocorrer de alguma forma, e sobre como se integram os trabalhos de assessoramento, nesse período, de tal forma que esse tipo de preocupação que vem sendo debatido nessas sessões possa re108
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percutir na formulação dos textos da Constituição de modo eficaz. Estávamos pensando em, numa manhã, esclarecer questões relativas ao anteprojeto do Regimento Interno para a Assembleia Nacional Consti tuinte; numa segunda manhã, tomarmos conhecimento e debatermos as questões relativas aos processos legislativos da Constituinte e ordinários; e, na terceira manhã, debatermos com a Comissão de Integração entre Câmara e Senado para assessorar a Constituinte, como as Assessorias vão-se integrar, uma vez que somos, diante da Constituinte, um corpo teoricamente só. São ideias, para que não façamos coisas demais, e também para que não deixemos passar em branco tentativas de conversar entre nós sobre como comportarmo-nos dentro disso. É apenas uma informação. O tempo já vai avançado. Tenho a impressão que o colega Marcelo Câmara tem uma pergunta. O SR. MARCELO CÂMARA – Parece que os Expositores, ao final, vão sistematizar, vão registrar, vão fazer um resumo da sua exposição. Todo expositor está trazendo, pelo menos até aqui, propostas, como o fez o colega Alaor Barbosa. Queria só alertar aos colegas que já existem candidatos à Constituinte, à Câmara dos Deputados de cuja plataforma política um dos itens é a extinção do Senado. – Então, valeriam propostas quase que de sobrevivência, de justificativa, de existência, de defesa do Senado, porque no Rio de Janeiro, na Bahia, aqui, em Brasília, existem 3 candidatos a deputado federal cujo ponto da campanha, anunciada na televisão, em palanques etc., é a extinção do Senado. Inclusive, já recebemos pedidos e solicitações de discursos em defesa do Senado, em função dos projetos desses Deputados. O SR. ALAOR BARBOSA – Um dos pontos que pretendia mencionar, desde o início, para salientar o caráter de interesse prático e imediato do assunto, era este. O Partido Comunista do Brasil formalizou uma proposta, me parece que aprovada em convenção, de Câmara única, de extinção do Senado; e há manifestações esporádicas individuais nesse sentido. Este é um tema que divide as pessoas. Há correntes unicameralistas e correntes bicame ralistas fortíssimas no mundo inteiro, e essa sua lembrança me permite trazer, apesar do Estrutura do Poder Legislativo
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adiantado da hora, e não me vou demorar, uma referência a uma caracterização que se pretende fazer dessas correntes unicameralistas e bicameralistas, antagônicas entre si, como divididas por pensamentos políticos e ideológicos definidos. Pablo Lucas Verdú diz que geralmente os unicameralistas são esquerdistas e que os bicameralistas são conservadores. Como não sou conservador, mas sou bicameralista, e não sou esquerdista, talvez, no sentido em que Lucas Verdú se referiu a esquerdistas, procurei estudar a questão sobre esse aspecto também, para ver se existe confirmação histórica de que a preconização do Senado como instituição necessária pertence aos conservadores, e cheguei à conclusão de que não é verdade. O problema do conservadorismo e das posições progresso versus conservadorismo, reação versus reforma, transformação versus ordem, é um problema político que não tem nada a ver com a estrutura do Poder Legislativo. Historicamente, o Senado vem tendo uma evolução de democratização da sua composição que acompanha pari passu a própria democratização da sociedade. Sociedade onde prevalecem valores e classes conservadoras terá um Senado conservador. Uma sociedade onde na correlação de forças políticas, sociais e econômicas, prevalecerem às forças que defendem os chamados interesses populares, essa sociedade terá um Senado também identificado com as aspirações populares. O problema é de representação, é problema eleitoral, donde eu ter chegado à conclusão de que aquela defesa, feita pela Ordem dos Advogados do Brasil, de uma Assembleia Nacional Constituinte livre e soberana, autônoma, não sei-o-que-mais, é de um irrealismo total, porque, tivéssemos uma Assembleia Constituinte autônoma, soberana, livre, independente, para usar a retórica da Ordem, se não se mudou o sistema eleitoral e o sistema de representação partidária, essa Assembleia teria a mesma composição que o Congresso Constituinte vai ter a mesma composição humana, política e ideológica... O SR. MARCELO CÂMARA – E a influência do poder econômico seria a mesma também.
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O SR. ALAOR BARBOSA – Então, o que importa, se se quer mudar o caráter de uma Assembleia deliberante, é mudar a composição dela, é fazer com que entrem nela representantes daqueles interesses que se consideram interesses realmente populares e nacionais. Se não se muda o sistema de representação, por meio dos Partidos, e o sistema eleitoral, não se altera nada, qualquer que seja o rótulo que se dê à Assembleia. O Senado se insere nessa ordem de reflexões. O Senado será reacionário se elegermos para ele elementos reacionários; será conservador, liberal, reformista, ou mesmo revolucionário, se se der a ele uma composição com esse caráter. Então, é uma confusão de conceitos, em minha opinião. O SR. PRESIDENTE (Abelardo Gomes) – Agradeço a sempre competente, clara participação do nosso colega Alaor Barbosa dos Santos e a viva e cordial participação dos colegas. Está encerrada a reunião. Referências PAULO BONAVIDES, “O Senado e a Crise da Federação” – Revista de Informação Legislativa, n° 50, abril – junho de 1976. ROSAH RUSSOMANO, “O Senado e o bicameralismo federal brasileiro” – Revista de Informação Legislativa. n’ 50, abril – junho de 1976. PAULINO JACQUES, “Pelo Senado Misto” – Revista de Informação Legislativa, n° 50, abril – junho de 1976. AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO, “Curso de Direito Constitucional Brasileiro”, Forense, Rio de Janeiro, sem data. ALEXANDRE HAMILTON, JAMES MADISON e JOHN JAY, “O Federalista” – Editora Universidade de Brasília, 1984. CARL SCHMITT, “Teoria de la Constitución” –Editorial Revista de Derecho Privado, Madrid, sem data. ANDRÉ MAUROIS, “Histoire des États-Unis”, Editions Albin Michel, France, 1959. PABLO LUCAS VERDÚ, “Curso de Derecho Político”, Editorial Tecnos, 2º edição, Madrid, 1976. JULIEN LAFERRIÈRE, “Manuel de Droit Constitutionnel”, Editions Domat Montchrestien, Paris, 1947. Estrutura do Poder Legislativo
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Norberto Bobbio e o positivismo jurídico (Texto publicado na Revista de Informação Legislativa
a. 25 n. 97 jan/mar 1988)
Quando se fala em positivismo jurídico, a primeira acepção dessa locução que me acode à mente é a de concepção da justiça como concordância com a lei. Justo é o que concorda com a lei. Justo é o que está posto na lei. Claro que essa acepção não é tão simplista assim. Ela não exclui, penso eu, a ideia de que mesmo o sistema da lei posta – do direito positivo – não ignora ou exclui a ideia da perfectibilidade do direito posto. Essa ideia da perfectibilidade do direito, essa ideia da possibilidade de aperfeiçoamento incessante do direito não implica a ideia da existência de uma justiça ideal, equivalente à ideia de um direito natural; mas pode confundir-se com ela. Nenhum positivista ignora que o direito não é o que está posto pela legislação, mas, sim, que está (transitória e provisoriamente, portanto) na forma em que está. Não existe um direito essencial, mas direitos que se sucedem, sistemas que se imbricam e substituem. O estado de devenir, ou devir, permanente é o estado permanente do direito. Como se encontra a concepção positivista do direito atualmente? Antes de tentar, com base num livro de NORBERTO BOBBIO – O Problema do Positivismo Jurídico –, responder a essa pergunta, coloquemos algumas noções a mais sobre positivismo. 113
NICOLA ABBAGNANO, em seu Dicionário de Filosofia, informa que o termo positivismo foi empregado a primeira vez por SAINT-SIMON para designar o método exato das ciências e a sua extensão à filosofia (De la Religion Saint-Simonienne, 1930, p. 3). Foi adotado por AUGUSTO COMTE para a sua filosofia e por obra de COMTE passou a designar uma grande corrente filosófica que, na segunda metade do século XIX, teve numerosíssimas e variadas manifestações em todos os países do mundo ocidental. A característica do positivismo é a romantização da ciência: a sua devoção o único guia da vida individual e associada do homem, isto é, o único conhecimento, a única moral, a única religião possível. Convém ainda transcrever do texto referente ao verbete positivismo, do dicionário de ABBAGNANO, este esclarecimento: “As teses fundamentais do positivismo são as seguintes: 1° A ciência é o único conhecimento possível e o método da ciência é o único válido; portanto, o recurso a causas ou princípios que não são acessíveis ao método da ciência não dá origem a conhecimentos: e a metafísica, que justamente recorre a tal método, não tem nenhum valor. 2° O método da ciência é puramente descritivo, no sentido de que descreve os fatos e mostra aquelas relações constantes entre os fatos que são expressos pelas leis e consentem a previsão dos mesmos fatos (COMTE); ou no sentido que mostra a gênese evolutiva dos fatos mais complexos a partir dos mais simples (SPENCER). 3° O método da ciência, enquanto é o único válido, deve ser estendido a todos os campos da indagação e da atividade humana: e a vida humana inteira, individual ou associada, deve ser guiada por ele.
De acordo com ABBAGNANO, o “positivismo jurídico” é a denominação dada por HANS KELSEN à sua doutrina formalista do direito e do Estado. A verdade, contudo, é que, antes de Kelsen forjar e tornar pública a sua concepção do direito, já o positivismo havia penetrado o campo da indagação jurídica. É anterior a Kelsen a ideia de que o direito é o direito posto, e de que, sendo uma realidade evo114
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lucionária, o direito se sujeita a mudanças ao longo do processo histórico-social. Norberto Bobbio em face da questão NORBERTO BOBBIO é um pensador do direito e da política preocupado com o problema do positivismo jurídico no qual se implica o de justiça. Num pequeno livro1, em que reuniu entre 1958 e 1962, separadamente em revistas diferentes, ele focaliza, com muita objetividade, o tema. Ele se reporta, com muita frequência, à sua experiência de italiano, ou à experiência vivida pela Itália, sobretudo nos últimos cinquenta anos, nessa matéria. BOBBIO – ele o diz – formou-se sob o domínio intelectual da teoria do positivismo jurídico, sobretudo na forma apresentada pela “Teoria Pura do Direito” de HANS KELSEN. Para os da geração de NORBERTO BOBBIO, “fora de alguns cânones transmitidos pelas escolas positivistas, não havia possibilidades para o jurista que quisesse exercitar seriamente a sua tarefa”. “O direito natural” – acrescenta BOBBIO – “era considerado como o resíduo de atitudes não científicas e devia ser eliminado em qualquer parte que aparecesse”. Depois da Segunda Guerra, a situação inverteu-se. “Temos visto”, diz ele, “muitos juristas, uma vez realizado seu exame de consciência, pronunciarem uma completa e pressurosa palinódia, arrojarem-se nos braços do direito natural antes rejeitado e deixarem cair sem remorso o positivismo entre as antiqualhas onde, até poucos anos antes, jazia o direito natural em completo abandono”. Que o jusnaturalismo recobrava posição de domínio e espancava para um passado ultrapassado o positivismo até então dominante, NORBERTO BOBBIO o diz mais de uma vez. Já na introdução ao seu livro, ele se refere à “disputa reatada entre os partidários do jusnaturalismo que avança e os defensores do positivismo jurídico que foge”; e diz que o motivo dos seus estudos “era o de tomar posição em face” daquela disputa. No primeiro capítulo, intitulado “Formalismo 1 El Problema del Positivismo Jurídico (Editorial Universitário de Buenos Aires, 1965, trad. de Ernesto Garzón Valdés). Norberto Bobbio e o positivismo jurídico
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jurídico”, BOBBIO diz que um estudo sobre as orientações da teoria do direito na Itália após a guerra devia ter o mesmo título que o livro de MORTON WHITE sobre a cultura norte-americana da época de F. D. Roosevelt: a rebelião contra o formalismo. São muitos os testemunhos dessa rebelião, mas BOBBIO escolheu dois: o trabalho “Confissões de um Jurista”, de ARTURO CARLO JEMOLO, de 1947, e uma conferência de PIERO CALAMANDREI, de 1950. “Juristas e não juristas”, cita BOBBIO a Jemolo, sobretudo nas partes da Itália que sofreram a ocupação alemã, nos demos conta de que a vida moral não pode reduzir-se a fórmulas, por mais seguras e onicompreensivas que sejam. E CALAMANDREI, ao abrir o Congresso Internacional de Direito Processual Civil que em 1950 se realizou em Florença, repudiou aquela espécie de “cortesia científica” que leva os juristas a “crerem que nossas construções lógicas, nossos sistemas, são mais verdadeiros, mais reais, pode-se dizer, do que a realidade prática que se vive nos tribunais”. Diz BOBBIO que a oscilação entre formalismo e antiformalismo é, na jurisprudência, a mesma que existe entre classicismo e romantismo em estética, conservadorismo e radicalismo em política. E BOBBIO repete que sua geração começou a estudar direito debaixo do triunfo do tecnicismo jurídico, nome então atribuído “à nova encarnação do formalismo”. Formalismo jurídico BOBBIO examina o conceito de formalismo jurídico. Que é formalismo jurídico? Primeira acepção: formalismo jurídico é uma “certa teoria da justiça, em particular a teoria segundo a qual justo é aquele que é conforme à lei, e injusto, aquele que está em desacordo com ela”. Esse formalismo, diz BOBBIO, devia chamar-se formalismo ético. Diz BOBBIO que essa concepção não é “muito comum” entre os juristas. Estes pensam que o princípio da legalidade “é um critério para distinguir os atos jurídicos dos atos não jurídicos” e não para formular um juízo da sua justiça ou injustiça. Segunda acepção: formalismo jurídico é uma teoria particular do direito, não uma teoria da justiça, quer dizer: uma teoria da 116
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atividade prática do homem, que se distingue da moral, do costume, da economia etc. Por essa teoria, pretende-se definir o direito tal como é, de modo a distingui-lo da moral, do costume, ou da moral e da economia. A doutrina de direito de KANT é um exemplo de teoria do direito, como forma. Terceira acepção: o normativismo, o direito como ciência formal. Quarta acepção: o formalismo jurídico como teoria da interpretação jurídica. BOBBIO salienta que a rebelião contra o formalismo se desenvolveu nos últimos anos (ele escreveu há mais de vinte anos, não se pode esquecer) paralelamente à crítica ao positivismo jurídico: as duas se confundem muito. Na Itália, a polêmica antipositivista, informa BOBBIO, tomou duas direções: “1) Uma direção jusnaturalista na qual se contrapõe ao direito positivo um direito superior que proporciona critérios de valoração do direito positivo; e 2) Uma direção realista segundo a qual o direito positivo – considerado em sua acepção mais restrita como direito posto por fontes formais – é colocado ao lado de um direito diverso, isto é, aquele que emana diretamente do comportamento dos sujeitos (o chamado “direito espontâneo”).” Aspectos do positivismo jurídico Para BOBBIO, pode-se distinguir três aspectos diferentes da focalização do positivismo jurídico: como um modo de se encarar o estudo do direito; como uma determinada teoria ou concepção do direito; e como uma determinada ideologia da justiça. Como modo de encarar o estudo do direito, o positivismo jurídico se caracteriza por distinguir entre direito real e direito ideal. Faz o positivismo essa distinção empregando expressões equivalentes – direito como fato e direito como valor, direito que é e direito que deve ser etc. O positivismo acha que o jurista deve ocupar-se do direito real: do direito que é. É um direito científico. E deve ser neutro sob o aspecto axiológico. Direito é o que formalmente for direito. O positivismo jurídico como teoria é a concepção particular do direito “que vincula o fenômeno jurídico à formação de um poder soberano capaz de exercitar a coação: o Estado”. Nessa concepção, o positivismo jurídico se idenNorberto Bobbio e o positivismo jurídico
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tifica com a teoria estatal do direito. Como ideologia, “o positivismo jurídico”, diz BOBBIO, “representa a crença em certos valores e, com base nessa crença, confere ao direito que é, pelo só fato de existir, um valor positivo, prescindindo de toda consideração sobre sua correspondência com o direito ideal”. BOBBIO apresenta três formulações sintéticas dos três aspectos do positivismo jurídico acima referidos. Invertendo a ordem em que os referiu, BOBBIO começa pelo aspecto ideologia do positivismo jurídico. É contra esse aspecto do positivismo jurídico que tem sido dirigida, nos últimos anos (anteriores a 1962), a luta da parte dos defensores do renascimento do direito natural. BOBBIO procura demonstrar que o positivismo jurídico não afirma a obrigação moral de obedecer às leis positivas: “a teoria da obediência, bem mais que a da resistência, foi afirmada pelas teorias jusnaturalistas tradicionais”. “Em geral diria que a aceitação da obrigação moral de obedecer às leis positivas não é nem jusnaturalista nem positivista, porque deriva da verificação, velha como a filosofia do direito, de que nenhuma ordem jurídica pode sustentar-se confiando unicamente em uma obediência baseada no temor da sanção.” Relembra BOBBIO que a doutrina positivista é que postulou, de MONTESQUIEU a KANT, os princípios de legalidade, da ordem como fim principal do Estado, da certeza como valor do direito, e os postulou para “poder conter o despotismo, ou seja, como freios do arbítrio do príncipe, como defesa da liberdade individual contra a limitação do poder executivo, como garantia de igualdade de tratamento em face dos privilégios”. O positivismo jurídico como teoria recebeu oposição no terreno da sociologia jurídica. É episódio “de outra oposição recorrente entre jurispru dência conceitual e jurisprudência sociológica, entre teoria estatal e teoria social do direito, entre formalismo e realismo”. BOBBIO apresenta as refutações do positivismo jurídico às diversas principais críticas que lhe são feitas. À crítica feita pela escola do direito livre à “onisciência do legislador” o positivismo jurídico respondeu com a teoria do espaço vazio, segundo a qual “o caso não regulado pelas leis positivas não é uma lacuna da ordem, mas um fato juridicamente irrelevante”; e com a teoria da norma jurídica exclusiva, segundo a qual “o caso não regulado pela norma especial cai no âmbito da norma 118
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geral que exclui da regulamentação da norma especial todos os casos possíveis que não entram nela”. Lembra BOBBIO que, quanto à questão da imperatividade, escritores positivistas como KELSEN abandonaram a noção de imperatividade, considerando-a não essencial para uma coerente teoria positivista do direito. “A noção”, diz BOBBIO, “que parece hoje mais apta para assinalar as normas jurídicas é aquela mais genérica de prescrição, da qual o mandato é somente uma espécie”. Quanto à questão das fontes, diz BOBBIO que o positivismo jurídico “está ligado à consideração da lei como fonte principal e à subestimação do direito judicial”. O codicismo tem sido considerado uma característica essencial do positivismo jurídico, bem como o pensamento de que é mecânica a interpretação judicial e de que o juiz é um autômato e a decisão judicial um silogismo. Diz BOBBIO: “Mesmo os mais fiéis e ortodoxos defensores do positivismo jurídico não puderam fazer outra coisa que levar em conta esta realidade: a teoria mecanicista da interpretação está abandonada quase completamente”. Quanto ao positivismo jurídico como modo de approach do direito, isto é, o positivismo jurídico como método empirista de contemplar o direito, BOBBIO confronta acusações e defesa, para concluir: “Quando o positivista sustenta que o objeto da ciência jurídica é o direito tal como é e não como deve ser, não pretende desconhecer que o direito que é está constituído também por uma série de apreciações relativas a situações de fato, das quais nascem as regras, nem afirmar que somente o legislador, e não o juiz ou o jurista, pode fazer essas apreciações. O fato de que a atividade do jurista não seja unicamente lógica, mas também valorativa, e esteja eticamente orientada, não modifica a circunstância de que suas valorações chegam a ser direito não pelo fato de serem boas, sábias, justas, conformes ao direito natural, mas simplesmente porque elas se convertem em regras válidas do sistema. A tese de que o direito é aquilo que de fato é não leva a excluir que entre esses fatos se encontrem as valorações pessoais do legislador, do jurista e do juiz; significa simplesmente que estas valorações se convertem em direito quando são acolhidas mediante procedimentos estabelecidos e objetivamente verificáveis, no sistema das fontes, e não devido a sua maior ou menor conformidade com certos ideais de justiça. Deve-se distinguir o momento em que o jurista faz Norberto Bobbio e o positivismo jurídico
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do direito um objeto da própria investigação e aquele momento no qual contribui para criá-lo. Definições Ao enfrentar, no capítulo III do seu livro, o tema “jusnaturalismo e positivismo jurídico”, NORBERTO BOBBIO faz definições. “Por jusnaturalismo” – diz ele – “entendo aquela corrente que admite a distinção entre direito natural e direito positivo e sustenta a supremacia do primeiro sobre o segundo. Por ‘positivismo jurídico’ entendo aquela corrente que não admite a distinção entre direito natural e direito positivo e afirma que não existe outro direito senão o direito positivo”. Mais adiante ele repete a definição, de forma mais sintética: “Por jusnaturalismo entendo a teoria da superioridade do direito natural sobre o direito positivo; por positivismo jurídico, a teoria da exclusividade do direito positivo. O jusnaturalismo é dualista; o positivismo jurídico, monista”. BOBBIO indica três “formas típicas de jusnaturalismo: o escolástico, o racionalista moderno e o hobbesiano (não encontro uma denominação me lhor para este último)”. BOBBIO examina com alguma minúcia essas três formas de jusnaturalismo e, em seguida, três momentos da crítica positivista ao jusnaturalismo. Expõe, depois, a relação entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico como ideologias. Diz ele: “A máxima fundamental do positivismo jurídico como ideologia pode ser formulada desta maneira: “Deve-se obedecer às leis enquanto tais”; a do jusnaturalismo, desta outra maneira: “Deve-se obedecer às leis apenas enquanto são justas.” Para BOBBIO, somente quando considerados sob o aspecto de ideologias é que o jusnaturalismo e o positivismo jurídico se contrapõem um ao outro de modo claro. Sob outros aspectos, é difícil fazer a contraposição entre ambos. Como teorias gerais do direito, jusnaturalismo e positivismo jurídico apresentam a distinção entre uma concepção voluntarista (ratio imperii) e uma racionalista (imperium rationis) do direito. O direito para o positivismo jurídico é a lei oriunda do Estado, posta pelo Estado. O jusnaturalismo, se visto sem preconceitos em sua história, não postula sempre uma ética da resistência à opressão, da defesa da 120
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pessoa ante as pretensões do Estado, da liberdade individual em face da submissão servil à lei, da autonomia diante da heteronomia. “Nos braços protetores do direito natural encontraram refúgio, uma e outra vez, segundo os tempos e as circunstâncias, as morais mais diversas; tanto uma moral da autoridade como uma moral da liberdade; foram proclamadas tanto a igualdade de todos os homens como a necessidade do regime de escravidão; tanto a excelência da propriedade individual como a excelência da comunidade de bens, tanto o direito de resistência como o dever de obediência”. Quanto à relação entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico como modos diversos de se aproximar do estudo do direito, NORBERTO BOBBIO faz, primeiro, uma afirmação um tanto desconcertante: a de que, somente na acepção de modo de aproximar-se do estudo do direito sem qualquer juízo de valor e de estudá-lo, com método científico, como fato histórico e social, é que o positivismo jurídico “tem algo em comum com o positivismo filosófico”. Quer dizer: o método positivo é que é esse algo comum entre os positivismos filosófico e jurídico. O jusnaturalismo reclama uma “definição valorativa do direito, isto é, uma definição que, considerando o direito não como mero fato, mas como algo que tem (ou realiza) um valor, limite o uso do termo direito ao direito justo”. Direito seria, então, apenas o “direito justo”, e não qualquer direito. BOBBIO lembra a exigência jusnaturalista de se fazer “urna crítica das leis”. E afirma que “nenhum jurista pode sensatamente rechaçar a exigência de urna crítica das leis, da qual tem sido portador historicamente o jusnaturalismo em suas diversas formas, entendida esta crítica como o filtro a que a consciência não pode deixar de submeter todo preceito que se apresente como algo querido por outro, mas não por nós”. O positivismo jurídico reexaminado No apêndice de sua obra a que deu o título “Outras considerações sobre o positivismo jurídico”, NORBERTO BOBBIO afirma: “A maior parte dos juristas do último século, ao menos na Europa, foram positivistas sem o saber.” E informa que o primeiro estudo em que se focalizou diretamente o problema de saber com precisão Norberto Bobbio e o positivismo jurídico
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o que é o positivismo jurídico foi feito por ROBERTO AGO, sob o título Direito Positivo e Direito Internacional, publicado em 1957, e que tem sido amplamente discutido. Em fins de 1959, “um estudioso da nova geração”, A. AGNELLO, publicou uma monografia completa (a primeira, no seu gênero) sobre o pensamento de John Austin e sobre as origens do positivismo jurídico, monografia intitulada John Austin alie Origini del Positivismo Giuridico. Em 1960 houve em Bellagio – Itália, um encontro “de velhos e jovens filósofos do direito, italianos e estrangeiros, para discutir point to point a noção e a história do positivismo jurídico”. Provocado por esse encontro, BOBBIO publicou o artigo “Sul positivismo giuridico”. E ainda como fruto (“muito mais conspícuo”) daquele encontro de Bellagio saiu, pouco antes do livro de BOBBIO, “um bom livro de um dos mais jovens participantes da reunião”, M. A. CATTANEO, que se propõe “contribuir ao esclarecimento das discussões filosófico-jurídicas relativas ao problema das relações entre jus-naturalismo e positivismo jurídico e, em particular, ao esclarecimento e a urna melhor e mais precisa determinação do conceito de positivismo jurídico”. Como se vê, não se sabe ainda bem o que é positivismo jurídico. NORBERTO BOBBIO resume as ideias de CATTANEO. A começar da primeira, a de que “a expressão ‘positivismo jurídico’ teve, ao longo de seu devenir histórico, muitos significados”, e de que, portanto, “toda discussão acerca das relações entre jusnaturalismo e positivismo jurídico e toda interpretação relativa à afiliação deste ou daquele escritor a uma ou outra corrente pressupõem a elucidação dos diversos significados das expressões com que são aquelas correntes designadas”. Não vou aqui sumariar o sumário que do livro de CATTANEO fez NORBERTO BOBBIO. Conclusão: meu ponto de vista Quero, para encerrar, expender minha opinião sobre o assunto. Não propriamente minha opinião, mas meu ângulo de visão, o meu ponto de vista, que envolve uma avaliação do ponto de vista de NORBERTO BOBBIO. 122
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NORBERTO BOBBIO não se define nem como jusnaturalista nem como positivista. Na “Introdução” do seu livro, ele diz: “Mais do que alistar-me em um dos dois partidos, preferi, nestas páginas, tratar de aclarar a complexidade dos termos da oposição, a impossibilidade de reduzir o problema de suas relações a uma só alternativa e, em definitivo, demonstrar as razões pelas quais o alistamento em um ou outro partido é amiúde o fruto de uma escolha irracional e não de uma reflexão meditada.” No último capítulo do livro, intitulado “Jusnaturalismo e positivismo jurídico”, ele quase repete, no final: “Creio que o modo mais prudente de responder à pergunta sobre se certo autor é jusnaturalista ou positivista é dizer, com um gesto de cautela “depende”. Depende do ponto de vista no qual se se coloca para julgá-lo. Pode suceder que seja positivista de certo ponto de vista e jusnaturalista de outro. Na medida em que seja útil, dou como exemplo meu caso pessoal: diante do confronto das ideologias, em que não é possível nenhuma tergiversação, sou jusnaturalista; quanto ao método sou, com a mesma convicção, positivista; e no que se refere, finalmente, à teoria do direito, não sou nem uma coisa nem outra”. Como se vê, NORBERTO BOBBIO é um eclético, que combina elementos de convicção jusnaturalista com elementos de convicção positivista. Há um positivismo jurídico que NORBERTO BOBBIO não focalizou. É o que considera o direito como um sistema de normas que regem as relações sociais sobre a base das relações de produção econômica; e que considera o direito como a expressão da conciliação legislativa de interesses mais ou menos antagônicos. Visto sob essa ótica, o direito é sempre o direito positivo, e a sua evolução é o resultado da luta pela sua modificação. As forças sociais em conflito estão sempre lutando pela modificação do direito: da ordem posta. A evolução do direito é o resultado necessário das soluções que se dão às reivindicações. As reivindicações dos interessados – sejam os dominantes, sejam os dominados – é que dinamizam o direito, movimentam-no nesse ou naquele sentido. Considerado como um fenômeno social com tais características, o direito prescinde da ideia de justiça, entendida esta palavra no sentido de realidade ideal a ser atingida: o direito não marcha, ou não deve marchar, para uma situação de justiça ideal, mas Norberto Bobbio e o positivismo jurídico
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para uma situação de justiça factível, realizável, possível, uma justiça que será a expressão da conciliação possível dos interesses concretos em conflito. O estudo desse aspecto da questão não se encontra no livro de NORBERTO BOBBIO. Trata-se, afinal, de um livro metafísico, como se vê na referência feita à necessidade de crítica das leis. Crítica a partir de quê e para quê? Para melhorar as leis, sim, mas melhorá-las em função de quê? De normas ideais preconizadas pelo direito natural, sinônimo então de direito ideal? A crítica das leis é sempre – eis a verdade – uma forma de reivindicação, e reivindicação é sinônimo de racionalização de interesses.
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CPI e Constituição: um caso concreto (Texto publicado na Revista de Informação Legislativa
a. 25 n. 100 out/dez 1988
Mediante parecer que alcançou muita repercussão, o Consultor-Geral da República arguiu, no primeiro semestre deste ano, a inconstitucionalidade da Resolução n° 22 do Senado Federal, que criou e constituiu Comissão de Inquérito para investigar, em profundidade, as denúncias de irregularidades, inclusive corrupção, na administração pública, ultimamente tornadas tão notórias pelos meios de comunicação. Fundou o Consultor-Geral da República a sua arguição em interpretação que fez do art. 37 da Constituição Federal (de 1969), o qual diz: Art. 37 – A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, em conjunto ou separadamente, criarão comissões de inquérito sobre fato determinado e por prazo certo, mediante requerimento de um terço de seus membros.
Invocou também a Lei n° 1.579, de 18 de março de 1952 (art. 1°), que dispõe sobre a atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito, e o Regimento (art. 168) do Senado Federal. Sustentou o Consultor-Geral, na sua interpretação da norma constitucional, que a locução “fato determinado”, dela constante, impõe que somente são passíveis de investigação parlamentar “fatos deter125
minados, concretos e individuados que sejam de relevante interesse para a vida política, econômica, jurídica e social do País”. Explicou o Consultor-Geral da República: “A resolução do Senado Federal em questão alude a denúncias de irregularidades, inclusive corrupção. Mas, quais irregularidades concretamente? Em que setores da administração pública, especialmente?”. E adiantou: “As respostas a tais indagações conformariam a resolução do Senado à exigência constitucional formulada no preceito referido”. E arrematou: “O conteúdo da resolução senatorial em análise permite nela vislumbrar a existência de um vício seminal, que a contamina irremediavelmente, posto que promulgada com absoluto desrespeito à exigência imperativamente formulada no art. 37 do texto constitucional”. Resumindo: o parecer do Consultor-Geral da República afirma ser inconstitucional a Resolução n° 22 do Senado Federal, constituidora de Comissão de Inquérito para investigar irregularidades na administração pública, por não ter como objeto de investigação “fato determinado”, nos termos do art. 37 da Constituição. Adiante acusa o parecer algumas ilegalidades no procedimento da comissão constituída. Uma questão preliminar Preliminarmente, todavia, é preciso examinar uma questão que de logo se apresenta: a da constitucionalidade do parecer do Senhor Consultor-Geral da República. Ou, melhor dizendo: a constitucionalidade do caráter normativo conferido a esse parecer pelo despacho aprobatório nele exarado pelo Presidente da República. Um dos pontos essenciais do sistema constitucional brasileiro é o de que o exame da constitucionalidade das leis e atos normativos em geral pertence à competência do Poder Judiciário. De acordo com o nosso siste ma constitucional de separação das diversas funções do poder do Estado em três ramos distintos, que se equilibram com harmonia e independência, é ao ramo judicial que incumbe à função de conferir, sempre que chamado legalmente a fazê-lo, a conformidade 126
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das leis e atos normativos ao sistema constitucional. Essa função – como as demais – é indelegável. Toda vez que se promulga ato legislativo (na acepção genérica dessa locução) suscetível de ser considerado contrário à legislação de ordem constitucional, a pessoa ou as pessoas legitimadas para tal podem arguir-lhe a inconstitucionalidade perante o ramo judicial do Estado. Toda vez que se pratique ato – de qualquer natureza – fundado em norma legal eivada de inconstitucionalidade, podem também a pessoa ou as pessoas legitimamente interessadas promover-lhe a declaração judicial de inconstitucionalidade. Estabelecida essa verdade como uma premissa jurídica axiomática, tem-se que, contrario sensu, é destituída de todo valor e eficácia jurídica declaração de inconstitucionalidade não emanada de autoridade que não seja a judicial. Por conseguinte, a conversão, operada pelo despacho do Presidente da República, do parecer do Consultor-Geral da República, em ato normativo obrigatório para as pessoas funcionalmente subordinadas à Presidência da República, constitui-se em ato inconstitucional; trata-se de uma usurpação, inequívoca, da função judicial. Somente o poder judicial tem competência para examinar, com fim declaratório formal, a constitucionalidade da resolução objeto do parecer do Consultor-Geral da República. Ao apor o seu “de acordo” no parecer do Consultor-Geral da República, o Chefe do Poder Executivo invadiu a esfera de competência privativa do Poder Judiciário. Além de significar uma usurpação da função judicial somente deferida aos juízes e tribunais, esse ato presidencial, conforme se verifica das suas conclusões, tem o efeito prático – e jurídico, e político – de impedir o funcionamento livre de uma comissão de inquérito do Congresso Nacional, isto é, do Poder Legislativo. O ato normativo do Presidente da República é, pois, duplamente inconstitucional, por usurpar função privativa do Poder Judiciário e por impedir o funcionamento livre do Poder Legislativo. Ora, impedir o livre exercício do Poder Legislativo constitui crime de responsabilidade, tipificado no inciso II do art. 4° da Lei n° 1.079, de 10 de abril de 1950, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento. Crime de responsabilidade em que incidiu, gravemente, o Presidente da República. CPI e Constituição: um caso concreto
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A constitucionalidade da Resolução constitutiva da CPI A afirmação feita pelo Consultor-Geral da República, da inconstitucionalidade da Resolução nº 22 do Senado Federal, se funda na inteligência dada por ele da significação das palavras “fato determinado” constantes do art. 37 da Constituição Federal. A expressão “fato determinado” não tem – simplesmente porque não poderia ter – o sentido restritivo da liberdade do Congresso Nacional de criar comissões de inquérito, que lhe pretende conferir, com sua interpretação interessada, o parecer do Consultor-Geral da República. “Fato determinado” não é, como afirma o parecer, fato concreto individuado em sentido estrito. “Fato determinado” quer dizer fato na sua acepção mais lata, que se confunde com a da palavra questão. Empregou a Constituição a locução “fato determinado” como poderia ter utilizado a locução “questão determinada”. A palavra: “determinado”, foi empregada pelo legislador constituinte por causa da necessidade, sentida na frase, de se adjuntar à palavra “fato” um adjetivo. Já que quis o legislador empregar, embora desnecessária, a palavra “fato”, teve de fazê-la acompanhar de um adjetivo. Não podia o legislador dizer (no art. 37): ... comissões de inquérito sobre fato... e por prazo certo...” Era preciso qualificar a palavra “fato”, uma vez que, repetimos, preferiu o legislador utilizá-la, embora desnecessariamente. O legislador poderia ter dito, por exemplo, em vez de “fato determinado”, “fato irregular”, ou “fato suspeito”, ou “fato chegado ao seu conhecimento”, ou, por que não?, “fato notório”. Ele optou pelo adjetivo-particípio “determinado”: “fato determinado”. Existe, no fundo dessa questão – da conceituação de “fato determi nado” –, um ponto muito importante, que não tem sido devidamente considerado por aqueles que estudaram o assunto comissão parlamentar de inquérito. Esse ponto consiste na impossibilidade constitucional de limitar a faculdade do Congresso Nacional de realizar inquéritos ou investigações necessários ao desempenho de suas funções. Essas funções são basicamente três: representativa, legislativa e fiscalizadora. Para desempenhar a função representativa – do povo e dos Estados-Membros – o Congresso Nacional não precisa fazer inquéritos: não vemos hipóteses 128
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de que a necessidade deles possa ocorrer. Para cumprir o papel de legis lador, o Congresso depende, sim, muitas vezes, de inquérito, mediante os quais procura obter os conhecimentos e informações indispensáveis à sua atuação legiferante. Para fiscalizar os atos e o comportamento geral do Poder Executivo, o inquérito pode ser, e quase sempre o será, um instrumento de trabalho absolutamente necessário ao Congresso Nacional. Impossível, com efeito, fiscalizar sem conhecer, de perto e bem, a realidade em que se move e atua e de que é fautora a administração pública federal. (E mesmo a administração de Estado-Membro pode ser objeto de inquérito parlamentar do Congresso Federal, nos casos de intervenção federal submetida à aprovação congressual). A função fiscal do Poder Legislativo, tendem muitos pensadores políticos modernos a considerá-la mais importante mesmo do que a função estritamente legislativa. A esse respeito, é oportuno citar uma informação que nos fornece WILSON ACCIOLI, no seu, Instituições de Direito Constitucional (Forense, Rio de Janeiro, 1978, pp. 282 e seguintes). Diz ele: “Desde que os Parlamentos começaram a se estruturar e a pôr em funcionamento seus mecanismos internos – e o da Inglaterra é o modelo mais antigo –, surgiu, concomitantemente, o princípio inerente à sua fiscalização em relação aos outros poderes do Estado. Estabeleceu-se, desde logo, que a vigilância do Parlamento se erigiria no elemento fundamental de seu melhor desempenho. Traduzindo, com perfeito descortino, o alcance dessa projeção, disse Pitt, na Câmara dos Comuns, em 1742: “Nós somos chamados o Grande Inquérito da Nação, e como tal é nosso dever investigar em cada escalão da administração pública, seja no estrangeiro ou dentro da nação, para observar que nada tenha sido erradamente realizado. Traçava, nessa época, o grande parlamentar inglês um esboço do que concebia como o verdadeiro papel do Legislativo: o de investigar e prover para que a Administração Pública bem desen volvesse suas atividades.
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Mais adiante, WILSON ACCIOLI transcreve a opinião de SCHWARTZ: “Sem dúvida, poucos aspectos da autoridade congressual têm recebido mais atenção pública do que o poder de investigação. Às vezes, na verdade, é como se o principal papel do Congresso fosse o que, em certa oportunidade, William Pitt, o Moço, designou como Grande Inquérito da Nação. Desde a Segunda Guerra Mundial, no mínimo, o congressista como inquisidor parece que se sobrepôs ao congressista legislador. Dificilmente pode ser negado que o poder de inquirir é uma ajuda essencial à função legislativa.
Inquirir e investigar é, portanto, ação inerente ao Poder Legislativo, exercido pelo Congresso Nacional. É ação ínsita às suas funções essenciais. Poder Legislativo privado do poder de inquirir e investigar é uma contradição essencial e, pois, impensável. Uma das características do sistema constitucional é a de que, sempre que estabelece os fins, fornece os meios. Se o Poder Legislativo tem por fins legislar e fiscalizar, é preciso que ele disponha dos meios indispensáveis à realização desses fins. O poder de inquirir e investigar é de tal modo consubstancia! à existência do Poder Legislativo – e, pois, ao funcionamento do Congresso Nacional – que, nos sistemas constitucionais que há mais tempo o insti tuíram e que mais constantemente o praticam, os sistemas britânico e americano, não existe norma escrita constitucional ou ordinária, que o haja instituído ou que o regule. Nesses dois sistemas, a fonte do direito de investigar é de natureza consuetudinária. Também na Argentina o é. Na França, é lei ordinária a fonte. Brasil, Bélgica e outros países têm por fonte desse direito, norma de caráter fundamental. Informa GALLOWAY, citado por AGUINALDO COSTA PEREIRA (Comissões Parlamentares de Inquérito, Asa Artes Gráficas S/A, Rio de Janeiro, 1948, p. 40), que a primeira Constituição “a prover sobre as Comissões de Investigação” foi, provavelmente, a de Saxe-Weimar, de 1816. Logo em seguida vieram as Constituições da Bélgica, de 1831, da Holanda, de 1848 (que restringia o direito de investigar à segunda Câmara, isto é, ao Senado), e diversas Constituições alemães, como a de Frankfurt, de 1849, e da Prússia, de 1850. 130
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A respeito da falta de previsão, na Constituição dos Estados Unidos, do poder de investigar do Congresso Federal esclarece SCHWARTZ, citado por WILSON ACCIOLI: Aliás, a despeito de sua importância, o poder de investigar é um dos que não estão, expressamente, preceituados na Consti tuição. Num caso relevante, a Corte Suprema se manifestou deste modo: ‘não há preceito expresso investindo cada uma das Casas do Legislativo com poder de investigar e exigir testemunho, com o objetivo de exercer sua função legislativa, deliberada e efetivamente’. Desde a fundação da República, o Congresso tem procedido de acordo com a presunção de que ele possui o poder de investigar, como uma consequência necessária dos poderes que lhe são expressamente delegados. Este poder foi declarado primeiro em 1792, quando a Câmara dos Deputados nomeou uma Comissão especial para investigar o fracasso que aconteceu com o General Saint Clair e seu exército na expedição enviada contra os índios.
A Corte Suprema dos Estados Unidos, ao julgar o caso McGrain v. Daughert, em 1927, assim definiu o poder de investigar do Congresso: Nós somos de opinião de que o poder de investigação – com o respectivo processo obrigatório – é um subsídio essencial e inerente à função legislativa.
É interessantíssimo, e profundamente esclarecedor, observar que, no texto do Anteprojeto de Constituição remetido pelo Governo Provisório de Getúlio Vargas, em 1933, à Assembleia Nacional Constituinte, e que fora elaborado pela chamada Comissão do Itamaraty, presidida pelo Embaixador Afrânio de Mello Franco, constava, do art. 29, § 1°, a seguinte proposta de redação para a norma previsora da faculdade de criar o Poder Legislativo comissões de inquérito: 1° – A Assembleia poderá criar comissões de inquérito; e fá-lo-á sempre que o requerer um quarto dos seus membros”. CPI e Constituição: um caso concreto
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Como se vê, referia-se o Anteprojeto somente e simplesmente a “criar comissões de inquérito” de forma ampla e sem determinação do objeto delas. Era essa uma forma muito mais coerente – sob o aspecto da lógica jurídica – com o princípio dos poderes constitucionais implícitos. Esse princípio permite a interpretação lógica e sistemática e teleológica de que o poder de inquirir e investigar é uma inerência ao poder de legislar e de fiscalizar. A razão estava, pois, com o Constituinte ALIOMAR BALEEIRO (que anos depois seria um dos mais brilhantes juízes do Supremo Tribunal Federal), ao propor, na sua Emenda n° 955, apresentada à Assembleia Constituinte de 1946, a supressão da norma referente ao poder do Congresso de criar comissões de inquérito. A razão estava com ele por causa da implicitude inafastável do poder de inquirir no poder de fiscalizar e de legislar. Relembremos, a propósito, uma lição de RUI BARBOSA, que foi, no Brasil, um estrênuo professor de direitos e um educador profícuo do espírito democrático do nosso povo; disse RUI a respeito dos poderes implícitos na Constituição: “Não são as Constituições enumerações das faculdades atri buídas aos poderes dos Estados. Traçam elas uma figura geral do regímen, dos seus caracteres capitais, enumeram as atribuições principais de cada ramo da soberania nacional e deixam à interpretação e ao critério de cada um dos poderes constituídos, no uso dessas funções, a escolha dos meios e instrumentos com que os tem de exercer a cada atribuição conferida. A cada um dos órgãos da soberania nacional do nosso regímen, corresponde implicitamente, mas inegavelmente, o direito ao uso dos meies necessários, dos instrumentos convenientes ao bom desempenho da missão que lhe é conferida. Nunca a este respeito se disputou, nem mesmo no Brasil, onde até de alfabeto entre homens ilustres constantemente se contende. Querer inferir do silêncio constitucional sobre o uso de uma medida, quando esta medida cabe naturalmente no âmbito de atribuições, cujas funções se quer desempenhar, inferir, digo, daquele silêncio constitucional sobre este poder da forma republicana de Governo (Constituição, no art. 34, § 33) a proibição constitucional dessa 132
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medida, é o mais frágil, mais infantil, mais frívolo dos absurdos.” (Comentários à Constituição Federal Brasileira coligidos e ordenados por Homero Pires, Saraiva e Cia., São Paulo, 1932, pp. 203 e 204.)
Insistiu RUI BARBOSA nesse ponto dos meios que devem corres ponder aos fins constitucionais. “Nos Estados Unidos”, doutrinou ele, é desde MARSHALL que essa verdade se afirma, não só para o nosso regímen, mas para todos os regímens. Essa verdade fundada pelo bom senso é a de que – em se querendo os fins se hão de querer, necessariamente, os meios; a de que se conferiu a uma autoridade uma função, implicitamente lhe conferimos os meios eficazes para exercer essas funções (ob. cit., p. 206). Em outro passo dos seus comentários sobre a nossa primeira Constituição, afirmou RUI BARBOSA: “Sempre se disse que quem quer os fins, quer os meios, que quem confere um mandato, ipso facto, conferido tem as faculdades necessárias à sua execução”. E prossegue RUI: “Pouco importa o silêncio; esse silêncio é comum nas Constituições a todos os meios de execução, a todas as faculdades que ela outorga. Percorrei, uma a uma, todas as atribuições conferidas ao Congresso e ao pé de cada uma delas se levantará a questão: quais os meios pelos quais esta faculdade será exequível? A quem incumbirá defini-la? A quem tocará determiná-la? Por quem será escolhida? E essa escolha, essa determinação, essa definição, quando se trata do Poder Legislativo, é a ele mesmo que toca. Acima dele, nenhuma questão há senão a desta mesma Constituição, que ele vai interpretar, e se acaso no uso desse direito de interpretação a sua autoridade for coibir o direito individual, expressamente consagrado no texto constitucional, o remédio estará nos meios ordinários da justiça” (ob. cit., p. 218). Algum interessado poderá objetar que a invocação do princípio dos poderes implícitos, factível na vigência da Constituição de 1891 (que era omissa a respeito do poder do Congresso de criar comissões de inquérito), não o é agora, quando vige urna Constituição que expressamente prevê essa faculdade do Congresso Nacional. A objeção não procede. O que se pretende, ao invocar-se o princípio dos poderes constitucionais implícitos, é salientar a preponderância desse outro CPI e Constituição: um caso concreto
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princípio, que é o de que a outorga dos fins implica a dos meios, e de que, portanto, o uso dos meios deve ter a amplitude dos fins. Se o Congresso Nacional tem, como um dos seus fins essenciais, o de fiscalizar os atos e o comportamento da Administração Pública federal (e, em alguns casos, da dos Estados-Membros), necessário se torna que ele possa, para bem cumprir essa função fiscal, realizar todos os inquéritos que forem precisos, e com toda a latitude que se lhes revelar indispensável. A compreensão clara dessa ideia tem, como corolário necessário, o de que a Constituição, sob pena de negar-se a si mesma, não pretendeu limitar o direito de investigação do Congresso Nacional, ao empregar a locução “fato determinado”, no art. 37. A palavra fato se utilizou, aí, na sua acepção mais larga possível. Assim, para exemplificar com a atuação desta Comissão de Inquérito, fato determinado não seria apenas, como se deduz do parecer do Sr. Consultor-Geral da República, a intermediação de verba pública denunciada pelo Prefeito de Valença. Se assim fosse, chegar-se-ia ao absurdo lógico de o Senado ter de constituir comissão de inquérito para cada caso de intermediação de verba pública: uma comissão de inquérito para o caso denunciado da Prefeitura de Valença, e tantas comissões quantos fossem os Municípios envolvidos em casos de intermediações de verbas públicas. A absurdez da consequência demonstra a ilogicidade da premissa. É perfeitamente constitucional a investigação do terna genérico “intermediação de verbas públicas”, ainda que a partir de um único caso denunciado publicamente. E se no curso do inquérito outros casos, e outros problemas, surgem, mesmo que de natureza diversa da inicialmente invocada como fundamento e razão da criação da comissão de inquérito, e se ligam uns aos outros, e se imbricam, e se mesclam e entrelaçam, a Comissão deve (e não pode deixar de o fazer) prosseguir no inquérito, até onde for necessário, em busca da verdade dos fatos. A locução “fato determinado” não tem, pois, repitamos, sentido restritivo da liberdade do Congresso de realizar inquéritos com que se instrua e informe sobre o que quer que seja concernente às suas funções legislativa e fiscalizadora. A significação das palavras “fato determinado” é a de tornar necessária a fundamentação do ato criador de comissão parlamentar de inquérito. Só assim se pode interpretar essa locução, que, 134
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se tivesse alguma significação restritiva, se chocaria com o princípio de que o Congresso Nacional pode tudo o que for preciso para realizar os seus fins, com a só limitação dos direitos constitucionais que ninguém, nem mesmo o Congresso Nacional, pode infringir. Não há área alguma, no universo das atividades do Poder Legislativo, a não ser aquela que o legislador constituinte estabeleça, que se subtraia à investigação competente ao Legislativo. Fato determinado Voltemos a enfrentar a conceituação possível de “fato determinado”, locução constante do texto da Carta Constitucional atual. Comentando esse ponto da Carta Constitucional de 1967, PONTES DE MIRANDA, diz: “A investigação somente pode ser sobre fato determinado, ou, em consequência, sobre fatos determinados que se encadeiem, ou se seriem”. Esse comentário não esclarece muito, mas o faz de modo bastante a se entender por “fato determinado”, possivelmente também, uma série de fatos encadeados. Ou entrelaçados, ou imbricados, acrescentemos por dever de indução lógica. O efeito do entrelaçamento ou da imbricação de uma pluralidade de fatos não pode ser diferente, juridicamente, do encadeamento ou da sedação. Se se entrelaçam, ou se imbricam os fatos, também eles, no conjunto que perfazem podem ser objeto de investigação parlamentar. Examinando essa questão, o Dr. EDGAR LINCOLN PROENÇA ROSA, em parecer há pouco produzido no âmbito desta Assessoria, de que é diretor, assim comentou as palavras de PONTES DE MIRANDA: “Esmiuçando-se a lição do saudoso mestre, podemos tecer as seguintes considerações: 1. Quase a totalidade das palavras pertencentes ao léxico de qualquer língua é plurívoca, isto é, possui mais de um sentido. Neste caso encontra-se a palavra fato. Ela pode significar um acontecimento específico, mas igualmente significa aquilo que tem existência real, que simplesmente é. No primeiro dos significados, trata-se de algo concreto, mas singular. No segundo, estamos diante de um sentido concreto, porém genérico. CPI e Constituição: um caso concreto
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O que teria pretendido o constituinte com a expressão “fato deter minado”? Um fato qualquer, com especificidade singular, um acontecimento ou, além disso, uma determinada realidade existente num certo momento da vida constitucional? A nosso ver, ambos os sentidos estão presentes na norma constitucional, com maior acento neste último. 2. Quando PONTES DE MIRANDA, alude ao “fato da vida constitucional”, quer ele se referir a um acontecimento concreto (“in concreto”), com relevância e repercussão na ordem jurídica constitucional do País e sob seus efeitos. Ora, é muito mais relevante, para os efeitos inerentes a essa ordem constitucional, uma realidade multifacetária, posta sob suspeita pública com a designação genérica, por exemplo, de “corrupção”, do que um certo acontecimento específico, por exemplo, fraude praticada por alguém. Com esse entendimento, aqui apenas delineado, não é admissível sequer a suspeita de inconstitucionalidade do ato normativo que criou esta comissão. A prevalecer o ponto de vista que perfilhe a inconstitucionalidade desse ato teríamos que reconhecer que foram inconstitucionais, numa pequena amostragem, as seguintes Comissões Parlamentares de Inquérito: 1) a que investigou a execução do Acordo Nuclear Brasil– República Federal da Alemanha (Resolução n° 69, de 1978); 2) a destinada a investigar denúncias de atos de corrupção que teriam sido praticados na esfera da Administração Direta e Indireta da União (Requerimento n° 110/80); 3) a instituída para investigar, estudar, debater e oferecer conclusões acerca da problemática do controle da natalidade e do planejamento familiar no País (Resolução n° 36, de 1980). Muito lúcida a interpretação feita pelo Dr. EDGAR LINCOLN PROENÇA ROSA, segundo a qual a expressão “fato determinado” pode significar “uma determinada realidade existente num certo momento da vida constitucional”. Ela traduz, com outras palavras, a nossa interpretação de que por “fato determinado” se deve entender, 136
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em acepção lata e mais conforme a amplitude das competências do Congresso Nacional (que são as mesmas das suas Comissões de Inquérito), questão ou tema determinado. O particípio-adjetivo determinado tem, nesse contexto, sentido oposto de “qualquer”; e é empregado tão-só em virtude da necessidade de não se deixar o substantivo fato abandonado, desacompanhado, na frase, de um adjetivo vinculatório do substantivo a que acede. A locução “fato determinado” significa antes uma necessidade de fundamentação da criação de uma determinada comissão congressual de inquérito, do que uma restrição da matéria objeto de investigação. Que assim deve ser entendida essa locução prova-o a posição assumida pelo constituinte ALIOMAR BALEEIRO – um dos que mais se salientaram na Assembleia de 1946 pelo seu valor intelectual e pela sua acuidade jurídica – e que se traduziu na Emenda n° 955. Essa emenda é um documento extraordinário, que coloca com precisão a questão das comissões congressuais de inquérito. Que pretendeu a Emenda 955, de BALEEIRO? Nada menos, atenção! Que a supressão, no texto constitu cional, da norma referente à criação de comissões de inquérito. Veja-se a justificação da emenda: “É inteiramente supérflua a disposição porque, no desempenho de suas funções, ambas as Câmaras podem recorrer aos inquéritos sobre quaisquer fatos, determinados ou não (destaque nosso), assim como a todo e qualquer meio idôneo, que lhe não seja vedado por cláusula expressa, ou implícita, da Constituição. Pouco importa que disposição análoga houvesse figurado na Constituição de 1934: não era menos supérflua, nem a única a merecer essa qualificação naquela Carta de longo curso e curta vida. Tais comissões de inquérito sempre e sempre foram criadas pelas Câmaras inglesas e norte-americanas com poderes tão grandes, que podem trazer compulsoriamente à sua presença, prender e fazer punir “por desacato” perante a Corte de Justiça de Co lúmbia, os indivíduos recalcitrantes. Nenhum dispositivo consti tucional, ou da emenda à Constituição, entretanto, julgou-se ne cessário para esse fim. Apenas uma lei, de 1853, deu competência CPI e Constituição: um caso concreto
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à Corte de Colúmbia para o julgamento dos particulares, que se rebelassem contra tais medidas, ou as dificultassem”.
Essa emenda de ALIOMAR BALEEIRO parte, inequivocamente, da premissa de que, sendo as funções fiscal e inquisitória inerentes ao Poder Legislativo, desnecessário se torna expressar, no texto da Constituição, algo que é uma obviedade. A emenda não foi aprovada. Por quê? Só pode ter sido por causa do receio, que tem tradicionalmente o legislador (mesmo o constituinte) brasileiro, de não explicitar, explicitar sempre e em todos os casos, ainda quando a explicitação não seja senão uma redundância inútil, uma superfetação. O legislador brasileiro não confia senão na norma escrita: e isso lhe vem das circunstâncias e características da nossa formação milenarmente assentada na prevalência da forma escrita da regra jurídica. Ao rejeitar a emenda, BALEEIRO não quis a Assembleia Constituinte de 1946, estabelecer uma limitação normativa à faculdade do Congresso Nacional de realizar inquéritos. O que ela intencionou foi tão-só, repetimos, explicitai– essa faculdade, de modo que não ficasse deferida à prática da atividade parlamentar a tarefa de extrair (pelo método da construção, com a colaboração inevitável e indispensável do poder judicial) do sistema constitucional o direito, essencial à função legislativa, de proceder a inquéritos, mediante comissões, sempre que deles sentisse necessidade o legislador. Salientamos, na transcrição do texto justificativo da emenda (nº 955) BALEEIRO, o pormenor, cheio de significações de que, para BALEEIRO, nos inquéritos a quem podem recorrer as Câmaras legislativas podem objetivar – atenção! “quaisquer fatos”, e esses fatos podem ser – atenção! –”determinados ou não”. Nenhuma limitação temática, como se vê. E não poderia ser diferente: o inquérito por meio das suas comissões é o único instrumento de cognição direta da realidade (que não se compõe de fato determinado, mas de fatos, determinados ou não) de que dispõe o Congresso Nacional. Essa cognição não pode ser parcial ou seccionada.
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A experiência brasileira É muito elucidativa a experiência construída pelo Congresso Nacional através dos quase cem anos da sua existência (não deduzidos os períodos de fechamento por ato ditatorial, como o de 1930, de 1937 a 1946, e de 13 de dezembro de 1968 a 1969). Essa experiência revela uma amplitude temática, significativíssima, na criação ou nas tentativas de criação de comissões de inquérito. Devemos salientar que a Constituição de 1891, não continha norma previsora da criação de comissões de inquérito. Portanto, a experiência da Primeira República foi de certo modo consuetudinária, embora fundada, é evidente, no sistema constitucional globalmente interpretado. Vejamos. Na sessão de 20 de agosto de 1895, o deputado Vergne de Abreu requereu a eleição de uma comissão de inquérito que, depois de examinar “severamente a situação das companhias estrangeiras de seguros de vida, tendo em vista os seus livros, contas, balanços e todos os documentos que julgar conveniente, proponha as medidas legislativas tendentes a regularizar o seu funcionamento e a acautelar os interesses dos segurados”. Onde o fato, ou os fatos determinados? Ao contrário: investigação genérica. Em 15 de junho de 1896, o deputado José Carlos pediu a criação de uma comissão de inquérito sobre irregularidades diversas em várias alfân degas do país: contrabandos, desvio dos dinheiros públicos, abandono de várias alfândegas pela administração. Qual, aqui, o fato determinado? O requerente apontou fatos, mas não os determinou. Em 26 de outubro de 1905, o deputado Barbosa Lima requereu a eleição de uma comissão de nove deputados, para “rigoroso inquérito” sobre “as condições da gestão oficial do Banco da República por funcio nários nomeados pelo Poder Executivo no quinquênio 1900-1905 e indagar das condições de segurança e idoneidade moral da Casa para onde se quer mandar, além de novos suprimentos avultados do Tesouro, os saldos do mesmo Tesouro”.
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Não era um assunto genérico, sem fato ou fatos determinados, o dessa comissão requerida pelo deputado Barbosa Lima? Veja-se a generalidade e quase vaguidade do objeto da comissão de inquérito requerida, em 31 de maio de 1916, pelo deputado Mário Hermes, com o fim de “conhecer e apurar o grau de eficiência das forças de mar e terra”. O requerimento foi aprovado em 06 de junho. Em 22 de setembro de 1916, o deputado Vicente Piragibe requereu, após uma série de consideranda, a nomeação de comissões especiais de três membros cada uma “para examinarem a legitimidade da despesa e a exatidão da receita das repartições federais na Capital e nos Estados”. Qual o fato ou os fatos determinados? Em 29 de novembro de 1927, o deputado Azevedo Lima requereu à Câmara a nomeação de uma Comissão especial de cinco membros “a fim de proceder a inquérito sobre as condições dos serviços postais da República e, especialmente, sobre a situação de conforto material dos serventuários da Repartição Geral dos Correios e bem assim sobre o estado sanitário no meio em que os mesmos operam”. Assunto genérico. No regime da Constituição de 1934, depois, portanto, que passou a constar, desnecessariamente embora, no texto constitucional, previsão sobre criação (apenas pela Câmara dos Deputados) de comissões de inquérito, houve alguns requerimentos de formação dessas comissões. Na sessão de 16 de janeiro de 1935, o deputado João Simplício requereu a nomeação de “uma comissão parlamentar de inquérito sobre as condições da marinha mercante brasileira, subvencionada ou não, quanto: 1) À situação financeira das empresas brasileiras que exploram os serviços de navegação costeira e fluvial e internacional; 2) Ao aparelhamento material de cada uma delas, ao estado de suas frotas e das unidades que as constituem; 3) Às exigências vigentes relativas à composição e número de suas tripulações; 4) Aos entraves existentes nos serviços portuários e de navegação; 5) Às exigências das tripulações e reclamações dos armadores”. No conjunto dos itens, uma generalidade extensa. 140
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Em 02 de abril de 1937, o deputado Adalberto Corrêa, com outros três colegas, requereu a nomeação de duas comissões de inquérito: uma se intitulou “Comissão de Inquérito para tomar conhecimento das investigações secretas promovidas pela Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo”; e a outra, “Comissão de Inquérito na Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo”. Assuntos genéricos. Sob a Constituição de 1946, cresceu o número de comissões parlamen tares de inquérito. Uma publicação do Departamento de Comissões da Câmara dos Deputados, de 1983, relaciona todas as comissões de inquérito formadas na Câmara, entre 1946 e 1981: quase duzentas. Impressiona, na leitura das questões objetos das investigações verificar o caráter de generalidades dessas questões. Apontemos alguns exemplos. A primeira Comissão de Inquérito criada na Câmara dos Deputados, após a promulgação da Constituição de 18 de setembro de 1946, foi sobre “atos delituosos da Ditadura”. Requerida pelo deputado Plínio Barreto, teve nove relatores parciais. Não concluiu os trabalhos. Atos delituosos da ditadura: uma questão de generalidade extensa. A segunda CPI foi sobre “a situação do porto de Santos”. Onde o fato determinado? E com objetos de investigação genéricos vieram outras: CPI sobre o Departamento Nacional do Café; CPI para apurar a participação de autoridades, funcionários e agentes públicos da União, Estados e Prefeitura do Distrito Federal, notadamente os do Ministério do Trabalho, em atividades subversivas; CPI para investigar informações constantes da carta-manifesto do senhor Getúlio Vargas; CPI para estudar a crise do café, suas origens e repercussões e as medidas necessárias para enfrentá-la; CPI para apurar irregularidades ocorridas na administração do Território do Rio Branco; CPI para apurar a discriminação de que estão sendo vítimas os nordestinos que emigram para o sul do país; CPI para investigar as causas e indicar os meios eficazes para combater o encarecimento do custo de vida no país; CPI para proceder a investigações sobre o problema de energia atômica no Brasil; CPI destinada a apurar a influência do poder econômico, corrupção, fraudes, violências e demais irregularidades praticadas no processo eleitoral, em todo o território nacional; CPI para investigar todos os aspectos da economia açucareira nacional; CPI para investigar aspectos referentes à CPI e Constituição: um caso concreto
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implantação da indústria automobilística nacional; CPI para investigar as condições da construção de Brasília, organização e regulamentação de seus serviços públicos; CPI para apurar responsabilidades e denúncias sobre contrabando em todo o território nacional; CPI para estudar o problema do ensino universitário no Brasil; CPI para apurar o comportamento das comissões de sindicâncias e de inquérito, constituídas pelo Presidente da República, Sr. Jânio Quadros; CPI para investigar o comportamento das indústrias farmacêuticas no país; CPI para apurar irregularidades no sistema educacional de Brasília; CPI para analisar e investigar fatos ligados ao extinto território do Acre; CPI para investigar problemas relacionados com o café; CPI para investigar as atividades da indústria cinematográfica nacional e estrangeira; CPI para investigar a situação do sistema bancário nacional; CPI para apurar as causas do impedimento da consolidação de Brasília como capital do País e sugerir medidas que devam ser adotadas para a solução do impasse em que se encontra a administração pública, em decorrência do atual funcionamento da capital federal; CPI para averiguar o sistema de vendas a crédito; CPI para investigar a situação da indústria do fumo; CPI para apurar as causas determinantes dos aspectos negativos da política de minérios; CPI para apurar as falhas dos órgãos do Governo Federal na execução dos planos de valorização da região nordeste; CPI para investigar, em todo o território nacional, as repercussões sobre a economia popular da exploração de carnes; CPI para apurar a realidade brasileira quanto à pecuária; CPI destinada a examinar a situação do ensino superior no Brasil. E assim por diante. Questões genéricas. Nenhum fato determinado na acepção errônea do parecer do Consultor-Geral da República. Dentre as comissões de inquérito criadas pelo Senado Federal, já fizemos menção, atrás, a algumas, cujo objeto de investigação apresenta caracteres de generalidade extensa. Como se vê, a prática parlamentar brasileira tem ensejado uma compreensão bastante lata do que possa ser objeto de inquérito por comissão congressual. E não poderia ser diferente, por força da necessidade imperativa que tem o Congresso Nacional de inquirir para conhecer e para fiscalizar.
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Os demais itens do Parecer Saulo Ramos Agora que concluímos a análise da questão da constitucionalidade da Resolução n° 22 do Senado, que criou a Comissão Parlamentar de Inquérito para identificar responsabilidades no setor da Administração Pública, em decorrência de qualquer tipo de corrupção, e para sugerir medidas capazes de estabelecer controle e oferecer condições para a moralização da Administração pública, examinemos os demais itens do Parecer do Consultor-Geral da República. Item n° 8. Autonomia da investigação parlamentar Correta a afirmação do parecer de que “o inquérito parlamentar, reali zado pela CPI, constitui procedimento jurídico-constitucional dotado de autonomia. Em consequência, a existência de investigações desenvolvidas pela autoridade policial (inquérito policial), ou mesmo a instauração de processo penal perante o Judiciário, ainda que referentes aos mesmos fatos objeto da comissão legislativa, não inibem nem impedem a realização do inquérito parlamentar”. Item n° 9. Os poderes da CPI Não procede a afirmação do parecer do Consultor-Geral da República de que a solicitação, pela CPI, de informações ao Poder Executivo deve ser feita por intermédio da Mesa da Casa a que pertence a CPI – neste caso, por meio da Mesa do Senado. A melhor inteligência do art. 30, parágrafo único, letra c, da Constituição Federal, não autoriza essa afirmação. Os pedidos de informação a que se referem à letra c do parágrafo único do art. 30 da Constituição Federal são os que se fazem em Plenário. Evidente que esses pedidos não podem ser remetidos ao Poder Executivo senão pela Mesa da câmara legislativa, a Câmara dos Deputados ou o Senado, em cujo plenário foram feitos. Nas comissões congressuais de inquérito, a situação é bem outra. Essas comissões têm uma autonomia de ação que não pode ser negada, sob pena de se lhes violar a própria natureza. Uma comissão congressual (ou parlamentar) de inquérito é a própria câmara em miniatura, como já se observou. Ela tem todos os poderes e prerrogativas da Câmara a CPI e Constituição: um caso concreto
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que pertence, e mais: todos os poderes e prerrogativas do Poder Legislativo. A Mesa da Comissão Congressual de Inquérito é, no âmbito de sua atuação, a mesma Mesa da câmara a que pertence e que representa. Por tanto, as solicitações de informações da Comissão se fazem por intermédio da Mesa, ou seja, do Presidente da Comissão, tal como se fossem feitas pela Mesa, ou seja, pelo Presidente da Casa. IVAIR NOGUEIRA ITAGIBA tem uma lição adequada sobre esse ponto: “As Comissões Parlamentares de Inquérito não são mandatárias da Assembleia que as constituiu. São a própria Assembleia no exercício das funções que lhes competem. Constituídas no Senado ou na Câmara, dentro de suas atribuições, elas representam esta ou aquele na sua totalidade. A Comissão Parlamentar de Inquérito, desta sorte, não pode ser havida por órgão distinto do Congresso. Criada pelo Senado é o próprio Senado. Instituída pela Câmara, não é senão a Câmara. Embora funcione com um número reduzido de membros, é sempre representativa da unidade total. A totalidade que representa é tanto mais expressiva quanto, por força de preceito constitucional, ela se forma de elementos de todos os partidos, na proporção de sua representação. ...a Comissão de Inquérito de uma Câmara não é uma dependência dessa Câmara. É consoante se manifestou o eminente ministro LUÍS GALLOTTI, a representante da Câmara na tarefa que lhe é cometida. Dentro de seus encargos, ela fotografa, retrata, reproduz a imagem da Câmara; possui o mesmo prestígio, usa dos mesmos poderes, goza da mesma autonomia da Assembleia a que pertence. Poder-se-á dizer com DURANDO (“Inter pretazione e Comento della Costituzione Italiana”, Turim, 1948) que a Comissão de Inquérito é mesmo uma “piccola camera”. A Câmara (ou o Senado) concentra-se, consubstancia-se, con verte-se, resume-se, reduz-se na Comissão de Inquérito, à qual são conferidos amplos poderes, de origem constitucional, para a realização dos trabalhos que lhe foram designados.” (“Aperfei çoamento do Estado Democrático”, Revista Forense, n° 151, pp. 62/63). 144
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Poder-se-ia alegar que, admitido que se faça pela Mesa da Comissão o pedido de informações ou de documentos etc.; esse pedido deveria ser encaminhado ao destinatário por intermédio do Presidente da República, nos casos em que não fosse o mesmo Presidente da República o destinatário do pedido. Também nesse ponto se impõe a interpretação de que o pedido de informações formulado por Comissão Congressual de Inquérito não é o mesmo a que se referem à letra c do parágrafo único do art. 30 da Constituição Federal. Não é o mesmo. Tem outra natureza e outros fins. Emana de um órgão que, no exercício de suas atividades e na busca dos seus fins, necessita de uma liberdade de ação que lhe possibilite eficiência e eficácia. Assim como o Judiciário não precisa da intermediação do Presidente da República para requisitar informações e documentos pertencentes ao Executivo, também as Comissões Parlamentares de Inquérito podem dirigir-se diretamente às autoridades administrativas a fim de lhes solicitar informações e documentos. Que os pedidos de informações referidos na letra c do parágrafo único do art. 30 da Constituição Federal são coisa distinta das solicitações de informações e documentos feitas por comissão parlamentar de inquérito, prova-o a distribuição tópica dessas matérias no Regimento Interno do Senado Federal. Esse Regimento regula o ponto dos requerimentos de informações no art. 239, Seção II – “Dos Requerimentos”, integrante do Título IX – “Das Proposições”. Quer dizer: o requerimento de informações é previsto, no Regimento do Senado, como uma das espécies de proposições que se pode fazer nessa Câmara legislativa do Congresso Nacional. A requisição de informações ou “documentos de qualquer natureza”, por parte de comissão parlamentar de inquérito, está prevista no art. 173, localizado no capítulo (XIV) “Das Comissões de Inquérito”, que integra o título (VI), “Das Comissões”. O Regimento do Senado regula, como se vê, em lugares diferentes e de forma diferente, dois institutos de direito constitucional e parlamentar que são, também, distintos um do outro. Desnecessário sublinhar, aqui, a posição dos regimentos das câmaras legislativas no quadro da hierarquia das leis. Reportemo-nos ao estudo feito por PAULO BROSSARD, sob o título “Da Obrigação de depor perante Comissões Parlamentares de Inquérito criadas por AsCPI e Constituição: um caso concreto
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sembleia Legislativa” (Revista de Informação Legislativa, n° 69, pp. 22 e segs.). Diz o jurista gaúcho: “Mas o certo é que o Regimento é a lei do Poder Legislativo”. Daí por que escreve ESMEIN: Il en résulte qu’actuellement le règlement de chague chambre est le complément indispensable de la Constitution; il en est la mise en oeuvre en ce qui concerne l’action des Assemblées. Il joue um rôle capital dans notre organisme constitutionnel “.
Tanto é isto certo que, consoante a advertência de ROGER BONNARD, “on connaitrait incomplement ces régimes si on faisait abstraction des règlements parlementaires” (Les Règlements des Assemblées Legislatives, p. 5). Assim, se é certo que o Regimento não é lei no sentido comum do termo, isto é, não é votado por ambas as Câmaras e sancionado pelo titular do Poder Executivo, nem por isto deixa de ser lei, embora pela natureza das coisas ela tenha dentro do Poder Legislativo a sua gênese e o seu fim. É que sempre se reconheceu ao Poder Legislativo, sem a intervenção de nenhum outro, a elaboração e adoção da sua própria lei, da lei que o disciplina e regula as suas atribuições e os seus órgãos. Analisando a natureza jurídica do Regimento das Câmaras, acentuam BARTHLEMY ET DUEZ: “la raison de ce qu’ils posent des règles générales, abstraites, impersonelles, est incontestablement un acte de nature legislative, par son contenu”, embora sob o ponto de vista formal a lei seja a manifestação da vontade concordante das duas Câmaras (Traité de Droit Constitutionnel, 1926, p. 482). Daí por que nota DUGUIT: par la force des choses les règlements des Assemblées politiques contiennent souvent des dispositions très importantes, qui pourraient très justement trouver leur place dans la loi constitutionnelle” (p. cit., v. IV, § 22, p. 270).
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Mas, nenhuma lição é mais esclarecedora que a de RUI BARBOSA. O jurisconsulto sem rival, num documento solene, lido perante o Senado, acentuou incisivamente: “não há nenhuma diferença essencial entre a lei sob a sua expressão de regimento parlamentar e a lei sob a sua expressão de ato legislativo. As instituições que debaixo destas duas formas se consagram apresentam em comum o caráter de império e inviolabilidade a respeito dos entes, individuais ou coletivos, a cujos atos e relações têm por objeto servir de norma. Espécies de um só gênero, entre si, não se distinguem uma da outra senão na origem de onde procedem, no modo como se elaboram, e na esfera onde têm de imperar; porque a lei é o regimento da nação, decretado pelo seu corpo de legisladores, e o regimento, a lei de cada um dos ramos da legislatura por ele ditado a si mesmo. Mas entre as duas espécies a homogeneidade se estabe lece na substância, comum a ambas, do laço obrigatório, criado igualmente num caso e no outro, para aqueles sobre quem se destina a imperar cada uma dessas enunciações da legalidade”. (“Comentários à Constituição”, v. II, pp. 32 e 33; v. III, p. 266).
Mas se o Regimento, que completa a Constituição e é elemento necessário até para o conhecimento do direito constitucional, é a lei do Poder Legislativo, é lógico que os institutos parlamentares sejam disciplinados e regulados por ele, e não por leis, sujeitas à sanção e ao veto de outro poder. Com efeito, salienta FRANCISCO CAMPOS: “a fonte quase exclusiva do direito parlamentar são os regulamentos internos das assembleias. Por estes regulamentos, as casas do Parlamento desenvolvem, interpretam e constroem as regras constitucionais relativas ao seu funcionamento, assim como exercem a função, sobre todas soberana, de criar o direito próprio ao campo especial da sua atividade, como é o caso, por exemplo, do direito penal disciplinar, complexo de relações, de sanções e de restrições que a câmara, por sua própria autoridade, institui como legislador e aplica como juiz” (Direito Constitucional, 1942, p. 70). CPI e Constituição: um caso concreto
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O “arquivamento sumário dos pedidos de informação dirigidos pela CPI, diretamente, aos Ministros de Estado ou a qualquer outro órgão ou agente do Poder Executivo”, recomendado pelo parecer do Consultor-Geral da República, constituiria, portanto, crime de responsabilidade. 10. Incidentes do inquérito parlamentar Nesse item do seu parecer, o Consultor-Geral da República afirma: “Indiciados: não podem ser compelidos a comparecer perante qualquer comissão de inquérito. E, se eventualmente comparecem, os indiciados não estarão obrigados a depor. Gozam, na verdade, do privilégio contra a autoincriminação (nemo tenetur se detergere)”. Preliminarmente, não existe, no inquérito parlamentar, a figura do indiciado. Observa muito bem o jurista JOÃO DE OLIVEIRA FILHO, “Inquéritos Parlamentares”, Revista de Informação Legislativa, junho de 1964, pp. 6 e segs.: “É incorreção da Lei n° 1.579, de maio de 1952, referir-se a indiciados, como o fez no art. 2° – “ouvir indiciados”, ou no art. 3° “indiciados e testemunhas”. O inquérito parlamentar não visa a instruir ação judicial penal, embora os elementos de informação por ele recolhidos possam ser aproveitados como elementos de prova em ação penal eventualmente proposta pelo Ministério Público. Inquérito parlamentar é processo autônomo, que nasce e termina no âmbito da câmara legislativa – ou do Congresso Nacional – que o realize. Não havendo indiciados, em inquérito parlamentar, o que há são testemunhas. Todas as pessoas que deponham em inquérito parlamentar o fazem na condição de testemunhas. E, nessa condição, não podem deixar de comparecer. Em nenhuma hipóse uma pessoa, convocada regularmente para depor em inquérito parlamentar, pode deixar de comparecer. Diz o parecer: “Testemunhas: as testemunhas, se faltosas ou recalcitrantes, poderão ser compelidas, mediante intervenção do Poder Judiciário, a comparecer perante a CPI. Observe-se que a CPI não dispõe de poderes para ordenar, ex propria auctoritate, a condução coercitiva de testemunhas que se recusem a comparecer”. Mais adiante: “Assinale-se que a CPI deverá, necessariamente, em tal hipótese, requerer à autoridade judiciária competente a efetivação da medida constritiva. Não 148
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lhe será lícito, portanto, em face da própria literalidade do texto legal, solicitar, de imediato, a força policial. A CPI não pode usar de meios coercitivos senão quando autorizado em lei”. O parecer não diz a verdade. A experiência das comissões de inquérito, nos países onde elas nasceram e se sedimentaram, revela que é da natureza das comissões parlamentares de inquérito o poder de compelir, mesmo com o uso da força, se preciso, as testemunhas a comparecer. Ao contrário do que afirma o parecer, as comissões parlamentares de inquérito têm poderes para ordenar, ex propria auctoritate, a condução coercitiva de testemunhas que se recusem a comparecer. As lições a esse respeito são numerosas e unânimes. Vamos relembrar algumas. PAULO BROSSARD, no trabalho já citado aqui, informa: Igualmente, sempre se considerou que no poder de criar comissões de inquérito estão contidos todos os necessários ao regular funcionamento delas, segundo a regra de que quem quer os fins confere os meios hábeis à sua persecução. Daí por que, sem prejuízo das sanções criminais, cominadas em lei e aplicáveis pelo Poder Judiciário, invariavelmente se reconheceu às Câmaras o poder de obrigar o comparecimento de testemunhas e indiciados, assim como o de punir, no exercício do seu poder de polícia, as testemunhas recalcitrantes e quantos desacatarem a Comissão. A respeito ensina PONTES DE MIRANDA que tal poder “é inerente à independência do Poder Legislativo. Cabe no seu poder de policiamento e de edição de regras jurídicas regimentais” (op. cit., vol II, p. 268; cf. ALIOMAR BALEEIRO, loc. cit. e Diário de Notícias, Rio, 12-7-53, artigo intitulado “As Testemunhas e o Inquérito Parlamentar”; Estado do Rio Grande, 13-7-53; AGUI NALDO COSTA PEREIRA, op. cit., p. 137; OTACÍLIO ALECRIM, Rev. Forense, v. 151, pp. 34 e segs.; GOIS DE ANDRADE, idem, pp. 23 e segs.). MARSHALL EDWARD DIMOCK, autor de conceituada monografia, acentua que “sem o poder de punir a desobediência, a faculdade de investigar seria praticamente vazia de todo signi CPI e Constituição: um caso concreto
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ficado – it need hardly be suggested that stripped of the power to punish for contempt Congress assertion of a power to investigate would be practically void of any real significance” (Congressional Investigating Committees, 1929, p. 121; MATEWS, The American Constitutional System, 1940, pp. 109 a 112; ARTURO LERENA ACEVEDO, Comisiones Parlamentarias de Investigación, 1946, p. 23; LUIGI BIANCHI d’ESPINOSA, no Comentario Sistematico alla Costituzione Italiana, diretto da Calamandrei e Levy, 1950, v. II, p. 44). Síntese erudita e exata da doutrina, extraída de jurisprudência da Suprema Corte, traçou OTACILIO ALECRIM no artigo “As Comissões Congressuais de Investigação no Regime Presiden cialista”: Naturalmente, pode o Congresso, para intimar ou punir, utilizar-se igualmente da via indireta suplementar da autoridade judiciária competente, retendo sempre, porém, a via direta, que lhe pertence como um meio adequado ao seu próprio poder disciplinar de autopreservação. No fundo, o poder do Congresso de disciplinar com multa ou prisão o desacato, que outra coisa não é a contumácia da testemunha, não se propõe originariamente a aplicar a pena, mas, em verdade, a impedir a desobediência como obstrução ao seu funcionamento no desempenho do seu poder constitucional de investigar. Por isso, não seria admissível que tais poderes jurídicos (investigar e punir) tivessem suas normas de procedimento sujeitas à aquiescência ou negativa do Poder Executivo, incluído também como está no campo da ação investigadora do Congresso. No entanto, nos Estados Unidos, aonde (Constituição, art. 1.°, Secção 5.a, n° 2) fomos colher a fonte positiva desse marcado poder de jurisdição, é a própria Corte Suprema, o cume da cordi lheira judiciária, quem acorre, vez por outra, para reafirmá-lo inconcusso, e mais, para dizer que as medidas dele provindas, delas, em si mesmas, puramente como enunciações da legalidade interna, não podem conhecer os tribunais. De modo que, desde o “test-case” de 1880 (Bilbourn v. Thompson) até os julgados mais recentes (United States v. Josephson, 1947, e United States v. Lawson and Trumbo, 1950), é cânone da ju150
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risprudência constitucional norte-americana que a intimação (sub poena) e a punição por desacato (punishment for contempt) são, originariamente, atribuições do Congresso, e, quando, por motivos de conveniência, deferidas à justiça penal, são consideradas a título meramente suplementar da ação direta privativa da entidade coletiva congressual. O poder de investigar (função política) e, concomitantemente, o poder de punir (função disciplinar) são contemporâneos da própria instituição do Congresso (função legislativa), cujas investigações, no voto lúcido do Juiz FRANKFURTER (Tenney v. Brandhove, 1951), são um instituto (an established part) do governo representativo.” (Revista Forense, v. 151, p. 38.)
Mais adiante, afirma ainda PAULO BROSSARD, atual Ministro da Justiça: “Ninguém ignora que, de lege ferenda, a intimação das teste munhas poderia ser feita exclusivamente pela Comissão, seja através do seu secretário, seja através da polícia da Assembleia. A respeito os precedentes são numerosos e universais. Aliás, em regra, as intimações são realizadas pela Comissão e somente quando a testemunha, regularmente intimada, se recusa a comparecer e prestar seu depoimento ou revelar documentos, é que as Comissões recorrem ao aparelho judiciário. É um recurso subsidiário de que se valem: foi assim no “caso do arroz”, do qual resultou o processo-crime contra uma testemunha recalcitrante, que desrespeitou ostensivamente a Comissão de Inquérito então em funcionamento. Quando isto ocorre, a Comissão, nos termos do art. 54, § 3°, do Regimento (que reproduz a norma do art. 3°, parágrafo único, da Lei n° 1.579), solicita ao Poder Judiciário seja a intimação renovada por oficial de justiça, nos termos do art. 218 do Código de Processo Penal”.
Acrescentemos o seguinte:
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É relativamente escassa ainda a experiência brasileira em matéria de comissões parlamentares de inquérito. No Império, não as houve. Na Primeira República, houve poucas: e as que existiram tiveram atuação muito pequena. Elas tiveram algum incremento a partir da Constituição de 1934 e principalmente a partir da de 1946. No regime constitucional de 1946 criaram-se e funcionaram numerosas. Mas a sua atuação não ensejou senão uma pouca construção jurídica, por parte delas, e pouquíssima por parte dos tribunais. Uma pesquisa que fizemos da jurisprudência produzida no Supremo Tribunal Federal revelou que, dos possíveis problemas jurídicos da atuação de uma comissão parlamentar de inquérito, raros foram os que chegaram ao conhecimento da nossa corte judicial máxima. Por conseguinte, o fato é que o direito parlamentar, nessa matéria, é um direito construendo. A prática das comissões parlamentares de inquérito, com as soluções que for dando aos problemas acaso surgidos, é que irá formando uma compreensão, um pensamento jurídico a respeito dessa instituição, que na Europa – mormente na Inglaterra – é antiquíssima, nos Estados Unidos existe desde o período colonial e, no Brasil, embora admitida doutrinalmente desde o Império, ainda não se sedimentou. O Regimento do Senado (parágrafo único do art. 177), além da Lei n° 1.579, de 18 de março de 1952 (que dispõe sobre as comissões parla mentares de inquérito), que é redundante do Regimento desta Casa e, por isso, desnecessária, conforme observou com muito acerto PAULO BROS SARD (Revista de Informação Legislativa, n° 69, p. 25), manda aplicar aos atos processuais das comissões parlamentares de inquérito, subsidiariamente, o Código de Processo Penal. Este preceitua, no art. 218: Art. 218 – Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar a autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.
Em seguida:
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Art. 219 – O juiz poderá aplicar à testemunha faltosa a multa prevista no art. 453, sem prejuízo do processo penal por crime de desobediência, e condená-la ao pagamento das custas de diligência.
Nos termos, pois, do quadro das normas legais aplicáveis ao caso de testemunha recalcitrante ou faltosa, o presidente de comissão parlamentar de inquérito tem os poderes próprios de um juiz de direito. Verificando que testemunha regularmente intimada não compareceu à audiência marcada, e incorreu, pois, no crime de desobediência, o juiz de direito poderá requisitar à autoridade policial que traga a testemunha faltosa, ou que um oficial de justiça a conduza à sua presença, para ser inquirida: o oficial de justiça, no cumprimento de sua tarefa, poderá solicitar, se julgar necessário, o auxílio da força pública, isto é, da polícia. O juiz de direito pode mais: ele pode decretar a prisão da testemunha faltosa, por prática do crime de desobediência. Nesse caso, a faculdade de decretar a prisão de testemunha faltosa, concedida ao juiz pelo nosso sistema jurídico, se funda na permissão constitucional da prisão em flagrante, também regulada no Código de Processo Penal, art. 301 e seguintes. Testemunha que desatende a intimação judicial para depor comete crime de desobediência (art. 330 do Código Penal), e considera-se em flagrante no momento em que o juiz toma conhecimento do ato da desobediência. O crime de desobediência é “infração permanente”, e se compreende na previsão do art. 303 do Código de Processo Penal: Art. 303 – Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.
Se o presidente de comissão parlamentar de inquérito, no âmbito da comissão, dispõe de todos os poderes inerentes à autoridade de um juiz de direito; se o juiz de direito pode decretar a prisão (em flagrante) da testemunha que, regularmente intimada, lhe desatende à intimação para depor; ipso facto, o presidente de comissão parlamentar de inquérito pode decretar a prisão – em flagrante – da testemunha que, regularmente convocada, não comparece para depor. CPI e Constituição: um caso concreto
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Ademais, é preciso não esquecer que a prerrogativa, ou direito, ou direito-dever, de prender em flagrante assiste a toda pessoa: – a “qualquer do povo”, nos termos do Código de Processo Penal. Como a não poderia ter o presidente de comissão parlamentar de inquérito? Oportuno observar também que a palavra intimação, existente no texto do art. 3° da Lei n° 1.579, não obriga a intervenção do juiz de direito no processo de efetivação da intimação. Mesmo aí se trata, ainda, de convocação, simples, feita pela CPI. Isso se induz do parágrafo único do art. 3°, o qual diz que, em caso de não comparecimento da testemunha sem motivo justificado, a sua intimação será solicitada ao juiz criminal da localidade em que reside ou se encontre, na forma do art. 218 do Código de Processo Penal. A intervenção do juiz (da localidade da residência ou de onde se encontre a testemunha) só ocorrerá, e ainda assim de modo facultativo, e a juízo da comissão parlamentar de inquérito, se a testemunha, regularmente chamada pela comissão, não comparecer. A afirmação de parecer do Consultor-Geral da República de que a testemunha, “a quem incumbir respeito ao dever de sigilo”, não poderá ser constrangida a depor sobre fatos a respeito dos quais, por sigilo profissional, deva guardar sigilo, é verdadeira. Também o é a afirmação de que comissão parlamentar de inquérito não tem competência para, “ela própria, ordenar o comparecimento de Ministro de Estado”. Nos termos do art. 173 do Regimento do Senado, o comparecimento de Ministro de Estado deve ser requerido pela Comissão ao Plenário da Casa. Busca e apreensão. Diz o parecer do Consultor-Geral da República: “As comissões de inquérito não poderão, por seus próprios meios, efetuar busca e apreensão de papéis e documentos. Deverão, para tanto, requerer essa providência coercitiva ao Poder Judiciário”. Examinando o assunto, PONTES DE MIRANDA afirma o seguinte: “As buscas e apreensões são permitidas quando há razões fundadas para se terem como indispensáveis. Realizam-se por intermédio da autoridade policial, ou por mandado da comissão de inquérito” (Comentários à Constituição de 1967, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1967, p. 59). 154
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11. Princípio da colegialidade Incontestável esta afirmação contida no parecer do Consultor-Geral da República (ressalvada apenas a impropriedade do substantivo colimação, empregado no sentido de atingimento, realização, consecução): “Somente a comissão, através da vontade majoritariamente expressa de seus membros, é o soberano juiz da conveniência, oportunidade, necessidade e utilidade das diligências e atividades probatórias que, eventualmente, considere indispensáveis à colimação de seus objetivos investigatórios”. Evidente que a comissão, no exercício dessa sua soberania, pode decidir, sempre que o julgar conveniente, delegar poderes de atuação não só ao seu presidente, como a qualquer dos seus membros. 12. Sistema nacional de informações e contrainformação. O objeto da consulta É longo o arrazoado do parecer do Consultor-Geral a respeito da questão que ele formula em termos de acessibilidade às informações e documentos produzidos pelo Serviço Nacional de Informações. Na parte inicial desse arrazoado, o Consultor-Geral admite que “as informações e os documentos produzidos pela DSI/SEPLAN-PR deverão, na medida em que o reclamar o interesse público, sofrer diminuição ou, mesmo, supressão do grau de sigilo, que os torna, no momento, inacessíveis. Permite-o o Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos, aprovado pelo Decreto nº 79.099, de 06 de janeiro de 1977 (v. art. 8°). Aconselha-o o dever da autoridade pública em fornecer as provas, quando as conheça ou tenha sob sua guarda, para a segura punição dos que cometerem crimes contra a Administração e contra o administrado”. Todavia, como não se operou ainda, diz ele, essa desclassificação, entende o Consultor-Geral da República “incidentes os fundamentos do Parecer nº SR-13/86”, aprovado pelo Presidente da República, e no qual o Consultor-Geral aduz extensas considerações. Estas constituem a parte final do seu arrazoado, e servem a fundamentar a con clusão de que, por não haver lei permissiva do fornecimento das infor mações, dados e documentos recolhidos e armazenados pelo Serviço Nacional de Informações, não pode o Poder Executivo autorizar lhe o acesso por parte da sociedade em geral. CPI e Constituição: um caso concreto
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A questão tem de ser vista de dois ângulos. Do ângulo das pessoas individuais, as pessoas naturais, que compõem a sociedade; e do ângulo das relações entre as funções executiva, legislativa e judiciária, do Estado, ou seja, das relações entre os Poderes do Estado. Do ponto de vista da sociedade e das pessoas que a compõem, é admissível que a lei estabeleça restrições ao acesso delas às informações, documentos e dados recolhidos e armazenados pelo Serviço Nacional de Informações. Como registra o parecer do Consultor-Geral da República, há na Lei n° 7. 232, de 29 de outubro de 1984, que dispõe sobre a Política Nacional de Informática, norma de que as matérias referentes “aos direitos relativos à privacidade, como direitos de personalidade, por sua abrangência (...)”, serão objeto de lei específica, “ainda não editada”. Essa lei, que certamente virá a seu tempo, será feita, evidentemente, dentro dos limites que serão fixados pela nova Constituição, cujo projeto, no § 33 do art. 6°, estabelece: § 33 – Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações verdadeiras, de interesse particular, coletivo ou geral. ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. As informações requeridas serão prestadas no prazo da lei, sob pena de crime de responsabilidade.
Como se vê, a própria Constituição futura (se, se mantiver, como provavelmente se manterá, o texto do projeto já aprovado em primeiro turno) ressalva, ao assegurar o direito de acesso a informações de interesse particular, coletivo ou geral que estejam na posse de órgãos públicos, as informações “cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Do ponto de vista das relações entre os três Poderes, ou órgãos, do Estado, a questão se apresenta diferente. Não existe nenhuma informação ou documento que, produzidos no âmbito do Poder Executivo, não possam ser, por mais sigiloso o seu caráter, transmitidos ao conhecimento do Poder Legislativo. As comissões parlamentares de inquérito, que podem tudo o que pode o Poder Legislativo, e que têm todas as prerrogativas do Poder de que são reproduções em tamanho menor, têm direito de acesso a todas as informações e documentos de 156
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que disponha o Poder Executivo. Para exercer o seu direito de acesso a tais informações e documentos, deve a comissão parlamentar de inquérito se valer do instituto da sessão secreta. Assegurando às suas sessões, destinadas a receber do Poder Executivo informações e documentos de caráter sigiloso, um caráter também sigiloso, secreto, a comissão parlamentar de inquérito pode, constitucional e legalmente, como Poder Legislativo que é, exigi-los e recebê-los. Embora o Serviço Nacional de Informações preste serviços especialmente, por força da lei (4.341, de 13 de junho de 1964) que o criou, ao Presidente da República e ao Conselho de Segurança Nacional, é claro que ele se liga também ao Congresso Nacional, como órgão do Estado e da soberania nacional, pelo mesmo vínculo constitucional que o liga ao Estado. Tudo o que o Presidente da República deve saber, o Congresso Nacional o pode saber, com a cautela, sempre que imposta pela natureza do objeto de conhecimento, do sigilo exigido pela segurança do Estado e da própria Nação. O § 2.° do art. 4.° da Lei n.° 4.341, de 13 de junho de 1964, declara: O Serviço Nacional de Informações está isento de quaisquer prescrições que determinem a publicação ou divulgação de sua organização, funcionamento e efetivos.
Desprezemos aqui, por inoportuno, o exame do fato de que esse artigo da lei não se reveste de constitucionalidade inquestionável: uma lei ordinária não pode impor limitações ou vedar a abrangência de leis futuras. Observemos, somente, que o que a lei que criou o SNI veda é apenas a publicação ou divulgação da sua organização, funcionamento e efetivos. Informações e documentos não se compreendem nas palavras organização, funcionamento e efetivos. Informações e documentos são suscetíveis, portanto, de publicação e divulgação, de acordo com um critério normativo, que, atualmente, é estabelecido pelo Decreto n° 79.099, de 06 de janeiro de 1977. Com base nesse decreto, o caráter de sigilo dos documentos públicos é objeto de uma classificação, feita de acordo com o grau de sigilo deles. Esse decreto, cuja constitucionalidade é discutível, se coaduna bem com o caráter autoritarista do sistema constitucional-jurídico ainda vigente no País.
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13. Controle jurisdicional das atividades da CPI Não há dúvida de que o Supremo Tribunal Federal tem jurisdição sobre os atos de comissão parlamentar de inquérito. Isso por causa das suas atribuições de guardião da Constituição e das regras de sua compe tência jurisdicional. A afirmação de tal poder e competência da nossa corte judicial máxima é uma obviedade e, pois, uma excrescência e, como tal, urna inutilidade no parecer do Consultor-Geral da República. 14. Em conclusão I – a Resolução n° 22 do Senado, é constitucional, dado que a inte ligência da locução “fato determinado” deve ser bastante larga para não inibir a atuação cognitiva e fiscalizadora do Congresso Nacional, ou de qualquer de suas Casas, atuação que não pode suspender-se diante de fatos encadeados, ou mesclados, ou inter-relacionados; II – é verdade que, na apuração do fato ou fatos objetos de inves tigação de comissão parlamentar de inquérito, o Poder Executivo deve colaborar “sem qualquer restrição, inclusive desqualificando os documentos sigilosos que de alguma forma possam ser úteis às investigações”; o Poder Executivo não poderá recusar a entrega de informações, sob pretexto de que não se referem a fatos determinados ou precisos, ou de que não são pertinentes com o objeto da Comissão, pois somente o Poder Judiciário pode julgar da conformidade dos atos da Comissão com o sistema constitucional vigente; III – comissão parlamentar de inquérito pode requisitar documentos e informações diretamente às repartições públicas do Executivo cuja recusa constituirá crime de responsabilidade, imputável, conforme o caso, ao Presidente da República ou ao Ministro de Estado, ou a ambos; IV – comissão parlamentar de inquérito pode efetuar, ou pela sua secretaria, ou pela polícia da Câmara que a constituiu, ou, ainda, mediante requisição à autoridade policial do Executivo, quaisquer medidas cautelares, entre as quais buscas e apreensões, que, a seu juízo, se fizerem necessárias. A condução coercitiva de testemunha recalcitrante ou faltosa é uma prerrogativa essencial de comissão parlamentar de inquérito. Essa coerção pode ser feita diretamente pela comissão, por intermédio de sua secretaria ou da polícia da Casa que a instituiu, 158
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ou, subsidiariamente, se assim o julgar conveniente a Comissão, por intermédio do Poder Judiciário, que, nesse caso, é um mero agente executor da medida solicitada, não exercendo sobre tal medida qualquer controle de legalidade. Caso o Judiciário, nos casos de condução coercitiva de testemunha faltosa, pudesse exercer controle de legalidade, estaria invadindo esfera de atuação soberana de outro poder, isto é, do Poder Legislativo; V – é evidente que “os eventuais desvios de poder, pela CPI; estarão sempre sujeitos ao controle jurisdicional do Supremo Tribunal Federal”; VI – na sua atuação investigatória, que pressupõe uma legalidade que não é senão redundante e, pois, inútil preconizar, as comissões parlamentares de inquérito devem “merecer total apoio e incondicional colaboração”. Referências ACCIOLI, Wilson. Instituições de Direito Constitucional. Rio de Janeiro, Forense, 1978. BALEEIRO, Aliomar – in Comissões Parlamentares de Inquérito. PEREIRA, Agnaldo Costa. BARBOSA, Rui. Comentários à Constituição Federal Brasileira. Coligidos e ordenados por Homero Peres. São Paulo, Saraiva e Cia., 1932. BROSSARD, Paulo. Da Obrigação de Depor Perante Comissões de Inquérito. Revista de Informação Legislativa, nº 69. GALLOWAY – in PEREIRA, Agnaldo Costa. Comissões Parlamentares de Inquérito. Rio de Janeiro, Asa Artes Gráficas S.A., 1948. ITAGIBA, Ivair Nogueira. “Aperfeiçoamento do Estado Democrático”. Revista Forense, nº 151, p. 62. MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1967. OLIVEIRA FILHO, João. “Inquéritos Parlamentares”. Revista de Informação Legislativa, junho de 1964. PEREIRA, Agnaldo Costa. Comissões Parlamentares de Inquérito. Rio de Janeiro, Asa Artes Gráficas S.A., 1948. ROSA, Edgar Lincoln Proença. Parecer exarado na Assessoria Legislativa do Senado Federal. CPI e Constituição: um caso concreto
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Partidos políticos: aspectos do fenômeno (Texto publicado na Revista de Informação Legislativa
a. 26 n. 103 jul/set 1989
Reflexões propedêuticas Necessidade ou contingência? Um fenômeno natural – e, portanto, uma fatalidade inelutável –, ou produto cultural suscetível de modificar-se e, mesmo, de abolir-se? O homem padece de uma tendência irreprimível para a divergência e a controvérsia. Parece que essa compulsão provém da sua natureza. Sim: o homem é um animal essencialmente divergente. (Felizmente, porém, capaz de convergências). MOISÉS não registrou no Gênese, mas a verdade é que, quando Jeová expulsou Adão – o Homem – e Eva – a Vida – do Éden, não condenou a Humanidade apenas à necessidade de trabalhar para tirar da terra o seu sustento; condenou-a também à discórdia. Recuperar a concórdia, sinônimo de paz, é o Sonho Magno do Homem. E que é recuperar o reino da concórdia senão viver livre do divisionismo de partidos? Que é partido, senão um efeito do ônus da cizânia, imposto ao Homem como pena de sua precariedade irresolúvel? O mundo do homem contém inevitável o fenômeno partido. Partidos de toda ordem: políticos, religiosos, literários, econômicos etc. Principalmente partidos políticos. 161
O Éden, antes do pecado, era o contrário disso: o Éden era uno, individido, pacífico, unânime, uníssono, concorde, harmonioso, sem lutas internas. O Éden era um idílio que se prometia eterno. Um mundo perfeito, devolvido à pureza original lendária do Éden, é um mundo livre de partidos, esse sinônimo e veículo de fratricídio nem sempre incruento: ao contrário, frequentissimamente sanguinolento. Dizer homem é dizer coletividade, pois o homem é um ser social. Dizer coletividade é dizer vida organizada. Vida humana organizada supõe poder por causa da necessidade inafastável de decidir. Toda coletividade humana é obrigada a tomar decisões: decidir é uma imposição do viver. A família toma decisões. O clã toma decisões. A tribo toma decisões. A nação toma decisões. O conjunto confederal de nações toma decisões. Uma sociedade de Estados – como a Organização das Nações Unidas, um exemplo de nossa época – toma decisões. Decidir coletivamente causa divergências. Os seres humanos, de dois para cima, divergem entre si. Em qualquer tempo, em qualquer lugar, em qualquer regime político. Divergir é inerente ao ser humano. Ou não? Há pessoas que, meditando sobre essa questão, têm externado a esperança de que o desenvolvimento do homem poderá lhe proporcionar, algum dia, a graça inefável de alcançar a concórdia menos raramente e com menos dificuldade do que a que tem sofrido até hoje. ANTÔNIO DA SILVA MELLO, um médico brasileiro muito preocupado com a condição humana, e que expressou os resultados de suas reflexões em muitos livros (como Religião: Prós e Contras, Alimentação, Instinto e Cultura, O Homem), foi um desses homens esperançosos. No seu livro derradeiro – escrito aos oitenta e cinco anos de idade (parece que sem tempo de lhe aprimorar devidamente a forma literária) Eu no Universo1, ele escreveu estas palavras, que registram uma verdade possível, ainda não comprovada, e cuja comprovação fundaria, com realismo, uma esperança boa num futuro melhor do homem: “O ser humano é unitário pela sua anatomia e a sua fisiologia, 1 MELLO, Antônio da Silva. Eu no Universo. 2a ed., São Paulo, Distribuidora Record, 1972.
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não sendo razoável que, pela sua psicologia, deva viver em eternas oposições e contradições. Somos todos tão iguais pela estrutura e as funções do nosso corpo que se torna verdadeiro absurdo continuarmos dentro de oposições e contradições sistemáticas, que não passam de erros de adaptação, de criações quase inconcebíveis da nossa razão, dando como resultado errôneas sugestões e percepções. É isso, portanto, o que torna primeiramente necessário evitar e corrigir”. Por enquanto, porém, infelizmente, os homens têm nascido condenados à divisão partidária. Nascem condenados a escolher, a tomar decisões, a optar, e a reagir diante das decisões, das escolhas, das opções tomadas. E, na hora de tomar decisões ou de reagir diante delas, os homens jamais são unânimes. Será que divergir é, ao contrário do que esperam os humanistas generosos e os utopistas edificantes, algo inerente à própria vida, não somente à vida dos seres humanos, mas à vida mesma? Um filósofo antigo, Heráclito de Éfeso, cognominado o Obscuro, proclamou, dizem, que a luta é a lei suprema da vida. Na Ética a Nicômaco, ARISTÓTELES registra este pensamento de Heráclito: “... o contrário é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia”2. Em Hipólito, encontra-se outro fragmento de Heráclito: “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, a uns ele revelou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres”3.
Em Numênio, pode-se ler este outro fragmento de Heráclito: “É preciso saber que o combate é o-que-é-com, e justiça (é) discórdia, e que todas (as coisas) vêm a ser segundo discórdia e necessidade”4. Na natureza, a dialética entre contrários – e entre diferentes – produz um resultado: a síntese. Entre os seres humanos, a síntese resulta da vitória de uma opinião sobre as outras opiniões. O problema difícil e árduo que tem tocado aos homens resolver é o de encontrar um método de chegar à síntese de suas opiniões divergentes sem o esmagamento de uns por outros: sem violência. Essa procura é a história da democracia no mundo. 2 “Os Pré-Socráticos”, Vol. I da Coleção Os Pensadores, Editora Abril, São Paulo, 1973. 3 “Os Pré-Socráticos”, ob. cit. 4 “Os Pré-Socráticos”, ob. cit. Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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Nem no Céu de Jeová houve unanimidade e paz. Que foi Lúcifer senão o chefe de um tremendo movimento de divergência e dissidência – o mais terrível movimento de divergência e dissidência possível de ser imaginado? Vale a pena ler – e reler – O Paraíso Perdido, de Milton. Mas Jeová era, por natureza, incontrastável. Lúcifer foi derrotado e expulso. Jeová não tolerou a manifestação suprema de orgulho de Lúcifer. No Reino anterior ao Homem, Deus se afirmou Deus. Aqui na Terra, ou em qualquer outro lugar para onde o Homem se traslade, a divergência parece inafastável da vida dos homens. Mesmo no mais perfeito e harmonioso reino de utopia que os homens vierem a ser capazes de realizar, haverá divergência. E, portanto, partidos políticos. A essa necessidade dura o homem parece não poder escapar. Não pôde, até agora. Talvez não o poderá nunca. Infinita é a capacidade dos homens de discordar entre si. Divergimos nas coisas sérias e nas coisas grotescas; nas questões dramáticas e nas questiúnculas ridículas; divergimos em tudo e sempre. Exemplar o caso de Liliput, o primeiro país visitado por Lemuel Gulliver. Conhecemos todos, a estória das viagens feitas, no início do século XVIII, pelo cirurgião – e depois capitão de vários navios – Lemuel Gulliver. Os episódios dessa narrativa se popularizaram em quase todos os países. Mesmo entre crianças, para as quais se escreveram, em muitos idiomas, adaptações do grande livro de Swift. Do relato de Gulliver, consta a história da controvérsia, existente em Liliput, sobre o modo melhor de se quebrarem ovos; e da inimizade, provocada por essa controvérsia, entre Liliput e o país vizinho, Blefuscu. Havia mais de 36 luas que Liliput e Blefuscu se empenhavam em uma guerra. “Uma guerra encarniçadíssima” (explicou Reldresal, secretário principal dos Negócios Privados de Liliput, numa conversa sigilosa com Gulliver), “cujo móvel foi o seguinte: reconhece-se universalmente que a maneira primitiva de quebrar ovos para comê-los consistia em quebrá-los pela ponta mais grossa; mas ao avô de sua majestade, quando menino, numa ocasião em que se dispunha a comer um ovo e quebrá-lo consoante o hábito antigo, sucedeu-lhe cortar um dedo; pelo que o imperador, seu pai, saiu com um edito em que ordenava a todos os seus súditos, sob grandes pe164
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nalidades, quebrarem os seus ovos pela ponta mais fina. Ressentiu-se por tanta maneira o povo dessa lei, que, referem as nossas histórias, seis rebeliões estalaram por causa disso; nas quais um imperador perdeu a vida, e outro, a coroa. Essas comoções civis foram constantemente fomentadas pelos monarcas de Blefuscu; e, quando sufocadas, iam sempre refugiar-se os desterrados naquele império. Calcula-se que 11.000 pessoas, em diversas ocasiões, preferiram morrer a sujeitar-se a quebrarem seus ovos pela ponta mais fina. Publicaram-se muitas centenas de grossos volumes sobre essa controvérsia; mas os livros dos ponta-grossenses já há muito interditados, e todo o partido é incapaz, por lei, de granjear empregos. No decurso desses tumultos, queixaram-se amiudadas vezes os imperadores de Blefuscu, por intermédio dos seus embaixadores, de estarmos provocando um cisma religioso, contrariando uma doutrina fundamental do nosso grande profeta Lustrog, no quinquagésimo quarto capítulo do Blundecral (que é o Alcorão deles). Isso, todavia, é considerado como simples torcedura do texto, pois as palavras são estas: ‘Todos os verdadeiros crentes quebrarão os seus ovos pela ponta conveniente’; e, na minha humilde opinião, o decidir qual seja a ponta conveniente é assunto que deve competir à consciência de cada um ou, pelo menos, só o magistrado sumo deve ter poder de resolver. Ora, os exilados ponta-grossenses lograram tamanho crédito na corte do imperador de Blefuscu, e tanto auxílio e estímulo do seu partido secreto daqui, que se vem travando uma guerra sanguinolenta entre os dois impérios há 36 luas, com vária sorte; tempo esse durante o qual perdemos quarenta navios grandes, e um número muito maior de navios menores, além de 30.000 dos nossos melhores marinheiros e soldados; e calcula-se que os danos sofridos pelo inimigo sejam algo maiores do que os nossos. Não obstante, o equipou agora uma frota numerosa e está se preparando para acometer-nos; e Sua Majestade Imperial, que deposita grande confiança em vosso valor e energia, ordenou-me que vos fizesse esta exposição dos seus negócios”5. Infelizmente o Homem é um ser quase sempre liliputiano. Ridículo nas suas controvérsias mesquinhas, nas suas divisões par5 SWIFT, Jonathan. As Viagens de Gulliver. São Paulo, Editora Abril, 1971. Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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tidárias grotescas, nas suas guerras estúpidas e injustificáveis. Swift desnudou o Homem. Mas não basta desnudar o Homem. Não existe alternativa para a necessidade de os humanos entrarmos também nas lutas da nossa espécie, de nos sujarmos e nos macularmos na ridiculez das nossas controvérsias. Temos de aceitar a nossa condição – e participar da vida. Não existe para nenhum indivíduo humano a alternativa de se colocar acima da pequenez humana e dizer: eu me recuso a participar dessas briguinhas grotescas! Registremos, para crédito da capacidade de auto aperfeiçoamento do Homem, esta verdade: os homens bem que gostariam que a sua vida, necessariamente coletiva, não precisasse de se dividir em partidos. É antiga essa aspiração. Vemo-la expressa, por exemplo, em um filósofo anterior a Sócrates: Xenófanes de Colofão, que viveu entre 570 e 528 a. C. Entre os fragmentos dos seus poemas, encontra-se este trecho significativo: “É de louvar-se o homem que, bebendo, revela atos nobres, como a memória que tem e o desejo de virtude, sem nada falar de titãs, nem de gigantes, nem de centauros, ficções criadas pelos antigos, ou de lutas civis violentas, nas quais nada há de útil”6.
As formas utópicas de sociedade até hoje concebidas põem uma vida de paz para os homens. Paz, que é? Paz é concórdia. Concórdia é algo que exclui a existência de partidos. É, ao menos, o resultado de uma capacidade de chegarem os partidos – porventura existentes – à concordância livre e pacífica. Enquanto não se liberta da sua precariedade essencial, que o faz dividir-se em partidos, o homem tem tido a clarividência de, pela sua parte saudável, procurar meios de amortecer os efeitos devastadores de sua vocação para a discórdia. Um desses meios é a democracia. A democracia apareceu na História como um meio e forma de ordenar o processo de tomada de decisões com respeito mútuo entre os protagonistas desse processo. Os homens sofreram muito no curso de 6 “Os Pré-Socráticos”, ob. cit.
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sua evolução e de sua história antes de chegarem a conceber e a começar a pôr em prática métodos de tomar decisões que fossem expressões do consentimento geral, ou do da maioria – e que fossem aceitas por aqueles homens que discordaram delas antes e depois de tomadas. A referência a utopias remete, de imediato, a mais delas. Karl Marx lutou a vida toda para fundar um partido do proletariado com a missão de realizar uma revolução social abolidora dos antagonismos sociais pela supressão das classes em que se divide a sociedade. Que é esse sonho de Karl Marx senão o da abolição dos partidos políticos? Marx queria e quis um partido que trouxesse, com a desnecessidade social deles, o fim dos partidos. Ilusão de uma alma generosa? Ou um sonho suscetível de virar realidade? A extinção dos antagonismos no interior da sociedade poderá conduzir, quem sabe?, ao desaparecimento natural dos partidos políticos; mas não à concórdia absoluta. Quando o homem se vir livre dos embates de classes, que ainda o infelicitam, certamente continuará a se dividir em facções ou grupos por causa de outras razões e pretextos de dissenção. O homem tem um espírito essencial de disputa que o faz um ser grotesco e ridículo – sem prejuízo, felizmente, da grandeza e nobreza de que é sempre, mesmo nos piores momentos de sua trajetória, ou, sobretudo neles, capaz. Quando – e se – se livrar dos conflitos de classes, o homem prosseguirá se dividindo, como em Liliput, nem que seja, ao menos, por causa da questão sobre por que ponta, a grossa ou a fina, devem ser quebrados os ovos para serem comidos. Conceito de partido político Que é isso, partido político? Porque existiam somente de fato, e não de direito; porque existiam para a sociologia e a história, mas não para o direito positivo, os partidos políticos não foram, senão já bem tarde na história do direito ocidental, objeto de análise e meditação dos juristas. Não existem, antes deste século, estudos sobre partidos políticos. E definições, mesmo os principais autores do século XX evitaram fazer. Eis uma afirmação de PAULO BONAVIDES: “Quem, na ânsia de encontrar uma boa definição de partido político, se dispuser a Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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ler, da primeira à última página, as três obras máximas que o século XX já produziu acerca dos partidos políticos – os livros clássicos de OSTROGORSKY (La Démocratie et l’Organisation des Partis Politiques), MICHELS (Les Partis Politiques: Essai sur les Tendances Oligarchiques des Démocraties) e DUVERGER (Les Partis Politiques) – há de concluir a leitura profundamente decepcionado: terá empregado em vão toda a sua diligência, pois a instituição em apreço é objeto ali de nenhuma definição”7. Todo o mundo intui o que é partido político. Certos elementos essenciais do partido político são fáceis de apreender: o elemento reunião de pessoas; o elemento ideias afins; o elemento objetivos comuns. Com esses elementos pode-se ensaiar uma definição de partido político: uma reunião de pessoas ligadas entre si por ideias afins e com objetivos comuns. Essa é uma definição incompleta: falta-lhe o elemento específico, que é o caráter político. Tentemos completá-la: partido político é uma reunião de pessoas ligadas entre si por ideias políticas afins e com objetivos políticos comuns. Também não está completa. Falta-lhe um elemento peculiar ao partido político: a atuação, a ação pedagógica e proselitista, a disputa do poder. Tentemos mais uma vez completar a definição: partido político é uma reunião de pessoas ligadas entre si por ideias políticas afins e que procuram, mediante uma ação proselitista, o poder, a fim de realizar os seus objetivos políticos comuns. Essa é uma definição mais aproximada da verdade, embora ainda não descritiva de todo o fenômeno ôntico que é o partido político. Apesar da omissão dos principais pensadores em definir partido político, tem havido propostas de definições. EDMUND BURKE, por exemplo, em 1770, deu esta definição: “um corpo de pessoas unidas para promover, mediante esforço conjunto, o interesse nacional, com base em algum princípio especial, ao redor do qual todos se acham de acordo”8. Eis a definição de BLUNTSCHLI: partidos políticos são “grupos livres na sociedade, os quais, mediante esforços e ideias básicas de teor político, da mesma natureza ou intimamente aparentados, se acham dentro do Estado, ligados para uma ação comum”9. Já 7 BONAVIDES, Paulo. Ciência Politica. 5ª ed., Rio, Forense, 1983. 8 Paulo Bonavides, ob. cit. 9 Paulo Bonavides, ob. cit.
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JELLINECK propôs definição: os partidos políticos, “em sua essência, são grupos que, unidos por convicções comuns, dirigidas a determinados fins estatais, buscam realizar esses fins”10 MAX WEBER, que estudou os partidos políticos sob o ângulo da sociologia, assim os definiu: “Os partidos, não importam os meios que empreguem para afiliação de sua clientela, são, na essência mais íntima, organizações criadas de maneira voluntária, que partem de uma propaganda livre e que necessariamente se renova, em contraste com todas as entidades firmemente delimitadas por lei ou contrato”11. NAWIASKI formulou duas definições; mas somente uma, aquela que se encontra no seu livro Teoria Geral do Estado, pode, embora também precária, ser aproveitada: “uniões de grupos populacionais com base em objetivos comuns”12. HANS KELSEN, o grande Kelsen, deu esta definição: “os partidos políticos são organizações que congregam homens da mesma opinião para lhes assegurar verdadeira influência na realização dos negócios públicos”13. HASBACH, um autor do início deste século, formulou uma definição mais próxima da realidade que se observa: “uma reunião de pessoas, com as mesmas convicções e os mesmos propósitos políticos, e que intentam apoderar-se do poder estatal para fins de atendimento a suas reivindicações”14. Um autor americano, SCHATTSCHE NEIDER, sugere uma definição bem ao estilo pragmático e terra-a-terra dos pensadores americanos; partido político “é uma organização para ganhar eleições e obter o controle e direção do pessoal governante”15. SAINT, também americano, afirma que partido político é “um grupo organizado que busca dominar tanto o pessoal como a política do governo”16. GOGUEL, um publicista francês, também se aproxima mais da verdade: “é um grupo organizado para participar na vida política, com o objetivo da conquista total ou parcial do poder, a fim de fazer prevalecer as ideias
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Paulo Bonavides, ob. cit. Paulo Bonavides, ob. cit. Paulo Bonavides, ob. cit. Paulo Bonavides, ob. cit. Paulo Bonavides, ob. cit. Paulo Bonavides, ob. cit. Paulo Bonavides, ob. cit.
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e os interesses de seus membros”17. Citemos, por último, a definição formulada por GEORGE BURDEAU: “uma associação política organizada para dar forma e eficácia a um poder de fato”18. Classificação dos partidos políticos Em toda sociedade humana, um dos fenômenos que mais facilmente se notam é a luta entre mudança e conservação: entre ação renovadora e reação conservadora. Essa luta é travada por partidos políticos, formalmente organizados ou não. Ela é que determina, pois, o caráter dos partidos políticos. Uns querem mudar. Outros querem conservar. De olho nesse fenômeno, que é de todas as sociedades e universal no tempo e no espaço, podem-se classificar os partidos políticos em renovadores e conservadores. O grau de renovacionismo e o do conservantismo variam de partido para partido. Há os renovadores em grau menor, os reformistas, e, em grau maior, os revolucionários. E há os conservadores em grau de reacionarismo cego e inexorável e em grau de tolerância para com as mudanças superficiais ou que apenas retoquem o modelo sócio-político-econômico, sem que se atinjam as estruturas básicas do establishment. A classificação proposta por NAWIASKI parte dessa verificação fun damental; ele divide os partidos em partidos de movimento e partidos de conservação19. Essa é a divisão eterna dos partidos políticos em todas as sociedades. Partidos que defendem a organização social, política e econômica tal como se encontra num dado momento histórico – partidos defensores do status quo; e partidos que querem modificar aquela organização – que querem alterar o status quo. A dialética entre a conservação e a renovação percorre a história de todas as sociedades humanas. Assume a feição e forma de lutas entre classes sociais ou as de um confronto entre valores novos emergentes e valores vigorantes envelhecidos.
17 Paulo Bonavides, ob. cit. 18 Paulo Bonavides, ob. cit. 19 Paulo Bonavides, ob. cit.
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Em nossa época, essa dialética se tornou mais dramática, por ter entrado em cena e atuação um tipo novo de partido político: o revolucio nário, filho de uma concepção nova e revolucionária da sociedade humana, da história do homem, do futuro da humanidade: a do materialismo histórico, do comunismo marxista. Peculiaridade dos países coloniais Em países de origem e formação colonial, como o Brasil, acontece outra relação dialética importante: entre o país, como projeto de ente nacional e estado independente, e os países estrangeiros que com ele se relacionam de modo hegemônico. Essa relação dialética é protagonizada por partidos que lutam pela emancipação nacional, pela conquista de autonomia nacional (com valores próprios, objetivos próprios, uma visão própria e peculiar do mundo, uma cultura própria etc.) e pelos partidos que procuram manter a situação do status quo – de dependência colonial. Essa luta entre forças servis à colonização e forças que aspiram à independência nacional interfere naquele outro embate, que se fere entre as forças da conservação e da renovação, e dá-lhe um conteúdo singular e mesmo lhe confere movimentos paradoxais. Assim, é frequente encontrar, em países submetidos à condição de colônia, forças internas que atuam numa direção conservadora quanto às relações sociais internas da sociedade, mas em direção renovadora, quanto aos impulsos de emancipação nacional. Internamente conservadoras e até reacionárias; mas externamente nacionalistas. São as forças nacionalistas de direita. Portanto, a dialética entre conservação e renovação, num país de economia e cultura já desenvolvidas em bases mais ou menos autônomas, é diferente dessa mesma dialética em uma sociedade dependente, como a brasileira, por ocorrer nela, além daquela dialética, essa outra entre a dependência e a independência, entre a situação colonial e o impulso autonomista. O partido da independência nacional existe e atua no Brasil desde o começo do processo de colonização e desde antes da nossa independência política formal de 1822. É um partido informal ou informe; existe e permeia os demais partidos políticos brasileiros. No final da década Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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de 1950 e início da de 1960, esse partido começou a se estruturar, no âmbito do Congresso Nacional e mesmo fora dele, na chamada Frente Parlamentar Nacionalista. Essa Frente se compunha de elementos oriundos de quase todos os partidos políticos; e reunia, assim, pessedistas e udenistas, trabalhistas e socialistas, comunistas (então camuflados) e mesmo anticomunistas. Ela se reconstituiu há poucos meses no Congresso Nacional, por iniciativa de alguns dos mesmos líderes que a compunham duas dezenas e meia de anos atrás e que remanesceram das mortes políticas e das mortes biológicas. Todo partido político tem o seu contrário. Em contraposição ao partido nacionalista (cujo protomártir foi Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e que teve mártires sucessivos como Frei Caneca e Monteiro Lobato) existiu e atuou, sempre, o partido dos que preconizam um sócio menor, parceiro gerido, seguidor dependente e passivo do estrangeiro. Até duas décadas atrás, os militantes desse partido – também informe e informal, encontradiços em todas as organizações políticas brasileiras, exceto, é óbvio, as de esquerda, eram chamados de entreguistas, no jargão político quotidiano dos seus adversários. Essa palavra depreciativa caiu desde o golpe político-militar de 1964, em desuso. Atualmente é moda ridicularizar aqueles que ainda teimam em empregá-la. Os entreguistas de antigamente são hoje os internacionalistas. Foram eles que, de posse do poder político absoluto que lhes asseguraram os militares a partir de abril de 1964, realizaram, com muita energia e eficiência, uma internacionalização profunda da economia brasileira. Essa internacionalização constitui, hoje em dia, um fato de proporções enormes, de raízes profundíssimas na estrutura social, política e econômica do Brasil. (É correto falar, hoje, na existência, no Brasil, de uma burguesia estrangeira interna; e, correlativamente, na de um proletariado de interesses estrangeiros. Desta última afirmação é prova a posição, de muitos líderes de sindicatos de operários, favorável às empresas multinacionais, por eles consideradas mais bem organizadas e melhor pagadoras do que as empresas de capital nacional.) Parece ser um fenômeno irreversível. E quanto mais se revela irreversível, mais necessário e urgente torna um repensamento completo e radical do nosso projeto de ser nacional; e impõe esta pergunta: É possível, ou viável, ainda, uma nação brasileira?
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Evolução histórica dos partidos Os homens sempre se dividiram em partidos. Historicamente, sociologicamente e, parece, ontologicamente, o homem é um ser partidista. Na história do Ocidente, o fenômeno partido político tem seguido uma evolução. Uma evolução não contínua, é claro, pois que acompanha as vicissitudes da história das diversas sociedades ocidentais. O conceito – e a realidade – partido político vem mudando evolucionariamente, desde que apareceu. Como tudo o mais no Ocidente, foi na Grécia que surgiu o partido político. Só que o partido político da Cidade-Estado grega não era o mesmo que o das sociedades ocidentais modernas. Os autores concordam, em geral, que o partido político tal como o compreendemos hodiernamente apareceu na Inglaterra. Diz AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO, autor de um livro a respeito de partidos políticos considerado já clássico: “No que se refere aos partidos políticos, na acepção atual, pode-se afirmar que as suas origens não vão além do último quartel do século XVII”20. AFONSO ARINOS esclarece: “O problema dos partidos políticos está intimamente ligado à democracia, mas somente ao conceito moderno desta filosofia política e desta forma de governo”21. E aduz: “Quando, por exemplo, os tradutores da Constituição de Atenas, de ARISTÓTELES escrevem “partido popular”, por oposição a “partido dos ricos” ou “partido dos pobres”, estão, evidentemente, levados pela terminologia política contemporânea, empregando uma linguagem aproximativa ou figurativa”22. Não se pode negar razão a AFONSO ARINOS, se se atém ao conceito atual de partido político. Em Atenas e em Roma, houve, sim, partidos políticos. Claro que não eram organizações como as dos partidos políticos de nossa época: mas eram partidos, e eram políticos. Tinham outra estrutura, outra significação, outro papel: constituíam 20 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. História e Teoria do Partido Político no Direito Constitucional Brasileiro. Rio de Janeiro, 1948 sem indicação da editora). 21 Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. 22 Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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uma outra realidade. Para AFONSO ARINOS, os partidos políticos de Atenas eram antes “classes sociais” e não partidos políticos23. Verdade. Na acepção moderna e hodierna da locução, não eram partidos políticos. Em Atenas, por causa da forma direta do exercício da democracia, e por causa da inexistência de votação para a escolha dos governantes e legisladores, todos escolhidos por sorteio, os partidos políticos diferiam dos nossos partidos políticos atuais principalmente em serem grupos representativos de correntes de pensamento e de interesses concretos das diversas classes sociais em conflito permanente – muita vez agudo, muita vez menos agudo. No sentido atual, o partido político ocidental tem uma origem vinculada à do movimento constitucionalista europeu e americano. Por isso, o fato é que, como quase tudo ou tudo o mais, ele apareceu na Inglaterra, “nação precursora”, diz ARINOS, do “constitucionalismo moderno”24. Os partidos políticos ingleses se formaram, como tudo o que se forma na Inglaterra, aos poucos. Resultaram de uma evolução – lenta, gradual, progressiva. Para THOMAS ERSKINE MAY, os partidos políticos da Inglaterra se originaram da luta pela defesa dos direitos do Parlamento contra as prerrogativas da Coroa, no reinado de Elizabeth, entre 1558 e 160325. Mas AFONSO ARINOS opina que foi depois: “Geralmente se costuma fazer coincidirem as primeiras manifestações concretas da vida partidária inglesa com as controvérsias verificadas em torno do chamado “Exclusion Bill”, posteriormente a 1680”26. E prossegue: “Foi a partir dessa época, esclarece Munro, que se firmou a doutrina de aceitação da oposição política, isto é, a doutrina básica da democracia de que os inimigos do Governo não são inimigos do Estado e que um oposicionista não é por isto um rebelde”27. Essa doutrina tem uma importância capital, decisiva. Todo governo tem a tendência de julgar e declarar inimigo do Estado quem quer que lhe faça oposição. É uma das técnicas, ou astúcias, com que 23 24 25 26 27
Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit.
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os governos procuram inibir e silenciar os seus adversários. Que os oponentes ao governo não sejam julgados inimigos do regime, eis um requisito fundamental da democracia – uma conquista decisiva da democracia moderna. Sem essa garantia, é impossível haver partidos: é impossível haver democracia. Na Inglaterra, quando os adversários do governo do rei deixaram de ser considerados inimigos necessários do regime, surgiram os dois partidos políticos principais. “Então”, diz AFONSO ARINOS, “aparecem em formações mais definidamente políticas os dois grandes grupos que, por tanto tempo, disputariam o poder: os “tories”, representantes dos interesses remanescentes do feudalismo agrário e defensores incondicionais das prerrogativas régias, e os “whigs”, expressão de novas forças urbanas capitalistas, que, embora também monarquistas, esposavam os princípios mais liberais sem os quais não poderiam desenvolver os interesses novos que representavam”28. O sistema partidário inglês evoluiu lentamente. Os nomes dos dois partidos principais – Partido Conservador e Partido Liberal – só se firmaram no século XIX. “Foi sob o reinado da Rainha Ana (1702-1714)”, informa AFONSO ARINOS, “que se afirmou com mais segurança a necessidade de ser partidário o próprio Governo, o princípio de governar a Coroa com o partido que, no Parlamento, representasse maior parcela da opinião”29. O caráter evolucionário do sistema de partidos políticos da Inglaterra é ainda mais salientado por AFONSO ARINOS nesta informação: “Pode-se dizer que a velha Inglaterra, exemplo clá3sico do governo de partidos, só praticou com exatidão o sistema que criara a partir do século XIX, depois do “Reform Bill” de 1832, o qual, no dizer de Anson, fez da Câmara dos Comuns a assembleia representativa da nascente classe média e dos interesses manufatureiros, determinando que os interesses políticos crescentes, criando e assegurando a fidelidade partidária, assegurasse, daí por diante, a coesão das maiorias. Maiorias mais bem disciplinadas, pois exprimiam os interesses sociais também melhormente organizados: os da produção econômica capitalista30. 28 Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. 29 Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. 30 Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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Nos Estados Unidos, o movimento constitucionalista madrugou. E com ele surgiram logo os partidos políticos – apesar da contrariedade de líderes importantíssimos como George Washington. Os partidos políticos apareceram logo no começo da vida independente dos Estados Unidos – e, é claro, fundavam as suas raízes na fase colonial da vida americana. Grosso modo, são os mesmos que ainda hoje predominam na alternância do governo. Na Convenção de Filadélfia, de 1787, que redigiu a Constituição Federal, eles se configuraram já com nitidez. O Federalista, antepassado direto do atual Partido Republicano, representava a corrente favorável à centralização do poder na União, e era liderado por Hamilton. O Republicano, antepassado do atual Partido Democrata, lutava, sob a liderança de Thomas Jefferson, pela descentralização do poder, com mais autonomia dos Estados-Membros. Rejeição aos partidos políticos Repitamos: os homens jamais se resignaram à fatalidade de se divi direm em partidos. Eles sempre lamentaram que exista essa fatalidade. Quando surgiram os partidos políticos modernos, na Inglaterra, muitos pensadores reagiram contra eles de forma condenatória. Voltemos à história de Gulliver. Antes de começar a contá-la, ele apresenta uma carta que mandou ao seu editor e primo, Richard Sympson; nessa carta, Gulliver censura a Sympson por lhe haver publicado os escritos, e salienta que dessa publicação nenhum proveito adveio ainda. Dentre os benefícios que Gulliver considerava lícito esperar do conteúdo edificante da sua história, o menciona este: a extinção dos partidos e facções no seu país, a Inglaterra. Afirma Gulliver, arrependido de ter-se deixado persuadir a publicar o livro das suas aventuras: em lugar de ver posto um ponto final a todos os abusos e corrupções, pelo menos nesta pequena ilha, como eu tinha razões para esperar, após mais de seis meses de advertências, ainda não sei de um único efeito que, segundo as minhas intenções, o meu livro tivesse produzido: pedi-vos que me comunicásseis por cartas quando os partidos e as facções se tivessem extinguido31 etc. 31 As Viagens de Gulliver, ed. cit.
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A aversão de Gulliver (que é, evidentemente, a do seu criador, Jonathan Swift) aos partidos políticos e facções corresponde a um modo de sentir e pensar bem característico daquela época. Os partidos políticos começavam a aparecer e se formar na Inglaterra já com características de partidos políticos na sua concepção moderna: destacavam-se dos grupos ou facções em que princípios e fins religiosos se mesclavam com os políticos e com os de outra natureza. Aos espíritos mais generosos era natural que o fenômeno partido político causasse choques e repugnâncias. George Washington, que chefiou um grande partido político – o da independência do seu país –, rejeitou os partidos políticos com muita veemência e empenho. É muito conhecida a sua mensagem de despedida, o “Farewell Address”, do governo dos Estados Unidos, divulgada no dia 19 de setembro de 1796. Vamos transcrever alguns trechos desse discurso, que Washington redigiu com base num esboço elaborado por Madison (um dos pais da Constituição Federal dos Estados Unidos) em 1792. Após enfatizar a necessidade de se preservar e fortalecer a União, com repulsa geral a todo impulso de secessão, Washington afirmou: “Eu já vos preveni contra os perigos dos partidos quando suas divisões têm um caráter geográfico. Deixai-me prevenir-vos contra os perniciosos efeitos do espírito partidário numa acepção mais geral. Este espírito é, infelizmente, inseparável de nossa natureza; ele se une às mais fortes paixões do coração humano, existe sob formas diferentes em todos os governos; mas é sobretudo nos governos populares que ele causa as maiores destruições e podemos verdadeiramente identificá-lo como inimigo mais feroz. A dominação alternada de facções”, é ainda George Washington quem fala, “estimula a sede de vingança que acompanha as divergências civis. Ela é, em si, um despotismo terrível e ajuda a produzir um despo tismo mais permanente. As desordens e transtornos que ela provoca fazem com que os homens procurem a segurança e o repouso num único poder; e, cedo ou tarde, mais hábil ou mais feliz que seus rivais, o chefe de qualquer facção Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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consegue êxito nesse objetivo, para se elevar nas ruínas das liberdades públicas”. Por onde reina o espírito de partido, os conselhos nacionais estão sempre agitados e administração pública enfraquecida. Ele faz nascer a inimizade, fomenta as desordens e causa revoltas. Dá influências aos estrangeiros e introduz a corrupção em todos os ramos do governo. É assim que a política e a vontade de uma nação submetem-se à vontade de outra nação. Diz-se que nos governos livres os partidos são úteis e conservam o espírito da liberdade. Essa proposição pode ser justa até certo ponto. Num governo monárquico, o espírito de partido pode ser tolerado pelo patriotismo. Mas não deve ser assim nos governos populares e puramente eletivos, que, por sua natureza, possuem muito desse espírito. Como seus excessos devem ser receados, é preciso que a opinião pública se esforce para moderá-lo. É um fogo que não pode ser extinto. É preciso velar sempre para que sua chama não consuma”32.
Todo dia 22 de fevereiro, data do aniversário de George Washington, o seu “Farewell Address” é lido no plenário da Câmara dos Representantes e no Senado dos Estados Unidos, como recordação e conselho aos parlamentares americanos. Isso não tem impedido, porém, até agora, que eles continuem divididos partidariamente. Além de Swift e George Washington, muito mais gente opinou contra os partidos no século – o XVIII – em que eles apareceram e depois. Até hoje existe uma animadversão forte contra eles. Eis a opinião de um filósofo importante, David Hume, contemporâneo do surgimento dos partidos: “Do mesmo modo que os legisladores e fundadores de Estados devem ser honrados e respeitados pelo gênero humano, os fundadores de partidos políticos e facções devem ser odiados e detestados”33. Bolingbroke, na mesma época, publicou uma catilinária (intitulada “The Patriot King”) contra os partidos; e, dentre outras coisas, afirmou: “A
32 FERNANDES, Mário Leite. George Washington. São Paulo, Ed. Três, 1954. 33 Paulo Bonavides, ob. cit.
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pior de todas as divisões vem a ser com certeza aquela que resulta das divisões partidárias”34. HONORÉ DE BALZAC, o romancista genial que retratou a sociedade francesa da primeira metade do século XIX, não deixou por menos: “Os partidos políticos cometem em massa ações infames, que cobririam de opróbrio um homem”. Alain, que já é nosso contemporâneo, opinou que o partido é uma “máquina de pensar em comum”35. Aceitação dos partidos políticos Se o homem, animal divergente, discorda a respeito de tudo, é evidente que no julgamento dos partidos políticos não poderia haver unanimidade. Os partidos políticos não tardaram a ter os seus defensores. Já no século XVIII, Edmund Burke compreendeu o papel reservado pelo futuro aos partidos políticos dentro da ordem democrática36. John Adams, nos Estados Unidos, que se manifestara, como George Washington, hostil à existência de partidos políticos, mudou de opinião e disse: “Todos os países sob a luz do sol devem ter partidos; o magno segredo é saber dominá-los”37. Bagehot, um comentador muito conhecido (JOAQUIM NABUCO, no livro Minha Formação, se refere longamente ao livro dele) da Constituição inglesa, afirmou que a organização partidária “é o princípio vital do governo representativo”38. JAMES BRYCE, no livro Democracias Modernas, afirmou que, “sem os partidos políticos, não poderia funcionar o governo representativo, nem a ordem despontar do caos eleitoral”. O mesmo BRYCE observou: “O espírito e a força dos partidos são tão necessários ao funcionamento do governo quanto o vapor o é à locomotiva”39.
34 35 36 37 38 39
Paulo Bonavides, ob. cit. Paulo Bonavides, ob. cit. Paulo Bonavides, ob. cit. Paulo Bonavides, ob. cit. Paulo Bonavides, ob. cit. Paulo Bonavides, ob. cit.
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Sistemas partidários Existem três sistemas de partidos políticos: o multipartidário, o bipartidário e o unipartidário. O panorama do nosso mundo contemporâneo apresenta exemplos de todos esses sistemas. O sistema multipartidário vige caracteristicamente nos países capitalistas. O unipartidário, nos países socialistas. O bipartidário é antes uma aparência do que uma realidade. O Brasil, durante os últimos cinquenta anos, variou desde a inexistência legal de partidos (no período do Estado Novo, de 1937 a 1945), mas com uma tentativa, frustrada, de criação de um partido único, a Legião Cívica Brasileira, em 1938, até o sistema bipartidário, vigente entre 1965 e 1979, com a Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido do Governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o partido da oposição legal. De 1946 a 1965, tivemos o sistema pluripartidário, com dezenas de partidos. E atualmente o temos outra vez. Sistema pluripartidário O sistema pluri ou multipartidário é considerado o mais consentâneo com a natureza do regime democrático: a pluralidade de partidos permite que todas as correntes políticas existentes dentro da sociedade se organizem, expressem e atuem com liberdade. Apontam os analistas, porém, alguns inconvenientes na prática pluripartidária. Um deles é a necessidade, que exsurge desse sistema, de coligações entre partidos, a fim de que o governo se constitua forte e eficiente. Coligação é coisa difícil, dada à heterogeneidade dos partidos que a integram. Aí o perigo de instabilidade. Outro problema do pluripartidarismo é o incremento do que Max Weber chamou de patronagem 40 e que há mais de duas décadas se habituou, no Brasil, a chamar de fisiologismo: uma espécie de prática corruptora, mediante a qual os partidos vendem o seu apoio ao governo e o governo compra o apoio dos partidos. A moeda de pagamento do governo são cargos públicos, favores de toda ordem, apadrinhamentos.
40 Paulo Bonavides, ob. cit.
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Apesar de tudo, parece saudável que se permita organizarem-se em partidos todas as correntes de pensamento e de interesses existentes no interior da sociedade. Por mais inexpressivos que sejam esses partidos. Por mais estapafúrdios que se revelem. Sistema bipartidário O sistema bipartidário é um sistema só existente na prática de alguns países. Nos países onde o sistema vigente parece ser o bipartidário, na verdade vigora um sistema multipartidário, com a predominância de dois partidos mais vigorosos do que os demais. São os casos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Nesses dois países, o sistema é multipartidário. Até partidos comunistas existem e atuam nele. Mas os partidos principais, que disputam o poder, e nele se alternam, são tradicionalmente dois. Na Inglaterra, até o início deste século, eram o Partido Conservador e o Partido Liberal. Atualmente, o Partido Conservador e o Partido Trabalhista. No Brasil, tivemos, no Império, o sistema bipartidário, protagonizado pelos partidos Conservador e Liberal. O Partido Republicano começou a aparecer em 1870, ano em que lançou o seu primeiro manifesto, na cidade paulista de Itu. Em geral, o sistema bipartidário se assenta no princípio do revezamento do poder. A sociedade se habitua a promover esse revezamento. Quando um partido exaure a sua capacidade, numa determinada conjuntura, de oferecer soluções aos problemas nacionais, o outro partido, que se encontrava como que no limbo de uma potencialidade engatilhada, é chamado pelo corpo eleitoral para o fim de tentar responder aos problemas com as suas propostas de soluções. Assim tem sido na Inglaterra há mais de dois séculos. Assim tendo sido nos Estados Unidos há quase dois séculos. No sistema político em que predominam dois partidos, é exíguo o espaço para crescerem e alcançarem o poder os demais partidos. Mas é evidente que a dinâmica social não exclui a possibilidade de que cresça algum ou alguns. Na Inglaterra o Partido Trabalhista, de pequeno que era ainda no princípio deste século, cresceu e em menos de trinta anos alcançou o Governo e passou a ser, em lugar do Partido Liberal, o partido que se altera no Governo com o Partido Conservador. Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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Nos Estados Unidos tem-se mantido invicta a impossibilidade prática de um partido pequeno crescer ao ponto de disputar com os Partidos Republicano e Democrata o exercício do governo. Schattscheneider afirmou, com razão, que o “sistema bipartidário é a fortaleza de Gibraltar da política americana”41 e que, nos Estados Unidos, os pequenos partidos não constituem senão “movimentos educacionais”. Existem partidos de esquerda, entre os quais o comunista, nos Estados Unidos. Mas eles ainda não conseguiram alcançar significação política eleitoral. São movimentos educacionais, minorias, e nada mais. Uma das peculiaridades dos sistemas aparentemente bipartidários é que os dois partidos dominantes são ambos favoráveis ao regime político-econômico em que atuam. Eles se complementam mutuamente na tarefa de realizar mudanças de mero aperfeiçoamento do regime, impedindo e repelindo propostas ou tentativas de mudanças profundas ou radicais. A atuação de ambos corresponde aos movimentos de sístole e diástole com que evoluem as sociedades. É uma técnica de atuação e uma astúcia política dos sistemas bipartidários o encampar (na medida dos seus interesses) ideias e fins dos pequenos partidos, que, à distância, rondam o poder político. Sob esse aspecto, os dois partidos principais do sistema bipartidário desempenham uma função conservadora, no fundo. Nas sociedades mais estáveis, como a inglesa e a americana, é o que acontece. Realizando parcialmente o programa ou reivindicações dos partidos políticos reformistas, ou mesmo dos revolucionários, os partidos dominantes colocam uma rampa para a ascensão gradual dos grupos e classes sociais portadores de reivindicações, ao invés de lhes opor um muro que lhes vede todo progresso: a imagem é de Monteiro Lobato. No Segundo Império brasileiro – o caso é muito citado —, o Partido Conservador acostumou-se a atender, colocando-o parcialmente em prática, o programa do partido adversário, o Partido Liberal. Nos Estados Unidos, tem sido o Partido Republicano – teoricamente (e praticamente) conservador e mesmo reacionário – o partido que no governo tem realizado muitas ações liberais.
41 Paulo Bonavides, ob. cit.
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Que na Inglaterra a oposição política é oficialmente complementar do governo prova-o o “Minister’s of the Crown Act”, de 1937, pelo qual a Oposição passou a ser estipendiada pelo Estado e o líder dela recebeu o título oficial de “Líder da Oposição de sua Majestade”42. Sistema de partido único O partido único é uma criação de dois extremos: o comunismo marxista e o fascismo. É um instrumento de dominação ditatorial. No comunismo marxista, ditadura do proletariado, de acordo com a terminologia marxiana. Ditadura das classes dominantes adversas à transformação revolucionária, no fascismo. O partido único é, portanto, filho e instrumento das ideologias políticas da Revolução e da Contrarrevolução do nosso tempo: dos séculos XIX e XX. O partido único da Revolução (com erre maiúsculo) não se pretende identificar com a nação, mas apenas com uma parte dela: com os segmentos da nação interessados e empenhados em realizar uma transformação da sociedade no rumo do socialismo, numa primeira etapa, e no do comunismo, na sonhada etapa posterior e final. Os que não comungam esse ideário não participam do partido único: dele serão excluídos. O partido único que se pretende representante da nação como um todo é o partido único da Contrarrevolução: do fascismo. Este não admite a ideia de classes sociais em luta; e quer ser precisamente uma forma de negar e suprimir a luta entre classes sociais. O partido único fascista sobrepõe o todo, os interesses do todo, às partes; a coletividade ao indivíduo e às classes sociais. E totalista, ou totalitarista. O partido único da Revolução também sobrepõe o todo ao indivíduo, mas com uma diferença: o todo não é a Nação, ou a sociedade inteira, mas a maioria dela, composta das classes dominantes que se tornaram, por efeito da revolução, dominantes. AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO sustenta uma tese no mínimo instigante: a de que o partido único, o fascista e o comunista, origina-se, como formulação teórica, do livro Reflexions sur la Violente, 42 Paulo Bonavides, ob. cit. Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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de GEORGES SOREL. É um livro do início deste século. Diz AFONSO ARINOS: “Se desejarmos isolar três motivos essenciais do pensamento político soreliano, chegaremos aos seguintes: destruição do parlamentarismo fundado em partidos, união da classe operária em sindicatos revolucionários desligados dos partidos políticos e adoção da greve geral, ao mesmo tempo como ‘mito’ político e como processo de ação violenta para a conquista do poder”43. SOREL rejeitou os partidos, porque os considerava corrompidos; e sustentou que os sindicatos operários revolucionários é que representavam as correntes revolucionárias. Que fez Mussolini, isto é, o fascismo? Responde AFONSO ARINOS: “O fascismo triunfante, não tendo a intenção de levar a efeito a obra de destruição do capitalismo nem das instituições burguesas, preconizada por GEORGES SOREL, não adotou a tese do sindicalismo revolucionário. Ao contrário, transformou os sindicatos em órgãos políticos de apoio ao Governo”44. E prossegue ARINOS: “Também não tendo, fora da concepção de partido, outra forma de atuar politicamente, não pôde levar a cabo a destruição integral dos partidos. Limitou-se a fazer o que lhe convinha, isto é, a destruir todos os partidos com a exceção de um, que era o seu próprio”45. E concluiu: “Daí a tese do partido nacional único, dentro da prática fascista, que prevaleceu na Itália e Alemanha e que parece, até certo ponto, uma consequência natural da adaptação fascista do pensamento soreliano”46. Recorda AFONSO ARINOS que, na Alemanha, foi o Partido Trabalhista Alemão, fundado em janeiro de 1919 com um programa militar fascista, que se transformou no Partido Nacional-Socialista, o partido nazista, o partido de Adolf Hitler47 O partido único da revolução moderna, o comunista, pensa AFONSO ARINOS que Lenine o concebeu também por influência do livro de GEORGES SOREL. Diz ele: “Os marxistas da direita (men43 44 45 46 47
Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit.
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chevistas) se apegavam à tradição parlamentar da socialdemocracia ocidental. Lenine, marxista da esquerda, rompia com ela abertamente. Nada de evolução pacífica através da coexistência das diversas correntes. Era preciso distinguir claramente entre o movimento burguês do socialismo europeu e o movimento revolucionário do socialismo soviético. No fascismo, o poder devia escapar do Parlamento para as corporações e para o partido único. No comunismo se dava processo análogo: do Parlamento para os sovietes e para o partido único”.48 Terá razão AFONSO ARINOS, ao supor que a ideia do partido único dirigente da Revolução Comunista foi encontrada por Lenine em GEORGES SOREL? Parece que não. Por maior que haja sido a influência do livro e do pensamento de SOREL sobre o pensamento revolucionário da Europa, precisamente no período em que se desenvolviam os partidos revolucionários na Rússia e na Europa, a verdade é que a ideia de um partido único, vanguarda do proletariado e fator da transformação socialista da sociedade no rumo do comunismo, é inerente ao pensamento marxiano. Como construir o socialismo? Como liquidar e exterminar a burguesia? Senão pela mão fortíssima e inexorável de um partido único e unido da forma mais monolítica possível, sem divisões e dissidências enfraquecedoras do partido e do poder e desviadoras da direção para a grande meta final, o oceano largo do comunismo? Durante toda a sua vida trabalhosa, Karl Marx empenhou-se, com o máximo de suas forças e capacidade, em formar e desenvolver um partido proletário, ou o partido proletário, o partido da revolução comunista. Antes mesmo do Manifesto Comunista, que é de 1848, ele se preocupava com a ideia de criar tal partido. Lutar afincadamente por constituí-lo foi uma das demonstrações dadas por Marx de que teoria e prática devem se complementar reciprocamente, uma iluminando a outra. É o que ele denominou práxis. Fiel a essa ideia, Marx toda a vida foi um teórico militante e um militante teórico incansável. Suas ideias, teses e teorias foram engendradas em meio a lutas práticas, sob a motivação e necessidade de encontrar justificações e métodos para a sua ação prática multifária. Em Marx, a teoria é filha da prática, e a prática uma aplicação da teoria. 48 Afonso Arinos de Melo Franco, ob. cit. Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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Assim, Marx sentiu bem cedo a necessidade de um partido do proletariado. Ele a pregou e defendeu desde os primeiros anos de sua atividade de pensador político, econômico e filosófico. Quando aderiu à Liga dos Comunistas, ainda antes de 1848, da qual se tornaria dentro de pouco tempo o dirigente mais importante; quando fundou a Associação Internacional dos Trabalhadores, que também iria dirigir por muitos anos; e quando fundou o Partido Socialista Operário alemão. Na Conferência de Londres da Internacional, iniciada em 17 de setembro de 1871, Marx afirmou que a principal tarefa da Conferência era a de “proceder a uma nova organização que corresponda às exigências da situação”49. Ele colocou, como prioridade dos trabalhos da Conferência, a criação do partido proletário. E apoiou uma proposta de Eduard Vaillant, líder blanquista que participara da Comuna de Paris, de que os operários deviam “coligar as suas forças não menos no terreno político que no terreno econômico”50. Marx defendeu a ideia de que a classe operária devia dirigir a luta política – da qual a revolução proletária é uma forma superior –, e de que o êxito dessa revolução é impossível sem a organização do proletariado num partido político. Para Marx, os sindicatos não tinham condições de desempenhar o papel de educador político e de guia da classe operária; esse papel cabe ao partido do proletariado. Marx disse: “Nós temos de declarar aos governos: sabemos que vós sois o poder armado, dirigido contra os proletários; marcharemos contra vós com meios pacíficos onde nos seja possível e com as armas sempre que tal for necessário”51. Engels, que também interveio nos debates para refutar os anarquistas e os trade-unionistas, afirmou no seu discurso: “. é preciso que o partido operário seja constituído não como a cauda de qualquer partido burguês, mas como partido independente que tem o seu objetivo, a sua política própria”52. Decisivo, para espancar toda dúvida a respeito, o documento de uma resolução aprovada por essa Conferência Internacional de setembro de 1871; documento redigido por ninguém menos que Marx e Engels, que dizia: “A classe operária só pode agir como classe contra 49 50 51 52
Karl Marx, Moscovo. Edições Progresso, 1983. Karl Marx. Ob. cit. Karl Marx. Ob. cit. Karl Marx. Ob. cit.
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o poder total das classes possidentes na medida em que ela própria se constituir em partido político particular, em oposição a todas as antigas formações partidárias das classes possidentes”53. Note-se: Marx e Engels não falam senão no singular do partido político da classe operária. Era ínsito ao pensamento dos dois que a classe operária, para assumir o poder e promover a revolução socialista na direção do comunismo, não podia se organizar senão num partido único. Lenine o que fez foi retomar e continuar as ideias de Marx e de Engels quanto à organização de um partido político instrumento de ação revolucionária da classe operária. A unicidade do partido da classe operária era tão necessária que esse partido tinha de ser dirigido mediante o chamado centralismo democrático, no qual as decisões tomadas pelo partido não podem mais ser questionadas. Os partidos políticos e o direito positivo Os partidos políticos demoraram a ser acolhidos pelo direito positivo. Em toda parte. E não só pelas Constituições, mas também pela legislação ordinária. Eles existiam de fato, não de direito; para a sociologia, não para o direito. HANS KELSEN expressou uma oposição nova dos juristas, posição do constitucionalismo mais recente, ao dizer que deixar de inserir na Constituição normas reconhecedoras dos partidos políticos era “fechar os olhos à realidade”54. Já não se fecham mais os olhos à realidade. Foi o México o primeiro país a colocar na Constituição uma referência a partido político. A Constituição do México é de 1927. Ao tratar do Poder Legislativo, no capítulo III do Título III, a Constituição mexicana se refere a “partido político nacional”, para dizer que terá direito, quando alcançar 2,5% da votação total do país, a que sejam eleitos cinco dos seus candidatos e ainda a que seja eleito mais até ao máximo de vinte por cada 0,5% a mais dos votos expressos.
53 Karl Marx. Ob. cit. 54 Paulo Bonavides, ob. cit. Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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Após a Segunda Guerra Mundial, um grande número de Constituições previu a existência de partidos políticos. Na Itália, a Constituição de 1947, no seu artigo 49, declara: “Todos os cidadãos têm o direito de se associar livremente a partidos e concorrer democraticamente na vida política nacional”. Na Alemanha, a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, afirma no artigo 21: (1) “Os partidos colaboram na formação da vontade política do povo. A sua fundação é livre. A sua organização interna deve corres ponder aos princípios democráticos. Deverão prestar contas publicamente da procedência dos seus recursos. (2) Os partidos que pelos seus objetivos ou pelas atitudes dos seus adeptos tentarem prejudicar ou eliminar a ordem fundamental democrática e livre, ou pôr em perigo a existência da República Federal da Alemanha, são inconstitucionais. Cabe ao Tribunal Constitucional Federal decidir sobre questões de inconstitucionalidade”. Algumas Constituições estaduais da Alemanha seguem o modelo federal, com normas sobre partidos políticos. A Constituição do Uruguai, de 1966, incorporou os partidos políticos ao sistema de governo, a eles se referindo no artigo 77, §§ 4° e 5° e, ainda e principalmente, no 11º, assim redigido: “O Estado velará por assegurar aos partidos políticos a mais ampla liberdade. Sem prejuízo disso, os partidos deverão: a) exercer efetivamente a democracia interna na eleição de suas autoridades; b) dar a máxima publicidade a suas Cartas Orgânicas e Programas de Princípios, de forma tal que o cidadão possa conhecê-los amplamente”. A Constituição da França, de 1958, estatui sobre os partidos políticos no seu art. 4°: “Os partidos e agrupamentos políticos concorrem para a expressão do sufrágio. São livres a sua formação e o exercício de sua atividade e eles devem respeitar os princípios da soberania nacional e da democracia”. Note-se que a Constituição da França, no seu preâmbulo, incorpora-se ao seu texto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, cujo art. 2° diz: “O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.
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A Constituição de Cuba, de 15 de fevereiro de 1976, no seu artigo 5°, declara: “O Partido Comunista de Cuba, vanguarda organizada marxista-leninista da classe operária, é a força dirigente superior da sociedade e do Estado, que organiza e orienta os esforços comuns rumo aos altos fins da construção do socialismo e do avanço para a sociedade comunista”. O art. 6°, em seguida, afirma: “A União de Jovens Comunistas, organização da juventude avançada, sob a direção do Partido, trabalha para preparar os seus membros como futuros militantes do mesmo (mismo, no original) e contribui para a educação das novas gerações nos ideais do comunismo, mediante a sua incorporação ao estudo e às atividades patrióticas, laborais, militares, científicas e culturais”. A Constituição da Espanha, no art. 6°, afirma: “Os partidos políticos expressam o pluralismo político, concorrem na formação e manifestação da vontade popular e são instrumento fundamental para a participação política. Sua criação e o exercício de sua atividade são livres dentro do respeito à Constituição e à lei. Sua estrutura interna e funcionamento deverão ser democráticos”. No art. 20, § 3°, consigna-se o seguinte: “A lei regulará a organização e o controle parlamentar dos meios de comunicação social dependentes do Estado ou de qualquer ente público e garantirá o acesso a ditos meios dos grupos sociais e políticos significativos, respeitando o pluralismo da sociedade e das diversas línguas da Espanha”. Em Portugal, a Constituição de 1976, no artigo 10, declara: “1 – O povo exerce o poder político através do sufrágio universal, igual, direto, secreto e periódico e das demais formas previstas na Constituição. 2 – Os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular, no respeito pelos princípios da independência nacional e da democracia política.” Diz o art. 40: “Os partidos políticos e as organizações sindicais e profissionais têm direito a tempos de antena na rádio e na televisão, de acordo com a sua representatividade e segundo critérios a definir pela lei 2º. Os partidos políticos representados na Assembleia da República, e que não façam parte do governo, têm direito, nos termos da lei, a espaço nas publicações jornalísticas pertencentes a entidades públicas ou delas dependentes e a tempos de antena na rádio e na televisão, a ratear de acordo com sua Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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representatividade, de dimensão e duração e em tudo o mais iguais aos concedidos ao Governo, bem como o direito de resposta, nos mesmos órgãos, às declarações políticas do Governo”. A Constituição da União Soviética, de 07 de outubro de 1977, declara, no art. 6°: “A força dirigente e orientadora da sociedade soviética, o núcleo do seu sistema político e de todas as organizações estatais e sociais é o Partido Comunista da União Soviética. O PCUS existe para o povo e serve o povo. O Partido Comunista, munido com a doutrina marxista-leninista, determina a perspectiva geral do desenvolvimento da sociedade, a linha da política interna e externa da URSS, dirige a grande atividade criadora do Povo soviético e imprime um caráter planificado e cientificamente fundamentado à sua luta pelo triunfo do comunismo. Todas as organizações do partido atuam no âmbito da Constituição da URSS”. No Brasil, os partidos políticos, de 1932 em diante, tornaram-se nacionais. Foi o Código Eleitoral de 1932 que instituiu os partidos nacionais, a representação proporcional e a Justiça Eleitoral. A Constituição de 1934, porém, manteve os partidos estaduais, apesar do Código de 1932. E a partidos políticos não se referiu senão no art. 170, n° 9, nos termos seguintes: “O funcionário que se valer da sua autoridade em favor de partido político, ou exercer pressão partidária sobre os seus subordinados, será punido com a perda do cargo, quando provado o abuso, em processo judiciário”. No art. 26, redigido de forma estranha, há uma referência a “correntes de opinião”. “Somente à Câmara dos Deputados incumbe eleger a sua Mesa, regular a sua própria polícia, organizar a sua Secretaria com observância do art. 39, n° 6, e o seu Regimento Interno, no qual se assegurará, quanto possível, em todas as Comissões, a representação proporcional das correntes de opinião nelas definidas”. A Carta de 1937 extinguiu os partidos políticos. O Estado Novo tentou criar um partido único: a Legião Cívica Brasileira, anunciada em 27 de maio de 1938 por Amaral Peixoto, genro de Getúlio Vargas e interventor federal no Estado do Rio de Janeiro. A tentativa fracassou. A Constituição de 18 de setembro de 1946 refere-se aos partidos políticos nos seguintes artigos: “Art. 40: A cada uma das Câmaras 190
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compete dispor, em regimento interno, sobre sua organização, polícia, criação e provimento de cargos”; § 1° a infração do disposto neste artigo (art. 48, que regula as incompatibilidades e impedimentos dos deputados e senadores), ou a falta, sem licença, a sessões, por mais de seis meses consecutivos, importa perda do mandato, declarada pela Câmara a que pertença o deputado ou senador, mediante provocação de qualquer dos seus membros ou representação documentada de partido político ou do Procurador-Geral da República; art. 119, III: “a lei regulará a competência dos juízes e tribunais eleitorais. Entre as atribuições da justiça eleitoral, inclui-se: I – o registro e a cassação de registro dos partidos políticos”; art. 119, VII: “o conhecimento de reclamações relativas a obrigações impostas por lei aos partidos políticos, quanto à sua contabilidade e à apuração da origem dos seus recursos”; art. 141, § 13: “Art. 141– A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 13 – É vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer partido político ou associação, cujo programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem”. Conceito de partido político no Brasil Que é partido político, no Brasil? De acordo com o Código Eleitoral de 1932, consideravam-se partidos políticos: a) os que adquirissem personalidade jurídica, mediante inscrição, no registro a que se referia o art. 18 do Código Civil; b) os que, não tendo logrado personalidade jurídica, se apresentassem para igual finalidade, em caráter provisório, com o mínimo de 500 eleitores; c) as associações de classe legitimamente constituídas. A Lei n° 48, de 04 de maio de 1935, dispôs a respeito dos partidos: a) consideravam-se partidos políticos os que tivessem adquirido persona lidade jurídica nos termos da lei; b) admitir-se-iam como partidos provisórios, para a fase da eleição respectiva, grupos mínimos de 200 eleitores que em cada eleição registrassem candidatos. De acordo com o Decreto-Lei, nº 7.586, de 28 de maio de 1945, era partido político toda Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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associação de pelo menos 10 mil eleitores de cinco ou mais circunscrições eleitorais, que tivessem adquirido personalidade jurídica nos termos do Código Civil. O Decreto-Lei n° 9.258, de 14 de maio de 1946, definiu como partido político “toda associação de, pelo menos, 50.000 eleitores, distribuídos por cinco ou mais circunscrições eleitorais, e a nenhuma podendo pertencer menos de mil, que tiver adquirido personalidade jurídica nos termos do Código Civil”. O Código Eleitoral de 24 de junho de 1952 repetiu as mesmas exi gências. Na Lei Orgânica dos Partidos Políticos, que é a Lei n° 4.740, de 15 de julho de 1965, no art. 7°, se dispõe: “O partido político constituir-se-á, originariamente, de pelo menos 3% (três por cento) do eleitorado que votou na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distri buídos em 11 (onze) ou mais Estados, com o mínimo de 2% (dois por cento) em cada um”. O Ato Institucional n° 2, de 27 de outubro de 1965, extinguiu os partidos políticos. O Ato Complementar n° 4, de 20 de novembro de 1965, criou os partidos sucedâneos dos partidos extintos, dispondo no art. 1°: “Aos membros efetivos do Congresso Nacional em número não inferior a 120 deputados e 20 senadores caberá a iniciativa de promover a criação, dentro do prazo de 45 dias, de organizações que terão, nos termos do presente ato, atribuições de partidos políticos, enquanto estes não se constituírem.” A Lei Fundamental (ou Carta Constitucional) de 1967 prescreveu: Art. 149 – A organização, o funcionamento e a extinção dos partidos políticos serão regulados em lei federal, observados os seguintes princípios: I – regime representativo e democrático, baseado na pluralidade de partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem; II – personalidade jurídica, mediante registro dos estatutos; III – atuação permanente, dentro de programa aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral, e sem vinculação, de qualquer natureza, com a ação de governos, entidades ou partidos estran geiros; IV – fiscalização financeira; V – disciplina partidária; 192
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VI – âmbito nacional, sem prejuízo das funções deliberativas dos diretórios locais; VII – exigências de dez por cento do eleitorado que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos em dois terços do Estado, com o mínimo de sete por cento em cada um deles, bem assim dez por cento de deputados, em, pelo menos, um terço dos Estados, e dez por cento dos se nadores; VIII – proibição de coligações partidárias”.
A mesma coisa fez a Carta de 1969, que inseriu um capítulo, “Dos Partidos Políticos”, no Título II “Da Declaração de Direitos”. Assim, o partido político era concebido, nela como um direito individual. Eis o que dispunha a Carta de 1969, antes da Emenda Constitucional n° 25, de 1985: “Art. 151 – A organização, o funcionamento e a extinção dos partidos políticos serão regulados em lei federal, observados os seguintes princípios: I – regime representativo e democrático, baseado na pluralidade de partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem; II – personalidade jurídica, mediante registro dos estatutos; III – atuação permanente dentro de programa aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral e sem vinculação de qualquer natureza, com ação de governo, entidades ou partidos estran geiros; IV – fiscalização financeira; V – disciplina partidária; VI – âmbito nacional, sem prejuízo das funções deliberativas dos diretórios locais; VII – exigência de cinco por cento do eleitorado que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos pelo menos em sete Estados, com o mínimo de sete por cento em cada um deles; VIII – proibição de coligações partidárias.
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O texto da Carta de 1969 sofreu emendas sucessivas. Não vamos rastreá-las. Temos, desde 05 de outubro de 1988, uma nova Constituição elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte instalada em 1° de fevereiro de 1987. Eis o que dispõe a nova Constituição: Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: I – caráter nacional; II – proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes; III – prestação de contas à Justiça Eleitoral; IV – funcionamento parlamentar de acordo com a lei. § 1° É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento, devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidárias. § 2° Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei. § 4° É vedada a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar.
Evolução histórica dos partidos políticos no Brasil Evidente que, por força da lei que faz existir partidos políticos onde exista coletividade humana, sempre se formaram partidos políticos no Brasil. É claro que eles não assumiram, em todas as fases da nossa história, um caráter igual ou semelhante ao dos partidos políticos atuais. No Brasil Colônia Na fase do Brasil Colônia de Portugal, mormente no período mais próximo da conquista da independência formal em 1822, existiam dois grandes partidos políticos em nosso país: o da independência e o da não independência. Sendo o homem um animal dissidente, e não 194
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constituindo o brasileiro à exceção a esse axioma, aqueles dois partidos subdividiam-se em facções. Cada qual com o seu matriz. O partido dos independencistas, por exemplo, tinha ao menos três correntes nítidas: a dos que queriam a independência com república; a dos que defendiam a independência com monarquia; e a dos que pregavam uma semi-independência, com o Brasil unido a Portugal, embora não na condição de colônia. Uma corrente federalista defensora de uma autonomia maior para as províncias (que ainda não tinham essa classificação) permeava os grupos preconizadores da independência completa. No Brasil Império Durante o Segundo Império, dois partidos políticos alternaram-se no governo: o Conservador e o Liberal. O Conservador, nascido com a Lei de Interpretação, de 1840; o Liberal, junto com o Ato Adicional, de 1834. As diferenças de composição e de princípios e fins ideológicos, entre os dois partidos, diluíram-se com o andar do tempo. Os Conservadores representavam os interesses da agricultura, dos grandes fazendeiros e dos grandes comerciantes. Os Liberais, os interesses da burguesia urbana, da pequena burguesia, dos profissionais liberais (entre os quais os intelectuais). Depois que o Império entrou naquele período longo de estabilidade política que sucedeu às agitações das revoluções regionais – Farroupilha, no Rio Grande do Sul, Sabinada, na Bahia, dos Cabanos, no Pará –, vigorou, na política brasileira, aquela verdade de que não havia nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder: conservadores e liberais eram farinha do mesmo saco. Aliás, o manifesto do Partido Conservador foi lançado por um ex- liberal, um grande liberal: Bernardo Pereira de Vasconcelos, a quem Joaquim Nabuco chamou de “gigante intelectual” e Armitage, “o Mirabeau brasileiro”. Ficaram famosas – e ainda hoje parecem ressoar – estas palavras de Bernardo Pereira de Vasconcelos ao passar de liberal a conservador: “Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas ideias práticas; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade; os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a so Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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ciedade, que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desor ganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la, quero salvá-la; e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono a causa que defendi, no dia do seu perigo, de sua fraqueza; deixo-a no dia que tão seguro é o seu triunfo que até o excesso a compromete. Quem sabe se, como hoje defendo o país contra a desorganização, depois de o haver defendido contra o despotismo e as comissões militares, não terei algum dia de dar outra vez a minha voz ao apoio e à defesa da liberdade? Os perigos da sociedade variam; o vento das tempestades nem sempre é o mesmo: como há de o político, cego e imutável, servir o seu país”?55 Mais ou menos da Maioridade, em 1840, até surgir o Partido Republicano, em 1870, uma situação de marasmo perdura estável no Brasil. Apenas um fator novo toma corpo, gradativamente: o movimento abolicionista, que constitui um partido informe a permear os outros partidos. O abolicionismo era uma causa transitória: o partido acabou no dia 13 de maio de 1888. Na Primeira República Um ano e meio após a Abolição, veio à República. A primeira Cons tituição republicana fez realidade uma aspiração antiga: a federação, com autonomia ampla para as províncias tornadas Estados. Os partidos políticos se estadualizaram. Cada Estado-Membro se fechou em si, presa das suas respectivas famílias ou oligarquias dominantes. O Brasil entrou no período café-com-leite: da parceria e revezamento de São Paulo e Minas Gerais na presidência da República. O país era monocultor: o café era a fonte da prosperidade nacional. Mas um esforço já se começava a fazer no rumo da industrialização, que a suspensão das importações, durante a Primeira Guerra Mundial, acelerou. Muita gente pregava a necessidade de partidos nacionais. Os chefes políticos da Primeira República não os queriam. A dominação pelo Partido Republicano Paulista – o PRP – e pelo Partido Republicano Mineiro – o PRM – satisfazia às classes dominantes do país. 55 FERREIRA, Pinto. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno RJ, José Konfino Editor, 1955.
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Porém, um dos fundadores da República, Rui Barbosa, conferiu dimensão nacional à sua campanha civilista, em 1910. Nove anos depois, o mesmo líder de estatura pequena, mas imenso na sua envergadura intelectual, falou pela primeira vez em socialismo e lançou a semente da democracia cristã no Brasil: duas concepções políticas incompatíveis com o provincialismo. Na Segunda República Aconteceu a Revolução de 1930, que não foi bem revolução, porque não mudou o país senão na superfície política. Ela foi uma resposta incompleta a anseios nacionais profundos. A dialética entre a mudança e a conservação não conseguiu uma síntese pacífica: rebentou a insurreição armada. Outubro de 1930 foi a supuração de um processo que vinha acumulando sintomas desde 1918; desde 1910; desde a proclamação da República; desde... Os protagonistas do processo não tiveram nenhuma ou tiveram muito pouca consciência do que faziam. Muitos dos tenentes de 1922 e dos comandantes da Coluna Prestes, que ajudaram a alçar Getúlio Vargas ao comando da “revolução” vitoriosa, bem poderiam ser considerados como patronos ideológicos do futuro udenismo organizado sob forma de partido político a partir de 1945. Eram quase todos udenistas “avant la lettre”, pois combatiam apenas os vícios e males mais superficiais e perceptíveis da política brasileira. Os males estruturais eles não enxergavam. Um dos pontos do programa do movimento revolucionário de 1930 era o voto secreto: uma reivindicação antiga, proposta até por escritores como Monteiro Lobato, um dos intérpretes da consciência da Nação naquele período. Em 1932, o novo Código Eleitoral instituiu também a Justiça Eleitoral, também uma reivindicação de forças progressistas, e que se transfez, depressa, em favor positivo de saúde eleitoral e política para o país. O mesmo Código Eleitoral de 1932 trouxe outro avanço importante: a representação proporcional. Infelizmente não acolhida pela Cons tituição de 1934. Mas repristinada, digamos assim, pela Constituição de 1946. A representação proporcional recorda AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO, havia sido pregada por Assis Brasil, Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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ainda nos primeiros anos da República. Em 1929, João Cabral retomou lhe as ideias, pregando, em livro, o voto secreto, a justiça eleitoral e a representação proporcional. Na Terceira República A Terceira República durou pouco mais de três anos: corresponde ao período de vigência da fugaz Constituição de 1934. Esta não acolheu a possibilidade de partidos políticos de âmbito nacional. Mas confirmou o sistema de representação proporcional e a Justiça Eleitoral. Antes que se realizasse a eleição do Presidente da República, marcada para janeiro de 1938, Getúlio Vargas, com o apoio de setores predomi nantes das Forças Armadas, implantou a ditadura que se denominou Estado Novo: em 10 de novembro de 1937. Os oito anos seguintes foram de supressão das liberdades políticas. Na Quarta República O fim do Estado Novo trouxe a possibilização legal dos partidos de âmbito nacional. Em 29 de outubro de 1945 Getúlio Vargas foi deposto: terminava o Estado Novo. No dia 2 de dezembro realizaram-se eleições gerais: para Presidente da República, para deputados federais e senadores. Os deputados federais e senadores reuniram-se em Assembleia Nacional Constituinte, a partir de fevereiro de 1946. A Constituição promulgada por essa Assembleia, no dia 19 de setembro de 1946, consagrou o sistema pluripartidário. Os deputados e senadores da Assembleia Constituinte de 1946 foram eleitos por partidos políticos de âmbito nacional. Entre eles, pela primeira vez legal, o Partido Comunista do Brasil. Os principais partidos políticos do regime de 1946 foram o Partido Social Democrático – PSD; a União Democrática Nacional – UDN; o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB; o Partido Comunista do Brasil – PCB; e o Partido Republicano – PR. Houve outros, sem expressão eleitoral, como o Partido Trabalhista Nacional – PTN; o Partido de Representação Popular (integralista, de Plínio Salgado) – PRP; em 1960, foi fundado, pelo deputado gaúcho Fernando Ferrari, 198
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dissidente do Partido Trabalhista Brasileiro, um partido de existência efêmera: o Movimento Trabalhista Renovador – MTR. O Partido Social Democrático, PSD, era o partido da elite política e dirigente formada e desenvolvida pelo Estado Novo – pela ditadura de Getúlio Vargas, ditadura há um tempo capitalista, burguesa, e estatizante, O PSD representava os interesses dos fazendeiros, dos industriais, dos banqueiros, de profissionais liberais, de doutrinadores do liberalismo (político e econômico), de uma espécie de políticos caracteristicamente pragmáticos e praticantes da técnica da conciliação como meio e forma de solução de conflitos políticos. Aberto à intervenção do Estado na economia, algo reformista, anticomunista, mas não de todo hostil a uma convivência com os comunistas e esquerdistas em geral. Um partido maleável, muito mais atento aos fins do que a princípios, e conduzido por homens experientes e habilidosos, mestres da tática de preservação do poder. Max Weber c classificaria de partido de patronagem – não ideológico. Mas a verdade é que o PSD era um partido ideológico: de uma ideologia burguesa armada de astúcia. O PSD foi o partido de homens como Tancredo Neves, Juscelino Kubitschek de Oliveira, Gustavo Capanema, Amaral Peixoto, Pedro Ludovico Teixeira: homens providos da experiência da Revolução de 1930 que ajudaram a fazer, e do poder do Estado Novo, que permitiram instalar-se, que contribuíram para perdurar, e com o qual se solidarizaram abertamente, até como servidores fiéis (Gustavo Capanema, Juscelino Kubitschek e Pedro Ludovico Teixeira). Ideologicamente, eram políticos impregnados de um nacionalismo impreciso, de urna certa permeabilidade a reformas sociais não profundas, de um populismo vago, astuto e interesseiro de uma crença na capacidade de desenvolvimento e de autorrenovação de capitalismo. O PSD criou e desenvolveu um tipo de comportamento poli tico denominado pessedismo, palavra com que se designava muita coisa vaga: uma combinação de habilidade e permeabilidade políticas, de nacionalismo superficial e retórico, de pragmatismo administrativo e de certo cinismo, reconceituado pelos próprios pessedistas como pragmatismo, ou realismo, eleitoral. O pessedismo sobrevive ainda hoje. Tal come o udenismo. Parece que o que morreu das três forças políticas maiores do regime da Constituição de 1946, foi o trabalhismo.
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O PSD venceu a eleição presidencial de 1945, com o general Eurico Gaspar Dutra; ajudou vencer a eleição de 1950, traindo o seu próprio candidato, Cristiano Machado, e votando no candidato do PTB, Getúlio Vargas; e, em 1955, novamente triunfou, com a aliança do PTB, elegendo presidente o ex-governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira. De 1946 a 1961, portanto, o PSD esteve no governo da União. A aliança do PSD com o PTB, diz-se que premeditada por Getúlio Vargas, principal responsável pela fundação de ambos, governou o Brasil de 1946 a 1961. Há quem pensa que essa aliança assegurou uma estabilidade, ainda que relativa, positiva à vida institucional do Brasil. Ao quebrar-se a aliança, em 1963-1964, após a derrota para a UDN (mas principalmente para o fenômeno individual Jânio Quadros), e com a inclinação do PTB para assumir sozinho o governo federal, as instituições ruíram. Aconteceu o golpe político-militar de abril de 1964. A União Democrática Nacional, UDN, foi caracterizada por AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO, um dos seus fundadores, como a “legítima herdeira da tradição liberal da reforma dos costumes políticos e administrativos”, tradição formada, diz ele, pela campanha civilista de Rui Barbosa, pelo movimento da Reação Republicana e pelo da Aliança Liberal. A UDN apareceu pouco antes do fim do Estado Novo, como uma reação franca e direta contra ele. Ela foi já um sintoma de que o Estado Novo agonizava. “Nasceu ao tempo da ilegalidade dos partidos”, lembra AFONSO ARINOS, “a princípio como um ponto de reunião de todos os que pretendiam lutar contra a ditadura”. Surgiu como uma união, uma união democrática, uma união democrática nacional: uma conglomeração de partidos, ou de correntes políticas e ideológicas. O nome foi escolhido por AFONSO ARINOS – um intelectual liberal-burguês, filho de família mineira tradicional, fornecedora de homens públicos ao país, e Caio Prado Júnior – um sociólogo, economista, historiador e pensador marxista, embora empresário e filho, também ele, de uma família tradicional da aristocracia de São Paulo. Foi uma união precária, transitória, efêmera, a UDN original. Dela se afastaram, logo que acabou a precisão de clandestinidade, os comunistas e os socialistas, os quais constituíram logo os seus próprios 200
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partidos. Com a saída dos comunistas e dos socialistas, diz AFONSO ARINOS, a UDN adquiriu “uma fisionomia própria” – a de um partido liberal burguês. Nela permaneceram próceres com uma feição política marcada e marcante: um Prado Kelly, um Milton Campos, um Eduardo Gomes, um Gabriel Passos, um Afonso Arinos de Melo Franco, um Pedro Aleixo, um Carlos Lacerda, um João Agripino, um Bilac Pinto. Qual a fisionomia da UDN depurada dos comunistas e socialistas? AFONSO ARINOS, escrevendo ainda em 1948, depõe: “Seus ideais moralizadores, sua confiança no progresso democrático, sua preocupação com as liberdades individuais fazem dela o padrão do liberalismo burguês. A figura principal do partido, o brigadeiro Eduardo Gomes, representa bem o espírito liberal, como definimos. Eduardo Gomes é o Prestes da burguesia como o Capitão vermelho é o brigadeiro do proletariado”. Partido da burguesia, eis o que era, pois, a UDN, na definição do seu ideólogo principal, AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO. Mas mesmo depurada dos elementos de esquerda a UDN não teve, nunca, unidade. Logo se caracterizaram dentro dela duas alas: uma nacionalista; outra, internacionalista (entreguista, como se dizia antes de 1964). Nacionalistas foram um Gabriel Passos, de Minas Gerais, e um João Agripino, da Paraíba. Entreguista, um Carlos Lacerda, jornalista que, eleito vereador no antigo Distrito Federal, em 1945, depois de uma militância confusa no Partido Comunista, pouco a pouco alcançou uma ascendência intelectual quase predominante dentro da UDN e lhe infundiu uma orientação ideológica muito forte, de conteúdo moralista, católico, e anticomunista, de um anticomunismo odiento, destrutivo maniqueísta, muito próprio do período de “guerra fria” entre Estados Unidos e União Soviética, no final da década de 1940 e durante toda a década de 1950 e até meados de 1960. A atuação e influência de Carlos Lacerda conduziram a UDN a uma conduta contraditória com os princípios liberais do seu programa. Assim aconteceu em 1950, quando Lacerda deflagrou e sustentou uma campanha, no seu jornal, para que se não empossasse o candidato eleito à presidência da República no pleito de outubro daquele ano, Getúlio Vargas, com base no argumento de que ele não alcançara a maioria absoluta dos votos. Quatro anos e meio depois, o mesmo Lacerda sustentou uma campanha feroz para Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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impedir que o governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira, se candidatasse, pela coligação PSD – PTB, à presidência da República. E quando Juscelino foi eleito, Lacerda esteve comprometido com a tentativa de golpe feita por Café Filho e Carlos Luz para impedir a posse de Juscelino – tentativa abortada pela ação pronta e decisiva do Ministro da Guerra, general Henrique Duffles Teixeira Lott. Em todas as suas campanhas e ações golpistas, Carlos Lacerda acabou envolvendo, ora mais, ora menos, o seu partido. Com isso, a UDN perdeu a sua substância político-moral e a fisionomia liberal-democrática. Perdeu-a tanto, que se tornou e principal partido de incentivo – e depois de sustentação – da facção militar que depôs o presidente João Goulart e, com o Ato Institucional depois numerado como um, sepultou, em 09 de abril de 1964, e para sempre, a Constituição de 1946. Apesar de tudo e contraditoriamente, a UDN contribuiu, no Congresso Nacional, de modo decisivo, para uma conquista importantíssima da cor’ rente nacionalista: a lei instituidora do monopólio estatal do petróleo, aprovada em 1953, durante o governo de Getúlio Vargas. A UDN trilhou o caminho eleitoral – preterindo, dessa vez, o apelo aos quartéis – no pleito presidencial de 1960, ao vislumbrar a possibilidade de vitória na candidatura de Jânio Quadros. A opção se revelou certeira, sob o aspecto do oportunismo (na acepção correta desta palavra, senso de oportunidade): Jânio foi eleito com 48% dos votos. Mas durou pouco a ilusão de vitória da UDN: Jânio Quadros, muito personalista e autoritário, entrou a conflitar com o principal partido que o ajudara a ganhar a eleição. Particularmente com Carlos Lacerda, eleito, ao mesmo tempo em que ele, governador do recém-criado Estado da Guanabara. Jânio se afastou muito depressa da linha política da UDN, sobretudo na sua política externa, paradoxalmente engendrada e executada por um udenista histórico, Afonso Arinos de Melo Franco. Na véspera da renúncia de Jânio, em 25 de agosto de 1961, a UDN se encontrava na iminência de romper oficialmente com ele. Dois encontros de seus dirigentes regionais, os primeiros de uma série programada, sedimentaram a decisão da UDN de denunciar publicamente o seu apoio a Jânio. Que, por sua vez, de forma confusa, começava a buscar apoio (de que precisava no Congresso Nacional) em partidos até adversários, 202
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especialmente no PTB (que, também paradoxalmente, o elegera, em 1958, deputado federal pelo Paraná). A UDN, principalmente pela ação do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, apoiou a tentativa frustrada dos ministros militares de negar posse ao vice-presidente João Goulart. A contragosto, aceitou a solução conciliatória da emenda que instituiu o sistema parlamentarista de governo, com João Goulart na presidência da República. A conspiração para derrubar João Goulart começou logo após a sua posse na presidência da República. A UDN participou dessa conspiração. A ação depositária – isto é, o golpe político-militar – contra João Goulart foi deflagrada no dia 31 de março de 1964 por um dos próceres da UDN: Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais. E foi sustentada, com muita energia e belicosidade, pelo governador da Guanabara – Carlos Lacerda. A UDN inteira embarcou na aventura do golpe político-militar de abril de 1964 – com a exceção, talvez única, do governador de Sergipe, Seixas Dória. Este foi preso punido de muitos modos – como a perda dos direitos políticos por dez anos. Mas a UDN, embora o tentasse, não conseguiu ser o partido dirigente do processo político que se autodenominou (por astúcia maquiavélica de Francisco Campos, aquela inteligência brilhante sempre disponível para servir a ditaduras) Revolução. Forneceu quadros ao governo, até mesmo vestais, como Milton Campos, temporariamente distraído de velar sua biografia. Mas acabou desaparecendo, no vértice de uma crise política, em outubro de 1965, por efeito do Ato Institucional n° 2. Ela desapareceu juntamente com os demais partidos, para darem lugar a um sistema bipartidário que vigoraria por quatorze anos. Desaparecia a organização partidária formal – a sigla. Mas permaneceu a essência: o udenismo, tão fácil de identificar, sempre, nas ideias e no comportamento de muitos políticos que se distribuem principalmente entre o PMDB, o PDS e o PFL. O udenismo pode ser definido como uma visão do mundo: uma visão do mundo moralista, formalista, bacharelesca e abstrata: divorciada da experiência prática. Milton Campos foi bem um exemplar de conduta udenista: imagem de pureza e honestidade, mas uma pureza e uma honestidade de quem se Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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abstinham de agir, com receio ou medo de se sujar, de se comprometer; mas que, tendo de agir, agiu em contradição com os seus próprios princípios (servindo à ditadura militar). Isso certamente por causa de outra característica udenista: a fidelidade aos valores capitalistas até ao ponto de, para preservá-los, ser capaz de sacrificar todos os demais valores. O Partido Trabalhista Brasileiro, PTB, foi criado por Getúlio Vargas para lhe servir de instrumento de penetração e controle político entre as classes assalariadas. Com isso, Getúlio atendia ao seu próprio projeto político pessoal e aos interesses de classe a que, em verdade, pertencia e era fiel: a burguesia. A missão e papel do PTB eram os de neutralizar a penetração e influência da ideologia política do comunismo entre as classes assalariadas. O PTB cresceu muito, e bem depressa, durante os dezoito anos que durou a Constituição de 1946. Quando aconteceu o golpe político-militar de 1964, já era um partido fortemente representativo: tinha o maior número de deputados federais, controlava alguns governos estaduais, tinha o seu principal dirigente na Presidência da República, e se preparava para, em 1965, lançar candidato próprio à presidência. O crescimento do PTB foi um dos muitos fatores do golpe político-militar de 1964: uma causa ainda não devidamente estudada. O terremoto político de abril de 1964 interrompeu o desenvolvimento dessa força política saudável, o trabalhismo, que crescia celeremente. O PTB foi cortado cerce no momento em que começava a avançar numa fase de autodepuração político-ideológica. Os elementos de clientelismo, de fisiologismo, de peleguismo (palavra com que se designava a liderança operária inautêntica que servia antes ao Governo do que aos interesses dos operários), começavam a ser esvurmados em benefício de uma estrutura partidária honesta e ideologicamente definida. O trabalhismo já tinha os seus teorizadores e ideólogos, doutrinadores políticos respeitados, como Alberto Pasqualini, Temperani Pereira, Guerreiro Ramos e outros. Os problemas apontados por AFONSO ARINOS, em 1948, para o crescimento do PTB, já iam sendo superados: a falta de domínio do mecanismo sindical; o declínio da popularidade de Getúlio Vargas; a ausência de um quadro de dirigentes intelectuais com “orientação clara, segura e homogênea”. Poucos anos haviam passado desde a sua fundação, e o PTB já controlava uma grande 204
Textos Jurídicos (Para a constituinte de 1987-1988 e sobre outros temas)
parte dos sindicatos, progressivamente sem os vícios do chamado peleguismo, disputando com os comunistas e muitas vezes suplantando-os; Getúlio, eleito em 1950, Presidente da República e principalmente depois do seu suicídio em 1954, tornara-se uma bandeira emocional, e um tanto ideológica, poderosa, nas mãos dos trabalhistas; quadros intelectuais importantes, como Santiago Dantas, Temperani Pereira, Guer reiro Ramos, Roland Corbisier e Paulo Alberto Monteiro de Barros, enri queceram intelectualmente o partido e lhe deram penetração na classe média intelectualizada, antes impermeável ao trabalhismo e quase totalmente dividida entre os comunistas e socialistas, de um lado, e os liberais conservadores e reacionários de direita, de outro lado. O depuramento ideológico do PTB se processava com rapidez. Mas sobreveio a chacina política de abril – e dos meses seguintes – de 1964. O trabalhismo foi extinto pelo sistema político burocrático-militar que imperou no Brasil de 1964 a 1985. Enquanto ideologia política, o trabalhismo está destroçado e sem manifestar sinais de revivescência. Mais de uma dezena de partidos existiam no regime constitucional de 1946 – na Quinta República. O Partido Comunista do Brasil foi reposto na ilegalidade em 1947, por causa de um incidente parlamentar aproveitado como pretexto: indagado por Juracy Magalhães, no Senado, sobre de que lado ficaria em caso de guerra entre o Brasil e a União Soviética, o líder comunista Luís Carlos Prestes não soube responder: proferiu um discurso longo para justificar o seu apoio à União Soviética no conflito com o imperialismo... O registro do PCB na Justiça Eleitoral foi cancelado, e os mandatos dos deputados e dos senadores comunistas cassados... Clandestino, o PCB continuou a atuar, mas camuflado, dissimulado, por meio de elementos infiltrados nesse e naquele partido. O golpe político-militar de 1964 atingiu-o num momento em que atuava quase às claras, pronto para retornar à legalidade. Sobrevieram mais vinte e um anos, lon guíssimos, sofridíssimos, de clandestinidade, durante os quais, sobretudo até 1976, a repressão oficial não lhe poupou aflições e perseguições. Desde 1985, em virtude de emenda constitucional proposta pelo governo da Aliança Democrática, responsável pela eleição de Tancredo Neves e José Sarney à presidência e vice-presidência da República, o PCB – assim como os demais partidos antes Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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ilegais – vem recolocado em situação legal, atuando à luz do dia, com representantes na Câmara dos Deputados. O Partido Socialista Brasileiro, PSB, começou com alguma força, em 1945, mas logo se tornou um partido de terceiro ou quarto grau, na constelação dos partidos políticos brasileiros. Caracterizou-se como um partido de classe média, de intelectuais e artistas, um partido de gente decente, mas de pouco voto, uma espécie de UDN de esquerda. Extinto com os demais partidos, em 1965, reorganizou-se há três anos. Tem alguns deputados federais e um senador. E representa a mesma fisionomia que teve entre 1945 e 1965: um partido decente, mas sem vocação para o poder. O Partido Democrata Cristão, PDC, ia se desenvolvendo firmemente, embora devagar, até ser extinto em 1965. O seu desenvolvimento correspondia, internamente, no Brasil, ao da democracia-cristã da Itália, da França e do Chile. Em seus quadros, havia políticos eleitoralmente ascendentes, como Franco Montoro e Paulo de Tarso. Quando o PDC acabou, Montoro ajudou a fundar o Movimento Democrático Brasileiro, MDB, no qual permanece até hoje. O PDC pré-1964 representava uma extensão, no âmbito e no plano da política oficial, da ação desenvolvida por organizações católicas, do catolicismo dos padres operários, dos dominicanos revolucionários, da JUC (Juventude Universitária Católica), JOC (Juventude Operária Católica) e JEC (Juventude Estudantil Católica). Essas entidades foram concebidas e formadas para atuar entre a juventude, com uma função de neutralizar a influência e atuação dos comunistas. Com o tempo, elas se impregnaram, com intensidade, de um sentimento profundo das injustiças sociais e da necessidade (e conveniência) de resolvê-las, ou, ao menos, de amenizá-las. O Partido Libertador, PL, era o partido de Raul Pilla: um partido devotado à causa da instituição do sistema de governo parlamentarista no Brasil. A sua pouca influência se concentrava quase que somente no Rio Grande do Sul, terra de Raul Pilla, um político que continuava e sustentava a tradição parlamentarista dos principais pensadores políticos do Rio Grande do Sul.
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Na Sexta República Os partidos políticos do regime constitucional de 1946 foram extintos em 1965, em outubro, pelo Ato Institucional n° 2. Em lugar deles, foram criados dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional – ARENA – e o Movimento Democrático Brasileiro – MDB. Ingressou então o Brasil numa fase anômala de bipartidarismo. A ARENA era o partido do Governo: do sistema militar-burocrático. O MDB, o da Oposição consentida (mas nem sempre). Com essa polarização, os políticos escapos às suspensões de direitos políticos e cassações de mandatos, ou que não preferiram o silêncio, se reagruparam nos dois únicos partidos existentes. Na ARENA se misturaram políticos oriundos de todos os partidos extintos, até mesmo dos partidos adversários do sistema agora dominante. No MDB se abrigaram políticos comprometidos, antes de 1964, com as posições do nacionalismo, do socialismo, da democracia-cristã reformista, do liberalismo pessedista, do trabalhismo. No início, o MDB foi uma organização partidária fraca. Mas ele cresceu rápido. Em 1974, obteve uma vitória grande, ao eleger dezesseis senadores. O significado desse acontecimento era evidente: a sociedade manifestava, veementemente, a sua vontade de romper as inibições do regime de ditadura vigente, e recuperar a liberdade política. A elite da sociedade brasileira, integrada pela classe dos intelectuais, de uma grande parte do clero católico, de numerosos empresários, de muitos políticos com antigos compromissos liberais, e de outros muitos políticos emergentes e também liberais, assumiu a direção do processo de mudança. Mudança de quê para quê? Mudança no sentido da restauração e já então do desenvolvimento e aperfeiçoamento de métodos democráticos de governação e decisão. Para essa mudança se encaminhar, concorriam outros fatores, que não cabe aqui analisar. Mencionemos apenas o fator da conjuntura política internacional, em que a política externa do Governo dos Estados Unidos, para ser coerente com a sua luta (do presidente Jimmy Carter) contra o desrespeito aos direitos humanos em todos os países, teve de condenar a ditadura no Brasil. E outro fator: a exaustão econômica do regime brasileiro, em parte consequente, também, dos Partidos políticos: aspectos do fenômeno
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problemas existentes na economia ocidental, provocados pela elevação crítica e abrupta dos preços do petróleo. O regime político brasileiro viu-se obrigado a liberalizar-se. E o fez sob a coordenação segura da estratégia militar representada ativamente no poder. Os estrategistas da liberalização deram-lhe o nome, primeiro, de “distensão, lenta, gradual e segura”; e, depois, de “abertura política”. Afinal, o Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968, que imperava por sobre a Carta Constitucional de 1969, foi ab-rogado, naquilo em que conflitasse com a Carta (continuando, portanto, em vigor até à promulgação da Constituição de 05 de outubro de 1988 – coisa de que todo mundo fez questão de não se aperceber e que ninguém, num pacto geral de silêncio omissivo, nunca mencionou). Permitiu-se a formação de novos partidos, exceto o comunista. Concedeu-se anistia quase geral e quase irrestrita, bastante ampla para permitir o retorno ao Brasil das centenas de pessoas que se encontravam exiladas. Com a reformulação do quadro dos partidos, a ARENA virou PDS – Partido Democrático Social. O MDB mudou de nome: passou a chamar-se PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro. O PDS continuou a ser o partido de sustentação do sistema militar-tecnocrático. O PMDB prosseguiu sendo uma legenda detrás da qual se abrigavam as correntes, numerosas e diversas entre si, que se opunham ao sistema político ainda dominante, mas, todos sentiam, em processo de desintegração. Entre os novos partidos formados após a extinção da ARENA e do MDB, havia já os atuais Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Na assim chamada Nova República O sistema militar-tecnocrático ocupante do poder se desintegrava com rapidez. Em 1984, formou-se uma aliança entre os partidos de oposição a esse sistema e uma parte dissidente do partido do governo federal, o PDS: a Aliança Democrática. Essa “frente única” derrotou, no Colégio Eleitoral, a candidatura adversária, e elegeu Tancredo Neves e José Sarney presidente e vice-presidente da República. Tancredo, 208
Textos Jurídicos (Para a constituinte de 1987-1988 e sobre outros temas)
porém, não chegou a tomar posse do cargo: faleceu de maneira trágica, que traumatizou a Nação. Sarney assumiu o cargo. No ímpeto inicial do governo da Aliança Democrática, fizeram-se algumas alterações na Carta vigente, mediante emendas propostas pelo presidente da República ao Congresso Nacional. Uma delas convocou a Assembleia Nacional Constituinte para 1° de fevereiro de 1987. Uma outra permitiu a formação livre de partidos políticos, e, com isso, deixou vir à legalidade partidos que foram ilegais por mais de trinta anos. Uma outra restabeleceu a eleição direta para presidente da República. Todas essas mudanças se encontram superadas pelo advento da nova Constituição. O quadro dos principais partidos políticos nacionais passou a ser este: Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB; Partido Democrático Social – PDS; Partido da Frente Liberal – PFL; Partido dos Trabalhadores – PT; Partido Democrático Trabalhista – PDT; Partido Trabalhista Brasileiro – PTB; Partido Comunista Brasileiro – PCB; Partido Comunista do Brasil – PC do B; Partido Liberal – PL; Partido Socialista Brasileiro – PSB; Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB. Existem outros partidos, além desses. A maioria são siglas com representatividade política e eleitoral escassa. Talvez tenham razão às pessoas que julgam esse quadro dos partidos mais efêmero do que costumam sê-lo os quadros de partidos no Brasil. A evolução histórica poderá determinar mudanças, com fusões, extinções e surgimento de outros partidos.
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Dois temas importantes – Biografias “não-autorizadas” e limites de citações de livros (Texto publicado na Revista de Informação Legislativa
a. 46 n. 181 jan/mar 2009
Sumário Registro propedêutico. Uma observação preliminar: a necessidade de interpretar. A questão das biografias “não-autorizadas”. O Direito: a Constituição Federal e Declarações Internacionais de Direitos. Legislação infraconstitucional: Código Civil. Art. 20. Da jurisprudência sobre essa matéria. O Projeto Antônio Palocci. A questão das citações: uma observação preliminar sobre citações em textos jurídicos e judiciários. Citações em obras literárias. Conclusão. Registro propedêutico Dois temas jurídicos muito importantes que não têm sido conveniente e adequadamente tratados, no Brasil, não só pela produção doutrinal, mas também pela jurisprudência, que ainda se não constituiu sobre tais matérias nem mesmo no nível de primeira instância: o das biografias “não autorizadas” e o das citações, em livros, de textos de obras alheias, do ponto de vista dos seus limites quantitativos. Relativamente ao primeiro desses temas, nota-se que, em consequência de descuidadas tresleituras e de errôneas interpretações das normas constitucionais e legais pertinentes, têm ocorrido erros da parte 211
de juízes em primeira instância ao conduzirem e julgarem processos de ações ajuizadas perante eles com base em pretensões de direitos fundadas em tais normas. Erros que, espera o mundo jurídico mais atento e sensível à necessidade de vigilante e correta aplicação da lei e de precisa justiça, terminarão sendo corrigidos oportunamente nas sedes recursais adequadas e, a partir dessas correções, feliz e seguramente evitados, com o positivo efeito de se promover a necessária segurança jurídica, ainda em primeira instância. Quanto ao segundo tema, o do limite quantitativo das citações, em livros, de textos de obras alheias, observa-se igualmente, a respeito, uma marcante carência de construção doutrinária e jurisprudencial. Com este presente estudo, esperamos trazer uma útil contribuição, de ordem científica, ao melhor conhecimento desses dois assuntos. Uma observação preliminar: a necessidade de interpretar Preliminarmente, invoquemos algumas lições sobre uma tarefa intelectual primária, fundamental, indispensável: a de interpretar. Muito bem observa Richard Palmer (1986, p. 20): “Na verdade, desde que acordamos de manhã até que adormecemos, estamos a ‘interpretar’. Ao acordar, olhamos para o despertador e interpretamos o seu significado: lembramos em que dia estamos e ao compreender o significado desse dia estamo-nos já a lembrar do modo como nos situamos no mundo e dos planos de futuro que temos; levantamo-nos e temos que interpretar as palavras e os gestos das pessoas que contatamos na nossa vida diária. A interpretação é, portanto, talvez o ato essencial do pensamento humano; na verdade, o próprio fato de existir pode ser considerado como um processo constante de interpretação”. Na importante tarefa da aplicação da lei, sobreleva o dever de interpretá-la. Esse dever é, por quase todos os juristas, ressaltado, e sempre com a necessária ênfase. Quem lida com o Direito – e lidamos com o Direito a todo momento – o que mais faz é resolver o problema de interpretá-lo. Em Direito – e em tudo mais em matéria de expressão humana –, é necessário interpretar. 212
Textos Jurídicos (Para a constituinte de 1987-1988 e sobre outros temas)
No seu Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, o jurista português Manuel A. Do-mingues de Andrade (1978, p. 9), professor da Faculdade de Direito de Coimbra, afirma: “Dispensável se torna encarecer a importância decisiva que em todo o âmbito do jurídico reveste a doutrina da interpretação das leis. Pode afirmar-se que nenhum problema tem mais interesse, nem tanto, para os cultores do direito positivo. Porque, verdadeiramente, na base de todos os outros, está o problema da interpretação das leis: todos os outros postulam a solução deste. Interpretar as leis constitui, por certo, a primeira tarefa do jurista, do teórico como do prático”. Apesar da afirmação do jurista português de ser dispensável o encarecimento da “importância decisiva” da tarefa de interpretar a lei, vamos encarecê-lo, e não perfunctoriamente, dada, repita-se, a sua i mportância. Comecemos invocando lições de Francesco Ferrara. Como se sabe, Ferrara foi um dos mais autorizados autores que escreveram sobre o tema hermenêutica jurídica. No seu lúcido ensaio Interpretação e aplicação das leis, traduzido para o português pelo mesmo Manuel A. Domingues de Andrade, Ferrara (1978, p. 111-112) leciona: O juiz é o intermediário entre a norma e a vida: é o instrumento vivo que transforma a regulamentação típica imposta pelo legislador na regulamentação individual das relações dos particulares; que traduz o comando abstrato da lei no comando concreto entre as partes, formulado na sentença. O juiz é a viva vox iuris. O juiz, porém, está submetido às leis, decide como a lei ordena, é o executor e não o criador da lei. A sua função específica consiste na aplicação do direito. Esta atividade desdobra-se em três operações: I) Averiguar o estado de fato que é objeto da controvérsia. II) Determinar a norma jurídica aplicável. III) Pronunciar o resultado jurídico que deriva da subsunção do estado de fato aos princípios jurídicos.
Arremata adiante Francesco Ferrara (1978, p. 113) essa introdução do seu ensaio resumindo: Dois temas importantes – Biografias “não-autorizadas” e limites de citações de livros
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“A tarefa central a que o juiz se dedica é, porém, a determinação do direito que há-de valer no caso concreto. Para este fim deve levar a cabo três indagações: 1ª) Apurar que o direito existe. 2a) Determinar o sentido desta norma jurídica. 3ª) Decidir se esta norma se aplica ao caso concreto. A aplicação das leis envolve, por consequência, uma tríplice investigação: sobre a existência da norma; sobre o seu significado e valor; e sobre a sua aplicabilidade”.
Deixando de lado, por óbvio, o que diz Francesco Ferrara sobre a tarefa – elementar – do juiz de verificar a existência da norma jurídica (tarefa em que contará, evidentemente, com a colaboração forçosa dos advogados das partes), vejamos o que ensina ele no item do seu ensaio intitulado “Determinação do sentido das normas jurídicas: interpretação”. “Mas a atividade central que se desenvolve na aplicação da norma de direito é a que tem por objeto a interpretação” (FERRARA, 1978, p. 127). Adiante, assevera com mais ênfase e força: “A atividade interpretativa é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino tato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação”. (Idem, p. 129). Um pouco antes, explica Ferrara (1978, p. 127-128): O texto da lei não é mais do que um complexo de palavras escritas que servem para uma manifestação de vontade, a casca exterior que encerra um pensamento, o corpo de um conteúdo espiritual. A lei, porém, não se identifica com a letra da lei. Esta é apenas um meio de comunicação: as palavras são símbolos e portadoras de pensamento, mas podem ser defeituosas. Só nos sistemas jurídicos primitivos a letra da lei era decisiva, sendo um valor místico e sacramental. Pelo contrário, com o desenvolvimento da civilização, esta concepção é abandonada e procura-se a intenção legislativa. Relevante é o elemento espiritual, a voluntas legis, embora deduzida através das palavras do legislador.
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Entender uma lei, portanto, não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legis lativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções possíveis: Scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem (17, Dig.. 1,3). A missão do intérprete é justamente descobrir o conteúdo real da norma jurídica, determinar em toda a plenitude o seu valor, penetrar o mais que é possível (como diz Windscheid) na alma do legislador, reconstruir o pensamento legislativo. Só assim a lei realiza toda a sua força de expansão e representa na vida social uma verdadeira força normativa.
No Brasil, a importância da hermenêuti ca jurídica tem sido vigorosa e enfaticamente proclamada por quantos escritores têm-se ocupado de pensar a respeito da ciência do Direito. A sede em que preferencialmente se situam as abordagens desse instigantíssimo tema são os trabalhos de introdução ao Direito ou de Filosofia do Direito. Um bom número deles se salientam. Devem ser citados: Benjamim de Oliveira Filho (1967) Hermes Lima (1972); Miguel Reale (1981, 1978); André Franco Montoro (2000); A. L. Machado Neto (1988, p. 216). Este, que foi professor na Universidade da Bahia e na Universidade de Brasília (nos seus memoráveis tempos inaugurais), ministra esta lição sobre interpretação: “Tradicionalmente, tem-se entendido a interpretação jurídica como um desentranhar o sentido que guarda a lei sob suas palavras. Interpretação será, assim, o conjunto de operações lógicas que, seguindo os princípios gerais da hermenêutica e visando integrar o conteúdo orgânico do direito, apura o sentido e os fins das normas jurídicas”. Repare-se em que Machado Neto fala em “conjunto de operações lógicas”, o que concorda com o pensamento de Ferrara que afirma ser a interpretação jurídica uma operação unitária, não repartida em espécies, sendo, pois, estas (a gramatical, a histórica, a lógica, a teleológica, etc.) elementos constitutivos de uma só ação intelectual.
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Feitas essas observações preliminares sobre a necessidade imperativa de interpretação das leis, passemos à abordagem dos temas deste pequeno estudo.
A questão das biografias “não-autorizadas” O Direito: a Constituição Federal e Declarações Internacionais de Direitos Sobre a questão das biografias “não-autorizadas”, que tem originado no Brasil, de algum tempo para hoje, determinadas controvérsias no âmbito do noticiário jornalístico (pois no campo científico do Direito o tema permanece quase intacto), vale transcrever as principais normas que atualmente lhe pertinem. Comecemos da Constituição Federal. É no Título II, “Dos Direitos e Garantias Individuais”, no Capítulo I, “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, que se situam as normas fundamentais relativas a essa questão. “Art. 5º. IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.” Direito fundamental. “Cláusula pétrea”. Insusceptível de transgressão, de modificação e, muito menos, de supressão. Direito sagrado da pessoa humana. Conquista da Civilização. Expressão de um direito universalmente consagrado. Representa a inserção, na Carta Magna do Brasil, de um princípio fundamental declarado em diversos documentos e declarações de direitos internacionais, que menos não são do que conquistas essenciais e irrenunciáveis da Humanidade. Citem-se os principais, que vieram na esteira da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada na França em 1789, relembrando-se a indispensável observação do que dispõe o § 3º do Art. 5º da mesma Constituição Brasileira de 1988: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
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A norma do Art. 5Q da Constituição Federal é reafirmada – e com forte ênfase – na mesma Constituição, mais adiante, no Título VIII, “Da Ordem Social”, Capítulo V, “Da Comunicação Social”: Art. 220. – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º – Nenhuma lei conterá dispositivo que constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5°, IV, V, X, XII e XIV.
Vejamos agora algumas declarações internacionais de direitos. Declaração Universal dos Direitos Humanos (...) Artigo XIX Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem Artigo IV – Toda pessoa tem o direito à liberdade de investigação, de opinião e de expressão e difusão do pensamento, por qualquer meio. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (...) Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: Dois temas importantes – Biografias “não-autorizadas” e limites de citações de livros
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a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. Relatoria para a Liberdade de Expressão da OEA Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão PREÂMBULO REAFIRMANDO a necessidade de assegurar, no Hemisfério, o respeito e a plena vigência das liberdades individuais e dos direitos fundamentais dos seres humanos através de um Estado de Direito; CONSCIENTES de que a consolidação e o desenvolvimento da democracia dependem da existência de liberdade de expressão; PERSUADIDOS de que o direito à liberdade de expressão é essencial para o avanço do conhecimento e do entendimento entre os povos, que conduzirá a uma verdadeira compreensão e cooperação entre as nações do Hemisfério; CONVENCIDOS de que, ao se obstaculizar o livre debate de ideias e opiniões, limita-se a liberdade de expressão e o efetivo desenvolvimento do processo democrático; CONVENCIDOS de que, garantindo o direito de acesso à informação em poder do Estado, conseguir-se-á maior transparência nos atos do governo, fortalecendo as instituições democráticas; RECORDANDO que a liberdade de expressão é um direito fundamental reconhecido na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na Declaração Universal de Direitos Humanos, na Resolução 59(I) da Assembleia Geral das Nações Unidas, na Resolução 104 adotada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e em outros instrumentos internacionais e constituições nacionais; RECONHECENDO que os princípios do Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos representam o marco legal a que estão sujeitos os Estados membros da Orga218
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nização dos Estados Americanos; REAFIRMANDO o Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que estabelece que o direito à liberdade de expressão inclui a liberdade de buscar, receber e divulgar informações e ideias, sem consideração de fronteiras e por qualquer meio de transmissão; CONSIDERANDO a importância da liberdade de expressão para o desenvolvimento e a proteção dos direitos humanos, o papel fundamental que lhe é atribuído pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o pleno apoio estendido à Relatoria para a Liberdade de Expressão como instrumento fundamental para a proteção desse direito no Hemisfério, na Cúpula das Américas realizada em Santiago, Chile; RECONHECENDO que a liberdade de imprensa é essencial para a realização do pleno e efetivo exercício da liberdade de expressão e instrumento indispensável para o funcionamento da democracia representativa, mediante a qual os cidadãos exercem seu direito de receber, divulgar e procurar informação; REAFIRMANDO que tanto os princípios da Declaração de Chapultepec como os da Carta para uma Imprensa Livre constituem documentos básicos que contemplam as garantias e a defesa da liberdade de expressão independência da imprensa e o direito a informação; CONSIDERANDO que a liberdade de expressão não é uma concessão dos Estados, e sim, um direito fundamental; e RECONHECENDO a necessidade de proteger efetivamente a liberdade de expressão nas Américas, adota, em apoio à Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão, a seguinte Declaração de Princípios: PRINCÍPIOS A liberdade de expressão, em todas as suas formas e manifestações, é um direito fundamental e inalienável, inerente a todas as pessoas. É, ademais, um requisito indispensável para a própria existência de uma sociedade democrática. Toda pessoa tem o direito de buscar, receber e divulgar informação e opini ões livremente, nos termos estipulados no Dois temas importantes – Biografias “não-autorizadas” e limites de citações de livros
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Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Todas as pessoas devem contar com igualdade de oportunidades para receber, buscar e divulgar informação por qualquer meio de comunicação, sem discrimi nação por nenhum motivo, inclusive os de raça, cor, religião, sexo, idioma, opiniões políticas ou de qualquer outra índole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. (...) A censura prévia, a interferência ou pressão direta ou indireta sobre qualquer expressão, opinião ou informação por meio de qualquer meio de comunicação oral, escrita, artística, visual ou eletrônica, deve ser proibida por lei. As restrições à livre circulação de ideias e opiniões, assim como a imposição arbitrária de informação e a criação de obstáculos ao livre fluxo de informação, violam o direito à liberdade de expressão. Toda pessoa tem o direito de externar suas opiniões por qualquer meio e forma. A associação obrigatória ou a exigência de títulos para o exercício da atividade jornalística constituem uma restrição ilegítima à liberdade de expressão. A atividade jornalística deve reger-se por condutas éticas, as quais, em nenhum caso, podem ser impostas pelos Estados. (...) 10. As leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a difusão de informação de interesse público. A proteção à reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou uma pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de inte– resse público. Ademais, nesses casos, deve-se provar que, na divulgação de notícias, o comunicador teve intenção de infligir dano ou que estava plena– mente consciente de estar divulgando notícias falsas, ou se comportou com manifesta negligência na busca da verdade ou falsidade das mesmas. (...)
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Os meios de comunicação social têm o direito de realizar seu trabalho de forma independente. Pressões diretas ou indiretas para silenciar a atividade informativa dos comunicadores sociais são incompatíveis com a liberdade de expressão.
Verifica-se, assim, que o direito e liberdade de manifestação do pensamento e de criação intelectual e artística constitui uma das bases do sistema jurídico brasileiro integrado ao sistema jurídico internacional. E as normas que o consagram devem ser interpretadas de acordo com o que ensina o grande hermeneuta brasileiro que foi Carlos Maximiliano, um dos pioneiros do pensamento jurídico nacional sobre a matéria interpretação jurídica. Ronald A. Sharp Júnior (1998, p. 24) perfilha lhe a lição, ao citá-lo no seu livro Dano moral: “As normas constitucionais devem ser interpretadas extraindo-se o máximo de alcance, não podendo o legislador ordinário nem o Juiz restringir-lhe o âmbito de incidência ou impor-lhes condicionamentos não autorizados explícita ou implicitamente no próprio contexto”. Não se queira ou intente opor ou restringir o direito afirmado no inciso IX do Art. 5° da Constituição com a invocação do inciso X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Dentro de uma constituição, não pode haver contradição entre normas. Os incisos IX e X da nossa Constituição de 1988 se harmonizam, mormente na medida em que, postos em confronto, prepondera aquele que mais se harmonize com o espírito da Constituição, com a unidade do seu conteúdo teleológico e com seus fundamentos, e que possua, portanto, conteúdo libertário: pois a Constituição de 1988 é libertária. E a consequência lógica da boa interpretação do inciso X é que ele remete à necessidade e dever de indenizar o dano material ou moral decorrente da eventual violação dos direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, e nele não se contém, de modo algum, a proibição, a posteriori, do veículo – o livro, por exemplo – da violação. Isso porque, ao teor do inciso IX, é proibido proibir livros. Dois temas importantes – Biografias “não-autorizadas” e limites de citações de livros
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Legislação infraconstitucional: Código Civil. Art. 20 Analisemos agora o sistema legal infraconstitucional, que tem sido a principal sede e vítima de errôneas interpretações, com consequentes erros na aplicação judiciária. Consiste tal sistema no Art. 20 do Código Civil, em vigor desde janeiro de 2003: Tentemos uma científica, e, pois, sadia interpretação da norma contida nesse Art. 20. Diz ele: Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Que é, pois, que o Código Civil, no Art. 20, proíbe? Proíbe que se divulguem escritos ou transmita-se a palavra de alguém, ou publique-se, exponha-se ou se utilize a imagem de alguém, sob as condições de lesão da sua honra, da sua boa fama ou da sua respeitabilidade, ou de que tais atos persigam fins comerciais. Não aparece, no texto do Art. 20, a palavra biografia. Nenhum esforço de interpretação lograria incluir, na locução “divulgação de escritos”, o conceito e fenômeno biografia. Biografia, como diz a etimologia do vocábulo, é narração da vida de alguém. Só. Mais nada. Pode conter trechos de escritos da pessoa biografada. Mas, se os contiver, em forma de citações feitas de acordo com a lei, não conterá nenhuma apropriação de texto pertencente ao biografado. Assim, a biografia que não contenha, além do relato propriamente biográfico, “divulgação de escritos” do biografado, não terá transgredido o Art. 20 do Código Civil. E poderá ser editada li222
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vremente. Independentemente de autorização prévia ou posterior de quem quer que seja, de acordo com a Constituição Federal e o próprio Art. 20 do Código Civil. Esse ponto é muito importante e deve ser enfatizado com a afirmação – nos termos mais claros possíveis – de que o direito do autor da biografia de editá-la não decorre apenas de não ser o gênero biografia omitido no Art. 20 do Código Civil, mas do direito fundamental consagrado no inciso IX do Art. 5° da Constituição. A claridade desse direito se mostra ainda mais luminosa se se atenta para o fato, impostergável, de que, caso o Art. 20 falasse também em biografias com o fito de proibi-las, ele seria inconstitucional, por afrontar o inciso IX do Art. 5° da Constituição. Repita-se: caso o texto do Art. 20 do Código Civil autorizasse a interpretação proibitória que algumas pes soas intentam lhe dar, seria flagrantemente inconstitucional, e, por conseguinte, SUSCEP TÍVEL DE TER SUA INCONSTITUCIO NALIDADE DECLARADA POR JUIZ DE QUALQUER INSTÂNCIA, EM VIRTUDE DO INSTITUTO DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DIFUSA, segundo o preceito jurídico de que NENHUM JUIZ É OBRIGADO A APLICAR NORMA INCONSTITUCIONAL. Deveria ser, em consequência, o texto do Art. 20 do Código Civil em tal caso extirpado do direito positivo nacional mediante ato do Senado Federal, nos termos do Art. 52, X, da Constituição da República. De tais premissas jurídico-constitucionais, extrai-se, repitamo-lo, este importantíssimo e curial corolário: Biografia não depende de autorização prévia, nem para ser escrita, nem para ser publicada. Da jurisprudência sobre essa matéria Ainda não se constituiu no Brasil um conjunto de decisões configurador de uma jurisprudência assentada e firme sobre essa matéria. Nossa jurisprudência, nesse ponto, é incipiente. Com certeza por causa de ser matéria nova. O Código Civil entrou em vigor há seis anos. Ainda não houve nem tempo nem número de causas judiciárias suficiente, e com decisões definitivas, para se ter do novo Código um conjunto de soluções jurisprudenciais eliminador de dúvidas e perplexidades. No plano da jurisprudência, a Súmula 279, do Conselho de Justiça Federal, Dois temas importantes – Biografias “não-autorizadas” e limites de citações de livros
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que citamos há pouco, constitui um início, ainda tateante, de avanço hermenêutico. O Projeto Antônio Palocci Provavelmente por causa da ocorrência de casos que, embora ainda não definitiva mente julgados, suscitaram viva resistência e oposição de boas consciências jurídicas em nosso País; e também devido à notória incipiência da nossa jurisprudência a respeito dessa matéria, foi que o Deputado Federal Antônio Palocci houve por bem apresentar, em maio de 2008, o Projeto de Lei n° 3.378 na Câmara dos Deputados, alterando o Art. 20 do Código Civil. Espera-se que, do seu aperfeiçoamento, resulte lei dirimidora das dúvidas atuais – dúvidas, repita-se, que, a rigor, a sadia interpretação do Art. 20 do Código Civil afasta com presteza, à simples leitura do respectivo texto. O Projeto é de nº– 3.378 – “dispõe sobre alteração do art. 20 da Lei Federal n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002” (Código Civil), “visando garantir a liberdade de expressão e informação”. Eis o novo texto sugerido pelo Deputado Palocci para o Art. 20 do Código Civil: “Art. 20. Salvo se autorizada ou se necessária à manutenção da ordem pública, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingir a honra, a boa fama ou a respeitabilidade. PARÁGRAFO ÚNICO. É livre a divulgação da imagem e de informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública ou cuja trajetória pessoal ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimento de interesse da coletividade”.
Como se verifica da leitura do Projeto Palocci, o texto nele proposto retira do caput do Art. 20 as palavras “divulgação de escritos”, “a transmissão da palavra” e “a publicação” (da imagem de uma pessoa); e no parágrafo único, além de suprimir a extensão da fa culdade conferida no caput ao cônjuge, aos ascendentes e aos descendentes do morto ou do ausente, afirma e estatui, de forma claríssima, a liberdade 224
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de divulgação da imagem e de informações biográficas sobre pessoas “de notoriedade pública ou cuja trajetória pessoal ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimento de interesse da coletividade. Por conseguinte, o Projeto Palocci, dando nova redação ao caput do Art. 20 do Código Civil e substituindo-lhe o parágrafo único, pretende tornar explícito no direito positivo nacional aquilo que atualmente se impõe, por implicitude e omissão vocabular, como efeito de correta interpretação. A rigor, a referência, no parágrafo único sugerido, a “informações biográficas” é, à luz da referida correta interpretação, desnecessária, sendo, no entanto, útil. O Projeto Palocci está tendo rápida tramitação. A emenda substitutiva que lhe fez o Relator, a meu ver, não o melhora; antes o prejudica um pouco. Mas provavelmente, espera-se, os legisladores haverão de achar o texto mais adequado à boa regulação da matéria. Repita-se, à saciedade: ainda é pobre e escassa a jurisprudência sobre esse tema. Opiniões exaradas em votos nos tribunais não constituem jurisprudência, que consiste em sentenças e acórdãos. Ora, sentenças e acórdãos ainda não foram proferidos sobre essa matéria em quantidade bastante a configurar uma jurisprudência assentada.
A questão das citações: uma observação preliminar sobre citações em textos jurídicos e judiciários O segundo tema objeto deste breve estudo é o das citações, em livros, de textos de livros alheios. Preliminarmente, ressaltemos que as pessoas que labutam profissionalmente com a ciência do Direito possuem uma vivência digamos privilegiada dessa matéria, pois estão muito afeitas e familiarizadas com o fenômeno, o hábito, a necessidade das citações de textos alheios em estudos de qualquer ordem e volume a respeito de assuntos jurídicos. Não há advogado ou juiz ou membro do Ministério Público, ou assessor jurídico, que, ao elaborar um trabalho de pensamento jurídico, não cite, com variável abundância, outros autores. O Direito é uma ciência fundada e desenvolvida na sucessão e acumulação de experiências inteDois temas importantes – Biografias “não-autorizadas” e limites de citações de livros
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lectuais. Estas consistem em pensamentos doutrinários, decisões jurisprudenciais, reflexões feitas com motivações e fins numerosos e diversos. A não ser em trabalhos inaugurais a respeito de textos legais recém-produzidos, ninguém comenta uma lei, a fim de a interpretar, sem se socorrer de experiências intelectuais anteriores. Assim, o trabalho de interpretar leis a fim de obviar a sua aplicação correta consiste muito na tarefa de citar. Mas não é só no âmbito do Direito que cabe fazer esta observação: ela se aplica a todos os ramos do pensamento humano. Em Filosofia (de Parmênides a Sartre, de Aristóteles a Bertrand Russel, de Pitágoras e Heráclito a Hegel e a Karl Marx...). Em qualquer ciência (como poderia Newton escrever sobre Física sem citar Kepler ou Einstein sem se socorrer de Newton?, ou Fernando de Azevedo sem se socorrer de Émile Durkheim?). Em Crítica Literária (para fundamentar ou para retificar juízos). Citações extraídas de livros alheios devem ser feitas, obviamente, de acordo com a lei e em conformidade com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). No Brasil, a regular a questão de direitos de autor, vige atualmente a Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Diz ela: “Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra. Pode-se invocar também, da mesma lei e do mesmo art. 46, o inciso VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.
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Como se vê, a lei não determina em que medida se pode citar. Ela não fixa limites quantitativos às citações de textos alheios: ela deixa a quantidade e o limite de linhas a cargo do prudente arbítrio de quem efetua as citações. Citações com fins de estudo (no sentido lato dessa palavra, evidentemente) não podem ser acoimadas de ilegais. No campo do Direito, em que os casos exemplares são praticamente todos os livros que se elaboram a respeito de qualquer tema ou problema, vamos citar apenas dois exemplos: o livro Filosofia do direito, de Miguel Reale (8 ed., São Paulo: Saraiva, 1978), cita 447 autores; um dos quais, Emanuel Kant, 102 vezes; e um outro, Rudolf Stammler, 57 vezes; Hans Kelsen é citado 54 vezes. O número de autores citados na obra Tratado de direito privado, de Pontes de Miranda, em 60 volumes, alcança um número de citações cuja contagem demandaria muito tempo, pois é de milhares de trechos. Citações em obras literárias Saindo-se do campo estritamente das ciências, principalmente a do Direito, e passando-se ao campo das produções literárias lato sensu, encontramos farta messe de exemplos de obras com imensa e signi ficativa exabundância de citações de livros alheios. Impossível citar todas. Seria por demais extensa uma relação mesmo das mais conhecidas. Não custa nada, contudo, citar, para exemplos, a biografia Monteiro Lobato: vida e obra, de Edgard Cavalheiro (2ª ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956), livro clássico e paradigmático no gênero, e o longo estudo História da inteligência brasileira, de Wilson Martins (São Paulo: Editora Cultrix Ltda., 1974), – também definitivamente clássico –, nos quais as citações ocorrem não às centenas, mas aos milhares. O ensaio A cultura popular em grande sertão: veredas, deLeonardo Arroyo (Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1984), livro também já clássico no gênero, com texto (incluídas as notas explicativas) de 284 páginas, que contém 693 (seiscentas e noventa e três) citações de textos de João Guimarães Rosa, mais de 90% (noventa por cento, com certeza) extraídas do livro Grande sertão: veredas. Mencione-se, também, o livro JGR: metafísica do grande sertão, de Francis Uteza (Editora da UniverDois temas importantes – Biografias “não-autorizadas” e limites de citações de livros
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sidade de São Paulo, 1994): existem nele, com certeza mais de 1.000 citações de textos de João Guimarães Rosa, na grande maioria do livro Grande sertão: veredas. Esse número se refere às citações feitas em des taque: não incluem, pois, aquelas, também numerosas, disseminadas e integradas no texto. Refira-se também o livro O roteiro de Deus (São Paulo: Editora Mandarim, 1996), de Heloísa Vilhena de Araújo, em que ocorrem mais de 700 (setecentas) citações -o volume consta de 554 páginas –, afora as citações disseminadas ou integradas no texto, cujo número é também enorme. Existe um outro volume publicado sobre a obra literária de Guimarães Rosa, intitulado Veredas de Rosa, com textos de numerosos autores, editado em Belo Horizonte pela PUC de Minas Gerais. Há textos, em que, em menos de três páginas, aparecem nove citações de trechos de Grande sertão: veredas, alguns bem longos. É o caso do texto “Veredas do grande sertão: Às margens da alegria/ À (s) margem (ns) das palavras”, de Adriano Bitarães Netto. O texto “Nada e a nossa contribuição”, de José Alcibíades Rezende Frota, de dez páginas, é todo ele citações literais de Rosa. No texto “Uma leitura de Grande Sertão: Veredas”, de oito páginas, ocorrem 50 (cinquenta) transcrições de textos de João Guimarães Rosa. No volume A astúcia das palavras, organizado por Lauro Belchior Mendes e Luiz Cláudio Vieira de Oliveira, e editado pela Universidade Federal de Minas Gerais, pode ser citado o texto “O tema da mãe terrível em João Guimarães Rosa”, de Ana Maria de Almeida. São 11 páginas, com 12 citações, uma das quais com 58 linhas. Atenção: 58 (cinquenta e oito) linhas numa citação contínua. O livro Guimarães Rosa, de Assis Brasil, editado pela Organização Simões em 1969, além de numerosas, incontáveis citações de textos de João Guimarães Rosa, contém uma Antologia, da página 121 à página 147, de textos de Rosa. Essas referências são feitas, repita-se, apenas exemplificativamente. Instrutivo verificar o aspecto do tamanho (o número de linhas) de cada citação. No livro de Heloísa Vilhena de Araújo referido, uma das citações, a da página 335, tem 36 linhas. Um bom número de citações contém mais de 20 linhas. Em duas páginas (não as únicas com esse tipo 228
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de ocorrência), de 164 a 165, aparecem 15 (quinze) citações de trechos de livros de Guimarães Rosa, o que dá uma média de sete citações e meia por página. Na página 51, aparecem duas citações, uma com seis linhas, a outra com 25 (vinte e cinco). Mais: nas páginas 68 e 69, em uma página e meia, ocorrem 14 (catorze) citações. E são citações, na imensa maioria, de um livro só – Grande sertão: veredas. Somente no ensaio final, aparecem citações de outro livro de Rosa, Corpo de baile. Da vasta e numerosa bibliografia já existente sobre a obra de João Guimarães Rosa, constam, também – e deve ser aqui lembrado como verdadeiro documento –, o livro Sagarana emotiva, de Paulo Dantas (Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1975), que contém todas as cartas que lhe escreveu e remeteu João Guimarães Rosa. Saliente-se: nem são citações de partes de textos de Rosa, mas textos completos de cartas particulares escritas por ele. Conclusão Os números das citações de textos de livros aqui mencionados falam por si mesmos para demonstrar que, em matéria de citações de livros alheios, inexistem limites quantitativos definidos. Esperamos, com essas observações, ter contribuído para o melhor entendimento atual e futuro dessas duas delicadas questões. Referências ANDRADE, Manuel A. Domingues. Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis. 3ª ed. Coimbra, Portugal: Armênio Amado – Editor Sucessor, 1978. FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis 3ª ed. Portugal: Armênio Amado – Editor Sucessor, 1978. LIMA, Hermes. Introdução à Ciência do Direito. 22 ed. Rio de Janeiro – São Paulo: Freitas Bastos, 1972. MACHADO NETO, A. L. Compêndio de introdução ciência do direito. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 1988. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 16 ed. n. 374 e 375. Rio de Janeiro: Forense, 1996. MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. Dois temas importantes – Biografias “não-autorizadas” e limites de citações de livros
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OLIVEIRA FILHO, Benjamim de. Introdução à ciência do direito. 4 ed. Rio de Janeiro: Konfuno Editor, 1967. PALMER, Richard. Hermenêutica. Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1986. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1981. ______. Filosofia do direito. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, São Paulo, 1978. SHARP JÚNIOR, Ronald A. Dano moral. Rio de Janeiro: Editora Destaque, 1998.
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Poder Legislativo, Congresso Nacional, comissões parlamentares (Esboço da dissertação no curso de Mestrado em Direito, da Universidade de Brasília – UnB)
Preâmbulo Um tema rico, instrutivo, atual O tema Comissões Parlamentares de Inquérito é bem mais interessante, instrutivo, rico e complexo do que pode parecer a quem não se detenha em pensar nele mais a fundo. Eu mesmo me surpreendi ao verificar essas qualidades, das quais não tinha inteira consciência quando comecei a elaborar este estudo. À medida que o penetrava, a princípio de modo diacrônico – isto é, historicamente –, e em seguida sincronicamente – numa radiografia da situação normativa das comissões parlamentares dentro do sistema jurídico positivo no Brasil – pude enxergar aquelas qualidades, sobretudo a da riqueza e mais ainda a do interesse que o tema desperta. Um aspecto dessa riqueza temática é a surpreendente quantidade de estudos já produzidos no Brasil e em outros países de sólida tradição parlamentar. A bibliografia é mais numerosa e de melhor qualidade do que desavisadamente se pode pensar. Sem ter podido, por diversas razões, visitá-la e percorrê-la toda, pude constatar sua abundância e significativa utilidade. Somente por falta de familiaridade com o tema pode alguém supor escassa a reflexão, em livros e outros documentos, 231
a respeito de um assunto tão importante que é este das Comissões Parlamentares. Depõe a favor do espírito humano o fato de que a ele não escapa a importância das coisas importantes, e que a respeito delas sempre se apressa em debruçar-se. É função, papel, sina e dignidade do espírito humano não permitir que as importantes questões da vida – e das organizações da vida — existam, através do tempo, sem se transformarem em objeto de suas análises e reflexões. Estudando o assunto, colhi surpresas. Gostaria de citar um exemplo: o Conselho dos Quatrocentos, mais tarde Conselho dos Quinhentos e Um, na Atenas antiga, cumpria junto à Assembleia Popular, denominada Ekklesia, o papel de verificar previamente a constitucionalidade dos projetos de lei submetidos ao exame e aprovação da Ekklesia. Essa era uma função própria de comissão parlamentar análoga à das comissões de constitucionalidade dos parlamentos modernos. Comissões parlamentares têm existido em todos os parlamentos. Isso demonstra a tese, a que cheguei e que neste estudo defendo, de que elas constituem um fenômeno quase natural: um efeito do instinto dos homens em sociedade de repartir o trabalho, dividir entre os indivíduos, de acordo com os critérios previamente e adrede adotados, as tarefas do trabalho coletivo. Um rastreamento da existência de comissões nas diversas assembleias constituintes brasileiras e nas diversas constituições e nos sucessivos parlamentos que tivemos desde a primeira assembleia constituinte, a de 1823, até ao Congresso Nacional republicano, serviu para boas constatações e lições. Nada como a História para nos ensina sobre nossas instituições. Valeu a pena essa perseguição de dados e informações através do tempo passado. A Constituição de 5 de outubro de 1988 trouxe algumas alterações e consolidações importantes ao tratamento normativo das comissões parlamentares, conferindo-lhes mais poderes e autonomia. Os regimentos internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal deram a esse tratamento uma minuciosidade nova na ordenação jurídica brasileira. Atualíssimo, o tema deste estudo. Refletir sobre comissões parlamentares é refletir sobre um assunto interessantíssimo a todos aqueles que se preocupam em conhecer a 232
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realidade em que estão integrados. Os parlamentos, detentores da parcela maior e mais importante do poder legislativo das nações ou dos povos modernos, readquiriram, em nossa época, a importância que perderam durante um período recente da História Ocidental. Pode-se mesmo dizer que a aumentaram de funções e responsabilidades que antes não tinham. Dentro dos parlamentos, existem as comissões, efeito necessário da necessidade humana de dividir e racionalizar o trabalho incumbido às coletividades. A importância dos parlamentos constitui a importância das comissões que os integram e lhes realizam as tarefas e serviços inerentes às suas funções. Conhecer o seu parlamento é um dever dos cidadãos membros de uma coletividade política. E conhecer o parlamento implica conhecer-lhe as comissões, sua natureza, funções e responsabilidades. Para conhecer o parlamento, não basta conhecer a Constituição. As normas legais que disciplinam o funcionamento do parlamento brasileiro – o Congresso Nacional – se contém em diplomas legais denominados Regimentos i Internos. Cada uma das Casas do Congresso Nacional tem o seu próprio regimento, redundantemente chamado Regimento Interno. O Congresso Nacional tem o seu, o denominado Regimento Comum. Esses regimentos são leis complementares, ou regulamentadoras, da Constituição Federal. Necessário conhecê-los a fim de se poder compreender bem como funcionam a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, o Congresso Nacional e, portanto, as suas respectivas comissões. Esperamos que, com o passar do tempo e a aplicação e prática constantes, contínuas e diuturnas das normas da Constituição e dos regimentos das câmaras do Congresso, e do regimento comum do Congresso Nacional, o sistema jurídico-constitucional instaurado pela Constituição de 5 de outubro de 1988 se torne suficientemente e pedagogicamente conhecido e, assim, cada vez mais fortalecido e arraigado na consciência da Nação.
Poder Legislativo, Congresso Nacional, comissões parlamentares
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Primeira Parte Algumas considerações propedêuticas de caráter histórico Capítulo I Capítulo II O Estado indesejado, que, todavia, continua Vivemos um período da História do Ocidente em que, com espantosa velocidade, desvaneceram-se os sonhos, acalentados por muita gente, especialmente pensadores e filósofos, durante mais ou menos o século e meio anteriores, de se abolir, ou abruptamente, ou gradualmente, o Estado. Esses sonhos generosos e românticos – denominados utopias na literatura filosófico-política, numa generalização do nome do Estado concebido por Sir Thomas Morus no século XVI e que ele descreveu num livro com esse título, Utopia – entraram a se converter em projetos mais ou menos concretos de organização social e política a partir do século XIX. Até então não passaram de formulações ficcionais: devaneios destituídos de alguma aspiração a se realizarem algum dia em algum lugar. Tal o caso da Utopia, de Thomas Morus, e da Cidade do Sol, de Tomás Campanella. Um deles, muito influente na evolução política do Mundo durante mais ou menos cento e cinquenta anos, foi o Socialismo-Comunismo. O Socialismo foi concebido na primeira metade do século XIX. Na sua fase inicial, não apresentava propostas concretas de reorganização da sociedade, padecendo de uma certa vaguidade. Seus principais defensores foram Saint-Simon, Fourier e Owen. Mais tarde, apareceu o chamado Socialismo Científico, de Karl Marx e Friedrich Engels, assim chamado em contraposição ao Socialismo Utópico, dos primeiros pensadores. Na concepção de Marx e Engels, o Socialismo seria instaurado mediante a tomada do poder pelo proletariado, que mediante a sua ditadura conduziria a transição da sociedade para o Comunismo. Este seria a etapa final da evolução da sociedade humana. No Comunismo o Estado seria abolido, desapareceria a propriedade particular das coisas, 234
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o dinheiro seria suprimido, haveria plena igualdade entre os homens, e o Estado seria substituído pela Administração das Coisas. Por conseguinte, o Comunismo também propunha, tal qual o Anarquismo (que surgiu um pouco depois do Comunismo), a abolição do Estado. Uma abolição gradual, mediante a passagem pela fase do Socialismo, caracterizado pela Ditadura do Proletariado. Durante o período da ditadura da classe operária, o Estado ainda seria, por força, bastante forte, fortíssimo mesmo, para poder liquidar todos os resquícios do “homem antigo”, do “homem velho”: os maus hábitos e os vícios burgueses da propriedade, do egoísmo, da inclinação do homem a explorar o próximo. A passagem gradual para o comunismo traria consigo o desaparecimento gradual do aparelho estatal, instrumento de dominação de classe. Se o Estado na sociedade capitalista é o instrumento de dominação da classe dos capitalistas, dos proprietários dos bens de produção, no Socialismo o Estado se tornaria instrumento de férrea dominação da classe dos trabalhadores, até que, extintas as classes sociais, não houvesse mais necessidade de organização da dominação de uma classe sobre as demais. Outro, mais radical, o Anarquismo. Há mais de cinquenta anos tornou-se coisa do passado, relegado ao nimbo das utopias mais ou menos bem arquitetadas porém incompossíveis, esse sonho de sociedades humanas livres do aparelho do Estado. O Anarquismo foi uma proposta de abolição do Estado. No Brasil, constituiu-se mesmo uma pequena literatura anarquista, fruto do trabalho de pensadores e propagandistas. Um dos seus pensadores eméritos foi Aníbal Vaz de Melo, nascido em Minas Gerais, que escreveu um livro que foi famoso até quarenta anos atrás: Cristo, o maior dos anarquistas. Bem útil ao propósito desta introdução rever o conceito de Anarquismo, termo cuja acepção vulgar o tornou equívoco para os menos avisados e os mal informados. Vejamo-lo num dicionário de Filosofia, o Dicionário Básico de Filosofia, de Hilton Japiassu e Danilo Marcondes: Anarquismo (fr. anarchisme). Doutrina política que repousa no postulado de que os homens são, por natureza, bons e sociáveis, devendo organizar-se em comunidades espontâneas, sem nenhuma necessidade do Estado ou de um governo. Trata-se de uma concepção política condenando a existência mesma do Estado. “Repudiamos Poder Legislativo, Congresso Nacional, comissões parlamentares
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toda legislação, toda autoridade e toda influência privilegiada, patenteada, oficial e legal, mesmo oriunda do sufrágio universal, convencidos de que ela jamais poderá funcionar senão em proveito de uma minoria dominante e exploradora contra os interesses da imensa maioria submissa” (Bakunine). Assim, enquanto conjunto de teorias sociais possuindo em comum a crença no indivíduo a crença no indivíduo e a desconfiança relativamente aos poderes que se exercem sobre ele, o anarquismo aprova o que dizia Proudhon: “Ser governado é ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legisferado, regulamentado, enquadrado, doutrinado, pregado, controlado, rotulado (…) por seres que não possuem nem a ciência nem a virtude”. Mas o Estado não desapareceu. As experiências socialistas, de 1917 até hoje, fortaleceram o Estado ao invés de lhe preparar o caminho do gradual desaparecimento. Nunca houve Estados tão fortes como os do chamado “bloco socialista” derrocado há quase vinte anos. Obviamente, a derrocada dos Estados socialistas da Europa não acarretou o desaparecimento dos Estados, mas apenas a sua reconversão em estados de estrutura democrática plural, com o regime econômico tornando a bases capitalistas. Ao que parece, o Estado não vai desaparecer tão cedo, ainda que se processe uma contínua e dirigida transformação da organização política das sociedades no sentido de diminuí-lo gradualmente. Os homens continuam dependendo dele. Que ele poderá se transformar, de modo progressivo, é coisa que não se pode duvidar, pois os seres humanos já aprendemos que a incessante mudança é uma das poucas leis certas da existência dos seres e portanto da vida humana e portanto da vida dos homens em sociedade. A realidade no-lo mostra a cada dia. Bem pode ser, pois, que se alterem os fins e funções do Estado. Os homens, no mesmo tempo em que ainda necessitam do Estado para viver, desejam cada vez mais autogovernar-se, decidindo e realizando, decidindo e executando por conta própria. O Estado tem sido, ao longo da História, um instrumento da civilização humana. Se tem sido também um instrumento de opressão de classes sociais sobre outras classes sociais, isso se deve à eterna lei da contradição e ambivalência das coisas. Tanto se pode dizer que o Estado tem civilizado mas também oprimido, como se 236
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pode afirmar que o Estado tem oprimido mas também tem civilizado. A verdade é que a civilização dos homens tem sido construída e desenvolvida a partir de dominações de umas classes sociais sobre outras. Não devia ter sido assim. Mas tem sido assim. É bem possível que, mesmo que o Homem não se livre do Estado, consiga construir tipos de Estado que não seja instrumento de dominação de classe social e sim instrumento do bem geral, do bem da sociedade inteira, com a realização de máxima, senão total, justiça social. Quando falamos em justiça social pensamos na justiça possível, não na utópica, que esta talvez seja, no intento de igualar até mesmo os desiguais, uma forma de brutal injustiça. O panorama do mundo atual apresenta o que pode ser o embrião de uma futura organização estatal global, a Organização das Nações Unidas. Não assistimos ao surgimento, gradual, lento e progressivo, da União Europeia, a partir da Comunidade Econômica Europeia iniciada em 1953? Todavia, a contradição é outra lei eterna da vida: a confirmá-la, temos presenciado, diariamente, manifestações impressionantes de que os sentimentos nacionalistas e patrióticos continuam preenchendo corações e almas e movendo a ações e comportamentos políticos que reafirmam a necessidade humana de autonomia mesmo das pequenas culturas. Penso, ao dizer isto, no povo basco da Europa: da Espanha e da França. O qual, privado de liberdade de expressão cultural e política, tem se externado mediante ações violentas – atentados terroristas – que com preocupadora frequência chamam a atenção do Mundo para a opressão que esse povo tem sofrido ao longo dos séculos e que já não mais quer continuar a sofrer. Portanto, ao mesmo tempo em que assistimos ao espetáculo de Estados nacionais tradicionais e fortes renunciarem a parte da sua soberania em favor da estruturação de uma espécie de Confederação dos Estados da Europa, vemos também povos pequenos e culturas confinadas reivindicando o direito de se organizarem em estados soberanos, ou ao menos dotados do mínimo de soberania que lhes permita existir como entidades dotadas de identidade. É provável que a mais forte tendência do mundo ocidental hoje-em-dia seja a de se formar, num futuro não muito distante, uma confederação mundial de estados autônomos – não soberanos, no sentido Poder Legislativo, Congresso Nacional, comissões parlamentares
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em que se entendia a soberania nacional até há pouco tempo. Essa confederação poderá ser como que uma constelação cujas unidades serão interdependentes e coordenadas entre si, e em que todos os membros respeitarão as diferenças e autonomias relativas. Esse é o sonho de um Estado universal, no qual não haverá uniformidade e igualamento cultural, mas diferenças culturais e econômicas mutuamente aceitas e respeitadas. A origem do Estado. Estado e Civilização. A origem e formação do Estado se perde nas brumas das eras mais remotas da pré-história do Homem. Muitos e diversos são os fatores que se conjectura determinaram (ou contribuíram para que) o Estado surgisse tal como é: meio e forma de organização das sociedades humanas. Talvez não se venha nunca a saber, com minúcias e exatidão, a história do aparecimento do Estado. O que é certo é que ele se formou mais ou menos paralelamente com a Civilização. O Estado surgiu quando os homens começaram a ter história – memorizada, guardada, registrada. E a História começou com a Civilização. E a Civilização é filha dos inventos feitos pelos homens: portanto, da Técnica e da Tecnologia. O Estado é um fenômeno xifopágico com a Civilização. Mal ou bem, o Estado participa da natureza da Civilização. Se mal, um mal inevitável. Os homens, por natureza, não puderam achar e construir outro caminho, no itinerário do seu difícil viver na Terra, que não o da Civilização. Para o Homem a Civilização constituiu uma condição – uma obra, uma caminho, uma incessante construção – inelutável, inevitável, obrigado. Ou os homens se civilizavam, ou pereciam, ou viravam outra espécie de seres que não a que passaram a ser graças ao processo autocivilizatório em que entraram por inconjecturáveis acasos: uma espécie de seres racionais, inventivos, construtivos, dotados de alma e sensitividade, capazes de ciência e de artes. Para poderem possuir história, os homens precisaram desse instrumento chamado Estado. A evolução e desenvolvimento do Estado é o efeito progressivo de duas atividades dos homens: a inventiva e a descobridora. As invenções e as descobertas construíram e constituíram a Civilização. Aos poucos. 238
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Passo a passo, nem sempre progressivos, pois muita vez os homens, após alguns passos para a frente, estacionaram por longo tempo ou mesmo retrocederam perigosamente. Mas de avanço em avanço, de conquista em conquista, a Humanidade marchou, insciente do rumo, mas persistente, perseverante, esperançosa. De um século e meio para hoje, o progresso da Civilização entrou a ase acelerar: as invenções e as descobertas modificativas das condições da vida dos homens se amiudaram e aprofundaram com recrescente rapidez. Milênios transcorreram para que o Homem ascendesse do fogo e da roda às deslumbradoras e, pouco antes, quase inimagináveis invenções atuais. O processo inicial foi lento, lentíssimo. A linguagem falada. O fogo. A alavanca. A roda. O arco-e-flecha. O tacape. A agricultura. A enxada. A charrua. O arado. A lança. O escudo. O carro tirado a tração animal. O uso de metais. A escrita. (Ah! a escrita! Que mudança!) O dinheiro. A imprensa. A pólvora. O telescópio. A máquina a vapor. A anestesia. A fotografia. A locomotiva e o trem de ferro. O navio a vapor. O automóvel. O rádio. O telefone. O telégrafo sem fio. O cinema. O avião. A televisão. A energia atômica. O radar. O telex. A fotocópia. O fax. O computador. O microcomputador. Tanta coisa! Inventar e descobrir, descobrir e inventar: eis os verbos instrumentais da Civilização. A Civilização (esta é uma tese do pensador alemão Erich Fromm, a qual aceitamos sem dificuldade) acrescentou à natural agressividade do Homem a destrutividade. A agressividade humana é um fenômeno normal, porque natural, ingênito. Perversa é a destrutividade. A agressividade faz legítimo o Homem se autodefender para escapar a ataques contra a sua vida ou a sua incolumidade física, a sua segurança pessoal, a da sua família, dos seus bens, etc. A destrutividade é uma exacerbação monstruosa da agressividade: é a maldade dos genocídios, a maldade da guerra de vindita, da guerra de conquista; é a destruição selvagem de homens por outros homens. Não podemos, porém, considerar a Civilização uma coisa má. Boa e má, isto sim: ambivalente, como todas as coisas, como tudo na vida, tudo no Mundo, tudo no Universo. O Estado tem servido – eis a sua face perversa – à dominação de uma classe sobre outras no interior da sociedade humana. Porém, o Estado vem cumprindo, ao longo da História, um papel obviamente Poder Legislativo, Congresso Nacional, comissões parlamentares
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positivo de instrumento de ordem, de progresso, de veículo, organização e prática de processos e sistemas educacionais, de administração de justiça, de civilização e de cultura. Isso é inegável. Dentre as diversas espécies e modelos de estados experimentados pelos homens em sua vida social, a que se provou mais eficiente na função de os elevar a uma dignidade compatível com a ideia mais positiva e auto-estimativa que os homens concebem de si mesmos foi o estado democrático. Poucos foram os Estados democráticos no decorrer da História. A democracia é uma qualidade de vida estatal relativamente nova na vida dos homens. Não é de ontem?, quase de hoje?, a experiência democrática nas cidades-estados da Hélade. Sim: ela é quase contemporânea nossa, se se contempla a História como uma gota de tempo no Oceano infinito do Tempo sem começo nem fim. O Estado na Hélade Vejamos o Estado na Hélade – a Grécia Antiga. E vejamo-lo no Estado mais democrático do arquipélago de cidades-estados que se distribuíam através da Grécia Continental, nas ilhas, na Magna Grécia (o Sul da Itália) e na Ásia Menor. Examinemos em Atenas o poder legislativo. Como era. Como funcionava. Origens do Estado Falemos do Estado: das suas origens. Diz Will Durant (um historiador norte-americano falecido há vinte anos, que, para escrever a sua História da Civilização e constituir o seu próprio pensamento de historiador, leu, deglutiu e assimilou praticamente tudo o que de mais valioso e importante se tem escrito de História) na sua História da Civilização: “Só involuntariamente é o homem um animal político. O macho humano associa-se a seus companheiros menos pelo desejo do que pelo hábito, pela imitação ou força das circunstâncias. Associa-se porque o isolamento o põe em perigo e porque muitas 240
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coisas há que só podem ser feitas de cooperação; mas no fundo é um animal solitário que heroicamente se retesa contra o mundo. Se o homem médio houvesse predominado, nunca teríamos a formação do estado. Ainda hoje ele se ressente dessa instituição e anseia pelo “estado que governe menos”. Se pede novas leis, é porque está seguro de que o seu vizinho delas necessita; a sós consigo é um anarquista pouco filosófico, e acha que no seu caso pessoal as leis são desnecessárias. Nas sociedades mais simples havia um mínimo de governo. Os primitivos caçadores só aceitavam regras quando reunidos em bando para a ação conjunta. Os boximanes vivem divididos em famílias solitárias; os pigmeus da África e os nativos da Austrália só temporariamente admitem a organização política e dela refogem para o isolamento familial; os tasmanianos não tinham chefes, nem leis, nem governo regular; os vedas do Ceilão formavam pequenos grupos de acordo com as relações de família, mas sem governo; os kubus da Sumatra “vivem sem autoridades”, cada família governando-se a si mesma; os fueguinos raro se reúnem em número maior que doze; os tungus associam-se em grupos de dez tendas, mais ou menos; a “horda” australiana raro excede de sessenta almas. Em tais casos a associação e a cooperação se realizam com propósitos especiais, como uma caçada; não se tornam permanentes. A mais primitiva forma de organização social foi o clã – um grupo de famílias aparentadas, vivendo num mesmo trato de terra, com o mesmo totem, os mesmos costumes, as mesmas leis. Quando certo número de clãs se reuniu sob um chefe, formou-se a tribo – o segundo passo para o estado. Mas o desenvolvimento foi demorado. Muitos grupos não tinham chefes, e outros só os toleravam em tempo de guerra. Em vez de ser a democracia um distintivo da nossa época, aparece sob a melhor forma nos vários grupos primitivos em que o governo não passa do conselho dos pais de família do clã e nenhuma autoridade arbitrária é permitida.
ele:
Para Will Durant, o que produziu o Estado foi a guerra. Afirma
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Como a guerra conduziu o homem ao estado? O homem não é naturalmente inclinado à guerra. (…) a vida primitiva era atormentada apela intermitência da guerra. As tribos caçadoras disputavam melhores campos de caça, as tribos pastoras disputavam novas pastagens, os agricultores disputavam as terras novas; e todos, a espaços, lutavam para vingar um crime, ou para endurecer e disciplinar os moços, ou para interromper a monotonia da vida, ou para saquear e rapatr – só raramente por motivo de religião. Havia instituições e costumes prepostos à ilimitação na chacina, como os há entre nós. Havia certas horas, dias, semanas ou meses, durante os quais nenhum selvagem podia matar; certos funcionários eram invioláveis, certas estradas eram neutras, certos mercados e asilos eram postaod ee ladop ara a paz. (…) Mas pela maior parte era a guerra o instrumento favorito da seleção natural entre os primitivos grupos humanos.
O poder legislativo primitivo O poder legislativo, na maioria dos Estados registrados pela História, se reuniu ao poder executivo e mesmo ao judiciário numa só e única pessoa: o rei. Em outras palavras: o rei exercia, a um só tempo, os poderes legislativo, executivo e judiciário na maioria dos Estados que a História focaliza. Esse é um dado que a Antropologia colhe nas comunidades primitivas. O poder, na tribo, é uno: o detentor do poder é quem comanda na guerra e na paz, e dita as leis, e julga os transgressores. Em Atenas, durante um largo período que perdurou o bastante para iluminar a História futura da Humanidade ocidental, o poder legislativo foi exercido pelo conjunto dos cidadãos. Parlamento e comissões: uma correlação necessária O parlamento é uma instituição política. Desde que os homens começaram a viver em comunidades, depararam a necessidade de estabelecer regeras de convivência. O 242
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direito é um fenômeno conatural à coexistência dos homens uns com os outros. A organização política, também. Ou em formas embrionárias, ou em formas desenvolvidas, as comunidades humanas criaram, desde que se formaram, ou durante o processo mesmo de se formarem, instituições com funções iguais ou semelhantes às de um parlamento moderno: funções legislativas. Essa fase da vida humana acha-se perdida na bruma dos tempos, aonde não vai a História, mas podemos imaginar que o poder de fazer leis pode ter pertencido – no caso das comunidades primordiais – a uma só pessoa, alguém incumbido de dizer ou de interpretar as leis ou os costumes imemoriais. A História é recente, na vida do Homem. Começou praticamente com os registros escritos, e portanto com a invenção da escrita. E o que a História nos revela é que, no Ocidente, o parlamento começou na Hélade – na Grécia. A Hélade se compunha de cidades-estados. Numerosas cidades-estados. Não conhecemos bem a organização política de todas e de cada uma das cidades helênicas. Aquela de que sabemos mais é Atenas. Aristóteles escreveu comentários sobre uma centena de constituições de cidades da Hélade. Somente chegou até nós aquilo que ele escreveu a respeito da de Atenas. O parlamento de Atenas chamavda-se Ekklesia. Era uma assembleia de todos os cidadãos. Da Ekklesia saíam, ou mediante votos, ou por sorteio, os ocupantes de todos os cargos administrativos e judiciais da cidade – da Polis. A Ekklesia governava, pois, a cidade. Pode-se dizer que a democracia de Atenas era uma democracia parlamentista, ou parlamentar – mas de um parlamento não representativo e sim integrado de todos os cidadãos. Importa, pois, verificar quem era cidadão em Atenas. Veremos esse ponto depois. Mesmo no parlamento de Atenas pode-se divisar um embrião de comissão – comissão parlamentar. Também mais adiante focalizaremos esse ponto. Por enquanto, salientemos o ponto de que parlamento e comissão parlamentar são entidades ligadas uma à outra tal como o tronco de uma árvore e o seu ramo. O tronco gera o ramo; o ramo precisa – e o pressupõe – do tronco. Poder Legislativo, Congresso Nacional, comissões parlamentares
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Falar de comissões parlamentares pressupõe falar de parlamento. E tratar de parlamento induz a focalizar as comissões que o integram. Impossível parlamento sem comissões. Por quê? Porque todo parlamento precisa delas em virtude da necessidade humana de dividir e racionalizar o trabalho coletivo. Onde há trabalho coletivo tem de haver divisão do trabalho, repartição das tarefas. Trata-se de uma necessidade prática inelutável. Uma necessidade organizacional. A divisão e a racionalização do trabalho são fatos naturais por corresponderem a uma necessidade. Em toda coletividade de seres humanos o trabalho tem de ser, e o é, quase naturalmente dividido entre os indivíduos e entre os grupos e as categorias integrantes da coletividade. Por isso é que se vê, no panorama da vida social, padeiros, marceneiros, fabricantes de tecidos, pedreiros, limpadores de ruas, agricultores, pecuaristas, motoristas, pescadores, etc. Para cada atividade humana, existem especialistas: sapateiros, ferreiros, médicos, dentistas, advogados, juízes, carregadores, ascensoristas, operários de todos os ramos, contadores, banqueiros, bancários, professores, impressores – enorme é o rol das atividades e profissões humanas. Muita vez o trabalho cabe não a um indivíduo, mas a um grupo de indivíduos; então se reproduz a aplicação inevitável do mesmo princípio da divisão do trabalho: o grupo repartirá entre si as tarefas parciais em que pode dividir-se o trabalho geral, subtarefas da tarefa una de todos. Essa repartição se faz tendo em vista e consideração a aptidão específica de cada membro do grupo. Um exemplo clarificador desses mecanismos se encontra na constituição e funcionamento de uma comissão parlamentar: os seus membros são escolhidos de acordo com as aptidões dos membros da coletividade maior, o conjunto dos membros do parlamento; e entre eles as tarefas também se distribuirão segundo as aptidões de cada um. Em cada comissão e para cada tarefa a ela cometida, escolhe-se, entre os seus integrantes, alguém que (com o título de relator) emitirá o parecer e proporá a decisão a ser adotada pela comissão. Pura divisão do trabalho. E pura racionalização do trabalho: repartição de tarefas segundo as aptidões de cada qual dos que devem realizá-las. No parlamento, a comissão é um órgão; um instrumento de atuação do parlamento, uma ferramenta de trabalho dos membros do 244
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parlamento. Em geral as decisões finais competem ao parlamento como um todo: ao plenário; mas muitas delas são delegadas às comissões. Aliás a tendência dos parlamentos é a de ampliar a competência das comissões, diminuindo o conhecimento e a decisão por parte do plenário. A propósito é oportuno citar umas observações, sobretudo a afirmativa final, de Ehrhardt Soares, em relatório apresentado ao X Congresso Internacional de Direito Comparado, realizado em Budapeste em 1978: Compreende-se que, ao longo do tempo, o plenário tenha transigido em cometer a grupos de deputados o encargo de preparar as soluções fora do bulício da grande sala, poupando-se uma boa parte dos debates; ou que tenha repousado na competência técnica de alguns a decisão preliminar das questões. Ponto é que com isso não se comprometa aquilo que deve ficar, de acordo com a tradição, reservado ao plenário; ou que não se vá contribuir para a capitulação da instituição parlamentar perante outras fórmulas jurídico-constitucionais ou perante oforças políticas ou econômicas jogando fora do quadro estatal.
Deste modo, os Parlamentos modernos não são pensáveis sem as Comissões Parlamentares. Recorramos também a Joseph Barthélemy: O que prova que as comissões respondem bem a uma necessidade espontânea, é que todas as assembleias deliberativas francesas se utilizaram delas.
Barthélemy faz uma retrospecção através da história moderna da França, desde a primeira Assembleia Constituinte até ao parlamento da sua época (ele escreveu em 1934), passando pela Assembleia Legislativa de 1791, o Diretório do Ano III, o Consulado e o Império, a Restauração e a Monarquia de Julho, a Constituinte de 1848, a Assembleia Nacional em 1871. E aduz: A existência de comissões é portanto inerente ao regime representativo francês.
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Não é difícil induzir que as comissões parlamentares surgiram dentro dos parlamentos como respostas à necessidade de se repartir o trabalho. Imaginemos um parlamento com duzentos membros. Quando se vai discutir uma questão problema – digamos a da educação ou a dos tributos ou um problema econômico determinado –, ressaltam logo pessoas que sobre o assunto sabem mais do que as outras. Natural, então, a tendência a se encarregar aquelas pessoas de cuidar daquele problema senão com exclusividade, ao menos com mais responsabilidade do que as pessoas que sobre sabem menos. Além disso, é muito difícil duzentas pessoas discutirem uma questão. Se elas devem fazê-lo, natural será que tendam a escolher, dentre a coletividade delas, um grupo menor de pessoas que se incumba de debater o problema e preparar a sua solução. Portanto, o aparecimento de comissões no interior dos parlamentos se explica pela necessidade da divisão do trabalho e pela conveniência de que os assuntos sejam tratados pelas pessoas que se revelam mais aptas a tratá-los. Citemos, mais uma vez, a Joseph-Barthélemy: Definição das comissões. As comissões são organismos constituídos dentro de cada Câmara, compostos de um número geraalmente restrito de seus membros, escolhidos em razão da sua competência presumida e incumbidos de preparar o seu trabaho, normalmente, apresentando-lhe relatório. Há nesta definição um certo número de elementos que merecem ser assinalados. 1º. A instituição das comissões corresponde a um princípio instintivo, espontâneo e comumente admitido de método e de organização do trabalho. Toda assembleia algum tanto numerosa encarregada de estudar uma questão um tanto complexa, tem por primeiro impulso encarregar um certo número de seus membros de fazer uma ordenação inicial do problema, de examinar peças e documentos, de classificar os papéis, de propor conclusões. A grande vantagem do procedimento jurisdicional administrativo sobre o procedimento dos tribunais ordinários é que nenhum negócio vem à audiência senão quando já estudado especialmente por 246
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um dos juízes, que dele apresenta relatório. A ideia de um exame prévio das questões por um restrito número de membros é tão natural e espontâneo, ela se impõe com tamanha evidência que, a despeito da exceção evidentemente ressonante da Inglaterra, que nisso, mais uma vez, assinalou sua insularidade, pode-se dizer que, desde que existe uma assembleia um tanto numerosa, ela constitui comissões. Nos seus começos, a Sociedade das Nações constituiu comissões para a sua assembleia; cada Estado tem nelas, é verdade, um representante, mas um apenas, enquanto que pode ter três na Assembleia; aliás, ela pode constituir comissões mais restritas, com funções especiais: comissão da ordem do dia, comissão de verificações de poderes, comissão para o estudo do pacto de assistência, etc. O Conselho, ele próprio, embora restrito, constitui comitês ainda mais reduzidos para acompanhar certos problemas; existe um Comitê dos Três para estudar as questões das minorias raciais, linguísticas ou religiosas. Há comissões em todos os conselhos gerais dos departamentos: comissão de finanças, de trabalhos públicos de ensino e de higiene, de assistência, etc. E pode-se observar aliás, de passagem, que o problema da distribuição das competências entre a comissão de finanças das assembleias departamentais e as comissões especializadas se põe exatamente nos mesmos termos que nos parlamentos. Existem comissões nos conselhos municipais de alguma importância. Existem comissões nos congressos políticos. Existem comissões nas Faculdades, etc., etc. Em suma, a necessidade de comissões é tão natural, primordial, imperiosa, que se pode dizer que aqueles que criticam sem cessar as comissões parlamentares e reclamam a supressão delas, recusam em definitivo às Cãmaras os meios de exercer convenientemente as funções que lhes são atribuídas pela Constituição.
Pertence à natureza humana: quando um grupo de pessoas se reúne para uma ação em comum, a tendência natural delas é repartir funções e responsabilidades. Você que é bom nisso, cuidará disso; aquele ali que é mais afeito a isso assim-assim, tratará disso assim-assim; eu fico encarregado disto; fulano, de tal outra coisa. Poder Legislativo, Congresso Nacional, comissões parlamentares
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Apêndice I
O caso da proibição do livro Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa
1. Petições judiciais 2. Requerimentos e representações
1 Petiçþes judiciais
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2 Requerimentos e representaçþes
Morrinhos, GO, 10 de outubro de 2008. Of N° 50/2008 Ao Excelentíssimo Senhor Doutor Marcelo Almeida de Moraes Marinho MD. Juiz da 24° Vara Cível Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Comarca da Capital. Avenida Erasmo Braga, 115, sala 302-B. Rio de Janeiro, RJ. CEP 20020-000, Referência: Ação Movida contra o Livro "Sinfonia Minas Gerais: A VIDA E A LITERATURA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA". Meritíssimo Senhor Doutor Juiz, A Academia Morrinhense de Letras, de Morrinhos, Goiás, vem de público, manifestar sua solidariedade ao Dr. Alaor Barbosa, ilustre escritor e filho desta terra, nesta ocasião em que o seu livro "SINFONIA MINAS GERAIS: A VIDA E A LITERATURA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA" vem sendo objeto de perseguição judiciária por parte de uma das filhas do biografado e da editora dela. Ao contrário do que afirmam as autoras da ação judicial, o livro de Alaor Barbosa constitui um perfeito resgate e valorização da pessoa e da obra do escritor João Guimarães Rosa. Espera a Academia Morrinhense de Letras que o Juiz da causa faça a devida justiça, julgando improcedente a ação proposta contra o livro de Alaor Barbosa e declarando sobre ele a mesma verdade aqui afirmada.
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Estado de Goiás Câmara Municipal de Goiânia Poder Legislativo Senhor Presidente, HÉLIO DE BRITO, vereador que este subscreve, de acordo com as normas regimentais e anuência do Plenário, requer a Vossa Excelência que faça inserir nos Anais da Casa Nota Oficial da ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE ESCRITORES, cujo teor integral se junta ao presente requerimento, de solidariedade ao Escritor ALAOR BARBOSA, recentemente emitida e referente a lamentável atitude publicamente adotada pela Senhora WILMA GUIMARÃES ROSA, que intenta proibir livro biográfico sobre JOÃO GUIMARÃES ROSA, intitulado SINFONIA MINAS GERAIS – A VIDA E A LITERATURA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA, publicado pelo escritor goiano e editado pela LGE Editora de Brasília. Requer, ainda, o signatário que essa transcrição traduza igualmente a solidariedade dos representantes do povo goianiense não só ao escritor como também ao cidadão ALAOR BARBOSA, exemplo de devoção às letras e de honradez pessoal. Requer, finalmente, seja comunicada a aprovação desta proposição à ANE – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE ESCRITORES, sediada em Brasília (SEPS EQS, Bloco F, Edifício Escritor Almeida Fischer, CEP 70390-078 – Caixa Postal 25, CEP 70359-970); ao escritor ALAOR BARBOSA, por meio de comunicação à ACADEMIA GOIANA DE LETRAS, sediada na esquina das Ruas 15 e 20, Centro, desta Capital) e à LGE Editora, sediada em Brasília no seguinte endereço: SAI trecho 03, lote 1760 CEP 71200-030. SALA DE SESSÕES DA CÂMARA MUNICIPAL DE GOIÂNIA, aos 3º dias do mês de outubro de 2008.
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OFÍCIO N° 100/2008 Ao Excelentíssimo Senhor Doutor Marcelo Almeida de Moraes Marinho MD. Juiz de Direito da 24° Vara Civil Tribunal de justiça do Estado do Rio de Janeiro – Comarca da Capital. Rio de Janeiro – RJ. Referência: Ação Movida contra o Livro "Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa – escritor: Alaor Barbosa" Meritíssimo Senhor Doutor Juiz, A Câmara Municipal de Vereadores da Cidade de Morrinhos, Estado de Goiás, vem de público manifestar a sua solidariedade ao Dr. Alaor Barbosa, ilustre escritor desta cidade, nesta ocasião em que o seu livro "Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa" vem sendo objeto de perseguição judiciária por parte de uma das filhas do biografado e da editora dela. Ao contrário do que afirmam as autoras da ação judicial, o livro de Alaor Barbosa constitui um perfeito resgate e valorização da pessoa e obra do escritor João Guimarães Rosa. Espera o Povo de Morrinhos, legitimidade, representado por este Poder Legislativo da cidade natal de Alaor Barbosa, que o juiz da causa faça a devida justiça, julgando improcedente a ação proposta contra o livro de Alaor Barbosa e declarando sobre ele, a mesma verdade aqui firmada. GABINETE DA PRESIDÊNCIA, AOS 08 DIAS DO MÊS DE OUTUBRO DE 2008.
José Joaquim Sabará de Medeiros Filho Presidente da Câmara
Requerimentos e representações
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Exmº Sr. Ministro de Estado da Justiça, Dr. TARSO GENRO: ALAOR BARBOSA DOS SANTOS, brasileiro, casado, advogado e servidor público federal (Consultor Legislativo do Senado Federal), aposentado residente e domiciliado em Brasília, DF, Id. n. 6667 ((OAB/ DF), CPF n. 002635911-15, com escritório profissional no Ed. Sabin, SEP/Sul 714/914, bloco D, salas 205/206, Cep 70 390-145, vem à digna presença de V. Exa. expor e pedir a final o que segue. 1. O Requerente é autor, entre outros 15 (quinze) livros, da obra Sinfonia Minas Gerais: Vida e literatura de João Guimarães Rosa, editada em fins de 2007 pela Editora LGE, de Brasília. 2. O livro foi objeto de ação judicial, em julho do ano passado, proposta contra a Editora LGE, por uma das filhas do biografado e pela editora que lhe tem editado os livros, no foro da comarca da cidade do Rio de Janeiro, tendo sido RETIRADO DAS LIVRARIAS, por ordem do juiz da 24ª Vara Cível em despacho inicial de agosto de 2008. 3. A ação foi contestada com base na Constituição Federal de 1988 (Art. 5º, IX) e em vários documentos internacionais de declarações de direitos fundamentais e na correta interpretação do Código Civil (Art. 20). Foi também objeto de Exceção de Incompetência, por entender a Ré que o foro competente é o da comarca de Brasília. O feito pende atualmente de decisão sobre tal Exceção de Incompetência. 4. Livro não pode ser proibido no Brasil, por força do elenco (Art. 5º ) de direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988. Toda tentativa ou ato de proibir livro no Brasil viola a nossa Constituição. 5. Embora “sub judice”, a questão é um fato transcendente ao âmbito meramente judiciário. Essa transcendência permite – a rigor, exige – a manifestação inconformada (e reivindicadora da restauração e preservação da ordem jurídica vigente) de todas as pessoas responsáveis pela defesa da referida ordem jurídica. Permite – e exige –, pois, manifestação do Governo Federal, na medida dos seus compromissos e objetivos democráticos. Precipu260
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amente do Ministério da Justiça, principal órgão governamental na realização de tais compromissos e objetivos. É o que vem o Requerente pedir a V. Exa.: que V. Exa. emita nota oficial afirmativa de que toda proibição de livro, no Brasil, viola o Art. 5º, IX, da libertária Constituição Federal Brasileira de 1988. Necessário também, e seria tempestivo, manifestar-se o Ministro da Justiça do Brasil sobre a verdadeira inteligência do Art. 20 do Código Civil – cuja errônea e tendenciosa interpretação vem sendo, ao estatuir a necessidade de autorização prévia para a publicação de biografias, causa e fundamento, há 6 (seis) anos, de terríveis e desastrosos equívocos em matéria de liberdade de expressão no Brasil. . Por oportuno, pede a V. Exa. se digne de lhe conceder audiência pessoal, de cuja data espera receber a competente comunicação de V. Exa. Junta a esta o texto que escreveu e que serviu de base à contestação oposta à ação e um texto que acaba de elaborar para a Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, no qual analisa a questão sob vários ângulos da sua equação jurídica. Confiante na coragem e coerência jurídico-constitucional de V. Exa., homem cujo passado e presente tanto o recomendam à admiração da Nação, E. deferimento. BRASÍLIA, DF, 18 de fevereiro de 2009.
Requerimentos e representações
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Laudo da Perita
Laudo pericial
(Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, versus Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa) Trata-se de perícia cujo objeto é a verificação da ocorrência de plágio da obra Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, de autoria de Vilma Guimarães Rosa, pela obra Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, tomo I, cujo autor é Alaor Barbosa. Das obras em questão A obra realizada pelas autoras do processo, Vilma Guimarães Rosa e Editora Nova Fronteira, reeditada em 2008, por motivo do centenário de nascimento de João Guimarães Rosa, trata-se de obra muito sentimental de uma filha que relembra e homenageia, saudosa, seu pai. Nos dizeres de Otto Lara Resende e Josué Montello, que foram agradecidos carinhosamente pela autora Vilma e reproduzidos já na capa de seu livro, a obra Relembramentos, como seu título deixa perceber, é “um depoimento filial”, “um livro de saudades”, de “recordações”, “documento essencial para a compreensão do grande escritor que foi João Guimarães Rosa. 265
O livro de Alaor Barbosa, por sua vez, é, nas palavras reproduzidas já na sua primeira orelha, a biografia de João Guimarães Rosa, resultado do sentimento de um múltiplo dever de admiração, difusão, defesa e valorização que o autor diz ter não só pelo biografado, João Guimarães Rosa, mas também para com a literatura brasileira, a língua portuguesa e a nacionalidade brasileira. O biografado seria, para o escritor, um raro exemplo de dedicação de um homem à sua arte literária. Como perita, li e estudei as duas obras com atenção e cuidado, com o objetivo de responder às questões tanto dos autores quanto dos réus, que seguem respondidas abaixo, à luz do que é regulamentado na Lei 9.610/98. 1) Não se verifica em Sinfonia Minas Gerais a utilização de mais de 10% da obra de Vilma Guimarães Rosa, Relembramentos. Uma contagem dos trechos citados revela a existência de aproximadamente 1043 linhas de textos referentes à obra da autora do processo, em um total de 11.288 linhas, também em média. Isso resulta em um percentual inferior a 9,5%. 2) A obra de Alaor Barbosa, Sinfonia Minas Gerais, se sustenta e é útil ao conhecimento da vida do biografado e também como obra literária mesmo sem as referências à obra de Vilma Guimarães Rosa, Relembramentos, ou seja, ainda que os trechos concernentes ao livro da autora do processo sejam suprimidos, o livro Sinfonia Minas Gerais tem função e interesse histórico e literário. 3) Os fragmentos de textos reproduzidos na obra de Alaor Barbosa, tanto os de Vilma Guimarães Rosa quanto os de outros autores, são, todos eles, identificados, isto é, são referenciadas a autoria e a fonte, de modo nenhum possibilitando a que se pense tratar-se de textos de autoria da ré do processo. Assim, é meu dever como perita negar a existência de plágio, que, como regulamentado na Lei 9.610/98, reguladora dos direitos autorais, requer, em última instância, que se tome como sua a autoria da obra de outrem. Independentemente de julgamentos de mérito de ambas as obras em questão, os quais não fazem parte do atual processo nem de qualquer outro que respeite a liberdade de expressão, sobretudo no que se refere a figuras de ordem universal, patrimônios da humanidade, como o é João Guimarães Rosa, não há de julgar-se o livro Sinfonia Minas Gerais uma obra copiada nem incapaz de contribuição com a cultura do povo brasileiro. 266
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Para tanto, vamos analisar o disposto no artigo 46 da referida Lei (9.610/98), tendo em mente que se entendem por direitos autorais os direitos de autor e os que lhe são conexos (art. 1º), assegurados ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra criada (art. 22). Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: (...) VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.
Sobre o tema, Arnaldo Rizzardo esclarece: Quando se dá não apenas a falta de autorização do titular, mas também a apropriação da obra de outra pessoa como sua, a figura que se caracteriza é o plágio, que significa a apropriação indevida, ou o furto, do trabalho intelectual. Diz respeitomais à paternidade da obra, já que se funda na usurpação, atribuindo alguém a si a autoria de uma obra, ou parte dela, através da cópia pura e simples, ou disfarçadamente, com mudança de algumas palavras. Mas envolve o direito de publicidade, quando se consuma o plágio (Responsabilidade Civil: Lei n. 10.406, de 10.01.2002, Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. 832.)
In casu, em vista do que foi reproduzido acima, não entendo que se deva julgar a existência do plágio puro e simples. A julgar da alegação das autoras do processo, de que não houve permissão de citação da obra Relembramentos na obra Sinfonia Minas Gerais, há que argumentar a existência de reprodução, identificada e referida, de menos de 10% da obra, como é de praxe nos meios literário e editorial, o que viria a justificar emendas e acordos de reorganização da obra-ré, mas não a proibição total de sua reprodução.
Laudo pericial
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Não há caracterização de furto do trabalho intelectual, visto que ele é, integral e singularmente, em cada caso, atribuído à filha do biografado e à sua obra. Não se pode afirmar também prejuízo da exploração normal da obra reproduzida, visto terem os livros da autoria e da ré do processo caráter e objetivo extremamente diferentes, que complementam e enriquecem a admiração a um expoente da cultural nacional e o conhecimento de seu legado. Pode-se dizer ater que uma estimula a leitura da outra, para quem é desejoso de conhecer a vida e a obra de João Guimarães Rosa. Dito isto, concluo que não há plágio no caso em tela. Carolina Mori Ferreira Perita do Juízo
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Ata da reunião – Alaor barbosa e Nova Fronteira
Brasília, DF, segunda-feira, 09 de agosto de 2011. Participantes: Dr. Licínio, Dr. Alaor Barbosa e sua esposa Sra. Maria Gonçalves e Dr. Eurico Barbosa e Dra. Clarice. Assunto principal: Interesse na composição amigável entre a Nova Fronteira, Vilma Guimarães Rosa e Sr. Alaor Barbosa, incluindo a possibilidade de reedição da obra, “Sinfonia Minas Gerais” de autoria do Sr. Alaor e extinção das ações judiciais em trâmite na Comarca do Rio de Janeiro e na Comarca de Goiânia. Iniciamos a reunião demonstrando o interesse da Nova Fronteira em firmar acordo com o Sr. Alaor Barbosa, reeditando a sua obra, trazendo a obra para o catálogo da Nova Fronteira. Nos comprometemos em tentar intermediar junto a Sra. Vilma Guimarães Rosa redigir um posfácio e combinar uma possível noite para lançamento do livro junto com a Sra. Vilma Guimarães Rosa. O Sr. Alaor muito gentilmente, declarou-se disposto a pensar sobre a nossa oferta, inclusive sobre a conveniência ou não da reedição de sua obra, porém, pelo desgaste experimentado não abre mão, a principio, de uma retratação publica e direta da Sra. Vilma Guimarães Rosa. 269
Foi mencionada na reunião, pelo Dr. Licínio Barbosa que o fato da Nova Fronteira reeditar a obra e o posfácio da Sra. Vilma Guimarães Rosa pode ser considerado como uma retração indireta, idéia sobre a qual o Sr. Alor Barbosa declarou-se disposto a pensar. Sr. Alaor vai aguardar uma proposta escrita, detalhada sobre a composição amigável entre as partes, sendo do seu interesse que o acordo mencione a necessidade da retratação publica nos veículos de imprensa em que se produziram as declarações da Sra.Vilma. o Sr. Alaor dará resposta escrita, sem demora, à proposta que receber, para agendarmos nova reunião. Sr. Alaor também mencionou que a proposta deve contemplar o pagamento de honorários e custas judiciais nas ações em curso na Comarca do Rio de Janeiro e Goiânia. A Nova Fronteira, hoje representada pela Dra. Clarice Doyle, se compromete a levar todas as considerações feitas nesta reunião para análise da Diretoria da Empresa e emitir pronta resposta ao Sr. Alaor Barbosa e Dr. Licínio em forma de uma possível proposta. A presente anotação levará os vistos da representante da Nova Fronteira, do Dr. Licinio Barbosa eSr. Alaor Barbosa.
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reafirmação de consideração
Brasília, DF, segunda-feira, 15 de agosto de 2011. Prezada Dra. Clarice Doyle: Bom dia. Receba, por favor, a reafirmação da minha consideração e simpatia pessoais. Devo lhe comunicar – e esta é a ocasião oportuna – algumas observações, registros e sugestões, a fim de colaborar com você na sua tarefa de preparar a proposta escrita da Ediouro/Nova Fronteira que você me transmitirá nos próximos dias. Tornada o mais possível completa, a proposta será devidamente analisada para que eu possa decidir em favor, ou não, dela, no todo ou em parte. Preliminarmente, devo deixar claro que o texto do livro Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, que eu autorizaria ser reeditado pela Ediouro/Nova Fronteira, seria o texto, que tenho pronto desde 2008, em que procedi à exclusão da maioria das citações ao livro Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai. Por conseguinte, o Posfácio que viesse a ser redigido pela autora de Relembramentos dependeria, presumo eu, de uma leitura do novo texto do meu livro. 271
Faz-se também necessário que tal Posfácio seja previamente submetido à minha aprovação. Gostaria de sugerir que, além do Posfácio da autora de Relembramentos, seja incluída na reedição do meu livro uma Nota Editorial da Ediouro/Nova Fronteira. Nessa Nota Editorial, a Ediouro/Nova Fronteira expressaria, com mais abrangência, explicitude e ênfase, os termos da propícia exposição verbal formulada por você a mim, ao meu irmão Eurico Barbosa e ao meu advogado (na ação de indenização por dano moral proposta no foro da Capital de Goiás), Dr. Licínio Leal Barbosa, no escritório dele, com a declaração de que a Nova Fronteira reconhece o erro que cometeu – e hoje não cometeria – em participar, na condição de parte co-autora, da ação proposta contra o meu livro, cujos méritos literários afirmaria também reconhecer e proclamar; seria de todo aconselhável também que a Ediouro/Nova Fronteira declare reconhecer e proclamar a minha dignidade e respeitabilidade intelectuais e morais, bem como as razões por que se decidiu a reeditar o meu livro. É indispensável também que essa Nota Editorial seja submetida ao meu exame e aprovação antes de editado o meu livro. Dado que o livro Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa consta de dois tomos (só foi editado o primeiro, que contém apenas a parte biográfica), a reedição deverá ser do livro inteiro, isto é, dos dois tomos que o compõem – sendo o segundo tomo consistente principalmente em textos de análises literárias de livros de João Guimarães Rosa, em especial o romance Grande sertão: veredas, do qual a análise é bastante minuciosa. Desse Segundo Tomo há um SUMÁRIO no Tomo Primeiro do livro editado e retirado das livrarias. Do processo de entendimentos iniciado em Goiânia no escritório do meu advogado, deverá participar também, doravante, a editora LGE, de Brasília, contra a qual foi dirigida a ação referente ao meu livro em curso na 24ª (Vigésima Quarta) Vara Cível da comarca da cidade do Rio de Janeiro; a LGE é representada nesse processo pelo advogado Dr. Daniel Campello Queiroz, o qual tem escritório e domicílio na cidade do Rio de Janeiro e cujo endereço e telefones são os seguintes:
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Rua Gildásio Amado, 55 – Sala 1113 Barra da Tijuca Cep 22 631-020 Tels. 21-3283-7525 / 21-7864-6158 21-2492-2017 / 21– 9170-7525 Para se concluir um eventual acordo de que resultaria também a extinção do processo contra o meu livro, indispensável se faz, por conseguinte, que também com o Dr. Daniel Campello Queiroz se estabeleçam contactos diretos pela representante judicial e/ou legal da Ediouro/Nova Fronteira. O número do telefone da Editora LGE, cujo proprietário é o Sr. Antônio Carlos Navarro, é: 61-3362-0008. Tendo a Editora LGE sofrido consideráveis prejuízos financeiros e morais por causa da ação de proibição do meu livro, é preciso que a proposta contemple a composição desses prejuízos, indicando a forma e modo dessa composição. É também indispensável que a proposta focalize a questão da compensação financeira que se faria devida à Editora LGE no caso de se transferir dela, LGE, para a Ediouro/Nova Fronteira, o direito contratual de editar-se o livro Sinfonia Minas Gerais. Visto que também eu, na condição de autor, sofri graves prejuízos financeiros – e morais – decorrentes da ação de proibição do meu livro (do primeiro e do segundo tomos), é preciso que haja na proposta a ser formulada pela Ediouro/Nova Fronteira uma referência clara à composição de tais prejuízos. Finalmente, gostaria de solicitar que a sua proposta nos seja remetida – a mim, ao meu advogado em Goiânia e ao advogado da LGE no Rio – também pelo correio postal, além de por correio eletrônico (e-mail), devidamente assinada pelos (as) representantes legal e judicial da Proponente. Atenciosamente, Alaor Barbosa
reafirmação de consideração
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Apêndice II
Ação de reparação por dano moral
1. Petição inicial ao Juiz da 6ª Vara cível de Goiânia 2. Impugnação à Contestação
Ação de reparação por dano moral (6ª Vara Cível da Comarca de Goiânia, capital do Estado de Goiás. Juiz: José Ricardo M. Machado)
EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA VARA CÍVEL DA COMARCA DE GOIÂNIA ALAOR BARBOSA DOS SANTOS, brasileiro, casado, advogado inscrito na OAB-DF sob o nº 6.667, jornalista, escritor, servidor público federal aposentado, residente nesta Capital, na Rua das Palmeiras, Quadra 47, lote 9, Residencial Aldeia do Vale, vem, por seus advogados (doc. 1), propor . Ação de reparação por dano moral contra VILMA GUIMARÃES ROSA, brasileira, casada, residente e domiciliada na cidade do Rio de Janeiro, na Rua Almirante Gonçalves n. 56, ap. 1.201, Copacabana, CEP 22.010-070, por ter ela cometido contra o Autor os três crimes contra a honra – calúnia, difamação, injúria – tipificados nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal Brasileiro, o que a sujeita ao dever de reparar os danos morais causados ao Autor.
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Dos fatos O Autor, tendo adquirido e acumulado, durante anos, uma considerável soma de conhecimentos e um aproveitável acervo de idéias sobre a obra e a vida do escritor mineiro João Guimarães Rosa, publicou, em 1981, nesta Capital, um livro intitulado A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa, editado pela Editora Imery, desta Capital, que reunia diversos textos escritos em épocas sucessivas e publicados em jornais. O livro foi saudado imediatamente com bastante aprovação e mesmo com entusiasmo em comentários assinados por vários escritores e jornalistas brasileiros. Com o passar dos anos, tendo aumentado ainda mais os seus conhecimentos e observações sobre a mesma matéria, resolveu ampliar bastantemente o livro. Assim fez: reelaborou o livro, que passou a desdobrar-se em dois volumes bem extensos e minuciosos, e deu-lhe o título Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa. O primeiro tomo veio a ser editado, no final do ano de 2007, pela Editora LGE, de Brasília, Distrito Federal. O segundo volume deveria sair, pela mesma editora, sem muita demora, eis que na sua maior parte já se encontrava redigido. Ocorreu, entretanto, um fato muito lamentável e infeliz: a Ré, filha primogênita de João Guimarães Rosa, juntamente com a editora dos livros dela, Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, inconformadas com a publicação do livro do Autor, propuseram, em julho do ano seguinte, 2008, contra a editora responsável pela edição do livro do Autor, ação judicial de indenização por dano moral, com a pretensão preliminar de que o livro fosse proibido e retirado do mercado livreiro do País. A ação foi proposta na comarca da cidade do Rio de Janeiro e alcançou despacho favorável à antecipação de tutela no que concerne à proibição da distribuição e venda do livro. Antes mesmo e principalmente após a proposição da referida ação, a Ré entrou a falar a jornais, fazendo acusações e cometendo ofensas gravíssimas contra a honra do Autor. Um desses jornais foi a Folha de S. Paulo, da Capital paulista. Na edição do dia 11 de outubro do mesmo ano de 2008, esse jornal, que possui circulação em todo o Brasil e, ao que consta, até mesmo no exterior, publicou matéria assinada pelo 278
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repórter Eduardo Simões (doc. 2), a respeito da referida apreensão judicial do livro do Autor, contendo, na parte final, uma entrevista com a Ré, VILMA GUIMARÃES ROSA, na qual consta o seguinte trecho: Desde o início do processo, Barbosa argumenta que procurou Vilma Guimarães Rosa para avisar que estava escrevendo o livro e esclarecer alguns pontos da biografia do escritor. Ela, no entanto, teria não só se recusado a responder, como colocara em dúvida que Barbosa havia tido qualquer proximidade com seu pai, tal qual ele teria afirmado na biografia. ‘É mentira dele, ele nunca me procurou. Eu soube que ele estava me plagiando, ele fugiu de mim e mandou o livro já pronto com uma dedicatória cínica’, afirmou Vilma à Folha. ‘E ele nunca foi amigo do meu pai. É o tipo de pessoa que quer se dizer amigo de gente importante. Foi um vigarista mesmo e fez isso para ganhar dinheiro.
Essas afirmações caluniosas, injuriosas e difamatórias da Ré constituíram-se em reiterações – e ampliações – de afirmações idênticas ou semelhantes, anteriormente feitas em outros jornais. Cite-se, por exemplo, trecho da entrevista dela ao jornal O Estado de Minas, de Belo Horizonte, do dia 27 de junho de 2008 (doc. 3), em que ela afirmou, textualmente, em resposta a uma pergunta do repórter (“O que mais a incomodou nessa biografia?”): Ele cometeu um crime. Copiou trechos inteiros do meu livro Relembramentos. Outros de um livro de Josué Montello, sobre o meu pai. Transcreveu também trechos da embaixadora Heloísa Vilhena de Araújo, que escreveu um livro sobre Guimarães Rosa diplomata. E vai por aí. Além do mais, esse Alaor Barbosa fez uma coisa apressada, muito malfeita, e ainda botando na boca do meu pai coisas que ele não disse. Publicando fotos do papai sem a nossa permissão. Acho que esse homem é doido. Além do mais, quis me seduzir, dizendo que pretende escrever a minha biografia.
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Nessa entrevista ao jornal de Minas, registre-se, por oportuno, esta contradição da Ré: logo após afirmar que o Autor fugia quando era procurado por ela, proclama que o Autor a procurou, mandando-lhe o livro que escrevera e publicara sobre o pai dela (e outros mais de sua autoria, dele, Alaor Barbosa), além de uma carta com uma proposta de lhe escrever um perfil biográfico. A iniciativa do Autor de procurar a Ré fora também revelada por ela em entrevista anterior dada ao jornal O Popular, desta Capital, Goiânia, no dia 21 de fevereiro de 2008 (doc. 4), em que consta este trecho: De acordo com Vilma, depois de um primeiro contato, ela recebeu uma correspondência de Alaor. “Ele me mandou seu livro, com dedicatória, e uma carta nojenta, em que diz que gosta de minha literatura, se propondo a escrever uma biografia sobre mim. Ele tentou me adular.
Observe-se que é também inverídica a afirmativa da Ré e de que o Autor publicou, sem autorização prévia, fotografias do pai da Ré no seu livro. Não há fotos de Guimarães Rosa no livro do Autor, a não ser na capa, que reproduz fotografia extraída de informações veiculadas na internet – totalmente públicas. Como se verifica nos textos das entrevistas acima transcritos, a Ré Vilma Guimarães Rosa cometeu contra a honra do Autor violentas e criminosas agressões, incorrendo nos três crimes tipificados nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal Brasileiro. O que será em seguida demonstrado, embora, a rigor, sem necessidade jurídica, isto é, de forma redundante, dada a criminalidade evidentíssima das palavras proferidas pela Ré, ofensivas e insultuosas. Assinale-se que tanto a propositura da ação judicial para proibir e apreender o livro do Autor como as ofensas assacadas contra ele pela Ré, causaram e provocaram, em várias partes do Brasil, entre escritores e entidades de classe de escritores, unânimes, uníssonas e enérgicas reações de veemente repúdio e condenação. Apenas exemplificativamente, podem ser citadas as notas e moções de solidariedade emitidas pela Associação Nacional de Escritores, de Brasília; pela Câmara Legislativa do Distrito Federal; pelo Sindicato de Escritores do Distrito 280
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Federal; pela Associação de Assessores Legislativos do Senado Federal, de Brasília; pela União Brasileira de Escritores de São Paulo; pela União Brasileira de Escritores de Goiás; pela Academia Goiana de Letras; pela Câmara Municipal de Vereadores de Goiânia; pela Academia Morrinhense de Letras; pela Câmara Municipal de Vereadores de Morrinhos. E, também meramente a título de exemplos, os artigos de jornais e revistas de Cláudio Willer, escritor, poeta e ensaísta de São Paulo; Manoel Hygino dos Santos, escritor e jornalista de Belo Horizonte; Euler de França Belém, jornalista em Goiânia; Iberê Monteiro, jornalista e empresário residente em Goiânia; Licínio Leal Barbosa, advogado e jurista, ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, dirigente maçônico e membro efetivo da Academia Goiana de Letras; Eurico Barbosa, advogado e escritor; Deputado Federal Pedro Wilson, em discurso na Câmara de Deputados; Ricardo Lísias, escritor paulista residente em São Paulo; Caio Porfírio Carneiro, escritor cearense residente em São Paulo, secretário da União Brasileira de Escritores de São Paulo; José Roberto Guedes de Oliveira, historiador e biógrafo residente em São Paulo; Ronaldo Cagiano, escritor mineiro residente em São Paulo; Luiz de Aquino, escritor goiano, membro da Academia Goiana de Letras; Bariani Ortêncio, escritor paulista residente em Goiás, membro da Academia Goiana de Letras; Edmilson Caminha, escritor cearense residente em Brasília; Sérgio Waldeck de Carvalho, escritor carioca e professor de Literatura residente em Brasília. Merecem citadas textualmente, para efeito apenas exemplificativo, alguns dos escritos surgidos em defesa do livro e da pessoa de Alaor Barbosa. a) Jornal da Associação Nacional de Escritores, de Brasília, Distrito Federal, edição de março de 2008: “ANE LAMENTA A ATITUDE DE HERDEIROS E EDITORES DE GUIMARÃES ROSA CONTRA LIVRO DE ALAOR BARBOSA”. “Confiscar obras literárias e punir escritores são ações que, pela intolerância e pelo anacronismo que as apequenam, configuram verdadeiros autos-de-fé medievais, inconcebíveis para mentes ciosas da liberdade, da justiça e da cidadania a duras pencas conquistadas”. B) Jornal Diário da Manhã, de Goiânia, edição de 28.09.2008, artigo de Luiz de Aquino: “Triste. Alaor não cometeu crime algum. O que Ação de reparação por dano moral
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ele fez foi exaltar, com méritos, a figura e o talento de Guimarães Rosa, a ponto de ser criticado por alguns especialistas por ter feito um livro que só contém elogios”. C) Jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte, edição de 17.10.2008, artigo de Manoel Hygino dos Santos: “O que o artigo veda (menção ao art. 20 do Código Civil) é a divulgação de escritos ou transmissões da palavra de alguém, ou que se publique, exponha-se ou se utilize a imagem de alguém, sob condições de se ferir sua honra, sua boa fama ou a sua respeitabilidade, ou de que tais atos persigam fins comerciais. Não há isso na biografia feita por Alaor”. Do direito Embora demonstrado que as palavras ofensivas e insultuosas proferidas pela Ré, em entrevistas dadas por ela a jornais de circulação local e nacional, constituem inequivocamente a prática dolosa de calúnia, injúria e difamação, sujeitando a Ré à punição penal estabelecida pela Lei, o Autor não quis intentar a sua punição criminal e preferiu a punição de natureza civil, mediante ação de reparação por dano moral. Isto porque a ação de reparação civil contém vários dos elementos punitivos da ação criminal, e, ademais, possui mais amplitude e alcance e produz efeito moral igualmente profundo e intenso. A ação civil afigura-se ao Autor perfeitamente compatível com a natureza e o caráter dos fatos ocorridos e com a necessidade de não deixar impune uma criminosa invulgar e de, ao mesmo tempo, não atingir, criminalmente, a filha de um escritor importante e de quem o Autor foi amigo pessoal. É simples a fundamentação jurídica do dever de prestar reparação civil por dano moral. Tal dever encontra-se expresso, básica e claramente, na Constituição Federal de 5 de outubro de 1988: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. 282
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A propósito, afirmou o juiz Roney Oliveira, do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, na apelação cível n. 171.069-6: “Antes do advento da atual Constituição Federal, a reparação do dano moral era, acima de tudo, uma atraente tese acadêmica, nem sempre recepcionada por nossos pretórios. O novo texto constitucional (art. 5º, X), no entanto, tornou induvidosa a sua reparação, fazendo cessar, como no dizer camoniano, tudo o que a musa antiga até cantava, porque outro valor mais alto se alevantou. Agora, o dano moral e o dano à honra são reparáveis pelo mal subjetivo que causam à sua vítima, independentemente dos reflexos patrimoniais por eles carreados”. (Dano moral, de José Rafaelli Santini, Millenium Editora, Campinas, SP, 2002, pp. 3/4.)” Oportuno e conveniente trazer à baila algumas das lições ministradas por alguém que conheceu bem este assunto: JOSÉ DE AGUIAR DIAS. No seu livro Da responsabilidade civil (XI edição, Revisada, atualizada e ampliada de acordo como Código Civil de 2002 por RUI BERFORD DIAS, Renovar, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, págs. 11 e seguintes), ensina o inesquecível mestre de várias gerações: Não se cogita, na responsabilidade civil, de verificar se o ato que causou dano ao particular ameaça, ou não, a ordem social. Tampouco importa que a pessoa compelida à reparação de um prejuízo, seja, ou não, moralmente responsável. Aquele a quem sua consciência nada reprova pode ser declarado civilmente responsável. Reafirmamos, pois, que é quase o mesmo o fundamento da responsabilidade civil e da responsabilidade penal. No ilícito penal e no civil há uma característica fundamental comum: a existência de um fato contrário ao direito, a saber, a violação da norma jurídica. Extrinsecamente, a diferença se acentua nas consequências que uma ou outra das violações acarreta: do ilícito civil deriva ou a execução forçada, ou a obrigação de indenização,ou de restituição, ou a declaração de nulidade do ato; o ilícito penal, podendo produzir todos esses resultados e consequências, provoca, Ação de reparação por dano moral
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além delas, uma conseqüência especial, a pena. Numa palavra, o ilícito civil acarreta coação patrimonial e o ilícito penal determina coação pessoal. Intrinsecamente, o ilícito civil afeta precipuamente o interesse da pessoa ou do grupo atingido pelo ato ilícito. O ilícito penal é principalmente um dano de perigo geral mais intenso. Quando coincidem, a responsabilidade penal e a responsabilidade civil proporcionam as respectivas ações, isto é, as formas de se fazerem efetivas: uma, exercível pela sociedade, outra, pela vítima; uma, tendente à punição, outra, à reparação: a ação civil aí sofre, em larga proporção, a influência da ação penal. Tratando-se de pena, atende-se ao princípio nulla poena sine lege, diante do qual só exsurge a responsabilidade penal em sendo violada a norma compendiada na lei; enquanto que a responsabilidade civil emerge do simples fato do prejuízo, que viola também o equilíbrio social, mas que não exige as mesmas medidas no sentido de restabelecê-lo, mesmo porque outra é a forma de consegui-lo.
Os direitos à imagem e à reputação são direitos da personalidade. Lembra CARLOS ALBERTO BITTAR, jurista que estudou bem esse tema dos direitos da personalidade, após recapitular as sucessivas legislações de diversos países que positivaram em leis a proteção a esses direitos: “No plano internacional, com as Declarações (Universal e Americana) ascenderam a plano mais elevado esses direitos, projetando-se como princípios universais a inspirar o direito interno dos povos civilizados” (Os direitos da personalidade, 7ª edição, revista, atualizada e ampliada de acordo com o novo Código Civil por EDUARDO C. B. BITTAR, Forense Universitária, Rio de janeiro, 2008, p. 35.) Observa BITTAR que: Os direitos da personalidade são tutelados no ordenamento jurídico em diferentes campos: constitucional, penal e civil, desfrutando, assim, de estatutos diversos (pág. 52) (...) sendo a de reparação de danos a de maior alcance (novo Código Civil, art. 186), permitindo a satisfação de prejuízos materiais e morais havidos”. E aduz mais adiante: “Entre os de cunho 284
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moral, colocamos os direitos: à identidade (nome e outros sinais individualizadores): à honra (reputação, ou consideração social), compreendendo a externa, ou objetiva: boa fama, ou prestígio; e a interna, ou subjetiva: sentimento individual do próprio valor social; ao respeito (conceito pessoal, compreendendo a dignidade: sentimento das próprias qualidades morais e o decoro: a conceituação da própria respeitabilidade social): às criações intelectuais (produtos do intelecto, sob o aspecto pessoal do vínculo entre o autor e a obra, incluída a correspondência” (Ob. cit., p. 69.)
A legislação ordinária (Código Civil, Art. 927, inserto no Capítulo I, “Da Obrigação de Indenizar”, do Título IX, “Da Responsabilidade Civil”) reafirma o preceito da Constituição Federal: Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, é obrigado a repará-lo. Reportemo-nos ao artigo 186 (aquele que neste caso importa ver) mencionado no art. 927 e iterativamente lembrado pela doutrina: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Comentando esse art. 186 do Código Civil, JOSÉ COSTA LOURES e TAÍS MARIA LOURES DOLABELA GUIMARÃES (Novo Código Civil comentado, 2ª edição, Del Rey, Belo Horizonte, 2005, pág. 83) aduzem estas úteis informações ao texto de si mesmo muito claro e desnecessitado de explicação: O conceito de ilicitude aqui adotado é o do ato contrário ao direito, ou, no dizer de Clóvis, o que, praticado sem direito,causa dano a outrem (Teoria geral do direito civil, 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 270).
Reeditando norma antecedente, o legislador neste artigo mantém a teoria da culpa extracontratual, também chamada aquiliana, pela sua remota origem romana (Lex Aquilia). Mas foi além o texto atual, fazendo eco à caudal doutrinária e jurisprudencial, expressamente esAção de reparação por dano moral
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tendendo o seu manto protetor à indenização do dano moral, ainda que outro não tenha havido. O conceito de culpa aqui adotado se funda no princípio geral de direito consubstanciado no brocardo neminem laedere, e abarcando, a um só tempo, o caráter antijurídico da conduta e o seu resultado danoso”. Comentando esta importantíssima questão jurídica, afirma JOSÉ DE AGUIAR DIAS, o qual é sempre adequado citar: “A reparabilidade do dano moral hoje está expressamente assegurada no art. 186 do Código Civil de 2002 e é ele que dá a orientação doutrinária: todo dano é reparável, como ofensa ao direito alheio. E não há possibilidade de contestar que o patrimônio moral corresponde a direitos”. (Ob. cit., p. 1019). . RUI STOCO, dissertando sobre o elemento subjetivo nos ilícitos contra a honra (dolo específico), salienta que “há de emergir clara a intenção de beneficiar-se ofendendo, de enaltecer-se diminuindo ou ridicularizando o outro, ou de ofender, seja por mera emulação, retorsão, vingança, rancor ou maldade” (STOCO, Rui, Tratado de responsabilidade civil, 6ª ed., São Paulo, Ed. RT, 2004, p. 781). Os atos ilícitos praticados pela Ré contra o Autor foram ações voluntárias, dolosas, conscientemente praticadas: constituíram crimes contra a honra, assim tipificados no Código Penal. Crimes, e graves, sujeitavam a Autora a ação penal. Porém, o Autor optou por não promover contra a Ré a ação criminal que cabia intentar. Preferiu a ação de reparação civil. Por isso, convém e é oportuno invocar novamente o Código Civil, primeira parte, neste importante ponto jurídico: o art. 935 afirma ser a responsabilidade civil “independente da criminal”. Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. Embora não intentada a ação criminal, a existência dos fatos e a respectiva autoria, neste caso, são absolutamente induvidosos. Portanto, sendo a responsabilidade civil independente da responsabilidade criminal, pode e deve ser apurada no foro civil, conforme se propõe na presente ação de reparação por dano moral.
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Da tempestividade desta ação A presente ação é tempestivamente proposta. Os atos ilícitos cometidos pela Ré ocorreram há pouco mais de um ano. O prazo prescricional da ação de reparação civil é de três (3) anos, segundo dispõe o Código Civil: Art. 206. Prescreve: § 3º. Em, 3 (três) anos: V – a pretensão de reparação civil. Esta norma é daquelas a que se aplica o preceito de interpretação “in claribus cessat interpretatio”. Não depende de interpretação, por ser absolutamente clara e inequívoca. Da competência do foro da Comarca de Goiânia O foro da comarca desta Capital é competente para processar e julgar a presente ação. Estabelece o Código de Processo Civil: Art. 100. É competente o foro: V – do lugar do ato ou fato: a) para a ação de reparação do dano. Em que lugar, ou lugares, ocorreram as lesões sofridas pelo Autor? A resposta se contém já no mesmo Código Penal: Art. 6º. Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado. No presente caso, os crimes da Ré foram praticados em entrevistas publicadas nos jornais O Popular, de Goiânia, Capital do estado de Goiás, O Estado de Minas, de Belo Horizonte, Capital de Minas Gerais, e Folha de São Paulo, da Capital do estado de São Paulo. O jornal O Popular tem ampla circulação em todo o estado de Goiás e em toda a região do Brasil Central (portanto, também no estado do Tocantins) e do Centro-Oeste e do Triângulo Mineiro, podendo considerar-se também como de circulação nacional, ao menos em boa parte do território do País. Os jornais O Estado de Minas e Folha de S. Paulo, como se sabe, têm circulação em todo o território nacional e mesmo no exterior Ação de reparação por dano moral
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do País, razão pela qual os crimes por meio dele praticados produzem igualmente seus resultados em todo o território nacional. O “lugar do ato ou fato” (a lesão moral sofrida pelo Autor), neste caso, é todo o território do Brasil. Os crimes foram cometidos em jornais que circulam em todo o território brasileiro. Em se tratando, como no presente caso concreto, de crimes contra a honra, é inegável que o resultado se produz com muito mais intensidade no local ou nos locais onde a vítima reside, porque é neles que em regra se encontram as pessoas que com ela convivem. A intensidade maior do dano ocorreu, pois, no âmbito das comunidades principais em que tem vivido o Autor, e que são: Goiânia e Brasília. Além, é claro, da cidade natal do Autor, Morrinhos. Se o resultado do crime é a ofensa ao bem jurídico tutelado pelo legislador ao tipificá-lo, nos casos dos crimes contra a honra o resultado se produz quando a conduta do ofensor atinge honra subjetiva e a honra objetiva da vítima. Honra subjetiva é a imagem que a vítima faz de si mesma. Honra objetiva é a imagem que os outros fazem da vítima. Trazendo essa orientação para este caso concreto, tem-se que: – como o Autor reside principalmente em Goiânia, principalmente aqui se produziu o resultado dos crimes praticados pela Ré contra sua honra subjetiva; e – como também residem em Goiânia – e em outras cidades do estado de Goiás – a maioria dos familiares do Autor, dos seus amigos mais próximos e das pessoas da sua convivência contato social e profissional, aqui também se produziu mais forte e contundentemente o resultado dos crimes praticados pela Ré contra a sua honra objetiva. Assim, repita-se: examinando-se a questão sob qualquer dos prismas possíveis, tem-se que Goiânia é o lugar onde se produziu, com mais intensidade, o resultado deletério dos crimes praticados pela Ré contra o Autor. Não foi sem razão que a lei optou pela definição que deu no art. 6º do Código Penal. Essa definição corresponde à natureza e essência dos fatos. Que a ofensa à honra de alguém produz um núcleo de efeitos mais ofensivos no âmbito dos ambientes comunitários dentro dos quais vive a vítima, eis uma evidência que se impõe por si mesma e com o valor de obviedade. 288
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Várias decisões judiciais constituem jurisprudência no sentido de que: “No caso de dano causado em diversos lugares, o Autor pode, à sua escolha, propor a ação em qualquer dos foros correspondentes” (Revista Forense 295/291). Apesar da claridade dos textos legais, o Autor quer citar várias decisões judiciais que constituem absoluta certeza quanto à competência judicial do foro da comarca de Goiânia para processar e julgar a presente ação. Vejamos. O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás produziu esta decisão importante e clara: AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. AÇÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS. VEICULAÇÃO DE MATÉRIA JORNALÍSTICA. FORO DO LUGAR DO ATO OU FATO. A competência na ação de reparação de dano moral decorrente de matéria jornalística publicada em jornal de circulação nacional e definida com base na alínea “A”, inciso IV, do referido dispositivo legal. Neste caso, considera-se o lugar do fato ou ato o local onde o ofendido está domiciliado e desenvolve suas atividades econômicas, inclusive mantendo sua base eleitoral, notadamente por ser ali o meio de maior repercussão da matéria supostamente lesiva. Agravo conhecido e provido. (TJG0 – 4ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 56168-4/180, Relator Des. ALMEIDA BRANCO, DJ 15100 de 08.10.2007. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA EM AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANO MORAL. PUBLICAÇÃO DA SUPOSTA OFENSA EM PERIÓDICO DE CIRCULAÇÃO NACIONAL. FORO DO LUGAR DO ATO OU FATO. CPC, ART. 100, V, LETRA “A”. I. Cuidando-se de ação de indenização por supostos danos morais causados por veiculação de matéria jornalística em jornal de circulação nacional, considera-se “lugar do ato ou fato”, para efeito de aplicação da regra do art. 100, V, letra “a”, do CPC, a localidade em que reside e trabalha o autor da ação, onde o evento Ação de reparação por dano moral
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negativo, se assim declarado, terá maior repercussão para ele e sua família. Precedentes desta Corte e do STJ. II. Não se sobrepõe à regra especial de fixação da competência pelo lugar do ato ou fato ensejador de reparação a circunstância da parte adversa ser pessoa jurídica com sede em outra localidade. Preponderância do disposto no art. 100, lV, letra “a”, do CPC sobre a regra geral contida no inciso IV, letra “a”, do mesmo artigo. III. Agravo conhecido e desprovido. (TJG0, 4ª Câmara Cível, I 29790–0/180, Relª Desª Beatriz Figueiredo Franco, DJ de 03.01.2003. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. AÇÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS. VEICULAÇÃO DE MATÉRIA JORNALÍSTICA. FORO DO LUGAR DO ATO OU FATO. 1. No caso de ação de indenização por danos morais causados pela veiculação de matéria jornalística de circulação nacional, considera-se “lugar do ato ou fato” para efeito de aplicação da regra especial e, portanto, preponderante, do art. 100, V, letra “a”, do CPC, a localidade em que reside e trabalha a pessoa prejudicada, pois é na comunidade onde vive que o evento negativo terá maior repercussão para si e sua família. Agravo conhecido e provido. (TJ G0, 4ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 76414-5/180, Relator Des. HÉLIO MAURÍCIO DE AMORIM, DJ 437 de 09.10.2009.)
Também o Egrégio Superior Tribunal de Justiça se manifestou inequivocamente sobre esta matéria: Na hipótese de ação de indenização por danos morais ocasionados pela veiculação de matéria jornalística pela internet, tal como nas hipóteses de publicação por jornal ou revista de circulação nacional, considera-se “lugar do ato ou fato”, para efeito de aplicação da regra do art. 100, V, a, do CPC, a localidade em que residem e trabalham as pessoas prejudicadas, pois é na comunidade onde vivem que o evento negativo terá maior repercussão para si e suas famílias (STJ – 4ª Turma, AI 808.075 – Ag. Reg. Min. Fernando Gonçalves, j. 4.12.07, DJU 17.12.07).
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Processual Civil. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Publicação de matéria jornalística. Dano moral. Competência. Foro do lugar do ato ou fato. CPC, art. 100, letra “a”. Análise fático-probatória. Impossibilidade. Súmula n. 7 desta Corte. Agravo improvido. No caso de indenização por danos morais causados pela veiculação de matéria jornalística em âmbito nacional, considera-se “lugar do ato ou fato”, para efeito de aplicação da regra especial e, portanto, preponderante, do art. 100, letra “a”, do CPC, a localidade em que residem e trabalham as pessoas prejudicadas. Precedentes do STJ. Inaplicabilidade do inciso IV, letra “a”, do mesmo dispositivo processual, por ser mera regra geral, não extensível às exceções legais. Nos termos da Súmula 7 desta Corte, a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. Agravo improvido. (STJ – 4ª Turma. AgRg no AG 965530/RJ, Ministro ALDIR PASSARINHO JÚNIOR. J5.08.08, DJU 22.09.08.
Podem ser citadas também, em abono desse entendimento que já se fez matéria pacífica, as decisões: STJ–2ª T. REsp 400.988-SC – Ag RG rel. Min. Eliana Calmon, de 10.6.2003; RSTJ 118/242: 3ª Turma; RT 7 96/324; STJ-4ª T: RT 762/213; STJ–4ª T. AL 808.075 – Ag Rg, Min. Fernando Gonçalves, j. 4.12.07, DJU 17.12.07; RSTJ 65/471, RSTJ 176/336; RSTJ 65/471, RT 749/336, 857/268, JTJ 260/285, 285/260. A competência do foro da comarca desta Capital para se processar e julgar a presente ação está, pois, claramente assentada pela jurisprudência e tornou-se, assim, verdade inquestionável. Da qualificação jurídica dos fatos Demonstrada a competência do juízo do foro da comarca de Goiânia, bem como o cabimento desta ação e a sua tempestividade, resta demonstrar que os fatos narrados enquadram-se com perfeição aos tipos penais da calúnia, da difamação e da injúria, e por isso constituem atos ilícitos que sujeitam os seus responsáveis à obrigação de prestar reparação civil por dano moral.
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Não existe dúvida de que o Autor sofreu inequívoco dano moral causado pelos atos criminosos da Ré. Sofreu também danos materiais. Mas dos danos materiais, decorrentes da errônea interdição da venda do seu livro, não se tratará na presente ação, restrita ao aspecto moral do caso, já de si bastante grave. Examinemos os instrumentos criminais de que se valeu a Ré para produzir contra o Autor o dano moral que é causa e fundamento da presente ação. Analisemos os crimes cometidos por ela. Da calúnia Tipifica o Código Penal: Art. 138. Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime. Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
A Ré cometeu este crime ao afirmar que o Autor, em sua biografia de Guimarães Rosa, copiou o livro por ela escrito sobre o mesmo tema. Ao fazer essa declaração, a Ré – com dolo integral – imputou ao Autor, falsamente, a prática do crime descrito no artigo 184, § 1º, do Código Penal: Art. 184. Violar direito autoral: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. § 1º. Se a violação consistir em reprodução, por qualquer meio, com intuito de lucro, de obra intelectual, no todo ou em parte, sem autorização expressa do autor ou de quem o represente.
A Lei 9.610/98, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais, assim dispõe no que interessa a este caso concreto: Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: I – os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; 292
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Art. 22. Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou. Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica. Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como: I – a reprodução parcial ou integral. Art. 33. Ninguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la, sem permissão do autor. Parágrafo único. Os comentários ou anotações poderão ser publicados separadamente.
Tais dispositivos, interpretados em conjunto, levam à conclusão de que a ninguém é dado copiar obra literária de terceiro, sob pena de violar o direito autoral respectivo e incorrer no crime tipificado no artigo 184 do Código Penal. Esta lição de NUCCI é aqui pertinente: Uma das mais conhecidas formas de violação do direito de autor é o plágio, que significa tanto assinar como sua obra alheia, como também imitar o que outra pessoa produziu. O plágio pode dar-se de maneira total (copiar ou assinar como sua toda a obra de terceiro) ou parcial (copiar ou dar como seus apenas trechos da obra de outro autor). São condutas igualmente repugnantes, uma vez que o agente do crime se apropria sorrateiramente de criação intelectual de outrem, o que nem sempre é fácil de ser detectado pela vítima.1
Ao imputar o crime do artigo 184 do Código Penal ao Autor, a Ré incorreu em calúnia, porque não é verdadeira a acusação feita por ela. Embora existam citações da obra da Ré no livro do Autor sobre o pai dela, tais citações foram feitas – todas, sem exceção – com indicação 1 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 726. Ação de reparação por dano moral
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expressa da fonte de que procedem, exatamente como autoriza e exige o artigo 46, III, da Lei 9.610/98: Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra.
Quem lê as criminosas palavras da Ré entende – porque assim ela objetivou – que o Autor, ao citar trechos do livro dela, o fez a ponto de copiá-lo quase integralmente e sem indicar tecnicamente as fontes dos textos que citou. É indispensável observar, mesmo em caráter preliminar, este fato importantíssimo: uma grande parte, senão a maior parte, dos textos contidos no livro da Ré sobre o pai dela consiste em textos de terceiros – cartas de terceiros a João Guimarães Rosa ou do próprio João Guimarães Rosa a terceiros, isto é, a amigos e principalmente ao pai dele. Devido a esse fato, repita-se, relevantíssimo, apenas 2% (dois por cento) das citações que fez o Autor do livro da Ré são de textos de autoria dela: a esmagadora maioria de textos pertence a outras pessoas e que ela, por sua vez, transcreveu, sem ter cometido, ela mesma, plágio, como não o cometeu o Autor. Mas, seja do livro da Ré sobre o seu pai (o qual, aliás, não passa de uma coletânea de documentos), seja dos livros, também mencionados pela Ré, de Josué Montello e de Heloísa Vilhena de Araújo, o Autor não citou ou extraiu, no seu livro, um trecho sequer sem a devida citação da fonte. A acusação de plágio é, portanto, mentirosa, o que caracteriza o ato da Ré como crime de calúnia. É provável que a Ré queira exercer o direito de apresentar, na contestação que eventualmente venha a produzir à presente ação, a exceção da verdade. Será muito útil e conveniente que o faça. Assim ensejará ao Autor obter, em mais um juízo (além do da ação proposta por ela na comarca do Rio de Janeiro), o reconhecimento formal e cabal de que não cometeu, o Autor, nenhuma violação de direito autoral no seu livro 294
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Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa. Repita-se à saciedade: o Autor fez as citações de forma rigorosa e absolutamente legal e de acordo com as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), e registrando, sistematicamente, com máxima honestidade, o crédito de cada citação de modo suficiente e perfeito. Da difamação Tipifica o Código Penal: Art. 139. Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação. Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
A Ré cometeu este crime, primeiro, ao acusar o Autor de plágio e, depois, ao chamá-lo de “vigarista” ao dizer que o Autor “é o tipo de pessoa que quer se dizer amigo de gente importante. Foi um vigarista mesmo e fez isso para ganhar dinheiro”. Comentemos a acusação de plágio, feita com estupenda leviandade, pela Ré. Veja-se esta definição que de plagiar fornece o DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA MIRADOR INTERNACIONAL: Plagiar. Cometer furto literário, apresentando como sua uma idéia ou obra, literária ou científica de outrem. Usar obra de outrem como fonte sem mencioná-la. Plagiário é, pois, ladrão. Alguém que cometeu furto literário. Alguém que se apropriou de obra alheia. Ser acusado de plagiário é, portanto, fato gravíssimo. Uma desmoralização completa. O plagiário é punido no mínimo com uma sentença de expulsão da comunidade intelectual a que pertence. Focalizemos a acusação de vigarista, também assacada, irresponsavelmente, pela Ré contra o Autor. Veja-se, MM. Juiz, a definição de vigarista registrada no mesmo DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA MIRADOR INTERNACIONAL: “Vigarista. 1. Ladrão ou ladra que passa o conto-do-vigário. 2. Por ext. Pessoa que explora a boa fé dos incautos; trapaceiro, velhaco, intrujão”. Ação de reparação por dano moral
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Dada a remissão feita à palavra conto-do-vigário, vejamos a definição deste termo no mesmo Dicionário: “Pop. Roubo praticado por vigarista”. Impossível acusação mais grave e ofensiva. Ela atingiu e ofendeu fortemente, gravemente, impactualmente, a reputação do Autor. A Ré atuou, como se vê mais uma vez, com dolo intenso, intensíssimo: com fortíssima intenção de ferir a reputação do Autor. Ela foi vil e má – de acordo, aliás, com o seu infeliz prenome (cuja escolha, observe-se, ou pelo pai ou pela mãe ou por ambos, é um fato pertencente ao rol dos mistérios insondáveis da alma humana.) Tendo cometido, assim, o nefando crime de difamação contra o Autor, precisa responder, civilmente, pelo dano moral que causou. Para este delito, infelizmente, o Código Penal proíbe a apresentação de exceção da verdade. Não o fizesse a Lei, seria outra boa oportunidade, caso o Autor a acionasse criminalmente, e se a Ré então apresentasse tal exceção, para o Autor ver reconhecido e proclamado em juízo que, ao contrário do que afirmou a Ré, o Autor é dono de um caráter refratário a toda aproximação interesseira de “gente importante”. Esse característico da sua personalidade tem sido unânime e sobejamente reconhecido e proclamado por todos os que o conhecem pessoalmente. E é um traço constante em toda a sua trajetória de vida. Da injúria Tipifica o Código Penal: Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
A Ré incorreu neste delito pelas mesmas declarações acima referidas. Disse ela à Folha de S. Paulo: É mentira dele, ele nunca me procurou. Eu soube que ele estava me plagiando, ele fugiu de mim e mandou o livro já pronto com uma dedicatória cínica.
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E ele nunca foi amigo do meu pai. É o tipo de pessoa que quer se dizer amigo de gente importante. Foi um vigarista mesmo e fez isso para ganhar dinheiro.
Além de ferirem a honra objetiva do Autor (bem jurídico tutelado pelo tipo da difamação), tais palavras calaram fundo em seu íntimo, ofendendo-lhe a dignidade e o decoro. Com isso, restou ferida, também, a honra subjetiva do Autor. A Ré agiu de maneira dolosa, com intenção inegável de ofender, de humilhar, de ferir, de desmoralizar. Ela sabia que acusando o Autor de ser um vigarista, plagiador e aproveitador, perpetrava contra ele uma ofensa inominável e oprobriosa. A carga e poder ofensivo de suas palavras em si mesmas vis e más aumenta-se ainda mais por causa da sua condição de filha de um escritor que o Autor havia biografado com seriedade, respeito e atenção. Do concurso material dos crimes Para se aquilatar bem a gravidade das ofensas perpetradas pela Ré e melhor avaliar-lhe a gravidade para o efeito de sopesar o dever da reparação civil a que ela se sujeita, convém observar também que os crimes que ela cometeu contra o Autor enquadram-se, com perfeição, no Art. 69 do Código Penal, o qual define o concurso material de crimes: Art. 69. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.
Como demonstrado acima, a Ré visou a atingir, mediante sucessivas entrevistas a jornais, a honra objetiva e a honra subjetiva do Autor. A Ré, dolosamente, sabia que tanto a auto-imagem do Autor, como sua reputação, ficariam seriamente ofendidas pelas palavras por ela proferidas. Houve, portanto, ações dolosas com desígnios autônomos. Por essa razão, seus crimes a sujeitariam, caso criminalmente processada, às penas dos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal. Ação de reparação por dano moral
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Concomitantemente, dever-se-ia aplicar a este caso, na hipótese de promoção de ação penal (que não foi feita), o artigo 141, III, do Código Penal, que determina o aumento da pena em um terço: Art. 141 – As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de um terço, se qualquer dos crimes é cometido: III – na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria.
Repita-se: os crimes ora noticiados foram cometidos, primeiro na presença provável de mais de uma pessoa, e, em segundo lugar, por intermédio de entrevistas publicadas em jornais de grande circulação em todo o Brasil – por meios, portanto, que facilitaram tremendamente a divulgação e repercussão da calúnia, da difamação, da injúria. Um desses meios, o jornal Folha de S. Paulo –, que, quando faz a sua própria propaganda, se declara o maior jornal do País. Agravantes morais Agravam os crimes da Ré a posição moral do Autor nos contextos sociais em que tem convivido, bem como a condição pessoal singular da Ré. Registre-se primeiro quem é o Autor desta ação: quem é a vítima dos crimes cometidos pela Ré. Trata-se de um pai de família. Tem mulher, num casamento de 45 anos de duração, três filhos e cinco netas. Dos três filhos do Autor, a filha primogênita, Noêmia Barbosa Boianovski, é formada em Direito, em Relações Internacionais e em Jornalismo, e assessora parlamentar da Câmara Distrital de Brasília; casada com um médico, Celso Boianovski, com destacada atuação profissional em Brasília no ramo de Oftalmologia em todo o País e mesmo no Exterior. O segundo, Luciano é empresário vitorioso em Goiânia e homem que se caracteriza pela dedicação ao trabalho. O mais novo, Hermano, é bacharel em Direito e inicia-se atualmente na profissão de advogado. Das suas cinco netas, duas já têm idade (18 e 10 anos) para se verem sideradas e perplexas ao saberem da causa do visível sofrimento que vem vitimando o avô desde que ele sofreu da Ré as injustas e criminosas agressões aqui noticiadas. 298
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O Autor provém de uma família já numerosa, formada na cidade de Morrinhos, Sul do Estado de Goiás, descendente de imigrantes mineiros e paulistas que lá se estabeleceram nos fins do século XIX e no início do século XX. Família que no período de tempo relativamente curto de 90 anos (contado do casamento do seu pai, em 1920 e portanto sem computar o tempo de vida dos pais e avós e bisavós e trisavôs do seu pai, o qual remonta aos fins do século XVIII) tornou-se já tradicional na cidade e no Estado, vastamente conhecida e identificada, com numerosos membros proeminentes no concerto comunitário do Estado de Goiás, sendo 21 deles bacharéis em Direito e um médico. Dos irmãos do Autor, dois são vivos: o mais velho, Geraldo Barbosa dos Santos, bacharel em Direito, aposentado na Câmara dos Deputados em elevado cargo; o outro, Eurico Barbosa, é advogado e escritor, com vários livros publicados; e foi vereador municipal em Morrinhos (19581962), deputado estadual à Assembléia Legislativa do Estado de Goiás por 4 mandatos, Presidente da Assembléia Legislativa por dois anos, Conselheiro e Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, onde se aposentou, e ex-Presidente da Academia Goiana de Letras. Um sobrinho do Autor, Gilson Barbosa dos Santos, é juiz federal aposentado e advogado militante. Um outro, Eurico Barbosa dos Santos Filho, Procurador do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, a cujos quadros pertencem também dois outros sobrinhos do Autor, Aristides e Eliza Barbosa dos Santos. Por conseguinte, a honra do Autor não lhe pertence somente a ele enquanto indivíduo, mas a toda a sua numerosa família, vilipendiada nas agressões criminosas da Ré, e até mesmo aos amigos e conhecidos das quatro comunidades em que tem vivido: Morrinhos, Goiânia, Brasília e Rio de Janeiro. Não somente sua família, mas também amigos e conhecidos, têm, com óbvia razão, cobrado a devida reação exigida pelo comum sentimento de honra, de brio, de dignidade ofendida. Autor de 17 (dezessete) livros publicados e de um bom número (quase o mesmo) de livros inéditos, desfrutando de ilibada reputação moral e intelectual, o Autor tem também o dever moral de zelar, com muito rigor, não somente sua imagem perante as comunidades que mais de perto o conhecem, mas também a sua imagem futura, aquela que haverá de ficar após a sua morte. Ação de reparação por dano moral
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Essas justas e inevitáveis preocupações explicam e justificam a iniciativa da presente ação em que, propugnando reparação por dano moral, principalmente defende sua honra atacada. Para se ter uma idéia do conceito social em que é tido o Autor, basta citar as numerosas manifestações de solidariedade feitas em seu favor por ocasião da apreensão judicial do seu livro e das reiteradas agressões que tem sofrido da parte da Ré. Cite-se, a título apenas de exemplo, a crônica intitulada ‘ALAOR, MEDALHA DE HONRA’, escrita pelo jornalista e empresário IBERÊ MONTEIRO, e lida na Rádio Terra e publicada no jornal Diário da Manhã, de Goiânia na edição de 4 de março de 2008, de que podem ser extraídos os seguintes trechos: Conheci Alaor Barbosa nos seus 16 anos de idade. Um fenômeno de talento, disciplina, dedicação ao livro, à música, à pintura, à escultura, ao cinema, ao teatro, a todas as expressões artísticas e culturais criadas pelas pessoas humanas. – Na efervescência dos Anos Dourados no Rio de Janeiro, Alaor Barbosa passou a ser a nossa referência no saber – e o nosso orgulho. – Que glória para seus amigos! A partir daí, os goianos do Rio passaram a carregar no peito a Medalha de Honra Alaor Barbosa – símbolo do nosso sucesso cultural. – Alaor, meu amigo, meu irmão de alma, minha referência de Honra ao Mérito, obrigado por ser você, você.
Da Nota emitida pela Associação Nacional de Escritores, do Distrito Federal, assinada pelo seu presidente Joanyr de Oliveira, saliente-se este trecho: Alaor Barbosa, ex-funcionário do Senado Federal, advogado e jornalista, desfruta do mais alto conceito entre os escritores. Laureado em vários concursos, participa de importantes antologias, e é autor das seguintes obras: Monteiro Lobato das Crianças, 1960; Cidade do Tempo, 1964; Picumãs, 1966; Confissões de Goiás, 1968; Campo e Noite, 1971; O exílio e a glória, 1980; A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa, 1981; Os rios da coragem, 1983; Saci e Romãozinho, 1983; Pequena história da Literatura 300
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Goiana, 1984; Praça da Liberdade, 1985; Meu diário da Constituinte, 1990; Caminhos de Rafael, 1995; A morte de Cornélio Tabajara, 1998; Memórias do Nego-Dado Bertolino d’Abadia, 1999; Um Cenáculo na Paulicéia, 2001; Uma lenda, 2004; Contos e novelas reunidos, 2006; O romance regionalista brasileiro, 2006, e Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, 2007. Portanto, não faz jus aos adjetivos com que foi caluniado pela filha do grande romancista, por ser um exemplo de competência profissional e de homem de letras que sempre colocou a ética em primeiro plano em sua vida. Brasília, 16 de outubro de 2008. Joanyr de Oliveira, Presidente da ANE.” Registre-se que o Autor foi Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Goiás, por dois mandatos, nos anos de 1970 e 1980; é membro do Instituto dos Advogados de Goiás (do qual foi secretário) e do Instituto dos Advogados Brasileiros, do Rio de Janeiro (o primeiro advogado goiano residente em Goiás eleito, e por unanimidade, para esta entidade, a segunda instituição cultural mais antiga do Brasil); membro da Academia Goiana de Letras (eleito por unanimidade em 1979); membro da União Brasileira de Escritores de Goiás e da União Brasileira de Escritores de São Paulo, e da Associação Nacional de Escritores, de Brasília.
Além disso, o Autor tornou-se servidor público federal mediante dois concursos públicos; um deles, o do Senado Federal (em 1984) de provas e títulos, tendo recebido do Senado Federal, em dezembro de 2003 Diploma de HONRA AO MÉRITO, “pelos relevantes serviços que prestou a esta Casa, com zelo, dedicação, profissionalismo e espírito de equipe, no cumprimento de suas atribuições funcionais”. Por conseguinte, o homem desrespeitado, ofendido e insultado pela Ré é pessoa reconhecidamente ilibada, dotada do mais alto conceito nas comunidades em que convive, o que só agrava a conduta criminosa da Ré. A Ré não pode alegar ignorância sobre o conceito moral e intelectual de que se beneficia o Autor em toda parte onde é conhecido. Ação de reparação por dano moral
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Certamente a Ré não podia ser insensível ao fato de ser extremamente, elevadamente, profundamente positivo e honroso o conceito em que o Autor era tido pelo próprio pai dela, como se vê na dedicatória (“A Alaôr Barbosa, irmão mais moço – com vivo abraço do Guimarães Rosa. Rio, setembro, 62), aposta por Guimarães Rosa na página de rosto de um exemplar do seu livro Primeiras Estórias que ele presenteou ao Autor em setembro de 1962 (doc. 6). Conceito reiterado na carta que Guimarães Rosa escreveu e remeteu ao Autor em maio de 1965, por intermédio do escritor Domingos Félix de Souza, de Goiânia (doc. n. 7), bem como na referência que ele, João Guimarães Rosa, na véspera de tomar posse na Academia Brasileira de Letras, fez ao nome e pessoa do Autor, conforme narrado pelo poeta e cronista goiano Oscar Dias em crônica publicada em jornal de Goiânia e transcrita no livro do Autor sobre João Guimarães Rosa (pág. 32). Ao cometer os crimes aqui relatados, a Ré demonstrou falta de equilíbrio intelectual e moral, decepcionante incontinência verbal e lamentável agressividade e periculosidade, incompatíveis com as suas origens biográficas e com sua história de vida. Pois é de presumir que tenha recebido boa formação moral do homem que era o pai dela. Sua condição de filha de João Guimarães Rosa constitui circunstância agravante da sua responsabilidade na autoria e na intensidade do dolo nos crimes que praticou contra o Autor. A Ré ocupa uma posição social privilegiada, que lhe agrava e soleniza o dever, que toda pessoa tem, de respeito às outras pessoas. Mais: sendo mulher com quase 80 anos de idade, e também ela escritora, devia saber ponderar as palavras e juízos que profere, não cometendo imprudências e agressões verbais e muito menos crimes, mormente os que se capitulam como delitos contra a honra das pessoas. Ela deve responder por seus crimes, ainda que com pena de natureza civil, até para que não continue supondo-se, induzida ingenuamente pelo orgulho do nome paterno, pessoa situada acima das leis e inatingível pela Justiça. Por isso é que o Autor propõe contra ela a presente ação de reparação civil por dano moral.
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Do quantum da reparação que deve ser feita Demonstrados, cabalmente, os fundamentos fáticos e jurídicos da presente ação de reparação por dano moral, impõe-se, agora, focalizar um outro ponto essencial dela: o quantum da indenização que deve ser paga pela Ré. O dano moral, por sua natureza, não se mede. Mas a ordem jurídica não pode eximir-se de criar um modo que sirva de sucedâneo razoável ou aceitável da reparação moralmente adequada, pois não há, repita-se, como medir o sofrimento moral de uma pessoa ofendida na sua honra. À falta de metros concretos, a ordem jurídica se vale do prudente arbítrio do juiz, prudente arbítrio em nenhum outro caso tão necessário e valorizado. Feita pelo juiz a mensuração possível, o passo seguinte é o de efetuar os cálculos numéricos devidos. Vejamos o que diz o Código Civil nos artigos pertinentes a esta matéria. Principalmente os artigos 944 e seguintes, até o 953. Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. A importância monetária da indenização será justa na medida em que fizer sentir à pessoa responsável pela ofensa o peso da sua responsabilidade civil e moral, e em que tentar devolver ao Autor, de modo razoável, sua integridade e dignidade, compondo o prejuízo moral que sofreu. Art. 953. A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido. A jurisprudência existente ajuda o juiz a decidir bem. Vejamos. “A concepção atual da doutrina orienta-se no sentido de que a responsabilização do agente causador do dano moral opera-se por força do simples fato da violação (damnum in re ipsa), não havendo que se cogitar da prova do prejuízo. (STJ, REsp n. 23.575-DF, Relator Ministro César Asfor Rocha, DJU 01.09.97. Dano moral – Prova. Não há que se falar em prova do dano moral, mas, sim, na prova do fato que gerou a dor, o sofrimento, sentimentos íntimos que os ensejaram”. (STJ, REsp n. 86.271-SP, Relator Ministro Carlos A. Menezes, DJU 09.12.97.) Ação de reparação por dano moral
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Bem registra ARNALDO MARMITT (Dano Moral, Aide Editora, 1ª edição, 1999, Rio de Janeiro, RJ, p. 225): “O juiz nunca deixará de fixar o montante da reparação sob a alegação de falta de meios para encontrar o adequado valor. Aliás, nem poderia ele pretender uma avaliação exata, porquanto no caso lida com dados subjetivos, que arbitra por estimação, e com base nos elementos colhidos nos autos. Inviável não lhe é detectar e avaliar a extensão do dano moral e as consequências, e as condições sócio-econômicas da vítima e do ofensor. De grande utilidade lhe serão os subsídios jurisprudenciais, existentes em profusão”. Mais adiante: “De conveniência que a sentença estipule em moeda corrente o valor a ser pago pelo vencido. Ao trânsito em julgado pode seguir-se, então, imediatamente, a execução do decisum, abreviando, assim, o litígio e facilitando o mais rápido recebimento da reparação. Já argumentava o Ministro Pedro Lessa que, se o dano moral não pode ser compensado completamente, por não haver preço suficiente que o pague, indenize-se ao menos no limite do possível. Dê-se uma soma que, se não é um perfeito ressarcimento, representa aquela compensação que as forças humanas comportam”. É o que se espera e pede nesta causa: arbitramento de indenização pecuniária proporcional ao dano, compensatória, justa. Pedidos Com base em todo o exposto, o Autor requer: I – seja recebida esta ação, mandando V. Exa. CITAR a Ré acima qualificada mediante carta precatória dirigida ao juízo da comarca do Rio de Janeiro, para, se quiser, respondê-la, sob pena de revelia; II – seja a Ré, ao final, condenada, mediante sentença, a indenizar o Autor, em quantia monetária a ser arbitrada por V. Exa de acordo com o seu prudente arbítrio, pelo dano moral causado ao Autor com os atos ilícitos descritos; III – seja a Ré condenada, igual e consequentemente, nas custas e demais despesas processuais, e nos honorários advocatícios, calculados em 20% (vinte por cento) do valor monetário da indenização fixada por V. Exa.;
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IV – determine V. Exa., na sentença, seja a sentença publicada no jornal O Popular, de Goiânia, e também nos jornais Folha de S. Paulo, de São Paulo, e Correio Braziliense, de Brasília, Distrito Federal. Protesta pela produção de todas as provas admitidas em Direito, inclusive depoimentos pessoais assim da Ré como do Autor. Dá à causa, para efeitos meramente tributários, o valor de R$ 1.000,00 (mil reais). Termos em que, juntando documentos, pede deferimento. Goiânia, Capital do Estado de Goiás, 08 de março de 2010.
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Contra-notificação extrajudicial via cartório a título de resposta
Notificados: 1 – AGNES GUIMARÃES ROSA DO AMARAL, brasileira, casada, inscrita no CPF/MF sob o nº. 043.861.757-68, residente no Rio de Janeiro (RJ), à rua Senador Vergueiro, 171, aptº. 201, Flamengo, CEP 22.230-000; 2 – VILMA GUIMARÃES ROSA, brasileira, casada, inscrita no CPF/MF sob o nº. 175.587.867-20, residente e domiciliada no Rio de Janeiro (RJ), à rua Almirante Gonçalves, 56, aptº. 1.201, Copacabana, CEP 22.010-070; e 3 – EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ/MF sob o nº. 33.324.484/0001-83, com sede no Rio de Janeiro (RJ), à rua Bambina, 25, Botafogo, CEP 22.251-050. Senhores, Esta Editora recebeu sua notificação extrajudicial, datada de 30.1.2008, feita com o fim de nos “constituir em mora”, a “retirar de mercado todos os exemplares do livro Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, Tomo I, de autoria de Alaor Barbosa”, por nós editado, a prestar “contas do número de exemplares publicados e comercializados”, a abstermo-nos “de lançar outros tomos integrantes 307
da referida obra, ou mesmo qualquer outra espécie de publicação a respeito da vida e da obra de JOÃO GUIMARÃES ROSA” e a “entrar em contato com a advogada signatária da notificação a fim de compor os danos causados”. Juridicamente, tal notificação é destituída de eficácia para nos constituir em mora. Não tem base fática e é destituída de previsão legal, tanto que nem sequer menciona a norma em que se funda. Destarte, a Contra-Notificação que ora lhes é feita, a par de exercer o direito de resposta, serve precipuamente para afastar e expungir do mundo jurídico a pretensão de constituição de mora, que neste caso é írrita, de nenhum efeito legal. A mora em Direito consiste no retardamento do credor ou do devedor no cumprimento de uma obrigação, o que, obviamente, não é o caso presente, porque inexiste qualquer obrigação entre a ora Contra-Notificante e as pessoas ora Contra-Notificadas. Do ângulo substantivo, a pretensão nela deduzida é inteiramente equivocada e divorciada da realidade dos fatos. Diz a Notificação que “Foi com espanto que as Notificantes tomaram conhecimento do lançamento, pela Notificada, do livro “Sinfonia de (sic) Minas Gerais – A vida e a literatura de João Guimarães Rosa – Tomo I”, que não foi autorizada pelas filhas do escritor e que vem sendo comercializada pelo preço de R$ 45,00 (quarenta e cinco reais)” Por que o espanto? Esse livro constitui uma ampliação e o aprimoramento da parte inicial – intitulada “INFORMAÇÃO BIOGRÁFICA SOBRE GUIMARÃES ROSA” – do livro A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa, publicado pelo mesmo autor há quase 30 anos: em 1981, em Goiânia, pela Editora Imery, e que teve larga difusão em todo o Brasil. Além de Goiânia, foi lançado publicamente em Brasília, em sessões de autógrafos a que compareceram dezenas de pessoas, e que a imprensa documentou. Informa o autor, ALAOR BARBOSA, que um exemplar desse livro foi remetido à Contra-Notificada Vilma Guimarães Rosa em outubro de 2003, há, portanto, quatro (4) anos e meio, juntamente com uma carta em que o autor participava a ela estar procedendo à sua ampliação e pedia-lhe algumas informações sobre a vida de seu pai, João Guimarães Rosa. ALAOR BARBOSA participou-lhe também, nessa carta, o título que o livro passaria a ter e que, com pequena alteração, é o que efetivamente foi adotado. 308
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A escritora Vilma Guimarães Rosa não respondeu a carta nem acusou o recebimento do livro. Apesar disso, ALAOR BARBOSA telefonou a ela, semanas depois, e voltou a lhe comunicar estar escrevendo a ampliação do seu livro, e lhe reiterou os pedidos de informações. Vilma não lhe transmitiu as informações pedidas, por desconhecer, conforme revelou, os fatos sobre os quais foi indagada. Por conseguinte, é evidente que não pode alegar ignorância da existência desse livro de ALAOR BARBOSA nem de que ele vinha sendo ampliado para ser republicado, nem, muito menos, alegar que recebeu “com espanto” a notícia da edição do livro. Verifica-se, do exposto, portanto, que, embora, nos termos da Constituição do Brasil (Art. 5º, inciso IX), não dependesse ALAOR BARBOSA de autorização ou licença para realizar o seu trabalho de escrever a biografia de João Guimarães Rosa, teve o cuidado prévio de comunicar a uma das filhas dele o fato de o estar fazendo. A não-resposta de Vilma constituiu-se, evidentemente, em consentimento tácito. Diz a Notificação que “a biografia encontra-se ilustrada por inúmeras fotografias do escritor, inclusive na capa, também sem que suas filhas fossem consultadas sobre essas divulgações de sua imagem”. Ora, as Contra-Notificadas revelam, nessa acusação, não terem lido o livro que querem proibir, pois nele não existe nenhuma fotografia de João Guimarães Rosa. As fotografias estampadas são de lugares e edifícios: a casa onde nasceu Guimarães Rosa, o colégio onde estudou em Belo Horizonte, a igreja da cidade (Itaguara) onde morou no interior de Minas logo que diplomado em medicina, trechos dos rios de São Francisco e de-Janeiro, etc. De pessoas, somente fotografias de Manuelzão e de Zito, vaqueiros com quem João Guimarães Rosa viajou em Minas em 1952. A imagem da capa pertence ao domínio público, analogamente a dezenas de fotografias de Guimarães Rosa que têm sido reproduzidas em jornais, revistas, livros, inclusive em biografias suas divulgadas pela internet, de onde foi obtida a referida imagem da capa. Insurgem-se as Contra-Notificadas contra a afirmação da Contra-Notificante de que o livro de ALAOR BARBOSA é a “primeira biografia” de João Guimarães Rosa, alegando que a única biografia dele, autorizada pela família, é o livro “Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai”, de autoria da 2ª Contra-Notificada. Esta é uma questão de conceituação Contra-notificação extrajudicial via cartório a título de resposta
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do gênero biografia. O livro de Vilma Guimarães Rosa sobre o pai é uma valiosa miscelânea (no bom sentido da palavra) principalmente de documentos, entre os quais cartas de João Guimarães Rosa a parentes e amigos e o discurso de formatura em medicina. Não é uma biografia na acepção estrita desta palavra. Não chega a ser nem mesmo um livro de memórias, apesar da palavra Relembramentos do título. Já o livro objeto da Notificação tem, sim, estrutura e concatenação de uma biografia, muito semelhante à que lhe serviu de modelo, o clássico Um estadista da república, de Afonso Arinos de Melo Franco. O livro que as Contra-Notificadas querem proibir contém, sim, trechos transcritos do livro de Vilma Guimarães Rosa sobre o pai, mas também de numerosos livros de outros autores: Pedro Nava, Vicente Guimarães, Josué Montello, Heloísa Vilhena de Araújo, Mário Calábria, William Agel de Mello; enfim, de numerosos autores. A “bibliografia de apoio” em que se baseou se compõe de dezenas de livros. Mas ALAOR BARBOSA teve o atento cuidado de proceder às citações dentro nos limites quantitativos recomendados pela lei que rege os direitos de autor, não só na extensão de cada citação como no número do total de citações. Não houve, pois, qualquer violação do dispositivo legal mencionado (art. 20 do Código Civil) na notificação. O livro objeto da notificação, além de seu inegável valor literário, constitui-se em mais uma notável contribuição do renomado e respeitado escritor goiano – e antigo admirador da literatura de João Guimarães Rosa, de quem era também amigo – ALAOR BARBOSA, para a cultura nacional. No Prólogo, relativamente extenso, do seu livro, ALAOR BARBOSA salienta os objetivos com que o escreveu. Todos de ordem cultural e literária, com exclusão de interesses e fins de caráter comercial. De sorte que o seu livro não afronta a proibição legal, antes, a salvaguarda. ALAOR BARBOSA no seu livro procurou conferir, como era natural, a devida dimensão e densidade à pessoa e à obra literária de João Guimarães Rosa, cujos altíssimos méritos salienta iterativamente no seu livro. Este é, isto sim, um ponto e circunstância merecedores de reconhecimento, elogios e agradecimentos da parte dos descendentes e parentes de João Guimarães Rosa e de quantos se empenham em valorizar a cultura e literatura brasileira. 310
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Se as Contra-Notificadas tivessem lido o livro que pretendem proibir, veriam uma carta escrita de próprio punho por JOÃO GUIMARÃES ROSA ao escritor ALAOR BARBOSA em 24.5.1965, reproduzida à fl. 387, comunicando ter recebido o livro de contos do autor, Cidade do Tempo” Nessa expressiva carta, João Guimarães Rosa manifesta exultação e contentamento, e traduz uma carinhosa e estimulante mensagem (“exultei”; “ficou ótimo”; “gostei muito”), que ele mesmo rotulou de “um recado rápido”, pois chega a qualificar ALAOR de “notável” e de amigo, e ainda declara a sua vontade de ir a Goiás: “como minha alma pede”. O início da fraternal amizade entre os dois escritores deu-se ainda em 1959 e propiciou encontros pessoais por mais de três anos consecutivos. Dela conta, minuciosamente ALAOR BARBOSA, no Prólogo do seu livro, objeto da notificação. Além da carta que documenta essa amizade, existe um outro documento muito significativo: a dedicatória aposta por Guimarães Rosa em um exemplar no livro Primeiras estórias, que ele atenciosamente mandou entregar a ALAOR BARBOSA no seu local de trabalho, no Rio de Janeiro. Eis os termos da dedicatória: “A Alaor Barbosa, irmão mais moço – com vivo abraço do Guimarães Rosa. Rio, setembro, 62”. Esse documento está registrado à fl. 67 do livro que querem as Contra-Notficadas proibir. Portanto, a insurgência manifestada na Notificação que nos foi endereçada não é compreensível nem justificável sob qualquer aspecto. GUIMARÃES ROSA, por certo, se sentiria honrado por ser tão bem biografado pelo escritor e amigo ALAOR BARBOSA. A pretensão dos Notificados de proibir a circulação do livro Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa constitui uma absurda e perigosa tentativa de impedir a um cidadão brasileiro, advogado e escritor (com 16 livros publicados) o exercício dos direitos de manifestação livre do pensamento e de “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, consagrados, como cláusulas pétreas, na Constituição de 5 de outubro de 1988. Ao tentar proibir a publicação de seja lá qual for o texto a respeito de João Guimarães Rosa, as Contra-Notificadas ultrapassam todos os limites dentro dos quais têm parado até hoje os inimigos da liberdade de pensamento e de expressão intelectual. Contra-notificação extrajudicial via cartório a título de resposta
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O direito de escrever sobre uma obra literária e seu autor é inviolável e não depende de autorização. O produto realizado não se sujeita às penas do art. 20 do Código Civil, desde que respeite os requisitos do respeito à honra, à boa fama, ou a respeitabilidade da pessoa focalizada. Em conclusão, a título de resposta a sua Notificação, ficam Vv. Sas. notificadas formalmente de todo o conteúdo retro para todos os fins de direito, em especial para afastar a caracterização da mora e para fazer os esclarecimentos necessários que demonstram não ter havido sequer a intenção de violar direitos de autor, bem como para manifestar a nossa intenção de continuar publicando e divulgando a obra em questão, bem como as subseqüentes, e, finalmente, para PREVENIR RESPONSABILIDADES E PROVER A CONSERVAÇÃO E RESSALVA DE NOSSOS DIREITOS, ESPECIALMENTE COM VISTAS AO EVENTUAL EXERCÍCIO DO DIREITO DE RECONVENÇÃO, MORMENTE COM FUNDAMENTO NA OCORRÊNCIA, JÁ CARACTERIZADA, DE DANOS MORAIS. LGE EDITORA LTDA.
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ApĂŞndice III
Anistia
Requerimento de Alaor Barbosa ao ministro da justiça via comissão de anistia
Exmº Sr. Ministro de Estado da Justiça do Brasil: Alaor Barbosa dos Santos, brasileiro, casado, servidor público federal aposentado e advogado, CI n 6667, da OAB/DF, CPF nº 002 635 911-15, residente e domiciliado nesta Capital, na SQS 314, bloco F, ap. 204, Cep 70 383-060, com escritório profissional no SEP/Sul 714/914, bloco D, salas 205/206, tels. 346-7339 e 346-3067, CEP 70 390-145, vem requerer a V. Exa., nos termos da Lei n. 10 559, de 13 de novembro de 2002, que lhe declare: a) a condição de anistiado político; e, b) em conseqüência, determine lhe seja feita a devida reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação mensal, permanente e continuada, no valor atual do salário mensal de redator-chefe de jornal ou do de assessor jurídico de empresa, ou de diretor de banco privado, de acordo com os valores alvitrados no item ”PROJEÇÃO DA SITUAÇÃO ATUAL” deste requerimento. FUNDAMENTOS DO PEDIDO O pedido aqui formulado se funda nos Arts. 1º, incisos I e II; 2º, incisos VI e IX; 5º; 6º, parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º; 7º, §§ 1º e 2º; e finalmente 315
no Art. 9º, e seu Parágrafo Único, da Lei n. 10 559, de 13 de novembro de 2002, em seguida transcritos: Art. 1º. O Regime do Anistiado Político compreende os seguintes direitos: I – declaração da condição de anistiado político; II – reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única ou em prestação mensal, permanente e continuada, asseguradas a readmissão ou a promoção na inatividade, nas condições estabelecidas no caput e nos §§ 1º e 5º do art. 8º Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 2º. São declarados anistiados políticos aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, por motivação exclusivamente política, foram: VI – punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam, bem como impedidos de exercer atividades profissionais em virtude de pressões ostensivas ou expedientes oficiais sigilosos, sendo trabalhadores do setor privado ou dirigentes e representantes sindicais, nos termos do § 2º do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; IX – demitidos, sendo servidores públicos civis e empregados em todos os níveis de governo ou em suas fundações públicas, empresas públicas ou empresas mistas ou sob controle estatal, exceto nos Comandos militares no que se refere ao disposto no § 5º do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 5º. A reparação econômica em prestação mensal, permanente e continuada, nos termos do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, será assegurada aos anistiados políticos que comprovarem vínculos com a atividade laboral, à exceção dos que optarem por receber em prestação única. Art. 6º. O valor da prestação mensal, permanente e continuada, será igual ao da remuneração que o anistiado político receberia se na ativa estivesse, considerada a graduação a que teria direito, obedecidos os prazos para promoção previstos nas leis e regulamentos vigentes, e asseguradas as promoções ao oficialato, independentemente de requisitos e condições, respeitadas as carac316
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terísticas e peculiaridades dos regimes jurídicos dos servidores públicos civis e dos militares, e, se necessário, considerando-se os seus paradigmas. § 1º. O valor da prestação mensal, permanente e continuada, será estabelecido conforme os elementos de prova oferecidos pelo requerente, informações de órgãos oficiais, bem como de fundações, empresas públicas ou privadas, ou empresas mistas sob controle estatal, ordens, sindicatos ou conselhos profissionais a que o anistiado político estava vinculado ao sofrer a punição, podendo ser arbitrado até mesmo com base em pesquisa de mercado. § 2º. Para o cálculo do valor da prestação de que trata este artigo serão considerados os direitos e vantagens incorporados à situação jurídica da categoria profissional a que pertencia o anistiado político, observado o disposto no § 4º deste artigo. § 4º. Para os efeitos desta Lei, considera-se paradigma a situação funcional de maior freqüência constatada entre os pares ou colegas contemporâneos do anistiado que apresentavam o mesmo posicionamento no cargo, emprego ou posto quando da punição. Art. 7º. O valor da prestação mensal, permanente e continuada, não será inferior ao do salário mínimo nem superior ao do teto estabelecido no art. 37, inciso XI, e § 9º da Constituição. § 1º. Se o anistiado político era, na data da punição, comprovadamente remunerado por mais de uma atividade laboral, não eventual, o valor da prestação mensal, permanente e continuada, será igual à soma das remunerações a que tinha direito, até o limite estabelecido no caput deste artigo, obedecidas as regras constitucionais de não-acumulação de cargos, funções, empregos ou proventos. § 2º. Para o cálculo da prestação mensal de que trata este artigo, serão asseguradas, na inatividade, na aposentadoria ou na reserva, as promoções ao cargo, emprego, posto ou graduação al que teria direito se estivesse em serviço ativo.
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I
Dados pessoais do anistiado: a) b) c) d) e) f) g) h) i) j) k)
Ii
Nome completo: ALAOR BARBOSA DOS SANTOS Local de nascimento: MORRINHOS, ESTADO DE GOIÁS. Nacionalidade: BRASILEIRO. Data de nascimento: 13 DE MARÇO DE 1940. Estado civil atual: CASADO. Endereço completo de residência: SQS 314, bloco F, ap. 204. Cep: 70 383-060.Tel. 346-0271. Endereço eletrônico: alaor.b@zaz.com.br H. CPF: 002 635 911-15. I. Conta bancária: BANCO DO BRASIL S/A, ag. 2636-0, conta n. 233165-9. J. Nome do cônjuge: MARIA GONÇALVES BARBOSA. K. Nome e idade dos filhos: NOÊMIA GONÇALVES BARBOSA, com 35 anos de idade; LUCIANO GONÇALVES BARBOSA, com 34 anos; HERMANO GONÇALVES BARBOSA, com 32.
Dados da vida profissional da época em que ocorreram os fatos constantes do art. 2º:
a) Jornalismo. O Requerente era redator do jornal hebdomário NOVOS RUMOS, órgão oficial do Partido Comunista Brasileiro, com sede na cidade do Rio de Janeiro, na Avenida Rio Branco, esquina com Rua Santa Luzia, no 17º andar, quando do golpe militar-político de abril de 1964. Remuneração: Cr$ 90.000,00 (noventa mil cruzeiros), se bem se lembra. Sua carteira profissional, entregue à direção do jornal para anotação da sua contratação como redator, perdeu-se, provavelmente destruída com os arquivos do jornal, cuja redação foi invadida por forças do Exército e das polícias civil e militar, conforme lhe foi informado naqueles dias. No dia 8 de abril saiu do Rio, clandestinamente, e foi para Belo Horizonte, onde permaneceu durante o restante do mês de abril e todo 318
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o mês de maio. No fim de maio veio para Brasília e logo viajou para Goiânia, a fim de trabalhar no jornal, diário, Folha de Goiaz – emprego obtido por seu irmão Eurico Barbosa. b) Assessoria. Em 1º de agosto de 1964 foi o Requerente contratado assessor da Diretoria da empresa Metais de Goiás S/A (METAGO), em Goiânia. Com a intervenção federal executada em 26 de novembro daquele ano (1964), e conseqüente afastamento do Governador Mauro Borges Teixeira, e tendo sido informado de que sua prisão preventiva fora decretada pela Auditoria da 4ª Região Militar, de Juiz de Fora, escondeu-se na casa de uma família amiga e, na tardezinha do dia 30, fugiu de Goiânia e homiziou-se em uma fazenda, na sua terra natal, Morrinhos. Em conseqüência, foi demitido da Metago. Recebia na METAGO o salário mensal de R 100.000,00 (cem mil cruzeiros). c) Diretoria jurídica. No início de 1970, foi o Requerente convidado, pelo novo controlador da maioria acionária, a assumir uma das três diretorias do Banco Agropecuário do Estado de Goiás. Eleito em assembléia geral de acionistas em 14 de abril de 1970, foi o Requerente, algum tempo depois, interpelado, por carta, pelo Banco Central do Brasil sobre o fato de ter sido indiciado “e pronunciado” (sic) em inquérito policial-militar anos antes. O Requerente deu as explicações devidas e, afinal, o Banco Central o confirmou no cargo. Mais tarde, porém, foi solicitado a dele se afastar pelo proprietário do Banco, o qual, no ato, disse estar falando em nome da sua família, embora a responsabilidade fosse dele mesmo. Foi visível ao Requerente que o incidente Banco Central era uma das causas determinantes do seu afastamento da diretoria do Banco Agropecuário. Percebia o Requerente, então, honorários de Diretor-Secretário na importância de CR.$ 3.600,00 (três mil e seiscentos cruzeiros), correspondentes, talvez, hoje em dia, a cerca de R $ 12.000,00 (doze mil reais). O Requerente só encontrou condições ambientais para inscrever-se em concurso público para cargos do Estado em 1984, quando parRequerimento de Alaor Barbosa ao ministro da justiça via comissão de anistia
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ticipou, com gratificante sucesso, em dois concursos públicos, um deles de provas e títulos, do Senado Federal, para Assessor Parlamentar (cargo atualmente denominado Consultor Legislativo), e o outro, de provas, do DASP, para Procurador Autárquico Federal. Assumiu o cargo de Procurador Autárquico Federal no INCRA em agosto de 1984, apesar, segundo foi informado dias depois, de ter havido restrições ao seu nome por parte do Serviço de Informações daquela autarquia, as quais foram nobremente repelidas pelo Procurador Geral do INCRA. Iii
Projeção da situação atual:
Pouco tempo antes de ver-se impedido de exercer o jornalismo no Rio de Janeiro, em 1964, estava assentado que o Requerente devia se tornar redator-chefe do jornal – Novos Rumos – em que trabalhava. Um redator-chefe de jornal não ganha, atualmente, ao que consta, menos de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) por mês. O cargo de assessor jurídico de empresa de médio ou de grande porte não tem sido, atualmente, conforme se informa, remunerado com menos de R $ 8.000,00 (oito mil reais). O cargo de diretor-jurídico de banco particular é atualmente remunerado com cerca de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), de acordo com informação colhida pelo Requerente. . IV Resumo do pedido: O pedido aqui formulado se funda nos Arts. 1º, incisos I e II; 2º, incisos VI e IX; 5º; 6º, parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º; 7º, §§ 1º e 2º; e finalmente no Art. 9º, e seu Parágrafo Único, da Lei n. 10 559, de 13 de novembro de 2002, integralmente transcritos acima, no item “FUNDAMENTOS DO PEDIDO”. A reparação econômica pretendida é em prestação mensal, permanente e continuada. O Requerente foi impedido de continuar na sua atividade jornalística não só no jornal em que trabalhava, mas em qualquer outro órgão de imprensa na cidade do Rio de Janeiro. O jornal de que era redator, 320
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Novos Rumos, foi, nos primeiros dias da chamada Revolução de 1964, fechado violentamente por soldados do Exército e das polícias militar e civil do Estado da Guanabara, que lhe destruíram as instalações. Para se ter idéia do grau da violência que atingiu o pessoal de Novos Rumos, basta lembrar que o diretor desse jornal, Orlando Bonfim Júnior, mais tarde seqüestrado por agentes da repressão oficial, foi um dos numerosos desaparecidos da época da Ditadura Militar-Tecnocrática de 1964; o jornalista Mário Alves, colaborador do jornal e também membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, foi cruelmente assassinado – por empalação –, de acordo com informação não oficial circulante desde o ano de 1975; Jacob Gorender, igualmente colaborador de Novos Rumos e membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, foi, ao que consta, também cruelmente torturado; a mesma coisa consta ter acontecido ao jornalista, escritor e filósofo Leandro Konder, outro colaborador de Novos Rumos, o qual se viu compelido a exilar-se na Europa, na Alemanha, durante longos anos. Nas circunstâncias daqueles dias inaugurais da “nova ordem” política, permanecer no Rio seria expor-se a inevitável prisão. E isso não podia admitir lhe acontecesse, pois era uma robusta promessa de morte ou de torturas. O Requerente refletiu que, fora do Rio, contava com a possibilidade de trabalhar com o necessário anonimato, ou, caso fosse para sua terra, Goiás, com a probabilidade de proteções bastantes a mantê-lo a salvo de violências policiais ou militares. Imerso naquele tão conturbado e confuso contexto, o Requerente se viu obrigado, pois, para sobreviver, a ausentar-se clandestinamente do Rio de Janeiro. Por prudência, antes de seguir para Goiás passou dois meses em Belo Horizonte, esperando que a situação política em Goiás, de onde lhe chegaram informações desencontradas e confusas, se aclarasse no sentido de poder ele trabalhar em Goiânia. V Resumo dos fatos: Em abril de 1964, o Requerente era, desde setembro de 1963, redator do jornal semanal Novos Rumos, órgão do Partido Comunista Brasileiro, no Rio de Janeiro. Eclodido o movimento militar em Juiz de Requerimento de Alaor Barbosa ao ministro da justiça via comissão de anistia
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Fora, no dia 31 de março, uma terça-feira, permaneceu o Requerente até à quinta-feira no Rio, escondido na casa de uma família em Grajaú; em seguida, foi transferido, talvez por um entendimento dessa família com uma outra, para uma casa no Méier, onde passou uma noite; do Méier foi levado, com dois outros colegas do jornal, para uma casa em Sepetiba, pertencente ao seu hospedeiro do Méier. Ficou em Sepetiba até o dia 8 de abril. Na noite desse dia tomou um ônibus para Belo Horizonte. Em Belo Horizonte, abrigou-se no apartamento de uma família amiga e conterrânea, no Edifício Levy, na Avenida Amazonas, e pôs-se a trabalhar, dentro em poucos dias, como vendedor de livros. No dia 1º ou 2 de junho viajou para Brasília com um conterrâneo e ex-colega de ginásio que, residente em Morrinhos, cidade natal de ambos, fora a Belo Horizonte de caminhonete. Em Brasília, hospedou-se por um ou dois dias no apartamento de um irmão, Geraldo. Viajou então para Goiânia, onde um outro irmão, Eurico Barbosa dos Santos, deputado estadual, lhe dissera ter-lhe conseguido emprego no jornal diário Folha de Goiaz. E, de fato, foi o Requerente, tão logo chegou a Goiânia, contratado redator político da Folha de Goiaz. Permaneceu nesse emprego até 31 de julho. Convidado por um dos diretores da empresa Metais de Goiás S/A (Metago), Luiz Zaccharias Pedroza, aceitou trabalhar como assessor da Diretoria dessa empresa que então era de economia mista, com predomínio do Estado de Goiás, e por ela foi contratado em 1º de agosto. Em conseqüência desses fatos, o Requerente não pôde comparecer às provas do meio do ano na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Petrópolis, onde fazia o curso de Bacharelado. Segundo fora advertido por colegas e amigos, não devia voltar à Faculdade sob pena de ser preso. Um ano preciosíssimo de atraso na sua vida, pois o Requerente trabalhava para pagar os próprios estudos. Um mês depois, em 31 de agosto de 1964 foi o Requerente preso por ordem do Comandante do 10º Batalhão de Caçadores (BC) de Goiânia, onde permaneceu, em companhia de mais de uma dezena de outras pessoas, até 19 de setembro, quando foi solto. Voltou ao trabalho na METAGO logo em seguida. Com a intervenção federal em Goiás, no dia 26 de novembro, decretada pelo Presidente Castelo Branco, e o conseqüente afastamento do Governador, Coronel Mauro Borges Teixeira, o Requerente teve de 322
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sair de Goiânia a fim de não ser outra vez preso, pois constava haver uma ordem de prisão preventiva contra ele, emanada da Auditoria da 4ª Região Militar, de Juiz de Fora, Minas Gerais. Homiziou-se então numa fazenda do seu município natal, Morrinhos, de 30 de novembro a 14 de dezembro. Nesse dia, 14 de dezembro, voltou da fazenda para a cidade e passou a residir, com muita discrição, na casa dos seus pais, à espera de se aclarar a sua situação. Eram imprecisas as informações. Uma das quais, como já dito acima, o dava como tendo contra si ordem de prisão preventiva da Justiça Militar. Em Goiânia continuavam a ocorrer, naquelas primeiras semanas posteriores à intervenção federal, sucessivas prisões e buscas, para o efeito de as prender, de pessoas acusadas de subversivas. O Requerente, então, hesitante entre procurar o exílio no Uruguai ou no Chile, e permanecer no Brasil para retomar vida o mais possível normal, ainda que enfrentando vicissitudes políticas muito difíceis, começou a advogar em Morrinhos no escritório de um advogado, Miguel Frauzino Pereira, que generosamente o acolheu. Em janeiro de 1965 conseguiu a sua transferência da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Petrópolis para a Faculdade de Direito da Universidade Católica de Goiás, em Goiânia, e retomou o curso de Direito. Obteve carteira de solicitador-acadêmico, expedida pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Goiás, que lhe permitia advogar, com algumas limitações, e rapidamente se firmou na advocacia em sua cidade. Bacharelou-se em dezembro de 1966. Recebeu a carteira de advogado em abril de 1967, expedida pela Seção de Goiás da Ordem dos Advogados do Brasil. VI Indicação das provas de todas as alegações O Requerente junta a este requerimento: 1) certidão expedida, em 10 de outubro de 2002, a seu pedido, pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), órgão do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, com o mesmo teor – nela se afirma – da certidão expedida, em 13 de novembro de 1989, pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), na qual se refere, entre outros fatos, o de ter sido o Requerente indiciado (juntamente com mais cento e quarenta e seis outras pessoas) no Inquérito Policial Militar Requerimento de Alaor Barbosa ao ministro da justiça via comissão de anistia
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(IPM) instaurado em setembro de 1964 para apurar “atos subversivos nas áreas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do Estado de Goiás”. Esse IPM foi que serviu de base à intervenção federal em Goiás, decretada pelo Presidente Castelo Branco em 26 de novembro de 1964, mediante a qual foi afastado do cargo o governador do Estado, Coronel Mauro Borges Teixeira. Em conseqüência desse IPM é que o Requerente fora preso, durante dezenove (19) dias, no Décimo Batalhão de Caçadores, em Goiânia, de 31 de agosto a 19 de setembro de 1964. No dia 5 de março foi o Requerente qualificado, com os demais cento e quarenta e seis indiciados, no IPM, pela Auditoria da 4ª Região Militar de Juiz de Fora. A sessão de qualificação durou vinte e quatro horas: iniciada às 13 horas do dia e encerrada mais ou menos a essa hora do dia seguinte. Durante esse tempo, os cento e quarenta e sete indiciados, confinados no salão do Tribunal do Júri do Fórum de Goiânia, não puderam sair nem mesmo para se alimentar, podendo fazê-lo apenas para se dirigirem às instalações sanitárias. Por isso alguns dos indiciados denominaram aquela noite de Noite de São Bartolomeu. Por decisão do Supremo Tribunal Federal, em ações de habeas-corpus impetradas por um grande número de denunciados, a Justiça Militar foi declarada incompetente para processar a ação penal dos crimes atribuídos aos indiciados naquele IPM, por se tratar de civis. O habeas-corpus requerido em favor do Requerente pelo Advogado Rômulo Gonçalves (honra e glória da advocacia brasileira), tem, no Supremo Tribunal Federal, o número 41. 873; dele foi Relator o Ministro Vilas Boas. Foi concedido na sessão de 1º de abril de 1965. Declarada competente a Justiça do Estado de Goiás, e a ela remetidos os autos do IPM, os quais foram distribuídos para o Cartório do 2º Ofício Criminal da Comarca da Capital, determinou-se, a pedido do representante do Ministério Público do Estado de Goiás, fossem arquivados por falta de justa causa em que se pudesse fundar denúncia. Assim cessou o longo calvário do Requerente no âmbito militar e judiciário-militar, que lhe impôs, durante longos meses, infinitos e inavaliáveis sofrimentos morais. Que perduraram, quotidianos, durante os longos vinte e um anos da Ditadura Tecnocrático-Militar que vitimou este País; 324
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2) cópia de carta escrita à noiva pelo Requerente, no dia 31 de agosto de 1964, poucos minutos antes de se dirigir à Sétima Circunscrição de Recrutamento Militar (7ª CRM) de Goiânia, a fim de depor, e onde foi preso; 3) cópia de carta escrita na prisão pelo Requerente à sua noiva no dia 6 de setembro de 1964; 4) cópia da denúncia oferecida ao Juiz Auditor da 4ª Região Militar e 11ª Região Militar pelo Promotor Militar da 4ª Região Militar e 11ª Região Militar; 5) cópia da Carta Precatória de Citação do Requerente e dos demais indiciados, expedida pelo Juiz Auditor da 4ª Região Militar de Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais; 6) cópia da petição do habeas-corpus impetrado em seu favor, e no de outros indiciados, pelo advogado Rômulo Gonçalves; 7) cópia da petição do habeas-corpus impetrado em favor do indiciado Clêuler de Barros Loiola pelo advogado Cleomar de Barros Loiola, o qual prova o ambiente de terror instaurado em Goiânia na véspera da intervenção federal em Goiás em 26 de novembro de 1964 e que, tendo sido concedido pelo Supremo Tribunal, foi estendido ao Requerente a pedido do seu advogado Rômulo Gonçalves; 8) cópia da petição com o pedido de extensão, ao Requerente e a outros, do habeas-corpus concedido a Clêuler de Barros Loiola; 9) cópia de declaração do ex-Deputado Federal Guilherme Xavier de Almeida, datada de 29 de março de 1965, em favor do Requerente, “para o efeito de testemunho junto ao Supremo Tribunal Federal” (no processo do habeas-corpus impetrado em favor do Requerente pelo advogado Rômulo Gonçalves); 10) cópia de declaração, no mesmo sentido e com o mesmo fim, do empresário Iberê Monteiro do Espírito Santo, datada de 1º de abril de 1965; 11) cópia de declaração emitida pela S/A Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, de 05 de julho de 1960, probatória da condição de jornalista profissional do Requerente; 12) cópia de declaração da empresa Metais de Goiás (Metago) S/A, de Goiânia, sobre o vínculo de emprego do Requerente com ela; Requerimento de Alaor Barbosa ao ministro da justiça via comissão de anistia
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13) cópia de carta do Banco Central do Brasil, de 17 de abril 1970, comunicando a eleição do Requerente ao cargo de Diretor Secretário do Banco Agro-Pecuário do Estado de Goiás S/A; a) Da atividade profissional de jornalista no jornal Novos Rumos tem o Requerente provas testemunhais. Seus artigos eram assinados com pseudônimos (Aristides de Oliveira, prenome do seu pai e nome da sua mãe, ou Barbosa dos Santos, seu nome e sobrenome), pela óbvia razão de que, sendo o jornal, embora legal, porta-voz de um partido ilegal, o PCB, feroz e implacavelmente perseguido no Brasil havia décadas, não convinha ao Requerente identificar-se publicamente como redator dele. Esse cuidado tinham-no também outros redatores e colaboradores de Novos Rumos. Sua carteira profissional, que entregou ao redator-chefe para a devida anotação do contrato de trabalho, não lhe tendo sido devolvida tempestivamente, desapareceu, conforme já dito, quando o jornal foi fechado, com muita violência destrutiva, pelo Exército e pelas polícias Militar e Civil, segundo foi bem mais tarde informado, no dia 4 ou 5 de abril de 1964. b) A “motivação exclusivamente política” é óbvia, e portanto dispensa comprovação. O Requerente era redator de um jornal comunista. Com a deposição do Presidente João Goulart, deflagrou-se e executou-se no Rio de Janeiro (e em todo o País, mas no Rio, ao que pareceu, de modo bem mais intensivo), terrificante ação punitiva e repressiva por parte das Forças Armadas e das polícias civil e militar do Estado da Guanabara. Foi um período de violências, de terror e de pânico. Nos primeiros dias correram assustadores boatos, com visos de veracidade, da ocorrência até mesmo de fuzilamentos sumários. Acuado, não restou ao Requerente alternativa para a necessidade de se ausentar, em segredo, do Rio de Janeiro, em busca de asilo seguro. Esse asilo ele esperava obter em Goiás, onde contava que suas atividades profissionais-políticas no Rio de Janeiro fossem em geral desconhecidas (não existia o SNI) e onde o governador, Coronel Mauro Borges Teixeira, que o conhecia pessoalmente e parecia estimá-lo, provavelmente o protegeria. Para isso pareciam não lhe faltar, ao Governador Mauro Borges, condições políticas propícias e suficientes, dado que aderira ao golpe e se arvorara em um dos seus líderes civis. Além disso, contava o Re326
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querente com a proteção, ainda que não de todo suficiente, de um irmão, Eurico Barbosa dos Santos, deputado estadual à Assembléia Legislativa de Goiás, eleito pela UDN (União Democrática Nacional), partido que estimulara o golpe contra João Goulart e que dos efeitos políticos do golpe já se beneficiava manifestamente; esse irmão, embora também posto sob alguma suspeita por parte dos militares destacados em Goiás, e que veio a ter, em 1969, o seu mandato parlamentar cassado e os direitos políticos suspensos por dez anos, era pessoal e politicamente muito bem-visto e respeitado pelo Governador Mauro Borges – alguns meses depois também rejeitado pela Revolução e por isso deposto em virtude de um inquérito policial-militar criminosamente fantasioso. Dispensa de provas adicionais Ante a evidente veracidade dos fatos narrados, o Requerente julga desnecessário aduzir mais provas. Protesta pelo direito de produzi-las, mas pede seja dispensado de fazê-lo. Brasília, DF, 20 de julho de 2004.
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Apêndice IV
Contestação à 24ª Vara Cível Comarca da Capital – RJ
1. Esboço da Contestação 2. Contestação
Esboço da Contestação
Exmº Sr. Dr. Juiz da 24ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro: Proc. n. 2008.001.177396-5 Ação Indenizatória Autora: VILMA GUIMARÃES ROSA Autora: EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A Ré: LGE EDITORA LTDA. (...) Vilma Guimarães Rosa precisa conhecer o caráter, a sinceridade, a integridade moral, a grandeza espiritual, a veneração que o escritor Alaor Barbosa tem pela alma do seu pai. Jornalista Iberê Monteiro Rádio Terra, Goiânia, março de 2008. Trata-se de observar de que forma a inegável afeição do biógrafo pelo biografado impossibilitou a Alaor Barbosa o distanciamento minimamente necessário para que o texto não tivesse uma carga demasiadamente pesada de menções elogiosas ao escritor e ao homem Guimarães Rosa. Fábio Silvestre Cardoso, no jornal Rascunho, de Curitiba, em artigo sobre Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa. 331
LGE EDITORA LTDA., pessoa jurídica inscrita no CNPJ/MF sob o n. 03.307.528/0001-04, com sede na cidade de Brasília, Capital Federal, no SIA/Sul, Trecho 3, Lote 1760, CEP 71200-035, tendo sido CITADA e INTIMADA para responder a ação ordinária, com pedido de tutela antecipada, proposta por VILMA GUIMARÃES ROSA, brasileira, casada, inscrita no CPF/MF sob o n. 175.587.867-20, residente e domiciliada na cidade do Rio de Janeiro, Capital do Estado do Rio de Janeiro, na Rua Almirante Gonçalves n. 56, AP. 1201, Copacabana, e EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A, INSCRITA NO CNPJ/MF sob o n. 33.324.484/0001-83, com sede na cidade do Rio de Janeiro/RJ, na Rua Bambina n. 25, Botafogo, CEP 22 251-050, Vem, por seu advogado, com endereço gravado no timbre desta, à digna presença de V. Exa. oferecer e apresentar a devida resposta, em forma de
Contestação E o faz nos termos seguintes. PRELIMINARMENTE Da necessidade de extinção do processo O processo deve ser extinto, sem julgamento do mérito. Diz o Código de Processo Civil: Art. 267. Extingue-se o processo, sem julgamento do mérito: VI – quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual. Para esta ação, faltam condições essenciais. Falta possibilidade jurídica e legitimidade das partes Autoras. A impossibilidade jurídica decorre da vedação constitucional e da sã interpretação do Código Civil e mais legislação ordinária pertinente às duas matérias envolvidas nesta ação: danos morais e direitos autorais. Sem direito de agir, não têm as Autoras legitimidade. Uma prova de que as Autoras se sentiram com falta de direito de agir é que a irmã da 1ª Autora foi excluída do pólo ativo, não figurando como autora. Por quê? Por falta de direito. Mas a outra filha, por possuir a condição de autora de um livro com 332
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coletânea de documentos sobre o pai, utilizou-se e valeu-se desse fato para intentar, por má-fé, a presente ação. Não podia nem pode a 2ª Autora – pessoa jurídica – inculcar-se como vítima de dano moral que se afirma, absurdamente, ter sido cometido contra uma pessoa natural alheia ao processo: o escritor João Guimarães Rosa. Como pode a editora de livros de um determinado autor sentir-se atingida por eventual dano moral (repita-se: inexistente e absurdamente alegado) que se diz (inveridicamente, repita-se) ter sido cometido contra a memória dele? A verdade é que nenhum dano moral foi cometido contra quem quer seja por parte da Ré. Ao contrário: o livro objeto desta ação só contém benefícios intelectuais e morais ao escritor João Guimarães Rosa. Danos morais têm sido cometidos, sim, mas pelas Autoras, particularmente a 1ª, não somente contra o escritor Alaor Barbosa, autor do livro objeto desta ação, como também contra a Ré, que o editou. A Ré tem visto e testemunhado o grande número de agressões assacadas pela 1ª Autora contra o escritor Alaor Barbosa, reiteradamente, há vários meses, na imprensa. Tremendas agressões verbais. Até de doido já foi ele acusado por ela, em entrevista ao jornal O Estado de Minas do dia 27 de junho último. E QUE DANO MORAL COMPARÁVEL AO CAUSADO POR ESTA AÇÃO, QUE TEM FEITO SOFRER O ESCRITOR ALAOR BARBOSA DE MODO MAIS DO QUE CRUEL? Quanto à Ré, o dano moral que tem sofrido decorre dos constantes ataques e acusações desferidos contra o livro que, com a melhor e a mais pura das intenções de ordem cultural, editou no final do ano passado. Ocorre, neste processo, uma mescla primariamente injurídica de ações. As Autoras não podiam formular pretensão conjuntamente. De que modo pode-se considerar a 2ª Autora vítima de danos morais cometidos contra terceiro? Que danos morais foram causados à 2ª Autora, a Editora Nova Fronteira, pelo livro objeto desta ação, se a infundada alegação de danos morais se refere à pessoa do escritor João Guimarães Rosa, com quem a Editora Nova Fronteira não tem relação de ordem moral e com quem a única relação que tem é a de editora dos seus livros? Esboço da Contestação
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Que espécie de dano moral sofreu a Editora Nova Fronteira? Vir ela a juízo alegar que sofreu dano moral só pode entendido como ato de levianíssima aventura judiciária e de grosseira litigância de má-fé, e manifestação de infundada esperança de locupletar-se à custa alheia. Também não pode a 2ª Autora considerar-se vítima de infração de direitos autorais, pois direito autoral e direito de editar são realidades jurídicas distintas entre si. Não possui a 2ª Autora, a Editora Nova Fronteira, portanto, direito de ação por danos morais. Envolver a 2ª Autora na ação de indenização por danos morais alegados pela 1ª Autora é cometer erro primário de confusão de ações e de confusão de pedidos. De acordo com o § 3º do citado art. 267 do CPC, o juiz “conhecerá, em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não proferida a sentença de mérito, da matéria constante dos ns. IV, V e VI”. Por conseguinte, é oportuna a alegação da Ré, e tempestiva e adequada será a decisão de V. Exa. que extinguir, com base no alegado, o processo. Assim, escusada a repetição, deve-se ponderar que, nos termos do Art. 295 do Código de Processo Civil, a petição inicial era de ser, data venia, INDEFERIDA: a) por inépcia, pois o pedido é juridicamente impossível e por falta de condições de ação; b) por ilegitimidade de parte: as Autoras não têm direito de ação, pois não podem interditar publicação de livro de quem quer que seja, ainda que biografia de ascendente de uma delas, nos termos da Constituição Federal (Arts. 5º, IX, e 220) e do direito ordinário brasileiro (especialmente o Código Civil, art. 20 e seu parágrafo); e também porque nenhuma violação de direitos de autor foi cometida no livro que se quer converter em objeto de censura e interdição, mediante esta ação judicial; c) por prescrição de qualquer direito pretendido com base no texto em que o escritor Alaor Barbosa relata seus diálogos com João Guimarães Rosa na parte do seu livro intitulada “Conversando com João Guimarães Rosa”, publicada, há 42 anos (em 1966, vivo ainda o escritor João Guimarães Rosa), no jornal O Popular, de Goiânia, republicada posteriormente no livro Confissões de Goiás, editado em 1968 também em Goiânia – pelo Instituto Estadual do Livro e Secretaria de Cultura do Estado de Goiás (doc. junto) –, e novamente reproduzida também 334
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no livro denominado A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa (doc. junto), editado em 1980 pela Editora Imery, em Goiânia Capital do Estado de Goiás, e agora outra vez reeditado no livro objeto da presente ação; publicado, portanto,.em livros 3 vezes depois de divulgado em jornal. Não poderão as Autoras alegar nenhuma pretensão com base nesse texto publicado já por 4 (quatro) vezes, a primeira, repita-se, há 42 anos. O Direito Vale transcrever as principais normas pertinentes ao caso: Constituição Federal: Art. 5º. IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Direito fundamental. Na Constituição, “cláusula pétrea”. Insusceptível de transgressão excepcional. Imodificável. Direito sagrado da pessoa humana. Conquista da Civilização. Que a Constituição mesma se incumbe de reafirmar, mais adiante: Art. 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º – Nenhuma lei conterá dispositivo que constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XII e XIV. RONALD A. SHARP JÚNIOR, citando (Dano moral, Editora Destaque, Rio de Janeiro, 1998, p.24), o livro clássico de CARLOS MAXIMILIANO, reafirma esta importante verdade jurídico-política: “As normas constitucionais devem ser interpretadas extraindo-se o máximo de alcance, não podendo o legislador ordinário nem o Juiz restringir-lhe o âmbito de incidência ou impor-lhes condicionamentos não autorizados explícita ou implicitamente no próprio contexto” (Hermenêutica e aplicação do Direito, Ed. Forense, 16ª edição, n.s 374 e 375)”. O art. 5º, IX, da Constituição Federal Brasileira é a expressão de um direito universalmente consagrado, e, assim, a inserção, na Carta Esboço da Contestação
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Magna do Brasil, de um princípio fundamental declarado em diversos documentos e declarações de direitos internacionais, que representam conquistas essenciais e irrenunciáveis da Humanidade. Citem-se os principais, que vieram na esteira da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em França em 1789: DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Artigo XIX Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. DECLARAÇÃO AMERICANA DOS DIREITOS E DEVERES DO HOMEM Artigo IV – Toda pessoa tem o direito à liberdade de investigação, de opinião e de expressão e difusão do pensamento, por qualquer meio. CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. Relatoria para a Liberdade de Expressão DA OEA Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão 336
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PREÂMBULO REAFIRMANDO a necessidade de assegurar, no Hemisfério, o respeito e a plena vigência das liberdades individuais e dos direitos fundamentais dos seres humanos através de um Estado de Direito; CONSCIENTES de que a consolidação e o desenvolvimento da democracia dependem da existência de liberdade de expressão; PERSUADIDOS de que o direito à liberdade de expressão é essencial para o avanço do conhecimento e do entendimento entre os povos, que conduzirá a uma verdadeira compreensão e cooperação entre as nações do Hemisfério; CONVENCIDOS de que, ao se obstaculizar o livre debate de idéias e opiniões, limita-se a liberdade de expressão e o efetivo desenvolvimento do processo democrático; CONVENCIDOS de que, garantindo o direito de acesso à informação em poder do Estado, conseguir-se-á maior transparência nos atos do governo, fortalecendo as instituições democráticas. RECORDANDO que a liberdade de expressão é um direito fundamental reconhecido na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na Declaração Universal de Direitos Humanos, na Resolução 59(I) da Assembléia Geral das Nações Unidas, na Resolução 104 adotada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e em outros instrumentos internacionais e constituições nacionais; RECONHECENDO que os princípios do Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos representam o marco legal a que estão sujeitos os Estados membros da Organização dos Estados Americanos; REAFIRMANDO o Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que estabelece que o direito à liberdade de expressão inclui a liberdade de buscar, receber e divulgar informações e idéias, sem consideração de fronteiras e por qualquer meio de transmissão; CONSIDERANDO a importância da liberdade de expressão para o desenvolvimento e a proteção dos direitos humanos, o papel fundamental que lhe é atribuído pela Comissão Interamericana de Direitos Esboço da Contestação
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Humanos e o pleno apoio estendido à Relatoria para a Liberdade de Expressão como instrumento fundamental para a proteção desse direito no Hemisfério, na Cúpula das Américas realizada em Santiago, Chile; RECONHECENDO que a liberdade de imprensa é essencial para a realização do pleno e efetivo exercício da liberdade de expressão e instrumento indispensável para o funcionamento da democracia representativa, mediante a qual os cidadãos exercem seu direito de receber, divulgar e procurar informação; REAFIRMANDO que tanto os princípios da Declaração de Chapultepec como os da Carta para uma Imprensa Livre constituem documentos básicos que contemplam as garantias e a defesa da liberdade de expressão e independência da imprensa e o direito a informação; CONSIDERANDO que a liberdade de expressão não é uma concessão dos Estados, e sim, um direito fundamental; e RECONHECENDO a necessidade de proteger efetivamente a liberdade de expressão nas Américas, adota, em apoio à Relatoría Especial para a Liberdade de Expressão, a seguinte Declaração de Princípios: PRINCÍPIOS 1. A liberdade de expressão, em todas as suas formas e manifestações, é um direito fundamental e inalienável, inerente a todas as pessoas. É, ademais, um requisito indispensável para a própria existência de uma sociedade democrática. 2. Toda pessoa tem o direito de buscar, receber e divulgar informação e opiniões livremente, nos termos estipulados no Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Todas as pessoas devem contar com igualdade de oportunidades para receber, buscar e divulgar informação por qualquer meio de comunicação, sem discriminação por nenhum motivo, inclusive os de raça, cor, religião, sexo, idioma, opiniões políticas ou de qualquer outra índole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. 5. A censura prévia, a interferência ou pressão direta ou indireta sobre qualquer expressão, opinião ou informação por meio de qualquer meio de comunicação oral, escrita, artística, visual ou eletrônica, deve 338
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ser proibida por lei. As restrições à livre circulação de idéias e opiniões, assim como a imposição arbitrária de informação e a criação de obstáculos ao livre fluxo de informação, violam o direito à liberdade de expressão. 6. Toda pessoa tem o direito de externar suas opiniões por qualquer meio e forma. A associação obrigatória ou a exigência de títulos para o exercício da atividade jornalística constituem uma restrição ilegítima à liberdade de expressão. A atividade jornalística deve reger-se por condutas éticas, as quais, em nenhum caso, podem ser impostas pelos Estados. 10. As leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a difusão de informação de interesse público. A proteção à reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou uma pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público. Ademais, nesses casos, deve-se provar que, na divulgação de notícias, o comunicador teve intenção de infligir dano ou que estava plenamente consciente de estar divulgando notícias falsas, ou se comportou com manifesta negligência na busca da verdade ou falsidade das mesmas. Os meios de comunicação social têm o direito de realizar seu trabalho de forma independente. Pressões diretas ou indiretas para silenciar a atividade informativa dos comunicadores sociais são incompatíveis com a liberdade de expressão. Na legislação ordinária do Brasil, destaca-se o Código Civil: Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. Esboço da Contestação
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Afirma a SÚMULA 279, do CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, ao interpretar o Art. 20 do Código Civil: A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e à liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, biográfica, informativa), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações. Súmula claríssima. Elaborada como afirmação da liberdade e da democracia. Em defesa de direito fundamental da pessoa humana. A sadia interpretação do Código Civil Que é, pois, que o Código Civil, no Art. 20, proíbe? Proíbe que se divulguem escritos ou transmita-se a palavra de alguém, ou publique-se, exponha-se ou se utilize a imagem de alguém, sob as condições de atingimento da sua honra, da sua boa fama ou da sua respeitabilidade, ou de que tais atos persigam fins comerciais. Ora, biografia não se constitui, necessariamente ou por natureza, divulgação de escritos de alguém. Biografia, como diz a etimologia do vocábulo, é narração da vida de alguém. Só. Mais nada. Pode conter trechos de escritos da pessoa biografada. Mas, se os contiver, em forma de citações feitas de acordo com a lei, não conterá nenhuma apropriação de texto pertencente ao biografado. Assim, a biografia que não contenha, além do relato propriamente biográfico, “divulgação de escritos” do biografado, não terá transgredido o Art. 20 do Código Civil. E poderá ser editada livremente. Independentemente de autorização prévia ou posterior de quem quer que seja. Aliás, caso o texto do Art. 20 do Código Civil autorizasse a interpretação proibitória que algumas pessoas, imbuídas e impelidas de má-fé e espírito liberticida, intentam lhe dar, seria flagrantemente inconstitucional, e, por conseguinte, susceptível de ter sua inconstitucionalidade declarada por juiz de qualquer instância, em virtude do instituto da declaração de inconstitucionalidade difusa, segundo o preceito jurídico de que nenhum juiz é obrigado a aplicar norma inconstitucional. Seria, em conseqüência, o texto 340
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do Art. 20 do Código Civil extirpado do direito positivo nacional mediante ato do Senado Federal, nos termos do Art. 52, X, da Constituição da República. O livro objeto desta ação é uma biografia em que não se divulgam escritos do biografado. De textos do biografado são feitas citações, mas parcimoniosamente, dentro dos limites de quantidade e extensão legais. E, evidentemente, não contém (antes, ao contrário, conforme se demonstrará à saciedade) nada que atinja a honra ou a boa fama ou a respeitabilidade do escritor João Guimarães Rosa. Da incompetência do foro Nos termos do Art. 301 do Código de Processo Civil, alega a Ré a incompetência do foro da comarca da cidade do Rio de Janeiro. E o faz sob a advertência do § 4º desse artigo, que diz: § 4º. COM EXCEÇÃO DO COMPROMISSO ARBITRAL, O JUIZ CONHECERÁ DE OFÍCIO DA MATÉRIA ENUMERADA NESTE ARTIGO. A ação foi proposta em foro incompetente. A competência para ela é o foro da comarca de Brasília, Distrito Federal. A incompetência é absoluta. Prescreve o Código de Processo Civil: Art. 94. A ação fundada em direito pessoal e a ação fundada em direito real sobre bens móveis serão propostas, em regra, no foro do domicílio do réu. Art. 100. É competente o foro: IV – do lugar: A) onde está a sede, para ação em que for ré a pessoa jurídica. V – do lugar do ato ou fato: A) – para a ação de reparação do dano. Ora, o direito – absurdamente – pretendido pelas Autoras é direito pessoal. A ação concernente a direito pessoal é proposta no domicílio do réu. A Ré desta ação é pessoa jurídica e tem sede em Brasília, Distrito Federal. Não pode ser demandada no foro de outra comarca.
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Os fatos alegados – dano moral e citações excessivdas de textos alheios – ocorreram em livro EDITADO EM BRASÍLIA, DISTRITO FEDERAL. Não se argumente que os danos ocorreram em todas as cidades onde o livro vinha sendo vendido, entre as quais o Rio de Janeiro.. Argumento infundado, improcedente, inaceitável – que levaria ao absurdo de serem tantos foros competentes quanto for o número de cidades onde o livro houver sido posto à venda. Caso em que, havendo pluralidade de autores, e residindo cada um deles em lugar diferente do dos demais, haveria pluralidade de foros competentes. O foro competente é o da comarca de Brasília, em face dos três fundamentos processuais invocados. Por conseguinte, deve ser declarada, desde logo, a incompetência do juízo do foro do Rio de Janeiro, a fim de que o processo seja entregue á cognição e julgamento do juízo do foro competente, o de Brasília, DF. Providência que a Ré pede a V. Exa. A tutela antecipada: pedido de revogação V. Exa. concedeu “tutela de urgência” para determinar a retirada do livro do mercado; deu prazo de 24 horas para tal; e fixou multa de R$ 1.000,00 (mil reais) por dia como pena pelo atraso no cumprimento da ordem. Apesar de ter interposto recurso de Agravo de Instrumento, deve a Requerida pedir a V. Exa. que revogue o despacho inicial nessa parte, o que pode ser feito ainda que o Agravo não seja provido. Data venia, pondera a Ré que a antecipação de tutela nem é necessária nem é prudente. Não há risco de dano irreparável ou de difícil reparação, pois ainda não se pode falar de direito ameaçado: a verificação da existência de direito só será possível na sentença, antes da qual os direitos das partes são iguais e encontram-se, por isso, como que em suspensão. Antes de pronta a instrução, não é possível ao julgador formar opinião sobre os direitos das partes. Só a sentença é que dirá o direito. Se não se tem ainda certeza de qual das partes possui o direito, é temerário e corre o risco de cometer irreparável injustiça antecipar a tutela neste caso. Repita-se: quanto ao “direito da personalidade das autoras”, não há, no livro, ameaça ou perigo de ser lesado. Falar em
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ameaça a direitos das Autoras é prejulgar a ação, o que não se concilia com o espírito justiceiro que a Ré presume de V. Exa. Não há juízes apenas em Berlim. Existem juízes também no Brasil – e, com fundadas razões se deve dizê-lo, no Rio de Janeiro, terra e cenário de atuação de um Eliezer Rosa e muitos outros grandes juízes. Além disso, é impraticável cumprir o despacho de tutela antecipada no prazo fixado por V. Exa. A Contestante, desde que, em fins de março passado, decidiu reformular a edição do livro objeto desta ação, lançando a edição do que é praticamente outro livro (O LIVRO OBJETO DESTA AÇÃO FOI BASTANTEMENTE ALTERADO), vem procurando tirar do mercado os exemplares distribuídos. Processo lento, que impõe um esforço de comunicação e controle com empresas distribuidoras e com livrarias. Não se tiram livros das livrarias de um dia para o outro. Se a distribuição é por natureza vagarosa, difícil, penosa, o recolhimento do livro o é ainda mais. Esta a razão pela qual restam ainda exemplares do livro em livrarias. Nos termos do § 4º do CPC, pede a Contestante que V. Exa. revogue o despacho que concedeu a tutela antecipada. Nem que o faça apenas em parte, naquilo que concerne. A Ré agravou da decisão de V. Exa. Caso o Agravo seja provido, terá desaparecido para a Ré o problema do prazo fixado por V. Exa. Poderá então o livro ser retirado do mercado – em virtude de decisão própria da Ré e não por necessidade de obedecer a despacho judicial. E caso o Agravo seja provido, espera a Ré conseguir editorar a edição DO NOVO TEXTO do livro que substitui o texto da edição objeto desta ação, bem a tempo de mostrar a V. Exa. que do texto dele terão sido suprimidos os elementos (principalmente citações de livros alheios) que as Autoras aproveitaram como pretexto (pois motivo e fundamento não eram nem são) para proporem a presente ação. No mérito Apurado que o livro objeto desta ação não dependia de autorização prévia ou posterior nem para ser escrito nem para ser publicado, resta verificar se há nele violação à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem do escritor mineiro João Guimarães Rosa. Esboço da Contestação
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Incumbe, naturalmente, às AA. }ônus de provar as suas alegações. O que o prejudicado deve provar, na ação, é o dano. (...) É preciso que prove o dano concreto, assim entendida a realidade do dano que experimentou. (JOSÉ DE AGUIAR DIAS, Da responsabilidade civil, XI edição, Editora Renovar, Rio de Janeiro/são Paulo/Recife, 2006, pag. 102). Embora pertença às Autoras o ônus da prova, a Ré afirma, contestando a ação, que não cometeu nenhum daqueles ilícitos, não violou direitos autorais dos herdeiros de João Guimarães Rosa em relação às obras dele; não violou direitos autorais da 1ª Autora concernentes ao seu livro Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai. O que fez a Ré, bem ao contrário, foi valorizar, prestigiar, difundir e defender a obra literária de João Guimarães Rosa e, em conseqüência, valorizar a imagem pessoal do grande escritor de Minas. O livro objeto desta ação é muito mais, essencialmente, uma defesa da imagem de João Guimarães Rosa, que dele sai valorizadíssima. Ao contrário de causar dano moral à imagem de João Guimarães Rosa, procura preservá-la ao máximo. E não viola direitos de autor das Autoras e de terceiros, os quais, exatamente ao contrário, são integralmente e cuidadosamente respeitados em todo o seu texto. A Requerida é uma editora de pequeno porte, localizada em uma cidade, Brasília, que, apesar de Capital Federal, ainda não possui grande tradição editorial e com mercado livreiro ainda em formação. Editora de poucos recursos – editora pobre –, mas visa muito mais a objetivos culturais do que comerciais. Tanto que edita, de preferência, livros para crianças, conforme se pode ver do seu catálogo. Ao editar principalmente para crianças, mira o objetivo de contribuir para o desenvolvimento educacional e cultural do País. Foi por esta razão – de ordem cultural – que editou o livro objeto desta ação. A Requerida decidiu-se a editar o livro ao notar que ele serviria, como está dito pelo autor no Prólogo, ao objetivo de prestigiar e valorizar a cultura brasileira, por ser o texto, de ponta a ponta, um depoimento altamente favorável à literatura e à pessoa de João Guimarães Rosa e, portanto, uma contribuição ao fortalecimento e difusão da cultura brasileira. Ela o editou inclusive por levar em conta que a obra literária de João Guimarães Rosa de um certo tempo para cá vem caindo, injustamente, num certo esquecimento e sendo submetida a duras restrições. 344
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O livro de Alaor Barbosa, aparecendo na véspera do centenário do nascimento de João Guimarães Rosa, tinha e tem, entre outras finalidades sadias, a de resgatar positivamente a obra literária de João Guimarães Rosa. Ao escrevê-lo, mais uma vez Alaor Barbosa demonstrou solidariedade para com a obra de João Guimarães Rosa, a qual ele foi um dos primeiros, no Brasil, a defender, ainda em agosto de 1959 (quando não contava senão 19 anos de idade), no Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, mediante um artigo intitulado “A roupa do sertão ou do Grande sertão: veredas”. Esse artigo foi que proporcionou a Alaor Barbosa oportunidade para conhecer pessoalmente João Guimarães Rosa e tornar-se seu amigo pessoal. Por conseguinte, o autor do livro objeto desta ação possui longa tradição individual de defender a obra literária de João Guimarães Rosa. Em 1959, defendeu-a ainda no início da sua difusão. Em 1966, quando Rosa se achava em posição de muita glória. Em 1968, também, só que já falecido. Em 1981, por meio de um livro (A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa). Agora, em 2007, novamente em livro, ampliação do anterior, projetado para 2 volumes de mais de 600 páginas, dos quais saiu o 1º volume, objeto desta infeliz, injusta, maléfica ação judicial, que, diga-se, e a Ré pode testemunhá-lo, tem causado a Alaor Barbosa um imenso mal moral e físico, de dificílima reparação. A edição do livro de Alaor Barbosa teve tiragem pequena: 1.000 (mil) exemplares. Um bom número deles foi distribuído entre críticos e jornalistas, os chamados “formadores de opinião”. Infelizmente, talvez porque os livros de Guimarães Rosa já não despertam muito interesse do público leitor, o livro de Alaor Barbosa não vem sendo adquirido nas livrarias. A venda tem sido pequena. DA OBRA DISCUTIDA Em cumprimento à lei (CPC, arts. 300, 301 e 302), a Requerida apresenta a V. Exa. todas as alegações que deve formular, refutando um por um os itens da inicial. Sob o título “DA OBRA DISCUTIDA’, procedem as Autoras a um trabalho de feroz censura ao livro objeto desta ação, e procuram negar-lhe qualquer valor literário e mesmo o caráter de biografia. Depois Esboço da Contestação
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de dizer que o livro se divide em duas partes, um Prólogo e a biografia propriamente dita, a inicial afirma que “ALAOR BARBOSA limita-se a transcrever trechos de obras de terceiros, entremeados de alguns dados cronológicos e históricos, à guisa de biografia”. Trata-se de mero juízo crítico, que não serve ao propósito de atribuir ao livro aspectos ilícitos. De fato, Alaor Barbosa expressa no seu livro suas próprias opiniões, e o faz de modo absolutamente respeitoso em relação ao biografado. O longo trecho transcrito na inicial, em que Alaor Barbosa explica suas “essenciais diferenças intelectuais e espirituais e ideológicas em relação a João Guimarães Rosa”, constitui um ato de exemplar honestidade intelectual e um esclarecimento ao leitor de que, apesar de ter escrito a biografia de João Guimarães Rosa, com ele mantém essenciais diferenças de pensamento. Não vai nisso nenhuma ofensa ao biografado. Interpretar essa parte do livro como ofensiva a João Guimarães Rosa é levar longe demais – neurastenicamente – o impulso de realizar censura, efetuar interdição do pensamento alheio, tolher a liberdade de criação intelectual. Procedeu Alaor Barbosa, nesse passo, como aquele biógrafo que, escrevendo a vida de alguém, cuida de esclarecer que não subscreve nem partilha ou comunga das idéias, convicções e ações do biografado: que não mantém nenhuma solidariedade com as idéias do biografado. Mas Alaor Barbosa faz questão de afirmar e declarar, no final do parágrafo transcrito pelas Autoras: O Brasil, igual a toda nação, precisa dos seus melhores valores humanos, e de promovê-los e defendê-los. Monteiro Lobato disse que “um país se faz com homens e livros”. (Ele devia ter dito nação em lugar de país.) POR ISSO TAMBÉM É QUE EU PENSO QUE O BRASIL NECESSITA DESTE LIVRO SOBRE JOÃO GUIMARÃES ROSA E SUA PODEROSA OBRA LITERÁRIA. Nada mais claro, como se vê, do que a expressão de respeito e consideração de Alaor Barbosa para com seu biografado João Guimarães Rosa. Dizer o contrário é atentar contra a inteligência de quem quer que leia o livro de Alaor Barbosa: é agir com má-fé primária, com desones346
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tidade intelectual e moral inqualificável; é proceder com dolo; é mentir; é caluniar; é difamar. No item XVI da inicial, afirmam as Autoras que o leitor do livro objeto desta ação “não estará interessado na comparação entre o pensamento do escritor e o do bíógrafo, mormente da forma como feita no livro Sinfonia (sic) de Minas Gerais: A vida e a literatura de João Guimarães Rosa”, “onde ALAOR BARBOSA visivelmente busca impor suas posições ideológicas e religiosas como corretas e superiores às de João Guimarães Rosa”. Não é verdade. O que a leitura do texto de Alaor Barbosa evidencia é que ele pretendeu expressar suas convicções apenas para mostrar as diferenças entre elas e as de João Guimarães Rosa. Repita-se: para registrar as diferenças. Jamais para as impor como “corretas e superiores” às de João Guimarães Rosa ou de quem quer que seja. Alaor Barbosa, pode a Requerida afirmá-lo por bem o conhecer, não padece do mal da pretensão de superioridade intelectual, muito menos, é claro, em relação à pessoa de João Guimarães Rosa, cujo valor intelectual e literário tantas vezes ressalta, com todo o respeito devido, ao longo do seu livro. Necessário observar, contudo, que, mesmo que Alaor Barbosa revelasse a pretensão de serem suas idéias as mais corretas e melhores (mas não o fez), não estaria com isso cometendo crime algum. Estaria apenas se mostrando enfático na apresentação e defesa das suas próprias idéias, o que deve ser visto como virtude e não como defeito. Em outros livros que escreveu e publicou, que não de ficção, Alaor Barbosa sempre sustentou idéias próprias. Cite-se, como exemplo, o livro UM CENÁCULO NA PAULICÉIA, editado em 2002, sobre Monteiro Lobato e seus amigos de mocidade. Nele, Alaor faz análises e comentários sobre a obra ficcional de Monteiro Lobato e dos amigos dele que publicaram livros, e o faz com total independência de espírito, fiel às suas próprias idéias e modos de encarar as coisas. Importante frisar que a ocorrência – natural, normal – de diferenças de opiniões e de filosofia entre Alaor Barbosa e os escritores que ele tem até agora estudado (são numerosos, além de Monteiro Lobato e João Guimarães Rosa) não impediram que Alaor nutrisse, por eles, forte e profunda estima e o devido respeito intelectual e moral. Sentindo-se e colocando-se muito acima de tais diferenças, Alaor Barbosa não tem Esboço da Contestação
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se furtado a escrever, sempre positivamente, sobre eles. Acresce que, no caso do livro objeto desta ação, ocorreu a significativa particularidade circunstancial de que Alaor Barbosa conheceu pessoalmente o escritor João Guimarães Rosa, de quem recebeu atenções e demonstrações de apreço pessoal. Ao contrário do que afirma a inicial,seus contactos com João Guimarães Rosa não foram superficiais: foram diálogos que duravam várias horas seguidas, estendendo-se por toda a tarde, a cada visita. No plano pessoal, assim como no literário, Alaor Barbosa demonstra cabalmente, no seu livro, que tem retribuído devidamente e em proporção talvez ainda maior as atenções de que foi objeto da parte de João Guimarães Rosa: os seus livros (são dois, além de dois outros, Confissões de Goiás, de 1968, com um capítulo sobre Rosa, e um outro, O romance regionalista brasileiro, de 2006, também editado pela Ré, em que Guimarães Rosa é focalizado com outros autores) sobre João Guimarães Rosa demonstram esse fato. No item XVI da inicial, afirmam as Autoras que “ALAOR BARBOSA impôs a JOÃO GUIMARÃES ROSA pensamentos e palavras que não prova ter (sic) sido pronunciadas”. E citam a passagem em que Alaor Barbosa afirma: “João Guimarães Rosa (e nisso ele tinha a companhia de outro grande escritor brasileiro, Monteiro Lobato) julgava a língua portuguesa uma língua inferior, a ponto de preferir as versões italianas e alemãs dos seus livros”. Ora, afirmações de preferência das traduções dos seus livros aos originais em português se encontram repetidamente nas correspondências entre João Guimarães Rosa e o tradutor italiano Edoardo Bizzarri e com o tradutor alemão, Curt Meyer-Clason. Mais de uma vez Guimarães Rosa diz que preferia aos textos em português os textos traduzidos para o italiano e o alemão. Vejamos nas cartas a Bizzarri: Rio, 11 de setembro de 1963. Sem piada, mas sincero: quem quiser realmente ler e entender G. Rosa, depois, terá de ir às edições italianas. Rio, 6 de novembro de 1963. Sinto-me com vocação para ser... seu discípulo. E, ainda bem que V. não é líder partidário, a captar adeptos. Rio, 25.XI..63. 348
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Pois o mais importante é dizer a Você que, no “Cara–de-Bronze”, por tantos motivos, é onde Você pode ter mais liberdade. Para acentuar mais, o que achar necessário. Para omitir o que, numa tradução, venha a se mostrar inútil excrescência. Para deixar de lado o que for intraduzível, ou resumir, depurar, concentrar. Rio, 4 de dezembro de 1963. Assim, quando me “re”traduzem para outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o Tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do “original ideal”, que eu desvirtuara... Não se prenda estreito ao original. Voe por cima, e adapte, quando e como bem lhe parecer. Veja como o grande tradutor começa por influir no autor. Obrigado. Rio, 3 de janeiro de 1964. Penso que, na “explicação”, Você, como em todas as demais partes do livro, aliás, deve de preferência tomar liberdades, sem se submeter com exatíssimo rigor ao corpo, às palavras do texto original. Rio, 16 de dezembro de 1964. Basta dizer que, pelo menos duas das estórias (a de Lélio e Lina e a do Cara-de-Bronze) me parecem agora, sim, verdadeiramente escritas, levadas, fiel e muito, acima do original. Mas, o livro inteiro, apresenta-se-me em outra luz, represtigiado. O “Aviso do Morro” e o ‘Manuelzão” parecem ter sido feitos para o italiano. Você é um MONSTRO. Você entrou em todas as células do livro, arejando-o sem o amarrotar,trazendo-lhe vida e “rugiada”. (Que estupendo. Até a língua italiana, de que eu já tanto gostava, abriu-se agora para mim em pétalas mais aos milhares, em dimensões novas, como gruta de Aladino !) Li, lince, sou leitor terrível; tanto mais, neste caso. E não acho falhas. Num livro enorme no tamanho, em suas lautas 743 páginas, só 3 mínimos pequeníníssimos enganos, sem mica imEsboço da Contestação
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portância, desde que até o próprio autor, caso fosse traduzir o livro, poderia cometer. Mesmo assim, motivados. Mesmo assim, resultados válidos, talvez mais-embelezadores.
Vejamos nas cartas a Curt Meyer-Clason: Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 1959. A tradução e publicação em alemão me entusiasma, por sua alta significação cultural, e porque julgo esse idioma o mais apto a captar e refletir todas as nuances da língua e do pensamento em que tentei vazar os meus livros. Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1962. O que penso, porém, é que a língua alemã permitirá, seguramente, versão mais bela e completa, cingindo muito mais estreitamente o texto original, e assim não duvido de que suas traduções vão ser as primeiras, as mais vivas. Lendo, por exemplo, o “Darandina” cheguei a comover-me em muitas páginas. Desde já, posso dizer-lhe, gosto mais do texto alemão, seu, do ”Darandina’, do que do meu original.
Entrevista dada em 31 de janeiro de 1996 por Curt Meyer-Clason contém estas afirmações corroboradoras: ...João Guimarães Rosa (...) falava alemão e sentia que a minha língua fosse capaz de recriar os elementos metafísicos e transcendentes da sua prosa poética melhor do que as línguas romanas (...) Acontecia também – como todo tradutor sabe, por experiência – o caso em que, como Rosa certificou às vezes, com aplauso, a tradução superou o original em significado, som ou densidade, devido a concordâncias felizes. A maioria dos leitores alemães achou difícil o acesso à obra roseana, embora – e isto devo confessar com certo pesar – as versões alemãs estivessem porventura mais acessíveis ao leitor alemão do que as portuguesas ao leitor brasileiro. 350
Textos Jurídicos (Para a constituinte de 1987-1988 e sobre outros temas)
Como se vê, o escritor Alaor Barbosa não cometeu leviandade alguma ao afirmar que João Guimarães Rosa preferia os seus textos traduzidos em italiano e em alemão quando os comparava com o original. Ora, sua preferência só pode explicar-se por julgar ele que o alemão e o italiano, nos casos referidos, se prestavam com mais eficiência à expressão literária daquilo que ele queria exprimir.
Quanto à opinião de Monteiro Lobato sobre a língua portuguesa, há mais de uma referência na sua obra. Alaor Barbosa publicou, recentemente, um artigo no JORNAL DA ANE Ano II, n. 11, maio de 2008), em que afirma: Em América, Lobato se recusa a traduzir uma frase de Samuel Johnson por considerar que em português ela perderia a beleza. A frase é a seguinte: He that would bring home the wealth of the Indies must carry the wealth of the Indies with him, so it is travelling – a man must carry knowledge with him If he would bring home knowledge. Para “mostrar” que Lobato errou em subestimar a capacidade expressional da língua portuguesa, dei a essa frase a seguinte tradução: Quem quiser trazer para casa o tesouro das Índias precisa carregar consigo o tesouro das Índias; é o que acontece quando se viaja: um homem precisa possuir conhecimento se quiser trazer conhecimento para casa. O item XIX da inicial reitera uma crítica ao escritor Alaor Barbosa, que, por natureza, nada tem que ver com o objeto desta ação. A crítica das Autoras considera sem interesse para o leitor “os longos relatos de ALAOR BARBOSA sobre suas viagens pelo Estado de Minas Gerais (páginas 68 a 80), nem muito menos aos (sic) elogios que JOÃO GUIMARÃES ROSA supostamente dirigiu a ALAOR BARBOSA, aos quais a obra “Sinfonia de (sic) Minas Gerias: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa” “dá bastante ênfase. Se as viagens de Alaor Barbosa através de Minas Gerais podem interessar ao leitor, é qüestão absolutamente despicienda. Tais viagens aconteceram. Alaor Barbosa relata-as para demonstrar o seu interesse e empenho em conhecer o Brasil, que é sempre sua preocupação principal no seu trato com livros, sejam de ficção, sejam de ensaios; e o território físico do universo literário do seu biografado. Não há, evidentemente, Esboço da Contestação
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no relato dessas viagens, nenhuma ofensa a João Guimarães Rosa ou qualquer indiscrição. Os elogios de João Guimarães Rosa a Alaor Barbosa não são supostos: constam de uma dedicatória em livro (Primeiras estórias), remetido por Guimarães Rosa a Alaor Barbosa (em que o chama de “irmão mais moço”) e de uma carta escrita e remetida em 1965 do Rio para Goiânia. No livro objeto desta ação, estão reproduzidos; a carta, em fac-simile. O elogio oral feito a um conterrâneo e primo da mulher de Alaor Barbosa, Vicente de Paula e Silva, poderia ser comprovado, se tal fosse preciso (mas não o é), por Vicente, felizmente vivo e residente em Goiânia. No item XX da inicial, contestam as Autoras a natureza e caráter de biografia do livro objeto desta ação, e afirmam que o livro não é mais que “compilação de citações extraídas de obras de terceiros, entremeadas por comentários do autor”. E para abonarem sua censura, dizem: “Isso foi constatado não apenas pela família de João Guimarães Rosa, mas também por alguns críticos literários, como o jornalista JERÔNIMO TEIXEIRA, que, em reportagem publicada na revista VEJA, edição 2.048, página 135, assim descreveu a referida obra: “...obra que se apresenta como biografia, mas é antes uma cronologia malcosturada da vida de Rosa...” Saber se o livro de Alaor Barbosa é biografia ou não, é questão irrelevante, é questão meramente literária, nada tem que ver com a matéria desta ação. Convém, contudo, ponderar que a opinião do jornalista citado é simplesmente uma opinião, e opinião pessoal, dele, individual, não corroborada pelo conjunto da crítica que até agora se manifestou sobre o mesmo livro. Conta-se que João Guimarães Rosa costumava colecionar de cabeça para baixo os artigos negativos sobre sua obra e de cabeça para cima os elogiosos. O que significa a obviedade de que todo livro está sujeito a opiniões negativas, muita vez expressas por pressa ou desconhecimento. Há, contudo, um pormenor importante no texto de Jerônimo Teixeira que foi omitido pelas Autoras, ao citá-lo na parte que lhes interessou. Omitido evidentemente por má-fé, elemento presente de ponta a ponta na inicial desta ação. O jornalista JERÔNIMO TEIXEIRA finaliza a sua reportagem na revista VEJA afirmando (os destaques nas citações, doravante, serão da Requerida): 352
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É melancólico que o nome de um dos maiores escritores do Brasil acabe associado a esse cerceamento da liberdade de expressão. Repita-se: esta frase do jornalista foi escamoteada na inicial. Todavia, importante assinalar, como já dito, que a opinião desfavorável de Jerônimo Teixeira sobre o livro de Alaor Barbosa não tem sido acompanhada pelos críticos, escritores e jornalistas que até agora se manifestaram sobre ele. Ao contrário do que tentam inculcar as Autoras, o livro de Alaor Barbosa tem recebido numerosos elogios, e elogios entusiásticos, e feitos por escritores dotados de um requisito fundamental: autoridade. Autoridade construída no meio literário e intelectual do Brasil. E, fato fortemente significativo, elogios proferidos principalmente por escritores, críticos e jornalistas de Minas Gerais. Citem-se aqui alguns dos elogios feitos. (Outros constarão da parte de ANEXOS integrante desta Contestação.) O primeiro que escreveu sobre ele foi o jornalista e escritor MANOEL HYGINO DOS SANTOS, que já publicou no jornal em que escreve diariamente, Hoje em Dia, de Belo Horizonte, numerosos artigos encomiásticos sobre trabalhos literários de Alaor Barbosa. O primeiro desses artigos de MANOEL HYGINO DOS SANTOS sobre o livro Sinfonia Minas Gerais, intitulado “PARA NÃO SE PERDER”, publicado, antes mesmo da edição do livro, no dia 31 de agosto de 2006, diz, entre outras coisas: Goiano de Morrinhos, Alaor Barbosa tem raízes também em Minas. Aprecia e respeita a origem. Vez por outra, retorna às regiões avoengas e paternas. Parece um tanto sertanejo do vizinho estado brasileiro. Para satisfazer-se e cumprir desígnios, toma o avião no planalto, ou o carro, chega aos grotões das gerais, monta a cavalo e sai pesquisando, estudando, montando, contentando-se, ou simplesmente espairecendo. Assim sendo, vive a terra de muitos mineiros ilustres, como Afonso Arinos e Guimarães Rosa. O escritor, CONSIDERADO O BALZAC DO BRASIL ATUAL, sente que nela renasce o sertão de dois grandes autores regionalistas pátrios, não circunscrito à casa grande, à senzala nordestina.
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(...) ALAOR BRINDA A INTELIGÊNCIA BRASILEIRA COM OBRA DE GRANDE DIMENSÃO E QUALIDADE. (...) será uma biografia indispensável aos que, no Brasil e fora dele, desejam conhecer a vida do grande contista e romancista mineiro, o mais estudado dos escritores brasileiros da atualidade. (...) Por ambas razões, tornara-se imprescindível a biografia. Faltavam um livro e um autor que contassem a vida deste múltiplo ser humano e exemplar autor. Tenho eu opinião formada sobre a produção de Alaor, de modo que passo a palavra ao crítico Assis Brasil. Para ele, o romancista e ensaísta é “um dos mais desenvoltos e seguros narradores da nova literatura brasileira.
Wilson Martins, austero crítico paulista que o Brasil intelectual conhece, não fica distante no conceito. Para ele, reportando-se a “Memórias do nego-dado Bertolino d’Abadia”, o autor goiano pode ser colocado na família de Balzac, Thomas Hardy, Eça de Queiroz, Dostoiévski, Graciliano Ramos e Giovanni Verga. O escritor de Morrinhos se desvencilha assim de um compromisso da melhor maneira: cumprindo-o. É que conhecera Rosa, de quem foi amigo e a quem tributa pessoal admiração. Mas também está convencido de que os criadores com méritos devem ser difundidos e cultuados. Não deixando de enfatizar a importância de Rosa, como espécie de fautor da língua portuguesa, que precisa ser defendida. Valoriza-se, assim, a cultura brasileira no que ela tem de mais autentico. Oportuníssima a biografia. Um agradável e instrutivo instrumento para conhecer melhor o escritor da Gruta de Maquiné é esta Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa. O escritor mineiro DANILO GOMES, membro da Academia Mineira de Letras, escreveu um artigo, publicado no jornal Hoje em Dia, Caderno Brasília, na Revista da Academia Mineira de Letras, Ano 85º, Volume XLVIII, correspondente aos meses de abril, maio, junho de 1008, na revista CERRADOS (Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, n. 25, ano 17, 2008), a qual veicula também uma entrevista com Alaor Barbosa feita por André 354
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Luís Gomes), e na revista ANPOLL/24, da ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM LETRAS E LINGÜÍSTICA, da UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Afirma DANILO GOMES, entre outras coisas, o seguinte: ALAOR BARBOSA, biógrafo de Guimarães Rosa Em 387 páginas, Alaor Barbosa nos apresenta um Guimarães Rosa de corpo/espírito inteiro. (...) O biógrafo não se limita a narrar a vida do extraordinário estilista, criador e de uma escritura peculiar, fundadora, metafísica, sutil e astuciosa. Permeando os fatos e fastos da vida do notável cronista-poeta de Ave, Palavra!, temos um minucioso estudo de sua obra, dissecada não só pelo biógrafo como por outros autores que ele chama à colação, para acompanhá-lo na empreitada, na magnífica viagem aos sertões e veredas da alma do diplomata refinado e poliglota de mão cheia. (...) O livro de Alaor Barbosa é riquíssimo em informações, análises, depoimentos, cruzamento de dados, minúcias interessantíssimas sobre Rosa, seu mundo e universo literário. (...) O ensaísta e crítico literário mineiro Manoel Hygino dos Santos, no jornal Hoje em Dia, afirmou: “Trata-se da primeira biografia do extraordinário escritor de Cordisburgo. Primeira, sim, mas completa”. E conclui seu artigo sobre a biografia de Rosa: “Elaborada com competência e calma, com alma, e que já nasce clássica” (...) Clássica, sem dúvida, por todos os títulos e em todos os sentidos. Esta simples resenha não dá senão uma pálida idéia da importância e da abrangência do livro magnífico de Alaor Barbosa (...)
Termina DANILO GOMES referindo-se à ação judicial então anunciada contra o livro de Alaor Barbosa, a qual ele, Danilo Gomes, supunha já ter sido proposta:
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Lamentável que as filhas de João Guimarães Rosa, por problemas de ordem familiar e de espólio, tenham, via judicial, proibido a circulação do livro, que estava nas livrarias (numa das quais, a Siciliano, aqui em Brasília, adquiri meu exemplar). É um absurdo, uma violação ao direito de expressão, à liberdade de expressão. Guimarães Rosa não pertence somente à sua família; ele pertence ao Brasil. Sua obra genial é um patrimônio de todos os brasileiros, é um orgulho nacional. (...) Parabéns, Alaor Barbosa! Seu livro é uma nossa bandeira erguida em nome da liberdade de expressão e da democracia”. Importante: Um crítico de São Paulo, Fábio Silvestre Cardoso, publicou no jornal RASCUNHO (um dos principais jornais literários do Brasil, de larguíssima difusão e alcance), de Curitiba um artigo sobre Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, com o fito de, como se explicita já no título do texto, CONDENAR o caráter laudatório que ele atribui ao livro de Alaor Barbosa. Afirma Fábio Silvestre:
PERDIDO EM ELOGIOS Entende-se, pela leitura, que Alaor Barbosa teve interessante contato com Guimarães Rosa. Logo nas primeiras páginas, o autor faz questão de ressaltar alguns detalhes desse convívio com o escritor mineiro, partindo, principalmente, de certa afinidade intelectual – até cópia de uma carta de Guimarães Rosa para Alaor Barbosa está presente no livro. NADA DISSO, NO ENTANTO, É CAPAZ DE ESCONDER O TOM QUASE OFICIAL, CHAPA-BRANCA, DE LOUVOR E HONRAS À PERSONAGEM (SIC) DE JOÃO GUIMARÃES ROSA. CHAMA A ATENÇÃO A QUANTIDADE DE ELOGIOS QUE O BIÓGRAFO DESPEJA EM POUCO MAIS DE 350 PÁGINAS DE TEXTO – SENDO QUE O RESTANTE DAS PÁGINAS TRAZ UM BOM ÍNDICE ONOMÁSTICO, ALÉM DA BIBLIOGRAFIA (CONSISTENTE, DIGA-SE) DE APOIO UTILIZADA. É O TEXTO, PORÉM, QUE CORROMPE AS BOAS INTENÇÕES DE ALAOR BARBOSA. QUE FIQUE CLARO, CONTUDO: NÃO SE PRETENDE AQUI DESMERECER A QUALIDADE DA PROSA DO AUTOR. ANTES, TRATA-SE 356
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DE OBSERVAR DE QUE FORMA A INEGÁVEL AFEIÇÃO DO BIÓGRAFO PELO BIOGRAFADO IMPOSSIBILITOU A ALAOR BARBOSA O DISTANCIAMENTO MINIMAMENTE NECESSÁRIO PARA QUE O TEXTO NÃO TIVESSE UMA CARGA DEMASIADAMENTE PESADA DE MENÇÕES ELOGIOSAS AO ESCRITOR E AO HOMEM GUIMARÃES ROSA. EM SÍNTESE, O AUTOR OPTOU POR UMA OBRA CARENTE DE ASPECTOS CONTRADITÓRIOS ACERCA DO BIOGRAFADO – COMO SE EFETIVAMENTE TAIS CONTRADIÇÕES NÃO EXISTISSEM. Na noite de 20 de agosto próximo passado, na ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS, em Belo Horizonte, uma prima da 1ª Autora, Carmita Schneider Guimarães, ao ser apresentada a Alaor Barbosa lhe declarou: “Vou lhe ser sincera. Gostei muito do seu livro”. Por conseguinte, conforme demonstra o artigo do crítico paulista, só mesmo uma imaginação doente pode entrever ofensa moral a João Guimarães Rosa no livro que sobre ele escreveu Alaor Barbosa. DOS DANOS CAUSADOS À IMAGEM DE JOÃO GUIMARÃES ROSA Sob esse item, fazem as Autoras na inicial várias acusações infundadas ao livro de Alaor Barbosa. Vejamos, uma por uma. Primeira: Alaor Barbosa acusa Guimarães Rosa de não ser patriota. Esta seria uma mera opinião, e como tal não poderia ser invectivada nem considerada ofensiva, não passando, caso tivesse sido formulada, e se o fosse, de um erro de julgamento. Mas tal afirmação não foi expressa por Alaor Barbosa de forma alguma. O que Alaor Barbosa afirmou foi aquilo que toda a gente sabe e diz, isto é, que Guimarães Rosa era um homem avesso a questões políticas. “Nunca me deparei, nos textos de Guimarães Rosa, com alguma preocupação com o presente e o futuro do Brasil”. Ora, uma calma pesquisa nos livros de João Guimarães Rosa não encontrará, de fato, nenhuma palavra de preocupação com a vida política do Brasil. Ele mesmo, em prefácio famoso no livro Tutaméia, se proclamou avesso ao histórico, ao político, ao sociológico. Era uma posição dele. Tanto respeitada por Alaor Barbosa que, mesmo sendo diferente de Guimarães Rosa nesse ponto, admitiu Esboço da Contestação
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escrever um livro sobre ele. E com uma “pesada carga de elogios”, como disse Fábio Silvestre, o crítico paulista. Dizem as Autoras que João Guimarães Rosa foi um homem discreto, “tendo preferido evitar entrevistas sobre sua vida privada e posições políticas”. Ora, neste passo são as Autoras mesmo que confirmam a afirmativa de Alaor Barbosa de que ele não se manifestava sobre política. Não o disse Alaor Barbosa para denegrir a imagem de João Guimarães Rosa, mas para mostrar uma característica da personalidade do seu biografado e do seu modo de ser e atuar. Mesmo a atuação dele em favor de judeus necessitados de sair da Alemanha durante a 2ª Guerra Mundial (um fato que tem aflorado ultimamente sem suficiente documentação e que as Autoras referem na inicial, cometendo o erro de dizer que Guimarães Rosa era então embaixador do Brasil na Alemanha, coisa que não é verdade, pois, ao que se sabe, ele era vice-cônsul em Hamburgo) e o erro de dizer que ele foi homenageado em Israel em 1985, pois, ao que consta, homenageada foi a sua viúva Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, estando Rosa em 1985 morto havia 18 anos, foi também mencionada por Alaor no Prólogo do seu livro como ação meritória que lhe despertou admiração. E Alaor mencionou também a guarida oferecida (no livro Alaor Barbosa comete o engano de dizer que foi dada efetivamente) por Guimarães Rosa ao amigo Franklin de Oliveira, um crítico literário que muito o prestigiava, para se esconder no apartamento de Rosa durante os primeiros dias do Golpe Militar de 1964. Registre-se, de passagem, que Rosa no fundo apoiou o Golpe Militar de 1964, conforme demonstra uma carta dele ao amigo Mário Calábria, datada de 11 de abril de 1964, publicada no jornal O Globo do dia 2 de fevereiro último. Veja-se este trecho da carta – que somente agora em fevereiro tornou-se pública: Derradeiramente, tudo já vinha se empestando, de envenenar o ar, o chão a derreter-se, os horizontes dados ao diabo. Depois do comício de 13 de março, então, virou um presidencial desembestamento. (...) Jango estava “dopado” ou mais emburrecido ou louco? Graças a Deus. Porque “Quos Jupiter perdere vult, dementat prius...” Sabia eu que, sólido, São Paulo se achava moral e materialmente armado. E que Minas Gerais, inteira, ( 358
Textos Jurídicos (Para a constituinte de 1987-1988 e sobre outros temas)
...) vibrava tensa (...) Daí meu conturbado estado de espírito. Eu esperava uma guerra civil, caótica, miudinha, demorada, intestina, mesmo.
Apesar das suas profundas e radicais diferenças de pensamento com Guimarães Rosa (uma delas: Alaor Barbosa defendia um certo engajamento político do escritor, enquanto Guimarães Rosa, o que já foi assinalado, preconizava o alheamento e o distanciamento político do escritor), Alaor Barbosa nunca sentiu diminuída sua estima e seu respeito pessoal por João Guimarães Rosa, de quem se considerava e considera amigo. Por várias outras razões, principalmente de ordem cultural e política, expressas no Prólogo do seu livro, decidiu escrever a biografia de Rosa; e nela Alaor Barbosa procurou conferir a Rosa, como era natural, a devida dimensão e densidade à sua pessoa e à sua obra literária, cujos altíssimos méritos salienta iterativamente. Este é, isto sim, um ponto e circunstância merecedores de reconhecimento, elogios e agradecimentos da parte dos descendentes e parentes de João Guimarães Rosa. Na inicial, as Autoras ironizam a afirmação, contida na Contra-Notificação da Ré à Notificação das Autoras, meses atrás, de que o livro de Alaor Barbosa sobre Guimarães Rosa devia ter sido recebido com elogios. Acrescente-se, agora, que o livro devia ter sido recebido alvissareiramente, e com amizade e gratidão, gerando – isto sim, seria o normal – uma relação fraterna entre as filhas de Guimarães Rosa e Alaor Barbosa. O livro de Alaor Barbosa sobre Rosa aparece num período em que a obra de João Guimarães Rosa tem voltado a ser avaliada com restrições. O julgamento sobre ela tem se modificado. O que nela parecia original e assombroso vai se revelando, com o passar do tempo, menos bom e acertado. O respeitado escritor Carlos Heitor Cony disse isso anos atrás no livro As obras-primas que poucos leram (Editora Record, Rio de Janeiro/São Paulo,2005, págs. 31 e seguintes). Eis as palavras finais do texto de Cony: Guimarães Rosa e Grande sertão: veredas foram considerados gênio e obra-prima de forma abrupta. O público continua absorvendo a sua literatura, pois se trata de um autor oficial e oficializado. No entanto, muitos daqueles que no primeiro momento Esboço da Contestação
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viram em Guimarães Rosa o momento mais alto de nossa literatura, já estão voltando, por diferentes motivos, a Machado de Assis, a Graciliano Ramos, a José Lins do Rego, a Jorge Amado, a José de Alencar. Pouco a pouco, o impacto da obra do genial autor vai adquirindo o seu real contorno, grande o suficiente para ser um monumento de nossa língua, mas bem distante, talvez, do grande livro de um povo que ainda persegue o seu caminho e a sua afirmação.
Assim, a obra literária de Guimarães Rosa, muito contestada e subestimada (principalmente o romance Grande sertão: veredas) quando apareceu há 52 anos, vem sendo novamente posta em qüestão. Basta citar a visão crítica de um escritor e professor de Literatura residente em Brasília, FLÁVIO R. KOTHE, expressa no seu livro O cânone republicano II, editado pela Editora da Universidade de Brasília em 2004. Em longo trecho sobre João Guimarães Rosa, Flávio Kothe faz duras críticas a ele, quanto ao aspecto pessoal, e principalmente à sua obra. O texto, de 5 páginas, abre com este parágrafo, que lhe dá o tom e o resume, o que acontece também na frase final: Guimarães Rosa é o gênio de um só romance e de alguns contos canonizados, dos quais o mais conhecido é ”A terceira margem do rio”. Sempre se insiste em sua genialidade de poliglota, como se conhecer várias línguas não fosse uma condição primária para qualquer intelectual. Procura-se apresentá-lo como alguém acima dos partidos, mas de fato ele aderiu à ditadura Vargas, tendo se apresentado como voluntário na força pública durante a revolução constitucionalista” e, em 1946, ele passou a ser um assessor de confiança no gabinete de João Neves da Fontoura. Como diplomata e como intelectual, destacou-se por seu perfil conservador. Ele foi um autor muito conveniente ao período da ditadura militar, quando subiu aos píncaros da glória.
Depois de várias críticas, à obra de João Guimarães Rosa, afirma FLÁVIO KOTHE na frase final do seu artigo: Guimarães Rosa é um engodo
e um engano, tanto mais consagrado quanto mais equivocado é. 360
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Do ponto-de-vista censorial das Autoras, o livro de Flávio Kothe devia ser objeto de apreensão e expulso do mercado. Acresce observar que, além da reação crítica contrária que recomeça a sofrer, a obra literária de João Guimarães Rosa vem travando, há já algum tempo, a dura batalha da sobrevivência junto ao público leitor de livros. O número de leitores diminuiu muito nos últimos tempos. As reedições vão se tornando menos freqüentes. Mais: o vezo brasileiro, tão peculiarmente provinciano, de buscar na aprovação estrangeira a comprovação dos valores nacionais brasileiros, há muito tempo que não encontra mais apoio no caso de João Guimarães Rosa. As suas traduções na Europa e nos Estados Unidos – coordenadas por colegas do Ministério das Relações Exteriores do Brasil – já caíram no esquecimento. Registre-se que a tradução americana de Grande sertão: veredas, reprovada por ele mesmo como trabalho malfeito, não obteve repercussão alguma entre os leitores americanos, tendo sido vista, em geral, como uma história de “western” pouco interessante. No Suplemento Literário JB IDÉIAS, de 5 de janeiro deste ano de 2008, LÍGIA CHIAPPINI, Doutora em Literatura Brasileira que atua na Alemanha, afirma sobre a atual posição de João Guimarães Rosa na Alemanha: João Guimarães Rosa, apesar de traduzido em alemão há décadas, não é reeditado há tempo e é desconhecido da maior parte dos estudiosos. Neste contexto, bem desfavorável à obra de Guimarães Rosa, o livro de Alaor Barbosa aparece numa espécie de contra-mão da tendência predominante, que é a de negar a genialidade e mesmo o caráter extraordinário do valor da obra de Rosa, antes proclamados. Mais uma vez Alaor Barbosa demonstra a sua independência de espírito, pensando os próprios pensamentos e com os próprios valores, sem atentar a tendências gerais. Em 1959, repita-se, Alaor Barbosa se ergueu, com um artigo publicado no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, em defesa da obra literária de João Guimarães Rosa, que fora objeto de censura por parte de um jovem – e valoroso – poeta carioca, Carlos Fernando Fortes de Almeida, em artigo anteriormente publicado no mesmo Suplemento. Alaor Barbosa foi acusado, então, maliciosamente, de ser um patriota, por defender um escritor que ele considerava essencialmente brasileiro. Esse artigo de Alaor Barbosa, em defesa – aliás veemente Esboço da Contestação
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– da obra de João Guimarães Rosa, encontra-se reproduzido no livro de Alaor, Epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa, sob o título “Um diálogo sobre a grande epopéia”, nas págs, 127 e seguintes; e está programado para o 2º tomo do livro objeto desta ação. Agora, quando voltam a aparecer censuras acerbas à obra de Rosa, é o mesmo Alaor Barbosa que vem represtigiar e revalorizar o grande escritor mineiro, com um livro que, repita-se, devia ser saudado pela família de Rosa como trabalho de um amigo verdadeiro assim da obra literária como da pessoa de João Guimarães Rosa. A QUESTÃO DAS CITAÇÕES As citações feitas por Alaor Barbosa na sua biografia de João Guimarães Rosa, de trechos de vários livros, foram feitas de acordo com a lei e as normas da ABNT. Diz a Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (Lei de Direitos Autorais): Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra. Pode-se invocar também, da mesma e do mesmo art. 46, o inciso VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obra preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Ora, as citações feitas no livro de Alaor Barbosa do livro da 1ª Autora, bem como de vários outros livros, foram feitas: a) para fins de estudo e informação; b) na medida justificada para o fim a atingir. A lei não determina em que medida se pode citar. Ela não fixa limites quantitativos às citações de textos alheios: ela deixa a quantidade 362
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e o limite de linhas a cargo do prudente arbítrio de quem efetua as citações. No livro objeto desta ação, o autor fez as citações com prudente arbítrio e auto-limitada liberdade: procurou restringir as citações a extensões não exageradas, atento que estava às normas legais se técnicas reguladoras do seu procedimento. Citação com fins de estudo (no sentido lato desta palavra, evidentemente) não podem ser acoimadas de ilegais. O livro objeto desta ação é, por este aspecto, inatacável. As citações que Alaor Barbosa faz da coletânea de documentos da 1ª Autora se dividem em várias classes ou espécies. A maioria é de citações de CARTAS AO PAI E A AMIGOS, escritas por João Guimarães Rosa ao longo de alguns anos, mormente de 1945 a 1967. Visto que não se encontram em algum arquivo ou biblioteca, foram transcritas da mencionada coletânea de documentos editada pela sua filha. A mesma coisa deve ser dita da citação do discurso de Rosa na formatura em medicina. Isto tudo pode ser verificado mediante exame pericial, requerido ao final. De textos de autoria propriamente da 1ª Autora, são em menor número as citações, inclusive uma epígrafe, a mais longa, que abre a parte propriamente da biografia, e que também está suprimida no texto reelaborado por Alaor Barbosa para a 2ª edição do seu livro. No item XXXI da inicial, as Autoras se referem a um anexo (n. 11) em que relacionam as páginas do livro de Alaor Barbosa com citações de trechos do volume de coletânea de documentos publicado com o título RELEMBRAMENTOS: JOÃO GUIMARÃES ROSA, MEU PAI. Citações que as AA. acusam de violar o art. 29 da Lei n. 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais). Diz ela que são 103 transcrições. São 82, salvo erro de contagem. Repita-se: TODAS AS CITAÇÕES, INCLUSIVE, É CLARO, AS DE TEXTOS DE LIVROS DE OUTROS AUTORES, FORAM FEITAS EM FORMA ESTRITAMENTE LEGAL, COM A INDICAÇÃO DAS FONTES E LUGAR DE EDIÇÃO DA OBRA CITADA, DE ACORDO COM AS NORMAS DA ABNT, com respeito, pois, ao crédito. Este é um ponto em que Alaor Barbosa, pode a Requerida testemunhá-lo, responsável que é pela edição do livro, se esmerou com muito zelo e cuidado. Esboço da Contestação
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Citações de textos de João Guimarães Rosa em alguns livros A alguém desavisado ou pouco familiar ao mundo dos livros, pode parecer grande o número – 82 – de citações do volume de documentos de autoria da 1ª Autora. Mas a própria bibliografia sobre a obra de João Guimarães Rosa se incumbe de desfazer esse engano e ilusão. Refira-se, por exemplo, o livro A CULTURA POPULAR EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS, de LEONARDO ARROYO (Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1984): livro clássico no gênero, com texto (incluídas as notas explicativas) de 284 páginas, contém 693 (seiscentas e noventa e três) citações de textos (não computadas as citações feitas nas Notas aos capítulos, que não são poucas), de João Guimarães Rosa, mais de 90% (noventa por cento, com certeza) extraídas do livro Grande sertão veredas. Mencione-se também, o livro JGR: metafísica do grande sertão, de Francis Utéza (Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994): existem nele, numa contagem que provavelmente errou para menos, 1.167 (mil e cento e dezessete) transcrições de textos de João Guimarães Rosa, na grande maioria do livro Grande sertão: veredas. Este número se refere às citações feitas em destaque: não incluem, pois, aquelas, também numerosas, disseminadas e integradas no texto, de mais difícil contagem. Refira-se também o livro O ROTEIRO DE DEUS (Editora Mandarim, São Paulo, 1996), escrito por Heloísa Vilhena de Araújo (que é embaixadora e escreveu um outro livro contando a trajetória de Guimarães Rosa como diplomata), uma das mais competentes e justamente respeitadas comentaristas e analistas da obra de João Guimarães Rosa. Nesse livro, ocorrem citações de livros de Guimarães Rosa em surpreendente, estonteante abundância. MAIS DE 700 (SETECENTAS), em um volume de 554 páginas, afora as citações disseminadas ou integradas no texto, cujo número é enorme também. Uma breve amostragem revela: uma das citações, na página 335, tem 36 linhas. Um bom número contém mais de 20 linhas. Em duas páginas (não as únicas com este tipo de ocorrência), de 164 a 165, APARECEM 15 (QUINZE) CITAÇÕES DE TRECHOS DA OBRA DE ROSA, o que dá uma média de 7 (sete) citações e meia por página. Na pág. 51, aparecem 2 citações, uma com 6 (seis) linhas, a outra com 25 364
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(vinte e cinco). Estas referências são feitas apenas exemplificativamente. Mais: nas páginas 68 e 69, em uma página e meia, ocorrem 14 (catorze) citações. E são citações, na imensa maioria, de um livro só, Grande sertão: veredas. Somente no ensaio final aparecem citações do livro de Rosa Corpo de baile. Existe um outro volume publicado sobre a obra literária de Rosa, intitulado VEREDAS DE ROSA, com textos de numerosos autores, editado em Belo Horizonte pela PUC de Minas Gerais. Há textos, em que, em menos de 3 páginas, aparecem 9 citações de textos de Rosa, alguns bem longos. É o caso do texto “Veredas do Grande sertão: “Às margens da alegria”/ À (s) margem (ns) das palavras”, de Adriano Bitarães Netto. O texto “Nada e a nossa contribuição’, de José Alcibíades Rezende Frota, de 10 páginas, é todo ele citações literais de Rosa. No texto “UMA LEITURA DE GRANDE SERTÃO; VEREDAS”, DE 18 PÁGINAS, ocorrem 50 (cinqüenta) TRANSCRIÇÕES DE TEXTOS DE GUIMARÃES ROSA. No volume A astúcia das palavras, organizado por Lauro Belchior Mendes e Luiz Cláudio Vieira de Oliveira, e editado pela Universidade Federal de Minas Gerais, pode ser citado, apenas EXEMPLIFICATIVAMENTE também, o texto “O tema da mãe terrível em João Guimarães Rosa”, de Ana Maria de Almeida. São 11 páginas, com 12 citações, uma das quais com 58 linhas. Atenção: 58 (CINQÜENTA E OITO) LINHAS numa citação contínua. O livro Guimarães Rosa, de Assis Brasil, editado pela Organização Simões em 1969, além de numerosas, incontáveis citações de textos de João Guimarães Rosa, contém uma ANTOLOGIA, da página 121 à página 147, de textos de Rosa. Da vasta e numerosa bibliografia já existente sobre a obra de João Guimarães Rosa, constam, também – e deve ser aqui lembrado como verdadeiro documento– o livro SAGARANA EMOTIVA, de Paulo Dantas (Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1975), que contém TODAS AS CARTAS QUE LHE ESCREVEU JOÃO GUIMARÃES ROSA. Saliente-se: nem são citações de textos de Rosa, mas textos completos de cartas particulares escritas por ele. E cuja divulgação em livro não foi nunca objeto de ação judicial por parte das Autoras. Esboço da Contestação
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Os números das citações de textos de livros de João Guimarães Rosa aqui referidos falam por si mesmos. Todos os textos de comentários sobre Guimarães Rosa até hoje editados são abundantíssimos em citações do que ele escreveu. A Requerida mencionou apenas alguns. Se fosse mencionar não todos, mas um bom número, não haveria espaço suficiente nesta peça contestatória, a qual, por sua natureza, não comporta essa espécie de prolongamento. Mas aqueles que foram referidos pela Requerida são suficientes para demonstrar que Alaor Barbosa no seu livro manteve-se criteriosamente dentro dos limites legais ao efetuar as citações de textos de livros alheios, entre os quais o do volume de documentos da 1ª Autora. COMPARADO COM OS LIVROS REFERIDOS ACIMA, O LIVRO DE ALAOR BARBOSA pode ser considerado até mesmo MODERADO NO NÚMERO DE CITAÇÕES. Embora essas citações (em número de 82, salvo erro de contagem, e não 103, conforme dizem as Autoras) não sejam, conforme demonstrado, excessivas, e embora tenham sido feitas de acordo com os limites quantitativos legais de cada citação, preferiu ulteriormente o Autor, Alaor Barbosa, conforme comunicou à Ré, efetuar a supressão dos trechos julgados excessivos. Assim, a fim de dirimir dúvidas e atalhar restrições ou censuras, e, é claro, por causa do desejo e propósito de ver o seu livro totalmente escoimado de citações de livro de uma pessoa que tem demonstrado a mais violenta animadversão contra ele, realizou, mediante um trabalho intensivo de algumas semanas, durante o mês de março último, um trabalho paciente de expungir do texto do seu livro as citações que pudessem ser extirpadas. Trabalho concluído com total êxito. Livre das citações acusadas de excessivas, o livro de Alaor Barbosa melhorou consideravelmente. Ao invés de perder substância e peso, ganhou. Efetuando os cortes das citações, demonstrou o autor do livro Sinfonia Minas Gerais que as citações das obras da 1ª Autora e algumas de terceiros, nele constantes, não lhe eram indispensáveis. Em processo, atualmente, de reedição sem tais citações, o livro existe, subsiste, mantém-se no seu ser, íntegro e válido. Por que a perseguição ao livro de Alaor Barbosa? Por que, dentre tantos livros que citaram Guimarães Rosa, escolheram as Autoras o de Alaor Barbosa, não por causa de citações 366
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de livros desse escritor, mas por causa de citações do volume de documentos publicado por uma filha dele? As Autoras evidentemente obedecem a outras motivações, que não o zelo por direitos autorais e pela boa fama de João Guimarães Rosa jamais atingida e sempre preservada e defendida no livro de Alaor Barbosa: o interesse comercial de “proteger” o volume de documentos de autoria da 1ª Autora, que as Autoras pretendiam reeditar, e afinal reeditaram, e, naturalmente, o interesse e intento de obter indenização financeira aos inverídicos danos morais alegados. Isto se chama, em Direito, “locupletar-se à custa alheia”. Antiga e velha prática que os meios forenses e judiciários conhecem muito bem e com os quais não se deixam embair para servir de instrumento desses odiosos propósitos. O interesse em afastar qualquer livro que possa concorrer com a coletânea de documentos da 1ª Autora –, o item XXXVII da inicial explicita-o bem. Fala-se aí nos “pesados investimentos” realizados pela 2ª Autora para lançar nova edição do livro-coletânea da 1ª Autora. Mas, ao contrário do que diz o item XXXVIII, em vez de prejudicar a obra da 1ª Autora agora relançada, o livro de Alaor Barbosa o valoriza sobremaneira, na medida em que revela a existência, nele, de documentos importantes – documentos que Alaor Barbosa foi lá buscar na elaboração do seu próprio livro. Os itens de n. XXXIX a XLII da inicial não contém relação e pertinência com a matéria ora em causa, referindo-se a casos diferentes. As citações em textos jurídicos e judiciários É conveniente e oportuno lembrar a V. Exa. que as pessoas que labutam profissionalmente com a ciência do Direito estão muito afeitas e familiarizadas com o fenômeno, o hábito, a necessidade das citações de textos alheios. Não há advogado ou juiz ou membro do Ministério Público, ou assessor jurídico, que, ao elaborar um trabalho de pensamento jurídico, não cite abundantemente outros autores. O Direito é uma ciência fundada em citações: citações de pensamentos doutrinários, citações de decisões jurisprudenciais e, basicamente, citações de textos legais. O item XLVI da inicial já foi cabalmente respondido pela Requerida. Não existe obrigação alguma de pedir alguém autorização à família daquele que esse alguém intenciona biografar. Biografia não depende de autorização prévia. Esboço da Contestação
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O item XLVII da inicial, que invoca mais uma vez o Art. 20 do Código Civil, também já foi respondido de modo suficiente. A interpretação necessária e correta, segundo as melhores lições de hermenêutica até hoje elaboradas, aceitas e consagradas, conduzem à conclusão de que para se escrever biografia de alguém não há necessidade de autorização, ou prévia ou posterior. O item XLVIII invoca a Constituição Federal no seu art. 5º, inciso X, o qual, ao ver das Autoras, impede as “já famosas biografias não autorizadas”. Não, biografia não depende de autorização prévia. O que estabelece a Constituição, no inciso X do art. 5º, é o dever de se respeitar a boa fama e a honra das pessoas. Invioláveis, diz a Constituição, são a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. O livro de Alaor Barbosa não violou esses direitos. Portanto, é insusceptível de censura posterior, como o era de censura prévia. Visto que não violou qualquer daqueles direitos, não sujeita o seu autor a sanção alguma. Da jurisprudência sobre essa matéria O item XLIX da inicial afirma que “Os tribunais de nosso país têm sido unânimes ao reconhecer o direito dos herdeiros de zelarem pela honra e reputação de seus parentes falecidos, não por transferência de direitos da personalidade, mas por direito próprio”. E cita decisões. A verdade é outra. Ainda não foi construída pela justiça brasileira uma jurisprudência uniforme ou dominante nessa matéria. A matéria é nova. O Código Civil é uma lei nova, em vigor há menos de 6 anos. Ainda não houve nem tempo nem número de causas suficiente, e com decisões definitivas, para se ter dele um panorama jurisprudencial superior a dúvidas e perplexidades. A respeito do Art. 20, a doutrina, sim, já vem se tornando mais afirmativa, e no sentido da rejeição da interpretação que quer o direito de proibir. No plano da jurisprudência, a Súmula 279, do Conselho de Justiça Federal, constitui um certo avanço hermenêutico. Por causa da incipiência da nossa jurisprudência a respeito dessa matéria foi que o Deputado ANTÔNIO PALOCCI houve por bem de tomar a iniciativa de apresentar o seu projeto na Câmara dos 368
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Deputados, alterando o Artt. 20 do Código Civil. Espera-se que, convertido em lei, dirima as dúvidas atuais. Esta ação proporciona oportunidade e ensejo – que precisam ser aproveitados – para que se comece, de modo definitivo e racional, a construir a devida jurisprudência relativa a esta questão. Em nenhum dos casos invocados pela inicial como precedentes, ocorre alguma semelhança ou analogia com o caso presente. Naqueles casos, parte-se da premissa de ter havido indiscrições na biografia relativas ao biografado. Ora, o livro de Alaor Barbosa, editado pela Requerida, prima pela discrição e pelo respeito à imagem e à respeitabilidade do homem e escritor de João Guimarães Rosa. Assim, o texto transcrito de ADRIANO DE CUPIS, na inicial, não contém pertinência com o caso presente. O item LI afirma: “A família de João Guimarães Rosa vem zelando com afinco pela preservação de sua imagem e de sua obra, desde a sua morte, evitando, assim, que abusos fossem cometidos, causando danos quiçá irreparáveis à imagem deixada pelo respeitado escritor”. Quanto a isso, são notórios, em todo o Brasil, os atos praticados por uma parte da família de João Guimarães Rosa no sentido de vedar até mesmo a publicação de textos de autoria dele em antologia e a divulgação de escritos dele ainda inéditos. O item LII da inicial reporta-se a um caso absolutamente diferente do desta ação, por tratar-se de uma foto-biografia de um ator de televisão. Que semelhança pode haver entre um livro a respeito de um ator de televisão com um livro literariamente sério, culturalmente relevante, a respeito de um escritor da estatura de João Guimarães Rosa? Que citação infeliz! Depõe contra as Autoras confundir um criador do porte de João Guimarães Rosa com um ator de televisão que naturalmente tem o seu valor próprio, mas que é valor de outra natureza. As questões focalizadas na biografia objeto desta ação pertencem ao mundo da cultura e não ao universo sensacionalista da televisão. Em que ponto o livro de Alaor Barbosa abordou “as potencialidades de valor econômico da fama” do seu biografado? A comparação feita neste passo da inicial pelas AA. é uma comparação deprimente e, ela sim, desrespeitosa para com a memória de João Guimarães Rosa. A Esboço da Contestação
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transcrição de parte do “corpo do acórdão” é impertinente, inaceitável, absurda. O item LIV da inicial refere-se à questão judicial relacionada com a biografia do jogador de futebol Garrincha, de autoria do respeitado biógrafo Rui Castro. E cita trecho do relatório do ilustre Desor. Sérgio Cavalieri em recurso de Agravo Regimental em mandado de segurança. As palavras citadas não se aplicam em nada ao caso presente. O trecho afirma a necessidade de eqüiponderação entre dois preceitos da Constituição Federal, o do inciso IX e o do inciso X do Art. da Constituição Federal, referindo-se ao fato de que um condiciona o outro. E afirma o direito da pessoa à solidão, à privacidade, à tranqüilidade, à paz, à tomada de decisões na esfera da sua privacidade. Perfeito. Mas que tem essa ponderação que ver com o caso da biografia de Guimarães Rosa, editada pela Requerida, se, em momento algum, em nenhum tópico, desrespeita aqueles direitos? As afirmações do texto citado são verdades gerais, teóricas, filosófico-jurídicas, e não se aplicam aos fatos da presente ação. O item LVI da inicial cita, erroneamente, trecho de acórdão – não identificado, nem mesmo quanto ao autor – proferido, segundo afirma, “pela Colenda Câmara” (não diz qual), do caso judicial que envolveu o mesmo livro sobre Garrincha. Depois de afirmar que o trecho se aplica a João Guimarães Rosa, o que não é verdade, afirma o óbvio: que a lei tutela a imagem, a honra e a intimidade das pessoas mesmo depois da morte. E pergunta, impertinentemente: “Quem gostaria que fosse divulgado que é filho de um beberrão, de um irresponsável e mulherengo? Quem não se empenharia em impedir que a memória do seu falecido pai fosse assim conspurcada?” Ora, esses adjetivos depreciativos empregados pelas Autoras, no argumento apresentado em forma de perguntas, não podem ser, de modo algum, associados à personalidade de João Guimarães Rosa. Este respeitado escritor não foi um beberrão, um irresponsável, e, que se saiba, mulherengo. Foi um homem devotado, até à mais funda raiz da alma, ao trabalho. E vêm as Autoras desta ação, uma delas sua própria filha, fazer essa estapafúrdia e desrespeitosa analogia de Guimarães Rosa com Garrincha? Diz o item LVIII da inicial que “a jurisprudência é farta e tranqüila, no sentido de que podem (e devem) os familiares de pessoa famosa já 370
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falecida zelar pela proteção à intimidade, à honra e à imagem de seu parente falecido, por direito próprio”. Ao contrário: o que os casos levados aos diversos foros do País têm demonstrado é que a jurisprudência nessa matéria ainda se encontra em estado de incipiência, dependente, ainda, da ocorrência de julgados definitivos e em maior número. Por enquanto, nem é farta nem tranqüila a jurisprudência; pode-se dizer que é inexistente. Opiniões exaradas em votos nos tribunais não constituem jurisprudência, que consiste em sentenças e acórdãos. Ora, sentenças e acórdãos ainda não foram proferidos sobre essa matéria em quantidade bastante a configurar uma jurisprudência assentada. Dos casos notórios, pode-se registrar que o caso da biografia de ROBERTO CARLOS (não referido na inicial) ainda pende de decisão definitiva. De fato, a Contestante foi notificada, extrajudicialmente, meses atrás, pelas Autoras a “retirar de mercado todos os exemplares do livro Sinfonia de (sic) Minas Gerais – a vida e a literatura de João Guimarães Rosa”, de autoria de ALAOR BARBOSA’, e “abster-se de lançar outros Tomos integrantes da referida obra, ou mesmo qualquer outra espécie de publicação a respeito da vida e da obra de JOÃO GUIMARÃES ROSA”. Notificação extrajudicial não é apta a produzir efeitos jurídicos. A notificação judicial, sim, prevista no art. 867 e seguintes do Código de Processo Civil. Mas por que as Autoras não fizeram notificação judicial? Porque, nos termos do art. 869 do CPC, o juiz podia indeferi-la. Ora, conforme já exaustivamente demonstrado, as Autoras não tinham legitimidade para agir contra a Ré. A Ré respondeu a Notificação, defendendo, em síntese, o direito do Autor de escrever o livro e o dela, Ré, de editá-lo, nos termos assecuratórios da Constituição Federal e da legislação ordinária pertinente, principalmente o Código Civil (art. 20 e respectivo parágrafo único). As Autoras, na inicial da presente ação, qualificam de arrogante a Contra-Notificação da Ré, por haver nela a afirmação de que as filhas de João Guimarães Rosa deviam se sentir gratas pelo livro de Alaor Barbosa. E isto é verdade. Como já se disse em outra parte desta Contestação, o livro de Alaor Barbosa aparece como uma defesa da obra literária de Esboço da Contestação
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João Guimarães Rosa, numa fase em que ela vem sofrendo restrições críticas, com diminuição simultânea na sua penetração no mercado livreiro. Mesmo apesar das comemorações que vêm sendo feitas ultimamente a propósito dos aniversários dos seus livros. O livro de Alaor Barbosa, editado pela Ré, é um acontecimento positivo na defesa e difusão da obra literária de João Guimarães Rosa. Aprimoramento de um livro anterior: A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa, editado em Goiânia em 1981. Dele nasceu o livro objeto desta ação. Diz a inicial que Alaor Barbosa, para o escrever e publicar, nunca se comunicou com as Autoras. Com a 1ª Autora, tentou comunicar-se duas vezes. Em 16 de outubro de 2003, escreveu longa carta (doc. junto) à 1ª Autora, em busca de informações que o ajudassem na elaboração do livro, que já ia bem adiantado, mas se ressentia de algumas lacunas. Nessa carta, comunicou que o seu livro seria um aprimoramento do livro anteriormente intitulado A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa. Em dúvida se ela ainda tinha o exemplar do livro, mandou-lhe um, com atenciosa dedicatória. Ante a demora, excessiva, em receber resposta, alguns meses depois telefonou à filha de Rosa e lhe reexpôs o caso: estava aumentando seu livro sobre Rosa e lhe pedia algumas informações. Filhos ignoram a vida dos pais. A filha de Rosa não lhe esclareceu nem um dos pontos a respeito dos quais lhe perguntou; e quando ele disse a ela que visitara várias vezes seu pai no gabinete de trabalho no Itamaraty, ela lhe disse. “O senhor nunca diga a ninguém que o Embaixador João Guimarães Rosa, um homem ocupadíssimo, perdia tempo, horas e horas conforme o senhor está dizendo, em conversar com um rapazinho anônimo. Se o senhor disser isso em público, passará por mentiroso”. Alaor Barbosa conta que lhe respondeu: “Só tem um pormenor, Dona Vilma: o que eu estou lhe dizendo é verdade”. Alaor Barbosa não procurou novo contacto com essa filha de Rosa. Quando o livro ficou pronto, mandou-lhe um exemplar, também com atenciosa dedicatória. No que diz ter sido manifestação de um resto de ingenuidade, visando a informações complementares da vida do pai, propôs-lhe escrever um perfil biográfico dela. Não recebeu resposta, a não ser, algum tempo depois, a Notificação Extrajudicial dirigida à Ré para tirar o livro das livrarias e prestar contas das vendas já feitas. 372
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Ação sem objeto No mês de março, de volta de viagem ao Rio, a Ré foi comunicada por Alaor Barbosa de que decidira efetuar mudanças no seu livro, principalmente eliminando as citações julgadas excessivas. A Ré acolheu a idéia e decidiu eliminar substituir a capa por outra, sem a imagem fotográfica do biografado. A Ré então comunicou essa decisão e providências aos advogados signatários da Notificação Extrajudicial. Desde então, mês de abril, o processo de reeditoração vem sendo feito. Processo lento por natureza. Mas mesmo enquanto não se concluía a reeditoração, a Ré entrou a diligenciar no sentido de retirar do mercado os exemplares da primeira edição, a fim de os substituir pelos da segunda impressão. Convém assinalar, mais uma vez, que essa reelaboração demonstrou que o livro de Alaor Barbosa, escoimado das citações julgadas excessivas, se manteve íntegro e ainda melhor. Por conseguinte, o livro objeto desta ação foi profundamente alterado, repita-se. Nele não se encontram, do livro da 1ª Autora, senão raras citações. E as citações dos livros de outros autores – Vicente Guimarães, Heloísa Vilhena de Araújo, Josué Montello, Afonso Arinos de Melo Franco e alguns mais – foram reduzidas ao mínimo indispensável. O livro tornou-se outro, enriquecido inclusive com informações remetidas, espontaneamente, de Minas Gerais, a Alaor Barbosa, por pessoas que leram o livro e conhecem o assunto. Pedidos de improcedências Assim, MM. Juiz, é esta para, contestando a ação em todos os seus termos, pedir a improcedência de cada um dos pedidos, com a condenação das Autoras em todos os ônus da sucumbência. Da litigância de má-fé Desprovidas de qualquer direito, as Autoras ajuizaram esta ação movidas por interesses inconfessáveis e por mesquinharia, em posição e atitude de LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ, e por isso estão sujeitas à sanção do Art. 16 e seguintes do CPC, o que a Ré desde já pede a V. Exa. Também desde logo protesta pela produção de todas as provas admitidas em Direito, entre as quais a juntada ulterior de documentos, Esboço da Contestação
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e, evidentemente, provas testemunhais e a prova pericial, as quais ficam desde já requeridas. Relaciona as seguintes testemunhas, que deverão ser INTIMADAS: CARLOS FERNANDO FORTES DE ALMEIDA, brasileiro, casado, médico psiquiatra, residente e domiciliado na cidade do Rio de Janeiro, RJ, na Avenida São Sebastião n. 308, Urca. CARLOS HEITOR CONY, brasileiro, casado, escritor e jornalista, residente na cidade do Rio de Janeiro, com escritório na Rua do Catete (Largo do Machado) n. 311, sala 814, Catete. ASSIS BRASIL, brasileiro, casado, escritor e jornalista, residente e domiciliado na cidade do Rio de Janeiro/RJ, na Rua Corrêa Dutra, 99, COB. 03, Catete/Flamengo, CEP 22 210-050. ARNALDO JABOR, brasileiro, casado, cineasta, jornalista, escritor, residente na cidade de São Paulo, SP, na .... WILLIAM AGEL DE MELO, brasileiro, separado judicialmente, diplomata e escritor, residente e domiciliado na cidade de Goiânia/G0, na Rua 90 n. DOMINGOS FÉLIX DE SOUZA, brasileiro, casado, professor universitário aposentado, residente e domiciliado em Goiânia, Capital do Estado de Goiás, na Rua....... OSCAR DIAS, brasileiro, casado, advogado e jornalista, residente e domiciliado em Goiânia, Capital do Estado de Goiás, na Rua ..... FRANCISCO ALVIM, brasileiro, casado, diplomata e poeta, residente e domiciliado na cidade de Brasília/DF, na..... De Brasília para o Rio de Janeiro, 12 de setembro de 2008. Anexos 1) Um projeto oportuno: o Projeto Antônio Palocci Registre-se, por oportuno e adequado ao caso, que foi certamente motivado pelas ocorrências de tentativas de se dar ao Art. 20 do Código Civil a interpretação errônea acima apontada (que o converteria, repita-se, em norma inconstitucional), que o Exmº Sr. Deputado Federal pelo Estado de São Paulo, ANTÔNIO PALOCCI, ex-Ministro de Estado da Fazenda, apresentou, meses atrás, o Projeto de Lei n. 3.378, o qual “dispõe sobre alteração do art. 20 da Lei Federal 374
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n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002” (Código Civil), “visando garantir a liberdade de expressão e informação”. Eis o novo texto que poderá vir a ser o do Art. 20 do Código Civil: “Art. 20. Salvo se autorizada ou se necessária à manutenção da ordem pública, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingir a honra, a boa fama ou a respeitabilidade. PARÁGRAFO ÚNICO. É livre a divulgação da imagem e de informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública ou cuja trajetória pessoal ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimento de interesse da coletividade”. Como se vê, o Projeto do Deputado ANTÔNIO PALOCCI, dando nova redação ao caput do Art. 20 do Código Civil e substituindo-lhe o parágrafo único, torna explícito no direito positivo nacional aquilo que atualmente tem sido objeto de construção doutrinária. Como se verifica da leitura do PROJETO PALOCCI, o texto nele proposto retira do caput do Art. 20 as palavras “divulgação de escritos, “a transmissão da palavra” e “a publicação” (da imagem de uma pessoa); e no parágrafo único, além de suprimir a extensão da faculdade conferida no caput ao cônjuge, aos ascendentes e aos descendentes do morto ou do ausente, afirma e estatui, de forma claríssima, a liberdade de divulgação da imagem e de informações biográficas sobre pessoas “de notoriedade pública ou cuja trajetória pessoal ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimento de interesse da coletividade. O PROJETO PALOCCI está tendo rápida tramitação e deverá ser aprovado logo na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, caso em que não terá de ser votado em Plenário. Assim, é bem provável que seja logo remetido Senado Federal, onde se espera que terá tramitação igualmente rápida. Em conseqüência, problemas iguais ou semelhantes ao da presente ação não mais poderão acontecer no Brasil, que se verá livre de tentativas obscurantistas de cerceamento do direito de livre expressão do pensamento. 2) Quem é Alaor Barbosa Para melhor se entender este caso, uma breve informação biográfica sobre Alaor Barbosa se mostrará bastante útil. Esboço da Contestação
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A Requerida, quando se decidiu a editar o livro objeto desta ação, já editara dois outros livros de Alaor Barbosa: o romance Uma lenda (2004) e o livro de ensaios, O romance regionalista brasileiro (2006). E o fizera por conhecê-lo muito, de nome e prestígio. Alaor Barbosa, natural de Morrinhos, Estado de Goiás, estreou literariamente em 1960, no Rio de Janeiro, ao tempo de estudante e jornalista profissional, com o livro Monteiro Lobato das Crianças A este livro sucederam os livros: Cidade do tempo (contos, 1964), dedicado, em retribuição, a João Guimarães Rosa; Picumãs (contos, 1966); Confissões de Goiás (ensaios e crônicas, 1968); Campo e noite (contos, 1971); O exílio e a glória (romance, 1980); A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa (estudo, 1981); Os rios da coragem (contos, 1983); Pequena história da literatura goiana (1984); Praça da liberdade (contos, 1985); Meu diário da Constituinte (1990); Memórias do nego-dado Bertolino d’Abadia (romance, 1999); Uma lenda (romance, 2004); O romance regionalista brasileiro (2006); Contos e novelas reunidos (2006). Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Goiás, de 1974 a 1978. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, do Rio de Janeiro, desde 1975. Membro da Academia Goiana de Letras desde 1979 (eleito por unanimidade). Cadeira 33. Ex-Procurador Autárquico Federal (do INCRA). Consultor Legislativo do Senado Federal (aposentado em 1993). Membro da Associação Nacional de Escritores, de Brasília, DF. Membro da UBE (União Brasileira de Escritores), de São Paulo. Membro da UBE de Goiás. Alaor Barbosa, é preciso que V. Exa. o saiba, é um homem de 68 anos de idade. É diabético há 18 anos. Já se submeteu a uma cirurgia cardiológica, na qual recebeu uma ponte safena e uma ponte mamária. Cidadão respeitado. Tem três filhos e quatro netas, em véspera de lhe nascer a quinta neta. 3) Quer e deve a Ré, a título e com o objetivo de dar a V. Exa. melhor conhecimento da personalidade do autor do livro editado pela Ré objeto desta ação.
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Para tanto, reproduz trechos de artigos surgidos na imprensa após a publicação do seu livro e depois da notícia de que havia a intenção das herdeiras de João Guimarães Rosa de proibir-lhe a circulação. Primeiro, o artigo-crônica escrito pelo jornalista IBERÊ MONTEIRO, de Goiânia, no mês de março último, intitulado ALAOR, MEDALHA DE HONRA Conheci Alaor Barbosa nos seus 16 anos de idade. Um fenômeno de talento, disciplina, dedicação ao livro, à música, à pintura, à escultura, ao cinema, ao teatro, a todas as expressões artísticas e culturais criadas pelas pessoas humanas. Na efervescência dos Anos Dourados no Rio de Janeiro, Alaor Barbosa passou a ser nossa referência no saber – e o nosso orgulho. Primeiro, no Serviço de Utilidade Pública da extraordinária Rádio Jornal do Brasil. Depois, no caderno B do JB. (...) Tinha atividade intelectual incessante. Freqüentava rodas do Cinema Novo, do Centro Popular de Cultura da UNE, dos teatros populares, das mesas de bossa nova. Quando nós, goianos, queríamos contar vantagem, dizíamos ser amigos íntimos de um jovem conterrâneo badalado em artigo na Tribuna da Imprensa pelo então candidato a governador do Rio, Carlos Lacerda, que dizia: “Tive o prazer de ser entrevistado ontem por um jovem colega jornalista, Alaor Barbosa, do JB, cuja inteligência é superior à inteligência média dos políticos brasileiros. (...) Que glória para seus amigos! A partir daí, os goianos do Rio passaram a carregar no peito a Medalha de Honra Alaor Barbosa – símbolo do nosso sucesso cultural. (...) Vilma Guimarães Rosa precisa conhecer o caráter, a sinceridade, a integridade moral, a grandeza espiritual, a veneração que o escritor Alaor Barbosa tem pela alma do seu pai. (...) Alaor, meu amigo, meu irmão de alma, minha referência de Honra ao Mérito, obrigado por ser você, você. 4) Atos interditórios das herdeiras de Guimarães Rosa É por demais conhecido, em todo o Brasil, o fato de que a 1ª Autora, com a sua irmã, têm criado sucessivos embaraços à divulgação e conhecimento da obra de seu pai. Pouco tempo – cerca de dois, três Esboço da Contestação
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anos – atrás, impediram que se reproduzisse, no livro-antologia OS CEM MELHORES CONTOS DA LITERATURA BRASILEIRA (salvo engano quanto ao título exato), um conto de João Guimarães Rosa. Há poucos meses, tentaram impedir que a Editora Abril, na revista Bravo!, que edita em São Paulo, publicasse trechos do diário escrito por João Guimarães Rosa no período em que morou, como cônsul-adjunto, na cidade de Hamburgo, na Alemanha. 5) O LIVRO OBJETO DESTA AÇÃO PERANTE A CRÍTICA LITERÁRIA Traga-se à colação um outro artigo de MANOEL HYGINO DOS SANTOS, também estampado no jornal Hoje em Dia, sobre um outro livro de Alaor Barbosa, O romance regionalista brasileiro, em que existe um capítulo sobre o romance de João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas. Diz MANOEL HYGINO DOS SANTOS: Alaor Barbosa lança luzes sobre o regionalismo, não circunscrito a determinado pedaço do território ou a meia dúzia de autores nordestinos. Regionalismo é muito mais amplo e importante, permitindo formar idéias e conceitos sobre o homem deste país. (...) O Brasil é imenso e, entre os regionalistas arrolados estão José de Alencar, Bernardo Guimarães, Visconde Taunay, Franklin Távora, Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Hugo de Carvalho Ramos, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Bernardo Élis, João Guimarães Rosa, José Cândido de Carvalho, Mário Palmério e José J. Veiga. (...) Na ficção, o autor já mereceu francos elogios da crítica, inclusive de Wilson Martins, que o incluiu no rol dos mais importantes criadores da literatura universal. Agora, no campo da pesquisa e da narração histórica sobre nossas letras, Alaor também se consolida, por realizar uma obra digna de leitura e de consulta, pela segurança dos estudos e pela isenção de julgamento. Em 25 de novembro de 2007, volta MANOEL HYGINO DOS SANTOS a focalizar o livro de Alaor Barbosa, para, entre outras coisas, afirmar:
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Desde já anuncio o lançamento de “Sinfonia Minas Gerais; A vida e a literatura de João Guimarães Rosa”, de Alaor Barbosa, autor goiano com ascendência mineira, profundamente interessado no tema. Mais do que isso, ou além disso, um autor que já deu sobejas provas de sua capacidade criadora e de dedicação à pesquisa. Bastaria lembrar o que já publicou sobre Monteiro Lobato, Godofredo Rangel e demais membros do cenáculo da Paulicéia, nos dourados primeiros anos do século que passou. Em 24 de janeiro de 2008, o intelectual, membro ilustre da ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, José Mindlin, DONO DA MAIOR BIBLIOTECA PARTICULAR DO Brasil, na qual, entre outras preciosidades, estão guardados os originais do romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, dirigiu a Alaor Barbosa a seguinte mensagem: Parabéns por “Sinfonia Minas Gerais” e muito obrigado pela gentileza de me mandar um exemplar. É um belo acréscimo à Roseana da biblioteca. Em 30 de novembro de 2007, 6ª-feira, no mesmo jornal HOJE EM DIA, de Belo Horizonte, afirma MANOEL HYGINO DOS SANTOS, o qual, é bom lembrar, é um dos mais renomados jornalistas e escritores de Minas Gerais: AS BOAS LIÇÕES DE ROSA “Sinfonia Minas Gerais: A vida e a literatura de João Guimarães Rosa”, este o título do livro de Alaor Barbosa, com quase quatrocentas páginas que formam o tomo 1 da obra geral. O volume está sendo lançado pela LGE e deverá chegar às livrarias, inclusive com a tradicional noite de autógrafos em Belo Horizonte. O autor é goiano de Morrinhos, mas tem muito de mineiro, na ascendência e na maneira de ser. Tem raízes na região da Serra da Canastra, mais exatamente em Espírito Santo da Forquilha, hoje Delfinópolis. Mas também de paulistas de Igarapava, para nascer em Morrinhos, Goiás. É, assim, eminentemente um homem das profundezas de nossos sertões. Com um montão de livros editados, citado elogiosamente por Wilson Martins, o que já constitui uma consagração nas letras Esboço da Contestação
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brasileiras, Alaor é escritor que não se contenta em ler sobre o tema. Prefere penetrar nas entranhas dos lugares e no âmago dos personagens. Em carta de 21 de maio de 1965, o autor de Cordisburgo, agora biografado, dizia ao autor de Morrinhos: “... você é notável, de saída: já era. Goiás é produtor de gente assim, de quem gosto e sou amigo”.
Dos lugares visitados por Alaor Barbosa, colheu amplo material para enriquecer o primeiro livro da biografia. Ajuda a entender o famoso personagem, que construiu histórias ora celebradas e admiradas dentro e fora do Brasil. Já em 26 de janeiro de 2008, sábado, o jornalista ALYSSON ASSUNÇÃO publicou no jornal DIÁRIO DA MANHÃ, de Goiânia, longo artigo, de quase uma página, em que afirma: Não é fácil escrever sobre Guimarães Rosa. Muito comentado e pouco analisado com o rigor que sua obra requisita, ir além do mero comentário e das curiosidades de sua vida implica em um aprofundamento pessoal e dedicação clínica. TENDO TOMADO GOSTO PELA OBRA DO ESCRITOR MINEIRO POR INDICAÇÃO DE NINGUÉM MENOS QUE AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA, O GOIANO ALAOR BARBOSA SEMPRE FOI UM DOS MAIS INDICADOS PARA ESSE TRABALHO. Termina ALYSSON ASSUNÇÃO o seu texto afirmando: POR TUDO ISSO, TRATA-SE DE UMA OBRA FUNDAMENTAL PARA QUEM QUISER CONHECER A VIDA DO CONTISTA E ROMANCISTA MINEIRO. Em 2 de fevereiro de 2008, a jornalista Rachel Bertol, do jornal carioca O GLOBO, assim abriu a sua página sobre o livro de Alaor Barbosa: O escritor Alaor Barbosa escreveu a primeira (e até o momento única) biografia do criador de Miguilim, “Sinfonia de Minas Gerais – A Vida e a literatura de Guimarães Rosa (LGE), publicada recentemente. ...) Barbosa também reitera a importância a do pai de Rosa – que, segundo ele, seria quase um co-criador da obra”. Em 26 de fevereiro de 2008, EURICO BARBOSA, jornalista e escritor, membro da ACADEMIA GOIANA DE LETRAS, ex-presidente 380
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do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, publicou no jornal Diário da Manhã, de Goiânia, artigo intitulado O LIVRO DE ALAOR SOBRE GUIMARÃES ROSA Nele, prestou um depoimento sobre a personalidade de Alaor Barbosa, dizendo entre outras coisas: Em um congresso de Tribunais de Contas realizado em Belo Horizonte há pouco mais ou pouco menos de oito anos, conheci Sérgio Cabral. O admirado crítico musical e ótimo biógrafo – Ari Barroso, Pixinguinha, Nara Leão e Tom Jobim são por ele biografados – era conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro. Entabulamos longa conversa. Não me lembro por quê, falei no meu mano Alaor. Sérgio – cujo filho seu xará é hoje o governador do Estado do Rio – surpreendeu-se: “Então você é irmão do Alaor Barbosa?” E logo acrescentou: “Alaor era um dos grandes intelectuais do Jornal do Brasil. Trabalhamos juntos. Muito respeitado por todos nós do Suplemento Cultural do JB”. Note-se que a esse tempo Alaor não tinha mais que dezessete ou dezoito anos de idade. Há cerca de quatro ou cinco anos, fomos a Brasília eu, Fleurymar de Souza e Tadeu Nascimento, a fim de assistir a uma palestra do grande escritor que é Carlos Heitor Cony. Vimos a amizade, o apreço e a admiração que o autor de Quase Memória dedica ao seu ex-colega de Redação e colega de ofício. (...) O primeiro livro de contos de Alaor, Cidade do tempo, editado aqui em Goiânia em 1964, foi dedicado ao consagrado filho da pequena cidade mineira de Cordisburgo. Antes de Cidade do Tempo, ele havia publicado Monteiro Lobato das Crianças, seu primeiro livro. Seguiram-se mais treze obras (contos, romances, ensaios).
Na edição de 25 de novembro de 2 de dezembro de 2007, o JORNAL OPÇÃO, de Goiânia, publicou nota do jornalista e crítico EULER DE FRANÇA BELÉM sobre o livro de Alaor Barbosa, em que afirma: Esboço da Contestação
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GUIMARÃES ROSA. No esplêndido prólogo da biografia Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa (...) Em 2 de dezembro de 2007 – mais ou menos uma semana depois do início da distribuição do livro nas livrarias do Brasil –, o jornalista e escritor mineiro, ALÉCIO CUNHA, publicou, no Suplemento Cultural PLURAL, do jornal Hoje em Dia, COM CHAMADA NA PRIMEIRA PÁGINA DO PRIMEIRO CADERNO, UMA PÁGINA INTEIRA sobre o livro de Alaor Barbosa, com o seguinte título e subtítulo: TRAVESSIA E TRAVESSURA ENSAÍSTA GOIANO LANÇA EM JANEIRO A BIOGRAFIA DE GUIMARÃES ROSA, UM PROJETO QUE CONSUMIU VIAGENS, LEITURAS, REALIDADE E FICÇÃO SOBRE A PROSA E A VIDA DO ESCRITOR, QUE TERÁ SEU CENTENÁRIO DE NASCIMENTO COMEMORADO EM 2008.
No texto, informa ALÉCIO CUNHA: Em 1981, Alaor Barbosa lançou, por uma editora goiana, o ensaio “A Epopéia Brasileira ou: para ler Guimarães Rosa”. O autor comenta que a biografia que agora veio a lume é uma continuação natural daquele volume. (...) Agora, 51 anos depois de ler Rosa pela primeira vez, Alaor Barbosa realiza, simultaneamente, sua travessia e travessura: biografar Rosa, tentando desnudar o homem, o mito. E, claro, sua prosa e geografia. Na edição de 2 a 8 de dezembro de 2008, o JORNAL OPÇÃO voltou a focalizar o livro de Alaor Barbosa, noticiando-lhe o aparecimento e transcrevendo–lhe parte do Prólogo. A notícia saiu nos seguintes termos: Estudioso da obra de Guimarães Rosa, sobre quem acumulou farto material ao longo dos anos, o escritor Alaor Barbosa resolveu escrever uma biografia crítica do autor de Grande sertão: veredas. Acaba de sair o primeiro volume da obra, Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa.
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Em 29 de dezembro de 2007, o jornal DIÁRIO DA REGIÃO, de São José do Rio Preto, São Paulo, publicou um texto assinado pelo jornalista IGOR GALANTE, em um quarto de página, com notícia do livro de Alaor Barbosa, em que presta uma informação importante: Aliás, uma das primeiras informações biográficas de Guimarães Rosa já estava contida em um livro lançado pelo próprio Alaor Barbosa em 1981, “A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa”.
Em 5 de janeiro de 2008, o consagrado e muito justamente respeitado crítico WILSON MARTINS, no suplemento literário IDÉIAS, do Jornal do Brasil, do Rio de janeiro, no seu artigo semanal de crítica, sobre o livro de Alaor Barbosa, citou-lhe, em texto intitulado “MARGINALIA ROSEANA”, várias passagens, de forma extremamente valorizadora. Em carta a Alaor Barbosa, de 17 de janeiro de 2008, afirma o Presidente da ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS, MURILO BADARÓ: Agradecemos o envio de seu livro Sinfonia Minas Gerais: a Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa, felicitamos-lhe pela excelência da publicação que veio enriquecer o nosso acervo. 6) Da receptividade das notícias do livro de Alaor Barbosa sobre Guimarães Rosa em Minas é índice muito significativo o convite a ele feito para proferir palestra na cidade de Bom Despacho, Minas Gerais, durante a 6ª FEIRA DO LIVRO DE BOM DESPACHO E CIDADES VIZINHAS, no dia 29 de setembro de 2007, com a seguinte informação constante3 do convite-programa: 09:00 horas. PALESTRA E CONVERSA COM O PÚBLICO: “O regionalismo na Literatura Brasileira – A obra de Guimarães Rosa” – ALAOR BARBOSA, jornalista e escritor, natural de Morrinhos, Estado de Goiás, e morador de Brasília, AUTOR DE VÁRIOS LIVROS DE SUCESSO, ENTRE OS QUAIS “A EPOPÉIA BRASILEIRA OU: PARA LER GUIMARÃES ROSA’. É UM DOS GRANDES CONHECEDORES DA VIDA E DA OBRA DO AUTOR DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS”. Mais recentemente, foi Alaor Barbosa convidado para proferir palestra no Encontro dos Povos do Cerrado, em defesa desse bioma, Esboço da Contestação
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na cidade mineira de Chapada Gaúcha, próxima ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Seria feito um debate sobre o romance de Rosa. No dia 21 de agosto, na ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS, em Belo Horizonte, Alaor Barbosa pronunciou palestra sobre a obra literária de João Guimarães Rosa, dentro de uma SEMANA CULTURAL GUIMARÃES ROSA. 8) Repúdio nacional e popular à ação das Autoras Mesmo antes de proposta esta ação, quando as Autoras tornaram pública a intenção de movê-la, em março último, vêm ocorrendo sucessivas MANIFESTAÇÕES DE REPÚDIO a tal intenção. Uma delas, por parte da Associação Nacional de Escritores, de Brasília, que, em março mesmo, emitiu NOTA DE PROTESTO, publicada no seu órgão oficial, o JORNAL DA ANE, com o seguinte título: ANE LAMENTA A ATITUDE DE HERDEIROS E EDITORES DE GUIMARÃES ROSA CONTRA LIVRO DE ALAOR BARBOSA A ANE reagiu com uma nota de protesto à atitude de herdeiros e editores de Guimarães Rosa, que se manifestaram contra a publicação de recente livro do escritor Alaor Barbosa. É a seguinte a nota distribuída pela ANE. No ano em que o povo brasileiro comemora o centenário do nascimento de Guimarães Rosa, a Associação Nacional de Escritores (ANE) vem a público para lamentar profundamente a atitude de herdeiros e de editores da obra desse grande autor contra a publicação do livro Sinfonia Minas Gerais: a Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa, do escritor Alaor Barbosa, nome que, pelo brilho intelectual e pela grandeza literária de que se reveste, faz ainda mais respeitável a memória do seu biografado ilustre. Aos argumentos despropositados com que se busca apreender livros e calar quem os escreve, contrapõe-se, soberanamente, o artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal, em pleno vigor: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Confiscar obras literárias e punir escritores são ações que, pela intolerância e pelo anacronismo que as apequenam, configuram verdadeiros autos-de384
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-fé medievais, inconcebíveis para mentes ciosas da liberdade, da justiça e da cidadania a duras penas conquistadas. Assim, a Associação Nacional de Escritores declara completo e incondicional apoio ao seu sócio Alaor Barbosa, no repúdio veemente à deplorável conduta com que as filhas do grande Guimarães Rosa tentam desmerecer o livro Sinfonia Minas Gerais, justa e eloqüente homenagem que se presta a um brasileiro cuja obra faria, sozinha, a grandeza de qualquer literatura. Fazemos nossas as palavras do jurista Carlos Ayres de Brito, Ministro do Supremo Tribunal Federal, em defesa de jornalistas – e, por extensão, de escritores – ameaçados pela intolerância e pela coação: “A imprensa e a democracia são irmãs siamesas. Por isso que, em nosso país, a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade, porquanto o que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja”. O escritor mineiro Ronaldo Cagiano escreveu no Jornal Opção, de Goiânia, na edição de 24 de fevereiro a 1º de março último: O Alaor Barbosa está sendo bombardeado injustamente pela louca da Vilma, filha do Guimarães Rosa. Acho que ele merece um desagravo dos colegas de imprensa e de literatura. O Alaor fez um trabalho sério, dedicado, fruto de pesquisas ao longo dos anos e que enaltece a obra do autor de Grande sertão: veredas. Agora, tenta inviabilizar a circulação do livro é ofender a liberdade de expressão e criação, algo deplorável numa democracia, principalmente na nossa, que foi reconquistada a duras penas. No mesmo jornal, o crítico literário JONAS LOPES afirma: “A Vilma Guimarães gosta de aparecer com essas polêmicas. A declaração dela de que é a única biógrafa do pai beira o patético.”
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Contestação
EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA 24a VARA CÍVEL Comarca da Capital – RJ Processo no.: 2008.001.177396-5 LGE EDITORA LTDA., sociedade empresária com sede no SIA/Sul, Trecho 3, Lote 1760, cidade de Brasília, Distrito Federal, CEP 71200-035, inscrita no CNPJ sob o nº 03.307.528/0001-04, nos autos da ação de rito ordinário que lhe movem VILMA GUIMARÃES ROSA e EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A, processo em epígrafe, vem, por seus advogados que esta subscrevem (doc. 1), oferecer CONTESTAÇÃO, pelos fatos e fundamentos que passa a expor para, ao final, requerer. A VERDADE DOS FATOS 1. DO INTUITO ESTRITAMENTE COMERCIAL DAS AUTORAS 1.1 Ab initio, é de se ressaltar que as Autoras não propuseram esta demanda com o propósito de zelar pela imagem, pela vida e obra de João Guimarães Rosa. 1.2 Muito ao contrário, o ajuizamento da presente teve intuito precipuamente comercial, qual seja o de tentar evitar uma pseudo con387
corrência entre a obra editada pela Ré e a obra recentemente relançada pela 2ª Autora, de autoria da 1ª Autora. 1.3 O fato é que as Autoras se utilizam desta ação judicial com vistas a utilizar o Poder Judiciário para tentar evitar que haja, no mercado, outra obra acerca da figura de João Guimarães Rosa; sobretudo porque se pretendem as reais “donas” da vida, da história e da obra do mesmo, como deixam transparecer explicitamente na inicial de fls. 1.4 Demonstra cabalmente esta alegação o fato de não constarem as demais herdeiras de Guimarães Rosa no pólo ativo da ação ora contestada. A 2ª Autora é uma sociedade editorial de grande porte, que se limita a ser a detentora dos direitos econômicos sob algumas obras de Guimarães Rosa, além de detentora dos direitos da referida obra relançada. 1.5 Além disso, é de se estranhar que não foi requerido segredo de justiça em relação à tramitação deste. 1.6 Ora, se o intuito era evitar a disseminação de pretensas ofensas a João Guimarães Rosa, que teriam sido proferidas no livro editado pela Ré, não seria o mínimo requerer que a ação tramitasse em segredo? 1.7 Claramente não se trata de uma ação ajuizada com vistas a zelar pela boa imagem de Rosa, como falsamente alegam as Autoras em partes da inicial de fls.; trata-se, isto sim, de ação com intuito patentemente comercial das Autoras. 1.8 Como exposto, a 2ª Autora acaba de relançar obra de autoria da 1ª Autora, intitulada “Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai”; obra lançada em 1983, com pouco sucesso comercial (ainda está na 3ª edição) (doc. 08), e que não configura tecnicamente uma biografia, mas sim um livro que procura mostrar, em sua visão de filha de Guimarães Rosa, quem seria o seu pai, principalmente através da transcrição de cartas escritas e recebidas por Rosa ao longo de sua vida. 1.9 Evidente que as Autoras se aproveitam do ano de centenário de morte de Guimarães Rosa para, absurdamente, tentarem obter vantagens econômicas; sendo certo que buscam o Poder Judiciário visando a uma espécie de exclusividade em relação à história de um dos maiores escritores brasileiros; história esta cuja importância em muito transcende os laços de parentesco. 388
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1.10 Fato esse que as Autoras alegam de maneira explícita na inicial, em que aduzem que o principal motivo que deu ensejo ao ajuizamento da ação ora contestada foi o fato de a 2ª Autora haver realizado pesados investimentos para o relançamento da obra de autoria da 1ª Autora.( fls. 14 e 15, itens XXXVI, XXXVII e XXXVIII) 1.11 Trata-se, como restará demonstrado, de uma evidente pretensão de apropriação da figura, da vida e da obra de João Guimarães Rosa por parte de uma sociedade editorial de grande porte, que, repita-se, tenta se utilizar do Poder Judiciário para potencializar o seu já notável poderio econômico; buscando, absurdamente, vedar a concorrência. 1.12 Aliás, de plano cumpre indagar: por que a existência de outra obra acerca de Guimarães Rosa poderia atrapalhar comercialmente a obra das Autoras sobre o mesmo tema? Não caberia ao público consumidor avaliar e escolher a melhor, e assim adquiri-la? 1.13 Com vistas a demonstrar a improcedência das alegações das Autoras, passemos à análise pormenorizada da obra de autoria de Alaor Barbosa, para espancar a pretensão autoral de vê-la retirada do mercado, pelos motivos falsamente alegados de pretensa violação de direito autoral, e de pretensos danos à imagem do biografado. 2. SOBRE ALAOR BARBOSA E SUA OBRA. DA CORREIÇÃO E IMPORTÂNCIA DE SEU CONTEÚDO. 2.1 De plano, vale ressaltar a opinião de dois importantes jornalistas sobre Alaor Barbosa, e sobre o caso em tela: “(...) Vilma Guimarães Rosa precisa conhecer o caráter, a sinceridade, a integridade moral, a grandeza espiritual, a veneração que o escritor Alaor Barbosa tem pela alma do seu pai.” (Jornalista Iberê Monteiro Rádio Terra, Goiânia, março de 2008). “Trata-se de observar de que forma a inegável afeição do biógrafo pelo biografado impossibilitou a Alaor Barbosa o distanciamento minimamente necessário para que o texto não tivesse uma carga demasiadamente pesada de menções elogiosas ao escritor e ao homem Guimarães Rosa.” (Fábio Silvestre Cardoso, no jornal Rascunho, de Curitiba, em Contestação
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artigo sobre Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa). 2.2. Aduzem as Autoras que a publicação realizada pela Ré teria ocorrido sem a avaliação da 1ª Autora, o que representaria um desrespeito com os “entes queridos” de Guimarães Rosa. 2.3 Afirmam, ainda, que a referida obra conteria informações pretensamente “errôneas” e “desarrazoadas” acerca da vida e da obra de Guimarães Rosa. 2.4 Ocorre que o livro objeto da presente ação é o aprimoramento de um livro anterior, também de autoria de Alaor Barbosa, denominado “A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa”, editado em Goiânia em 1981 (doc. 02). 2.5 A partir daquela obra, aumentada e melhorada há alguns anos, o escritor deu origem ao livro cuja tentativa de recolhimento é objeto desta ação. 2.6 Foi com esse intuito que, em 16 de outubro de 2003, Alaor escreveu longa carta (doc. 03) à 1ª Autora, em busca de informações que o ajudassem na elaboração do livro, à época já bastante adiantado, porém com algumas lacunas. 2.7 Naquela carta, comunicou que o seu livro seria um aprimoramento do livro anteriormente intitulado “A epopéia brasileira ou: Para ler Guimarães Rosa”. Em dúvida se a 1ª Autora ainda tinha o exemplar desse livro, mandou-lhe um. 2.8 Buscando estreitar, à época, a relação com a 1ª Autora – demonstrando respeito à mesma, por ser escritora, e filha do biografado – Alaor Barbosa entrou em contato, por telefone, com a mesma. Em resposta, a 1ª Autora, em clara demonstração de empáfia e arrogância, respondeu a Alaor Barbosa de maneira extremamente grosseira. 2.9 Quando este se apresentou informando que visitara várias vezes seu pai no gabinete de trabalho no Itamaraty, a 1ª Autora, com a postura de quem se sente a “dona” da figura e da história de João Guimarães Rosa, disse: “O senhor nunca diga a ninguém que o Embaixador João Guimarães Rosa, um homem ocupadíssimo, perdia tempo, horas e horas conforme o senhor está dizendo, em conversar com um rapazinho anônimo. Se o senhor disser isso em público, passará por mentiroso”. 390
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2.10 Entretanto, a 1ª Autora, ao que parece, não tinha conhecimento do estreito contato que Alaor Barbosa teve com Rosa, o que se comprova, entre outros fatos, com a dedicatória de próprio punho do grande escritor reproduzida na contra-capa do livro anexo (doc. 02). 2.11 Em 14 de dezembro de 2007, Alaor enviou nova carta à 1ª Autora, remetendo-lhe o livro objeto desta ação e fazendo comentários sobre livros de ficção de autoria da 1ª Autora (doc. 03 – 2ª carta). 2.12 Note-se que a obra de Alaor é um registro de um estudioso acerca de um escritor de importância indiscutível para a cultura literária brasileira, mas que tem cada vez menos sua obra lida pelos mais jovens; muito em função da pretensão da 1ª Autora de cercear a divulgação de estudos sobre o grande escritor. 2.13 De fato, Alaor Barbosa não é apenas um estudioso, que houve por bem em escrever algo vago e despretensioso sobre Guimarães Rosa. 2.14 Trata-se de um escritor respeitado, membro da Academia Goiana de Letras (doc. 07), e que teve bastante contato com Rosa, tendo, inclusive, recebido alguns elogios do escritor em virtude de outros estudos publicados sobre esse. 2.15 Tais elogios de João Guimarães Rosa a Alaor Barbosa não são supostos: constam de uma dedicatória em livro (Primeiras estórias), remetido por Guimarães Rosa a Alaor Barbosa (em que o chama de “irmão mais moço”) e de uma carta escrita e remetida em 1965 do Rio para Goiânia (trasncritas no livro anexo – doc. 02). 2.16 A Ré, ao editar o livro objeto da presente teve o intuito de valorizar, prestigiar, difundir e defender a obra literária de João Guimarães Rosa e, em conseqüência, valorizar a sua imagem pessoal. 2.17 Isso porque o livro de autoria de Alaor é uma biografia em que não se divulgam escritos do biografado. De textos do biografado são feitas citações, de maneira parcimoniosa, e, evidentemente, não contém nada que atinja a honra ou a respeitabilidade do escritor João Guimarães Rosa. 2.18 É mais que evidente que no lançamento da obra não há objetivo comercial, e sim biográfico. A Ré decidiu editar o livro ao notar que ele serviria para prestigiar e valorizar a cultura brasileira, na medida em que se trata de um depoimento altamente favorável à liteContestação
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ratura e à pessoa de João Guimarães Rosa e, portanto, uma contribuição ao fortalecimento e difusão da cultura brasileira. 2.19 Assim é que a alegação das Autoras no sentido de que não interessaria “à família de JOÃO GUIMARÃES ROSA que nenhuma biografia dele seja publicada sem que, antecipadamente, seu texto seja submetido ao crivo de seus entes queridos” (fl. 03) é no mínimo condenável, senão por duas razões. 2.20 A uma porque se trataria de explícita censura prévia se todos os escritos e estudos sobre figuras públicas tivessem que ser levados ao crivo de seus entes queridos antes de serem publicados. 2.21 E a duas já que, como demonstrado, não se trata de um estudo qualquer; muito ao contrário, trata-se de um relato de alguém que há mais de 50 anos estuda a vida e a obra de Guimarães Rosa, e teve estreito contato pessoal com o mesmo. 2.22 Desta forma, a importância e a relevância da obra de Alaor Barbosa são inquestionáveis; porém, as Autoras entendem que as opiniões de Alaor acerca do biografado seriam desarrazoadas, e feririam direitos da personalidade da 1ª Autora. 2.23 Ainda, citam apenas uma crítica negativa, do jornalista Jerônimo Teixeira, com o objetivo de afirmar que a crítica literária brasileira teria feito apenas comentários negativos sobre o livro editado pela Ré. Porém, de forma maliciosa, suprimem a seguinte frase do jornalista, que critica a liberdade de expressão: “É melancólico que o nome de um dos maiores escritores do Brasil acabe associado a esse cerceamento da liberdade de expressão”. 2.24 Não haveria qualquer problema nesse fato, visto que não é condição de criação e lançamento de uma obra que haja apenas críticas positivas à mesma. 2.25 Porém, para demonstrar que se trata de mais uma das inverdades das Autoras, passemos à apresentação de uma série de críticas feitas ao livro objeto da presente, todas oriundas de críticos expoentes da literatura brasileira.
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3. DAS CRÍTICAS LITERÁRIAS À OBRA DE ALAOR BARBOSA 3.1 Pois bem. Com o intuito de demonstrar que as Autoras não têm qualquer razão em suas desarrazoadas alegações de que a obra de Alaor Barbosa seria inadequada e pouco importante, seguem algumas opiniões acerca da obra, todas publicadas em mídia de grande circulação (outras constam anexas, no doc. 05): I.“(...)Para a elaboração de seu novo livro, Alaor Barbosa empreendeu memorável e instrutiva viagem através das Minas Gerais, como ele próprio definiu.(...) Um agradável e instrutivo instrumento para conhecer melhor o escritor da Gruta de Maquiné é esta “Sinfonia de Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa” (Manoel Hyginio dos Santos, Jornal Hoje em Dia, Belo Horizonte, 30 de novembro de 2007) II.“Trata-se de observar de que forma a inegável afeição do biógrafo pelo biografado impossibilitou a Alaor Barbosa o distanciamento minimamente necessário para que o texto não tivesse uma carga demasiadamente pesada de menções elogiosas ao escritor e ao homem Guimarães Rosa. (Fábio Silvestre Cardoso, no jornal Rascunho, de Curitiba, em artigo sobre Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa). III. “(...) Alaor brinda a inteligência brasileira com obra de grande dimensão e qualidade.(...) será uma biografia indispensável aos que, no Brasil e fora dele, desejam conhecer a vida do grande contista e romancista mineiro, o mais estudado dos escritores brasileiros da atualidade. (...) Por ambas razões, tornara-se imprescindível a biografia. Faltavam um livro e um autor que contassem a vida deste múltiplo ser humano e exemplar autor. (jornalista e escritor MANOEL HYGINO DOS SANTOS, no jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte) IV. “O escritor de Morrinhos se desvencilha assim de um compromisso da melhor maneira: cumprindo-o. É que Contestação
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conhecera Rosa, de quem foi amigo e a quem tributa pessoal admiração. Mas também está convencido de que os criadores com méritos devem ser difundidos e cultuados. Não deixando de enfatizar a importância de Rosa, como espécie de fautor da língua portuguesa, que precisa ser defendida. Valoriza-se, assim, a cultura brasileira no que ela tem de mais autentico. Oportuníssima a biografia. Um agradável e instrutivo instrumento para conhecer melhor o escritor da Gruta de Maquiné é esta “Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa”. (Wilson Martins, crítico paulista) 3.2 O escritor Danilo Gomes, no trecho da crítica abaixo citado, aborda inclusive seu descontentamento com o ajuizamento da presente: V. “ALAOR BARBOSA, biógrafo de Guimarães Rosa. (...) Em 387 páginas, Alaor Barbosa nos apresenta um Guimarães Rosa de corpo/espírito inteiro.(...) O biógrafo não se limita a narrar a vida do extraordinário estilista, criador e de uma escritura peculiar, fundadora, metafísica, sutil e astuciosa. Permeando os fatos e fastos da vida do notável cronista-poeta de Ave, Palavra!, temos um minucioso estudo de sua obra, dissecada não só pelo biógrafo como por outros autores que ele chama à colação, para acompanhá-lo na empreitada, na magnífica viagem aos sertões e veredas da alma do diplomata refinado e poliglota de mão cheia. (...) O livro de Alaor Barbosa é riquíssimo em informações, análises, depoimentos, cruzamento de dados, minúcias interessantíssimas sobre Rosa, seu mundo e universo literário. (...) Lamentável que as filhas de João Guimarães Rosa, por problemas de ordem familiar e de espólio, tenham, via judicial, proibido a circulação do livro, que estava nas livrarias (numa das quais, a Siciliano, aqui em Brasília, adquiri meu exemplar). É um absurdo, uma violação ao direito de expressão, à liberdade de expressão. Guimarães Rosa não pertence somente à sua família; ele pertence ao 394
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Brasil. Sua obra genial é um patrimônio de todos os brasileiros, é um orgulho nacional. (DANILO GOMES, escritor mineiro, membro da Academia Mineira de Letras, artigo publicado no jornal Hoje em Dia, no Caderno Brasília, na Revista da Academia Mineira de Letras, Ano 85º, Volume XLVIII, correspondente aos meses de abril, maio, junho de 1008, na Revista CERRADOS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, n. 25, ano 17, 2008 -; e na revista ANPOLL/24, da ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM LETRAS E LINGÜÍSTICA, da UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA). 3.3 Dentre as opiniões sobre a obra de Alaor Barbosa, destaca-se um artigo de Fábio Silvestre, crítico paulista, em que condena o caráter por demais elogioso que ele atribui ao livro de Alaor Barbosa, o que vai diametralmente de encontro à tese das Autoras: V. “PERDIDO EM ELOGIOS Entende-se, pela leitura, que Alaor Barbosa teve interessante contato com Guimarães Rosa. Logo nas primeiras páginas, o autor faz questão de ressaltar alguns detalhes desse convívio com o escritor mineiro, partindo, principalmente, de certa afinidade intelectual – até cópia de uma carta de Guimarães Rosa para Alaor Barbosa está presente no livro. NADA DISSO, NO ENTANTO, É CAPAZ DE ESCONDER O TOM QUASE OFICIAL, CHAPA-BRANCA, DE LOUVOR E HONRAS À PERSONAGEM (SIC) DE JOÃO GUIMARÃES ROSA. CHAMA A ATENÇÃO A QUANTIDADE DE ELOGIOS QUE O BIÓGRAFO DESPEJA EM POUCO MAIS DE 350 PÁGINAS DE TEXTO – SENDO QUE O RESTANTE DAS PÁGINAS TRAZ UM BOM ÍNDICE ONOMÁSTICO, ALÉM DA BIBLIOGRAFIA (CONSISTENTE, DIGA-SE) DE APOIO UTILIZADA. É O TEXTO, PORÉM, QUE CORROMPE AS BOAS INTENÇÕES DE ALAOR BARBOSA. QUE Contestação
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FIQUE CLARO, CONTUDO: NÃO SE PRETENDE AQUI DESMERECER A QUALIDADE DA PROSA DO AUTOR. ANTES, TRATA-SE DE OBSERVAR DE QUE FORMA A INEGÁVEL AFEIÇÃO DO BIÓGRAFO PELO BIOGRAFADO IMPOSSIBILITOU A ALAOR BARBOSA O DISTANCIAMENTO MINIMAMENTE NECESSÁRIO PARA QUE O TEXTO NÃO TIVESSE UMA CARGA DEMASIADAMENTE PESADA DE MENÇÕES ELOGIOSAS AO ESCRITOR E AO HOMEM GUIMARÃES ROSA. EM SÍNTESE, O AUTOR OPTOU POR UMA OBRA CARENTE DE ASPECTOS CONTRADITÓRIOS ACERCA DO BIOGRAFADO – COMO SE EFETIVAMENTE TAIS CONTRADIÇÕES NÃO EXISTISSEM. (Fábio Silvestre Cardoso crítico de São Paulo, em artigo publicado no jornal RASCUNHO, de Curitiba. 3.4 Como se nota, as opiniões das Autoras acerca da obra de Alaor Barbosa não são as mesmas que as de muitos críticos respeitados, e de maneira alguma dizem respeito à verdade dos fatos. 3.5 Até por isso – já que dos fatos se extrai o Direito – as alegações autorais também não se estabelecem quando analisadas à luz do sistema legal vigente, senão vejamos. O DIREITO 4. DA INEXISTÊNCIA DE DANOS COM BASE NO DIREITO AUTORAL. DA INEXISTÊNCIA DE LESÃO AOS DIREITOS MORAIS DA OBRA DE AUTORIA DA 1ª AUTORA 4.1 Como exposto, como meio de tentar garantir à 2ª Autora a legitimidade para figurar no pólo ativo da presente, afirmam as Autoras que teria havido excessos, por parte de Alaor Barbosa, no que se refere às citações do livro de autoria da 1ª Autora, editado pela 2ª. 4.2 Demonstraremos com uma simples estatística que a informação das Autoras é inverídica. 4.3 O livro de Alaor Barbosa contém 387 páginas, em que houve 103 trechos citados oriundos da obra da 1ª Autora. 396
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4.4 Em termos percentuais, a citação de trechos da obra da 1ª Autora representa cerca de 8% (oito por cento) de todo o livro editado pela Ré, o que é evidentemente ínfimo. 4.5 E mais: de tudo que foi citado da obra da 1ª Autora, apenas pouco mais de 2% (dois por cento) é de criação da autora, as demais quase 2/3 (dois terços) das citações são formadas por cartas trocadas entre Guimarães Rosa e seus pais (maioria), amigos e a própria filha (poucas). 4.6 Ora, afirmar que o livro editado pela Ré seria composto quase que completamente por citações da obra da 1ª Autora, quando as citações representam 8% da obra de Alaor Barbosa, é no mínimo má-fé das Autoras. 4.7 Somado ao fato de que apenas pouco mais de 2% de tudo que foi citado na obra editada pela Ré é de autoria da 1ª Autora. 4.8 O fato é que, no caso em tela, não há que se falar em ofensa a direitos autorais das Autoras, notadamente no que se refere à faceta moral desta espécie de direitos que tem natureza jurídica híbrida; senão por dois motivos incontestáveis. 4.9 Primeiro, os direitos morais de autor da 1ª Autora sob a obra literária intitulada “Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai” foram devidamente respeitados na obra de autoria de Alaor Barbosa. 4.10 A Lei 9.610/98, que regula o tema dos direitos autorais no Brasil, positiva, no capítulo referente às limitações aos direitos autorais, a regra segundo a qual são permitidas as utilizações de obras alheias, por meio de citações, desde que respeitado o direito aos créditos; senão vejamos por meio do inciso III do art. 46: Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra; (grifou-se) 4.11 Ora, a Ré não nega que tenha havido citações da obra de autoria da 1ª Autora; no entanto, para a realização de tais citações Contestação
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não há necessidade de obtenção de qualquer tipo de autorização das Autoras, já que se está diante de uma limitação aos direitos do autor da obra sob a mesma. 4.12 E segundo, ainda que fossem necessárias autorizações para a realização das referidas citações – o que se considera por argumento –, não se estaria diante de um direito moral de autor, e sim, em tese, de um direito patrimonial; o que não se coaduna com as ofensas à personalidade alegadas pelas Autoras, e que inclusive deram margem – a nosso sentir de maneira equivocada – à antecipação parcial dos efeitos da tutela pretendida, concedida por este Juízo. 4.13 Necessário, isto sim, como determina o citado artigo 46, III, in fine, é que sejam indicados o nome do autor e a origem da obra, o que foi realizado pelo autor da obra editada pela Ré, em todas as citações realizadas. 4.14 De fato, se os consagrados direitos morais de crédito tivessem sido suprimidos na obra editada pela Ré, aí sim estaríamos diante de possível dano às Autoras. 4.15 Porém, repita-se, todas as citações foram devidamente creditadas, o que afasta de modo cristalino qualquer pretenso dano aos direitos morais das Autoras. 5. DA INEXISTÊNCIA DE DANOS COM BASE NO DIREITO AUTORAL. DA INEXISTÊNCIA DE LESÃO AOS DIREITOS PATRIMONIAIS DA OBRA DAS AUTORAS 5.1 Não havendo qualquer violação dos direitos morais, já que a fonte das citações foi integralmente referida na obra editada pela Ré, a única razão para a 2ª Autora figurar no pólo ativo da presente seria a alegação de que a obra editada pela Ré teria ferido seus direitos patrimoniais; já que a mesma não tem direitos de natureza cível stricto sensus envolvidos in casu. 5.2 Com vistas a tentar fundamentar esta rarefeita tese, aduzem as Autoras que “a biografia ora discutida” seria “um emaranhado de textos de obras de autores conhecidos, como a própria 1ª Autora (103 trechos); Vicente Guimarães (22 trechos)” entre outros. (fl. XI – item XXII). 5.3 Esta afirmação das Autoras carece de alguns elementos para ter lógica. 398
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5.4 Um deles é que o fato de haver 103 trechos citados da obra da 1ª Autora não significa que a obra tem muitas citações; o que já foi cabalmente demonstrado, já que as citações da obra da 1ª Autora representam cerca de 8% (oito por cento) da obra editada pela Ré. 5.5 Outro fato que demonstra a ausência de logicidade da frase das autoras é que uma obra com muitas citações – que não é o caso da ora em voga, mas que se considera para argumentar – não obrigatoriamente significa que a mesma seja um emaranhado de textos. 5.6 E o que são as dissertações de mestrado e as teses de doutorado senão um texto permeado por citações de ilustres sabedores do tema objeto da pesquisa? Tanto assim que as mesmas têm capítulos dedicados precisamente à revisão bibliográfica do tema estudado. 5.7 No item XXI da inicial, as Autoras afirmam que o livro de Alaor seria uma “pesquisa biográfica, com fontes secundárias”. Ainda, aduzem que “ele poderia ter usado fontes primárias, tais como entrevistas de familiares”. 5.8 Um estudante de mestrado de um curso de história, que decida pesquisar sobre Getúlio Vargas, apenas poderia obter fontes primárias para abordar a vida do Chefe do Estado Novo? Deveria o mesmo apenas entrevistar seus familiares, que obviamente teriam um ponto de vista parcial sobre Vargas? Não poderia, e inclusive deveria, o pesquisador ir à bibliografia especializada sobre o tema buscar fonte para basear seus estudos? 5.9 Pois foi precisamente o que fez Alaor Barbosa para produzir sua biografia de Guimarães Rosa, que nada mais é que uma espécie de livre tese ou dissertação sobre a vida e a obra do grande escritor, como que em uma pesquisa acadêmica realizada sobre este, não se podendo esquecer que a 1ª Autora se recusou a fornecer qualquer informação, inclusive deixando explícito seu entendimento de que apenas ela poderia escrever sobre o seu pai. 5.10 Entretanto, as Autoras, inconformadas com o fato de haver outra obra no mercado precisamente no momento em que relançaram uma obra, esta sim superficial, sobre Guimarães Rosa – por razões financeiras e se aproveitando das comemorações de 100 anos de morte do grande escritor –, pretendem agora determinar como Contestação
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e com base em que se deve fazer pesquisa e se escrever sobre uma figura histórica. 5.11 Ocorre que, no que se refere à possível lesão aos direitos patrimoniais de autor das Autoras, não há qualquer hipótese de vislumbrá-la. 5.12 Isto porque a alegação de que teria havido um excesso de citações da obra de autoria da 1ª Autora, o que determinaria a necessidade de que houvesse concessão de autorização por parte das Autoras, como demonstrado, não se sustenta de modo algum. 5.13 Além do fato de a quantidade de citações ter sido ínfima – apenas 8%, repita-se -, é importante salientar que a Lei 9.610/98 não determina que a limitação ao Direito Autoral estabelecida no inciso III do art. 46 deve ser limitada por quantidade. 5.14 A moderna doutrina autoral, inclusive, tem se posicionado no sentido de que as citações devem estar limitadas pelo sentido que a obra teria se as mesmas fossem excluídas. 5.15 Para demonstrar essa independência entre a obra e os trechos citado, o autor do livro em voga e a Ré realizaram uma nova edição do livro – ainda não lançada – reduzindo as citações da obra da 1ª Autora para cerca de 20 trechos. Como resultado, autor do livro e a Ré obtiveram não só uma obra inteligível – demonstrando sua autonomia em relação às citações – como também de qualidade superior, uma vez que tornaram a leitura mais ágil. 5.16 Desta feita, sob qualquer ótica não procedem as alegações de que as citações feitas pelo autor do livro editado pela Ré seriam em excesso. 5.17 Ad argumentandum tantum, em este Juízo havendo por bem em considerar que teria havido excesso na citação de trechos da obra das Autoras – o que de fato não houve – que determine, como medida corretiva, que a Ré proceda uma nova edição da obra, suprimindo os excessos (texto que inclusive já existe). 5.18 O que não se pode aceitar é que a obra seja integralmente retirada de circulação – o que representa patente afronta à garantia fundamental positivada na Constituição da República – sob o argumento de que há citação de grande quantidade de trechos da obra de autoria da 1ª Autora. 400
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6. DA INEXISTÊNCIA DE DANOS COM BASE NO DIREITO CIVIL. DAS OPINIÕES DO AUTOR ACERCA DO BIOGRAFADO 6.1 No item XVI da inicial, afirmam as Autoras que “ALAOR BARBOSA impôs a JOÃO GUIMARÃES ROSA pensamentos e palavras que não prova ter sido pronunciadas”. 6.2 Para tanto, citam a passagem em que Alaor afirma: “João Guimarães Rosa (e nisso ele tinha a companhia de outro grande escritor brasileiro, Monteiro Lobato) julgava a língua portuguesa uma língua inferior, a ponto de preferir as versões italianas e alemãs dos seus livros”. 6.3 Ora, afirmações de preferência das traduções dos seus livros aos originais em português se encontram repetidamente nas correspondências entre João Guimarães Rosa e o tradutor italiano Edoardo Bizzarri; bem como com o tradutor alemão, Curt Meyer-Clason. 6.4 Mais de uma vez Guimarães Rosa afirmou que preferia aos textos em português os textos traduzidos para o italiano e o alemão; senão vejamos de algumas cartas enviadas pelo mesmo a Bizzarri: Rio, 11 de setembro de 1963 “Sem piada, mas sincero: quem quiser realmente ler e entender G. Rosa, depois, terá de ir às edições italianas.” (g.n.) Rio, 4 de dezembro de 1963 “Assim, quando me “re”traduzem para outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o Tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do “original ideal”, que eu desvirtuara... Não se prenda estreito ao original. Voe por cima, e adapte, quando e como bem lhe parecer. Veja como o grande tradutor começa por influir no autor. Obrigado.” Rio, 16 de dezembro de 1964 “Basta dizer que, pelo menos duas das estórias (a de Lélio e Lina e a do Cara-de-Bronze) me parecem agora, sim, verdadeiramente escritas, levadas, fiel e muito, acima do Contestação
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original. Mas, o livro inteiro, apresenta-se-me em outra luz, represtigiado.” (grifou-se) (João Guimarãres Rosa correspondência com seu tradutor italiano, editora Nova Fronteira) 6.5 Vejamos, também, por meio de trechos de cartas enviadas a Curt Meyer-Clason: Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 1959 “A tradução e publicação em alemão me entusiasma, por sua alta significação cultural, e porque julgo esse idioma o mais apto a captar e refletir todas as nuances da língua e do pensamento em que tentei vazar os meus livros.” (grifou-se) Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1962 “O que penso, porém, é que a língua alemã permitirá, seguramente, versão mais bela e completa, cingindo muito mais estreitamente o texto original, e assim não duvido de que suas traduções vão ser as primeiras, as mais vivas. Lendo, por exemplo, o “Darandina” cheguei a comover-me em muitas páginas. Desde já, posso dizer-lhe, gosto mais do texto alemão, seu, do ‘Darandina’, do que do meu original.” (grifou-se) (João Guimarãres Rosa correspondência com seu tradutor alemão, editora Nova Fronteira) 6.6 Notório, a partir da citação dos trechos dessas cartas, que as afirmações de Alaor acerca da opinião de Guimarães Rosa sobre as línguas estrangeiras não são infundadas, como pretendem as Autoras, mas tomam por base depoimentos do próprio Rosa, em cartas formuladas pelo mesmo. 6.7 Manoel Higino dos Santos, em artigo publicado no jornal Hoje em Dia de Belo Horizonte (doc. 06), transcreve falas de Guimarães Rosa sobre a língua portuguesa, reafirmando o que foi inserido por Alaor Barbosa na obra editada pela Ré, senão vejamos:
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“Guimarães Rosa não era de freqüentar as rodas jovens (...) Para ele o artista deve ser humilde (...) comenta: ‘A língua portuguesa, aqui no Brasil, está uma vergonha e uma miséria. Está descalça e despenteada; mesmo para andar ao lado da espanhola, ela não tem roupa’.” 6.8 No ponto XVI do instrumento da demanda, fl. 08, aduzem as Autoras que seria “evidente que o eventual comprador de uma obra divulgada como biografia de JOÃO GUIMARÃES ROSA não estará interessado na comparação entre o pensamento do escritor e do biógrafo(...) e onde ALAOR BARBOSA visivelmente busca impor suas posições ideológicas e religiosas como corretas e superiores às de JOÃO GUIMARÃES ROSA”. 6.9 Tratam-se de imensos disparate e pretensão das Autoras as afirmações contidas neste infeliz parágrafo, por três motivos cristalinos. 6.10 Primeiro, Alaor Barbosa jamais se pretendeu acima ou superior a João Guimarães Rosa; trata-se de um fã, de um admirador do escritor, de um estudioso e divulgador de sua vida e obra, há mais de 50 anos, como exposto. 6.11 Alguém que se apresenta como admirador, que se dedica a estudar Guimarães Rosa há 50 anos, escreveria um livro para impor posições em relação às do ilustre escritor? 6.12 Além disso, alegam as Autoras que Alaor teria acusado Rosa de não ser patriota. Esta seria uma mera opinião, e como tal não poderia ser censurada nem considerada ofensiva, uma vez que poderia ser tomada como um erro de julgamento. Mas tal afirmação não foi expressa por Alaor Barbosa de forma alguma. O que Alaor Barbosa afirmou foi aquilo que toda a gente sabe e diz, isto é, que Guimarães Rosa era um homem avesso a questões políticas. “Nunca me deparei, nos textos de Guimarães Rosa, com alguma preocupação com o presente e o futuro do Brasil”. 6.13 Ora, uma calma pesquisa nos livros de João Guimarães Rosa não encontrará, de fato, nenhuma palavra de preocupação com a vida política do Brasil. Em prefácio famoso no livro Tutaméia, o próprio Rosa se proclamou avesso ao histórico, ao político, e ao sociológico, já que era uma posição dele. Tal posição tanto é respeitada por Alaor Barbosa que, Contestação
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mesmo sendo diferente de Guimarães Rosa nesse ponto, propôs-se a escrever um livro sobre ele, com bastantes elogios. 6.14 Dizem as Autoras que João Guimarães Rosa foi um homem discreto, “tendo preferido evitar entrevistas sobre sua vida privada e posições políticas”. Ora, neste sentido são as Autoras mesmo que confirmam a afirmativa de Alaor Barbosa de que ele não se manifestava sobre política. 6.15 Segundo: as Autoras pretendem impedir ou cercear a liberdade de quem escreva sobre Guimarães Rosa. Ora, alguém que escreve um livro pode – e deve, diria-se – exercer plenamente seu direito de fazê-lo dentro da técnica literária que bem entender. 6.16 Desde que não haja ofensas – à moral, aos bons costumes e sobretudo à figura do biografado – a maneira como o escritor escolhe para elaborar sua obra, seja em narrativa, em comparação de seu pensamento com o daquele que é objeto da obra, ou em qualquer outra meio de expressão, é uma escolha livre e de foro íntimo. 6.17 Notório que as Autoras pretendem o absurdo de determinar como se deveria escrever sobre Guimarães Rosa, por motivos de parentesco – a 1ª – e de ordem econômica – a 2ª. Quem disse que a opinião delas é mais verdadeira que a de Alaor Barbosa, estudioso da obra e vida de Guimarães Rosa, ao contrário da filha, que certamente tem o intuito de criar uma visão idílica de Rosa, muito embora Alaor seja seu admirador? 6.18 E terceiro, e mais condenável, é o fato de as Autoras pretenderem, também, determinar o que o público gostaria de ler sobre Guimarães Rosa. Trata-se, isso sim, de enorme censura e de um disparate completo o ato de querer determinar o que o público gostaria de ler acerca de Guimarães Rosa. 6.19 Resta evidente, dessa forma, que as alegações autorais no sentido de que a obra editada pela Ré traria informações que denegririam ou mesmo diminuiriam a imagem e a história de Guimarães Rosa são apenas um subterfúgio para disfarçar o rela intuito das mesmas com a presente ação; qual seja o de impedir que haja outras obras lançadas em período recente que abordem o ilustre escritor, para não prejudicá-las comercialmente.
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6.20 Assim, no que se refere aos pretensos danos alegados pelas Autoras à imagem e à personalidade de Guimarães Rosa, tomando-se por base os ditames do Código Civil brasileiro, cumpre, igualmente, rechaçá-los. 6.21 O fato é que se trata de discussão muito em voga no Brasil o aparente conflito entre as regras positivadas nos art. 11, 20 e 21, do Código Civil brasileiro, e o direito à informação, previsto na Constituição da República. 6.22 Como é cediço, os referidos artigos 11, 20 e 21 do Código Civil determinam que a utilização da imagem e a exposição da vida privada das pessoas devem ser previamente autorizadas. Porém, em contraponto a esta regra, a Constituição da República, por meio do art. 5º, inciso IX, e o artigo 220, do Código Civil brasileiro, garantem, por meio de cláusula pétrea, a liberdade de expressão, independentemente de licença, senão vejamos: Art. 5º. IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Art. 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º – Nenhuma lei conterá dispositivo que constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XII e XIV. 6.23 A liberdade de expressão é protegida ainda pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica): Artigo 19 – Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e Contestação
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difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão. (Declaração Universal dos Direitos humanos) Artigo 13 – Liberdade de pensamento e de expressão 1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar: a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões. (Convenção Americana de Direitos Humanos -Pacto de San José da Costa Rica): 6.24 Em razão dessa incipiente polêmica, instaurada no Brasil a partir da tentativa de proibição de lançamento de biografias sem a autorização expressa dos biografados, ou de quem os represente em caso de falecimento, o Conselho de Justiça Federal, durante as III e IV Jornadas de Direito Civil, houve por bem em exarar dois enunciados, de números 139 e 279, visando à interpretação harmônica dos artigos 11 e 20 do Código Civil brasileiro com a Constituição da República. 6.25 Reconheceu-se, assim, a existência de limitações aos direitos da personalidade, senão vejamos:
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Enunciado 139 (Art. 11): os direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes. Enunciado 279 (Art.20): a proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações. (grifou-se) 6.26 Desta feita, o próprio Conselho de Justiça Federal, em enunciado que visa a orientar os julgadores em casos como o em tela, ressalta que é importante notar que as pessoas famosas, que fazem parte de nossa história política, científica, cultural ou artística, têm uma diminuição significativa no grau de proteção de sua imagem e intimidade. 6.27 No mesmo sentido, a importante opinião de Gabriel Leonardos, advogado militante na área de direitos autorais que dispensa maiores apresentações, e que se pronunciou recentemente – opinião de que se transcreve pequeno trecho -, em palestra proferida no Seminário da ABPI (Associação Brasileira de Propriedade Intelectual), em agosto deste ano: Uma compreensão equivocada dos direitos de personalidade: Como já tive oportunidade de expor em palestra na XXIII edição deste seminário anual da ABPI, em 2003 (minha palestra está publicada nos Anais daquele evento), entendo que deixou muito a desejar a regulamentação de tais direitos nos arts. 11 a 21 do Código Civil de 2002. (...) Com efeito, passados já mais de cinco anos de sua aplicação estamos verificando que os direitos de personalidade Contestação
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estão sendo aplicados de tal forma drástica entre nós que já não é mais possível publicar biografias em nosso mercado editorial, a menos que ela seja “chapa branca”, ou seja, endossada pelo biografado ou seus herdeiros. (...) Um exemplo recente, em que a objeção partiu do próprio biografado, foi o da elogiada biografia de Roberto Carlos escrita pelo jornalista Paulo César Araújo, no qual não chegou a haver uma decisão judicial, pois a biografia foi retirada das livrarias após um acordo feito pelas partes em Juízo durante audiência realizada em 27 de abril de 2007, em seguida a fortes pressões psicológicas sofridas pelo escritor – segundo o mesmo declarou:“A decisão da Justiça foi de recolher a obra, o que provocou a reação de escritores e colunistas, que classificaram o caso como censura. Em entrevista, o jornalista e escritor Lira Neto avaliou que ‘provavelmente criou-se uma jurisprudência perigosa, contra o gênero biografia e contra o próprio exercício da historiografia. Se a gente depender do biografado e dos herdeiros para escrever sobre alguém, é simplesmente a falência do gênero’. (...)O autor [Paulo César Araújo] explicou que o que deveria ser avaliado era a Justiça. ‘O debate que está aqui é: até que ponto, no Brasil, a liberdade de expressão vai depender desse direito de privacidade?’. Segundo ele, o juiz e os dois promotores fizeram todo tipo de pressão para fazer o acordo nas condições que Roberto Carlos queria. ‘E acabaram conseguindo’, afirmando que o contexto estava favorável a Roberto Carlos. (...)Paulo César explicou que era lamentável ter de tentar uma reconciliação para tirar trechos do livro, mas que isso foi feito em virtude do contexto. ‘Entramos naquela audiência já com o livro indeferido’, disse. ‘Quando os advogados chegaram a um consenso, que era entregar o livro e retirar o processo, eu vi 15 anos de trabalho queimados em uma audiência de cinco horas’.”(Observatório da Imprensa – SP, 16.05.2007: “Roberto Carlos e a Biografia Não-autorizada: Um novo censor nas paradas”, por Karla Candeia)(...) Ainda que se 408
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admita que o biografado, em vida, possa legitimamente objetar a publicação de uma biografia não autorizada, a fim de defender sua intimidade – algo, ao meu ver, discutível, mas ainda defensável – parece-me um absurdo desmesurado que os herdeiros do biografado possam fazer o mesmo, impedindo, simultaneamente, a liberdade de expressão do autor da biografia e o direito de acesso à informação da sociedade brasileira. Note-se que, neste caso, parece-me que a questão não é sequer de reconhecer aos herdeiros um mero direito de remuneração, mas sim o de deixar de reconhecer a eles qualquer direito patrimonial sobre a biografia de uma pessoa pública da qual eles sejam descendentes. Nesse sentido, como já disse no seminário de 2003, parece-me equivocada a decisão do TJRJ (ainda sob a égide do Código Civil de 1916, que silenciava a respeito dos direitos de personalidade), segundo a qual o aclamado escritor Ruy Castro teria cometido um ato ilícito ao biografar o futebolista “Mané” Garrincha. Segundo a decisão do TJRJ “o dano patrimonial [dos herdeiros] decorre do locupletamento da popularidade do biografado comercialmente explorada, sem a autorização de quem de direito, ou sem lhe dar a devida participação nos lucros” (Emb. Infr. na AC 2.270/01, j. 15.05.2002). Note-se que, segundo tal decisão, existiria um direito imaterial cujo objeto é a “popularidade” de uma pessoa algo que, ao meu ver, não encontra sustentação no direito positivo brasileiro. Parafraseando o que acabo de dizer em relação aos direitos autorais, é igualmente urgente no Brasil não apenas uma modernização dos arts. 11 a 21 do Código Civil (sendo digno de nota que tais artigos foram redigidos no início da década de 1970, muito embora o Código Civil tenha sido aprovado apenas em 2002); mas, acima disso, deve haver a conscientização da doutrina e do Poder Judiciário no sentido de promover uma interpretação dos direitos de personalidade de forma a balanceá-los com outros bens jurídicos protegidos pela Constituição BraContestação
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sileira, como o direito à liberdade de expressão (CF, art. 5º, IX), à informação (CF, arts. 5º, XIV e 220), à educação (CF, art. 205 ss), à cultura (CF, art. 215 ss), entre outros.” (grifou-se) 6.28 Por meio do brilhante discurso de Gabriel Leonardos, verdadeira e elogiável doutrina sobre o tema, nota-se que a necessidade de se dar aos artigos 11, 20 e 21 uma interpretação extensiva, para adequá-los ao caso concreto, é fundamental. 6.29 Notadamente em casos como o em tela, em que uma das herdeiras – ao que tudo indica, sem o consentimento das demais, que não figuram nestes autos – visa a se locupletar, tentando evitar que haja livros sobre seu pai para que apenas ela possa escrever sobre o mesmo, obtendo não apenas o retorno financeiro desta censura, mas ainda impondo sua visão sobre a figura de Guimarães Rosa, figura esta que é de interesse de toda a sociedade, dada sua relevância histórica e literária. 6.30 Trata-se de um caso novo na literatura brasileira, sobre o qual o Poder Judiciário não pode deixar de se pronunciar favoravelmente à liberdade de expressão, e contrariamente à apropriação capitalista de figuras históricas, por parte de quem quer que seja; isto é, sejam herdeiros ou grandes grupos editoriais, tais quais as Autoras. 6.31 A Jurisprudência já adota posicionamento no sentido da liberdade de expressão; em caso muito semelhante ao ora em tela, o Tribunal de Justiça de Goiás, em sede de Agravo de Instrumento, reformou a decisão do Juízo de primeiro grau, que havia determinado a busca e apreensão da obra “Na Toca dos Leões”, de autoria de Fernando Morais. Senão veja-se de trecho da decisão: Pois bem, conforme já mencionado na decisão preliminar a Constituição Federal traz como direitos fundamentais, no seu artigo 5º, inciso IV, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, sendo evidente o direito à liberdade,(...) Diz, ainda, o inciso IX, do mesmo artigo, que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente 410
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de censura ou licença”, e também o art. 220 caput, que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição”. Por outro lado, é certo que a Carta Magna também contemplou a inviolabilidade da honra, da imagem, da privacidade e intimidade, sujeitando as respectivas transgressões ao ressarcimento civil, material e moral, insito no artigo 5º, inciso X. Então deparamos com uma grande celeuma; de um lado o direito do requerente/agravado, Ronaldo Ramos Caiado em não ver divulgado, no livro “Na Toca dos Leões”, texto que julga ser “injurioso”, fato que sustenta ser inverídico e que agride a sua honra pessoal. De outra banda, em debate com a tese anterior, o também constitucional direito do autor de escrever e publicar o seu pensamento, e a agravante o direito de editá-lo e vendê-lo. Mas esse embate ainda não se encontra maduro para ver quem está com a razão, e muito menos possa ser discutido efemeramente aqui, em sede de agravo de instrumento, onde o julgador tem que se ater mais às questões processuais, sob pena de suprimir grau de jurisdição. Nesse passo entendo, ainda, que a proibição da circulação do livro “Na Toca dos Leões – A História da W/Brasil”, não é medida que se impõe mais neste momento. Por tais razões, verifica-se que a liminar concedida na ação cautelar de busca e apreensão e cominatória pelo juiz a quo de acordo com seu convencimento (...) foi em razão do julgador vislumbrar a presença dos requisitos que autorizavam a concessão da medida de forma restrita naquele momento processual, o que agora não se verifica mais, e sendo assim deve ser revogada a medida de busca de apreensão dos livros. Ex positis, conheço do recurso e dou-lhe provimento, para suspender a decisão vergastada. (4ª Câmara Cível AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 44485-0/180 (200500880659) COMARCA DE GOIÂNIA AGRAVANTE EDITORA PLANETA DO BRASIL LTDA Contestação
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AGRAVADO RONALDO RAMOS CAIADO RELATOR Desembargador JOÃO DE ALMEIDA BRANCO) 6.32 Ora, in casu, a utilização da imagem e do nome do personagem do livro editado pela Ré prescinde de autorização, uma vez que o mesmo não é retratado em momento de intimidade restrita. 6.33 Ainda, cumpre observar que, apesar da possibilidade de comercialização de jornais, revistas e livros, isso não significa que a reprodução da imagem e o relato da vida de personagens célebres por meio destes veículos tenham conotação comercial. A doutrina já tem se posicionado amplamente para considerar utilização comercial da imagem como aquela que decorre de sua reprodução em publicidade (mesmo que institucional) e da ilustração de produtos ou de suas embalagens. 6.34 O fato, portanto, é que não subsiste o argumento de que, por não terem sido requeridas autorizações específicas pelo autor da obra editada pela Ré à 1ª Autora, filha de João Guimarães Rosa, tal fato representaria a possibilidade de dano a direito da personalidade da 1ª Autora. 6.35 Assim é que, de fato, não houve qualquer dano à personalidade das Autoras, visto que, em se considerando que esses danos teriam natureza no direito civil stricto sensus, ainda assim, a publicação da obra editada pela Ré não causou qualquer dano às Autoras. 7. DO PEDIDO AUTORAL. DA INEXISTÊNCIA DE DANO PATRIMONIAL 7.1 Restou patente que não que se falar em qualquer prejuízo de ordem patrimonial às Autoras; razão porque se requer a improcedência do pedido das autoras nesse sentido. 7.2 Porém, e ad argumentandum tantum, nos itens (b) e (c) de seu pedido, as Autoras requerem indenização pelos danos patrimoniais em tese causados pelas citações que teriam sido feitas em excesso, requerendo que se tome por base o preço de capa do livro editado pela Ré. 7.3 Ocorre que não há qualquer nexo causal entre os possíveis prejuízos causados às Autoras – o que se considera, como exposto, para argumentar – e o preço de capa dos livros comercializados. 7.4 As Autoras deveriam ter estimado qual valor cobrariam pelas autorizações que em tese seriam necessárias paras as citações, e 412
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então requerer o ressarcimento material por não terem sido pedidas as autorizações. 7.5 Ora, qual é a relação entre o preço do livro vendido pela Ré e um possível prejuízo material das Autoras por não terem sido pedidas as autorizações que seriam devidas? 7.6 Nenhuma. 7.7 Demonstrando o total desconhecimento pela matéria do Direito Autoral – aliás, o que demonstraram em toda a petição inicial – as Autoras requerem algo impossível, mais uma razão para a total improcedência do pedido. 7.8 Em este Juízo entendendo, por hipótese que só se considera ad argumento, que a Ré deve indenizar materialmente as Autoras, que se tome por base os valores normalmente cobrados por editoras de grande porte, como é a 2ª Autora, para a inserção de obras de seu controle econômico em obras de editoras pequenas e independentes, tal qual a Ré. 7.9 Assevere-se que o mercado editorial brasileiro pratica quantias sobremaneira módicas em casos como a hipótese em tela. 8. DO ABSURDO DANO MORAL ARGÜIDO 8.1 Quanto ao item (d) do pedido das Autoras, mais uma vez demonstra-se o desconhecimento técnico-jurídico das Autoras. 8.2 Ora, se houve dano moral in casu – o que também só se admite para argumentar – este só poderia ter por base a utilização do nome e da imagem de João Guimarães Rosa. 8.3 Restou demonstrado que tal utilização não deve ensejar indenização por dano moral; porém, considerar como dano moral o fato de uma biografia estar em tese “cheia de equívocos e abusos” é o mais absurdo dos absurdos. 8.4 As Autoras, não obstante o intuito de exercer uma absurda censura, tirando de circulação a obra editada pela Ré sem qualquer razão plausível, querem ainda ser remuneradas por isso. 8.5 É inacreditável. 8.6 Desta forma, quanto ao pedido de indenização por danos morais, o mesmo deve ser julgado integralmente improcedente, por completo desamparo legal e probatório. Contestação
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8.7 Por conseguinte, não havendo qualquer dano extrapatrimonial a ser indenizado, deve ser também julgado improcedente o primeiro pedido (a), que objetiva a retirada do mercado da obra editada pela Ré. 9. CONCLUSÃO 9.1 Pelo exposto, é a presente para requerer sejam julgados improcedentes todos os pedidos autorais de ressarcimento de danos materiais e morais formulados na petição inicial, bem como o pedido de recolhimento da obra do mercado, condenando-se as Autoras no pagamento das custas e honorários advocatícios, estes que deverão ser fixados no percentual de 20%. 9.2 Na hipótese, por mais remota que seja, e apenas por atenção ao princípio da eventualidade, de se entender que as citações são demasiadas, o que poderá ser apurado através de uma perícia técnica, que seja determinado o número máximo de citações da obra das Autoras que poderão ser feitas na obra editada pela Ré. 9.3 Outrossim, protesta pela produção e admissão de todos os meios de prova em direito admitidos, em especial a a) testemunhal, b) pericial, c) documental superveniente e d) depoimento pessoal das Autoras. 9.4 Informa ainda que, para fins do art. 39, I do CPC, os patronos da Ré receberão as intimações na Rua Dona Mariana, 176, 405, Botafogo, Rio de Janeiro, RJ, tel. 3823-7525 e requerem, desde logo, que todas as publicações sejam realizadas em nome de Daniel Pessôa Campello Queiroz (OAB/RJ 128.878) e Ian Barbosa Santos (OAB/RJ 140.476), sob pena de nulidade. Termos em que espera deferimento. Rio de Janeiro, 03 de outubro de 2008 DANIEL PESSÔA CAMPELLO QUEIROZ OAB/RJ no 128.878 IAN BARBOSA SANTOS OAB/RJ no 140.476
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