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Carlos Lacerda e José Américo: A entrevista que derrubou a censura do Estado Novo

Páginas 8, 9, 10, 11, 12 e 13

Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

Jornal da ABI

337 J ANEIRO 2009

EDIÇÃO ESPECIAL

Perfis e depoimentos exclusivos de ases do melhor jornalismo daqui e do exterior: Teixeira Heizer, Poerner, Asne Seierstad, Cony, Larry Rohter, Villas-Bôas, Ruy Castro


SUMÁRIO

Teixeira Heizer Carlos Lacerda Arthur Poerner Asne Seierstad Carlos Heitor Cony Larry Rohter Ruy Castro Villas-Bôas Corrêa PONTO FINAL

Número 337 - Janeiro de 2009

Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha Projeto gráfico, diagramação e editoração eletrônica: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo, Marcos Stefano e Paulo Chico Fotos e ilustrações: Acervo Biblioteca da ABI (Biblioteca Bastos Tigre), Agência Brasil, Agência JB, Agência O Globo, Folhapress, Jornal do Commercio Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Ana Paula Aguiar, Luiz Fernando Baptista Martins, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Mário Luiz de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas.

Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 jornal@abi.org.br Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP

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Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

DOCU M ENTO HISTÓR ICO

ESTA ENTREVISTA DERRUBOU A CENSURA DO ESTADO NOVO O MAIS JOVEM DOS CASSADOS PELA DITADURA A GUERRA SEM TRÉGUA DO JORNALISMO DE GUERRA “A DITADURA CAIU DE PODRE” ESTA HISTÓRIA NÃO DEU NO NEW YORK TIMES O BIÓGRAFO DA VIDA BRASILEIRA SEIS DÉCADAS NOS BASTIDORES DO PODER

DIRETORIA – MANDATO 2007/2010 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Estanislau Alves de Oliveira (interino) Diretor Administrativo: Estanislau Alves de Oliveira Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretor de Assistência Social: Paulo Jerônimo de Sousa (Pajê) Diretor de Jornalismo: Benício Medeiros CONSELHO CONSULTIVO Chico Caruso, Ferreira Gullar, José Aparecido de Oliveira (in memoriam), Miro Teixeira, Teixeira Heizer, Ziraldo e Zuenir Ventura. CONSELHO FISCAL Luiz Carlos de Oliveira Chesther, Presidente; Argemiro Lopes do Nascimento, Secretário; Adail José de Paula, Adriano Barbosa do Nascimento, Geraldo Pereira dos Santos, Jorge Saldanha de Araújo e Manolo Epelbaum. CONSELHO DELIBERATIVO MESA 2008-2009 Presidente: Pery Cotta 1º Secretário: Lênin Novaes de Araújo 2º Secretário: Zilmar Borges Basílio Conselheiros efetivos 2008-2011 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregesylo de Athayde, Arthur José Poerner, Carlos Arthur Pitombeira, Dácio Malta, Ely Moreira, Fernando Barbosa Lima (in memoriam), Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Mílton Coelho da Graça, Pinheiro Júnior, Ricardo Kotscho, Rodolfo Konder, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa. Conselheiros efetivos 2007-2010 Artur da Távola (in memoriam), Carlos Rodrigues, Estanislau Alves de Oliveiora, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico, José Rezende Neto, Marcelo Tognozzi, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa (Pagê), Sérgio Cabral e Terezinha Santos.

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FAUSTO E OS FOGOS, por Aldir Blanc

Jornal da ABI

Diretor Responsável: Maurício Azêdo

UM HOMEM PLURAL

Conselheiros efetivos 2006-2009 Antônio Roberto Salgado da Cunha (in memoriam), Arnaldo César Ricci Jacob, Arthur Cantalice (in memoriam), Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Augusto Xisto da Cunha, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Alvarez Campos, Heloneida Studart (in memoriam), Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho e Pery de Araújo Cotta. Conselheiros suplentes 2008-2011 Alcyr Cavalcânti, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Ruy Bello, Salete Liusboa, Sidney Rezende,Sílvia Moretzsohn, Sílvio Paixão e Wilson S. J. de Magalhães. Conselheiros suplentes 2007-2010 Adalberto Diniz, Aluízio Maranhão, Ancelmo Góes, André Moreau Louzeiro, Arcírio Gouvêa Neto, Benício Medeiros, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Luiz Sérgio Caldieri, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros suplentes 2006-2009 Antônio Avellar, Antônio Calegari, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Antônio Henrique Lago, Carlos Eduard Rzezak Ulup, Estanislau Alves de Oliveira, Hildeberto Lopes Aleluia, Jorge Freitas, Luiz Carlos Bittencourt, Marco Aurélio Barrandon Guimarães (in memoriam), Marcus Miranda, Mauro dos Santos Viana, Oséas de Carvalho, Rogério Marques Gomes e Yeda Octaviano de Souza. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Ely Moreira, Presidente; Carlos di Paola, Jarbas Domingos Vaz, Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Maurílio Cândido Ferreira. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Audálio Dantas, Presidente; Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, Lucy Mary Carneiro, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, Orpheu Santos Salles, Wilson de Carvalho, Wilson S. J. Magalhães e Yacy Nunes.


EDITORIAL

ROGÉRIO SOUD

VIVENDO PARA CONTAR Profissionais que vão fundo na vida social aqui e no exterior, os personagens dos textos a seguir falam de suas trajetórias e mostram como é sedutor este campo de atividade: o jornalismo.

P

ertencentes a gerações diferentes, formados em ambientes igualmente distintos, com hábitos culturais gestados em meios sem a mesma identidade, os protagonistas das reportagens e entrevistas desta Edição Especial do Jornal da ABI têm como traço comum aquilo que inspirou o escritor colombiano Gabriel García Márquez ao escolher o título de suas memórias: eles vivem para contar, para relatar o que vêem em sua peregrinação profissional. Para pontificar nessa arte e nessa técnica que é o jornalismo, eles enfrentam não poucas privações, que variam da necessidade de adaptação a hábitos estranhos à sua formação, em países de civilização diferente, ao risco de perseguições, ameaças e vi-

olências, entre as quais a de banimento do lugar em que trabalham e vivem. Não são poucas as vicissitudes nem raras as hostilidades com que se deparam. Em muitos momentos há que se ter coragem; noutros, sangue frio, domínio das emoções, para que o relato não seja toldado pelo sentimento, ainda que em muitas descrições este seja mais do que necessário: obrigatório. A fascinante aventura profissional desses mestres do jornalismo é o creme do creme desta edição, engalanada por uma preciosidade histórica: a célebre entrevista de José Américo de Almeida ao jornalista Carlos Lacerda, que rebentou a censura do Estado Novo e precipitou sua derrocada, em 1945, prova de que jornalismo não é só contar, mas também e sobretudo provocar mudanças. MAURÍCIO AZÊDO Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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PERFIL

TEIXEIRA HEIZER UM HOMEM PLURAL FRANCISCO UCHA

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m jornalista, um radialista, um advogado, um professor. Não, não se trata de um elenco de profissionais por ofício, mas, sim, de uma só personalidade: é o competente Teixeira Heizer. Nos idos de 1963, foi ouvido e visto na BBC da Inglaterra, e, através das ondas curtas da Rádio Nacional de Portugal, da WRUL de Nova York, ou produzindo programas para os longínquos rincões de línguas portuguesa e espanhola. Os registros assinalam nascimento no ano de 1932 – 16 de dezembro – num pequenino distrito de São Fidélis, no Norte do Estado do Rio. Mas ele mesmo faz questão de acentuar que toda a sua infância e juventude deram-se nas bordas da Estrada Rio-Bahia, nas cercanias de Leopoldina, Minas Gerais. Meio mineiro, meio fluminense, sobretudo um cidadão brasileiro, esse ousado veterano da imprensa nutre-se de uma juventude imperecível, movendo-se com agilidade física e mental pouco comum aos companheiros de sua geração. No Rio – onde fincou sua base residencial – Heizer chegou no início da década de 50. Pouco depois, já estava envolvido com o radialismo e o jornalismo, na Emissora Continental – então uma rádio muito ouvida na cidade – e no Diário da Noite, vespertino do Grupo Associado. De permeio, estudava advocacia na Universidade Federal Fluminense, onde se formou e obteve vários títulos de extensão universitária. Atravessou mil fronteiras profissionais e geográficas, mergulhou em coberturas jornalísticas internacionais de grande significação, sobretudo na área esportiva, na verdade a sua preferida até à década de 70. Mas sua inquietação e seu espírito versátil balizaram melhor seu rico destino profissional. – Aquela equipe chefiada por Oduvaldo Cozzi, depois por meu compadre Valdir Amaral, ensinou-me a relatar várias modalidades de esportes: futebol, basquete, vôlei, natação, remo, atletismo, boxe etc. Comprometi-me com os ouvintes, de coração, sendo esse um pacto de grande encantamento que me empurrou pra frente, primeiro como relator, depois como comentarista. Teixeira Heizer justifica o fato de os jovens locutores não conhecerem seu trabalho como narrador de esportes lembrando que só Julio Delamare e ele

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Em matéria de jornalismo há muito ele brinca nas onze, para usar imagem da sua área de atuação, o esporte. Ele fez jornal, revista, rádio, televisão, livros, percorrendo uma carreira jamais imaginada pelo menino de um pequeno distrito no Norte fluminense. POR PAULO STEIN

transmitiam esportes amadores (como eram chamados antigamente as outras modalidades esportivas, pois só o futebol era considerado profissional), nas Rádios Tupi e Continental, nos idos de 50. Tinham terminologia própria para a construção de suas narrativas: – Outro dia, ouvindo um jogo de vôlei, surpreendi-me ao ver que a terminologia e o jeito de narração eram os mesmos dos anos 50 e 60. Sem tirar o mérito do trabalho do locutor, a transmissão pouco acrescentava em termos de novidade artística e jornalística. Heizer foi o primeiro empregado da TV Globo, registro nº 1, em 1965. Lá atuou como adjunto da primeira diretoria, co-apresentador de jornais e chefe do departamento de esportes. – Quando fui para a TV Globo, nem estúdios havia. Revivo com saudade as dificuldades da diretoria da qual fui assessor: Mauro Sales, Abdon Torres, Herculano Siqueira e General Lauro Medeiros. Fomos os pioneiros. Orgulho-me de ter participado dessa primeira barricada que abriu caminho para o êxito de hoje. Na Globo, Heizer lançou os programas Em Cima do Lance e Por Dentro da Jogada. O primeiro trabalho externo foi a filmagem do jogo Brasil x União Soviética, em novembro de 1965. – Foi um esforço conjunto de cinegrafistas, editores, montadores e locutores da época, todos de primeiro time. As cenas do jogo, em sua maioria, foram filmadas com uma “mudinha”, uma câmera que usava filme sem trilha sonora. José Carlos Araújo fez as reportagens de campo, com uma câmera Auricon, que fazia filmagens sonoras. Tudo em preto e branco. Antes, Heizer atuou na TV Continental. Depois, na Excelsior, Tupi, Rio e Nacional de Brasília. No rádio, além da Continental, brilhou na Globo e na Nacional, nesta em nível de direção. No jornalismo impresso, suas carteiras de trabalho assinalam passagens pelo Correio Fluminense, de Niterói, Última Hora, Diário de Notícias, Rio Gráfica e Editora, Editora Abril, Empresa Brasileira de Notícias (diretor da Sucursal Rio) e O Estado de S. Paulo, onde foi subchefe de Redação da Sucursal Rio. – Foram 23 anos no grande jornal paulista, embutido nessa temporada o período da ditadura militar. Sofremos as mais duras perseguições. Como chefe de reportagem, minha responsabi-


FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

Teixeira Heizer começou no jornalismo muito cedo, com 22 anos, e tinha cara de menino quando estreou como repórter de Geral, entrevistando o Presidente JK (ao lado, à esquerda), e quando colou grau em Direito (4º da esquerda para a direita, na segunda fila). A juventude não o impediu de apresentar programas importantes, como o Jornada Esportiva.

lidade se multiplicou, mas em momento algum cedemos espaços ao regime discricionário. Teixeira Heizer relembra momentos de alta tensão como o exílio de colegas importantes – Ferreira Gullar entre eles – além do infortúnio de Maurício Azêdo, vitima de tortura desmedida. – No Rio, tivemos diretores exemplares: Prudente de Morais, neto, Fernando Pedreira e Villas-Bôas Corrêa. Eles ensinaram nosso grupo a ter dignidade diante dessa fase trágica da vida brasileira. Teixeira envolveu-se também na bibliografia esportiva, com uma obra muito acreditada, O Jogo Bruto das Copas do Mundo, em dois volumes festejados entre os leitores. Agora mesmo,

está convidado a construir uma história comentada das Olimpíadas, dando preferência a fatos e feitos laterais, com tempero diferente dos livros de resultados, muito em moda. Ele não se deteve nos trabalhos diretos do jornalismo. Entendeu a necessidade de passar adiante seus conhecimentos e mergulhou em outra atividade, na qual logrou sucesso: o magistério. Como professor universitário formou enorme contingente de profissionais, espalhados pelos jornais, rádios e tevês de todo o Brasil. Um currículo robusto revela a competência de Teixeira Heizer. Voz, pena e ação em favor das manifestações informativas, educacionais e culturais que, certamente, bordaram um espectro ainda mais bonito para o Rio que ele tanto ama. A extraordinária carreira de Teixeira Heizer não comportaria num currículo convencional. Vale, entretanto, reunir suas atividades – só as oficiais, registradas em contratos e carteiras profissionais – que avançam de 1955 até os dias de hoje, onde se vinculam ao jornal O Dia e ao Canal Sportv, para se ter a codificação de uma história ancorada na ética e no esforço pessoal. Dificilmente se conhecerá perfil como o de Teixeira Heizer, considerando o número de empregos formais por onde passou, com destaque para o Estado de S. Paulo, jornal em que atuou por 23 anos, sobretudo em coberturas internacionais como Copas do Mundo e decisões de títulos mundiais, e ao acompanhar o Santos do ciclo de Pelé.

Teixeira atuou em um dos mais famosos programas da tv no começo da década de 60, o Noite de Gala, da TV Excelsior, que liderava a audiência. Fraterno na convivência, desde cedo fez-se admirado e querido pelos colegas.

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Um momento de descontração na entrega do Prêmio Melhores de 1970 na TV Continental, Canal 9. À esquerda, uma estrela que subia: Hebe Camargo.

A TRAJETÓRIA: JORNAL, REVISTA, RÁDIO, TV JORNAIS E REVISTAS 1954 a 1955 - Correio Fluminense Repórter 1955 a 1958 - Diário da Noite Repórter 1960 - Última Hora Repórter

2002 - Globo News Série de 10 programas Colecionadores de Copas tv Comentários 2005 a 2008 – Spor Sportv em programas

aulo 1959 a 1982 - Estado de S.P S.Paulo Repórter, Coordenador de Editoria, Secretário e Chefe de Reportagem da Sucursal do Rio

RÁDIO 1955 a 1959 - Emissora Continental Locutor esportivo e Programas e transmissões

1960 a 1964 - Diário de Notícias Repórter e Editor de Esportes

1963 a 1965 - Rádio Globo Locutor esportivo, Redator e Comentarista

1961 a 1966 - Rio Gráfica e Editora Editor de Revistas

1989 a 1990 - Rádio Nacional (Radiobrás) Diretor de Jornalismo, Produção e Esportes

1970 a 1973 - Editora Abril Repórter das Revistas Placar e Freelancer de Veja 1986 a 1990 - Empresa Brasileira de Notícias Diretor da Sucursal/Rio 1990 - Tribuna da Imprensa Copidesque durante a reforma

MAGISTÉRIO 1975 – Universidade Gama Filho Coordenador do Curso de Comunicação e Professor titular de Jornalismo 1976 – Facha Professor adjunto

1992 - Última Hora Copidesque e Editor 1998 a 1999 e de 2006 até hoje - O Dia Colunista TELEVISÃO 1961 a l964 – T V Continental Produtor e apresentador de programas, Coordenador do Departamento de Esportes e Narrador de futebol 1965 a 1967 - T V Globo Assistente da diretoria, Chefe do setor de esportes, Editor e apresentador de programas e Co-apresentador do telejornal diário 1967 a 1968 - T V Excelsior Comentarista e Produtor do programa Noite de Gala (um dos) 1971 a 1972 - T V TTupi upi Produtor dos programas semanais de esportes e Comentarista 1973 a 1974 - T V Nacional de Brasília Participação no Programa Operação 74

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Teixeira com Telê Santana, técnico da Seleção Brasileira de Futebol em 1982 e 1986.

Teixeira Heizer recebe a Medalha Tiradentes na Assembléia Legislativa do Estado do Rio. 0s presentes: Álvaro Caldas (1º à esquerda), Mário Cunha (2º), Villas-Bôas (3º), Deputado Barbosa Porto (4º) e Eucimar de Oliveira (6º).

OS CAMINHOS DE UM CAIPIRA ATÉ PARIS Teixeira Heizer relembra os empecilhos que o destino opôs em seu caminho, desde a infância de caminhante descalço no saibro da Estrada Rio– Bahia, até à vida sonhada em Paris, onde residiu, bordando uma formação cultural de bom refinamento. Provavelmente, essas dificuldades tenham forjado um espírito de profissional vencedor. Da estrada caipira mineira a Montparnasse foi um trajeto, nada mais do que isso, ele faz questão de assinalar, com certa ponta de orgulho, mas sem qualquer margem de soberba. – Credito aos que lutaram comigo: a família e os amigos que tanto me orientaram em questões de dignidade e aos profissionais que me cercaram, revelando-me os secretos e espremidos caminhos por onde passei no jornalismo. Claro que não posso me esquecer dos amigos de bar. Sem o formalismo que codifica nosso aprendizado nas redações e estúdios, a gente aprende muita coisa boa. Preferindo citar nomes sem os hierarquizar, Teixeira Heizer arma seu catalogo: Nos jornais e revistas – Prudente de Morais, neto, VillasBôas Corrêa, Mário da Cunha, Eucimar de Oliveira, Luiz Fernando Lima, Ivan Alves (o pai), Ferreira Gullar, Fernando Pedreira, Álvaro Caldas, Luiz Carlos Cabral, Antônio Carlos de Carvalho, Luiz Garcia, Raul Bastos, Clóvis Rossi, Ludemberg Góis, Ricardo Kotscho, Luiz Carlos Ramos, José Trajano, Geraldo Pedrosa, Raul Quadros, Maurício Azêdo, Mário Jorge Guimarães, Ernesto Sotto, Helena

Celestino, Renato Maurício Prado, Hélio Cícero, Isabel Mauad, Gilson Monteiro, Nilson Lage, Luiz Luna, Vanderlino Nunes, Albert Laurence, Aparício Pires, Geraldo Escobar, Sérgio Porto, Joel Silveira, Fernando Bruce, Sandro Moreyra, Geraldo Romualdo da Silva, Ary Guanabara e Silvio Fonseca (estes dois, niteroienses que o lançaram e lhe ensinaram os primeiros passos no jornalismo) No rádio – Luiz Brunini, Valdir Amaral, Oduvaldo Cozzi, Luiz Mendes, Mauro Pinheiro, Jorge de Souza, Celso Garcia, José Carlos Araújo, Doalcei Camargo, Saint-Clair Lopes, Luiz Fernando Vassalo, Celso Guimarães, Antônio Cordeiro, Jorge Cúri e Luiz Alberto. Na tv – Dermeval Costalima, Antonino Seabra, Heli Celano, Paulo Goulart, Luiz Carlos Miele, Ronaldo Boscoli, Péricles Amaral, Maurício Sherman, Mário de Moraes, Mauro Sales, Abdon Torres e Herculano Siqueira. (E eu, que me excluí da lista acima, porque, além do mais, sou companheiro de trabalho, aluno, filho adotado, amigo e afilhado. Na verdade, foi com ele que aprendi a profissão e a ver a diferença entre o certo e o errado, a ter ética profissional.) – A linguagem de cada área do jornalismo me foi passada pelos profissionais citados, a par de estudos pessoais sobre a ciência da comunicação social. Meu modesto entendimento indica que não devamos desprezar os conceitos passados. Afinal, dos conhecimentos pretéritos surgirá a argamassa que construirá o futuro. Explico mais: a tecnologia não deve passar de um ingrediente importante, por sinal, para edificar nossa vida intelectual e profissional – diz Teixeira Heizer.


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DOCUMENTO

CARLOS LACERDA

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ma negociação precedeu à publicação daquela que seria o marco da retomada da liberdade de imprensa no Brasil, depois do prolongado sufoco implantado pela decretação da ditadura do Estado Novo pelo Presidente Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937: a publicação de longa entrevista do ex-Ministro da Viação José Américo de Almeida, com a condenação de uma possível candidatura de Vargas na eleição que deveria seguir-se ao fim da Segunda Guerra Mundial e uma análise minuciosa e abrangente das atividades do Governo, com um teor crítico que não se conhecia desde o malsinado 10 de novembro. Feita por um jovem e talentoso jornalista, Carlos Lacerda, a entrevista não constituía um fato apenas e estritamente jornalístico, pois integrava uma articulação que tinha em vista a derruição do poder do Estado Novo e que teria como depoente uma personalidade cujas palavras ressoariam fortemente na opinião pública. Seria José Américo de Almeida, líder paraibano que li-

DO

Publicado pelo Correio da Manhã em 22 de fevereiro de 1945, este histórico pronunciamento de José Américo de Almeida, que liderara a Revolução de 1930 no Nordeste, rompeu o silêncio imposto pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o poderoso Dip de Lourival Fontes, restaurou a liberdade de informação e de opinião e abriu caminho para a própria deposição do ditador Getúlio Vargas. Foi esse um dos mais notáveis trabalhos de um jovem e talentoso jornalista: Carlos Lacerda.

AL RN JO

ESTA ENTREVISTA DERRUBOU A CENSURA DO ESTADO NOVO

Entre os trabalhos que deram renome a Carlos Lacerda destacou-se esta memorável entrevista com José Américo de Almeida.


derara a movimentação civil da Revolução de 1930 no Nordeste, integrara o Governo Vargas até o advento do Estado Novo, como Ministro da Viação, e fora lançado candidato à Presidência da República na eleição programada para 1938, abortada pelo golpe militar que implantou o Estado Novo. Nessa articulação teve papel eminente um hábil político mineiro, Luís Camilo de Oliveira Neto, que tivera participação destacada em infrutífera contestação do Estado Novo, o Manifesto dos Mineiros, de 1943, e não arrefecera no ânimo de derrubar a ditadura. A Luís Camilo se deve o êxito nos diferentes passos da articulação: convencer José Américo a conceder uma entrevista-bomba; escolher um jornalista que se impusesse previamemte à confiança do entrevistado; captar a adesão de um jornal importante para a publicação do pronunciamento. A escolha de Carlos Lacer-

da não se dava por acaso: ele despontara cedo como um dos mais brilhantes repórteres do País, ao lado de outros jornalistas tão jovens como ele – Samuel Wainer, Joel Silveira, Edmar Morel. Além da sua importância histórica, a entrevista agora reproduzida pelo Jornal da ABI oferece uma visão da técnica e do estilo jornalístico dominantes naquela primeira metade dos anos 40, os quais experimentaram inegável refinamento nos anos e nas décadas seguintes, através tanto desses ases da imprensa como de outros que lhes sucederam. É possível verificar, com o olhar crítico de nossos dias, que o repórter intervém na exposição do entrevistado sem a pertinência e o senso de oportunidade que se notam hoje; ora concede ao depoente largos espaços de opinamento, ora permite que este transite de um tema para outro sem a harmonia desejável, sem o

quando foi deposto pelo Estado Novo, e de Maurício de Lacerda, exdeputado, líder da esquerda nos anos 20 e um dos mais notáveis tribunos que o Brasil conheceu, virtude que, aliás, impregnou o dna de seu filho Carlos. A publicação a seguir, mantidos os intertítulos do original, reproduz os textos mais expressivos da entrevista de José Américo, cuja íntegra foi obtida pelo Jornal da ABI no Site do Governo da Paraiba/Fundação José Américo de Almeida, que cultua seu ex-Governador e inovador da literatura regional do País com o celebrado romance A Bagaceira. Registre-se que a habilidade de Luís Camilo de Oliveira Neto e seus companheiros de conspiração atentou para a necessidade de não se fazer alarde na apresentação da entrevista, publicada com um título aparentemente inofensivo, neutro: A situação: declaração do sr. José Américo. (Maurício Azêdo)

encadeamento lógico dos aspectos expostos ou analisados. Não se está, porém, diante de tropeços na técnica jornalística: este não é um trabalho meramente profissional, mas a produção de um documento político com fins determinados – aliás alcançados. A escolha do Correio da Manhã também não fora fortuita. Desde a sua criação, em 1901, por Edmundo Bittencourt, o jornal teve forte engajamento na vida política do Pais, o que lhe impôs prisões, processos, proibições de circulação, perseguições de todo tipo. Paulo Bittencourt, seu herdeiro e sucessor, manteve essa linha audaz, corajosa. Na mesma semana em que publicou a entrevista de José Américo, o Correio havia estampado declarações de um opositor do varguismo, o gaúcho Flores da Cunha, que tivera participação destacada na Revolução de 1930 e governou o Rio Grande do Sul de 1935 a 1937,

A FALA DE JOSÉ AMÉRICO “Nesta hora não me nego a falar. Ao contrário, julgo chegado o momento de todos os brasileiros opinarem. Esta é uma hora decisiva que exige a participação de todos no rumo dos acontecimentos.” Com estas palavras o Sr. José Américo de Almeida, chefe civil da Revolução de 30 no Norte, Ministro da Viação e depois candidato à Presidência da República, volta à participação ativa na vida pública. Baseado precisamente nessas credenciais e na sua condição de escritor, o que, no seu modo de ver, importa em compromisso perante a opinião nacional, o Sr. José Américo, atualmente Ministro do Tribunal de Contas, invoca as decisões do Primeiro Congresso de Escritores Brasileiros, reunido em São Paulo em janeiro deste ano, para acentuar a obrigação de os homens de pensamento tomarem atitude ante “os problemas de sua época e do seu povo”. “Todos devem intervir na vida pública, segundo sublinhou bem a Declaração de Princípios dos Escritores. Por isso mesmo saio do retraimento em que me tenho mantido para manifestar uma opinião sincera em relação ao problema fundamental do meu País.” Na varanda de sua casa da Rua Getúlio das Neves, com raras interrupções – a netinha que vem pedir um envelo-

AGÊNCIA O GLOBO

POR CARLOS LACERDA

José Américo seria o candidato de Getúlio na eleição de 1938. Com o golpe do Estado Novo, Getúlio derrubou a eleição e o candidato.

pe, a empregada que traz o café, a chegada de um amigo –, na paz das samambaias umbrosas, junto à massa do Corcovado, ao fundo da pequena rua, o Sr. José Américo faz as suas declarações. Em plena maturidade, sem os óculos que os caricaturistas celebrizaram em duas espirais representando as lentes grossas, baixando um pouco a cabeça para falar, num jeito modesto e tímido, mas inexorável de dizer as suas verdades, é indisfarçável a emoção com a qual ele se dirige à opinião brasileira. “O povo me entende porque eu sempre procurei ser sincero, simples e direto. Falo de consciência tranqüila e coração aberto”. Para ele o problema nacional é menos político do que moral. “Acredito na existência da sensibilidade moral do nosso povo. Não sou um desencantado. Sei quanto vale o homem brasileiro”. Romancista da gente nordestina, ele acredita profundamente no vigor essencial do brasileiro. Sendo o primeiro a proclamar a crise moral que lavra fundo na consciência nacional, considera possível curá-la com os próprios recursos da democracia, já que foi o regime autoritário que a agravou. A autoridade das suas palavras provém menos da experiência dos homens e das coisas do Brasil do que da maneira pela qual parece encarar essa própria realidade. Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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CARLOS LACERDA ESTA ENTREVISTA DERRUBOU A CENSURA DO ESTADO NOVO

JORNAL DO COMMERCIO

O Sr. José Américo é uma força telúrica. Parece, realmente, um homem profundamente enraizado na terra. A sua emoção, hoje fortalecida pelo ostracismo e pela dignidade com que soube esperar, ressurge agora com a força concentrada da longa meditação sobre os homens e os fatos do País. Não existe amargura, antes alegria, ainda que discreta, nas suas palavras. E ele se prepara, com um indisfarçável orgulho, para enfrentar as conseqüências de suas atitudes, considerando necessário falar agora, nunca depois deste momento. “No momento em que se pretende transferir a responsabilidade da situação dominante no Brasil da força que a apóia para a chancela do povo é a própria ditadura expirante que nos dá a palavra. É preciso que alguém fale, e fale alto, e diga tudo, custe o que custar”. CLANDESTINIDADE E SINCERIDADE

“Já todos sabem o que se está processando clandestinamente. Forja-se um método destinado a legalizar poderes vigentes, a manter interventores e demais autoridades políticas, pela consagração de processos eleitorais capazes de coonestar essa transformação aparente. Mas – acentua – uma Constituição outorgada não será democrática porque lhe falta a legitimidade originária. O projeto que se anuncia, mas que não foi ainda divulgado, devia ser submetido a uma comissão de notáveis e à consideração de órgãos autorizados, como a Ordem dos Advogados, sempre atenta na defesa de nossas tradições jurídicas e ideais democráticos, que nunca deixou de associar como criações do mesmo espírito, para receber finalmente a aprovação ou modificação de uma Assembléia Constituinte, assegurados debates livres e capazes de permitirem que todos acompanhassem a elaboração da carta fundamental da Nação. Assim o documento seria legítimo.”

Matreiro, o Presidente lançou um movimento para ficar no poder após 15 anos. Era o “Constituinte com ou sem Getúlio Vargas” A entrevista de José Américo frustrou a manobra.

desse ter um contacto com o Sr. Getúlio Vargas, nesta hora, eu que lhe falei com franqueza e não raro com proveito pela fidelidade com que lhe transmitia a impressão de certos atos de governo, fora do âmbito palaciano, segundo reconheceu na carta que me dirigiu por ocasião da minha saída do Ministério, eu lhe diria: – Faça de conta que sou aquele Ministro que nunca lhe faltou com a verdade.” E a seguir enumera o Sr. José Américo os argumentos que iria apresentar ao seu antigo amigo e Chefe de Governo para demovê-lo da idéia de se apresentar candidato á Presidência da República, caso esse desejo esteja em suas cogitações.

“É preciso que alguém fale, e fale alto, e diga tudo, custe o que custar.”

PALAVRAS AO CHEFE DO GOVERNO O Sr. José Américo prossegue: “Nunca mais me avistei com o Sr. Getúlio Vargas. Mas não somos inimigos. A habilidade que eu reconheço nele é a de não irritar adversários – pelo menos até uma certa época. Se eu pu-

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FALTA DE APOIO Segundo o Sr. José Américo, seriam estes os argumentos: “1 – Falta de apoio do mundo político. Amigos do Sr. Getúlio Vargas que lhe merecem a maior confiança já consultaram setores dos mais ponderáveis da opinião e chegaram à evidência de que lhe faltaria esse apoio imprescindível, não só para assegurar o êxito de uma eleição livre, como para autenticar a nova feição do seu poder. 2 – Em conseqüência, ficaria o candidato reduzido ao quadro atual do governo, restrito e fatigado.” Passa o Sr. José Américo a fundamentar essas afirmações: “O Brasil vai ingressar no seu momento mais difícil. E precisa, sobretu-

do, da união nacional para encontrar os meios necessários a uma estruturação democrática apta a lhe dar substância que fundamente a obra de restauração do após-guerra. Faz-se necessário, para tamanha empresa, além do concurso de massas, a utilização de todos os elementos de cooperação capaz, de todos os valores mobilizáveis da nacionalidade. Precisamente isto – acentua – seria impossível se o atual Chefe do Governo se fizesse candidato. É certo que alguns chefes de Estado têm permanecido no poder, em face da exigência de problemas graves. Mas renovando seu equipamento administrativo, o seu corpo de auxiliares. E quanto maior a crise, mas profunda essa mudança de valores.” CRISE DE CONFIANÇA “Ora, essa substituição não poderia realizar em conseqüência da crise de confiança declarada no País. Para atender aos reclamos da pacificação nacional, numa obra comum – direi – de salvação pública, seria necessário que o Governo, como um todo, merecesse a confiança dos democratas. Mas a longa prática do poder, sobretudo de um poder discricionário, vicia os seus elementos políticos e administrativos, incapacitando-os, perante a opinião, para uma obra de renovação cívica e material. Esse material humano já dispõe de crédito para empreender uma nova aventura. E não se pode cogitar de aventurar quando estão em jogo os destinos supremos do Brasil. Já não se pode tentar nova experiência com esse

elemento, incapaz de eliminar voluntariamente todos os vestígios do Governo autoritário, porque: 1 – Ele se tornou suspeito perante a opinião democrática. 2 – Devido ao seu insucesso na obra administrativa.” UM EXEMPLO: SÃO PAULO Conseqüentemente, para o Sr. José Américo, intimamente ligada à crise de confiança política existe uma crise, talvez ainda mais profunda, de confiança na capacidade administrativa da equipe política que compõe o Governo. “Vamos examinar um setor, por exemplo. E há de ser precisamente o exemplo da região nacional que, sendo a mais organizada e eficiente, é a que mais produz riqueza: São Paulo. Que é São Paulo, atualmente?”. E o Sr. José Américo sintetiza: “De vinte milhões cai para dois milhões de sacas a produção de café, enquanto, pela proibição de novas culturas, o cafezal existente, envelhecido, apresenta rendimento mínimo para o custeio elevadíssimo. Comprometidos o presente e o futuro da produção algodoeira. Um parque industrial não renovado, inclusive por imposições oficiais, e que, portanto, não poderá suportar a concorrência da industria estrangeira mesmo sob a proteção alfandegária, quando ressurgirem os produtores mundiais dotados de equipamentos modernos, ainda mais remunerador. Além do mais, lá, como em todo o Brasil, o flagelo da inflação agravando todos os problemas e interesses. E – o que pareceria inconcebível ver-se em todas as terras de São Paulo – esse grande celeiro chegando a sofrer necessidade e apelar para a produção dos Estados do Sul porque, tendo sido vedadas às novas plantações de café, cessou a cultura alternada de cereais que era feita pelos colonos! Basta esse quadro – continua – para mostrar que o Sr. Getúlio Vargas iria iniciar sem solução de continuidade uma nova fase de governo exatamente quando se está a encerrar uma outra e longa fase sem resultados compensadores. Com a sua renúncia expressa à hipótese de sua candidatura, poderia ele recuperar sua popularidade. Reconciliado, assim, com a opinião publica, deixaria um saldo para futuramente ressurgir, com a maior e mais justa projeção.” Eis nas suas serenas palavras o que o Sr. José Américo diria ao seu antigo amigo, o Presidente Getúlio Vargas, para evitar que por falta de uma advertência leal ele fosse levado a aceitar o lançamento do seu nome a sua própria sucessão. UMA GUERRA QUE É NOSSA

Passa depois a analisar a guerra e a paz nas suas relações com o momento nacional: “Embora não queiramos sofrer influ-


REPRODUÇÃO

“Um governo não se compõe de um só homem providencial e de um povo anestesiado. Já há dias lembrava o meu amigo Adolfo Konder que qualquer cidadão capaz pode ser Presidente da República – verdade elementar que íamos esquecendo.”

UNIÃO NACIONAL E HOMEM PROVIDENCIAL

“Para atender às solicitações da guerra à consciência dos brasileiros, precisa o País de um governo de concentração nacional. Ora, um governo não se compõe de um só homem providencial e de um povo anestesiado. Já há dias lembrava o meu amigo Adolfo Konder que qualquer cidadão capaz pode ser Presidente da República – verdade elementar que íamos esquecendo. Um homem de bom senso e espírito amplo que convoque a cooperação de todos os patriotas e se cerque de auxiliares que, pelo seu valor e idoneidade, merecem a confiança nacional, esse homem, sim, poderá realizar o grande governo de que o Brasil, mais do que nunca, necessita. Assim, pois, reintegrado na ordem jurídica, fiadora dos interesses nacionais e estrangeiros que se disponham a colaborar na nossa riqueza, em ambiente de liberdade e justiça e conduzindo por essa poderosa consciência de sua própria predestinação, atravessará os dias di-

AGÊNCIA O GLOBO

ências estranhas, evidentemente o Brasil tem de receber os reflexos da guerra, do caráter ideológico da guerra, que é uma luta pela sobrevivência e purificação da democracia. A guerra, com todos os seus males, é uma grande oportunidade para nos organizarmos e ocuparmos o espaço territorial do nosso País, desenvolvermos a exploração de nossas riquezas. A vitória que os nossos compatriotas da Força Expedicionária Brasileira foram buscar na Europa é uma vitória atual para a nossa geração, sim, mas sobretudo uma vitória para o futuro do Brasil. Já estava premeditada a partilha do nosso território, mesmo antes do litígio, com os países do Eixo, conforme documentos da maior gravidade que foram há tempos apreendidos, de maneira que triunfantes esses países constituiríamos um dos mais ricos despojos. Foi a resistência vital das democracias que salvou a nossa independência.”

Com uniforme de chefe militar (ao alto), que ele não foi, Getúlio chegou ao Rio em 3 de novembro de 1930 para assumir a Presidência da República, à qual se afeiçoou com tal intensidade que só um movimento militar conseguiu apeá-lo do Catete, em 29 de outubro de 1945. José Américo, que liderara a Revolução de 30 na Paraíba, deixou o cargo de interventor federal no Estado e veio para o Rio para assumir o Ministério da Viação e Obras Públicas. Na entrevista, ele trata Getúlio como amigo, que ambos foram, realmente.

fíceis de reajustamento das novas condições do mundo. Só organizado nesses moldes poderá valorizar a sua existência como nação e atender aos seus compromissos na reconstrução do mundo devastado. Um governo de equilíbrio, de ordem, de trabalho.” A RESPONSABILIDADE DA CRISE “Costuma-se responsabilizar a guerra pela depressão econômica do Brasil.

Não me parece que seja exato esse conceito. Nem que se diga que a mobilização de um contingente mínimo em relação à nossa massa demográfica desviou atividades a ponto de prejudicar a normalidade produtiva que, ao contrário, devia ter sido desenvolvida, à maneira do que ocorreu em todos os países beligerantes exatamente para atender às novas necessidades criadas pela luta. Ao invés, o Brasil tem vivi-

do, em parte, do estancamento e da paralisação de fontes produtoras, causados pela guerra em outros países. A guerra trouxe capitais, técnicos, cooperação na solução dos nossos problemas, descoberta de riquezas e valorização de produtos. Alguns Estados do Nordeste – para falar só nele – estariam famintos se não fosse a localização e valorização de seus minérios e produtos estratégicos. De fato, a guerra prejudicou um pouco o abastecimento, mas unicamente porque foi permitido exportar mais que o possível, com prejuízo do consumo interno. Só a escassez do petróleo poderia ser atribuída à guerra, mas isso acontece até nos países produtores desse combustível e deve ser levada à conta da ausência de estoques que deveriam ter sido feitos logo que se manifestaram os primeiros sinais da tormenta a avizinhar-se.” O Sr. José Américo fixa então o seu interlocutor e declara: “O que houve realmente foi o maior pecado: a imprevisão.” IMPREVISÃO E INCAPACIDADE “De fato, por imprevisão, a guerra nos surpreendeu já sem aparelhamento de transporte, com déficit de material nas estradas de ferro, empresas de navegação desorganizadas, carência de produção. Só assim se explica que as nossas cidades tenham chegado à crise de abastecimento que resulta: 1 – De falta de produção. 2 – Da falta de transportes terrestres e marítimos. 3 – E, mais prejudicial, da especulação que o Governo não teve forças para controlar. E deve-se considerar também a desorganização geral, cujo sintoma mais penoso são as filas em que as populaJornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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JORNAL DO COMMERCIO

estaria anulada nos seus efeitos pela falência de sua função essencial, que é garantir o bem-estar do povo. Basta verificar a situação de pobreza e miséria a que chegaram a classe média e a classe trabalhadora, no conceito do próprio General Góis Monteiro, em sua recente entrevista. Desde que falta o que comer, falta tudo. A fome é a suprema necessidade.” CANDIDATOS QUE PODEM E QUE NÃO PODEM

Apesar da contribuição de José Américo, com essa entrevista, ao movimento pela derrubada do Estado Novo, Getúlio não o considerou inimigo ou desafeto. Ao voltar ao poder como Presidente legitimado pelo voto, Getúlio mais uma vez lhe confiou o Ministério da Viação.

ções urbanas perdem o tempo e esgotam os nervos criando o ambiente de irritabilidade que já se pode observar com certa inquietação.” Há uma pausa na enumeração, visivelmente destinada a assinalar o aspecto seguinte: “4 – O outro fator é a intervenção de um Estado desaparelhado e incapaz. Essa intervenção perturbou uns tantos problemas que a iniciativa particular ia conduzindo com relativa facilidade. O Estado incapaz, ao intervir, criou casos de perturbação, ora pelo retraimento da iniciativa particular, ora pelo seu iniludível efeito sobre o nível dos preços das utilidades.” E assim, com a sua característica franqueza, o Sr. José Américo feriu de frente a origem do problema do abastecimento, definindo a causa da crise da carne, do peixe, de ovos, do leite, da manteiga, do sal, etc. “E – acrescentou ele – por que não dizer do açúcar, em que se transformou, aberrantemente, o fenômeno da superprodução em severo racionamento? Finalmente, da carência de tudo que aflige a população e que se procura em vão subtrair à responsabilidade do governo transferindo injustamente essa responsabilidade à emergência da guerra.” E muito simplesmente conclui: “Esta é que é a verdade e todos sabem o que eu digo. Todos sentem e comentam essas deficiências e esses erros. Basta comparar o aumento do custo de vida em países muito mais duramente atingidos pela guerra com o de astronômicas proporções que se registrou no Brasil para ver que a guerra não é a causa principal da nossa crise econômica. Por certo, mesmo com a previsão, que faltou, seria difícil improvisar muita coisa. Mas, mesmo com a imprevisão que 12

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evidentemente predominou, seria possível improvisar muito, no terreno da produção agrícola. Com a diversidade dos nossos climas, a caracterização de áreas de produção diversificável, seria possível intensificar, em poucos meses, a produção de cereais e outros gêneros de primeira necessidade.” CONCENTRAÇÃO DE ESFORÇOS

O Sr. José Américo não nega que, “no decorrer de tantos anos, e a partir de 37, com uma soma de poderes que nenhum governante enfeixou no Brasil, ainda mais sem abalos da ordem pública, o Governo tenha procurado encaminhar alguns problemas. Por exemplo, o da siderurgia”. Mas acrescenta: “Houve, no entanto, o abandono de iniciativas primárias, principalmente aquelas relacionadas com a produção e o transporte. É possível que tenha prevalecido a preocupação de impressionar com empreendimentos de maior vulto, de modo a justificar a fisionomia do regime. Mas, se tais empreendimentos absorveram atenções e recursos, não contribuíram para preterir atividades mais acessíveis e imediatas, destinadas, inclusive, a lastrear e garantir o êxito daquelas de mais remotos resultados. É, em suma, um Governo que acaba exausto e impotente, apesar dos apelos imoderados à emissão de papel-moeda e da sangria fiscal.”

Sr. José Américo do ponto de vista da sua aplicação efetiva: “Ela é avançada no papel – afirma o Ministro – mas não produz os benefícios apregoados. Está atrofiada pela burocracia e deformada pela propaganda. Desvirtuou-se pelo desvio na aplicação dos recursos acumulados pela contribuição compulsória de empregados e patrões. Falta-lhe um cunho mais prático de assistência social, pois as pensões mesquinhas que não dão para viver são ainda retardadas por um processo moroso e dispendioso. Recolhi, neste particular, os depoimentos mais imparciais de chefes de indústrias e médicos de fábricas que em contato com esta realidade reconhecem a pre-

“Só três brasileiros, na minha opinião, não podem ser candidatos à Presidência da República nesta quadra. Os dois primeiro somos eu e meu antigo competidor na malograda sucessão presidencial de 37, o Sr. Armando de Sales Oliveira. Na campanha da sucessão nós dividimos a opinião, como era natural em momento de normalidade eleitoral. Mas, hoje, precisamos estar unidos e contribuindo para a unificação das forças políticas do Brasil em benefício da restauração democrática.” E o terceiro inelegível? “O terceiro incompatível – afirma o Sr. José Américo – é o Sr. Getúlio Vargas, porque se incompatibilizou com as forças políticas do País. Malsinou tanto os políticos e as organizações partidárias, em seus recentes discursos, que os mais sensíveis, isto é, os mais briosos, já se arregimentaram contra ele. E o que convém à Nação é um homem capaz de fazer convergirem para o seu nome e o seu programa todas as correntes de elaboração.” UM CANDIDATO IRREVELADO

“As forças políticas nacionais já têm um candidato. É um homem cheio de serviços à Pátria, representa uma garantia de retidão e de respeito à dignidade do País. As preferências já foram fixadas. Os campos estão definidos. Já quase não há neutros. As posições estão ocupadas para a batalha política.” O Sr. José Américo acelera o ritmo de suas frases mas logo se refreia e observa: “Nesta altura eu já estaria suspeito para falar em terceiro candidato. Mas, falando por mim, com a minha responsabilidade direta, não vejo homens, vejo soluções para o País. Se fosse possível suprimir essa linha de separação e congregar os brasileiros para que as energias não se consumissem e desperdiçarem na campanha eleitoral, mas em benefício geral no interesse do êxito dos problemas que mais os importam, se fosse possível encontrar, desde já, tão feliz solução, esta seria a forma mais indicada para a reconstrução política e material do Brasil.” Acredita o Sr. José Américo que, neste caso, o candidato não se oporia à apresentação de um terceiro. Formula assim a sua confiança:

“A legislação trabalhista atual é avançada no papel, mas não produz os benefícios apregoados. Está atrofiada pela burocracia e deformada pela propaganda. Desvirtuou-se pelo desvio na aplicação dos recursos acumulados pela contribuição compulsória de empregados e patrões.”

A POLÍTICA TRABALHISTA Exaltada por muitos e desconhecida por outros, em menor número, a legislação trabalhista atual, que tem sido tabu, passa a ser examinada pelo

cariedade da assistência oficial que se tornou, assim, inoperante. Essa política do trabalho infelizmente serviu menos aos interesses a que devia aplicar-se do que às paradas do regime com rigorosas sanções para os faltosos.” A conclusão surge, inapelável: “Efetivamente, portanto, a legislação trabalhista não está amparando, como devia, o operário brasileiro. Mesmo que tivesse outra orientação,


“O novo Governo terá de cuidar da alimentação que já era precária e foi agravada, nos últimos anos, pela maior crise de abastecimento de que há notícia em nossa história. Deverá cuidar da educação não pelo primitivismo do A B C, mas para preparar a criança para a vida moderna. Terá de reformar a política e sobretudo os costumes para que o homem brasileiro possa ficar ao nível dos povos livres, civilizados e eficientes e à altura da grandeza da terra que a Providência lhe doou.” que para as perspectivas da grande civilização que poderemos fundar nessa nova etapa do mundo. Nosso bom povo do Brasil merece respeito pela sua sorte e pelas suas decisões. Já disse que confio nele. Deverá esse Brasil do futuro valorizar o homem, esse homem resistente que realiza o milagre da sobrevivência entre tantos fatores adversos e tanto abandono da sua própria condição humana. Precisamos tratar da saúde desde o nascimento, reduzindo essa espantosa mortalidade infantil que representa o maior desfalque para o nosso progresso natural. Precisamos resolver o problema da casa, que eu disse ter solução, quando fui candidato.” “Eu sei onde está o diAo defender a candidatura de “um homem de bom senso nheiro”, disse o Sr. José e espírito amplo”, José Américo pensava no Brigadeiro Américo num discurso faEduardo Gomes, herói dos 18 do Forte. O eleito foi o General moso, referindo-se ao cusEurico Dutra (foto), que bancou o golpe do Estado Novo. teio da habitação popular com o dinheiro acumulado vitórias pessoais, quando assim o impelos Institutos, mas que hoje não se popõe o bem do País, é que proponho essa deria resolver depois de tanto tempo de indicação capaz de criar a unidade nasoluções minguadas tentadas pelos Inscional mais instante do que sempre. titutos, pelo simples motivo de que uma Não tenho dúvida de que o nosso cancasa padronizada, que naquele tempo didato anuiria à escolha de um terceicustaria quinze contos, ficaria hoje por ro, uma vez afastada a possibilidade da cinqüenta e sessenta mil cruzeiros. candidatura do Sr. Getúlio Vargas.” “O novo Governo terá de cuidar da alimentação que já era precária e foi NOVAS PERSPECTIVAS agravada, nos últimos anos, pela mai“Encontraríamos assim o caminho da or crise de abastecimento de que há paz interna com que ajudaríamos a susnotícia em nossa história. Deverá cuitentar com os nossos aliados a paz e a dar da educação não pelo primitivismo segurança universais e do futuro esplendo A B C, mas para preparar a criança doroso que nos aguarda no após-guerpara a vida moderna. Terá de reformar ra, se tivermos juízo e patriotismo, coma política e sobretudo os costumes para preensão e desprendimento, cada um que o homem brasileiro possa ficar ao voltado menos para o seu egoísmo do nível dos povos livres, civilizados e REPRODUÇÃO

“Nesta hipótese, acredito que a fórmula de um terceiro candidato não seria recusada por aqueles mesmos que já tivessem a certeza da vitória.” E analisa a possibilidade da vitória da candidatura do atual Chefe do Governo: “Mesmo porque a vitória, caso fosse vencedora a candidatura do Sr. Getúlio Vargas, seria apenas o começo de nova luta a reacender-se no Brasil.” Por quê? Responde o Sr. José Américo: “Com governos constituídos pela oposição em vários Estados como São Paulo, Bahia, etc., uma Câmara dividida, a opinião a emergir alertada da sombra da censura, a inquietação suscitada pelo período de transformações políticas que se vai inaugurar no mundo em busca de novo padrão, de equilíbrio e aperfeiçoamento progressivo da democracia, ampla liberdade de crítica que o regime que se vai instituir tem de franquear para não renegar sua própria essência, a vitória da candidatura Getúlio Vargas, nas condições em que se debate o Brasil, com todos os seus elos de coesão desfeitos, inclusive os partidários, seria enfim o mergulho na anarquia. Poderia alguém governar nesse caso? A precariedade, ou melhor, a gravidade das condições gerais é que impõe a assistência de todos os brasileiros à tarefa de dirimir tais crises e dificuldades, o que só se positivaria em torno de uma figura que atraísse a confiança geral.” Eis por que o Sr. José Américo declara: “Sem ter consultado ninguém, e apenas como resultado de minhas observações, conduzo-me nesta hora pela inspiração patriótica com que, ao apagar das luzes de 1937, me prontifiquei a renunciar em favor de um terceiro candidato, procurando desse modo conjurar o golpe de Estado então iminente. O General Eurico Gaspar Dutra e o Sr. Batista Luzardo são testemunhas dos passos espontâneos que dei nesse sentido. Certo de que os outros têm ainda mais pronta do que eu a capacidade de renunciar e de abrir mão de

eficientes e à altura da grandeza da terra que a Providência lhe doou.” AFIRMAÇÃO DA RESPONSABILIDADE NACIONAL

“Os problemas do presente e os do futuro imediato, na recuperação da democracia, na sua revalorização, na produção e intensificação da riqueza nacional, dependem no momento – não me canso de repetir – da união de todos os valores da vida brasileira, da conjugação dos esforços de todo o povo. Pelos motivos expostos, considero inviável a eleição do Sr. Getúlio Vargas, dos seus interventores, da sua estafada máquina administrativa, do seu reduzido quadro político. Reproduzo aqui o que tenho meditado e o que diria ao Sr. Getúlio Vargas, pessoalmente, caso me fosse facultada essa oportunidade. Com isso dou-lhe uma prova de que não me desinteressei de todo pela sua sorte e, ainda mais, como sempre tenho procurado fazer, do respeito ainda maior que devo à verdade.” E o Sr. José Américo conclui pela afirmação de que mais vale a luta do que a estagnação: “Caso, porém, não se verifique a desistência da sua propalada candidatura, ainda pior do que a luta da sucessão é a estagnação do espírito público. Neste caso, uma campanha de respeito recíproco, de garantias cívicas efetivamente asseguradas por autoridades insuspeitas, um severo regime de responsabilidade para os agentes do Poder que se utilizem da máquina administrativa, dos dinheiros públicos ou da força para fins partidários, o funcionamento da Justiça Eleitoral, um pleito sinceramente efetuado, no qual o vencido pudesse respeitar o vencedor, submetendo-se ao resultado das urnas, seria também – e quanto! – uma forma de paz, paz nacional, de união do Brasil. A eleição por processos idôneos não desune. Ela reconcilia a Nação consigo mesma e restabelece o rumo do seu legítimo destino democrático.” CUMPRIMENTO DE UM DEVER

Ao finalizar a sua entrevista, o Sr. José Américo declarou: “Cumpri um dever. Falei por mim e sinto ter interpretado também o pensamento ainda vedado do povo brasileiro. Fui levado a exprimir-me desta forma por um poder de determinação que nunca me abandonou nos momentos decisivos.”

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FOTO: ARQUIVO PESSOAL. MANIPULAÇÃO DE IMAGEM: UCHA

ARTHUR POERNER O MAIS JOVEM DOS CASSADOS PELA DITADURA

Diretor do primeiro jornal de oposição criado após o golpe militar, a Folha da Semana, ele foi cassado com apenas 26 anos pelo ditador Castelo Branco. Começava o seu tormento de torturado e exilado, sem que as punições impedissem sua ascensão como jornalista, escritor e, acreditem, compositor, parceiro de Baden Powell e do Mestre Candeia da Portela. POR BERNARDO COSTA

O

mais jovem brasileiro (26 anos na época) a ter os direitos políticos cassados, Arthur Poerner se destacou na imprensa brasileira por sua atuação contra o regime militar no Correio da Manhã. Como aluno de Direito da Faculdade Nacional, participava ativamente do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira-Caco e fazia a ponte entre o jornal e os estudantes. Na literatura, também resistia à ditadura, escrevendo livros de conteúdo político e de protesto. Em 1968, publicou pela Civilização Brasileira sua mais importante obra: O Poder Jovem – História da Participação Política dos Estudantes Brasileiros, proibido no início do ano seguinte em todo o território nacional.

Aqui, o jornalista e Conselheiro da ABI conta como foi sua prisão na redação do Correio da Manhã e sua passagem pelos porões do Doi-Codi, na Rua Barão de Mesquita, que serviu de base para o romance Nas Profundas do Inferno, publicado na Espanha quando já estava exilado. Fala ainda das parcerias musicais com Baden Powell, João do Vale e Candeia, com quem se correspondia de Berlim para saber notícias da Portela e do mundo do samba. Sempre atuando junto aos jovens, dando palestras em universidades de todo o País, lecionando Jornalismo na Uerj e acompanhando a União Nacional dos Estudantes-Une, Poerner conta que vê no jovem de hoje o mesmo interesse em mudar o mundo que havia em sua geração.

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Poerner lançou O Poder Jovem quando fervia a resistência estudantil. Por isso foi convidado a carregar o caixão do estudante Edson Luiz, assassinado pela repressão. Poerner é o último à direita.

JORNAL DA ABI – QUANDO ADOLESCENTE, NO COLÉGIO AMARO CAVALCÂNTI, VOCÊ PARTICIPOU DE UM JORNAL.

VEM DESSA ÉPOCA SEU

INTERESSE PELO JORNALISMO?

Arthur Poerner – É anterior ainda. Nasci no Rio Comprido e cresci na Lapa, onde, na Rua Gomes Freire, ficava o Correio da Manhã. Eu me lembro de que naquela época havia um almanaque anual do jornal, uma espécie de brinde de fim de ano, que era distribuído ali mesmo. Li aquele almanaque e fiquei fascinado. Na verdade, sempre gostei de ler e tinha uma propensão grande a escrever. Era bom em redação e me destacava na escola pelos textos, o que me dava certo prestígio com os professores. Já no ginásio, no Amaro Cavalcânti, no Largo do Machado, eu e alguns colegas nos aventuramos a fazer um jornal muito modesto, além de um time de futebol com carteirinha de sócio e tudo. Mais tarde, na Escola Naval, quis escrever para a revista A fragata. Enfim, sempre gostei dessa atividade, desde pequeno. JORNAL DA ABI — E COMO FOI A ESTRÉIA PROFISSIONAL?

Poerner — Minha família era bem pobre e havia uma espécie de acordo tácito, pelo qual meus pais garantiriam o ginásio a mim e ao meu irmão, e depois a gente teria que trabalhar e se virar. Fui boy, bancário, fiz várias coisas até surgir a oportunidade de fazer o concurso para o Colégio Naval. Passei, fui estudar lá e, em seguida, na Escola Naval, mas acabei sendo desligado por indisciplina. Já era um rebelde, embora ainda sem causa. Aí, deu para ir sobrevivendo, mas não me sentia bem nos empregos que conseguia, não encontrava algo que realmente gostasse de fazer. Até que, por intermédio do pai de um excolega da Marinha, conheci o Wagner Teixeira, um jornalista importante que me levou para o Jornal do Commercio, em 1962. No momento em que entrei naquela Redação, onde me senti absolu16

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tamente integrado desde o início, percebi que tinha acabado minha busca vocacional, que o jornalismo era a minha profissão. JORNAL DA ABI – POR QUE, EM 1964, VOCÊ DIREITO?

so para ser candidato nas eleições de 1966, tanto que o Hermano foi eleito deputado federal e o Fabiano, estadual. E eu já estava com os direitos cassados. JORNAL DA ABI – CONTE MAIS SOBRE AS

FOI ESTUDAR

MANIFESTAÇÕES ESTUDANTIS DA ÉPOCA.

Poerner – Senti que era importante fazer uma universidade, ampliar meus conhecimentos. Como na época não existiam cursos de Comunicação, comecei a pensar em uma cadeira que pudesse enriquecer a atividade jornalística, à qual pretendia me dedicar, e prestei vestibular para a Faculdade Nacional de Direito, o que de fato foi muito útil, porque eu fazia jornalismo político – sem contar que comecei a me integrar no movimento estudantil e entrei no Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, uma das mais antigas instituições de representação de estudantes do País. Fazer parte do Caco, ser jornalista e começar a escrever livros de conteúdo político foram fatores que contribuíram para eu me destacar na carreira e, também, ser punido pela ditadura. Tanto é que estreei em 1962 como repórter do Jornal do Commercio e já em 5 de julho de 1966, com 26 anos, fui o brasileiro mais jovem a ter os direitos políticos suspensos por dez anos, por decreto presidencial do Marechal Castelo Branco. Pouco antes, em maio, houve um movimento dos jornalistas, centralizado na ABI, para a eleição de cinco representantes da categoria para o Diretório Regional do Movimento Democrático Brasileiro-MDB, partido de oposição. Fui um dos escolhidos, junto com Paulo Silveira, José Luiz da Costa Pereira, Hermano Alves e Fabiano Vilanova Machado. Era um pas-

Poerner – Havia uma atividade muito grande. Hoje, muita gente cobra dos estudantes essa mesma hegemonia, mas é impossível, pois o movimento estudantil, atualmente, é um entre vários movimentos sociais. Na ditadura, todos os outros focos de resistência – como o sindicalismo urbano e o rural, ainda incipiente – tinham sido eliminados e os estudantes assumiram a dianteira no combate ao regime, os protestos, as passeatas. Como participante do Caco e redator do Correio da Manhã, que liderava a resistência à ditadura na imprensa, eu era um ponto de contato entre os estudantes e o jornal.

JORNAL DA ABI – QUAL ERA A SUA EDITOCORREIO DA MANHÃ?

RIA NO

Poerner – Eu cobria política externa, no Itamarati, e tinha ali como colegas, entre outros, o Sérgio Cabral, credenciado pela Folha de S.Paulo, e o Elio Gaspari, do Diário de São Paulo. Em 1965, fui cobrir o encontro dos chanceleres brasileiro e argentino, que articulavam uma frente contra o Chile, país então ainda a salvo das ditaduras no Cone Sul. Quando voltei de Buenos Aires, propus a Niomar Moniz Sodré Bittencourt, proprietária e Diretora do Correio da Manhã, ir a Montevidéu fazer um levantamento de como estavam os exilados brasileiros e tentar entrevistar o ex-Governador Leonel Brizola. E foi o que fiz. Em decorrência disso, quando retornei ao Rio, minha credencial no Itamarati foi cassada pelo Secretário-Geral Pio Corrêa, que tinha sido Embaixador no Uruguai. Foi a primeira

A pedido do editor Ênio Silveira, da Editora Civilização Brasileira, Poerner foi à Argélia entrevistar o Governador cassado de Pernambuco, Miguel Arrais (foto), que se exilara lá. Voltou com material para o livro Argélia, O Caminho da Independência.


FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

Poerner pós-exílio: com Fernando Gabeira, com o qual convivera na Europa, e entrevistado pela turma do Pasquim: Fausto Wolff, ao fundo, Argemiro Ferreira, Jaguar.

Exilado na Alemanha, Poerner entrevista Didi, técnico da Seleção do Peru na Copa de 1974. Ao lado, num encontro com Luís Carlos Prestes, Raul Ryff e José Louzeiro.

punição que recebi da ditadura e teve grande repercussão, com protestos da ABI e no Congresso Nacional. Passei a ir aos botecos da antiga Rua Larga, perto do Palácio do Itamarati, esperar que o Gaspari e o Cabral me passassem informações que pudesse levar ao Correio da Manhã. JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ SE TORNOU DIRETOR DA FOLHA DA SEMANA?

Poerner – Em protesto contra o golpe militar, ingressei no Partido Comunista, que tinha um semanário legal circulando nas bancas. Com a edição do AI-2, que instaurou o bipartidarismo, permitindo a existência apenas da Arena e do MDB, o Diretor dos dez primeiros números da Folha da Semana, Alfredo Tranjan, advogado famoso e então deputado estadual, renunciou ao posto. Então, o Maurício Azêdo, hoje Presidente da ABI, o Sérgio Cabral e outros que já colaboravam com o jornal me convidaram a assumir o cargo, em que permaneci até ter os meus direitos políticos suspensos. JORNAL DA ABI – FALE UM POUCO DO INÍA POLÍTICA É SUA MAIOR MOTIVAÇÃO LITERÁRIA? CIO DE SUA CARREIRA COMO ESCRITOR.

Poerner – Sem dúvida, acho que sem-

pre escrevo no sentido de esclarecer e divulgar a realidade existente e interferir nela de maneira positiva. Minha estréia foi com Assim Marcha a Família, organizado em 1965 pelo José Louzeiro, que convidou alguns colegas para escreverem o livro, que mostrava os verdadeiros problemas que deveriam ter mobilizado as senhoras das “marchas da família com Deus pela liberdade” – e, evidentemente pela propriedade. Era um livro de protesto, que teve problemas em vários Estados e foi prefaciado pelo Carlos Heitor Cony. Fiquei com o tema moradia, que me trouxe algumas experiências interessantes. Na Mangueira, por exemplo, conheci o Cartola, que se tornou um grande amigo. Ainda em 1965, ocorreu um fato determinante em minha vida. O Miguel Arraes, preso no dia do golpe como Governador de Pernambuco e levado para Fernando de Noronha, conseguiu um habeas corpus, veio para o Rio e pediu asilo na Embaixada da Argélia. Amigos dele me escalaram para a missão de acompanhá-lo e acabei ficando três meses e meio naquele país, que tinha se tornado independente em 1962, após 132 anos de domínio francês. Lá, recebi um convite do Ênio Silveira, editor da

Civilização Brasileira, para escrever um livro sobre a realidade argelina, pois não havia nenhum em língua portuguesa. Argélia: O Caminho da Independência foi publicado em 1966 e algumas correntes o consideraram a favor da luta armada, embora não fosse esta a minha intenção. Durante muitos anos, era sempre procurado quando um novo embaixador daqui era designado para a Argélia, para conversar sobre o país. JORNAL DA ABI – O PODER JOVEM: HISTÓRIA DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DOS ESTUDANTES BRASILEIROS FOI PUBLICADO EM JULHO DE

1968, DEPOIS DA PASSEATA DOS CEM MIL E ANTES DO AI-5, QUANDO SE TINHA A ILUSÃO DE QUE A ABERTURA ESTAVA PRÓXIMA.

HOUVE,

NESSE MOMENTO, UMA DEMANDA MAIOR DE LIVROS DE CONTEÚDO POLÍTICO?

Poerner – Até o AI-5, muitas obras tentavam explicar e compreender como o golpe tinha sido possível. A verdade era que nós, brasileiros, já nos considerávamos a salvo desse tipo de intervenção militar. Lembro que em 1963 houve um golpe no Equador contra o Presidente Arosemena e os comentários aqui eram de que nós já estávamos em outra fase, acreditávamos mesmo que não éramos mais uma re-

pública “bananeira”. E, de repente, um governo constitucionalmente eleito é derrubado. Na área editorial, a Civilização Brasileira representava a mesma resistência que o Correio da Manhã no jornalismo e os estudantes no movimento social. O Ênio Silveira me apressava a concluir O Poder Jovem; quando ele já estava com os originais, o Edson Luís foi assassinado. Tive que escrever uma nota suplementar. Nesse episódio, como as lideranças estudantis já sabiam que eu estava escrevendo o livro, fui convidado para carregar o caixão. O Ênio achava que O Poder Jovem era muito forte, mesmo com as perspectivas de que se poderia avançar no processo de democratização naquele momento, e me pediu um outro prefácio além do que já tinha sido escrito pelo Antônio Houaiss. O primeiro nome que ele me propôs foi Magalhães Pinto, que era Ministro das Relações Exteriores e naquela altura já tinha adotado uma linha mais moderada, mas eu não aceitei, porque não queria ter meu nome associado a alguém que tinha tido participação no golpe militar. Aí veio o 1º de maio de 1968 e o Abreu Sodré, então Governador de São Paulo, permiJornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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ARTHUR POERNER O MAIS JOVEM DOS CASSADOS PELA DITADURA

tiu a comemoração do Dia do Trabalhador e foi às manifestações, sendo inclusive apedrejado pelo povo que protestava contra a repressão. O Ênio logo sugeriu que ele escrevesse o prefácio, mas também resisti. Quando vi que ele não ia desistir, eu me lembrei de uma entrevista que tinha feito com o General Peri Bevilaqua, nacionalista que depois se destacaria muito no Superior Tribunal Militar contra o absurdo das punições, sendo também punido após o AI-5. Ele acabou fazendo o prefácio e o texto do Houaiss ficou sendo a apresentação.

para o Doi-Codi, onde fiquei três meses e meio. Quando saí, fui demitido e tinha que me apresentar toda quinta-feira no Ministério do Exército, na Praça da República, para assinar uma lista atestando que eu estava no Rio. Então, decidi que tinha que sair do País, o que aconteceu graças a uma articulação com a Embaixada alemã, que estava organizando a Feira do Livro de Frankfurt e me convidou a participar, juntamente com Jorge Amado, Adonias Filho e Eduardo Portela. Pedi o visto ao Coronel a quem me apresentava toda semana e, diante da primeira negativa, argumentei: “Mas vocês não vivem dizendo que o Brasil sofre uma campanha de deformação de sua imagem no exterior? Estou sendo convidado pelo Embaixador alemão, que sabe que eu quero ir. O que ele vai pensar?” Consegui o passaporte, mas na Alemanha fui avisado por um diplomata do Itamarati de que não o apresentasse em lugar nenhum, pois ia ser apreendido. Então, tive que pedir asilo político.

JORNAL DA ABI – O LIVRO FOI UM DOS PRIMEIROS OFICIALMENTE PROIBIDOS PELA DITADURA.

Poerner – Sim, ao lado de 19 obras de autores como Che Guevara, Mao Tse-tung e mais um único brasileiro além de mim, Nelson Werneck Sodré, com História Militar do Brasil. A Veja estreou 1968 trazendo na última página a lista dos mais vendidos e O Poder Jovem ficou lá muitas semanas. Foi uma alegria descobrir que, quando mandaram apreender o livro, ele já estava esgotado. Anos depois, no exílio, recebi uma segunda edição clandestina, feita por estudantes da Puc-SP em 1977, quando o movimento estudantil voltou às ruas para lutar pela anistia.

JORNAL DA ABI – LÁ VOCÊ ESCREVEU MAIS DOIS LIVROS.

Poerner – Primeiro, fui convidado a participar de Memórias do Exílio, de autoria coletiva. Depois veio o romance Nas profundas do inferno, a digestão de tudo o que eu tinha visto e vivido na prisão.

JORNAL DA ABI – CONTE O QUE ACONTECEU NO CORREIO DA MANHÃ COM A NOTÍCIA DO AI-5.

Poerner – Lembro bem do dia 13 de dezembro de 1968. Não havia nada no Itamarati, porque o Ministério estava reunido com o Presidente Marechal Costa e Silva no Rio, para tomar uma atitude diante da recusa do Congresso em processar o Deputado Márcio Moreira Alves, meu colega de jornal. Liguei para o Peralva, Diretor de Redação, que recomendou: “Se eu fosse você, hoje nem viria aqui.” Eu disse que queria ficar a par dos acontecimentos, e ele retrucou: “Se quiser vir, venha. Mas não garanto que consiga sair.” E tinha toda razão. Quando o radialista Alberto Cúri começou a ler em cadeia nacional o texto do AI-5, o jornal foi invadido. O Peralva desceu para ver o que estava acontecendo e foi imediatamente algemado e jogado num camburão. Lá em cima, nos avisaram que os militares estavam atrás de mim, do Edmundo Moniz e do Franklin de Oliveira. Corremos para o andar da oficina e fugimos por uma janela que dava para os fundos de um prédio da Rua do Lavradio, onde passamos a noite. No meio desses momentos trágicos, houve um episódio engraçado. A Niomar, que era prima e cunhada do Edmundo, armou um esquema para tirálo dali: mandou um macacão para ele vestir e se misturar aos operários que trabalhavam no jornal. Só que o Edmundo tinha sido tuberculoso na mocidade, tomava muito cuidado com ventos e, mesmo no verão carioca, sempre andava de terno escuro e colete. Então, ficamos Franklin e eu ali no chão, julgando se o Edmundo já estava com aparência de operário; ele se 18

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JORNAL DA ABI – O QUE O MOTIVOU A ESCREVÊ-LO JÁ LONGE DO PERIGO?

A familiaridade de Poerner com a política e a cultura: com o Governador Leonel Brizola, o ator e diretor teatral Sérgio Brito e com o arquiteto Oscar Niemeyer.

apresentava, nós o reprovávamos seguidas vezes. Até que, finalmente, depois de confiscarmos o relógio e os óculos com hastes de ouro, ele pôde sair conforme o plano e seguiu direto para a Embaixada do México. No dia seguinte, Franklin e eu fomos avisados de que podíamos sair, mas não devíamos ir à Redação. Passamos a escrever com pseudônimo – eu era Américo Paiva. Caí na clandestinidade até ser convidado pelo PC para representar a esquerda brasileira num evento na Finlândia, com a recomendação de me manter lá fora o

máximo possível. Então, da Finlândia, fui para a Iugoslávia, a Polônia, a Argélia e outros países, onde fazia alguns trabalhos como jornalista e ia me virando. Até que tive que retornar ao Brasil. JORNAL DA ABI — E AÍ VOCÊ FOI PRESO...

Poerner – Pois é. O Correio já tinha sido arrendado pelos irmãos Alencar e estava engajado na campanha do Coronel Mário Andreazza para a Presidência. Fazia meu trabalho discretamente, mas em 2 de abril de 1970 fui preso na Redação, levado para o Dops e depois

Poerner – Mesmo estando a salvo, ainda tinha pesadelos e às vezes acordava pensando que estava na Barão de Mesquita, no Doi-Codi. Aquelas coisas terríveis me perseguiam. Pensei em escrever sobre isso e tomei a decisão ao ler sobre a função terapêutica da literatura e da arte em geral, muito usada por Nise da Silveira no tratamento de pacientes psiquiátricos no Engenho de Dentro. Comecei a me sentir melhor na medida em que escrevia sobre minha experiência. Na mesma época, o (Fernando) Gabeira, que tinha estado preso comigo, escrevia O Que é Isso, Companheiro? e de vez em quando me ligava da Suécia para confirmar algumas coisas, como o nome exato da Folha da Semana. Ele escreveu, de certa forma, já rejeitando a experiência; eu busquei outro caminho, mesclando alguma ficção para ter mais liberdade, para não citar certos nomes, e sem amargura e lamentações, pois aquela tinha sido uma luta necessária. Minha intenção era mostrar as atrocidades e os tipos de torturadores. Tinha aqueles que confiavam no método para chegar à verdade, acreditando que se uma pessoa recebe uma carga de tantos volts e continua dizendo que não sabe de nada não deve estar mentindo, pois ninguém agüenta aquilo. Mas havia os que não estavam interessados na verdade, e sim no prazer de torturar. Quando o livro ficou pronto, consegui fazê-lo chegar ao Brasil, mas nem a mobilização de gente como Chico Buarque viabilizou a pu-


Ser político pluralista, Poerner mantém relações cordiais com líderes de diferentes correntes políticas, como João Amazonas, Presidente do PCdoB, Neiva Moreira e Barbosa Lima.

blicação aqui. Então, o Jorge Amado, autor do prefácio, me encaminhou à agente literária dele em Barcelona e Nas Profundas saiu na Espanha, em 1978, e logo depois na Itália, onde recebeu prêmio de literatura estrangeira. Em 1979, com a abertura, finalmente foi editado no Brasil, com o prefácio do Jorge e orelha do Alceu Amoroso Lima. JORNAL DA ABI – FOI POSSÍVEL TRABALHAR COMO JORNALISTA NO EXÍLIO?

Poerner – Tive muita sorte nesse sentido. Estabeleci contato com o Pasquim e em 1971 comecei a colaborar com o jornal. No ano seguinte, a Rádio Voz da Alemanha, que transmitia para 34 países, me chamou para trabalhar. Logo surgiram convites de jornais e tvs alemãs e também de Portugal, sobretudo depois da abertura, em 25 de abril de 1974. O Gabeira, por exemplo, trabalhou numa loja de roupas, substituindo etiquetas asiáticas por européias, foi motorneiro de metrô... Um dos casos mais patéticos de que tive conhecimento foi o de um advogado que tinha sido Secretário de Segurança ou Justiça do Miguel Arraes e trabalhava como vigia noturno em Paris. Isso é terrível, é um duplo exílio, de país e de profissão. Disto, felizmente, fui poupado.

te em 1984, já convidado pela TV Globo para ser editor de Cultura. Depois, o Neiva Moreira me convidou pra trabalhar nos Cadernos do Terceiro Mundo, fiz resenhas literárias para o Estadão e a IstoÉ... Para o Pasquim, lembro que escrevi pela última vez em 1990, me recuperando do meu primeiro infarto. Pedi máquina de escrever e fiz um artigo no hospital. JORNAL DA ABI – COMO COMEÇOU A ESCREVER LETRAS DE MÚSICA?

Poerner – Cresci num ambiente que propiciava isso, na antiga Lapa, com seu carnaval de blocos de sujo... Depois, como jornalista, o contato se tornou mais amplo. Fiquei muito amigo do Zé Kéti, do Ismael Silva e do João do Vale, meu parceiro numa música gravada pela Vanja Orico. Depois da prisão, criei com Jorge Coutinho, Haroldo de Oliveira e Leléu da Mangueira o show Cartola Convida, que ficou dois meses em cartaz na Praia do Flamengo, 132, de onde a Une havia sido expulsa — numa noite, a de maior público, os convidados eram Pixinguinha, João da Baiana e Donga. Também aprofundei relações com o Candeia, com quem fiz duas músicas. Depois, o Baden Powell foi a Berlim em 1972, ficou lá em casa e, nesse período, fizemos três composições. A 3ª edição brasileira de Nas Profundas do Inferno é dedicada a várias pessoas, entre elas três grandes amigos que não pude encontrar quando voltei do exílio, pois tinham morrido no ano anterior: Candeia, Ismael e Oto Maria Carpeaux.

“Fui preso na Redação, levado para o Dops e depois para o Doi-Codi, onde fiquei três meses e meio. Quando saí, fui demitido. Então, decidi que tinha que sair do País.”

JORNAL DA ABI – EM 1979 O SENHOR VOLBRASIL, MAS NÃO DEFINITIVAMENTE. POR QUE RETORNOU À ALEMANHA?

TOU AO

Poerner – Cheguei aqui num momento de muita festa e alegria, mas precisava de emprego. Não poderia ficar no Brasil sem trabalho. Como não consegui nada e o salário da rádio alemã me permitiria viajar para cá uma vez por ano, voltei para lá. Depois, o Mino Carta me convidou para ser correspondente da IstoÉ na Alemanha e países limítrofes, e eu fui ficando. Até que juntei dinheiro para comprar um apartamento no Leme e voltei definitivamen-

JORNAL DA ABI – VOCÊ NUNCA DEIXOU DE COMO FOI DAR AULAS DE JORNALISMO NA UERJ?

ATUAR JUNTO AOS JOVENS.

Poerner – Uma experiência muito boa, da qual lembro com saudades. Mas, depois, como já passava dos 40 anos de serviço ativo e queria me de-

dicar mais à literatura, achei melhor me aposentar. Além disso, nessa minha atividade, recebo muitos convites para viajar, e é muito chato quando o professor falta à aula. JORNAL DA ABI – VOCÊ DÁ MUITAS PALESPAÍS. QUE TEMAS COSTUMA ABORDAR? TRAS PELAS UNIVERSIDADES DO

Poerner – Geralmente os relacionados à participação política da juventude. Este ano, por exemplo, muitas palestras foram relacionadas ao 40º aniversário de 1968, quando a velha ordem mundial sofreu um tsunami, especialmente na área política e social. Desde que voltei ao Brasil, procuro participar ativamente de tudo. Teve gente que estranhou eu querer viver “num lugar onde tudo é incerto”. Mas é aqui o meu País, é aqui que tudo me interessa mais. JORNAL DA ABI – QUAL É A SUA VISÃO DOS JOVENS DE HOJE?

Poerner – Há mais individualismo e pragmatismo, mas vejo neles o mesmo interesse em mudar o mundo. Ano passado, fui ao Congresso de 70 anos da Une, em Brasília, e estavam lá uns 7 mil estudantes dos mais variados pontos do País. Eles dormiam no chão, tinham viajado em condições desconfortáveis, ou seja, tinham interesse em participar. E muitos conheciam O Poder Jovem, eu era abordado constantemente. Há quem tenha opinião desfavorável sobre os estudantes de hoje, achando que jovem tem que ser, necessariamente, contra. Mas por que, se agora há um Governo que dialoga com ele? Aí dizem que a Une é chapa-branca. Não concordo com isso. No próprio nascimento do movimento estudantil, em pleno 1937, a Une começou se relacionando muito bem com o Presidente Getúlio Vargas, que tinha aquela visão da sociedade organizada por blocos de interesses – quer dizer, a criação da entidade se ajustava ao seu pensamento. Logo vieram os problemas, a Une se voltou contra o Estado Novo e perdeu um estudante em Pernambuco, Demócrito de Souza Filho. Quando comecei a estudar marxismo, aprendi uma coisa básica: tudo está em permanente transformação.

E se a realidade política e histórica muda, seria impossível os estudantes continuarem os mesmos. Eles podem estar menos utópicos e coletivistas, mas esta é uma tendência mundial — a meu ver, gerada pelo próprio sistema capitalista, que ainda não vai deixar de existir com essa crise financeira global, mas, certamente, vai ter que mudar. JORNAL DA ABI – DEPOIS DE TRABALHAR TANTOS ANOS COM JORNALISMO E CULTURA, COMO O SENHOR VÊ O JORNALISMO CULTURAL PRATICADO HOJE NO

BRASIL? SERÁ QUE OS

GRANDE VEÍCULOS, COM SEUS CADERNOS DE CULTURA, ATENDEM A CONTENTO À DEMANDA?

Poerner – O jornalismo cultural praticado hoje no Brasil não disponibiliza espaço correspondente à relevância e ao multifacetismo da nossa cultura. Os cadernos culturais da grande imprensa são insuficientes para a cobertura de tão importante área, inclusive porque o espaço ainda é dividido – quase sempre, em desvantagem para os temas nacionais – com o que vem de fora, abrangendo o chamado “lixo cultural”. A isto se acresce a atual tendência da mídia brasileira em geral a priorizar o entretenimento às custas da informação; e, ainda, o culto às celebridades mercadológicas. JORNAL DA ABI – QUAIS SÃO SEUS PRÓXIMOS PROJETOS?

Poerner – No ano passado, o amigo Michel Misse, escritor e Diretor do Departamento de Sociologia da UFRJ, se dispôs a iniciar a gravação das minhas memórias. Já temos mais de 30 horas gravadas, mas sempre acontecem coisas mais urgentes: entrevistas, artigos, palestra na Bahia, a revisão da segunda edição do livro Leme – Viagem ao Fundo da Noite... Mas espero voltar às memórias, que não será um relato linear, mas episódico. O problema é que nunca fui daqueles intelectuais reclusos e distantes. Gosto do contato com gente de todas as áreas, do samba, do futebol, do candomblé, do movimento negro, da cultura popular. E, sempre que convidado, tenho o maior prazer em participar e compartilhar experiências e conhecimentos. Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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ASNE SEIERSTAD A GUERRA SEM TRÉGUA DO JORNALISMO DE GUERRA A autora de O Livreiro de Cabul fala sobre suas experiências como correspondente nos Bálcãs, no Afeganistão, no Iraque e na Tchetchênia e sobre a cobertura que a imprensa mundial faz dos grandes conflitos.

POR MARCOS STEFANO

P

oucas semanas após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, a jornalista norueguesa Asne Seierstad, de 39 anos, entrou no Afeganistão com a Aliança do Norte, o grupo guerrilheiro antitalibã apoiado pelos Estados Unidos. Havia bombardeios por toda a parte, muita destruição e nenhum sinal de água ou eletricidade. Ela se acostumou rápido à situação, pois já fazia parte de seu trabalho viajar para lugares sujos e sem infra-estrutura. Porém, penava para se desvencilhar de soldados e comandantes e fazer contato com aqueles com quem mais gostava de trabalhar: o povo. A oportunidade surgiu quando ela começou a freqüentar uma livraria de Sha Mohammed Rais, uma cordial figura defensora da arte e da cultura afegãs que mais tarde ela apelidaria de Sultan Khan. Logo, ela e outros jornalistas foram convidados a jantar em sua casa. Asne ficou sabendo então que Rais continuou a vender livros apesar das restrições do regime talibã, que proibia obras com ilustrações e aquelas consideradas ofensivas aos princípios islâmicos. Chegou a ser preso e foi forçado a cobrir alguns desenhos, para não ter as obras queimadas. Observando as nuances de sua história e de sua família, tão incomuns para um país com imensa maioria analfabeta e rural, ela percebeu que havia ali uma boa história. Fez sua proposta e, em comum acordo com o livreiro, passou três meses morando com eles, para escrever a experiência. Nascia ali a reportagem O Livreiro de Cabul, um best-seller com mais de 3 milhões de exemplares vendidos em 30 países. Com uma narrativa em tom literário, Asne Seierstad fez um retrato inusitado e revelador da sociedade afegã, da segregação entre homens e mulheres e do caos reinante em um país em ruínas. Uma realidade pare-

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cida com aquela que encontrou durante sua primeira cobertura em 1994, da guerra da Tchetchênia ou a dos Bálcãs, que mais tarde retrataria em outra obra de grande impacto: De Costas Para o Mundo – Retratos da Sérvia. Junto com 101 Dias em Bagdá, livro em que fala sobre a vida no Iraque, antes e depois da queda do regime ditatorial de Saddam Hussein, ela produziu alguns dos melhores trabalhos jornalísticos e literários de guerra da atualidade. “Cada lado tem sua própria verdade. É aquela velha história de que estamos avançando e os rebeldes recuando. De que houve poucas vítimas e praticamente nenhuma civil. Porém, existe algo verdadeiro e que você descobre quando chega no lugar do conflito. Essa face mais real de uma guerra é aquela que a população local experimenta. E descobrir o drama enfrentado pelo povo foi o que me atraiu para esse tipo de cobertura”, diz Asne, que é formada em Literatura russa e espanhola e História da Filosofia. No fim de 2008, a correspondente esteve no Brasil participando de eventos e para divulgar seu novo livro Crianças de Grozni, na qual relata o drama dos órfãos da Tchetchênia, onde esteve novamente 12 anos depois, e que é publicado no Brasil, assim como seus demais livros, pela Editora Record. Entre um compromisso e outro da apertada agenda, ela atendeu na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro o Jornal da ABI, e falou sobre suas experiências na cobertura de conflitos de guerra e criticou a propalada imparcialidade da imprensa que cobre esses eventos a partir de hotéis ou nos batalhões de um dos exércitos: “Cada profissional traz sua bagagem e ainda há os interesses do veículo para o qual faz a cobertura. Por isso, é preciso dar mais voz para o povo simples. Isso não é só denúncia, é informação, compreensão e transformação”.


MARCOS STEFANO

JORNAL DA ABI – A SENHORA ESTUDOU LITERATURA RUSSA E ESPANHOLA E HISTÓRIA DA

F ILOSOFIA, MAS NÃO J ORNALISMO . C OMO ACABOU SE TORNANDO UMA CORRESPONDENTE DE GUERRA?

Asne Seierstad – Ir a guerras não foi bem uma decisão. Nunca desejei ou fiz planos para me tornar correspondente. Porém, em 1994, quando tinha 23 anos, morava com uma família em Moscou e comecei a trabalhar como freelancer para um jornal. O editor de Internacional dizia que era mais fácil aprender jornalismo para quem fala russo do que ensinar russo a um jornalista. Viajava para a Sibéria servindo de tradutora para outros jornalistas. À noite, eles comparavam informações e me passavam. Então eu ia escrever. Não tinha dinheiro para fazer de outro modo. Então os russos invadiram a Tchetchênia. Não pensava em ir para lá; meus planos eram ouvir autoridades em Moscou e falar com o pessoal das agências. Eu nasci e cresci num país pacifista e não sabia que a realidade do mundo era diferente, com disputas cada vez mais perigosas e conflitos em vários lugares. Logo percebi que ficando lá poderia ser vítima de outro tipo de violência: a da guerra de propaganda. Se ficasse em Moscou, só teria as informações oficiais e tendenciosas, divulgadas com apoio da mídia local. Queria buscar algo mais verdadeiro, por isso, entrei em contato com o Ministério da Defesa e consegui um lugar num avião militar com os soldados para Grozni. JORNAL DA ABI – MAS QUAL É A VERDADE QUAL FOI O IMPACTO QUE VOCÊ RECEBEU AO VER A REALIDADE?

EM UMA GUERRA?

Asne – Cada lado tem seus argumentos e produz sua própria verdade. E o jornalista opta por um deles ou apenas noticia fatos. É aquela velha história de que estamos avançando e os rebeldes recuando. De que houve poucas vítimas e praticamente nenhuma civil. Porém, existe algo verdadeiro e que você descobre quando chega no lugar. Essa face mais verdadeira e real de uma guerra é aquela que a população local experimenta. E descobrir o drama enfrentado pelo povo foi o que me atraiu para esse tipo de cobertura. JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ AVALIA A COBERTURA QUE A GRANDE IMPRENSA TEM FEITO EM DIVERSOS CONFLITOS? EM ESPECIAL, DURANTE A INVASÃO NORTE-AMERICANA AO IRAQUE, QUE DEPÔS SADDAM HUSSEIN, VOCÊ NÃO ACHOU QUE HOUVE UM TRABALHO MUITO PARCIAL?

Asne – Depende. Não é necessário ficar refém, como demonstro com meu trabalho, das informações oficiais, dos números e das informações de agências de notícias. Claro que a maioria, no corre-corre diário, ainda prefere essa solução. Mas há muitos veículos e que cobrem os conflitos de diferentes ângulos. Sobre esse último conflito no Iraque – o que derrubou Saddam –, creio que houve uma postura parcial e despreparada da imprensa antes da guerra. Especialmente da norte-americana, que comprou sem contestar a idéia de Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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ASNE SEIERSTAD A GUERRA SEM TRÉGUA DO JORNALISMO DE GUERRA

FOTOS: ACERVO PESSOAL

que o Iraque estava fabricando bombas e armas de destruição em massa. O que acabou sendo decisivo para que a guerra acontecesse foi a imprensa ter comprado essa propaganda. Ela fez a pressão decisiva e garantiu a realização da guerra, que seria evitada caso houvesse uma posição mais responsável da mídia. Jornais como o The New Iork Times endossaram a acusação e depois tiveram que pedir desculpas. JORNAL DA ABI – QUANDO VÃO COBRIR UMA GUERRA, OS JORNALISTAS GERALMENTE FICAM CONCENTRADOS EM ALGUM HOTEL, UM PONTO MAIS SEGURO, RECEBENDO INFORMAÇÕES.

MAS SUA PRÁTICA PARECE SER BEM DI-

FERENTE: A SENHORA VAI A CAMPO.

Asne – Faço esse trabalho justamente para buscar algo mais original e verdadeiro. Como comentei, concordo que não exista uma verdade só em se tratando de guerra, mas assim, presentes, ficamos mais próximos da realidade, usando nossos próprios olhos e ouvidos. Não critico o trabalho de outros profissionais porque é realmente muito perigoso cobrir guerras atualmente. Os mais veteranos contam que até se sentiam seguros na Coréia ou no Vietnã, pois eram protegidos pelos dois lados. Isso mudou. No Iraque, por exemplo, os jornalistas eram alvos de seqüestros, troféus de guerra. Grande parte dos correspondentes não podia ficar dez minutos nas ruas de Bagdá, porque já era caçado. Alguns optavam por sair em caminhões ou comboios militares norteamericanos e chegaram a ser acusados de parcialidade. Outros trabalhavam em parceria com iraquianos, que saiam às ruas para pegar informações. Eu preferi ficar com a população civil. Achei que isso era fundamental para entender a sociedade iraquiana, as tensões entre suas etnias e grupos religiosos. Depois, essa realidade mudou e trabalhar sob a proteção de soldados passou a ser a única maneira de atuar em Bagdá. Por isso, eu mesma resolvi sair. Vi muitos jornalistas irem para o campo de batalha. Mas poucos dão tempo para fazer um trabalho de mais fôlego. Como na sociedade, no jornalismo também a palavra de ordem é “para ontem”. Toda essa impaciência força a produção de relatos factuais. Para se ter grandes histórias, grandes reportagens que fujam do convencional, tempo é fundamental, não há soluções mágicas que resolvam. Também é preciso buscar alternativas em certos momentos. A mídia norte-americana sofre um tipo de censura ao não poder mostrar caixões com pessoas mortas? Por que isso? Pessoas morrem em guerras. Morrem também crianças. Mas até em meu país tive uma foto de uma criança morta censurada. Infelizmente, esse lado duro não pode ser escondido.

Com o bloquinho e a caneta sempre à mão, Asne acompanhou a guerra contra Saddam Hussein em 2003, no Iraque. Apesar de estar com os soldados no começo, optou por permanecer com a população civil e mostrar a face mais cruel da guerra: o sofrimento dos iraquianos.

SITUAÇÕES JÁ TEVE QUE ENFRENTAR NAS GUERRAS QUE COBRIU?

Asne – Viver essas privações faz parte do jogo. É o paradoxo de uma vida de aventuras e de restrições. Quando você está na Noruega ou no Brasil, você tem inúmeras opções para comer, ves-

te, enfrentar o perigo. Durante a guerra do Iraque, fizeram de tudo para que os jornalistas saíssem. Diziam que haveria muitas mortes. Porém, pensei: “Bagdá tem mais de 500 mil habitantes e a maioria vai sobreviver. Vou me misturar a eles e também terei chances”.

“A imprensa comprou sem contestar a idéia de que o Iraque estava fabricando bombas e armas de destruição em massa. Ela fez a pressão decisiva e garantiu a realização da guerra, que seria evitada caso houvesse uma posição mais responsável da mídia.”

JORNAL DA ABI – FAZER ESSE TIPO DE COBERTURA CERTAMENTE EXIGE SACRIFÍCIOS. QUE

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tir, fazer ou ir. Ao sair do seu mundo, outros decidirão por você e não haverá outra opção. Só o fato de ter uma alternativa já é algo a ser comemorado. Para ser correspondente, é preciso não se incomodar com isso e aceitar dormir no chão, ficar sem eletricidade, não tomar banho às vezes. E, principalmen-

JORNAL DA ABI – E O QUE FOI MAIS DIFÍCIL CABUL? A SENHORA JÁ DISSE QUE USAR A BURCA, O MANTO QUE COBRE A MULHER DOS EM

PÉS À CABEÇA E TEM APENAS UMA REDINHA PARA VER E RESPIRAR, NÃO FOI A PARTE MAIS DESAGRADÁVEL DE SUA EXPERIÊNCIA.

Asne – Usar a burca foi até algo interessante, uma nova experiência jor-

nalística, apesar de ela ser um pouco incômoda (risos). Para não marcar o corpo, as burcas são grossas. Isso impede a circulação do ar, provoca umidade e acumula sujeira. Eu não conseguia enxergar direito pela redinha, tropeçava e suava. Mas foi oportuno para andar pelos lugares e observar, sem ser observada. Se não fosse assim, não conseguiria contar como as mulheres afegãs se sentem, por exemplo, quando precisam viajar no porta-malas de um táxi. Se eu estivesse vestida como ocidental, mesmo sendo mulher, eles me colocariam no banco da frente. Mas, por ser mais uma burca na multidão, tive que ir para lá, quando outros homens entraram no carro, por não ser permitido a mulher sentar no banco de trás com um homem. Se estivesse lá como ocidental, jamais saberia se cada situação é real ou foi montada para que eu, uma estrangeira, visse. Difícil mesmo foi ver a vida de meninos e meninas, com seus sonhos e esperanças partidos. As meninas não podem aspirar a nada senão serem boas esposas e mães – e mesmo assim, com chances de serem trocadas a qualquer hora por mulheres mais jovens. Elas são vistas como objetos. Pertencem ao pai, depois são vendidas aos maridos. Se a mulher é bem protegida dos olhos masculinos, seu valor também sobe: uma jóia, uma vaca, dinheiro. Para os meninos também não é fácil. Os talibãs proibiam o uso de maquiagem, ouvir música, empinar pipa e consumir bebidas alcoólicas. Com os livros didáticos, os garotos aprendiam a contar não usando frutas ou bolas, mas quantos infiéis poderiam matar usando pentes com balas. Eles também são vítimas de uma cultura de vingança que perpetua a violência pelas gerações. Não há fim para tanto ódio. JORNAL DA ABI – NESSE AMBIENTE, FOI DI-


ga para fazer algo acadêmico. Sou uma jornalista. E o que isso significa? Que acredito na Declaração dos Direitos Humanos, na liberdade de expressão, nas liberdades individuais. São valores universais, aos quais é impossível escapar. Uma coisa é respeitar a perspectiva afegã. Outra é concordar com ela. Para fazer esse trabalho, é essencial acompanhar jornais e revistas, ler literatura dos países que vamos cobrir. Para poder entendê-los, mas também transformar. JORNAL DA ABI – HÁ ALGUNS ANOS, A PUBLICAÇÃO DE UMA CHARGE DO PROFETA MAOMÉ NA DINAMARCA, CRITICANDO O FUNDAMENTALISMO ISLÂMICO, CAUSOU UMA EXPLOSÃO DE VIOLÊNCIA.

AO ESCREVER O LIVREIRO DE CA-

BUL, EM ALGUM MOMENTO A SENHORA SE SENTIU AMEAÇADA?

Asne – Cheguei até a ganhar um novo sistema de segurança para minha casa em Oslo, depois da publicação do livro. Mas não tive nenhum problema assim. Até porque são situações bastante diferentes. Em meu livro, não faço críticas ao Islã. Apenas retrato uma família. Eles não se importam com isso. Sentem-se ofendidos com críticas à religião, a seus símbolos, a Maomé.

Três experiências jornalísticas: Acima, Asne conversa com soldados talibãs no Afeganistão em 2001; ao lado, ela vestida com a burca, o manto islâmico que cobre a mulher dos pés à cabeça, mas que lhe permitiu observar a sociedade como uma típica afegã, em 2002; abaixo, com uma menina, órfã da guerra da Tchetchênia, em Grozni, cidade a qual retornou em 2006 para mostrar as conseqüências do conflito.

FÍCIL SE CONTROLAR PARA NÃO INTERFERIR?

Asne – Era um exercício diário. As mulheres de Sha Mohammed Rais, o livreiro, tinham que obedecer sem contestar. Algumas vezes me pediam ajuda, mas se eu o confrontasse não haveria livro. Só depois, quando já tinha convivido com eles o tempo suficiente, é que me permiti algumas interferências. Por exemplo, uma das mulheres me confessou que queria trabalhar, mas não tinha permissão. Aconselhei-a a não se contentar com o não e insistir. Agora, se interferisse mais, a história não seria verdadeira. Tive que me controlar. JORNAL DA ABI – ESSA VIDA DA JUVENTUDE, SOB A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO, DA TIRANIA DOS PAIS E DA FALTA DE PERSPECTIVA, NÃO É UM SOLO FÉRTIL PARA O TERRORISMO?

Asne – Existe um ditado que afirma: a guerra alimenta o radicalismo e o radicalismo alimenta a guerra. Por isso,

JORNAL DA ABI – UM DOS PAÍSES PARA OS QUAL A SENHORA MAIS TEM VIAJADO NA DIVULGAÇÃO DE SEUS LIVROS É OS ESTADOS UNIDOS. QUE TAMBÉM VIVE OUTRO TIPO DE FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO: O CRISTÃO. QUAL A DIFERENÇA ENTRE ESTE FUNDAMENTALISMO E O ISLÂMICO? ISSO TAMBÉM NÃO DÁ UM LIVRO?

Asne – Fiz algumas matérias sobre essa questão, mas acho que o assunto já está sendo coberto. A principal diferença entre o radicalismo religioso cristão é que não é violento. São grupos pequenos. Não representam perigo. Os fundamentalistas islâmicos são maiores e mais violentos. E o 11 de setembro de 2001 e as guerras são cicatrizes permanentes nos dois lados. Tanto que há gente que considera o ex-Presiden-

“As meninas não podem aspirar a nada. Elas são vistas como objetos. Pertencem ao pai, depois são vendidas aos maridos.” o grande desafio é dar educação e oportunidades para essa juventude escapar das doutrinações tão comuns em alguns países da região. JORNAL DA ABI – A SENHORA FOI MUITO CRITICADA POR RETRATAR A FAMÍLIA AFEGÃ DO PONTO DE VISTA DE UMA MULHER OCIDENTAL. CONCORDA COM AS CRÍTICAS OU ACHA QUE SEUS PONTOS DE VISTA NÃO INTERFERIRAM?

Asne – Até acreditei que tinha sido neutra no início. Mas refletindo, percebi que minha experiência me moldou e é impossível escrever sem essa herança. Porém, o que há de errado nisso? Não sou uma antropóloga ou uma socióloJornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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ASNE SEIERSTAD A GUERRA SEM TRÉGUA DO JORNALISMO DE GUERRA

FOTOS: ACERVO PESSOAL

te George Bush um fundamentalista cristão por conta das guerras que fez no Oriente Médio. É uma questão de definição. Mais grave é o abismo entre o mundo cristão e muçulmano na Europa. Essa é uma questão que acho deveria merecer mais atenção.

prios editores do jornal, com as informações de agências internacionais. Eu não me preocupava em correr atrás delas. Se conseguisse apurar alguma coisa, enviava a eles. Dedicava-me a produzir material exclusivo, reportagens nas ruas, aquilo que me impressionava. A página do jornal teria a minha matéria de Bagdá, uma nota de outro jornalista sobre a guerra no deserto e comentários de especialistas. Esse tipo de esquema é bom, pois não traz a visão de uma única pessoa.

JORNAL DA ABI – APESAR DE ALGUNS OUTROS PROJETOS, HOJE SUA PRINCIPAL DEDICAÇÃO É PARA OBRAS DE FÔLEGO, COMO GRANDES REPORTAGENS LANÇADAS EM LIVROS.

QUANTO TEMPO LEVA PARA FAZÊ-LOS?

Asne – Em geral, não demoro muito. O Livreiro de Cabul, por exemplo, foi bem rápido. Convivi por pouco mais de três meses com a família e depois fui escrever. Comecei a escrevê-lo no final de janeiro de 2002 e em julho ele já estava pronto. Era um livro que retratava um momento e estava com tudo ainda bastante “fresco” em minha memória. Se deixasse passar muito tempo, perderia aquele momento e o material poderia ficar ultrapassado. Hoje, vejo que o livro continua atual. Talvez por tratar de temas universais como a opressão contra a mulher e a religião. Mas acredito que a própria natureza do jornalismo nos inspire a ter pressa até nessas horas, pois o que faço é aprofundar assuntos que estão na mídia. Claro que a velocidade com que faço é bem diferente da velocidade daquele que sai pela manhã para entregar a matéria pronta à tarde.

JORNAL DA ABI – SEUS LIVROS SÃO REPORTAGENS, MAS PODEM SER LIDOS COMO ROMANCES.

A aparente tranqüilidade da bucólica paisagem pastoril contrasta com os horrores vivenciados pelos iraquianos. Apesar de muitos se sentirem aliviados com a queda de Saddam, o caos e a tensão se tornaram permanentes.

JORNAL DA ABI – ANTES DE MORAR COM A FAMÍLIA DO LIVREIRO, A SENHORA JÁ ESTAVA COBRINDO A GUERRA NO

AFEGANISTÃO. FOI

SEU JORNAL QUE A BANCOU PARA FICAR OS TRÊS MESES COM A FAMÍLIA?

Asne – Nessa etapa do trabalho, minha relação já era com a editora que publicaria o livro, já que meu trabalho para o jornal tinha terminado. A família com quem fiquei não aceitou minha proposta para pagar aluguel. Assim, decidi retribuir com presentes e melhorias. Comprei presentes e jóias de ouro para as mulheres e até um gerador para a casa. Não falei nada que eles não permitiram, não relatei nenhuma conversa escondida atrás de alguma porta. Apenas descrevi o que presenciei e diálogos que foram traduzidos pela própria família, já que não falava o dialeto deles. JORNAL DA ABI – LÍDERES POLÍTICOS E OS GRANDES LANCES DAS GUERRAS NÃO OCUPAM ESPAÇO CENTRAL EM SUA OBRA.

QUE INSPIRAÇÃO A LITERATURA OFERECE

PARA SUA OBRA?

COMO FAZ

Asne – Parto do princípio de que existe informação demais, mas pouca compreensão da realidade. Números, dados e estatísticas auxiliam, mas não dão a verdadeira dimensão de um conflito. Há grandes escritores que usam a literatura como veículo para fazer o melhor jornalismo. Gosto muito do polonês Ryszard Kapuscinski [1932– 2007], que entre outros escreveu Imperium, Ébano: Minha Vida na África e O Imperador (todos publicados no Brasil pela Editora Companhia das Letras). Ele, por exemplo, costumava dizer que era impossível mostrar o que realmente é uma selva apenas usando informações técnicas do jornalismo: quem, como, onde, quando e por quê? A vida é muito mais complexa que isso. Suas descrições são belíssimas, é possível sentir o clima do lugar, sentir seus cheiros. Esse aprofundamento não aliena. Pelo contrário, ele consegue fazer uma análise política sem ficar apenas no plano macro. Trabalha nos detalhes, mostrando o que acontece na vida das pessoas e fazendo pensar. Eu aprendi melhor a usar os recursos da literatura quando precisei ir a guerras civis e apresentar tudo o que via nelas. A literatura é riquíssima de estilos, termos e técnicas que permitem ao jornalista descrever lugares ou situações, contar histórias, trazer as mesmas informações convencionais em uma linguagem muito mais agradável ao leitor. Acredito que deva haver espaço para todo tipo de jornalismo: os despachos rápidos das agências, as informações curtas e objetivas do rádio, o hardnews da televisão, as análises econômicas e políticas, e o jornalismo literário, mais elaborado, humanizado e aprofundado.

PARA CONCILIAR SITUAÇÕES INDIVIDUAIS COM O PLANO MAIS AMPLO GEOPOLÍTICO?

Asne – É um desafio, mas já existem tantos livros sobre personalidades e líderes políticos. Como disse, apesar de tratar de pessoas comuns, seus dilemas são universais e oferecem um retrato mais preciso da guerra. Tanto no Afeganistão quanto no Iraque fiz um acordo com meus editores de que faria as reportagens que visse e achasse melhores. Não era pautada pelo jornal; eu mesma me pautava. O que acontecia no deserto, a centenas de quilômetros, ou as hardnews eram feitas pelos pró26

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JORNAL DA ABI – FALANDO NISSO, HUMANIZAÇÃO E IMERSÃO NAS COBERTURAS, ELEMENTOS QUE SÃO TÃO ABUNDANTES EM SEU TRABALHO, ESTÃO EM FALTA NO JORNALISMO ATUAL?

Asne ao lado de Hadizat, que ajudou a jornalista a ter contato com as crianças em uma Grozni em ruínas: se é perigoso falar, calar pode ser ainda mais perigoso.

Asne – É difícil generalizar, mas há uma falta muito grande desses elementos. Em geral, por causa das restrições de espaço, tempo e dinheiro, a maioria dos veículos e profissionais se contenta em fazer o óbvio e usar textos burocráticos. Falta um pouco mais de ambição ao moderno jornalismo. No máximo, ainda se busca informações exclusivas e reveladoras, alguma coisa de


MARCOS STEFANO

jornalismo investigativo, mas o mais comum é encher uma página de jornal de forma medíocre. É preciso outro olhar sobre o cotidiano para trazer boas histórias. Às vezes, as melhores não são secretas, estão na cara, mas só poderão ser contadas se houver uma preocupação maior com o ser humano e o jornalista primeiro mergulhar e entender o mundo delas. JORNAL DA ABI – POR UM TEMPO, A SENHORA TAMBÉM TRABALHOU NA TELEVISÃO. O QUE PREFERE: O JORNAL DIÁRIO, A TV OU OS LIVROS?

Asne – Aprendi muito na televisão. Mas seu problema é a superficialidade. Por isso, prefiro uma atitude mais reflexiva, usando meu bloquinho, minha caneta, fazendo anotações, construindo textos com calma. Já na mídia diária a tendência do jornalista é até escrever mais do que aquele que trabalha em grandes reportagens. Para fazer um trabalho mais rápido, ele precisa escrever mais, sem se preocupar tanto com a elaboração do texto. Por isso, prefiro trabalhar com livros. Posso buscar palavras, burilar frases ou trocar de ordem sentenças, para que o texto tenha os melhores resultados. JORNAL DA ABI – DIANTE DE TUDO QUE VOCÊ VIU NAS GUERRAS, ACREDITA NA IMPARCIALIDADE DO JORNALISMO?

Asne – Não creio que exista imparcialidade. Cada um traz em seu passado, sua criação, formação e experiências, e tudo isso molda seu ponto de vista. Também todos têm interesses, que acabam influenciando desde a formulação da pauta. Como disse, eu sofri influências em meu trabalho. Sou uma norueguesa, uma nação rica e pacífica, nascida nos anos 70 e filha de uma femininista e de um socialista. O que procuro fazer quando estou numa cobertura é dar voz para as pessoas, para que elas falem por isso. Com isso, acredito que haja uma objetividade maior. Ainda assim, não é uma fórmula infalível. Pois quem escolhe quem falará sou eu. Depois da publicação de O Livreiro de Cabul, várias mulheres muçulmanas me procuraram na Noruega. As mais velhas criticaram a forma como apresentei as mulheres e a sociedade afegã. As mais novas elogiaram. Depois, descobri que as mais velhas moravam há décadas na Europa e tinham deixado o país por ocasião da ocupação soviética, tempo em que o país ainda não estava em guerra civil, havia debate intelectual e possibilidades para o público feminino. Com o Talibã, tudo isso acabou, o país foi destruído. As mais novas, que pegaram um pouco desse período, disseram-me que a reconstituição que fiz foi tão boa que podiam sentir o cheiro de suas antigas casas. JORNAL DA ABI – VOCÊ ESTEVE PRESENTE EM VÁRIAS COBERTURAS DE GUERRA, MAS DISSE RECENTEMENTE QUE NÃO PENSA EM VOLTAR TÃO CEDO PARA ESSES LOCAIS OUTRA VEZ.

ESTÁ

APOSENTADA?

Asne – Não é que não voltarei mais.

A jornalista com seu livro O Livreiro de Cabul durante a entrevista no Rio de Janeiro: certeza de que a literatura da realidade é um instrumento de transformação para o mundo.

grande erro, como a experiência iraquiana mostrou, querer implementar nessas nações o modelo ocidental de sociedade. Ainda mais, de uma só vez. Tudo isso tem um efeito apenas cosmético, que depois sumirá. É necessário que se formem instituições sólidas, que não venham a ser abaladas por conflitos civis e disputas, e depois as nações construam sua própria sociedade. Como conseguir isso? Dando as condições básicas para a vida, investindo em infra-estrutura, em saúde e, principalmente, em educação. Educação em todos os níveis, do mais elementar ao superior, pois é ela que, de fato, formará as novas gerações. Aquelas que vão mudar esses países. Quer dizer, o que deve ser feito é dar os meios para eles decidirem por conta própria. Se não for desse modo, não será duradouro. Parte da renda de O Livreiro de Cabul foi doada para uma escola no Afeganistão. Ela já atende 600 meninas. Não a conheço pessoalmente, pois não posso ir lá por estar muito visada, mas acompanho tudo por fotos e relatórios. Também conseguimos montar escolas profissionalizantes para parteiras e enfermeiras e bibliotecas. Espero que, futuramente, possam sair de lá escritoras e cineastas que possam refletir sobre a sociedade afegã por si próprias. E que meu livro fique ultrapassado. Mas receio que este objetivo demore um pouco mais para se concretizar. JORNAL DA ABI – A SENHORA TRABALHOU EM LUGARES ONDE NÃO HÁ LIBERDADE PARA A IMPRENSA. NO BRASIL TAMBÉM, VEZ OU OUTRA, HÁ PROBLEMAS COM GOVERNOS, CRIME ORGA-

Mas há tempo para tudo. Fui correspondente de guerra por 15 anos. Foi um tempo difícil, de muitas privações e dedicação. Se tivesse que retomar essa rotina, acho que não teria forças. Ser jornalista em guerras exige renúncia, deixar de lado seus interesses, sua vida, para viver a vida das pessoas dos diversos lugares. Na verdade, ainda voltei para a Tchetchênia em 2006, depois de ter coberto a guerra lá em 1994. Mas sentia-me madura para aquilo e mesmo assim foi difícil. Conheci duas crianças lá. Eram órfãos, irmãos por par-

do na rua. Denunciado o tio, foram parar em um orfanato. Narro essa história e a destruição de vidas e da sociedade em As Crianças de Grozni. Foi muito impressionante, mas essa é a maior herança da guerra. Quanto a retornar ao Afeganistão, ao Iraque ou aos Bálcãs, por enquanto não é seguro. Assim, quero curtir minha licença maternidade de um ano, minha família e divulgar esse novo livro. Mas não me aposentei e, mais para frente, quem sabe, voltarei a escrever matérias para jornais. Talvez até na forma de Jorna-

NIZADO, PODERIO ECONÔMICO TENTANDO TOLHER A AÇÃO JORNALÍSTICA. QUE IMPORTÂNCIA DÁ À LIBERDADE DE EXPRESSÃO PARA O EXERCÍCIO DO JORNALISMO?

Asne – É crucial para o bom jornalismo. Aliás, sem ela, o exercício do jornalismo é capenga. Aqui ou no Afeganistão. Por isso, entidades como a Associação Brasileira de Imprensa desempenham funções tão importantes. Na Noruega, temos muita liberdade de imprensa e valorizamos demais esse sentimento. Por isso, apoiamos a imprensa em lugares onde a liberdade de expressão não existe. Trabalhei dois anos na Rússia e percebi que mesmo atualmente o país não oferece liberdade para os jornalistas trabalharem. Muitos profissionais têm sido mortos e grande parte prefere adular as autoridades para evitar perseguição. O mesmo acontece na Tchetchênia. Lá entrevistei o Presidente Ramzan Kadyrov e perguntei-lhe sobre o assassinato da jornalista Anna Politkovskaia, que se opunha ao regime com seus textos. Ao que ele respondeu: “Não a matei. Mas depois de escrever tanta coisa contra tanta gente, o que ela podia querer?”. Mais terríveis eram suas gargalhadas dizendo que lá eles amavam, não matavam suas mulheres.

“Parto do princípio de que existe informação demais, mas pouca compreensão da realidade. Números, dados e estatísticas auxiliam, mas não dão a verdadeira dimensão de um conflito.” te de pai. Só que o pai e os avós paternos – a mãe e a família materna nunca ficam com a criança – também já haviam morrido. Com isso, o menino de 12 anos e a menina de 13 ficavam sob os cuidados de um tio. Dormiam no chão, eram espancados com fios elétricos, abusados sexualmente e incentivados para o crime. O menino extravasava seu ódio matando cachorros com tijoladas, extorquindo as esmolas de outras crianças e a menina, furtan-

lismo literário. Reportagens mais profundas e elaboradas, com mais tempo. Também continuar viajando, vir para o Brasil, entrevistar o Lula. JORNAL DA ABI – Q UANDO A SENHORA AFEGANISTÃO, HAVIA UM MILHÃO DE MENINAS NA ESCOLA. H OJE, JÁ HÁ SEIS MILHÕES. ISSO É UM SINAL DE ESPERANÇA PARA AQUELE PAÍS?

SAIU DO

Asne – Há essa esperança, mas sei que é preciso muita paciência. É um

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CARLOS HEITOR CONY “A DITADURA CAIU DE PODRE” Primeiro jornalista a denunciar o arbítrio da ditadura, logo nos primeiros dias de abril de 1964, ele defende a abertura dos arquivos militares para se “levantar a cortina e passar a limpo”. POR ARCÍRIO B. GOUVÊA NETO

N

esta entrevista exclusiva, Carlos Heitor Cony fala sobre o panorama político brasileiro atual, passando pela violência e a crise. Além disso, dá sua visão sobre a ditadura militar, uma visão de quem sentiu com toda profundidade aqueles tempos de horror. Cony analisa ainda a ascensão de Barak Obama à Presidência dos Estados Unidos e dá uma passada crítica sobre a América Latina, terminando por analisar inteligentemente a mudança de atitude da Academia Brasileira de Letras diante da sociedade e o futuro do jornalismo. Cony nasceu no Rio, em 1926, fez Humanidades e Filosofia no Seminário São José. Estreou na literatura ganhando por duas vezes consecutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida (em 1957 e 1958) com os romances A Verdade de Cada Dia e Tijolo de Segurança. Trabalha na imprensa desde 1952. Começou no Jornal do Brasil, e mais tarde foi para

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o Correio da Manhã, do qual foi redator, cronista, editorialista e editor. Ganhou os prêmios Jabuti (1996, 1998 e 2000), Livro do Ano (1996, 1998 e 2000), Nacional Nestlé (1997) e Machado de Assis (1996), da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Em 1998, recebeu do Governo da França, no Salão do Livro de Paris, a condecoração L’Ordre des Arts et des Lettres. Depois de várias prisões políticas, provocadas principalmente por sua forte personalidade e destemor, caracterizado por dizer o que pensa, sem meandros, durante a ditadura militar sofreu um exílio forçado no exterior. Na volta ao Brasil, entrou para a Editora Bloch, onde lançou as revistas Ele&Ela e Fatos e onde dirigiu também Fatos&Fotos e Desfile. Hoje tem uma coluna diária na Folha de S. Paulo e participa de programas nas rádios CBN e BandNews.


GUTO COSTA/AGÊNCIA O GLOBO

popularidade do Lula é reflexo disso. Bom, essa a minha opinião. JORNAL DA ABI – E A CRISE?

Cony – Aí, sim, nesse caso o panorama já demonstra intranqüilidade. A crise tem contornos sombrios e está estourada em inúmeros países de economia muito mais sólida que a nossa. Estamos em desenvolvimento e países em desenvolvimento se tornam frágeis nessa hora. Um bom exemplo foi a imediata, quase instantânea, desvalorização do real frente ao dólar, que mudou toda a fisionomia da nossa economia. São preocupantes as demissões, principalmente na indústria automobilística, mas parece que ela já está se recuperando. Vamos esperar mais um pouco; qualquer coisa que se falar agora é pura especulação.

nada, não é mesmo? Se esconde, não é transparente, não é claro, não é límpido. Estou dizendo isso porque já está na hora de abrirem-se os arquivos militares e levantar a cortina, passar tudo a limpo. Não vejo por que motivo continuarem fechados, é um desrespeito ao povo brasileiro. Porém, creio que existem outras implicações para os cadeados continuarem trancados: quando o PMDB, através de Ulisses Guimarães, negociou a abertura com o governo militar, uma das cláusulas para que ela ocorresse foi que os arquivos do Dops e do SNI não deveriam ser bisbilhotados, vasculhados. O que está deixando o Governo nesse aspecto e o próprio Tarso Genro (Ministro da Justiça) de calças curtas. JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ VÊ A ASCENBARAK OBAMA À PRESIDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS? SÃO DE

JORNAL DA ABI – A VIOLÊNCIA QUE ASSOLA A SOCIEDADE BRASILEIRA TAMBÉM É PREOCUPANTE.

Cony – Não tenha dúvida, mas ela é reflexo da impunidade, impunidade em todas as áreas, não somente a relacionada aos crimes de colarinho branco, mas aqueles crimes do dia-a-dia, do cotidiano. A violência do próprio Estado, quando se apresenta com princípios conservadores e claramente benevolentes para determinados segmentos da sociedade. O Estado precisa ser enérgico se quiser mudar o rumo da violência que certamente reflete a decadência dessa mesma sociedade. Mas as instituições seculares brasileiras também precisam atuar mais, aparecer mais, estão um tanto omissas, a OAB, a ABI, a CNBB, pela importância e abrangência, têm que se manifestar mais, embora se saiba que elas fazem o que podem.

Cony – Histórica, qualquer aspecto. Depois da Guerra de Secessão, de 1861 a 1865, entre o Norte e o Sul, esse foi o fato mais marcante da História dos Estados Unidos, muito mais do que o ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center. Agora, não se iludam, fato histórico para eles, para nós brasileiros, sul-americanos, latino-americanos,

to que continuam, de certa forma, governos centralizados, mas com outra aparência, sem aquela roupagem surrada das velhas dinastias ditatoriais peronistas, somozistas, stroessinistas, pinochistas, além, é claro, de terem sido eleitos pelo voto popular. Creio que a América Latina hoje ocupa um lugar de destaque na política internacional. JORNAL DA ABI – E A ACADEMIA BRASILEILETRAS?

RA DE

Cony – É outra que também mudou muito de atitude (risos). Deixou de ser uma velha senhora circunspecta e hoje está mais aberta ao público, provando que está no caminho certo. O ano Machado de Assis está terminando com um enorme sucesso. Tivemos palestras, conferências, seminários, debates, visitas guiadas e tantos outros eventos com imensa participação popular, com gente em pé, mostrando que o brasileiro gosta de cultura quando lhe dão acesso a ela. Não perdemos a pompa, nem o glamour, que no fundo o povo gosta também, mas estivemos sempre com os portões abertos para o visitante que foi sempre bem-vindo e esperamos a mesma receptividade em 2009, quando comemoraremos o ano de Euclides da Cunha.

“Está na hora de abrirem-se os arquivos militares e levantar a cortina, passar tudo a limpo. Não vejo por que motivo continuarem fechados, é um desrespeito ao povo brasileiro.”

JORNAL DA ABI – HÁ POUCO COMPLETA40 ANOS DA INSTITUIÇÃO DO AI-5. É DATA PARA SER LEMBRADA OU ESQUECIDA? RAM-SE

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ VÊ O ATUAL PANORAMA POLÍTICO BRASILEIRO?

Cony – Eu acho tranqüilo. O Lula está com a popularidade alta e isso influi bastante. Independentemente de qualquer juízo que se faça sobre ele, creio que as instituições estão sendo respeitadas e vive-se em um Estado Democrático de Direito. É claro, com alguns deslizes aqui e ali, coisas pontuais que atingem qualquer Governo e qualquer regime. Lógico que não podemos esquecer os casos de corrupção, mas não chegaram a alterar substancialmente a cara do Governo. No plano social, muito se tem feito e a alta

Cony – Lembrada, lembrada sempre. No entanto, é bom que se diga, sem romantismos ou pieguices. O povo nunca esteve na luta junto às organizações que participaram do confronto com os militares da ditadura, com os estudantes, os intelectuais, os operários, ou profissionais de outras áreas; eles estiveram sozinhos. Não foi, e nessa hora sempre aparece gente dizendo que foi uma ação envolvendo o povo; o povo manteve-se afastado dos movimentos que peitaram os militares. Não entrou em cena nem como coadjuvante, qualquer notícia nesse sentido é mentirosa e falsa. O regime militar caiu de podre, caiu de exaustão, caiu porque se esgotou em si mesmo. Caiu, talvez, pelo próprio caminhar da História.

nada vai mudar. A mudança é deles, diz respeito à sua sociedade. Os americanos não ficarão bonzinhos da noite para o dia. Continuarão sendo conservadores, embora não tenham sido ao elegerem Obama, mas quando se trata de defender sua economia são tiranos e ferrenhos protecionistas. Pode ser que se abra um espaço para nossas exportações aqui e ali, mas a longo prazo. Até porque, se você olhar com atenção, os nomes de seu secretariado são os mesmos de outras políticas, de outras invasões, de outros subsídios e sobretaxas. É possível que olhem com mais carinho para a África, pelas ligações étnicas de Obama, e isso também já será um fato histórico. Mas faço questão de enfatizar que está na hora de se parar com essa idéia, quase mítica, de que seremos invadidos, de que tomarão a Amazônia e coisas desse tipo. O panorama internacional mudou, a presença do Brasil nesse mesmo panorama internacional é outra. Tudo bem, existe a questão amazônica, mas deve ser olhada sob outro aspecto.

CA

JORNAL DA ABI – TUDO JÁ SE DISSE SOBRE A DITADURA, OU FALTOU DIZER ALGUMA COISA?

Cony – Não, tudo já se disse, mas o assunto não se esgotou. O que eu gostaria de acrescentar é que um Governo democrático tem de ser transparente e nesse sentido não pode esconder

JORNAL DA ABI – E A QUESTÃO DA AMÉRILATINA?

Cony – Ah, essa mudou muito de figura. Com os Governos populares de Raúl Castro, Hugo Chaves, Evo Morales e Alfredo Palácios, deixou de ser vaquinha de presépio dos Estados Unidos, que perderam prestígio e conseqüentemente dólares em muitas áreas. Está cer-

JORNAL DA ABI – AINDA SE FAZ JORNALISMO, PRINCIPALMENTE DEPOIS DO APARECIMENTO DA INTERNET?

Cony – Jornalismo hoje é sinônimo de competitividade. Tudo se mistura dentro da imensa e confusa geléia geral. O jornalismo está muito comprometido com o sistema que o cerca. O jornalista hoje é um mero escriba e as grandes reportagens investigativas estão rareando; ele nem mesmo é mais um formador de opinião, nos moldes de como se dizia antigamente. Aliás, sempre me coloquei contra essa afirmação, jornalista nunca foi e nem será formador de opinião, ele lida com a notícia, exclusivamente com a notícia. Está havendo a briga contra ou a favor do diploma, eu, por exemplo, não tenho diploma, em tantos países não existe a obrigatoriedade do diploma. Creio que as faculdades são importantes para dar uma cultura geral, uma base de formação sólida. No entanto, o que dará um novo rumo ao jornalismo, à mídia em geral, será mesmo a internet; dará não, já está dando. Sem dúvida, é o mais democrático conceito de informação. A informação acessível a qualquer um. Qualquer pessoa pode dar sua notícia, pode propagar uma informação, se é boa ou má, aí é outra história. O futuro da imprensa, do jornalismo como conhecemos hoje, será a internet, até porque ainda não conhecemos toda a potencialidade de um campo que está permanentemente em desenvolvimento. Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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omingo, 9 de maio de 2004. Logo pela manhã, o telefone toca no escritório do jornal norte-americano The New York Times, o mais prestigiado diário do mundo, em Buenos Aires, Argentina. Quem atende é o correspondente Larry Rohter, que estava na cidade fazendo algumas matérias sobre política e economia. “Não sei o que você está pretendendo com isso, mas os mercados vão enlouquecer amanhã”, disse a voz do outro lado da linha. A reclamação vinha de Roberto Abdenur, embaixador brasileiro em Washington. Em suas mãos, o motivo da insatisfação: a edição do jornal do dia, com uma reportagem assinada por Rohter com o título Gosto de dirigente brasileiro pela bebida torna-se preocupação nacional e que já no lead mostrava as garras: “Luiz Inácio Lula da Silva nunca escondeu seu gosto por um copo de cerveja, uma dose de uísque ou, até melhor, um trago de cachaça, a forte bebida brasileira feita de cana-de-açúcar. Mas alguns dos seus compatriotas começaram a especular se a predileção do Presidente por bebidas fortes estaria afetando seu desempenho no cargo.” Era o começo de uma tempestade para Rother. Irritado com a repercussão da matéria, apenas dois dias depois o Presidente Lula assinava um decreto ordenando a expulsão do correspondente do Brasil. A grande imprensa entrou na polêmica e, com algumas exceções, criticou o jornalista norte-americano. A matéria dava o que falar: afinal, o que é interesse público e o que é direito à privacidade no jornalismo? Apesar das ameaças, a expulsão era inconstitucional. Dias depois, o Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos convocou um entrevista coletiva e disse que tudo estava resolvido: o jornalista enviara uma retratação e Lula aceitou as desculpas. “Não foi isso que aconteceu. O título realmente não era correto, mas foram os editores em Nova York que deram. Porém, o conteúdo da matéria não foi desmentido. Tanto que em momento nenhum enviamos qualquer retratação. O único documento assinado por mim e por meus advogados era um documento com os argumentos legais em favor da revogação do decreto de expulsão”, explica Rohter. Durante todo o episódio, o correspondente chegou a ser tachado como mais um “gringo metido” que “não conhece e não gosta do País” e, por isso, “tenta desestabilizá-lo”. Esse realmente não é Larry Rohter. A primeira vez que o jornalista chegou aqui foi há quatro décadas, em 1972, a convite da Rede Globo, emissora na qual trabalhava na sucursal de Nova York. Com 22 anos, ele vinha para servir de tradutor no VII Festival Internacional da Canção. Antes estava de malas prontas para a China, mas quando chegou aqui percebeu que não queria ir embora. Pouco tempo depois, já casado com uma brasileira, voltou para ficar. Até 1982, Rohter foi correspondente internacional da revista Newsweek e do jornal The Washington Post no Brasil. Depois, trabalhou em diversos países da América Latina, China e Ásia. Voltou para cá de 1999 até 2007, período em que foi correspondente do The New York Times. No fim de 2008, Rohter esteve de férias no Rio de Janeiro e aproveitou para lançar Deu no New York Times (Editora Objetiva), livro em que reproduz algumas de suas principais reportagens e tece comentários sobre temas como cultura, ciências e política brasileiras. Em entrevista ao Jornal da ABI, mostrou sua verdadeira face: “Sou um apaixonado e admirador do Brasil, de suas artes, potencial e cultura”.

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LARRY ROHTER ESTA HISTÓRIA NÃO DEU NO NEW YORK TIMES Depois de quase ser expulso do País por causa de uma reportagem em que dizia que o hábito de beber do Presidente Lula estaria prejudicando a condução do Governo, o correspondente do mais prestigiado jornal do mundo fala sobre a repercussão de sua polêmica matéria, analisa o jornalismo atual e se declara um apaixonado pelo Brasil e por sua cultura.

POR MARCOS STEFANO

JORNAL DA ABI – DEPOIS DE TRABALHAR TANTO TEMPO NO BRASIL SÓ AGORA O SENHOR RESOLVEU REVELAR SUAS IMPRESSÕES E CONTAR UM POUCO DOS BASTIDORES DE SUAS REPORTAGENS MAIS POLÊMICAS, COMO AQUELA DE

2004, EM QUE FALA SOBRE O HÁBITO DO PRESIDENTE LULA DE BEBER. POR QUE DEU NO NEW YORK TIMES DEMOROU TANTO?

Larry Rohter – Não é que tenha demorado tanto. Tomei a decisão de escrever o livro, com algumas reportagens, acompanhadas do making of e de comentários que as contextualizavam, depois de alguns churrascos de fim de semana com a família de minha esposa, no Rio. Sempre que participava,

contava as histórias que acompanhavam cada trabalho e o pessoal me encorajava: “Olha, isso vale um livro”. Amadureci durante anos as possibilidades, mas só agora surgiu a oportunidade. As regras no The New York Times são bem claras: o correspondente não pode emitir opiniões nem escrever sobre aquilo que esteja cobrindo; no meu caso, o Brasil. Porém, acabado o meu tempo como correspondente em 2007, fiquei liberado. Também precisava esclarecer o que realmente aconteceu no incidente com o Presidente Lula em 2004, que quase fez que eu fosse expulso do país. As versões pas-


DIVULGAÇÃO/OBJETIVA

sadas por algumas emissoras de televisão e publicações eram totalmente distorcidas; queria passar tudo a limpo. JORNAL DA ABI – EM 2004, O PRESIDENTE LULA DISSE EM ENTREVISTA À FOLHA DE S. PAULO: “FIQUEI PUTO PORQUE COMO PODE UM CIDADÃO QUE NUNCA CONVERSOU COMIGO, QUE NUNCA TOMOU UM COPO DE CERVEJA COMIGO, QUE NUNCA TOMOU UM COPO D’ÁGUA COMIGO, FAZER UMA MATÉRIA DIZENDO QUE EU BEBIA?”. ISSO É VERDADE?

Larry – Bom, talvez ele tenha se esquecido de que o conheci em 1978, quando trabalhava para a semanal Newsweek, e fui o primeiro jornalista a fazer um per-

fil seu para uma publicação estrangeira. Usei como título da matéria uma frase de John Lennon: “Herói da classe trabalhadora”. Ele pareceu bastante feliz com a repercussão, até porque lhe dava uma blindagem contra as ameaças da ditadura. Para fazer esse e outros textos, acompanhei-o bastante. Naquele tempo, costumava tomar apenas Fanta laranja e ele ainda ria da minha cara: “Que é isso? Um jornalista que não bebe?”. Apesar disso, já acompanhei-o em cervejas e mesmo em bebidas mais fortes. Mesmo enquanto estive fora do País, procurei acompanhar sua trajetória. Nosso reencontro foi nos anos 90, pouco antes de voltar a tra-

balhar no Brasil, quando cobria um evento em El Salvador. Foi um encontro cordial. Por isso, estranhei algumas de suas declarações. Acho que houve outros motivos para suas atitudes. JORNAL DA ABI – QUE MOTIVOS SERIAM ESTES?

Larry – Desde 2003, quando o PT assumiu o Governo, eu já vinha fazendo algumas matérias que não estavam agradando suas lideranças. Comecei fazendo uns artigos sobre o Waldomiro Diniz e sobre os problemas enfrentados pelos camponeses sobreviventes da guerrilha do Araguaia. Por minhas fontes, ouvia dizer que assessores de Lula

me criticavam e questionavam como um gringo metido podia estragar a imagem do País no exterior. Não era verdade. Mas acredito que quando estava fazendo uma reportagem sobre o assassinato do Celso Daniel, Prefeito de Santo André, tenha esbarrado num esquema de arrecadação de fundos irregular para o PT. Naquele tempo, sabia pouco sobre a real extensão do problema e não dei tanta atenção ao assunto, até porque era coisa para a imprensa brasileira, mas alguns setores do PT passaram a me ver como uma ameaça e buscar qualquer oportunidade para se livrar de mim. Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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MARCOS STEFANO

LARRY ROHTER ESTA HISTÓRIA NÃO DEU NO NEW YORK TIMES

JORNAL DA ABI – NA OPORTUNIDADE, PARECEU QUE GRANDE PARTE DA IMPRENSA BRASILEIRA FICOU AO LADO DE

LULA. O SENHOR

TAMBÉM TEVE ESSA IMPRESSÃO E O QUE ACHOU DA POSIÇÃO DOS VEÍCULOS NACIONAIS?

Larry – Tive a mesma impressão. Na verdade, fiquei mais irritado com os “coleguinhas”, do que com o Governo. Governos agem de acordo com seus interesses, mas a imprensa não teve o bom senso e a imparcialidade que sempre pregou. Esperava mais da cobertura que fizeram, pois foram tendenciosos. Alguns órgãos funcionaram como papagaios do Governo e não me procuraram nem a meu jornal para ouvir o outro lado. Bateram cegamente. Fui correspondente desde a ditadura, acompanhei a luta da imprensa em favor da democracia e todos me conheciam. Mas não vi coerência naquele momento. Muita gente não gostou da matéria e até a classificou como leviana. Mas vejo de forma diferente: boa parte da imprensa brasileira foi omissa e, depois de a polêmica estourar, hipócrita. Nos bastidores, entre jornalistas e políticos, falava-se muito nisso: que o Lula estava bebendo demais. Ninguém, entretanto, teve coragem de fazer uma matéria mostrando isso. Talvez pela simpatia com o ideário governista, talvez porque não queriam tocar num assunto que pudesse prejudicar a imagem do Governo. Outros, por causa dos negócios e dívidas com o Poder Público ou ainda porque não tinham coragem de tocar em um ponto como aquele diante da popularidade crescente do Presidente da República. JORNAL DA ABI – MAS DIZER QUE O “GOSTO DE LULA PELA BEBIDA TORNA-SE PREOCUPAÇÃO NACIONAL” NÃO ERA MEIO EXAGERADO?

Larry – Realmente. Teve gente que criticou esse título e com razão. Mas todo jornalista sabe que não é o repórter que escolhe o título. Se fosse eu, não teria dado daquela forma. Mas o conteúdo da matéria não teve erros. Isso eles não contestaram. Preferiram escrever meu nome errado e dizer mentiras, inventando que eu estava aqui e, quando a bomba estourou, fugi para a Argentina. Não foi nada disso. Eu estava lá e voltei para cá quando estourou a polêmica, para enfrentar a fera. Como correspondente para todo o Mercosul e o Chile, país associado, estava lá em nosso escritório argentino para fazer reportagens sobre política e economia. A matéria foi publicada num domingo, voltei para cá na segunda e na terça-feira saiu o decreto sobre a minha expulsão. Fiquei aqui o tempo todo, mas até hoje abro os jornais e vejo um monte de besteiras sendo publicadas sobre o episódio. JORNAL DA ABI – SE PUDESSE VOLTAR ATRÁS, OU MUDARIA ALGUMA COISA?

O SENHOR FARIA A MESMA REPORTAGEM?

Larry – Faria igual. A reportagem estava corretíssima e refletia o que acontecia no momento. No máximo, fortaleceria a matéria com mais fontes e citações. Mas, claro, também tem o 32

Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

JORNAL DA ABI – DEPOIS DA problema de espaço. É o velho POLÊMICA COM LULA, O SENHOR SE problema do jornalismo: você SENTE INJUSTIÇADO? tem quatro páginas de informação, mas apenas uma para Larry – Injustiçado é muipublicar tudo. Não concordo to forte. Achei a reação desnecom várias críticas feitas. cessária e estranho que um Achei correto usar o Brizola Governo que diz popular tecomo fonte. A reportagem nha usado uma lei do tempo mencionava que ele era exda ditadura para tentar me excompanheiro de chapa e, napulsar. Tentaram usar outra quele momento, crítico do parte daquela mesma lei conGoverno Lula. Esse negócio tra o próprio Lula, em 1980, de que não deveria ter usado para justificar sua prisão. Eu o Brizola por causa de sua sabia que o Governo não gosrelação estremecida com Lula taria da reportagem, porém, para mim é irrelevante. Imnão esperava que reagisse com porta levar a informação para o fígado, como aconteceu. o leitor, inclusive sobre as Para mim, ele foi mal assessotensões entre os dois polítirado. Não condeno o PT como cos. Não cabe a mim julgar se um todo, pois o partido tem o que Brizola falava era certo várias tendências e correntes. ou não. Ele falou abertamente Mas alguns são remanescensobre a questão. Criticam-me tes de tempos passados e simpor aí também dizendo que patizantes de governos autominhas fontes principais foritários de esquerda. O Lula ram o Cláudio Humberto e o sentiu-se ofendido pessoalDiogo Mainardi. Primeiro, mente e alguns de seus assesnão conheço o Humberto e sores no Palácio do Planalto esnunca falei com ele. Eu citei timularam as críticas de que a o concurso na coluna dele matéria foi impertinente, arapenas como exemplo dos rogante, insultante. Foi uma boatos que corriam pelo País mistura de fatores pessoais e e ligavam Lula à bebida. A priideológicos. Mas também almeira vez que falei com Maguns aproveitaram para fazer inardi foi no programa Macampanha de suas concepnhattan Connection há poucas ções, distorcendo a história e semanas. Minhas fontes focriando um factóide. Disseram jornalistas e políticos. Larry continua no New York Times, e como queria: baseado em Nova ram que estava tentando miYork e destacado para a área cultural e eventos internacionais. nar o prestígio do Lula no exNinguém quis aparecer na matéria com o nome completerior, que se tratava de uma Brasil é enorme”. Também fiquei sato. Mas ex-Presidentes e donos de jormatéria encomendada e até que eu era bendo que durante uma reunião, quannais disseram que Lula bebia demais e um agente a serviço de outros interesdo Lula ficou sabendo por um de seus que o País estava à deriva. E o texto reses. Tudo paranóia. Uma visão ultraassessores que me expulsar do País era fletiu isso. Era um tempo em que o Gopassada, especialmente contra um jorinconstitucional porque minha mulher verno parecia omisso diante da corrupnalista estrangeiro. é brasileira, esmurrou a mesa, exaltação e havia passividade em suas ações. JORNAL DA ABI – TODA ESSA CONFUSÃO do: “Que se foda a Constituição! Quero Hoje, sabemos que, naquele momenTRAZ UM DEBATE INERENTE AO JORNALISMO. que ele vá embora”. to, o mensalão e outros escândalos de ATÉ QUE PONTO A VIDA PESSOAL DE LULA É corrupção já eram executados. JORNAL DA ABI – PARA SOLUCIONAR DE VEZ

JORNAL DA ABI – O SENHOR TENTOU FALAR COM O LULA NA ÉPOCA?

Larry – Tentei. Procurei várias vezes o Palácio do Planalto, procurei com o Ricardo Kotscho, mas ele não pôde me receber e me passou para seu subordinado, o Fábio Kerche. Houve uma reunião lá no Planalto e várias ligações te-

SOMENTE A ELE?

ANULADO, O SENHOR TEVE QUE SE RETRATAR,

Larry – Durante as apurações, Fábio Kerche levantou essa objeção. Mas disse a ele que qualquer coisa que pudesse impactar o desempenho de um servidor público é pauta. Citei, inclusive, o escândalo Clinton-Lewinsky como exemplo. O problema não foi o adultério em si, mas o fato de ter sido cometido na Casa Branca, em horário de expediente e pelo Presidente ter usado seu cargo e ainda mentido em juramento. Tudo bem, o jornalismo no Brasil talvez não tenha a mesma preocupação que o norte-americano, mas eu era um repórter de lá, escrevendo para um veículo norte-americano que seria lido por norte-americanos. Pouco tempo antes, tinha feito uma matéria sobre como o divórcio entre Marta Suplicy e o Senador Eduardo Suplicy estava afetando a política em São Paulo. O PT chiou, mas Marta era uma feminista, movimento que sempre defendeu que “o político é pessoal e o pessoal é político”. Acredito que nada que reflita sobre as crenças, políticas, po-

COMO A MÍDIA DIVULGOU?

Larry – Isso não é verdade. Não mandei carta nenhuma e o jornal enviou apenas uma correspondência saudando a mudança de posição do Governo e reiterando a correção e justeza da reportagem. Porém o Ministro da Justiça na época, Thomaz Bastos, deu uma entrevista em São Paulo na qual distorceu a correspondência; disse que eu tinha escrito uma carta de retratação e que Lula tinha aceitado meu “pedido de desculpas”. O Jornal Nacional, da TV Globo, repercutiu essa informação e fez o estrago. Os jornais do dia seguinte já saíram com a versão do The New York Times, que negava a retratação. A revista Veja deu até matéria de capa e detalhou ocasiões em que repórteres brasileiros presenciaram o consumo de álcool pelo Presidente.

“Estranho que um Governo que se diz popular tenha usado uma lei do tempo da ditadura para tentar me expulsar.” lefônicas sobre a matéria que eu faria. O Governo teve várias oportunidades para se posicionar sobre o assunto e não quis. Depois, quando a reportagem saiu, recebi uma ligação do Embaixador Roberto Abdenur, da embaixada brasileira em Washington. Ele me interpelou: “Não sei o que você está pretendendo com isso, mas os mercados vão enlouquecer amanhã. O dano ao

ALGO DE INTERESSE PÚBLICO OU PERTENCE

O IMPASSE E O DECRETO QUE O EXPULSAVA SER


pularidade e eficiência no cargo de representantes eleitos deva ser considerado inaceitável. JORNAL DA ABI – ATUALMENTE, O SENHOR ESTADOS UNIDOS. SUA VOLTA PARA LÁ FOI MOTIVADA POR ALGUM DESDOBRAMENTO DESSA REPORTAGEM?

Maré, ainda pequena em relação ao que é agora, seja o Cristo Redentor ou o Pão de Açúcar: “Très belle!”, repetia ele, entusiasmado. Apesar de mais contido, eu sentia o mesmo.

ESTÁ MORANDO NOS

Larry – Já trabalhava na sucursal deles em Nova York. Lá conheci uma brasileira, que se tornou namorada e depois esposa. Ela foi contratada para trabalhar na tradução do programa infantil Sesame Street, o Vila Sésamo. Eu fazia um pouco de tudo. Acompanhava o mercado musical, buscava direitos autorais das canções, trabalhando na produção do Fantástico e fazendo traduções de documentos e matérias. Também conheci muitos brasileiros e fiz ótimos contatos em festas. Cheguei aqui para trabalhar como intérprete de artistas norte-americanos e canadenses que atuavam no festival. Também fui o responsável por comprar todos os equipamentos para o FIC, de amplificadores a baterias. Aqui, além de traduzir, ciceroneei o pessoal, apresentando a eles a Mangueira, o samba, os bra-

feira. Tudo me interessava, mas encontrei manifestações que nunca tinha visto antes em lugar algum: repentistas, artistas de xilogravura e cordelistas. Fiz questão de adquirir uns cinco ou seis títulos de cordel. O interesse foi crescendo, fiz pesquisas, escrevi várias reportagens. Queria ter feito um livro para o público inglês, mas como já há dois outros bons títulos, percebi que não teria mercado. Para mim, o cordel é uma das expressões mais originais da brasilidade, com uma mistura nordestina, européia, africana e indígena. Uma expressão popular e não da elite, nascida há mais de 150 anos, quando o Brasil mal havia deixado de ser colônia portuguesa. JORNAL DA ABI – QUAL É O SEU PENSAMENTO SOBRE PROJETOS DE PARLAMENTARES E O CLAMOR DE ALGUMAS CORRENTES NACIONALISTAS CONTRA O “IMPERIALISMO NORTE-AMERI-

saíam às ruas, acabavam massacrados. A pobreza também me impressionou. Quando subi a uma favela pela primeira vez fiquei marcado. Não que a pobreza não exista nos Estados Unidos, mas aqui a diferença entre ricos e pobres é

CANO QUE INVADE A CULTURA BRASILEIRA”?

Larry – Tenho acompanhado essas manifestações desde o início do meu trabalho no Brasil. Os parlamentares e lideranças que têm essas posições estão agindo de boa-fé, mas creio que CARLOS SILVA-IMAPRESS/AGÊNCIA O GLOBO

Larry – Não. O jornal The New York Times tem como procedimento padrão trocar seus correspondentes a cada três ou cinco anos. Eu fiquei no Brasil por nove anos, fui recordista. Chega o momento de sair. Minha esposa também queria morar em outro lugar. Apesar de ser carioca, estava preocupada com a violência na cidade, especialmente depois da morte do garoto João Hélio. Eu já fui chefe em todas as nossas sucursais na América Latina. Queria fazer algo diferente. Cobri eleições em 40 países. Mas agora foi a primeira vez que acompanhei as eleições em meu próprio país. Foi uma campanha histórica e algo novo e enriquecedor para mim. Agora, estou trabalhando no jornal como correspondente itinerante de cultura e notícias internacionais. É um trabalho de bombeiro nas crises internacionais, mas na maior parte do tempo posso me dedicar à cultura, minha paixão. Um posto criado sob medida para mim. Minha base é Nova York e viajo segundo as necessidades.

JORNAL DA ABI – DE QUE FORMA COMEÇOU GLOBO?

ESSA RELAÇÃO COM A

“O cordel é uma das expressões mais originais da brasilidade, com uma mistura nordestina, européia, africana e indígena. Uma expressão popular e não da elite, nascida há mais de 150 anos, quando o Brasil mal havia deixado de ser colônia portuguesa.”

JORNAL DA ABI – FALANDO EM FAZER O BRASIL PELA PRIMEIRA VEZ EM 1972 E FICOU TÃO APAIXO-

QUE GOSTA, O SENHOR VEIO AO

NADO POR ESTA TERRA QUE DECIDIU FICAR DE VEZ POR AQUI.

O QUE DESPERTOU ESSE AMOR

À PRIMEIRA VISTA?

Larry – Para falar a verdade, foram vários fatores. Eu me apaixonei primeiro por uma brasileira. Isso foi fundamental. Mas eu também encontrei um país fascinante, muito diferente do meu e atravessando um momento histórico muito interessante. Eu encontrei dois Brasis: o oficial, repressivo, sombrio; e o povo, que lutava contra os desmandos da ditadura e que se expressava por meio de uma cultura vibrante, especialmente pela música, outra paixão minha. Eu queria ser correspondente estrangeiro. Na época, estava estudando a língua e a história da China. Porém, minha visita em 1972 desviou-me do Oriente. Em sua longa permanência no Brasil, Larry fez mais de 500 reportagens, muitas de risco, deslocando-se em frágeis embarcações.

JORNAL DA ABI – QUAL FOI SUA PRIMEIRA IMPRESSÃO AO DESEMBARCAR NO RIO?

Larry – Vim como funcionário contratado pela Rede Globo, trazido de Nova York para trabalhar no VII Festival Internacional da Canção. Sentado a meu lado na van da emissora vinha outro estrangeiro: o cantor e compositor franco-grego Georges Moustaki. Ele estava deslumbrado com o calor, as cores tropicais e toda aquela efervescência. Quando o motorista se ofereceu para ligar o ar-condicionado, Moustaki insistiu para que a janela permanecesse aberta. Queria ver, ouvir e cheirar tudo, fosse a Favela da

sileiros e outras cidades do País. No final, quem não conseguiu resistir a tudo isso fui eu. JORNAL DA ABI – QUANDO O SENHOR CHEBRASIL NA DÉCADA DE 1970, QUE

GOU NO

mais brutal. Também houve aspectos positivos: a efervescência cultural, por exemplo, causou uma impressão muito maior. Apesar das mazelas, o povo brasileiro é lutador, não se entrega e triunfa com enorme capacidade.

GRANDES DIFERENÇAS SENTIU EM RELAÇÃO AOS

E STADOS UNIDOS? O QUE MAIS O IM-

PRESSIONOU AQUI?

Larry – Primeiro, a repressão política. Lá, eu ainda era estudante e saí às ruas durante a Guerra do Vietnã para protestar. Não havia violência contra nós. Estudantes brasileiros, quando

JORNAL DA ABI – O SENHOR REVELA UMA COMO O CONHECEU? SIMPATIA TODA ESPECIAL PELO CORDEL.

Larry – Um tio da minha esposa levou-me logo no primeiro domingo para o Campo de São Cristóvão, para conhecer as tradições nordestinas em uma

estão errados. Não dão suficiente valor à capacidade criativa da cultura brasileira, ao seu reinventar. Gosto de usar aquele conceito de antropofagia para a cultura do Brasil, pois ela consegue ir ao encontro de outras culturas de igual para igual, absorvendo, como qualquer outra, o melhor, transformando-se em algo novo, mas preservando suas raízes. Um exemplo clássico é o Tropicalismo, atacado como uma ferramenta imperialista. Mas era, na verdade, um movimento vibrante de renovação da música nacional. O Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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LARRY ROHTER ESTA HISTÓRIA NÃO DEU NO NEW YORK TIMES

funk e o rap também foram muito atacados, mas o brasileiro conseguiu fazer algo singular, com sua cara. Tanto que muitos dos artistas que vêm para cá buscam captar e aprender coisas novas. Até no improviso temos um elemento brasileiro. Por isso, não concordo com essa visão apocalíptica. JORNAL DA ABI – EM SEU LIVRO, O SENHOR MOSTRA GRANDE SIMPATIA PELO POVO E CRITICA AS ELITES.

COMO FOI SUA FORMAÇÃO POLÍTICA?

Larry – Comecei minha vida trabalhando em fábricas, ao lado de imigrantes e exilados latino-americanos. Eu escutava atentamente a história que esses dominicanos, cubanos, mexicanos e porto-riquenhos contavam. Foi o início do meu processo de conhecimento da América Latina. Eles reclamavam muito dos governos, chamavam-nos de corruptos, incompetentes, ditadores. Tanto os de direita quanto os de esquerda. Isso foi fundamental na minha formação política. Na faculdade, tive um professor polonês que emigrou para os Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial. Ele havia passado temporadas em campos de concentração nazistas e soviéticos. Isso solidificou minha opinião de que qualquer totalitarismo é nocivo para o ser humano. Como jornalista, sempre escrevi a favor dos movimentos populares e contra os ditadores de plantão, não somente aqui, mas em vários países da América Latina. Seja Pinochet, seja Fidel. Sejam os militares no Brasil, sejam os sandinistas na Nicarágua. Ainda hoje, isso é uma questão polêmica, já que aqueles que são ditadores para a esquerda não o são para a direita, e vice-versa. Não sou da terceira via. Sempre fui e sou partidário dos Estados democráticos. JORNAL DA ABI – QUAL FOI SEU TRABALHO ESTADOS UNIDOS? NESTA ÚLTIMA ELEIÇÃO PRESIDENCIAL NOS

Larry – Inicialmente, tive quatro coberturas, todas girando em torno da campanha eleitoral: política internacional, comércio internacional, imigração e eleitorado hispânico. Já na primeira semana, meu chefe me chamou e disse que todos os correspondentes que acompanhavam os candidatos estavam exaustos. Todos esperavam que as primárias terminariam em março, com a definição do candidato indicado por cada partido. Mas elas prolongaram-se até junho. Então, ele me perguntou se eu toparia viajar e acompanhar um dos candidatos. No New York Times temos gente que cobre política, internacional, economia, saúde e aqueles que acompanham os candidatos. Eu topei. Primeiro, viajei com John McCain por cinco dias, depois com Hillary Clinton, em seguida com Barack Obama e fui revezando. Em setembro e outubro, na fase final, viajei com Sarah Pallin. O fato de Obama e Clinton serem da minha cidade, Chicago, ajudou-me a contextualizar melhor a trajetória deles. JORNAL DA ABI – COMO O SENHOR COMPA-

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Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

RA A COBERTURA FEITA PELA IMPRENSA NORTEAMERICANA DAS ELEIÇÕES LÁ COM A QUE É FEITA AQUI NO

BRASIL?

Larry – Acredito que cada uma a seu modo é bem feita. Há nuances e diferenças na imprensa dos dois países, mas cada uma faz bem feito seu papel em cada nação. Falam muito em imparcialidade na cobertura lá e parcialidade aqui. Na cobertura, existe imparcialidade, mas não no jornalista. Você tem uma trajetória, uma formação, opiniões e visões. Isso impacta a cobertura. Mas é justamente missão do profissional passar elementos, independentemente de suas convicções, para que o leitor tome suas decisões. Eu mesmo já fiz reportagens com candidatos que contrariavam minhas convicções pessoais, mas fui elogiado pelos partidários do candidato, que achavam que eu o apoiava. Entretanto, apenas procurei ser neutro. JORNAL DA ABI – APÓS COBRIR A ELEIÇÃO DE BARACK OBAMA, QUAIS SÃO SUAS EXPECTATIVAS PARA COM O GOVERNO QUE ESTÁ COMEÇANDO?

Larry – Primeiro, um pesadelo que já durava oito anos finalmente terminou. Nesse tempo, foram duas guerras, uma delas completamente desnecessária e inconseqüente, uma economia em ruínas, por causa de uma ideologia ultrapassada, que defende sem ponderação o livre mercado. Quer dizer, a herança recebida por Obama é um peso e um desafio que não será fácil consertar. Porém, sua liderança consegue inspirar as novas gerações, antes totalmente aversas ao patriotismo e à política, para participarem. Como diz o Lula, é uma “herança maldita”. Não acho que ele tenha recebido uma. Mas Obama, sim. E arrumar a casa levará tempo e custará caro. Nem todas as figuras do Governo Obama são novas. Mas, como sempre ouvia Hillary Clinton perguntar em suas viagens: “Que parte dos anos 90 você não gostou: a prosperidade ou a paz?”. Não acho problema resgatar alguns personagens daquele tempo que fizeram um trabalho exemplar nessas áreas. Mas para o Brasil e os demais países, acho que está havendo uma esperança exagerada. Não quero estragar as expectativas, mas acho que essa imagem universal do primeiro negro a dirigir a Casa Branca, dono de uma visão internacional por ter morado no exterior, e de uma biografia singular, não sustentará ilusões por muito tempo. Obama é o Presidente dos Estados Uni-

dos, ponto. Não vai governar para o Brasil. Lá na frente prevejo dificuldades para os brasileiros. Quer um exemplo? Hoje, o Brasil é dono do maior e mais avançado programa de etanol do mundo. Os Estados Unidos não têm como concorrer. Mas têm outro, à base de milho, sustentado com barreiras artificiais e subsídios. Como senador, Obama tem defendido não apenas a continuidade delas, mas seu aumento. O Bush assinou um acordo com Lula para fortalecer parcerias e programas em conjunto. Como já sinalizou na campanha, Obama não deve sustentar esse acordo. É apenas uma de várias áreas de potencial atrito entre os dois países. Nessa questão, apóio o Brasil. Temos que admitir e apoiar o maior e mais eficiente programa de produção de etanol do mundo. Durante a campanha, fiz uma matéria sobre o etanol e Obama, que virou primeira página do New York Times. Ela foi muito comentada, mas os admiradores de Obama criticaramna. É algo que ainda vai repercutir e vale acompanhar.

JORNAL DA ABI – A CORRUPÇÃO É UM PROBLEMA SÉRIO NO BRASIL. PORÉM, MUITO TEM SE FALADO NO TRABALHO DA IMPRENSA DENUNCIANDO CASOS DE CORRUPÇÃO E, COM ISSO, UM COMBATE EFETIVO A ESSE MAL. O SENHOR ACHA QUE A CORRUPÇÃO TEM DIMINUÍDO?

Larry – Tenho pensado muito sobre isso. Claro que durante a ditadura havia corrupção, mas era impossível denunciá-la. Com a censura e repressão era difícil dizer se houve desvio de dinheiro em obras como a hidrelétrica de Itaipu, a Ponte Rio-Niterói ou a Transamazônica. A democratização trouxe novas possibilidades para o trabalho do jornalista, que foram complementadas por novos recursos tecnológicos, como câmeras e gravadores minúsculos. Não sei se a corrupção tem diminuído, mas o trabalho de denúncia feito pela imprensa brasileira está-se aperfeiçoando cada vez mais. Agora, pelo que já foi revelado, o Governo Lula é o mais corrupto da História. Perto dele, casos como o de Fernando Collor e PC Farias são café pequeno. Outra mudança significativa é que antigamente os corruptos não estavam interessados em construir um aparato que os mantivesse no poder por décadas. Hoje, enriquecer é uma preocupação secundária. Em Santo André, por exemplo, havia um esquema cujo objetivo era arrecadar dinheiro para o PT. Só que acho a corrupção feita para monopolizar o poder muito mais grave.

“Pelo que já foi revelado, o Governo Lula é o mais corrupto da História. Perto dele, casos como o de Fernando Collor e PC Farias são café pequeno.”

JORNAL DA ABI – QUAIS REPORTAGENS MAIS MARCARAM EM SUA TRAJETÓRIA?

Larry – Só aqui no Brasil fiz mais de 500 reportagens. Em especial, ficaram marcadas aquelas que fiz sobre a guerrilha do Araguaia; a descoberta de uma caixa de discos com gravações feitas em 1938 por uma missão de pesquisa folclórica enviada por Mário de Andrade, naquele tempo Secretário Municipal de Cultura de São Paulo, ao sertão nordestino; no campo político, o assassinato de Celso Daniel, Prefeito de Santo André, na Grande São Paulo. A do Lula alguém pode pensar que foi mais importante por causa da repercussão, mas está longe disso.

“Acho que essa imagem universal do primeiro negro a dirigir a Casa Branca, dono de uma visão internacional por ter morado no exterior, e de uma biografia singular, não sustentará ilusões por muito tempo.”

JORNAL DA ABI – O QUE MUDOU EM QUASE BRASIL?

QUATRO DÉCADAS NO

Larry – No campo da política, muita coisa mudou.

Obama, na posse: Ele não vai governar para o Brasil, adverte Larry Rohter.


MARCOS STEFANO

A começar pelas instituiria considerada negativa, ções, que estão fortalecia grande imprensa a desdas e funcionando muito tacava. Diziam: “Novamelhor. Existem problemente aquele gringo memas, às vezes muito batido ataca o Brasil”. Mas rulho, mas como efeito quando fazia um texto também do processo depositivo, sobre alguma famocrático. Durante a diçanha ou descoberta bratadura, eu teria sido exsileira, ninguém comenpulso do País. Mas agora tava. O Brasil é fortíssimo o Judiciário agiu de modo em certos nichos tecnolóindependente, contra os gicos e em inovações cieninteresses de parte da imtíficas. Por isso, dedico a prensa e do Governo, e última parte de meu livro manteve os princípios às matérias que fiz na constitucionais, permiárea. Empresas como Emtindo que eu ficasse. O brapa e Embraer são lídePaís está progredindo e res mundiais; a Petrobrás para que continue é netem a melhor tecnologia cessário aprofundar a rede exploração de petróleo forma política e a reforem águas marinhas; o ma judiciária. A Justiça programa de produção de lenta é um desafio muito etanol pode ser a saída grande para o Brasil. Desque o mundo busca para de o começo do meu trauma fonte de energia albalho, tenho procurado ternativa; e os estudos sempre manter contato que decifraram o genoma com o meio político. Em de pragas que devastam 1978, entrevistei Arnon os cítricos podem revolude Mello, pai do futuro cionar a agricultura. São Larry Rohter sobre sua obra: “Qualquer totalitarismo é nocivo para coisas que o mundo inteiPresidente Fernando Coo ser humano. Sempre escrevi a favor dos movimentos populares ro respeita, mas o brasileillor de Mello, e senador e contra os ditadores de plantão. Seja Pinochet, seja Fidel”. biônico da Arena. Ele me ro desconhece. O Brasil contou uma história que não é só praia, futebol, exemplifica muito bem como as coisas para passar férias e visitar a família de mulher e samba. Também não é verdafuncionam na política brasileira. Arnon minha esposa. Quando voltei a morar de que os estrangeiros só vejam isso no era um jovem repórter em Maceió, na aqui em 1999, muita coisa tinha mudaPaís. Nos meios acadêmicos e científiagitada década de 1930. Assim, recebeu do no jornalismo. Acho que faltam idecos, o Brasil é muito respeitado lá fora. a tarefa de enconais e compromisso JORNAL DA ABI – ESSES SÃO ALGUNS MITOS trar um poderoso para os mais joQUE ATÉ A IMPRENSA LÁ FORA CULTIVA SOBRE cacique no interior vens. Tem gente O BRASIL. QUE OUTROS MITOS? de Alagoas e descoque quer ingressar brir que lado ele esna área apenas para Larry – Com o crescimento da ecotava apoiando. ganhar dinheiro ou nomia brasileira, as notícias que só faQuando enconficar famoso, espelam do Brasil como a terra do futebol, trou o homem em cialmente aparedo Carnaval ou da sensualidade pauseu cavalo, dispacendo na televisão. latinamente vão desaparecendo. Hoje, rou: “De que lado o Uma grande parte o Brasil é encarado pela imprensa insenhor está?”. perdeu o sentido de ternacional como “Meu filho, o Govocação. Ainda exisuma grande ecoverno mudou, mas te muita gente boa nomia em asceneu não”, responna área, mas messão. Entretanto, deu o coronel. mo estes precisam há ênfase exagera“Continuo com o lidar com uma série da na violência, Governo”. de limitações. Alpor exemplo. Não gumas financeiras, como o orçamento que não exista. É JORNAL DA ABI – AFORA A BRIGA COM O apertado, mas também falta de vontaum fato, mas paPRESIDENTE LULA EM 2004, COMO O SENHOR de em investir em certas coberturas ou rece que só existe AVALIA O TRABALHO FEITO PELA IMPRENSA NO no jornalismo investigativo, e comproisso. O público BRASIL? missos assumidos pelos donos com forma uma imaLarry – Pode soar negativo, mas vejo grupos políticos regionais. Esses integem irreal. Já cono trabalho da imprensa como um mar resses precisariam ficar mais claros. Em versei com pessode mediocridade com algumas ilhas de qualquer veículo da imprensa eles exisas que achavam excelência. Quando cheguei aqui, o jortem, mas no Brasil eles infiltram-se nas que aqui existia nalismo era muito mais do que uma matérias. Não ficam no editorial. E os um tiroteio em carreira. Era uma vocação. Você desaveículos não declaram suas posições e cada esquina. Isso fiava o poder, corria riscos, pagava alcontinuam vendendo a falsa imagem não existe. Outra: tos preços. Vladimir Herzog pagou com de imparcialidade. a imagem que se passa lá fora da Amaa própria vida. Jornais como O Estado zônia é de que não há remédio, pois a deJORNAL DA ABI – O SENHOR DISSE QUE OS ESde S. Paulo desafiavam a censura e, vastação não consegue ser sequer controTRANGEIROS NÃO CONHECEM O POTENCIAL CIENquando tinham alguma matéria cortalada pelo Governo. O desmatamento é TÍFICO E TECNOLÓGICO DO BRASIL. COMO ASSIM? da publicavam Camões em seu lugar. terrível, mas a verdade é mais compleA Editora Abril e o Jornal do Brasil eram Larry – Nem o próprio brasileiro xa, pois muitos governantes e organioutros extremamente combativos. Eu conhece. É dos aspectos menos essenzações estão buscando formas de comadmirava isso. Deixei o Brasil em 1982. ciais para a identidade do povo. É algo batê-lo e com sucesso. Em meus textos Durante anos, vim ao Brasil apenas curioso: sempre que fazia uma matéfaço questão de salientar que Jorge Vi-

“Quando cheguei aqui, o jornalismo era muito mais do que uma carreira. Era uma vocação. Você desafiava o poder, corria riscos, pagava altos preços. Vladimir Herzog pagou com a própria vida.”

ana e Eduardo Braga* são exemplos de lideranças inteligentes e modernas, com boas idéias, e que têm combatido a destruição da floresta. Assim quebramos aquela idéia equivocada recorrente lá fora de que o brasileiro não tem consciência dos danos que provoca. O problema é fazer valer o poder do Estado e equilibrar desenvolvimento com preservação, exploração e distribuição de renda. JORNAL DA ABI – QUAL A IMPORTÂNCIA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA NO SENTI -

DO TRABALHO DE ENTIDADES COMO A

DO DE BUSCAR UMA IMPRENSA MAIS LIVRE E DE QUALIDADE?

Larry – O trabalho desenvolvido por entidades como a ABI é extremamente importante. Durante a ditadura, a defesa que fez da liberdade de expressão foi balizadora e encorajadora para muitos profissionais. Mas mesmo hoje acho que o papel que cumpre é tão importante quanto foi nos anos de chumbo. Temos cidades extremamente desenvolvidas como o Rio e São Paulo, mas lugares, e não muito distantes desses grandes centros, com práticas que lembram as do século 19, cheias de ameaças, coronelismo e busca de interesses escusos. Sempre ouço falar de situações assim e quem está lá para defender a liberdade de expressão? Entidades como a ABI. Tenho um colega, Lúcio Flavio Pinto, jornalista lá de Belém, no Pará, que enfrenta a perseguição de grupos locais, como de Jader Barbalho e seus arapongas. JORNAL DA ABI – E SEUS PLANOS FUTUROS? ENVOLVEM O BRASIL?

Larry – Até gostaria de morar aqui novamente. Mas aposentado. Acho que não volto como correspondente. Porém, tenho planos de escrever livros sobre o Brasil. Falar de suas músicas, da Amazônia, fazer biografias, como a do Marechal Rondon. Também contar mais histórias de bastidores e minhas brigas com alguns jornalistas e veículos da imprensa. Agora que não estou mais como correspondente, a regra do jornal me permite tocar esses projetos e falar sobre esses temas. Não estou mais no Brasil, mas aprendi a amar o País. É minha segunda casa. Não consigo deixar de acompanhar os temas importantes e também as fofocas: quem briga com quem, quem está brilhando, histórias de artistas e políticos.

“O Brasil é fortíssimo em certos nichos tecnológicos e em inovações científicas. Por isso, dedico a última parte de meu livro às matérias que fiz na área. Nos meios acadêmicos e científicos, o Brasil é muito respeitado lá fora.”

*Jorge Viana foi Governador do Estado do Acre por dois mandatos. Eduardo Braga é Governador reeleito do Estado do Amazonas.

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“T

em nível.” Foi com essas palavras que, em 1967, José Lino Grünewald, Diretor de Redação do Correio da Manhã, acabou com os sonhos de um garoto de se tornar meia-esquerda do Flamengo e comprovou que ele sabia escrever. Mesmo assim, o rapaz ainda precisaria trabalhar oito meses sem receber e ralar muito, cobrindo crimes, tomando borrachada em passeatas estudantis e indo a hospitais públicos, antes de ter emprego remunerado. O começo foi inusitado, mas quando lembra do passado Ruy Castro não tem dúvidas de que se tratou de uma excelente escola, que lhe daria bagagem para se tornar um dos mais célebres biógrafos brasileiros da atualidade. Autor de obras como O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues, de 1992; Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha, 1995; e a de Carmen Miranda, de 2005 (todas publicadas pela Editora Companhia das Letras), ele se tornou um autêntico biógrafo da vida brasileira. Isso porque, quando escreve, Castro não retrata apenas o personagem, mas fala sobre a sociedade no País e conta os mais curiosos aspectos da vida nos bastidores do mundo das artes, do futebol, da música e da política. ”A graça da biografia está em descobrir fatos que estavam enterrados há décadas, no fundo de uma gaveta ou da memória de alguém”, diz Ruy Castro, que se considera jornalista por vocação, mas também tem uma bem-sucedida carreira de tradutor, ficcionista e estudioso da bossa nova, ritmo surgido no Rio de Janeiro no fim dos

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anos 1950 e que foi abordado em quatro de seus livros, inclusive em Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova (Companhia das Letras). Em entrevista ao Jornal da ABI, Castro fala um pouco sobre a arte de escrever sobre vidas, lembra sua carreira no jornalismo, da convivência com Ismael Silva e Paulo Francis e do prazer de escrever. Também analisa o crescimento do número de biografias feitas por jornalistas nos últimos anos, a polêmica que cerca as chamadas “biografias não autorizadas” e esclarece como ficou o processo movido pelas filhas de Garrincha, que chegou a retirar de circulação Estrela Solitária durante algum tempo.


FOTO: IVSON - TRATAMENTO DE IMAGEM: FRANCISCO UCHA

RUY CASTRO O BIÓGRAFO DA VIDA BRASILEIRA Com humor e pertinência, o jornalista que escreveu sobre personagens como Nélson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda fala sobre a arte de escrever biografias e sobre sua carreira de mais de quatro décadas. POR JOSÉ REINALDO MARQUES E MARCOS STEFANO

JORNAL DA ABI – HOJE, ESCREVER BIOGRAFIAS E MEMÓRIAS É ALGO QUE PARECE ESTAR NA MODA.

PORÉM, QUAL É O SEGREDO DA BOA BIOGRAFIA?

Ruy Castro – Será uma moda? Nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha e em outros países, a biografia é um gênero literário estabelecido há algumas dezenas de anos. Sem dúvida, o segredo de uma boa biografia é localizar o maior número possível de fontes para falar sobre o biografado, como tentei fazer em meus livros sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. JORNAL DA ABI – A MAIORIA DAS PERSONALIDADES QUE VOCÊ BIOGRAFOU JÁ MORRERAM, COM EXCEÇÃO DE JOÃO

GILBERTO EM CHEGA DE SAUDADE. HÁ ALGUMA PREFERÊNCIA? O QUE É MAIS DIFÍCIL: FALAR SOBRE VIVOS OU MORTOS?

Ruy – O biografado vivo é impraticável: interfere no trabalho, mente sobre si próprio, obriga os amigos a mentir e influi sobre eles para que não falem sobre certas coisas – ou para que não recebam o autor. Mesmo assim, depois de o livro pronto, entram com o inevitável processo. Para piorar, sua história ainda não terminou. O morto tem essa vantagem – está morto, acabou, não inflói nem contribói. O processo, quando há, parte dos herdeiros. JORNAL DA ABI – NO BRASIL, DIFERENTE DE OUESTADOS UNIDOS, ONDE JÁ EXISTE UMA FORTE TRADIÇÃO DO FAZER BIOGRÁFICO, AS PESSOAS ACHAM QUE UM ÚNICO TIPO DE BIOGRAFIA, A AUTORIZADA, PODE EXISTIR. E APENAS UMA DE CADA PERSONAGEM . COMO VOCÊ VE A QUESTÃO? O QUE PRECISA SER FEITO NO BRASIL PARA AMADURECER ESTE MERCADO? TROS PAÍSES COMO OS

Ruy – Pois é, temos que acabar no Brasil com essa história de biografia autorizada. Eu próprio nunca fiz uma e nunca farei. Acho também que pode e deve haver mais de uma biografia por biografado – a minha sobre a Carmen, por exemplo, é a terceira ou quarta sobre ela. Ganha a melhor.

das Letras. A editora topou, pagou uma certa quantia para cada uma – o total não foi mixaria, considerando-se que eram dez pessoas – e tudo se resolveu. Só que os advogados ficaram fulos e também quiseram o mesmo dinheiro, que a editora pagou. Vamos ver se, agora, sossegam. A coisa se arrastou por onze anos. JORNAL DA ABI – AS FILHAS DO ANTIGO CRAA MÁQUINA DE FAZER SEXO E SOBRE CITAÇÕES DA ANATOMIA ÍNTIMA DE G ARRINCHA. HOJE, SE FOSSE ESCREVER O TEXTO NOVAMENTE, VOCÊ COLOCARIA ESSAS INFORMAÇÕES NOVAMENTE? QUE SE INDIGNARAM CONTRA O CAPÍTULO

Ruy – As filhas de Garrincha não se indignaram com nada, porque nenhuma delas leu o livro. Todo o processo partiu dos advogados. Se eu fosse escrever de novo, faria exatamente igual. JORNAL DA ABI – ESSE TIPO DE PROBLEMA – HOUVE INTERFERÊNCIA JUDICIAL NA BIOGRAFIA

ROBERTO CARLOS EM DETALHES, DE PAULO CESAR ARAÚJO, MAIS RECENTEMENTE – NÃO PODE ABORTAR ESSE BOOM DE NOVAS BIOGRAFIAS, ESCRITAS PRINCIPALMENTE POR JORNALISTAS? COMO VOCÊ VÊ ESSE MOVIMENTO DE JORNALISTAS ESCREVEREM BIOGRAFIAS?

DE

Ruy – Não se faz uma boa biografia apenas com a tarimba da imprensa. É preciso também saber história e ter uma cultura ampla. Um curso de biografia na universidade deveria ter aulas em pelo menos três faculdades: Jornalismo, História e Letras. JORNAL DA ABI – O JORNALISMO O AJUDOU A DESENVOLVER O SENSO DE OB-

“Não se faz uma boa biografia apenas com a tarimba da imprensa. É preciso também saber história e ter uma cultura ampla”

JORNAL DA ABI – EM 1995, SUA BIOGRAFIA ESTRELA SOLITÁRIA SAIU DE CIRCULAÇÃO POR DECISÃO DA JUSTIÇA, DEPOIS QUE AS FILHAS DE GAR-

SERVAÇÃO QUE SE PERCEBE EM SEUS LIVROS?

Ruy – Sem dúvida. Para mim, a primeira coisa a buscar é a informação. Livros como Chega de Saudade, O Anjo Pornográfico, Estrela Solitária, Ela é Carioca e Carmen foram todos baseados em entrevistas com centenas de fontes. Para isso, a tarimba de quase 40 anos entrevistando gente foi fundamental. Só a imprensa ensina a fazer perguntas, tomar notas, pegar a fonte desprevenida e, principalmente, a ouvir o entrevistado.

RINCHA SE SENTIRAM OFENDIDAS E ALEGARAM

“DIREITO À PRIVACIDADE” DO PAI. COMO VOCÊ VE ESTE CONFLITO ENTRE “LIBERDADE DE EXPRESSÃO” E “DIREITO À PRIVACIDADE”?

Ruy – É o resultado dessa “Constituíção Frankenstein” que tenta agradar a todo mundo. JORNAL DA ABI – ALIÁS, VOLTANDO A ESSA BIEM 2001, A COMPANHIA DAS LETRAS E AS FILHAS RECORRERAM OGRAFIA, COMO FICOU O PROCESSO?

DA DECISÃO JUDICIAL QUE MANDAVA A EMPRESA

180 FOTOS DE GARRINCHA. O QUE ACONTECEU DEPOIS?

INDENIZAR A FAMÍLIA PELO USO DE

Ruy – Em 2006, cansadas de esperar por uma decisão, e já suspeitando de que, mesmo que ganhassem, seus advogados ficariam com o dinheiro, as filhas de Garrincha propuseram encerrar o processo e fazer um acordo à parte com a Companhia

JORNAL DA ABI – FALANDO UM POUCO SOBRE SUA CARREIRA, COMO VOCÊ ESTREOU NO JORNALISMO?

Ruy – Comecei no Correio da Manhã, como repórter, em março de 1967. Tinha acabado de fazer 19 anos. Quem me levou foi o José Lino Grünewald, que era editorialista e articulista do jornal e eu já conhecia há uns dois anos, de freqüentar sua casa. O Diretor de Redação, ou Redator-chefe, como se dizia no Correio, era o Newton Rodrigues. José Lino já tinha lhe falado a meu respeito: “Tem nível.” Era assim que, na época, se descrevia alguém que supostamente sabia escrever. Newton me recebeu na sua salinha atrás do “Petit Trianon” — a sala dos editorialistas, onde os repórteres eram proibidos de entrar — e disse: “Você começa amanhã na Geral. Vai trabalhar como profissional e receber como amador.” Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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RUY CASTRO O BIÓGRAFO DA VIDA BRASILEIRA

JORNAL DA ABI – E VOCÊ ACEITOU?

Ruy – Duas coisas me fizeram pensar. Eu não ia receber nada, o que atrapalhava os planos de sair da casa dos meus pais para morar no Solar da Fossa. E não ia para o caderno cultural. Isto foi uma ducha gelada: saber que ia cobrir cachorro atropelado, buraco de rua e filhote de girafa, em vez de bossa nova, cinema, festivais da canção, debates no Teatro Casa Grande, gravação de depoimentos no Museu da Imagem e do Som... Mas trabalhar no Correio da Manhã valia qualquer coisa. Fiquei decepcionado, mas engoli. E a passagem pela Geral foi fundamental para mim. Cobri hospital, delegacia e ministério, sem falar nas passeatas estudantis, em que levei borrachada tanto como jornalista quanto como estudante e até fui até preso uma vez. Trinta anos depois, agradeci ao Newton Rodrigues por ter me dado esse privilégio. E, na verdade, acabei cobrindo a área cultural do mesmo jeito.

podia haver melhor? Naquele tempo, as redações ainda eram abertas, entrava qualquer pessoa que passasse na rua e resolvesse subir. Quem ia quase todo dia ao jornal era o compositor e sambista Ismael Silva, que morava ali perto, na Gomes Freire, na Lapa. JORNAL DA ABI – VOCÊ MAR DELE?

Ruy – O pessoal mais velho já não tinha muita paciência com o Ismael, mas eu sim. Descíamos juntos para conversar e beber no botequim em frente: ele, cachaça; eu, no começo, Crush. Aí vi que não pegava bem e mu-

ANTIGO?

JORNAL DA ABI – QUAIS SÃO AS LEMBRANCARREIRA?

Ruy – Tive a sorte de trabalhar com repórteres de verdade, uma turma capaz de fazer qualquer negócio pela notícia. Não eram intelectuais, eram jornalistas. Conheci também os velhos fotógrafos do Correio, como o Luís Bueno, que foi o primeiro fotojornalista a ser registrado na imprensa brasileira. O primeiro Secretário de Redação que tive na vida foi Aluísio Branco,

ceber nada e sem ninguém dar uma explicação para o meu caso. Sendo que tudo que eu escrevia saía na íntegra, os copys não mudavam uma vírgula. Só depois descobri que não podia ser efetivado porque não tinha o serviço militar. Até que o Fuad Atala, que era Chefe de Reportagem da Manchete durante o dia e do Correio à noite – a maioria dos jornalistas tinha dois empregos –, me convidou para ir para a revista ganhando 900 mil cruzeiros por mês. JORNAL DA ABI – O CONVITE FOI ACEITO DE IMEDIATO?

d e i para Brahma Chopp. Outro que ia muito lá era o Nelson Cavaquinho. Mas a lembrança mais marcante daqueles primeiros meses foi a Kim Novak, que tinha vindo ao Rio para o Festival da Canção e eu entrevistara longamente no Galeão. No dia seguinte, na abertura do evento no recém-inaugurado Canecão, ela passou pela minha mesa, lindíssima, e disse “hello, Ruy”, para espanto meu e das moças que estavam comigo. Infelizmente, ficou nisso. [risos]

“Para mim, o Correio era tudo. Pode parecer incrível, mas nunca me vi sendo qualquer outra coisa como adulto, que não jornalista – e do Correio da Manhã.”

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JORNAL DA ABI – COMO ASSIM?

Ruy Castro sempre quis ser jornalista, desde criança, quando ganhou de aniversário uma máquina de escrever. Entre seus livros infantis preferidos, Tarzan, da Coleção Terramarear.

JORNAL DA ABI – TRABALHAR

ÇAS MAIS MARCANTES DOS PRIMEIROS ANOS DE

JORNAL DA ABI – POR QUÊ?

Ruy – Porque era o que estava mais por dentro do que acontecia na abertura promovida pelo Geisel. E, em 1984, eu era repórter especial da Folha de S.Paulo, então o principal veículo da campanha pelas diretas. Em compensação, em abril de 1974, eu estava na cidade certa, Lisboa, quando houve a Revolução dos Cravos, só que no veículo errado.

TEVE A CHANCE DE SE APROXI-

NA IMPRENSA ERA UM PROJETO

Ruy – Desde que aprendi a ler – o que ocorreu aos quatro anos, vendo os jornais no colo da minha mãe. Meu pai assinava o Correio da Manhã, seguindo a tradição do meu avô, assinante praticamente desde a fundação do jornal, em 1901. Cresci ouvindo falar de seu proprietário, Edmundo Bittencourt, de como o Presidente da República Arthur Bernardes fechou o Correio por dois anos em 1924, e de como o jornal provocara a queda do Getúlio, em 45, com uma entrevista feita por Carlos Lacerda com o José Américo de Almeida. Ou seja, para mim, o Correio era tudo. Pode parecer incrível, mas nunca me vi sendo qualquer outra coisa como adulto, que não jornalista – e do Correio da Manhã. No máximo, devo ter alimentado alguma ilusão de me tornar meia-esquerda do Flamengo.

JB era então, graças ao Elio Gaspari, o jornal mais fascinante para se trabalhar.

JORNAL DA ABI – QUE FASE ATRAVESSAVA O JORNALISMO BRASILEIRO QUANDO VOCÊ INICIOU A CARREIRA?

Ruy – Talvez fosse o último período do amadorismo. Eu, por exemplo, trabalhei oito meses no Correio sem ser efetivado, sem re-

Ruy – Por mais que eu amasse o Correio, queria ir morar sozinho. Então, aceitei e, no dia seguinte, me mudei para o Solar da Fossa, passei a andar de táxi e troquei a Spaghettilândia pelo La Mole. A Manchete ficava ainda na Frei Caneca e só tinha um telefone para todos os repórteres e redatores. O Diretor era o Justino Martins, com quem aprendi horrores. JORNAL DA ABI – ONDE MAIS VOCÊ TRABALHOU?

Ruy – Tive a sorte de passar por grandes veículos e em épocas importantes para eles. Em 68, por exemplo, estava novamente no Correio da Manhã, trabalhando com o Paulo Francis, e o jornal estava mandando ver contra a ditadura. Não podíamos adivinhar que na noite de 13 de dezembro daquele ano o que restava de liberdade ia acabar e o Correio seria uma de suas maiores vítimas. Em 76, estava no Jornal do Brasil, criando a Revista de Domingo, da qual fui o primeiro editor. O

Ruy – Eu era editor-executivo da Seleções do Reader’s Digest e veio uma ordem de Nova York para ignorarmos tudo que estivesse acontecendo em Portugal. E eu tinha fontes ótimas, inclusive dentro do novo Governo. Resultado: comecei a mandar matérias para a Manchete da “Sucursal de Lisboa”, que não existia. Fui o primeiro na imprensa brasileira a chamar a atenção para o folclórico Otelo Saraiva de Carvalho, que só depois sairia da sombra e se revelaria o principal nome da Revolução. JORNAL DA ABI – COMO FOI SUA CONVIVÊNPAULO FRANCIS?

CIA COM

Ruy – A Diners, dirigida por ele, foi outro veículo fascinante em que trabalhei, em 1968. A revista era uma espécie de sucessora da falecida Senhor. Pagava muito bem e o Francis nos deixava escrever as maiores barbaridades. À tarde, todo mundo ia visitá-lo na redação, que ficava na esquina de Ouvidor com Rio Branco: a velha esquerda – entre eles Octávio Malta e Franklin de Oliveira –, a nova esquerda – Fernando Gasparian, por exemplo –, os porras-loucas – Glauber Rocha, Carlinhos Oliveira – e os cardeais – como Millôr Fernandes, Paulinho Mendes Campos e Armando Nogueira. JORNAL DA ABI – SÓ TINHA CRAQUE NESSE TIME...

Ruy – E, no meio deles, os três garotos que efetivamente escreviam a revista: Flávio Macedo Soares e Alfredo Grieco, que eram um pouco mais velhos, e eu, com 20 anos. Todos os jornalistas do Rio, naquele ano, queriam ser colaboradores da Diners. Quando veio o AI-5. Francis foi preso e o Diners Club preferiu acabar com a revista. Em 1969, surgiu O Pasquim, com o qual comecei a colaborar a partir do número 7 ou 8. JORNAL DA ABI — VOCÊ SE LEMBRA DO SEU PRIMEIRO TEXTO PUBLICADO?

Ruy – Tive uma passagem pela imprensa de Caratinga, Minas Gerais,


onde nasci e passei parte da adolescência. Escrevia sobre futebol, cinema e assuntos gerais. Mas o primeiro artigo assinado para valer foi no Correio, no dia 4 de maio de 1967, sobre os 30 anos da morte de Noel Rosa, que foi capa do Segundo Caderno.

não ia lá, mandava a coluna pelo contínuo. Convivi com Nélson no apartamento do José Lino Grünewald, em Copacabana, e nos almoços que os amigos davam para ele no Bigode do Meu Tio, restaurante de seu filho Joffre, na Tijuca. Eu diria que o Nélson me influenciou muito, mas de modo geral.

JORNAL DA ABI – O QUE O LEVOU DAS REPORTAGENS PARA OS LIVROS? E FALANDO NISSO, VOCÊ

JORNAL DA ABI – ALGUM OUTRO O MARCOU?

NÃO PENSA EM FAZER LIVROS-REPORTAGEM?

Ruy – Os cronistas mais marcantes para mim, além dos inevitáveis Rubem [Braga], Fernando [Sabino] e Paulinho [Mendes Campos], foram o (Carlos Heitor) Cony e o Millôr (Fernandes). Mas, assim como o Nélson, acho que sou mais articulista do que cronista. Cronista de verdade é a Heloisa Seixas, minha mulher.

Ruy – Não faço livros-reportagem. O jornalismo é fundamental para a apuração das informações, mas, a partir daí, pretendo que o tratamento seja o mais literário possível. Livro-reportagem, para mim, tem um pouco de oportunismo: o Tancredo morre, o Collor sofre impeachment ou o Lula é eleito e, daí a uma semana, o sujeito publica uma “cozinha” do que saiu na imprensa e chama de livro-reportagem. Como comparar isso com uma biografia ou uma reconstituição histórica que levou dois, três ou cinco anos para ser feita? Quanto aos motivos que me fizeram sair do dia-a-dia das redações, acho que o principal foi o cansaço. JORNAL DA ABI – QUANDO FOI ISSO?

Ruy – Em 1986, quando estava na Veja, em São Paulo, já tinha 19 anos de estiva e precisava de um tempo. Fui para casa decidido a viver de frila e esperei o telefone tocar. Só comecei a trabalhar de verdade com livros em 1988, mesmo assim por acaso. Ao contrário de muitos colegas, nunca achei que ser jornalista fosse pobre e que ser escritor fosse nobre. Ao contrário, sempre adorei ser jornalista; os livros aconteceram sem que eu pedisse ou esperasse por isso.

JORNAL DA ABI – O FUTEBOL FOI APENAS PANO DE FUNDO?

Ruy – Tinha vontade de contar como era a vida dos jogadores de futebol no Brasil nos anos 50 e 60 – antes e depois dos jogos, no vestiário, na concentração, em casa e, se possível, dentro da cabeça deles. Achei incrível, por exemplo, descobrir que o Nilton Santos só foi ter o seu primeiro carro com mais de 30 anos e já bicampeão do mundo. Hoje, qualquer foragido dos juniores tem carro importado. Enfim, acho

GIA BRASILEIRA?

Com 19 anos, Ruy cobriu a posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras.

que Estrela Solitária é também uma crônica de costumes do futebol e até imprensa esportiva. Mas, tecnicamente falando, tem muito pouco futebol, ou seja, são raras as descrições de gols e jogadas. Isso pode explicar, em parte, o sucesso dele entre o público feminino. JORNAL DA ABI – O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO FOI O MESMO EM TODAS AS BIOGRAFIAS?

Ruy – Pela quantidade de personagens e instituições de Ipanema fazendo coisas ao mesmo tempo ou durante um longo período, Ela é Carioca não poderia ser uma história contínua; só poderia existir em verbetes, como numa enciclopédia. Já o Carmen eu que-

ria que fosse também um panorama da imigração portuguesa no começo do século XX, dos costumes do Rio nos anos 20 e 30 e de Nova York e Hollywood nos anos 40 e 50. JORNAL DA ABI – O ANJO PORNOGRÁFICO FOI SEU PRIMEIRO TÍTULO NO

Ruy – Como dramaturgo, nunca houve dúvida: é o maior, sempre foi. Mas acho Nélson subvalorizado como contista. Por dezenas de contos de A Vida como Ela é, considero-o um dos maiores da língua; e, como romancista, é só ler O Casamento e Asfalto Selvagem. Mas, voltando ao Anjo Pornográfico, uma das coisas que mais me empolgaram no trabalho foi a possibilidade de descrever o funcionamento das redações dos jornais cariocas nos anos 20. Para isso, tive informantes maravilhosos: o Nássara, o Barbosa Lima Sobrinho, o Evandro Lins e Silva... Todos, aliás, conheceram bem o Mário Rodrigues, pai do Nelson.

“Sempre adorei ser jornalista; os livros aconteceram sem que eu pedisse ou esperasse por isso.”

SEGMENTO BIOGRÁFICO . VOCÊ CONVIVEU COM NÉLSON R ODRIGUES NO COR REIO DA MANHÃ? ELE TEM ALGO A VER COM SUA FORMAÇÃO DE CRONISTA?

Ruy – Infelizmente, não, porque ele

JORNAL DA ABI – CARMEN: UMA BIOGRAFIA É SEMPRE CITADO COMO OBRA DE REFERÊNCIA.

Ruy – Ela já tinha sido alvo de várias CECILIO CALDEIRA/PRENSA 3

Jornal da ABI – E como teve a idéia de escrever biografias? Ruy – Em todos os casos, foi o assunto que determinou o formato. Chega de Saudade, por exemplo, embora tenha João Gilberto como personagem central, é mais a reconstituição histórica de uma época e de um grupo de pessoas. Já O Anjo Pornográfico nasceu direto como biografia, ou seja, para contar a vida de Nélson Rodrigues. Estrela Solitária, quando piscou na minha cabeça, era um livro sobre alcoolismo, assunto que me diz particularmente respeito, porque sou alcoólatra, embora não beba há 20 anos. Mas, em seguida, vi que precisava de um fio condutor, e o nome do Garrincha surgiu no mesmo instante, daí a biografia.

JORNAL DA ABI – QUAL É A REPRESENTATIVIDADE DE NÉLSON RODRIGUES NA DRAMATUR-

O biógrafo e o “anjo pornográfico” Nélson Rodrigues, com o qual Ruy nunca trabalhara numa redação de jornal. Eles conviveram em encontros ocosionais, durante a década de 70, com amigos comuns.

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NESTE MOSAICO, ALGUMAS PAIXÕES DE RUY CASTRO Em todas as viagens, Ruy nunca deixa de ler o jornal local. Na foto tirada na Itália no ano 2000, ele descobre que, às vésperas do Século 21, ainda existe um jornal chamado Il Secolo XIX (coincidentemente, publicação onde trabalhou o pai do jornalista Mino Carta).Cercado por livros e discos, em seu acervo há preciosidades como este LP de Doris Day, uma de suas musas. O cinema, outra de suas paixões que surgiu também na infância, permanece até hoje. Na foto tirada em Paris, ele aparece de bicicleta na frente de cartazes de alguns de seus filmes favoritos. E finalmente, feliz com a manhchete da Ultima Hora: Flamengo era o Campeão Brasileiro de 1980.

biografias e nenhuma delas me deixara satisfeito. Concentravam-se demais na parte da sua vida nos EUA e deixavam de lado sua também fabulosa carreira no Brasil. E eu sei porque fizeram isso: uma coisa é você contar a carreira da Carmen em Hollywood — há uma montanha de material, os estúdios de cinema guardaram tudo — e outra, bem diferente, é você reconstituir a vida dela na Lapa, dos 6 aos 16 anos, entre 1915 e 1925. Isso é que é difícil! Talvez por isso nenhum livro antes do meu dera importância a esse período. JORNAL DA ABI – VOCÊ É MINEIRO, MAS RIO.

APAIXONADO PELO

Ruy – Não nasci no Rio – aliás, mais precisamente, na Lapa – por uma questão de meses. Meu pai, que era mineiro, veio para o Rio em 1929, com 19 40

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anos, e foi direto para a Lapa, onde fez de tudo. Há fotos dele no Carnaval, na praia etc., sempre cercado de garotas. Em 1940, ele deu um pulo a Minas Gerais e voltou casado com minha mãe. Eles abriram uma pensão diurna, que servia almoço para a vizinhança, no Largo da Lapa, em frente à Igreja Nossa Senhora do Carmo da Lapa, bem ao lado do que é hoje o restaurante Ernesto – e que, na época, era um cabaré. Em meados de 1947, os negócios não iam muito bem e um parente do meu pai o convidou a assumir uma loja em Caratinga, cidade mineira que ele não conhecia. Ele topou e em fevereiro de 1948 eu nasci lá, onde não tinha ninguém além do meu pai e da minha mãe. Já no Rio, devia ter uns 50 tias e primos espalhados pelo Flamengo, Lapa, Copacabana, Cascadura e Rocha Miranda.

JORNAL DA ABI – COMO FOI A VOLTA DA FAMÍLIA ?

Ruy – Meu pai ganhou o grande prêmio da Loteria Federal e recebeu uma bolada de dinheiro. Comprou a loja,

memórias de infância se dividem entre Minas e o Rio do meu pai, em ruas como a Barão do Flamengo – onde ficávamos no apartamento de uma sobrinha dele, no lindo Edifício Minister –, o Catete, a Cinelândia, a Praça Tiradentes. Até que em 1965 voltamos de vez, mas aí já por minha causa.

“O samba é tudo. Sou grande ouvinte do samba produzido nos anos 30 e 40, sem o qual não teríamos a bossa nova.” construiu prédios em Caratinga e ficamos por lá. Mas o Rio continuou sendo a referência. Com a facilidade de viajar – havia avião dia sim, dia não, para o Rio –, vínhamos várias vezes por ano, para passar longas temporadas. Minhas

JORNAL DA ABI – POR ISSO O RIO É O CENÁRIO DA MAIORIA DE SUAS OBRAS?

Ruy – Como eu disse, jamais conheci direito outro cenário. Peguei os bondes todos, o Tabuleiro da Baiana e a Praia do Flamengo ainda com a amurada, antes do Aterro. Cansei de ir com meu pai à Leiteria Bol, na Mem de Sá. Fui ao Maracanã pela primeira vez aos 10 anos, em 1958, para assistir a um Flamengo x Botafogo. Naquele mesmo ano, pedi ao meu pai que me


FOTOS DO ACERVO PESSOAL DE RUY CASTRO

levasse à Rádio Continental, porque queria conhecer o Waldir Amaral. Nós fomos, mas ele tinha saído. JORNAL DA ABI – QUAL É O CERNE DA SUA RELAÇÃO COM A CIDADE?

Ruy – Já morei fora um bom tempo: três anos em Lisboa e 16 em São Paulo. E nunca passei um dia sem ler os jornais do Rio, acredita? Minha relação com a cidade é visceral: faço tanto parte dela quanto ela de mim. JORNAL DA ABI – E VOCÊ ACHA QUE ELA AINDA FAZ JUS AO TÍTULO DE CIDADE MARAVILHOSA, AQUELA DESCRITA EM SEU “ROTEIRO LÍTERO-MUSICAL”?

Ruy – Claro. Os roteiros de Rio Bossa Nova foram elaborados em 2006 e estão todos aí. Neles, cito dezenas de lugares ótimos. Já pensou no privilégio de comer um delicioso brunch no jardim do Museu do Açude, no Alto da Boa Vista, no meio daquelas obras de arte do Castro Maya, ouvindo ao vivo o Quarteto em Cy? Ou escutar um quinteto de Bossa Nova num quiosque da Lagoa, de mãos dadas com a namorada e com as estrelas sobre a sua cabeça? Onde mais tem isso no mundo? As pessoas que mais resmungam que “o Rio acabou” são as que menos saem hoje de casa, porque já estão muito velhas e pararam de beber, de fumar e de outras coisas. É muita pretensão dizer que o Rio bom era o do “nosso tempo”, não? JORNAL DA ABI – QUATRO DE SEUS LIVROS ABORDAM A BOSSA NOVA. AINDA HÁ HISTÓRIAS SOBRE O TEMA QUE NÃO FORAM CONTADAS?

Ruy – Todo dia descubro alguma coisa diferente. É um universo muito rico. JORNAL DA ABI – VOCÊ CONSIDERA A BOSNOVA O MAIOR FENÔMENO MUSICAL BRASILEIRO? SA

Ruy – Sim. É favor não confundir com o tropicalismo, que, segundo o próprio Caetano (Veloso), foi um fenômeno jornalístico.

Ao lado de sua esposa, Heloisa Seixas, o jornalista cuida de sua coleção de felinos. Abaixo, um auto-retrato onde se destaca seu farto sorriso.

JORNAL DA ABI – O JAZZ TAMBÉM TEM MERECIDO SUA ATENÇÃO...

Ruy – Porque os brasileiros da minha geração não tinham como não ser minimamente atingidos por ele. Já nascemos ouvindo alguma coisa que, no fundo, é jazz. E não adianta fechar as janelas, calafetar as frestas, desligar os aparelhos, enfiar algodão nos ouvidos e mergulhar na banheira: ele vai penetrar de qualquer jeito. Não me refiro exatamente à música de Nova Orleans, ao swing ou ao bebop, mas ao jazz como um substrato rítmico que marcou a melhor música popular dos EUA. O norte-americano médio não sabe o que é jazz, mas o sotaque jazzístico permeou toda a música popular feita em seu país na primeira metade do século XX. Influenciou também a música brasileira, e isso desde o Pixinguinha. Por sorte, o samba é muito forte: absorve qualquer influência e continua a ser ele mesmo.

JORNAL DA ABI – E O SAMBA?

Ruy – O samba é tudo. Sou grande ouvinte do samba produzido nos anos 30 e 40, sem o qual não teríamos a Bossa Nova. Aliás, o que eu gosto mesmo de ouvir é Carmen Miranda, Chico Alves, Mário Reis, Almirante, Sílvio Caldas, Luiz Barbosa, Ciro Monteiro, Dircinha Batista, Araci de Almeida e grupos vocais como os Anjos do Inferno, Quatro Ases e Um Coringa e Os Cariocas. Cresci ouvindo esse repertório, cantado por meu pai, que se acompanhava ao violão. Já minha mãe gostava de Dick Farney, Lúcio Alves, Bing Crosby, Sinatra, Doris Day, big bands, boleros, tangos, valsas de Strauss e canções francesas. Ou seja, tive a sorte de conviver desde cedo com essa “tempestade de ritmos”.

JORNAL DA ABI – A MPB TAMBÉM É UM SÍMBOLO DA CULTURA NACIONAL?

Ruy – Sem dúvida. Pode-se contar muito melhor a história do Brasil por intermédio de sua música popular do que por seu cinema, teatro ou a própria literatura. JORNAL DA ABI – O ALDIR BLANC RECLAMA E DIZ QUE NÃO CONSEGUE VIVER DE DIREITO AUTORAL, APESAR DE PRODUZIR MUITO.

É MAIS

FÁCIL VIVER DE LITERATURA DO QUE DA MÚSICA NO

BRASIL?

Ruy – Não sei. Não vivo de literatura. Vivo de escrever. JORNAL DA ABI – SEU LIVRO ERA NO TEMREI: UM ROMANCE DA CHEGADA DA CORTE ESTÁ SENDO ADAPTADO PARA O TEATRO, PO DO

COM MÚSICAS DO ALDIR E DO CARLOS LYRA. COMO ESTÁ SENDO ESSE TRABALHO?

Ruy – Não estou interferindo, porque a presença do autor só atrapalha. O romance tem de sofrer alterações em nome do espetáculo e acho isso normal, mas não quero estar por perto. Só sei que o libreto – produzido por Heloísa Seixas – está ficando sensacional e que o Carlinhos e o Aldir já têm várias canções prontas. A estréia está prevista para meados de 2009, talvez no Carlos Gomes, na Praça Tiradentes. JORNAL DA ABI – FICÇÃO OU NÃO-FICÇÃO? EM QUAL VOCÊ SE SENTE MAIS À VONTADE PARA ESCREVER?

Ruy – Na não-ficção, porque estou mais habituado. Mas quando me aventuro pela ficção – o que acontece quase que de dez em dez anos –, acho apaixonante a liberdade de inventar situações, criar diálogos e penetrar na mente dos personagens. Ao biógrafo, isso é rigorosamente proibido, obviamente. A graça da biografia está em descobrir fatos que estavam enterrados há décadas, no fundo de uma gaveta ou da memória de alguém. JORNAL DA ABI – QUE LIVROS NÃO PODEM FALTAR EM UMA BIBLIOTECA?

Ruy – Os que dêem grande prazer de ler.

HISTÓRIAS ICONOGRÁFICAS "Uma imagem vale mais do que mil palavras". É com esse conhecido ditado que surgiu o projeto Álbum de Retratos, da Editora Memória Visual. A coleção é formada por doze livros divididos em quatro séries de diferentes temas, que traduzem e homenageiam, numa biografia fotográfica, doze personagens da cultura brasileira por meio do acervo pessoal de fotos de cada um. As imagens estampam o talento de infância, a cidade, o encontro com o trabalho, a trajetória e a história de vida de personalidades como Zezé Motta, Bette Mendes, Ferreira Gullar, Jards Macalé, Cacá Diegues, Lan, Ruy Castro e Villas-Bôas Corrêa. A partir das fotos, cada um deu seu testemunho pessoal a cada película, conduzindo a história e formando as fotobiografias, que levam a intimidade de cada um deles aos leitores. No livro de Villas-Bôas Corrêa, o veterano jornalista fala sobre a trajetória política do Brasil com inusitada sensibilidade. Mas são seus dois filhos, Marcelo e Marcos Sá Corrêa, os

responsáveis por abrir a vida do pai ao mostrar sua paixão por cavalos, sua criação numa fazenda de árvores frutíferas e sua responsabilidade de ordenhar as vacas. Já o volume sobre Ruy Castro foi produzido a partir da garimpagem feita pela mulher Heloisa Seixas no baú de recordações do jornalista. O resultado pode ser visto nos detalhes de sua casa, de suas viagens,na coleção de discos de todos os formatos, de filmes e de livros – muitos – de várias épocas. As fotos que ilustram esta entrevista pertencem ao acervo pessoal de Ruy Castro e a maioria foi publicada no livro que conta sua história iconográfica.

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UCHA

VILLAS-BÔAS CORRÊA SEIS DÉCADAS NOS BASTIDORES DO PODER O decano do jornalismo político brasileiro fala sobre seu trabalho, analisa a cobertura política feita atualmente e conta histórias dos bastidores da vida política colhidas em mais de meio século de imprensa.

POR CLÁUDIA SOUZA

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ro Central do Brasil e a pressão sofrida para envolver propina no negócio. A conversa ainda envolvia o irmão do Vice-Presidente da República Nereu Ramos e o Ministro da Viação e Obras Públicas Clóvis Pestana. Percebendo o que acontecia, Villas-Bôas Corrêa se apresentou em seguida ao homem. A reportagem ganhou as primeiras páginas do jornal por vários dias, repercutiu com estrondo em todo o País e garantiu a entrada do jornalista na reportagem política em sua fase de ouro. Desde então não saiu mais de lá. “Sou o último sobrevivente da geração que cunhou o modelo de reportagem política que ainda hoje se pratica”, diz com propriedade Villas-Bôas Corrêa, o mais antigo analista

político em atividade no Brasil. Quando fala assim, ele não exagera. Repórter por excelência – Villas já trocou cargos de chefia e de direção para estar no “olho do furacão” –, o veterano jornalista sempre manteve o espírito crítico e observador, transformando-se em modelo de análise imparcial aliada ao ineditismo e credibilidade. Casado com Regina Maria de Sá Corrêa, é pai de Marcos Sá Corrêa, também jornalista, e Marcelo Sá Corrêa, produtor musical. Em entrevista ao Jornal da ABI, ele fala um pouco sobre esse trabalho, analisa a cobertura política feita atualmente e conta histórias dos bastidores da vida política colhidas em mais de meio século de imprensa. DIVULGAÇÃO - EDITORA OBJETIVA

A

os 85 anos – comemorados no último dia 2 de dezembro – o jornalista carioca Luiz Antonio Villas-Bôas Corrêa, o mais importante cronista da vida política brasileira, começou a fazer a cobertura dos bastidores do poder quase sem querer. Em 1948, quando ainda trabalhava para A Notícia, ele foi designado para ir ao bairro da Glória e pegar o “boneco” de um suicida. Como não achou o tal “boneco”, entrou em uma cabine telefônica de um pequeno hotel para avisar seu chefe na Redação. Naquele tempo, as ligações eram tão ruins que a pessoa precisava quase gritar para se fazer entender. E, como fazia muito calor no dia, a balburdia era total com as portas das cabines abertas. Apesar disso, foi assim que Villas-Bôas Corrêa acabou escutando a conversa de um vizinho que relatava a seu sócio as dificuldades enfrentadas para fechar uma venda de dormentes para a Estrada de Fer-


MARCELO CARNAVAL/CPDOC-JB

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VILLAS-BÔAS CORRÊA SEIS DÉCADAS NOS BASTIDORES DO PODER REPRODUÇÃO

JORNAL DA ABI – COMO FOI O INÍCIO DE SUA CARREIRA NA IMPRENSA?

Villas-Bôas Corrêa – Eu me formei em 1947 pela Faculdade Nacional de Direito. Era funcionário público do Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps) e estava casado desde o 4º ano da faculdade. Meu segundo filho nasceu de cesariana e eu não tinha como pagar os 13 contos de réis das despesas com o hospital. Na verdade, só tinha cinco ou seis contos de réis para o parto normal. Com o salário de funcionário público, jamais conseguiria saldar a dívida. Então, tive a idéia de tentar um emprego na imprensa junto ao meu sogro, o jornalista Bittencourt de Sá, na época aposentado. Ele me orientou a procurar o colega Silva Ramos, homem forte do jornal A Notícia, de propriedade de Cândido de Campos. A pequena Redação ficava na Avenida Rio Branco, entre as Ruas da Carioca e Sete de Setembro, mas o jornal era composto e impresso nas oficinas do Diário de Notícias, próximo à Praça Tiradentes. “Bittencourt de Sá está dizendo aqui que você é Bacharel em Direito. Mas isso não quer dizer que você seja totalmente analfabeto. Tira o paletó e começa”, disse Silva Ramos ao ler o bilhete de apresentação. Esta foi a minha formação acadêmica em Jornalismo. JORNAL DA ABI – QUAIS ERAM SUAS ATIVIDADES NO JORNAL?

Villas-Bôas – Comecei na imprensa em 1948, escrevendo pequenas notas. Ao lado de José Rodrigues, nosso único fotógrafo, cobria diversas pautas por dia, inclusive policiais. Os jornais eram divididos em matutinos e vespertinos. No primeiro grupo, entre outros, estavam o Correio da Manhã, maior jornal da época, o Diário Carioca, onde surgiram inovações como o copidesque e o lead, e O Jornal. Entre os vespertinos, figuravam O Globo e A Notícia. JORNAL DA ABI – QUAL FOI A SUA PRIMEIRA MATÉRIA IMPORTANTE?

Villas-Bôas – Eu tinha ido ao bairro da Glória para pegar o “boneco” de um suicida. Entrei num pequeno hotel procurando uma cabine telefônica para avisar ao pessoal da Redação que não existia o tal “boneco”. Como as ligações telefônicas eram ruins, as pessoas gritavam para serem ouvidas. Além disso, por causa do forte calor, as portas das cabines telefônicas ficavam abertas. Foi neste cenário que acabei escutando a conversa de um homem que narrava a um provável sócio do Paraná as dificuldades que vinha enfrentando para fechar a venda de dormentes para a Estrada de Ferro Central do Brasil e as pressões que sofria para aceitar propina. O negócio, dizia ele, envolvia o tabelião Hugo Ramos – irmão do então Vice-Presidente da República Nereu Ramos – e o Ministro da Viação e Obras Públicas, Clóvis Pestana. O homem avisou ainda que no dia seguinte denunciaria o caso ao General Canrobert Pereira da Costa, então Minis44

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política, PSD, UDN... Isto é coisa pra grã-fino. Vê se inventa aí uma coisa mais popular”, sugeriu. JORNAL DA ABI – FOI A SENHA PARA OS COMANDOS PARLAMENTARES?

Villas-Bôas – Sim. Na verdade, segui a idéia do Heráclito Sales, que, ao lado do Deputado Café Filho, visitava locais públicos sem aviso prévio. Adaptei para um perfil mais popular e criei os Comandos Parlamentares. JORNAL DA ABI – COMO O SENHOR PAUTAVA AS MATÉRIAS?

Villas com o Deputado Café Filho, aguerrido participante dos Comandos Parlamentares.

tro da Guerra e candidato à Presidência. Encerrada a ligação, apresentei-me ao sujeito, que se chamava Ivo Borcioni. Combinei que o acompanharia no encontro com o General na qualidade de advogado dele. Foi a única vez em que o diploma de Direito me serviu para alguma coisa. (risos) JORNAL DA ABI – HOUVE GRANDE REPERCUSSÃO DA MATÉRIA QUE ESCREVEU DEPOIS DISSO?

Villas-Bôas – Após tomar conhecimento do fato, o Canrobert nos garantiu que encaminharia a denúncia ao Presidente da República, General Eurico Gaspar Dutra. Encerrado o encontro, parti para a Redação comboiando o Ivo Borcioni. “Escreve!”, aconselhou-me Silva Ramos ao saber os detalhes da história. A reportagem ganhou as manchetes e páginas principais da Notícia ao longo de vários dias, com estrondosa

vívio. Os jornalistas passavam o dia acompanhando o processo político e os debates. O primeiro escalão dos jornais cobria as subcomissões; o repórter veterano, em geral, acompanhava as comissões; e o segundo ou terceiro escalão cobria o plenário, onde acontecia o real jogo do poder. Os grandes jornais, em sua maioria, se subdividiam em udenistas e antigovernistas. O PSD representava o partido do Governo, com estrutura fincada nas bases rurais e no legado da ditadura. Nereu Ramos, Gustavo Capanema e Israel Pinheiro eram os grandes oradores. A UDN, partido libertário, dos bacharéis, dos lenços brancos, reunia em seus quadros figuras como Prado Kelly, Carlos Lacerda, Afonso Arinos. Os repórteres buscavam isenção e imparcialidade diante desta divisão, respeitando a orientação do jornal. Um modelo

Villas-Bôas – Selecionava o assunto e convidava três parlamentares, em geral dois deputados e um senador. Os políticos estavam sempre à disposição, até porque aproveitavam para cavar votos também. Fui onde quis sem nunca ser barrado; percorri favelas, penitenciárias, delegacias, sempre denunciando os problemas da população. Aquiles Camacho, um grande fotógrafo, foi contratado para aquele trabalho. As visitas aconteciam às quartas-feiras e a matéria saía no domingo. Em pouco tempo, os Comandos se tornaram um enorme sucesso. Passei a receber inúmeras denúncias e ganhei muita credibilidade dentro do jornal. Vários casos resultaram em CPIs e demissões. JORNAL DA ABI – QUAIS FORAM OS EPISÓDIOS DE MAIOR REPERCUSSÃO?

Villas-Bôas – Certa vez, recebi uma denúncia de maus-tratos e violência em um abrigo para moças no Engenho de Dentro, que era vinculado ao Serviço de Assistência a Menores (Sam). Convidei o então Ministro da Justiça Tancredo Neves para me acompanhar ao local com dois deputados. O Ministro levou o Chefe da Casa Militar e dois policiais. Encontramos um cenário dantesco. Moças de todas as idades, algumas grávidas, se amontoavam em um ambiente insalubre. Tancredo, horrorizado, exigiu a presença da diretora do abrigo, que foi trazida de casa. Aparentemente, não havia sinais de violência, até que uma das moças se aproximou e, em tom de voz baixo, pediu que eu olhasse embaixo de um colchão. Encontramos vários porretes, alguns com marcas de sangue e cabelos grudados. O fotógrafo fez as imagens e o Tancredo fechou o local na hora. Os Comandos Parlamentares aconteceram em um momento em que existiam alguns códigos para se entrar em favelas, mas tudo era resolvido com tranqüilidade. Os moradores nos recebiam, comentavam os casos, convidavam para almoçar, traziam lanche. Jamais tivemos receio de sofrer qualquer tipo de agressão. Naquela época, vale lembrar, não havia ponto de drogas, só jogo do bicho.

“Eu nunca declarei voto, nem em casa. Nunca assinei manifesto; nunca entrei em partido; nunca declarei apoio a ninguém — requisitos fundamentais para a minha credibilidade como analista.” repercussão em todo o País. Com apenas seis meses de Redação, passei direto para a reportagem política. JORNAL DA ABI – QUAL ERA O CENÁRIO POLÍTICO DA ÉPOCA?

Villas-Bôas – Foi a fase de ouro da reportagem política. Um período marcado por grandes debates parlamentares, imediatamente após a Constituinte de 1946. Com o fim da ditadura Vargas e dos anos de violenta censura à imprensa, havia crescente interesse por assuntos políticos e vendia-se muito jornal com este tema. JORNAL DA ABI – QUAL ERA A SUA ROTINA DE TRABALHO?

Villas-Bôas – Durante 12 anos, meu local de trabalho foi a Câmara dos Deputados, no Palácio Tiradentes. Como não havia gabinetes privativos, à exceção da Presidência e de algumas lideranças, o ambiente facilitava o con-

de reportagem política foi se impondo a partir da nossa luta por um espaço neutro e independente. Eu, por exemplo, nunca declarei voto, nem em casa. Nunca assinei manifesto; nunca entrei em partido; nunca declarei apoio a ninguém — requisitos fundamentais para a minha credibilidade como analista. Jornal da ABI – Em que período o senhor começa a trabalhar em O Dia? Villas-Bôas – Eu trabalhei durante 30 anos em A Notícia e me aposentei em 1979. Bem antes disso, no início da década de 50, o Chagas Freitas assumiu A Notícia e decidiu lançar o matutino O Dia, cujo primeiro secretário era o jornalista Santa Cruz Lima, que costumava repetir a máxima: “Jornal é primeira página, o resto não interessa!”. Afeito ao estilo popular, ele fazia questão de ostentar na capa um cadáver, um caso de amor violento e espiritismo: “Ô, Villas, esse negócio de reportagem

JORNAL DA ABI – O AMBIENTE DE TRABALHO TAMBÉM ERA MAIS TRANQÜILO?

Villas-Bôas – Sim. As redações anti-


AJB/LUIZ CARLOS

AJB/MARCELO CARNAVAL

gas eram muito alegres e bem menores. A maioria dos jornais ficava no Centro da cidade, o que nos aproximava. Tínhamos o hábito de sair da Câmara direto para um bar que ficava na Rua São Bento, embaixo do Diário Carioca. Ali a gente se preparava para enfrentar a noite, pois o fechamento dos jornais era muito tarde. JORNAL DA ABI – SUA ATUAÇÃO NO JORNAL BRASIL VEM DE LONGA DATA. COMO FOI A TRAJETÓRIA NESTE VEÍCULO? DO

Villas-Bôas – Trabalhei duas vezes no JB. Saí a primeira vez em 1961, quando houve a mudança da capital para Brasília e fui convidado a trabalhar na sucursal de lá. Como também trabalhava na sucursal carioca do Estadão, fui conversar com eles, que me convenceram a ficar com o seguinte argumento: “Se você pensa que o Rio de Janeiro vai esvaziar, está enganado. Basta ver o exemplo de Washington, nos EUA. O Rio continuará a ser um centro político importante e nós vamos manter a sucursal exatamente como está”. Evidentemente, as equipes que cobriam os trabalhos na Câmara e no Senado tiveram que partir, mas a política no Rio de Janeiro sobreviveu durante um longo tempo, especialmente com o Senadinho, ao contrário da Câmara, que foi desativada. Como o Senado ficava no Centro, perto dos hotéis, os senadores e deputados que fugiam de Brasília batiam o ponto por lá. Era um lugar que a gente freqüentava habitualmente para conversar, pegar informações, fazer matérias e entrevistas. Só retornei ao Jornal do Brasil mais tarde, com o Walter Fontoura na Direção e o Paulo Henrique Amorim na Chefia. Nessa época, vivia desesperado, porque tinha saído do Estadão devido à fusão do jornal e estava desempregado há

DIVULGAÇÃO - EDITORA OBJETIVA

Villas trabalhou no JB, saiu, voltou como Chefe de Reportagem da editoria de Política, mas queria mesmo é ser repórter. Na primeira chance, ele entregou a Chefia.

cinco meses. Até que, certo dia, o Paulo Henrique me convidou para ir à casa dele, no Leblon. A reunião foi à noite e a casa estava cheia. Por volta de uma da manhã, fui me despedir. Ele me acompanhou até o portão e disse: “Olha, Villas, eu te chamei aqui porque o Walter Fontoura me autorizou a convidar você…”, começou. “Aceito!”, respondi. “Mas, peraí, Villas, você não sabe nem o que é!” E eu garanti: “Não faz mal. Se for para ser varredor da Redação, eu aceito.” (risos) JORNAL DA ABI – MAS O SENHOR NÃO VOLA NOVA EXPERIÊNCIA FOI BOA?

TOU COMO REPÓRTER .

Villas-Bôas – O convite era para a Chefia de Reportagem da editoria de Política. Um cargo que eu não queria, mas aceitei na hora. Algum tempo depois, o Paulo comentou comigo que estava procurando um lugar para o Xico Vargas: “Pode dar meu cargo!”, fui logo dizendo. “Mas...”, ele se espantou. “Estou louco para largar a Chefia. Sou jornalista, quero ser repórter, quero escrever!”, expliquei. “Você está falando sério, Villas?” Estou até hoje. (risos) Ao longo de quase 20 anos, o jornal mudou muito, atravessou séria crise, trocou de dono, e eu continuo por lá, escrevendo três artigos por semana. JORNAL DA ABI – O QUE DETERMINOU A CRISE NO JB?

Villas-Bôas – Assim como os outros jornais, o JB acreditou no milagre brasileiro que toda a mídia propagou e saiu investindo loucamente. Um exemplo foi aquela sede suntuosa. Certa vez, um jornalista italiano foi visitar o prédio e, depois de percorrê-lo inteiro, já na portaria, perguntou: “Além do Jornal do Brasil, o que mais vocês editam neste prédio?” E o cicerone respondeu: “Mais

nada”. Ao que o italiano comentou: “Ih... vai quebrar”. JORNAL DA ABI – COMO ERA A SUA ROTINA TV?

DE TRABALHO NA

Villas-Bôas – Em televisão, trabalhei a partir de meados da década de 60, primeiramente no Jornal de vanguarda, que foi de vários canais e saiu do ar com a decretação do AI-5, apesar de ter patrocínio. Atuei também na TV Bandeirantes e depois na Manchete, do início da década de 90 até o fechamento da emissora. Eu analisava a pauta e escolhia um assunto para fazer os comentários. Não comunicava a ninguém o tema e falava sempre de improviso. Esta experiência de liberdade de escolha seria impossível nos dias de hoje.

cobertura de páginas inteiras sobre a movimentação do plenário, das comissões, da política em geral. O modelo precisou ser reformulado e surgiram as matérias especiais, introduzidas por uma nova geração de repórteres em Brasília, como Fernando Pedreira, Carlos Chagas e Evandro Carlos de Andrade. Uma fase inicial de efervescência que durou até os governos de Jânio Quadros e João Goulart, que tinham péssimas relações com a imprensa. O Jânio não conversava com ninguém, mas tinha um bom assessor de imprensa; o Jango só falava com os jornalistas que conhecia. Em seguida, chegaram os militares, em sua maioria inacessíveis. JORNAL DA ABI – COMO O SENHOR ENFRENTOU O PERÍODO DA DITADURA E A CENSURA

JORNAL DA ABI – EM RELAÇÃO AO JORNALISMO POLÍTICO, QUAIS FORAM AS PRINCIPAIS MUDANÇAS QUE O SENHOR VIVENCIOU?

Villas-Bôas – A transferência da capital do País para Brasília foi a principal mudança neste cenário. A inauguração da cidade foi um circo. Quando a imprensa chegou por lá, não havia lugar para morar, nem para trabalhar. Foi difícil transferir os quadros de funcionários. Na prática, representou o fim da

IMPOSTA À IMPRENSA?

Villas-Bôas – Ressalto a minha experiência no jornal O Estado de S. Paulo, no qual ingressei no final da década de 50 e me aposentei em 79, atuando como chefe da editoria de Política e, mais tarde, na Direção da Sucursal Rio. Tenho orgulho de ter trabalhado no período da ditadura no Estadão, que teve corajosa postura de resistência, especialmente ao rechaçar a autocensuJornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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VILLAS-BÔAS CORRÊA SEIS DÉCADAS NOS BASTIDORES DO PODER UCHA

JORNAL DA ABI – HÁ 60 ANOS ACOMPABRASIL E NO MUNDO, DE QUE FORMA O SENHOR ANALISA A RECENTE VITÓRIA DO SENADOR BARACK OBAMA NAS ELEIÇÕES NORTE-AMERICANAS?

ra. Era necessário ter grande habilidade profissional para driblar a repressão e buscar a melhor maneira para informar o leitor. Inicialmente, o Estadão deixou espaços em branco no lugar das matérias censuradas. Como esta prática foi proibida pelos censores, o jornal passou a publicar versos de Os Lusíadas, de Camões, no lugar das matérias censuradas. O Jornal da Tarde, também do Grupo Estado, chegou a estampar desenhos de flores nos espaços censurados, mas os leitores não entenderam o aviso e acharam que se tratava de um recurso estético. Então, o JT passou a publicar Os Lusíadas e receitas de bolos e doces nos espaços vazios.

NHANDO A CENA POLÍTICA NO

Villas-Bôas – Recebi a notícia como todo o mundo. Um fato inacreditável, que justificou eu ter vivido o tanto quanto vivi para presenciar a vitória do primeiro negro à Presidência dos Estados Unidos. Um negro assumido, com sua bela família. A eleição aconteceu de forma natural, pois ele não foi eleito por ser negro ou branco, e sim por ser o Obama. JORNAL DA ABI — O SENHOR ESTÁ COMEMORANDO SEIS DÉCADAS DE CARREIRA NO

JORNAL DA ABI – O SENHOR ATUOU NA

MESMO ANO EM QUE A NÁRIO DE FUNDAÇÃO.

RAS IMPORTANTES.

Villas-Bôas – Tenho uma relação curiosa com a Casa. Lembro da gestão de Herbert Moses, que tinha postura conveniente para enfrentar as agruras do Estado Novo. Ele se dava muito bem com Getúlio, agregava uma boa rede de relacionamentos e esteve sempre atento aos casos de violência imposta a uma imprensa sob a censura do Departamento de Imprensa e Propaganda (Dip). Acompanhei à distância a grande fase de Barbosa Lima Sobrinho, de quem eu gostava muito e que também me queria bem. Sem falar no filho, Fernando Barbosa Lima, com quem trabalhei durante muito tempo. Destaco ainda o Presidente Prudente de Morais, neto, meu companheiro no Estado de S.Paulo e a quem eu adorava. Maurício Azêdo, também meu colega no Estadão, é o Presidente perfeito para esta fase da Associação. Mantém uma linha política extremamente coerente, que reflete as tendências majoritárias da classe e não impede a conversa, o diálogo. Uma administração exemplar.

QUAL ERA A ESTRUTURA

DESTA ATIVIDADE NA ÉPOCA?

Villas-Bôas – Trabalhei nas campanhas de Juscelino Kubitschek, Juarez Távora e Jânio Quadros, entre outras. Minha participação foi mais intensa na campanha do Jânio, porque atendia a um interesse político do jornal. Naquela época não havia marketing, pesquisa eleitoral, televisão. O termômetro da situação era medido pelas articulações políticas e os comícios. Contudo, este tipo de avaliação muitas vezes incorria em erros. JORNAL DA ABI – COMO O SENHOR ANALISA A EVOLUÇÃO DO JORNALISMO BRASILEIRO NAS ÚLTIMAS SEIS DÉCADAS?

Villas-Bôas – Hoje, nós vemos esta coisa curiosa que é fazer jornal sem jornalista. Os chefes das editorias de Política, por exemplo, trabalham com algumas sucursais e agências e meia dúzia de repórteres em Brasília. A cobertura do Rio é irrelevante. Não se

Ao lado de Maurício Azêdo, Presidente da ABI, só elogios à sua administração à frente da Casa: “Reflete as tendências majoritárias da classe e não impede a conversa, o diálogo”.

cobre Assembléia Legislativa, não se cobre Câmara de Vereadores. “Ah, mas aquilo é uma porcaria”, retrucam. Então vai lá e cobre a porcaria, faz uma sessão crítica. Mas não; simplesmente preferem colocar a tampa na lata de lixo sem jogar o lixo fora. Alguns jornais ainda tentam fazer uma cobertura mais ampla, mas acabam caindo no exagero e transformam a matéria em uma coisa monótona com quatro, cinco páginas. O leitor tem outras atividades em sua vida, não pode passar o dia inteiro lendo jornal. JORNAL DA ABI – A TÉ A DÉCADA DE 60 NÃO EXISTIA A EXIGÊNCIA DO DIPLOMA PARA EXERCER A PROFISSÃO DE JORNALISTA .

NA

SUA OPINIÃO, QUAL O PAPEL DOS CURSOS DE

COMUNICAÇÃO?

Numa matéria que ocupou quase duas páginas, publicada no dia 9 de dezembro de 2008, e que teve destaque na primeira página, o Jornal do Brasil prestou uma homenagem aos 60 anos de carreira de seu colunista e mais antigo jornalista político em atividade no País.

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ABI FESTEJA O CENTE-

COBERTURA DE CAMPANHAS POLÍTICAS DE FIGU-

Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

Villas-Bôas – Para quem tem a vocação, o curso certamente ajuda. Mas nenhuma faculdade vai transformar em jornalista um indivíduo que não tem a garra necessária à profissão. É preciso ainda ter intimidade com a língua portuguesa e o computador para enfrentar o mercado de trabalho, que hoje está muito mais difícil. JORNAL DA ABI – O QUE MUDOU NESTE MERCADO?

Villas-Bôas – Quando eu comecei na imprensa, havia cerca de 17 jornais no Rio. Hoje o número de veículos caiu drasticamente e as redações ficaram muito enxutas. A internet, outra mudança, é uma ferramenta que veio para ficar, mas o jornalista não pode depender apenas deste instrumento. A informação virtual não substitui a imprensa escrita. Na minha área, por exemplo, tenho que me valer dos telefonemas para Brasília, da leitura de jornais e das conversas com várias pessoas para fechar a minha análise. Uma rotina muito diferente do tempo em que eu chegava na Câmara às 14h e só saía às 18h, abarrotado de informações. O jornalista de hoje não sai de casa, prefere apurar tudo pela internet ou pelo telefone. Como a Redação diminuiu, recebe uma pauta enorme com quatro ou cinco matérias, não tem tempo para fazê-las e se vê obrigado a apurar tudo de afogadilho. Além disso, o jornal de domingo sai no sábado. E o de sábado sai que dia? Como a maior parte dos jornais são dirigidos por empresários e não por jornalistas, a Gerência de Marketing e a Publicidade impõem a hora do fechamento e tudo o mais em função do caixa. Este modelo precisa ser reformulado com urgência. O jovem que está se formando hoje faz parte da geração laptop e tem a chance de remontar uma rede nacional que devolva à imprensa o status de cobertura nacional.

JORNAL DA ABI – SUA TRAJETÓRIA RECEBEU RECENTEMENTE UMA BELA HOMENAGEM, COM O LANÇAMENTO DE UMA FOTOBIOGRAFIA PELA COLEÇÃO

ÁLBUM DE RETRATOS. COMO É ESSA

PUBLICAÇÃO?

Villas-Bôas – A publicação foi organizada por meus filhos, o jornalista Marcos Sá Corrêa e o produtor musical Marcelo Sá Corrêa. As fotos estavam guardadas há muitos anos, dentro de uma mala. Algumas revelam um Brasil e um jornalismo que já não existem mais. JORNAL DA ABI – O SENHOR É AUTOR DE CASOS DA FAZENDA DO RETIRO (1981), CONVERSA COM A M EMÓRIA – A H ISTÓRIA DE MEIO SÉCULO DE JORNALISMO PÚBLICO (2002) E PALÁCIO TIRADENTES – FIEL À DEMOCRACIA (2002). ALÉM DE PREPARAR UMA NOVA PUBLICAÇÃO, A QUE OUTRAS ATIVIDADES ESTÁ SE DEDICANDO?

Villas-Bôas – Estou organizando o lançamento do meu blog e realizando uma pesquisa para escrever sobre os erros grotescos cometidos pelos nossos dirigentes, que resultaram nas sucessivas crises que assolaram o País, a partir de Getúlio e do Estado Novo.


PONTO FINAL ALEXANDRE DURÃO/CPDOC JB

FAUSTO E OS FOGOS POR ALDIR BLANC ESPECIAL PARA O JORNAL DA ABI

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austo Wolff é desses raríssimos brasileiros que merece o epitáfio: “Trabalhou até morrer”. Já sofrendo de algumas seqüelas do quadro que o matou, as letras do teclado por vezes se embaralhavam, mas Fausto não desistia e ouvia-se sua voz a um quarteirão de distância: – Cadê a porra do F? Devo muito ao Fausto. Quando eu ainda estava na fase de leitura capa e espada, Charlie Chan, Sherlock Holmes e tal, um amigo do prédio onde morávamos, na Maia Lacerda, coração do Estácio, me convidou pra ouvir long-plays de jazz na cabine da Loja Palermo, que ficava no Largo da Carioca. De lá, fomos parar na Livraria Civilização Brasileira, Rua Sete de Setembro. Não sabia que essa tarde mudaria minha vida. Na Palermo, comprei um LP do Oscar Peterson (aquele no qual a primeira faixa do lado A é uma sutilíssima interpretação de Corcovado), com a foto do trio no palco e me apaixonei pela cintilante bateria. E na Civilização, meio duro, acolhendo as dicas do amigo Gilberto, comprei Tijolo de Segurança,

do Carlos Heitor Cony, e o Acrobata Pede Desculpas e Cai, do Fausto Wolff. Devorei os livros. Deuse o rito de passagem e a meninice foi (quase) definitivamente embora, Sandokan, o Pimpinela Escarlate, O Gavião dos Mares e tantos outros heróis cederam lugar aos personagens dos romancistas brasileiros, na Coleção Vera Cruz, da mesma Civilização. Jamais quitaremos a dívida contraída com Ênio Silveira. Depois conheci o Fausto no Pasquim. Ele carregava vários livros: Parque Górki, de Martin Cruz Smith, no original, e outros em francês e alemão. Jaguar estava sentado, de calça Lee e botas, sobre uma pilha enorme de revistas estrangeiras, com uma tesoura na mão, acho que organizando uma espécie de arquivo. Minha amizade crescente com Fausto estreitou-se com a troca de opiniões quando escrevíamos na revista Bundas, no Pasquim 21 e no Caderno B. Fausto tinha sempre uma palavra de estímulo, mas não deixava passar cochilos e sabia bater duro. Muitos contarão histórias fantásticas sobre o Fausto. Tenho a minha. Mari e eu fomos pas-

sar um fim de ano com ele e Mônica, em seu apê, na Avenida Atlântica. Orgulho-me de ter sido o primeiro a chegar e o último a sair. Revi o Claudius, o Pamplona, o Chico Paula Freitas, só gente fina. Na hora dos fogos, Fausto virou duas cadeiras para a janela e disse, peremptório: – Senta aqui, porra! Ficamos bebendo, sem dar muita bola para aquela meia hora de luzes e esporro. Quando o show pirotécnico terminou, Fausto deu uma levíssima balançada ao levantar e foi descansar rapidinho. Uns quinze minutos depois, reapareceu de copo em punho, virou duas cadeiras pra janela e me chamou de novo: – Senta aqui, porra! Vamos ver os fogos juntos! Até hoje, tamanha a força que Fausto me inspirava, fico pensando se ele havia esquecido dos fogos ou se estava determinado a permanecer ali, bebendo, até o fim do ano que começava. Sou ateu, mas se houver outra vida, já tenho a frase que direi ao rever o Fausto: – Vim ver os fogos, porra! E cantaremos a Internacional. Jornal da ABI 337 Janeiro de 2009

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