Teatro, a maior vítima da censura da ditadura militar PÁGINA 3
388 MARÇO 2013
ÓRGÃO OFICIAL DA A SSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA
A MOCIDADE DE CARLOS LACERDA, POR EVANDRO LINS PÁGINA 12
ARQUIVO PÚBLICO DE SP SALVA NOSSA MEMÓRIA PÁGINA 35
JOSÉ DUAYER PEPÊ SCHETTINO
TATA AMARAL QUER PUNIÇÃO DOS TORTURADORES PÁGINA 32
PÁGINA 16
VIDAS ENRICO BIANCO • ARAQUÉM MOURA ROULIEN
EDITORIAL
DESTAQUES
FALTAM OS NOMES, OS AUTORES MAURÍCIO AZÊDO CARTAZ DA PEÇA O SANTO INQUÉRITO, DE DIAS GOMES. PÁGINA 3
OS ÚLTIMOS MESES e especialmente as últimas semanas foram marcados por importantes progressos na luta nacional pela identificação dos crimes da ditadura militar 1964-1985 e responsabilização de seus autores, que se encontram sob o crescente cerco cívico das instituições devotadas à defesa dos direitos humanos entre nós. A PAR DE MANIFESTAÇÕES de forte significado simbólico, como a emissão, por ordem judicial, atendendo a requisição da Comissão Nacional da Verdade, do atestado de óbito sobre a verdadeira causa da morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado durante as torturas de que foi vítima no Doi-Codi de São Paulo, e do reconhecimento mais de 40 anos depois pela Comissão de Anistia de que o jovem estudante Alexandre Vannucchi Leme foi também assassinado pela repressão, essa luta está culminando com a criação de Comissões da Verdade nos Estados e em instituições representativas da sociedade civil, como a Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj, que se empenha no levantamento das violências praticadas contra os profissionais da comunicação,
um dos segmentos mais golpeados pela ditadura militar. A AÇÃO DESSAS COMISSÕES estaduais, e notadamante a de São Paulo, tem levantado aspectos tenebrosos da tortura institucionalizada pela ditadura, como os relatados na 22ª Audiência dessa Comissão por parentes de militantes da Guerrilha do Araguaia, que fizeram relatos doloridos dos padecimentos que lhes foram impostos, como registrado na matéria A busca incessante pela verdade (página 30). Relato igualmente patético foi feito pela jornalista Ana Arruda Callado na longa entrevista que concedeu a Francisco Ucha e Paulo Chico e que o Jornal da ABI publica também nesta edição.
03 C ENSURA - A mordaça em cena ○
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Publicado no sindmetalsjc.org.br em 12 de março de 2013
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16 D EPOIMENTO - Ana Arruda Callado ○
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31 D OCUMENTÁRIO - O dia que durou 21 anos ○
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32 DEPOIMENTO - Tata Amaral ○
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34 ACONTECIMENTO - O show da imprensa na eleição do Papa Francisco I ○
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35 H ISTÓRIA - Um monumento à memória ○
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40 IMPRENSA - Letra viva, a serviço da literatura ○
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42 Q UADRINHOS - O talento premiado de André Diniz ○
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44 L IVROS - Um gosto amargo de bala ○
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46 LIVROS - “O cinema é a arte de fato contemporânea” ○
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SEÇÕES 08 CARTAS DOS LEITORES ○
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A CONTECEU NA ABI 10 A Copa que queremos não é essa ○
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11 União contra Marcos Feliciano ○
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L IBERDADE DE I MPRENSA 26 A ABI lamenta a ofensa de Barbosa ao repórter que queria entrevistá-lo ○
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27 São Paulo e Mato Grosso do Sul, a rota de perigo para os jornalistas ○
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D IREITOS H UMANOS 28 Governo federal quer saber quem explodiu um cabeção-de-negro na OAB ○
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29 Atos lembram 40 anos da morte de Alexandre Vannucchi ○
O OLHAR DE B RUNO
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12 I NÉDITO - Aventuras do jovem Carlos Lacerda, narradas por Evandro Lins e Silva
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A BARBÁRIE DOS AGENTES da ditadura não tem precedentes na História do País e se assemelha à dos sicários nazistas do ditador Adolf Hitler, quando não a ultrapassa. O inventário do terror a que foram submetidos milhares de brasileiros tem de incluir a identificação desses sádicos agentes de um Poder Público desnaturado e pervertido. O Brasil precisa conhecer esses nomes e os crimes que cometeram.
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09 R EFLEXÕES - A educação como prática libertadora, por Rodolfo Konder
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29 Em nome da verdade, um novo atestado de óbito para Herzog ○
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30 A busca incessante pela verdade ○
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VIDAS 46 Araquém, o repórter ○
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47 Enrico Bianco e a brava gente brasileira ○
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VISITA DE LOLITA RIOS À ÚLTIMA HORA. FOTO DE WALTER FIRMO QUE FAZ PARTE DO ACERVO DO ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. PÁGINA 35
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JORNAL DA ABI 388 • MARÇO DE 2013
CENSURA
MUNIR AHMED
A MORDAÇA EM CENA
De todas as expressões artísticas, talvez tenha sido o teatro a maior vítima da censura no Brasil. Os prejuízos para os profissionais e o público foram evidentes, sobretudo no regime militar pós-1964. De tão grave, a real dimensão das seqüelas deixadas pelo cerceamento da liberdade de expressão sequer pode ser mensurada. POR PAULO C HICO
E
la já estivera presente em outros períodos da História do Brasil, como durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), quando o Dip (Departamento de Imprensa e Propaganda) exercia a função de cercear a liberdade da imprensa e nas produções das mais variadas manifestações artísticas, como a música e o cinema. Nos palcos, porém, é inegável que a ditadura militar instaurada em 1964 recrudesceu seu controle e afiou sua tesoura sobre atores, autores e diretores. Começava ali um espetáculo sombrio, de real terror. Textos mutilados, encenações violentadas, artistas agredidos. Personagem central daquele período, a censura fazia-se notar não pelo que de belo podia ser visto no tablado. Mas sim pelo que de valioso dele subtraía.
“Neste período militar, a censura prévia uniu-se a repressão. Ou seja, artistas foram perseguidos e presos, especialmente os ligados ao Partido Comunista. Acho que a censura ao teatro é mais séria, pois envolve companhias inteiras, autores, diretores, atores que deixam de poder atuar. Peças de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos demoraram décadas para serem liberadas. O teatro sempre foi o palco de discussões políticas, por isso mais controlado. Tem a força das discussões ao vivo, cara a cara. Por isso que, para driblar a censura, uma das saídas foi a apresentação de musicais, pois as músicas são mais metafóricas, poéticas e menos censuradas”, explica Maria Cristina Castilho Costa, professora doutora do Departamento de Comunicações e Artes da Usp.
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REPRODUÇÃO
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CENSURA A MORDAÇA EM CENA
À esquerda, Chico Buarque no ensaio de Roda Viva, peça que sofreu ataque do Comando de Caça aos Comunistas na noite de 18 de julho de 1968. Ao lado, Bibi Ferreira interpreta Joana em Gota d'Água. Na página seguinte, atrizes à frente da passeata dos artistas contra a censura, que aconteceu no Rio de Janeiro em 1968: Tônia Carrero, Eva Wilma, Odete Lara, Norma Bengell e Ruth Escobar. Na outra foto, cena de Dois Perdidos Numa Noite Suja, com Berilo Faccio e Plínio Marcos.
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JORNAL DA ABI 388 • MARÇO DE 2013
em que trabalhava como ator. Depois foi transferido do presídio de Santos para o Dops, em São Paulo, de onde saiu por interferência de vários artistas e sob a tutela de Maria Della Costa. Foi detido para interrogatório em várias ocasiões. Barrela, uma de suas obras mais contundentes, que narrava a história de um presidiário estuprado por seus companheiros de cela, passou quase duas décadas proibida. “Suas peças são pornográficas porque têm palavrão. E são subversivas porque você sabe que não pode escrever com palavrão e escreve”, disse-lhe um censor, como justificativa para o veto à encenação.
sociedade por meios de metáforas. O cineasta Jean-Luc Godard era um dos exemplos citados, como agente artístico de alta periculosidade, nos manuais organizados pela instituição. A partir do AI-5, a censura perdeu sua aura de defensora de uma suposta ‘qualidade técnica’, e assumiu seu papel de fiscal da ‘ordem política, da moral e dos bons costumes’. “Nessa fase, os autores mais censurados eram os mais inovadores e revolucionários ideológica e esteticamente. Plínio Marcos, Nelson Rodrigues, Chico Buarque, Dias Gomes... Os exemplos são muito absurdos. O processo mais complicado que estudamos foi Perdoa-me Por me Traíres, de Nelson Rodrigues, que teve despacho até do Jânio Quadros, quando Governador do Estado de São Paulo. A Semente, de Gianfrancesco Guarnieri, também teve um processo complicado de liberação. Na ditadura militar a coisa ficou ainda mais feia”, pontua Cristina Costa. Na década de 1970, Plínio Marcos, um dos dramaturgos citados pela professora da Usp, era o próprio símbolo do perseguido pela censura. Era considerado um maldito, que incomodava a ditadura e a censura federal. Foi preso pelo II Exército em 1968 e liberado dias depois por interferência de Cassiano Gabus Mendes, então diretor da TV Tupi. Em 1969, foi preso em Santos, no Teatro Coliseu, por se recusar a acatar a interdição do espetáculo Dois Perdidos Numa Noite Suja, DIVULGAÇÃO
Em entrevista ao Jornal da ABI, a autora do livro Censura, Repressão e Resistência no Teatro Brasileiro (2008, Annablume) fala sobre quais aspectos mais incomodavam os humores dos órgãos de repressão. “As grandes justificativas para a censura eram morais, religiosas, políticas e sociais – não era bem-vindo falar de judeus ou de negros, por exemplo, ou de trabalhadores. Na verdade, no século 20, o grande problema era a oposição política entre a direita conservadora e burguesa e a esquerda revolucionária, que buscava na produção artística uma forma de conscientização política. A questão da liberdade sexual, na verdade, não era moral, mas ideológica – a favor ou contra uma moral burguesa que defendia a família e a propriedade”. Cristina Costa chama a atenção para dois fatores históricos. “A censura sempre existiu. Aliás, existiu antes do teatro, que foi introduzido no Brasil pelas ordens religiosas para evangelização da população. Nessa época, já se analisava o que o povo poderia assistir e quem poderia ser ator. Com a vinda da Família Real, instalase o teatro laico e a censura realizada pelo Conservatório Dramático Musical. Na República, criaram-se órgãos de censura ligados ao Ministério da Justiça. Getúlio Vargas criou mecanismos eficientes ligados ao Dip que sobreviveram ao fim desse órgão, mesmo no ‘democrático’ Governo de JK. Em todas essas versões era censura prévia – o diretor ou ator deveria apresentar o texto a censores que liberavam, vetavam ou cortavam trechos. Isso até 1988, quando a Constituição aboliu os órgãos oficiais de censura”. O segundo aspecto, esclarece a pesquisadora, trata do perfil dos profissionais que atuavam nesses órgãos. Até 1968, os censores eram pseudo-intelectuais ou mesmo artistas e intelectuais – o poetinha Vinicius de Morais foi censor – que se prestavam a um trabalho que lhes garantia alguma renda e que tinha como verniz aceitável a intenção de melhorar o teatro produzido no País. Após o Ato Institucional nº 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, a censura se federaliza. Isto é, deixa de ser estadual e passa a ser exercida em Brasília, via Ministério da Justiça. Lá, os censores mudaram de perfil e de formação. Passaram a ser funcionários do Ministério e não mais intelectuais. Recebiam formação em cursos da Escola Superior de Guerra (ESG) para aprenderem como a subversão destruía a
Cristina Costa: A censura sempre existiu.
A FUGA DE AUTORES: DO TEATRO PARA A TELEVISÃO “A perda para o teatro, com o agravamento da censura, foi enorme. Muitos desistiram do palco, que se tornara inviável. Tínhamos uma cena teatral de importância internacional, que perdeu muito de sua força. Alguns autores, como Dias Gomes e Bráulio Pedroso, foram para a televisão. E são em parte responsáveis pelo que se fez de qualidade nas décadas de 1970 e 1980, sobretudo na TV Globo. Imagine que Plínio Marcos trabalhou na televisão!”, destaca Cristina Costa, autora de outro livro sobre o tema, que é Censura em Cena – Teatro e Censura no Brasil, publicado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e pela Edusp. Crítica de teatro de O Globo, Barbara Heliodora concorda com a pesquisadora. “A censura foi extremamente prejudicial à cena brasileira. Se, por um lado, vários autores, que já estavam escrevendo para o teatro, deixaram de escrever por causa da censura, outros, mais jovens, nem sequer começaram, já que lhes era vedada a possibilidade de falar sobre o seu mundo e para evoluir o autor precisa ver sua peça em cena... É provável que tenhamos perdido uma geração de dramaturgos. Os prejuízos foram grandes, principalmente a partir de 1968, para toda a atividade teatral. Não há dúvida de que ela contribuiu para a crise de público em que o teatro nacional mergulhou nas décadas seguintes. Mas, nesse fenômeno, por certo houve várias outras razões, além dessa”. Mas, afinal, quem eram os censores de teatro durante a ditadura no pós-1964? Havia no aparelho censor pessoas com algum grau de conhecimento técnico de teatro? A censura, por definição, era burra? “Só posso falar sobre os quais tive
informações, de 1964 a 1967. A quase totalidade era de um despreparo total; creio que ainda restavam alguns – como o Augusto da Costa, que jogou no Vasco – que foram transferidos para a censura quando foi liquidada a Polícia Especial, da época do Getúlio. Logo que fui para o Serviço Nacional de Teatro (STN) me foi pedido que organizasse um curso para os censores. Foi-lhes oferecida uma série de palestras sobre História do Teatro, tentando fazê-los compreendê-lo como uma arte, algo sobre o processo da encenação... Não adiantou nada, eu acho. Devo dizer que durante esse período houve um momento em que uma moça foi nomeada chefe da Censura – ou seja lá qual fosse o nome do cargo. Era bastante bem informada e com ela foi possível dialogar e conseguir aprovação para várias peças que a média dos censores cortaria ou proibiria. Não tenho dúvida de que a censura seja sempre burra. E em vários países a ideologia imposta pelos governos tem tido resultados trágicos para o teatro”, disse Barbara Heliodora ao Jornal da ABI. “Via de regra, os censores padeciam de inacreditável debilidade mental, só equivalente à sanha que tinham de ‘mostrar serviço’ aos superiores, cortando o máximo que pudessem. Quanto a conhecimento teórico do teatro, eles eram completamente analfabetos. Atuaram com muito rigor durante os dez primeiros anos da ditadura. Em 1974, no entanto, por descuido ou soberba, o fato é que os militares não se deram conta do surgimento de alguns dos mais criativos e poderosos grupos da cena teatral carioca, tanto do ponto de vista formal como de conteúdo. Poderia citar, dentre outros, o Asdrúbal Trouxe o Trombone, Manhas e Manias, Pessoal do Despertar, Dia a Dia e Pessoal do Cabaré”, complementa Lionel Fischer – ator, diretor, professor e crítico de teatro do Rio de Janeiro.
A CENSURA VISTA PELA IMPRENSA Em Censura, Repressão e Resistência no Teatro Brasileiro, Cristina Costa esclarece que a política oficial de veto à liberdade de expressão não se tratava de um mero expediente, mas de uma relação estabelecida entre artistas, poder público e sociedade. Uma barganha constante, através da qual a classe artística tinha que se mostrar disposta a respeitar os critérios morais, éticos e políticos vigentes. Mais importante do que o corte de uma pala-
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ter sido um ‘anticensor ’, que entrou para a censura com o intuito de ajudar seus pares. “Ele era diretor de teatro amador, e nunca censurou uma única peça, a não ser a pedido de algum de seus colegas atores. Pois a censura, às vezes, também dava publicidade... Foi o primeiro a entrar no DDP por concurso, depois de fazer uma prova que testava seus conhecimentos nas artes cênicas. Ele me contou que era o único que entendia alguma coisa sobre teatro, e por diversas vezes pedia para que um censor que tivesse censurado alguma peça a reavaliasse. João, então, ia junto com ele ao ensaio, e conforme as cenas se passavam, ia explicando ao colega o que estava acontecendo. Todas as vezes que fez isso, as peças foram liberadas”.
mo da Eca-Usp, descobri um grupo de estudos que analisava peças de teatro censuradas pelo Departamento de Diversões Públicas (DDP) de São Paulo – a biblioteca da Eca guarda, no Acervo Miroel Silveira, todas as peças já censuradas pelo órgão. Fiz minha Iniciação Científica lá porque era uma chance de juntar três temas que sempre me interessaram: jornalismo, história e teatro. Foi dessa pesquisa que nasceu meu trabalho de conclusão de curso e, mais tarde, o livro”, contou Júlia ao Jornal da ABI. A obra tem prefácio assinado pelo jornalista Eugênio Bucci. E dedica atenção especial a dois autores. “Joracy Camargo e Nelson Rodrigues foram escolhidos durante minha pesquisa, por sua importância em cada época. Joracy foi o primeiro autor a sair das chanchadas e do mero ‘teatro para se fazer rir’ para inaugurar o teatro social. E Nelson revolucionou os palcos pela complexidade dos textos e pelo que eles exigiam em suas montagens, tanto dos atores quanto do diretor – figura também inaugurada em sua época. Além disso, os dois representam duas fases distintas da História brasileira – o primeiro atuou nas primeiras décadas do século, e o segundo, dos anos 1940 aos 1970. Eu queria descobrir se a censura agia de forma diferente em épocas diferentes, e descobri que sim”, conta. Ela destaca ainda a figura do censor João Ernesto Coelho Neto, escolhido por DIVULGAÇÃO
vra em mais de duzentas páginas de texto era o ritual a que se submetia o artista para defender suas intenções e idéias frente às autoridades instituídas. Por vezes, os debates tratavam de como trocar palavras: saía ‘merda’, entrava um ‘puta que o pariu’. Um ‘porra’ podia até revelar-se substituto digno para ‘caralho’. A Censura de Costumes no Brasil: da Institucionalização da Censura Teatral no Século XIX à Extinção da Censura da Constituição de 1988 é uma pesquisa da historiadora Miliandre Garcia, datada de 2008. Em parte do texto, ela revela como a censura era noticiada pela imprensa. “A partir da segunda metade de 1967, veículos de comunicação, setor artístico e meio intelectual intensificaram as reações contrárias às novas medidas do Governo federal. O jornal Correio da Manhã, além de identificar os focos de resistência à centralização da censura, criticou o curso das mudanças que não só uniformizava os procedimentos burocráticos em âmbito nacional, como menosprezava as especificidades culturais das regiões brasileiras. No final de 1967, o Diário de Notícias sintetizava o clima de desolamento que atingia os grupos teatrais devido aos novos rumos da censura no País”, escreveu a pesquisadora. O trecho a seguir faz parte de matéria publicada pelo Diário de Notícias, em 4 de dezembro de 1967: “Toda classe teatral está em pé de guerra com a ameaça que se anuncia para 1968, isto é, a censura das peças de teatro e dos shows de teatro passará a ser feita em Brasília. Realmente, é um absurdo que se está tramando. O Ministério da Justiça diz que a censura deve ser nacional – da capital federal para todo o País. Há muita ingenuidade ou burrice em quem apela para a letra da lei sem medir as conseqüências. A censura deve ser nacional nas suas normas técnicas e diretivas, de lá devem partir os regulamentos, as portarias. Jamais o julgamento do texto de uma peça de teatro ou de um show”. Júlia Carvalho é uma jovem repórter da Veja. E autora de Amordaçados – Uma História da Censura e de seus Personagens, livro lançado em 2012 pela editora Manole. A primeira questão que se apresenta é descobrir por qual motivo a jornalista, aos vinte e poucos anos, se interessou por tema tão árido. “Eu sempre gostei de artes cênicas, estudei teatro por seis anos. Quando entrei na Faculdade de Jornalis-
Júlia Carvalho: censura extremamente violenta.
CENSURA VIOLENTA Júlia acredita que o pior período da censura ao teatro no Brasil tenha sido mesmo a ditadura militar. “Foi uma censura extremamente violenta, que contava não só com o aparelho do Estado, mas também com grupos civis e paramilitares que se sentiam no direito de combater por si tudo o que considerassem de esquerda. O teatro foi, das artes, a que mais se opôs à ditadura – e a que mais sofreu com isso. A ideologia comunista fez muito barulho, mas as referências a ela quase sempre eram maquiadas e, às vezes, escapavam da tesoura graças a esse artifício. Mas a ‘proteção’ dos costumes e da moralidade existiu em todas as épocas. Nas peças que analisei, referências sexuais, críticas ao casamento ou ao papel da mulher raramente passavam impunes, a não ser que fossem muito bem escondidas”. Pouco técnica, a censura no País sempre teve contornos policiais. “Os censores eram, em sua maioria, policiais, expoliciais ou pessoas indicadas pelos dirigentes do DDP. Poucos entendiam qualquer coisa sobre teatro. Agora, acredito que a censura era burra não só por isso. Primeiro, era incompetente – muitos autores felizmente conseguiram enganála. Ao censurar, ela buscava cercear a criatividade humana e as idéias autônomas, o que por si só promove a burrice. Só que isso não funciona. Durante a ditadura militar, o teatro de esquerda foi extremamente perseguido, mas isso promovia um efeito oposto. Cada vez que um ataque ocorria, os grupos ficavam mais e mais furiosos, e promoviam mais e mais atos contrários ao regime”.
Júlia considera que é difícil medir os efeitos da censura ao longo da História brasileira. Durante o reinado, por exemplo, as proibições totais ou parciais de espetáculos acabaram atrasando novos movimentos que poderiam surgir fora dos palcos oficiais – todas as peças deveriam passar por órgãos do governo e estrear apenas nos teatros reais. Já no pós1964, o clima de repressão acabou provocando todo um movimento de resistência que, apesar do cerco feito pelos militares, sobreviveu e se fortaleceu. “Acredito que o pior efeito tenha sido a autocensura, que por definição, jamais poderá ser mensurada ou avaliada em sua totalidade. Ninguém sabe o que poderia ter sido feito se a censura não existisse, é impossível sequer imaginar. Agora, para mim, a crise de público vivida nas últimas décadas pelo teatro é mais uma questão cultural do que um reflexo da censura. O próprio Joracy Camargo, ainda nos anos 1920, em sua luta por um teatro profissional, chegou a reclamar que, enquanto na França as pessoas esperavam horas e horas para conseguir um ingresso para uma peça, no Brasil eram poucas as temporadas que conseguiam durar mais de dez dias”. Por fim, Amordaçados – Uma História da Censura e de seus Personagens propõe uma reflexão sobre novas formas de censura – a mesma velha prática ditatorial que em tempos de democracia pode querer entrar em cena travestida de outras personagens. “Nessa parte do livro eu me refiro à censura em geral, e não só ao teatro. De 1988 até 2002, vivíamos em um País que garantia a liberdade de expressão em todos os termos e maneiras, ao menos juridicamente. Mas em 2002 o novo Código Civil abriu uma brecha para a censura judicial prévia em caso de invasão de privacidade ou proteção à honra do indivíduo e de sua família. Isso afeta mais particularmente a imprensa – o caso do Estadão já é clássico. Acredito que a melhor maneira de combater a censura seja falando sobre isso. Primeiro para impedir que o conteúdo censurado permaneça sem ser conhecido, e segundo porque muita gente ainda acredita que a imprensa não pode dizer o que quiser, que deve haver algum tipo de controle. Só conscientizando a população dos riscos que isso implica é que as pessoas podem se mobilizar, e talvez isso nos leve a uma mudança na lei. Será um processo de longuíssimo prazo”, concluiu Júlia Carvalho. JORNAL DA ABI 388 • MARÇO DE 2013
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CENSURA A MORDAÇA EM CENA
As lembranças de dois mestres sobre a censura no período militar A pedido do Jornal da ABI, dois dos maiores nomes das artes cênicas brasileiras escreveram depoimentos tocantes, cheios de detalhes, sobre a censura ao teatro no Brasil no período militar – textos exclusivos, redigidos especialmente para esta reportagem. Aos 90 anos, em assombrosa forma vocal, Bibi Ferreira segue nos palcos, dando continuidade à peça Bibi – Histórias e Canções, em que revisita músicas dos mais importantes espetáculos de sua carreira. Em meio a mais uma
temporada, a jovem senhora arruma as malas. Neste mês de abril, a filha de Procópio Ferreira se apresentará no Lincoln Center, em Nova York. Reconhecidamente um dos mais talentosos e politizados atores do País, Carlos Vereza também atendeu ao pedido deste veículo – e escreveu, num misto de rigor e bom humor, a respeito das ações dos militares sobre o teatro nacional. Também em abril ele está de volta aos palcos cariocas, com O Teste.
Não por acaso, o episódio de Roda Viva, que sofreu ataque do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) na noite de 18 de julho de 1968, aparece nos dois relatos. Da peça de Chico Buarque, com direção de José Celso Martinez Corrêa, faziam parte atores como Rodrigo Santiago e Antônio Pedro. Os envolvidos no episódio pouco lembram ou falam daquela sessão – em especial dos cerca de três minutos em que a sala O Galpão, no Teatro Ruth Escobar, no centro de São Paulo, ficou às escuras. Os cená-
rios foram danificados. Os equipamentos foram depredados. O elenco, agredido. “Todos nós tivemos que passar por uma espécie de corredor polonês. Os que passavam correndo apanhavam mais. Eu passei lentamente. Acho que eles batiam menos quando você passava lentamente. E eu perguntava: ‘Por quê? Por quê?’ Eu não entendia a razão daquilo”, declarou a atriz Marília Pêra, em entrevista concedida ao Fantástico, da TV Globo, em 2008. A seguir, os relatos de Bibi Ferreira e Carlos Vereza. LETICIA MOREIRA/FOLHAPRESS
Um golpe fatal BIBI FERREIRA Tristeza, revolta e indignação pautam as minhas lembranças dessa época obscura que foi a ditadura militar. Lembrar que pessoas amigas conhecidas, ou mesmo desconhecidas, foram mortas, torturadas, e muitas estão desaparecidas até hoje, só porque queríamos viver com liberdade de expressão – liberdade de ir e vir – traz de volta a sensação de impotência que tínhamos na época, e que piorou muito após a promulgação do Ato Institucional nº 5, pelo então Presidente Costa e Silva, em 13 de dezembro de 1968. A partir desta data, todo artista era visto como uma ameaça ao sistema, quase todo texto como um panfleto subversivo, a liberdade de criação passa a não existir. Os integrantes do Comando de Caça aos Comunistas passam a invadir os teatros espancando os atores , destruindo cenári6
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os, como o ocorrido com a peça Roda Viva, do Chico Buarque, em Porto Alegre, e o mesmo acontece no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. A dramaturgia sofre tamanha repressão que grupos teatrais como o Arena e o Oficina, onde os diretores Augusto Boal e José Celso Martinez, assim como tantos outros, buscavam construir uma dramaturgia nacional, não conseguiram resistir. Toda a violência e insegurança que cerceava o teatro, aliadas a uma forte campanha para desmoralizá-lo junto à opinião pública, propagando o teatro como reduto de subversivos, pervertidos e de violência, conseguiu afastar de vez o público. Meu primeiro contato mais próximo com os censores foi em 1970, quando dirigi o show Brasileiro, Profissão Esperança, texto de Paulo Pontes, com Maria Bethânia e Ítalo Rossi, no antigo Teatro Casa Grande. O motivo da implicância, como não poderia deixar de ser, foi o título. Na
cinco ou seis homens que, sem qualquer explicação, e de forma violenta, foram recolhendo todos os programas, inclusive os que já estavam em poder do público. Dessa vez não houve diálogo e tivemos que refazer o material. Paulo ainda teve que ir ao Dops para se explicar. Em uma obra do quilate de Gota d´Água, que considero um marco na dramaturgia brasileira, qualquer corte seria desastroso. Mas já esperávamos por isso, e se fosse uma palavra ou outra, algumas frases, ou mesmo pequenos trechos, seria viável refazer, mas não foi o que ocorreu. E Paulo Pontes, autor do texto em parceria com Chico Buarque, ficou num vai e vem entre Rio e Brasília tentando o possível e o impossível para que o texto não ficasse mutilado. Em um texto como Gota d´Água, todo encadeado por rimas e com monólogos longos ditos por algumas das personagens como ‘Joana’, que eu interpretava, cortes grandes o deixariam sem sentido, sendo necessário que a peça fosse reescrita – o que seria impraticável. Os cortes chegaram a tal ponto que tive que sair de casa e me hospedar no Copacabana Palace para ficar completamente só e poder decorar. Mas, graças a Deus, as idas e vindas do Paulo não foram em vão... Ele conseguiu reverter a situação e pouca coisa teve que ser refeita. O espetáculo estreou no Teatro Tereza Rachel, em 1975. E foi um sucesso estrondoso. Antes disso, enfrentei a censura em 1973, no Canecão, com o show Elizeth – Baden, escrito por Paulo Pontes, Flávio Rangel e Sérgio Cabral. Somando a orquestra, sob regência do maestro Gaya, bailarinos e coral, eu tinha aproximadamente 110 pessoas em cena. Por ser um espetáculo trabalhoso, aguardávamos a presença dos censores alguns dias antes da estréia, pois caso houvesse cortes teríamos tempo para reajustar. Mas eles só apareceram no ensaio geral, ou seja , na véspera da abertura
opinião deles nós estávamos querendo dizer que o povo brasileiro não estava satisfeito com o governo e que isso não era nada bom. Depois de muita conversa conseguimos convencê-los de que não era essa a nossa intenção – e o título foi mantido. O mesmo não ocorreu com o programa do espetáculo. Paulo havia escolhido para a primeira página, logo abaixo da foto da Bethânia, o trecho mais forte do poema que Reynaldo Jardim escreveu para ela, que por sinal é belo (leia no boxe ao lado). Não me recordo se É um canto é um grito é um povo é uma luta eles sabiam da exisÉ um fogo é uma chama é uma flor é uma fruta tência do programa, É um tempo é uma data é uma dor é um lamento mas três ou quatro É uma idéia é uma luz é um sonho é um invento dias depois da estréia, É uma força que surge é martelo que malha e para surpresa de toÉ uma faca é granada é fuzil é metralha dos, antes do início do espetáculo o teaÉ um povo que canta é um samba é um hino. tro foi invadido por
MARCOS MICHAEL/FOLHAPRESS
da temporada. E o estrago foi grande. Em determinado momento do show, a Elizeth Cardoso cantava Bandeira Branca acompanhada por Baden Powell. Eu tinha atrás deles um ciclorama transparente aonde em silhuetas os bailarinos agitavam bandeiras durante a coreografia. Isso junto com orquestra, coral e iluminação ficou um número forte sendo um ponto alto do espetáculo e de um efeito visual muito bonito. As bandeiras agitadas em silhuetas lembravam a revolução francesa, com o povo agitando os farrapos. Bem, assim que terminou esse número um dos censores interrompeu o ensaio, virou pra mim e perguntou: “A senhora está louca? Pretende começar uma revolução aqui pelo Canecão? Não vê que pode incitar a platéia a um levante? É bem provável que as pessoas se levantem tirem as toalhas das mesas e as agitem também”. Ao olhar para as toalhas nas mesas, ele logo se deu conta de que eram vermelhas. E, no mesmo tom furioso, mandou que fossem trocadas por toalhas brancas. Continuamos o ensaio e outros números musicais, assim como alguns textos, foram cortados. Resumindo, desmancharam um show que estava pronto e os autores passaram a madrugada em claro refazendo tudo. E eu passei o dia ensaiando o novo roteiro. À noite estreamos. E, apesar, dos censores, foi mais um sucesso! Brasil 78/79 era o programa de entrevistas e números musicais que eu apresentava na TV Globo. Em uma das edições, ao entrevistar um convidado, ele usou três palavras: “fome, povo e liberdade”. Pronto! Foi o suficiente para que eu recebesse uma intimação para comparecer ao Dops. Fui e não pude entrar porque estava usando calça comprida e era falta de respeito, vejam só! Voltei em casa, coloquei um vestido e retornei. Fiquei sabendo, então, que eu era a responsável pelo meu convidado ter dito palavras que estavam proibidas de serem usadas nos meios de comunicação. Expliquei que não se sabe tudo o que uma pessoa vai dizer, e mesmo que soubéssemos antecipadamente, não poderíamos prever o que ela vai dizer a partir do momento em que está no ar. Me fizeram uma série de advertências para que isso não se repetisse pois, caso contrário, eu seria processada e o programa poderia ser retirado da grade. Enfim, nada que não fosse esperado de um regime ditatorial. Em meio a tanto tumulto, revolta, tristeza, repressão e medo, eram poucos os que conseguiam liberar seus espetáculos e trazer algo de novo para o teatro. As montagens de clássicos estrangeiros eram a saída de algumas produções, o que não resolvia, pois as dificuldades financeiras levavam a uma grande perda da qualidade e o teatro sem público entra em crise. Se não me engano, em sua maior crise. Eu diria que o prejuízo causado ao teatro brasileiro pela repressão e pela censura foi gravíssimo, e a mutilação causada na dramaturgia nacional um golpe fatal, e ainda não foi possível recuperar de todo esses vinte anos de atraso que sofremos durante o regime militar. Acredito que a democracia, se for exercida pelos governantes com a devida dignidade, honestidade, respeito e justiça (coisas que nos fazem tanta falta), ainda é a melhor forma de governo.
Surrealismo puro CARLOS V EREZA Como em todo regime autoritário, as palavras, quando saem de ‘estado de dicionário’, citando o querido Carlos Drummond de Andrade, apavoram os titulares do poder; e não apenas na Ditadura Militar, mas atualmente, quando o PT procura insistentemente ‘regular’ os meios de comunicação. Na ditadura, a censura apresentava-se de maneira absolutamente radical. Muitos artistas e intelectuais desapareciam, literalmente, com suas obras. Os censores, encarregados de ‘avaliar’ peças, livros e filmes, chegavam ao absurdo de vetar obras literárias, pelo fato de certas capas serem editadas na cor vermelha! Eu mesmo, com a minha primeira peça – Nó Cego, de 1977 – tive problemas. Ela foi interditada em todo o território nacional, e fui convocado a comparecer à Polícia Federal, com a minha mulher à época, para modificar quase oitenta por cento dos diálogos; isto, em plena comemoração da passagem de Ano Novo – surrealismo puro. Enquanto minha mulher datilografava sob a ‘orientação intelectual’ de um agente, seus colegas brindavam com champanhe e serpentina. Da mesma forma ilógica como foi proibida, no dia do ensaio geral – pois era minha intenção estrear de qualquer jeito, com o texto na íntegra, mesmo que fosse para ser apenas para uma temporada de um único dia –, veio um comunicado
liberando, sem cortes, a mesma peça! Não há como fugir dos pontos de exclamação tão ao gosto do genial Nelson Rodrigues! Outro episódio, do qual participei, foi durante a apresentação da peça Electra, de Sófocles, com a maravilhosa atriz Glauce Rocha como a protagonista e direção do meu amigo Antônio Abujamra, no antigo Teatro do Rio, no Catete. O Dops – é assim que se escreve o nome deste órgão? – invadiu o teatro para prender o... autor!!! Em vão, Abujamra tentava explicar que o autor da peça – o poeta e dramaturgo grego – morrera há mais de dois mil anos. Fato que não impediu o agente Borges de adentrar os camarins em busca do subversivo escriba! Outra peça de minha autoria foi Transaminase, de 1980. Ela satirizava a tortura numa cela, situação que vivi por duas vezes durante o regime militar. Em 1984, ganhei o prêmio Molière, pela interpretação do repórter Felipe na peça No Brilho da Gota de Sangue, escrita e dirigida por Domingos Oliveira. Paradoxalmente, a repressão estabeleceu limites muito claros e definidos entre o que podia ou não ser mostrado ao público, condicionando muitas obras à metáfora para burlar a censura, no que resultou numa estética altamente sofisticada, em alguns casos, porque a realidade se apresentava sem nuances, maniqueísta: eram os que combatiam o regime através de suas obras, de um lado, e o arbítrio do outro.
A violência da repressão à intelectualidade atingiu o ápice na depredação do espetáculo Roda Viva, de Chico Buarque, em São Paulo, quando além da destruição de cenários e figurinos, a atriz Marília Pêra foi espancada por militares à paisana. Outra colega, Norma Benguell, foi sequestrada, assim como este amigo que vos escreve, levado para o Doi-Codi, onde fui tratado ‘carinhosamente’ por oito dias, sendo liberado graças à ação de Roberto Marinho, Boni e Renato Pacote, somada à procura, de quartel em quartel, do meu querido colega Tarcísio Meira, incansável, até que eu fosse gentilmente jogado em uma rua do Leblon, completamente um farrapo. Mas não quero fazer drama: no meu caso, além das entrevistas que eu dava – usando as revistas que cobriam assuntos de televisão, e que não eram, até que fossem descobertas, contra a ditadura – escondia um guerrilheiro, meu amigo, muito procurado. Depois de preso em São Paulo ele foi barbaramente torturado e assassinado pelo DoiCodi. Seu nome: Thomas Antonio Meirelles. Até hoje, a família procura por seu corpo. No presente, o que me preocupa é a repetição desses, digamos, métodos, sob a forma de um partido que se intitula de ‘esquerda’ e que vem anunciando com freqüência assustadora, como escrevi acima, a intenção de controlar os meios de comunicação. Fica o alerta.
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LEGISLAÇÃO
CARTAS DOS LEITORES
Conselho aprova quatro anos depois as novas diretrizes para o curso de Jornalismo Formulada em setembro de 2009, a proposta depende agora da homologação do Ministro da Educação, Aloízio Mercadante.
“Recebi o último número do Jornal da ABI (Edição 387) e quero parabenizá-lo pela alta qualidade editorial, principalmente pelas matérias sobre a Liesa e sobre o fechamento do Jornal da Tarde, ambas muito bem escritas e apuradas. Outra muito boa também é a do Joel Silveira, a quem tive o privilégio de entrevistar para o Diário de Notícias em sua fase final, quando era seu diretor Olympio Campos e chefe de Redação o nosso querido irmão Raul Azêdo. Guardo como láurea profissional o fato de Joel Silveira ter telefonado para o Raul e elogiado a matéria. Disse “está muito boa, tem princípio meio e fim”. Foi o que o chefe Raul me transmitiu.” José Luiz da Costa Pereira Paracambi, RJ E SCREVA PARA O JORNAL DA ABI E-mail: abi.presidencia@gmail.com CURTA A PÁGINA DO JORNAL DA ABI NO FACEBOOK: facebook.com/jornaldaabi
Jornal da ABI ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha presidencia@abi.org.br / franciscoucha@gmail.com
As novas Diretrizes Curriculares, entre outros temas, estabelecem que os cursos terão estágio curricular obrigatório, carga horária total mínima de 3 mil horas (atualmente está com 2.700 horas); que o Trabalho de Conclusão de Curso possa ser realizado ou de forma prática, com elaboração de um produto jornalístico ou na forma monográfica, que incentiva, na graduação, a pesquisa científica; e ainda no contexto das recomendações politico-pedagógicas dos cursos ter por objetivo a formação de profissionais dotados de competência teórica, técnica, tecnológica, ética, estética; estar focado teórica e tecnicamente na especificidade do jornalismo, com grande atenção à prática profissional, sem detrimento da formação científica no âmbito das ciências humanas e sociais. Desse projeto se definia ainda a especificidade da formação em Jornalismo. Dizia o documento que “o jornalismo é uma profissão reconhecida internacionalmente, regulamentada e descrita como tal no Código Brasileiro de Ocupações do Ministério do Trabalho. A Comunicação Social não é uma profissão em nenhum país do mundo, mas sim um campo que reúne várias diferentes profissões”; podese dizer que a comunicação é uma área de conhecimento. As novas Diretrizes, conforme o documento elaborado pela Comissão de 2009,
DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn
Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo
CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer.
Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges.
CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum.
Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva.
MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha)
Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br
Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.
REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br
Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.
REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira
Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri (in memoriam), Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.
Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP
Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro
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ELZA FIUZA/ABR
LEMBRANÇA DE JOEL
O Conselho Nacional de Educação-CNE aprovou no fim de fevereiro o projeto que estabelece as novas Diretrizes Curriculares para os cursos de Jornalismo. Agora, a proposição segue para revisão técnica e, posteriormente, para homologação do Ministro da Educação Aloízio Mercadante (foto). Também foi aprovada a mudança de nomenclatura dos cursos da área de comunicação, que até então eram designados como cursos de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, Publicidade/ Propaganda, Relações Públicas, Rádio e TV, Cinema ou Editoração. Os cursos de Jornalismo terão nomenclatura própria e serão designados como Curso de Bacharelado em Jornalismo. O projeto foi elaborado por uma Comissão constituída pelo então Ministro da Educação, Fernando Haddad, presidida pelo professor catedrático da Escola de Comunicação da Usp, Dr. José Marques de Melo, e constituída pelos professores Alfredo Vizeu (UFPE), Luiz Motta (UnB), Sônia Virgínia Moreira (Uerj), Manuel Chaparro (Usp), Sérgio Matos (UFBA), Eduardo Meditsch (UFSC) e Lúcia Araújo (Canal Futura). Todos os membros da Comissão são doutores, jornalistas, pesquisadores e professores em cursos de Jornalismo, à exceção de Lúcia Araújo. A proposta foi entregue oficialmente ao Ministério da Educação em setembro de 2009, mas só agora foi apreciada pela CNE. O parecer do relator do processo que estabelece as novas Diretrizes Curriculares foi aprovado no geral e agora aguarda a homologação do Ministro da Educação para ser publicado no Diário Oficial da União.
ainda estabelecem alguns eixos fundamentais na formação do jornalista, quais sejam de fundamentação humanística, de fundamentação específica, de fundamentação contextual, de formação profissional, de aplicação processual e de prática laboratorial. Avanços
A Diretora da Fenaj Valci Zuculoto considera que as novas Diretrizes trazem uma série de avanços em relação às atuais, que mesmo quando foram lançadas, em 2001, já não atendiam às reivindicações do campo do Jornalismo e da comunicação. Entre elas estão o equilíbrio de teoria e técnica, desenhando um perfil adequado ao exercício do jornalismo na atualidade, estruturado a partir da função social do jornalista e o interesse público que está reservado à sua prática, a volta dos “cursos de graduação plena”, com autonomia curricular, ou seja, cursos específicos de Jornalismo, sem abdicar de sua inserção histórica na área da comunicação e de sua natureza acadêmica como ciência social aplicada, e a atualização das Diretrizes de acordo com as transformações do Jornalismo, como a demanda para atividades em assessoria de imprensa e a evolução tecnológica no Jornalismo. “Desta vez as entidades do campo do jornalismo conseguiram ser ouvidas e a proposta está mais próxima do que se precisa para a melhora do ensino de Jornalismo”, disse Valci Zuculoto.
Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.
Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Vitor Iório e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.
JORNAL DA ABI • MARÇO 2013 O 388 JORNAL DA DE ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.
REFLEXÕES
A educação como prática libertadora A construção entre nós de uma democracia estável, sólida e duradoura depende da modernização de corações e mentes e da substituição de hábitos e posturas. POR RODOLFO KONDER Mas esta mudança começa dentro de cada um, em cada comunidade, no pluralismo dentro de cada país. A busca da verdade nacional depende, para o seu sucesso, da capacidade de criarmos um sistema educacional à altura dos novos desafios. Depende da criação de uma Universidade que funcione permanentemente como instrumento de avaliação e reavaliação crítica do esforço nacional. A educação, no Brasil e na América Latina de hoje, deve ser colocada a serviço do desenvolvimento, deve ser instrumento de combate à miséria. Mas deve ser também uma escola sem fronteiras, capaz de gerar aqui os homens e mulheres do futuro, comprometidos com uma prática diuturna de respeito aos direitos humanos mundialmente consagrados, comprometidos com a idéia de uma convivência harmoniosa com a divergência e a controvérsia. Perceberemos o nascimento de mulheres e homens do futuro quando os comportamentos começarem a mudar, quando os preconceitos, a insensibilidade e o autoritarismo começarem a desaparecer, não somente das leis, mas da prática cotidiana, na relação mais íntima entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre jovens e velhos, entre brancos e negros. Então, estaremos efetivamente nos reeducando, já que só há aprendizado quando há mudança de comportamento, como ensinava B. F. Skinner. ELIANE SOARES
Q
uando se fala em educação, hoje, no Brasil, é inevitável a discussão do processo de modernização do País. Por onde passa a nossa modernização, neste momento de reencontro, de redescoberta, após um período tão longo de desestruturação, de deseducação? Ao fim de anos e anos de autoritarismo, de trevas, de alienação forçada, lassos tornaram-se os músculos de inúmeros setores da sociedade brasileira. Em toda a América Latina, depois da multiplicação das ditaduras e da miséria, atrofiou-se a capacidade de reflexão criítica, de questionamento, de dúvida. Agora, fracassados os modelos autoritários, o momento é de reconstrução. Reconquistada a democracia, novos são os desafios. O grande desafio é o da modernização. A construção de uma democracia estável, sólida, duradoura, passa pela modernização dos corações e das mentes, pela substituição de hábitos e posturas, pelo aprimoramento de instituições e práticas. A América Latina busca novos caminhos, quer crescer com autonomia, quer desenvolver-se com liberdade. Neste quadro, devemos repensar os problemas da educação a partir de uma nova ótica – a ótica da mudança. Precisamos repensar a questão educacional a partir da idéia de que as pessoas têm que ser reeducadas para o convívio democrático. O chamado entulho autoritário – os escombros das ditaduras naufragadas, que ainda poluem nossas praias – não existe apenas nas leis. Também está nos hábitos, nas atitudes, nos vícios de raciocínio e nos preconceitos com os quais nos
defrontamos todos os dias. Quando consideramos como inimigo alguém que discorda de nós; quando queremos simplesmente suprimir os antagonismos, as controvérsias, seja pela decisão da maioria, seja pela coerção; quando achamos que o melhor meio de calar os dissidentes é através da disciplina rígida, da punição implacável, estamos liberando as feras do autoritarismo. E como é possível domá-las? Nossas nações ainda acossadas pelo atraso só encontrarão seu caminho, sua identidade, sua plena soberania, na solidariedade internacional, na defesa da paz, do pluralismo, dos princípios de não-intervenção e autodeterminação dos povos.
RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.
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ACONTECEU NA ABI
A Copa que queremos não é essa Os aspectos nocivos dos megaeventos programados para 2013, 2014 e 2016 são expostos em debate sediado pela ABI. Mais de 500 pessoas participaram em 28 de fevereiro, no Auditório Oscar Guanabarino da ABI, do seminário “A Copa que Queremos”, promovido pela Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da entidade, com apoio do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas. Parlamentares, jornalistas, professores, estudantes, pesquisadores e cidadãos comuns debateram temas relacionados à organização da Copa do Mundo de 2014 e o incentivo a projetos de infra-estrutura que representem um legado para a população. A sessão de abertura foi conduzida pelo Presidente da ABI, Maurício Azêdo. “A Associação Brasileira de Imprensa – disse ele – tem muito prazer e orgulho em dar as boas-vindas a todos para um ato de afirmação da cidadania na cidade do Rio de Janeiro sobre os preparativos para os chamados megaeventos programados para 2013, 2014 e 2016. Esta é a segunda manifestação que a ABI abriga e sedia ao longo dos últimos 30 dias. Em 31 de janeiro, tivemos aqui um ato público em defesa do Estádio de Atletismo Célio de Barros, o qual constituiu um ata de acusação das autoridades estaduais e municipais que subvertem a lógica ao pretender derrubar um centro da importância do Célio de Barros em nome da realização de um evento voltado exatamente para o atletismo e as práticas desportivas. Como também foi feito em relação ao Maracanã, que absorveu obras e recursos públicos superiores àqueles investidos na sua construção há mais de 60 anos, para o fausto e a orgia das empresas que têm sido favorecidas por decisões dos poderes públicos da Cidade e do Estado. Desejamos que este seja um encontro frutífero e ofereça perspectivas e avanços na luta de bens essenciais na qual estamos empenhados”. A primeira mesa de debates, com o tema “O custo da Copa e seu legado”, reuniu os Deputados estaduais Paulo Ramos (PDT), Marcelo Freixo (Psol), Clarissa Garotinho (PR) e os Vereadores Reimont (PT) e Renato Cinco (Psol). O jornalista Daniel Mazola, Conselheiro da ABI e membro da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da entidade, mediou o encontro. A respeito da realização dos megaeventos esportivos, o Vereador Renato Cinco (Psol) destacou as características de projeto desenvolvimentista fundado na lógica da exclusão social: “Ao debater o legado da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 é preciso lembrar que esses eventos estão submetidos à lógica da desigualdade social, na qual o poder público privilegia os avanços em regiões ocupadas pelas classes dominantes em detrimento da população pobre. A lógica da cidade-mercadoria, que pode ser exemplificada com o projeto para o Complexo do Maracanã, que inclui a demolição do Estádio Célio de Barros, do Parque Aquático Júlio Delamare, da Esco10
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A mulher exaltada em seu dia A Federação de Mulheres presta homenagem a lutadoras de vários campos, entre as quais a jornalista Maria Ignez Duque Estrada Bastos.
FOTOS: ALCYR CAVALCANTI
P OR I GOR W ALTZ
Os participantes do Seminário A Copa que Queremos, entre os quais indígenas despejados, denunciaram o mercantilismo das decisões da Copa 2014.
la Friedenreich e do Museu do Índio. Embora a Fifa já tenha admitido não ter interesse na demolição desses aparelhos, o pretexto apresentado para a sociedade é a Copa do Mundo. O objetivo é aumentar o potencial dos negócios para quem conquistar a concessão do Maracanã. O modelo olímpico foi escolhido para entregar à especulação imobiliária territórios ocupados por populações de baixa renda.” A segunda plenária do dia trouxe ao debate o destino das construções que fazem parte do Complexo do Maracanã. Mônica Lages do Amaral, atleta de 19 anos da Seleção Brasileira Juvenil de Saltos Ornamentais e freqüentadora do Júlio Delamare desde os quatro anos de idade, afirmou que o fechamento do estádio pode atrapalhar consideravelmente a preparação para a Rio 2016: “Todos julgam o desempenho dos atletas brasileiros, principalmente os de pequenos esportes, como saltos ornamentais, mas poucos conhecem a realidade do nosso dia-a-dia. Um ciclo olímpico não é feito em um ou dois anos, mas em dez anos. O verdadeiro foco deveria ser a preparação dos atletas.”
Mônica lembrou que os atletas seriam transferidos para o Parque Aquático Maria Lenk, na Barra da Tijuca, a mais de 25 quilômetros de distância, o que aumentaria os gastos com transporte e alimentação e diminuiria o tempo de descanso, pela demora de deslocamento. Na terceira e última mesa do evento, Gustavo Mehl, do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, rebateu argumentos utilizados para justificar a privatização do Maracanã. “Hoje há o argumento de que o Maracanã é deficitário e gera prejuízo aos cofres públicos. Mas desde 2009 já foram gastos quase R$ 1 milhão por dia em reformas. Já tentamos obter o balanço dos custos detalhados de manutenção do estádio, mas o Governo se recusa a apresentá-lo. Essa idéia de que o Maracanã dá prejuízo está na verdade de acordo com esse conceito de gastos absurdos desse projeto que não corresponde ao interesse público, mas sim ao investidor privado”. A síntese dos pronunciamentos dos debatedores pode ser lida na matéria “Copa do Mundo é tema de debate na ABI”, publicada na edição de fevereiro do ABI Online: www.abi.org.br (goo.gl/sJZki).
A organização não-governamental Federação de Mulheres do Estado do Rio de Janeiro-FEMulher, entidade criada em 2001 para promover a defesa dos direitos femininos, realizou em 8 de março na sede da ABI um ato em homenagem a mulheres que se destacaram em suas profissões. É a quarta vez que a Casa do Jornalista recebe o evento em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, que laureou 16 brasileiras de diferentes áreas. “Nossa idéia era prestigiar não apenas advogadas, jornalistas e sociólogas, mas também profissionais como vendedoras ambulantes, cabeleireiras e esteticistas. O objetivo é estimular todas a continuarem estudando e batalhando por mais espaço”, contou a advogada Olga Amélia Soares Telles, Presidente da FEMulher e também secretária do Movimento de Defesa da Economia Nacional-Modecon. Para o Presidente do Modecon, Lincoln de Abreu Penna, a importância de consagrar um dia especial às mulheres tem a ver com a defesa de lutas históricas contra uma das muitas desigualdades existentes no mundo, exatamente aquela que tem privilegiado os homens em detrimento das mulheres na vida econômica, social e política das sociedades. “Esperamos constituir num futuro muito breve uma sociedade na qual não exista mais a distinção de gêneros para efeito de identidade das pessoas. E muito menos leis para se regular as relações que devem ser partilhadas por todos os gêneros igualmente, sem distinção de sexo, raça, cultos e origens sociais e culturais”. Durante o encontro, que contou com a presença do Presidente da ABI, Maurício Azêdo, foram concedidos diplomas e medalhas de honra ao mérito e distribuídas rosas. Entre as contempladas estiveram a Secretária da Casa do Compositor Musical, Cidália Carrilho da Costa; a jornalista Maria Ignez Duque Estrada Bastos, indicada pela ABI; a apresentadora de tv Dilceny Mendonça; a socióloga Suelyemma Malato Franco; a ambulante Lúcia Maria Lopes; a depiladora Joquebede Rodrigues da Silva Duarte; e a preparadora física da terceira idade Vanessa Costa. O evento contou ainda com a presença da socióloga gaúcha Moema Toscano. Professora, ativista política e escritora, Moema participou na década de 1970 da segunda onda do movimento mundial de mulheres e foi fundadora do Centro da Mulher Brasileira-CMB. É autora dos livros, Mulher, Trabalho e Política – Caminhos Cruzados do feminismo, com Fanny Tabak, e A Revolução das Mulheres – Um Balanço do Feminismo no Brasil, em coautoria com Mirian Goldenberg.
IGOR WALTZ
PEDRO KIRILOS /AGENCIA O GLOBO
Na mesa, Marcelo Freixo, Caetano Veloso, Wagner Moura e Preta Gil. Acima, Dira Paes observa a conversa entre Wagner Moura e Freixo.
UNIÃO CONTRA MARCOS FELICIANO
“Não é só a destituição de um cargo, mas uma questão de reflexão” Líderes religiosos e artistas, entre os quais Caetano Veloso e Wagner Moura, expressaram vigoroso repúdio ao deputado racista que preside a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. IGOR WALTZ
P OR P AULO C HICO E C LÁUDIA S OUZA
Numa confirmação de sua natureza democrática e de espaço aberto para o debate de movimentos civis, a ABI foi palco de importante manifestação na noite do dia 25 de março. Cerca de 600 pessoas, muitas delas artistas, parlamentares e lideranças religiosas de vários segmentos, lotaram o Auditório Oscar Guanabarino em protesto contra a permanência do Deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Durante o evento foram recolhidas assinaturas para um abaixo-assinado, encaminhado ao Presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDBRN), solicitando a saída de Feliciano, autor de declarações públicas contra negros e homossexuais – posições que o descredenciam a ocupar o cargo de Presidente da Comissão. O evento teve grande repercussão na imprensa, graças a sua magnitude e à presença de personalidades de reconhecida atuação política na História do País, como o cantor e compositor Caetano Veloso, que agradeceu o convite para participar da manifestação e sublinhou a relevância do Legislativo para os avanços democráticos. “Estou muito honrado em participar deste ato. Gostaria de dizer que é muito óbvio o motivo que nos reúne. Não é possível que esta Comissão de Direitos Humanos do Congresso esteja sendo dirigida por um pastor que expressou nitidamente a intolerância, tanto de ordem sexual quanto de ordem racial. Precisamos estar unidos para defender o que significa termos um Congresso. O maior perigo que tudo isso traz é levar o povo brasileiro a desprezar o Legislativo, cri-
Jean Wyllys: Um dos objetivos da República é a promoção do bem de todos, sem discriminação.
ando uma má interpretação do que seja a democracia. Nós estarmos reunidos hoje para dizer que no Congresso não se pode fazer coisas absurdas e que nós não queremos viver sem um Congresso.” A mesa de honra do encontro foi formada por dezenas de pessoas, entre as quais Ivanir dos Santos, Presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa e do Centro de Articulação de População Marginalizadas-Ceap. “Este grupo representado pelo pastor Marcos Feliciano tem um projeto fascista para o Brasil. É necessário que a sociedade se mobilize. Não se trata de disputa religiosa e sim de preservação das liberdades. Por isso, nós, integrantes da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, nos unimos à organização deste ato. Gostarí-
amos de aproveitar o momento para informar que no próximo dia 7 de abril, às 10h, será realizada uma grande manifestação pelo combate à intolerância religiosa, com concentração no Posto 6, na Praia de Copacabana”, disse Carlos Ivanir. Também compondo a mesa, o jornalista Mario Augusto Jakobskind, Presidente da Comissão de Direitos Humanos da ABI, destacou a relevância da solenidade. “A Associação Brasileira de Imprensa se sente muito honrada em sediar um ato desta natureza. A Associação, que vai completar 105 anos, tem participado de acontecimentos históricos em defesa da liberdade de expressão, e, neste sentido, não poderia deixar de apoiar este ato. É lamentável que cerca de cinco décadas após o golpe de 1964 precisemos nos manifestar publicamente contra este tipo de arbítrio, que é a presença na Comissão de Direitos Humanos da Câmara desse personagem, não pela sua figura pessoal, mas por tudo o que representa.” Visão majoritária
Um dos principais oponentes de Feliciano no Congresso Nacional, o Deputado federal Jean Wyllys (PSOL), criticou os parâmetros que definem a atual agenda política no Congresso Nacional. “Gostaríamos de destituir Marcos Feliciano da Comissão e reequilibrar as proporções entre os partidos e as visões de mundo dentro da própria Comissão. Atualmente o PSC tem cinco vagas titulares e quatro suplências na Comissão dos Direitos Humanos. Somando com as vagas dos outros partidos que abrigam fundamentalistas religiosos, resulta um total de 11 deputados num cenário de 18 membros. Ou seja, uma visão majoritária de mundo é imposta por uma Comissão que sem-
pre se dedicou à defesa dos direitos das minorias. Um dos objetivos da República é a promoção do bem de todos, sem discriminação. É preciso que as minorias sejam respeitadas em suas diferenças e que o acesso ao direito seja igualitário. A presença de Marcos Feliciano, suas declarações públicas e sua atuação legislativa negam os objetivos da República. Todos nós que acreditamos no direito à vida, à liberdade e à felicidade temos de nos opor e lutar pela saída dele da Comissão.” O pastor presbiteriano Marcos Amaral falou sobre os desafios a serem conquistados na busca por uma sociedade plural. “Os evangélicos precisam entender que a face mais externa é o amor, e que a face mais visível do amor, através de Deus, é a justiça. Não há amor sem justiça. Se a igualdade e a verdade, filhas do amor, não conseguem se fazer ouvir, é preciso lançar mão da justiça. Os segmentos mais variados da sociedade brasileira estão reunidos aqui neste ato para que possamos clamar por igualdade e respeito. Todo aquele que, como o pastor Marcos Feliciano, evoca palavras contra tudo isso, não tem o Cristianismo como sua base. Precisamos lembra que a pluralidade é vital, e que os homossexuais são como todos nós, assim como os negros, brancos, artistas, policiais, mulheres, homens, nordestinos.” Participaram da solenidade personalidades da esfera política como os Deputado federal Alessandro Molon (PT) e o Deputado estadual Marcelo Freixo (Psol), um dos idealizadores do evento, além dos Deputados federais Chico Alencar (Psol) e Érika Kokay (PT), e artistas como Leandra Leal, Wagner Moura e Preta Gil. Fundadora da ong Movimento Humanos Direitos, a atriz Dira Paes falou sobre o seu trabalho como militante pelos direitos humanos e a proximidade com os problemas que atingem as populações menos favorecidas. “O que mais tem me tocado é como a expressão ‘minoria’ vem sendo tratada pela Comissão de Direitos Humanos. Os seres humanos excluídos são maioria, os pobres são maioria. O que está acontecendo na Comissão é um acinte ao povo brasileiro. Quero manifestar a minha indignação. Gostaria de entender como isso aconteceu na nossa frente. Não é só uma questão de destituição de cargo, mas uma questão de reflexão. Precisamos pensar nas razões que nos levaram a conceder o poder a essas pessoas, enquanto há outras com posturas claras sobre o assunto. Parece que ainda estamos vivendo na ditadura. Naquela época havia uma faceta, hoje eles vivem escondidos e quando a gente desperta eles já ocuparam os lugares”, disse, diante de uma platéia composta por representantes dos segmentos tradicionalmente desfavorecidas na sociedade brasileira – como negros, mulheres e indígenas. O ator Wagner Moura comemorou a mobilização pelos direitos humanos e ressaltou o papel das várias instâncias do poder. “Este encontro é absolutamente democrático. Ele é contra a homofobia, contra a discriminação racial, contra a intolerância religiosa, mas também a favor do Congresso, como ressaltou Caetano Veloso em seu discurso.”
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INÉDITO
Aventuras do jovem Carlos Lacerda, narradas por Evandro Lins e Silva Pouco mais de três anos após a morte do fundador da Tribuna da Imprensa, seu contemporâneo Evandro relatou em texto inédito que o Jornal da ABI agora publica, as lutas por ele travadas nos tempestuosos anos 1930. Em longa evocação contida numa carta que dirigiu em 5 de maio de 1980, o advogado Evandro Lins e Silva relatou episódios de que ambos participaram, ainda estudantes de Direito, nos tempestuosos anos 1930, tempo de arrebatados radicalismos. Contido numa carta ao filho do ex-Governador do Rio, o editor Sérgio Lacerda, o depoimento que o Jornal da ABI agora publica foi garimpado numa feira de antiguidades pelo jornalista Fichel Davit Chargel, membro do Conselho Deliberativo da ABI. A carta-depoimento é reproduzida a seguir, com intertítulos da Redação do Jornal da ABI. Sérgio Lacerda: Nos desentendimentos indesejados, nos enredos da política, nas atitudes irrefletidas, nos impulsos incontidos, nos imponderáveis da vida e, até, nas vaidades subjacentes, vê-se o fundo do quadro dos desencontros aparentemente inexplicáveis de amigos de tempos passados. Li com ternura o cartão com que você me mandou o livro de seu pai A Casa de Meu Avô, em edição especial, limitada e de muito bom gosto. O livro eu já havia lido, a casa eu conheci, por dentro, em tempos idos, lá estive muitas vezes, e agora me vieram em turbilhão velhas e saudosas recordações. Lembro as noites em que ficamos sem dormir, perambulando pelos cafés, pelos bares ou na zona boêmia, à espera do raiar do dia a fim de apanhar o trem para a estação do Comércio, que hoje tem o nome de seu bisavô. Lembro outras madrugadas para ir visitar seu pai, confinado em seu próprio país. O primeiro exílio foi uma fuga, pouco depois do levante comunista de 1935, seu pai procurado pela Polícia porque tinha sido orador freqüente dos comícios da Aliança Nacional Libertadora e, num deles, havia lido um manifesto de Luiz Carlos Prestes. Seu pai precisava esconder-se para não ser preso e saiu do Rio de forma rocambolesca, na mala do carro de um português, conhecido de seu tio Maurício, mala de fundo falso, para ocultar sacas de café que o português contrabandeava pela barreira. O segundo foi exílio forçado, foi confinamento mesmo, foi degredo imposto. Carlos Lacerda fora preso na Bahia quando acabava de descer o Rio São Francisco, com outros estudantes, fazendo campanha da candidatura de José Américo de Almeida à Presidência da República, candidatura frustrada pelo golpe do Estado Novo, de novembro de 1937. Lacerda só foi libertado da Delegacia de Ordem Política e Social sob condição de ir morar em Comércio. 12
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Lembro os companheiros mais assíduos das visitas a seu pai: Chagas Freitas, Alceu Marinho Rego, Adalberto João Pinheiro, Antônio Galbraith Gomes da Cruz (Tony). Lembro seu pai lendo, lendo muito, lendo com sofreguidão, com aquela capacidade fabulosa de ler depressa e de apreender, inventor espontâneo da leitura dinâmica, abastecendo-se para o futuro. Lembro os serões longos, as conversas intermináveis, as trocas de idéias, os passeios pelos campos, as mangas capitosas. Lembro o primo sem nome das páginas 132 – Moacyr Werneck de Castro – escrevendo o ensaio sobre a Revolução Praieira e nos inspirando o “fecho de ouro” para a defesa de um acusado de crime político no Tribunal de Segurança Nacional, ajuntamento de exceção, que só durou enquanto viveu a ditadura, Tribunal (oh! Profanação de uma legenda que presume isenção, imparcialidade, critério) criado inicialmente com a finalidade exclusiva de julgar a rebelião estúpida e inviável desencadeada pelos comunistas em 1935, tribunal que alongou suas garras até o fim da guerra (1945), quando morreu de inchação de erros, abusos e despropósitos, e foi sepultado, sem choro nem vela, o chão do sepulcro socado e pisado simbolicamente pela repulsa da Nação inteira. Em 1849, os implicados na Revolução Praieira protestaram contra o tribunal incompetente que os ia julgar e recusaram exercer a própria defesa, denunciando que “a mais insuportável tirania é a que se exerce em nome da lei e sob as fórmulas protetoras da Justiça”. Citei o episódio, tirado do livro de Moacyr Werneck de Castro, para mostrar que a atitude de alguns réus, repudiando o Tribunal de Exceção, encontrava raízes no precedente da Revolução de 1849. Nesse Tribunal de Segurança foi julgada muita gente, o grande Prefeito do Rio de Janeiro Pedro Ernesto ali condenado, e depois absolvido, de forma consagradora, pelo Supremo Tribunal Militar (Supremo era o nome de então, hoje é Superior), João Mangabeira, o jurista extraordinário, discípulo amado e biógrafo de Rui Barbosa, também condenado por voto de desempate do presidente, que já votara antes e votou segunda vez, contra o réu, e, depois, isento de pena e culpa pelo Tribunal Militar, que ensinou, de modo exemplar, a muito bacharel e civil, que quando há empate numa votação, em processo criminal, estabelecida a dúvida, e esta, pelo princípio milenar do in dubio pro reo, deve ser proclamada em favor do acusado. A dúvida é do colégio judiciário
e ao seu presidente compete apenas anunciá-la e declará-la, e não tomar partido em favor de uma das correntes. Esse é o chamado voto de Minerva. Seu avô Maurício Paiva de Lacerda também foi processado e julgado pelo Tribunal de Segurança, amargou muito tempo na cadeia, embora inocente. Conservo até hoje o memorial de sua defesa, feita pelo grande advogado Mário Bulhões Pedreira, que também foi o defensor de Pedro Ernesto, com a ressalva de que a apresentação da defesa não importava no reconhecimento da legitimidade do Tribunal de Segurança “dentro do sistema constitucional brasileiro”. Contra seu avô, como aos demais réus, se fez a cediça acusação de receber “ouro de Moscou”. Não era propriamente uma acusação, era uma “incontinência verbal, não reprimida pelo criticismo da Procuradoria”. Bulhões Pedreira realçou o caráter de seu avô: “o impoluto, o incorruptível homem público brasileiro, respeitado até hoje pela maledicência nacional, que contra ele nunca avançou uma reticência no terreno da probidade”. Não sei se seu pai conservou algum exemplar dessa defesa, da qual lhe mando uma cópia xerox para seu arquivo. Seu avô foi absolvido, resumindo-se a acusação a uma carta que ele escrevera a Luiz Carlos Prestes em torno da organização de uma “Frente Popular pela Liberdade”, carta encontrada nos arquivos do chefe do Partido Comunista. Bulhões Pedreira foi irônico na defesa e escreveu que “o fabuloso ouro de Moscou, se realmente fosse canalizado para o Brasil certo desviaria o curso dos acontecimentos políticos e avermelharia muitas convicções reacionárias...” Penso que V. se interessará pela leitura do folheto que lhe estou enviando. Recordo seu pai no Diário de Notícias, em 1930, trabalhando na “página de educação”, com Cecília Meireles, Correia Dias e Nóbrega da Cunha. Recordo a revista Rumo, que ele fazia inteirinha para a Casa do Estudante do Brasil, então presidida pela rainha dos estudantes, Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, essa extraordinária vocação de sonhadora e idealista, que pensava em ajudar todos os estudantes do Brasil, ainda que sem verbas e sem recursos. Ajudou muitos, quantos pôde, e ficou o resíduo da Casa onde ela queria abrigar todos os estudantes pobres de todos os rincões do País. Petulantes, combatíamos, de começo, a Casa do Estudante. Mas nos rendemos à força de persuasão, à boa-fé, à honestidade de objetivos de Ana Amélia. Quando Carlos recusou para Rumo qualquer ajuda da Casa do Estudante, a revista passou a sair do meu escritório, recentemente montado, um primeiro andar da Rua São José, em cima de uma queijaria, de onde tresandava, nos dias de verão, um mau cheiro quase insuportável. Isso foi aí pelos anos de 1933/1934. O talento de seu pai ia sendo exibido por onde ele passava, e o seu caminho diário era já então a Faculdade de Direito. Nasceu nessa época um líder estudantil, impar, extraordinário. Orador nato, jornalista de estilo inconfundível, agitador incomparável, personalidade marcante à primeira vista, fui testemunha muito próxima dos primeiros grandes
triunfos e sucessos pessoais de seu pai. O Clube da Reforma, de que ele fala em suas memórias, era o palco onde ele brilhava naquele tempo. O clube foi idealizado por Alceu Marinho Rego, irrequieto, dominador, imaginoso, espírito criador, cheio de ambições políticas, mas que morreu muito cedo, sem poder realizálas. Deixou livros, uma biografia de Nabuco, uma de Bolívar e um romance, escrito próximo do fim: A véspera de Deus. Ao seu lado, a estimulá-lo e, paradoxalmente, a controlá-lo, essa figura ainda hoje com o mesmo pensamento político daquele tempo, conservador-progressista, amigo de toda gente, coração-abrigo dos partidários de todas as ideologias, o irreverente, sarcástico e muito querido Miguel Lins. Os dois, Alceu e Miguel, tinham seguidores, não digo incondicionais, mas fiéis e dedicados, entre os quais Hugo Meira Lima, César Lucchetti, Mauro Barcelos e Célio Loureiro. Alceu era monarquista e idealizou o Clube da Reforma para que ele fosse o monarca. Nos estatutos instituiu o regime parlamentar, ficando ele como presidente, cercado por uma Câmara de Pares, denominação pomposa da diretoria, espécie de ministério, que deveria servir à sua vontade e aos seus desígnios. Miguel era o primeiro par, o primeiro ministro desse gabinete experimental de estudantes. O Clube foi um sucesso e entre os seus primeiros membros muitos não rezavam pela cartilha de Alceu, nem iam à missa de Miguel. Haroldo Mauro e Jaime Assis Almeida, estudantes de nível acima do estalão comum, e que depois viriam a ter merecido relevo na vida administrativa do País, constituíram o primeiro núcleo de oposição ao autoritarismo de Alceu. Chagas Freitas, que fez parte da primeira Câmara dos Pares, não estava muito afinado com os seus companheiros de diretoria. Foi quando surgiu Carlos Lacerda para engrossar as fileiras da oposição. Formouse um bloco de resistência, de fluida e não de nítida conotação esquerdista. Seu pai desempenhou o papel que ele iria aperfeiçoar e continuar pela vida afora. Terrível adversário, eloqüência demolidora, assumiu a liderança oposicionista, par droit de conquête. A mocidade do nosso tempo estava desorientada, sem informação, sabia muito pouco do que ia pelo mundo. Terminara a Primeira Guerra Mundial pouco antes. Dos escombros da catástrofe surgira o primeiro país comunista, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Em contrapartida, o fascismo dominava a Itália e o nazismo estava em plena ascensão e iria empolgar a Alemanha. Eram muito vagos os conhecimentos, da grande maioria, de quase totalidade dos estudantes, sobre a conjuntura política mundial. Foi exatamente nesse momento que seu pai fez um discurso que até hoje quem o assistiu não esquece. Pela representação exata dos nossos sentimentos, pela força de persuasão com que foi dito, pela beleza da forma, pela comunicação que estabeleceu com a platéia, não sei se um milhar ou mais de estudantes que se comprimiam no Instituto Nacional de Música. Era de vê-lo, belo exemplar de jovem,
“Nasceu nessa época um líder estudantil, ímpar, extraordinário. Orador nato, jornalista de estilo inconfundível, agitador incomparável, personalidade marcante à primeira vista.” tive a sensação de uma figura de ginete espantado a exprimir, na mímica e nas palavras, tudo o que sentíamos e não sabíamos mas queríamos dizer. O tema do discurso era a perplexidade da juventude diante daquele mundo ignorado, mocidade à deriva, à procura de rumos e caminhos, levantando as dúvidas, apontando os choques de idéias, o cruzamento das estradas sem sinais, sem indicadores, sem orientação. Mocidade sem bússola, sem norte, sem informação, sem lideranças. Mocidade que ia morrer em guerras inglórias, de um lado ou de outro, sem saber por quê. Mocidade a serviço de ambições e interesses que nem sabia discernir quais fossem. Conclamou os jovens a encontrar o caminho certo, do desprendimento, da generosidade, do sacrifício, ao lado dos fracos, dos sofredores, dos explorados, dos oprimidos, dos deserdados da sorte. O teatro vibrou, foi um delírio, o entusiasmo contaminou toda gente. Partimos para a derrubada do gabinete Miguel Lins. Crescera o prestígio de nossas hostes, Lacerda empolgara o eleitorado, dividira os partidários de Alceu Marinho Rego. Foi notável o discurso de Carlos apresentando o voto de desconfiança contra a Câmara dos Pares, verberando a prepotência do presidente, a subserviência do ministério (era uma experiência de regime parlamentar, no qual, como o da vida real republicana, entre 1961 e 1963, quem dominava era o presidente). Os abusos da direção do Clube foram dissecados com aquela extraordinária capacidade de Lacerda para ridicularizar e destruir os adversários, aquela vocação de demolidor dos inimigos, aquele diabólico talento acusatório, talento que se santificava quando na defesa de posições justas e legítimas, ou se pervertia no patrocínio de causas reacionárias, ao sabor dos ventos, dos furacões de uma paixão política invencível e crônica, que o subjugava como a paixão amorosa subjugava o passional nos seus impulsos e nas suas reações desesperadas. Miguel ausente, o hierático Alceu não teve flexibilidade para desviar o curso dos debates. Talvez a surpresa o tivesse aturdido e transtornado, pois nós próprios não imaginávamos que ele pusesse a moção a votos, como fez. É possível que tivesse havido de sua parte um erro de avaliação ou confiança demasiada na docilidade de seus seguidores, fiéis até então ao seu comando absoluto e impositivo. Por grande maioria a moção foi aprovada. Caiu o gabinete. Alceu, irritadíssimo, re-
nunciou. Chagas Freitas, na falta de Miguel Lins, assumiu a presidência, como lhe competia, segundo os Estatutos. Quando Miguel Lins chegou, a queda do gabinete e a renúncia de Alceu Marinho Rego já eram fatos consumados. Chagas Freitas convidou Miguel a assumir a direção dos trabalhos, mas este recusou e gritou, dentro do seu estilo: – Não presido assembléia de cretinos!... O ambiente pegou fogo, foi um tumulto geral. Orador fogoso e temperamental, o gaúcho Cid Correa Lopes gritava, esbaforido, exigindo a retratação de Miguel. Ninguém mais se entendeu, naquele dia. Eleições marcadas, por mais incrível que pareça houve dois empates. Da terceira vez fui eleito presidente do Clube da Reforma. A campanha, acirradíssima, deu a Carlos Lacerda oportunidade de antecipar para quem tivesse um pouco de percepção as qualidades de liderança que ele viria a exercer na vida pública do País. Estávamos em 1932 e o Clube recebeu convite de uma outra Associação de Estudantes, dirigida por Justino Vilela, para indicar quatro ou cinco representantes numa excursão a Belo Horizonte, presidida a delegação pelo professor e juiz Ari Franco (depois ministro do Supremo Tribunal Federal). A comitiva era bem numerosa, viajamos de trem, cerca de 50 estudantes, o Clube representado por Carlos Lacerda, Adalberto João Pinheiro, Tony Gomes da Cruz e por mim. Também ia, não sei se pelo Clube ou por outra Associação de Estudantes, o nosso velho amigo Carlos Araújo Lima. Durante a excursão – em 9 de julho de 1932 – rebentou a Revolução constitucionalista de São Paulo. Ficamos em Belo Horizonte na expectativa ansiosa da volta, as notícias muito escassas, as comunicações da época bastante precárias, boatos em penca. Afinal voltamos para o Rio em viagem feita debaixo de elevada tensão. Viveu pouco o Clube da Reforma. Naquele ano Alceu e eu nos formávamos. Passado o embate da queda da Câmara dos Pares, ficamos esperando o revide, a moção de desconfiança contra o novo gabinete. Houve tentativas frustradas, Carlos Lacerda sempre atuando no plenário em intervenções memoráveis. Alceu Marinho Rego tornou-se, depois, meu amigo fraternal, e Miguel Lins é até hoje um irmão a mais. As derrotas de Alceu
Houve, por essa época, um episódio em que seu pai foi parte magna. Tristão de Ataíde, essa extraordinária figura que o tempo apurou e redimiu de qualquer pecado que pudesse ter cometido, fazia segundo concurso para conquistar, dessa vez, a cátedra de “Introdução à Ciência do Direito”. Antes, tentara a cadeira de “Economia Política”, sem êxito, vitorioso o candidato Leônidas de Rezende, com uma tese laboriosamente escrita – “O Desenvolvimento do Capital” – na qual procurava casar o positivismo de Augusto Comte com o materialismo dialético de Carlos Marx. Do primeiro concurso tivemos notícia mais distante, sem acompanhá-lo, sem assistir às provas. Ouvimos os seus ecos, sobretudo quando se anunciou que Getú-
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INÉDITO AVENTURAS DO JOVEM CARLOS LACERDA, NARRADAS POR EVANDRO LINS E SILVA
lio Vargas, com poderes ditatoriais, pretendia nomear para a cátedra um terceiro candidato – Waldemar Falcão – (depois ministro do Trabalho e ministro do Supremo Tribunal Federal) que com ele tinha remoto parentesco. A congregação da Faculdade de Direito era inegavelmente liderada pelo professor Edgardo de Castro Rebelo, marxista e pessoa de notável cultura. Castro Rebelo pôs todo o seu empenho e o seu prestígio para derrotar Tristão de Ataíde nesse primeiro concurso. Fez parte da banca examinadora, fez proselitismo, lutou com o seu talento e sua influência para impedir a entrada de Tristão na Faculdade. As posições políticas naquele tempo eram radicais por excelência. Castro Rebelo foi acerbamente criticado pela atitude ostensiva que tomou contra Tristão, fruto quase exclusivo do passionalismo político da época. A vida mostrou que Tristão de Ataíde teria honrado a cátedra, com o seu saber, a sua dignidade e a sua formação humanística. Como honrou todos os lugares que ocupou e se tornou legítima expressão e glória de nossa cultura. Castro Rebelo passou a ser acusado pela imprensa de acolitar e apadrinhar o ingresso de professores esquerdistas na Faculdade. No segundo concurso, Castro quis livrar-se da acusação. É preciso dizer que o prestígio de Castro Rebelo provinha de seus méritos pessoais e sobretudo de sua dedicação ao magistério. Enquanto outros, conquistada a cátedra e renome que ela proporcionava, iam para os seus escritórios, com clientela garantida, ele dava tempo integral à Faculdade, preocupando-se com o seu funcionamento e interessando-se pela melhoria dos padrões de ensino. Era um professor querido dos colegas e dos alunos. O seu “esquerdismo” dava-lhe grande popularidade entre os estudantes e ele levava a sério, como ninguém, a sua atividade docente. A sua dedicação à Faculdade granjeava-lhe prestígio junto aos professores. No segundo concurso, Castro Rebelo fez tudo, no princípio, para impedir que qualquer candidato de conotação esquerdista pudesse triunfar. Eram muitos os concorrentes. Contou-se que antes de abertas as inscrições, Castro Rebelo procurou um antigo colega – o então Desembargador Álvaro Berford Guimarães – aluno premiado na Faculdade, e convidou-o a escrever tese e candidatar-se à cadeira. Berford, que fora aluno de eleição, perdera o estímulo pelos estudos, embora excelente juiz. A sua tese não justificava a fama anterior, não permitia que Castro lutasse por ele. Porque é verdade, também, que Castro Rebelo, faccioso embora, por política, tinha uma grande preocupação de não admitir o ingresso de professores menos preparados ou de nível intelectual incompatíveis com o magistério universitário. Berford, com a tese, foi eliminado das cogitações de Castro, que passou a proteger um outro candidato conservador, Alcides Bezerra, do Rio Grande do Norte, cuja tese lhe parecera razoável para merecer a láurea de professor de sua Faculdade de Direito. Aí é que interfere seu pai. Apesar da oposição de Castro Rebelo, Tristão de Ataíde era um sério candidato, pelo conjun14
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“Lacerda pôs-se em campo e articulou um movimento dos estudantes contra Tristão de Ataíde. Ninguém se lhe avantajava numa campanha desse tipo. A agitação sempre foi o seu forte. Em dois tempos ele aliciou um sem-número de colegas.” to de suas qualidades, pelo seu valor pessoal, pelo seu prestígio, e, também, pelo apoio que tinha de todas as correntes conservadoras, a Igreja à frente. Lacerda pôs-se em campo e articulou um movimento dos estudantes contra Tristão de Ataíde. Ninguém se lhe avantajava numa campanha desse tipo. A agitação sempre foi o seu forte. Em dois tempos ele aliciou um sem-número de colegas, fez discursos, não me lembro se escreveu artigos. De uma coisa me recordo, do plano terrível por ele imaginado e executado para o dia em que Tristão de Ataíde devia defender a sua tese. Lacerda a todos nós convocou para lotar a pequena sala da congregação, no prédio da Rua do Catete, onde a prova seria realizada, antes que os amigos e partidários de Tristão lá chegassem. O plano funcionou com perfeição. Os estudantes encheram a sala bem cedo, e, sob o comando de Lacerda, hostilizaram o candidato, vaiando-o e aplaudindo as objeções mais veementes dos examinadores, entre os quais recordo o paulista Spencer Vampré, o carioca Hahnemann Guimarães, o baiano Edgard Sanches, e, se não me engano, o pernambucano Joaquim Pimenta*. Tristão foi massacrado pelos examinadores, alguns até descorteses, e pela pressão e hostilidade dos estudantes que lotavam o recinto. A impressão que me ficou foi a de que Hermes Lima conquistou a cadeira contra os desejos iniciais de Castro Rebelo. Álvaro Berford decepcionou com a tese apresentada e Alcides Bezerra, a cujas provas não assisti, não teria sido feliz na defesa de tese e também na prova didática. Talentoso, brilhante, apoiado pela maioria dos estudantes, especialmente por Carlos Lacerda, Hermes Lima foi se impondo e, segundo depoimentos que ouvi, até de adversários seus, teria feito uma prova didática excelente, a que não estive presente. Ante o insucesso daqueles a quem quis ajudar, Castro Rebelo possivelmente passou a apoiar Hermes Lima, que, por formação filosófica, devia ser o candidato de seu coração. Ignoro o que demais possa ter ocorrido na intimidade do concurso, nos seus bastidores. A vida me tornou amigo de Hermes Lima. Andamos por estradas paralelas, ele professor e eu advogado. Chegamos qua-
se juntos ao Supremo Tribunal Federal, de onde juntos saímos por um ucasse do Governo Costa e Silva, com base no AI5. Outro ucasse havia atingido seu pai, dias antes de nós. Olhando para trás, acho que Hermes Lima merecia ser professor da Faculdade de Direito. Tristão de Ataíde também merecia. Carlos Lacerda penitenciou-se da atitude que tomou contra Tristão. Não me arrependo de ter torcido por Hermes Lima, porque ele representava, naquela época, as idéias mais afinadas com os nossos sentimentos. Mas lamento que Tristão de Ataíde não tenha realizado a sua aspiração de ser catedrático da hoje Faculdade Nacional de Direito. Poucas pessoas, neste País, dariam ao título a honra e o prestígio que a sua inteligência e a sua cultura lhe saberiam transmitir. Com a cátedra ou sem a cátedra, Tristão não deixou de ser um dos brasileiros mais ilustres de sua época. Hoje, com os seus oitenta e tantos anos é um dos pensadores mais lúcidos do Brasil e influencia positivamente muitos setores de nossa inteligência. Nunca tive aproximação com Tristão de Ataíde, o que hoje muito lamento, mas sempre o admirei por suas virtudes, por sua cultura, por sua dignidade diante da vida. É um exemplo de idealista que não se intimida diante da adversidade ou do perigo. Enquanto muitos se abateram com a dura reação que nos sufocou nos últimos quinze anos, Tristão não temeu nem vacilou. Foi uma voz que não cessou de clamar contra a violência, contra o arbítrio, contra toda sorte de abusos e violações dos direitos humanos. Se tomei partido naquele remoto concurso contra ele, por incitamento de seu pai, hoje estou do seu lado, de espírito e de coração. Meus pais, onde se encontrem, receberão com alegria esta revisão feita com humildade sobre o mestre Tristão de Ataíde. Mário Martins, o destemido
Mário Martins, que depois veio a elegerse vereador, deputado federal e senador da República, editava e dirigia em Friburgo, juntamente com Walter Ataíde (depois deputado federal) um jornal de cunho político acentuadamente oposicionista, isso em 1933 ou 1934. Sem temores, o jornal criticava severamente o prefeito e outras pessoas de projeção na sociedade local. Tendo recebido ameaças diversas, Mário pediu a nossa intervenção. Seu irmão médico, o saudoso e simpático Roberto Martins, arranjou um carro de praça para nos conduzir. Fomos à tarde, além do motorista e Roberto,
“O cidadão tirou dois revólveres da cintura. Mauro Barcellos, com uma bravura incomum, segurou-lhe os dois pulsos para impedir que ele atirasse e para desarmá-lo.”
Carlos Lacerda, Mauro Barcellos, Mozart de Almeida Rodrigues e eu. A estrada era de terra, péssima. Viajamos a noite quase toda, debaixo de chuva, o carro atolou inúmeras vezes, tínhamos de saltar a cada instante para empurrá-lo, chegamos a Friburgo quase de manhã, enlameados, fatigadíssimos. O ambiente estava muito tenso, Mário e Ataíde suspeitando de um ataque a qualquer momento. Feitas algumas gestões, Carlos e eu fomos falar ao prefeito. A conversa não podia ter sido mais cordial e o resultado excelente. Tudo se pacificou e a nossa missão parecia encerrada. Mário morava num hotel, de extensa varanda na frente. Aí estávamos conversando, despreocupados, acertando a hora do retorno, quando apareceu um cidadão, de rebenque em punho, que passou a agredir Walter Ataíde. Nós todos, ali presentes, impedimos que a agressão continuasse. Dominamos o agressor e o sentamos numa cadeira depois de tirar-lhe o rebenque da mão. Walter Ataíde saiu para chamar a Polícia. O agressor continuava imobilizado na cadeira, até que alegou nada ter contra nós, não havendo razão para permanecer agarrado e seguro, uma vez que o seu inimigo já não estava no local. Cometemos a imprudência de soltá-lo. De pé, o agressor perguntou: – Quem é Mário Martins? Mário, que não o conhecia pessoalmente, identificou-se: – Sou eu. O cidadão tirou dois revólveres da cintura. Mauro Barcellos, com uma bravura incomum, segurou-lhe os dois pulsos para impedir que ele atirasse e para desarmá-lo. Mesmo com as mãos postadas para baixo, pela ação de Mauro, o cidadão começou a atirar. Nos movimentos da luta, Mauro foi ferido na coxa e caiu ao chão, já dentro do salão de jantar. Mário Martins contornou a varanda, entrou no salão pela porta lateral e, com grande valentia, enfrentou o agressor, que acabou dominado e preso. Mário também foi ferido a bala, na perna. Carlos Lacerda foi com os feridos para o Hospital da Marinha, que atendeu a uma determinação do ministro de então para dispensar-lhes toda a assistência. Isso se deveu ao fato de que Mauro Barcellos, na época, era o repórter de O Globo junto ao Ministério da Marinha. A mim coube acompanhar o flagrante na Delegacia local, juntamente com Mozart de Almeida Rodrigues. Só então é que soubemos: – o autor dos tiros – Galeano das Neves – se considerava injuriado pelo jornal de Mário Martins e Walter Ataíde e adotou o modo primitivo e então muito em voga do desforço pessoal contra o autor da suposta ofensa. Ficamos em Friburgo mais tempo do que pretendíamos, até que Mauro Barcellos pudesse viajar de volta. Algum tempo depois, seu pai me contou que o autor dos tiros, político no Estado do Rio, tinha boas relações com seu avô, o velho Maurício Lacerda. Por isso, procurou-o para lamentar o sucedido, dizendo-lhe: – Se eu soubesse que naquele grupo estava um filho seu, garanto-lhe que não teria atirado. Ao que o velho Maurício retrucou: Quer dizer que o meu filho você pouparia, por ser meu filho, mas os filhos dos
outros Você mataria sem contemplação, porque não eram meus filhos... Ora, essa é boa!... Não aceito sua desculpa esfarrapada! Lacerda no júri
Carlos Lacerda estreou comigo no júri, em 1934, eu já formado e ele ainda estudante. Defendemos uma mulher – Castorina Ramos Teixeira – acusada de infanticídio. Quem nos pediu para fazer a defesa foi Maria Werneck de Castro, mulher de Luiz e cunhada de Moacyr Werneck de Castro. Ela acompanhara o processo todo, mas temia ou não gostaria de enfrentar o tribunal do júri. O julgamento foi sensacional. O promotor Carlos Sussekind de Mendonça, grande figura, filho de Lúcio de Mendonça, autor de muitos livros, veio a ser Procurador-Geral da Justiça quando seu pai foi Governador do Estado da Guanabara. O juiz foi Magarinos Torres, o grande amigo da instituição do júri. Sussekind surpreendeu a todos: pediu a absolvição da acusada pela perturbação dos sentidos e da inteligência, atendendo aos motivos sociais do crime. Pobre doméstica, mãe de outros filhos, não tinha como sustentar este outro, que vinha não desejado, como um estorvo, uma desgraça, predestinado à miséria, ao sofrimento, à fome, talvez à morte. Isso aliado ao puerpério autorizava o reconhecimento da dirimente. O crime se dera na privada da casa da patroa. Carlos fazia a sua estréia, eu já defendera vários casos e já tinha escritório montado. Resolvemos manter a tese que havíamos estudado: – ausência de prova de vida extra-uterina do feto. Não se podia afirmar, pelo exame de feto, se este nasceu morto ou com vida. Carlos botou abaixo a biblioteca de seu bisavô, trouxe para o Rio todos os tratados de Medicina Legal que lá encontrou, estudou-os, anotou-os, com aquele seu jeito nervoso, escreveu do lado, comentou... ainda hoje tenho esses tratados, que ele me deu, justificando que seriam mais úteis a mim do que a ele, que não iria seguir a especialidade da advocacia criminal: – Orfila, Casper, Brian der Chausé Seidl... Carlos brilhou. João Domingues de Oliveira, (pai do procurador Marcelo Domingos, velho e competente advogado no Júri) ficou admirado. Não podendo esperar o final, deixou um bilhete entusiasmado com os maiores elogios a seu pai. Há pouco tempo, defendendo outra mulher acusada de infanticídio, por sinal cometido, segundo a acusação, também na privada da casa da patroa, lembrei a estréia de seu pai e mostrei os livros por ele rabiscados. Neste último júri, a defesa era de uma mulher pobre – Leontina Pereira da Silva – e se fazia no dia da inauguração da nova sala do 2º Tribunal do Júri. Fui nomeado pelo juiz Martinho campos, deferência que muito me lisonjeou. No dia desse julgamento, nascia meu oitavo neto. Pude mostrar aos jurados que minha filha não precisava de minha ajuda naquele dia, tinha toda a assistência da família, assistência médica, casa de saúde. Quem precisava da minha ajuda era aquela mulher infeliz e desgraçada, que não tinha ninguém por si. Depois do julgamento fui altamente gratificado. Recebi uma carta de Celso Ja-
piassu, enviando-me um poema de Brecht por ele traduzido, –“A Infanticida Maria Farrar”, onde a empregada também é acusada de matar o filho no banheiro da casa da patroa. Fiquei arrepiado, lendo o poema do incomparável dramaturgo alemão. Se o conhecesse, não precisaria ter feito a defesa: bastaria declamá-lo diante dos jurados. Não teria havido defesa mais eloqüente. Por falar em livros de seu pai, lembro que ele, numas Memórias escritas para a revista Manchete, disse que eu havia ficado com quatro volumes das defesas de Berryer e não os devolvera. Com ele restava apenas o quinto volume. Não foi bem assim... Ele me deu quatro volumes anotados por sua letra, e estava lendo o último, que me daria quando acabasse a leitura. Não considerei como empréstimo e sim como presente a entrega dos quatro volumes. Seja como for, as nossas coleções estão desfalcadas... Vamos encontrar um meio de completá-las? Possuo de seu pai um livro que ele me deu para ler, em 1937, e que de fato nunca devolvi. Não sei como isso aconteceu, porque em muitas outras ocasiões emprestamos livros um ao outro e não houve reclamações... Esse livro é o Retour de l’U.R.S.S., de André Gide. O pequeno volume é precioso para compreender o Carlos Lacerda daquela época. Na primeira página, ele, depois de suas iniciais, põe a data da leitura: 22 de fevereiro de 1937. E antes, na página em branco, recomenda a leitura de Le Peuple au Pouvoir, de André Ribard, para quem quiser fazer uma opinião justa sobre o livro de Gide (vai uma xerox desse conselho, na letra inconfundível de seu pai). O livro inteiro está marcado assinalado e respondido. A cada crítica de Gide, vem a réplica de Carlos no seu tom veemente, polêmico e panfletário. Mandolhe cópias de algumas dessas observações, onde seu pai defendia a U.R.S.S., de modo inflamado e caloroso, contra as restrições feitas por André Gide aos métodos adotados pelo governo soviético no encaminhamento e solução de muitos problemas. A apaixonada defesa da União Soviética mostrará um Carlos diferente daquele que depois se colocou em posição diametralmente oposta? Não sei, tenho dúvida. O passional Carlos Lacerda obedeceu, nas duas posições, aos impulsos de seu temperamento ardoroso, parcial, combativo, inquieto. Seu pai teve uma atividade política pendular, andou de um extremo a outro, mas o pêndulo também caminhou pelo meio. Por paradoxal que pareça, ele era extremado, mesmo quando se colocava no centro. Por isso foi fazendo amigos, que freqüentemente se tornavam seus inimigos pela vida afora. Não à linguagem policial
Seu pai foi secretário da revista Observador Econômico quando retornou de seu segundo exílio em Comércio. Aí há um episódio muito polêmico, em que ele foi parte importante. A revista publicou uma reportagem, por ele escrita, sobre o Partido Comunista do Brasil. Ouvi de Carlos, certo dia, uma queixa amarga. O Observador havia encomendado aquela matéria à Embaixadora Odete de Carvalho e Souza, que se notabilizaria como
“Carlos mostrou-se indignado com a atitude da direção comunista e repeliu as insinuações e suspeitas levadas contra a reportagem. Devo dizer-lhe que li, na época, a discutida reportagem e não enxerguei nela nada que justificasse a queixa dos comunistas.” grande conhecedora do assunto e era uma anticomunista ferrenha. Depois de ler o trabalho, Carlos ponderou ao diretor da revista, Olímpio Guilherme, que o citado trabalho não estava à altura da responsabilidade e do prestígio do órgão, tendo oferecido um substitutivo. A reportagem da Embaixadora estaria vazada em linguagem policial, cheia de jargões anticomunistas e estaria equivocada em pontos essenciais da História do Partido Comunista. A autoria da reportagem estava causando a seu pai sérios aborrecimentos. Segundo o relato que ele fez, na ocasião os comunistas não gostaram da publicação, atribuindo-lhe revelações desnecessárias e prejudiciais a militantes ainda em liberdade. Por isso, ele fora convocado a um encontro com um dirigente comunista, em certo café do Méir, onde este lhe manifestara seu desagrado e lhe dera um exemplar do jornal Classe Operária onde estava publicada a sua expulsão do Partido. Carlos mostrou-se indignado com a atitude da direção comunista e repeliu as insinuações e suspeitas levadas contra a reportagem. Devo dizer-lhe que li, na época, a discutida reportagem e não enxerguei nela nada que justificasse a queixa dos comunistas. Carlos foi trabalhar no O Jornal, de Assis Chateaubriand, e me convidou para fazer a cabeça de seção de Foro. Estávamos em pleno Estado Novo, dura repressão, impossível a crítica ao governo e a seus apaniguados. Fiz durante mais de ano uma crônica assinada com o pseudônimo de “Lobão”. Para manter sigilo da autoria daquela nota que todos os dias encimava o noticiário do poder judiciário, a crônica era mandada diretamente a seu pai. Foi possível despistar muito tempo. Eu me fazia de velho e comentava fatos e julgamentos, em lugares diversos, no Supremo e em outros tribunais, na Ordem e no Instituto dos Advogados. A desorientação era maior porque a crônica relatava episódios a que eu não estivera presente, e dos quais fazia a reconstituição através de conversas de terceiros e de seus próprios participantes, que ignoravam estar falando com o “Lobão”... Até que um dia, o comentário era elogioso ao juiz
Elmano Cruz, que Chateaubriand detestava porque decidira contra ele um incidente no rumoroso processo em torno da posse guarda de sua filha. Foi um deus-nosacuda. Chateaubriand esbravejou e, afinal, soube que era eu o autor da crônica malsinada. Queria falar comigo para dar indicações sobre coisas e pessoas do foro. Recusei porque os meus tópicos forenses não podiam ficar subordinados às idiossincrasias do dono do jornal. A essa época, a filha de Chateaubriand estava sob guarda do Ministro Orozimbo Nonato. Indo ao Supremo, dias depois, esse grande sábio jurista tocou-me o ombro e me chamou: “Lobão”. Procurei em vão contestar que fosse eu o cronista. Aproximou-se o Ministro Aníbal Freire e me chamou, também, pelo pseudônimo. E os outros ministros, por seu lado, revelaram a descoberta do segredo. Do dia seguinte em diante não mais saiu o “Lobão” no O Jornal. Seu pai foi gentilíssimo na ocasião, insistindo para que eu ficasse, mas concordou, afinal, com as minhas ponderações e com os meus escrúpulos em continuar a manter a crônica do já então descoberto “Lobão”. O erro do golpe
Continuamos bons amigos, veio o fim da Guerra, em 1945, a queda de Getúlio Vargas, a redemocratização do País, a convocação da Constituinte, a eleição do Presidente Eurico Dutra. Aí começa o nosso afastamento. É uma longa estória que não tem lugar nesta carta. Seu pai foi o centro, em certos momentos dramáticos, dos maiores acontecimentos políticos do País, foi vereador, deputado, governador, foi o líder incontestável do movimento que terminou por derrubar o Governo João Goulart. Paradoxalmente criou as condições que o iriam alijar da pretendida Presidência da República e o iriam marginalizar da vida pública do País. Na voragem dos acontecimentos muitos foram tragados, ele próprio, talvez por um erro de avaliação, que tentou corrigir, quando já era tarde. Agora, não adiantam lamúrias, nem lamentações. Nunca fui político militante, mas a avalanche também nos arrastou quando estávamos no Supremo Tribunal Federal. Eliminemos os “pontos de atrito”, as divergências. O que passou, passou. A perda de amigos
Fico-lhe grato pela delicadeza de seu gesto que tantas recordações trouxe à tona. Até hoje lamento ter perdido alguns amigos de mocidade, e seu pai foi um deles. E lamento ainda mais porque não fizemos as pazes antes de sua morte. Faço-as agora com o filho. Receba o abraço afetuoso. (a) Evandro Lins e Silva. P.S. Esta carta foi iniciada logo que recebi o livro. Ficou quase pronta, mas só agora a terminei. Dada a demora, vacilei em remetê-la. Mas me lembrei das xerox, que devem ter interesse para seu arquivo. Estou mandando cópia às pessoas mencionadas nesta carta. *Joaquim Pimenta era cearense, nascido no Município de Tauá.
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DEPOIMENTO
Ana Arruda Callado
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JOSÉ DUAYER
ascida numa família numerosa, mas muito unida, Ana Arruda considera que teve muita sorte na vida. Seus pais eram pessoas à frente de seu tempo; viveu uma infância rodeada de livros, liberdade e muitos irmãos e irmãs. Ela foi a 12ª de uma turma de quinze. Quando sua família saiu do Recife para se estabelecer no Rio de Janeiro, morou numa bela casa no Jardim Botânico, que era o seu “quintal”. Depois, o pai comprou uma fazenda em Araruama, onde parte da família passou a viver. Aluna exemplar de Matemática, escolheu fazer Jornalismo para desgosto do pai e de sua professora. E se apaixonou definitivamente pela profissão quando entrou pela primeira vez em uma oficina de jornal. Mais exatamente na Última Hora, de Samuel Wainer. Ficou encantada! Era esse o ambiente onde ela queria trabalhar. Formou-se em Jornalismo, mas recebeu uma dica do então Chefe de Reportagem do Jornal do Brasil, Wilson Figueiredo, logo em sua primeira semana de trabalho: “Não conta que você fez curso de Jornalismo, porque vão rir de você. Aqui ninguém fez curso de Jornalismo”. Trabalhou no principal jornal do País no período que considera a grande fase do JB até hoje. “A gente acreditava que estava trabalhando para informar a população, não para agradar o chefe, nem o patrão”. Feminista, sempre lutou para que as mulheres sejam cidadãs de primeira classe igual aos homens. Foi a primeira mulher a ser Chefe de Reportagem de um grande jornal. Participou também de um projeto inspirador: o jornal-escola O Sol, de Reynaldo Jardim. Começou a namorar o escritor Antônio Callado – a grande paixão de sua vida – em tempos tenebrosos. Foi presa e humilhada no Doi-Codi. Julgada na época da ditadura, foi absolvida num Jornalista premiada, processo kafkiano. Nos últimos anos tem se dedicado primeira mulher a ter um a escrever biografias – que ela chacargo de chefia numa ma de perfis – de mulheres de destaque na História do Brasil. Agora Redação, ela confessa: finaliza seu mais recente projeto – “Eu ainda sou apaixonada a fotobiografia de Antônio Callado – e sonha, um dia, em voltar a mopelo Antônio Callado”. rar em Araruama, num sítio que ela comprou junto com o irmão. “Nós E NTREVISTA A temos patos, marrecos, três vaquiF RANCISCO U CHA nhas e meu irmão faz queijo”. É um E P AULO C HICO retorno à infância. Ela merece. Ana Arruda Callado recebeu a equipe do Jornal da ABI em sua residência no final de fevereiro. A seguir o resultado desse papo.
Jornal da ABI – Em que momento você descobriu sua vocação ou o interesse pelo jornalismo? Ana Arruda Callado – Eu não sei se já sabia que ia fazer essa escolha, mas quando eu tinha uns treze ou catorze anos fiz um jornalzinho para a minha família chamado Repórter 1907 – que era o número do apartamento em que nós morávamos na Rua Senador Vergueiro, 19º andar, 1907. Eu não fazia sozinha não. Na realidade, eu inventei, a iniciativa era minha. Era escrito à mão, naturalmente, e só tinha um exemplar. E era praticamente uma gozação com os irmãos, pois nós éramos uma família tão grande que dava para fazer um jornal. (risos) Jornal da ABI – Quantos irmãos? Ana Arruda – Meus pais tiveram e criaram quinze filhos. Eu sou a décima-segunda. De forma que fazíamos esse jornal, Repórter 1907. E depois, aí sim, eu comecei a pensar em fazer jornal. Eu era da Ação Católica. Então, havia aqueles encontros que foram muito importantes num dado momento no Brasil. Nós éramos intelectuais da Igreja. E Cícero Sandroni fazia um jornalzinho chamado Roteiro da Juventude. Toda vez que o encontro na Academia, ele fala: “Ana, é muita pretensão fazer um jornal chamado Roteiro da Juventude”. Ele era o diretor e eu fui ser a repórter. Aí, certo dia o Cícero me pediu para ir acompanhar a finalização do jornal, que estava na oficina da Última Hora. Ele não podia ir e lá fui eu para a Última Hora. Olha... eu senti uma alegria! Era para fazer a revisão final; para dizer “ok, pode rodar”! Gente! Naquele dia eu tive uma alegria! Ver uma oficina de jornal. Ver o jornal rodando. Naquele dia eu vi mais operários, mais gráficos do que jornalistas... mas, de qualquer maneira, era gente que fazia jornal! Nesse dia, quando voltei para casa, disse: “É esse o ambiente que eu quero!” Jornal da ABI – Que idade você tinha nessa época? Ana Arruda – Eu não tinha entrado na faculdade. Entrei na faculdade com 17 anos, então tinha uns quinze, dezesseis… E aí foi. Entrei para a faculdade, fui fazer Jornalismo. E duas pessoas quase morreram de desgosto: o meu pai e minha professora de Matemática. Jornal da ABI – Como seus pais receberam essa notícia? Afinal não havia muitas mulheres na profissão... Ana Arruda – É, não havia mulher. Mas tinha uma coisa, eu era boa aluna, fiz científico porque minha paixão era Ciências Exatas, tanto que eu era aluna exemplar em Matemática e Física. Quando eu disse: “Vou fazer Jornalismo”, meu pai ficou muito irritado! Minha mãe aceitava, minha mãe compreendia tudo, mas meu pai… meu pai era um
democrata, mas ele me disse assim: “Essa menina! Jornalista é para quem não dá pra mais nada!” (risos) Já a minha professora de Matemática chamava-se Dona Eleonora. E ela ficou muito zangada! “Tendo tanto talento matemático, que loucura é essa de jornalismo?” Eu disse: “Dona Eleonora, lamento, mas eu não quero ser matemática, não quero ser engenheira, não quero ser professora de Matemática, eu quero ser jorna-lis-ta!” Jornal da ABI – Apesar desses apelos, você nunca titubeou? Ana Arruda – Não… Eu sempre fiz o que queria. É curioso isso, minhas irmãs mais velhas se queixavam porque meus pais implicavam com o namoro, essas coisas... Mas, comigo, não lembro de repressão por parte de meus pais. Quando eles chegaram na décima segunda, já estavam cansados… (risos) Então, entrei na faculdade, e lá tive um crescimento enorme. Eu sempre digo que o curso não valia muita coisa, mas tinha professores muito interessantes! E a faculdade me formou, principalmente, para eu poder entrar numa Redação de jornal. Porque, como eu era da Ação Católica e de uma família enorme, tinha sido uma menina muito mimada, protegida, que não podia cair no mundo! Mas... jornalista cai no mundo, né? Então a faculdade foi muito boa pra isso. Eram três anos só, mas enquanto eu cursava Jornalismo ajudava minha família, porque era muita gente e o salário do meu pai não dava. Então eu dava aula de Matemática para os alunos do ginásio (risos). E aí, me formei, e disse: “E agora? Eu quero trabalhar em jornal. O que é que eu vou fazer?” Encontro outra vez Cícero Sandroni na rua e ele me pergunta como estou, e eu disse: “Acabei a faculdade. E agora? Como é que eu começo a trabalhar em jornal?” Ele disse: “Ana, o Jornal do Brasil começou uma reforma fantástica e eu acho que está precisando de gente. Vai lá e procura o Wilson Figueiredo.” Isso era 1957, por aí. Cheguei lá e vi a cara espantada dele! Wilson era Chefe de Reportagem, e eu disse: “Sr. Wilson Figueiredo, meu nome é Ana Arruda, eu fiz curso de jornalismo...” E ele ficou me olhando, me olhando, e disse: “Um momentinho…” E foi lá no ‘aquário’ onde o Odylo ficava. O Odylo Costa Filho. Aí eu vejo os dois falando, mas não dava para ouvir nada. O Wilson volta e diz: “Olha, tudo bem, você começa um estágio na segunda-feira.” Anos depois, lembrando isso, o Wilson me disse: “Ana, nós ficamos estarrecidos porque você tinha cara de doze anos, não de vinte!” (risos) E eu tinha dezenove anos. Fiz vinte já trabalhando no jornal. Como é que pode, querer ser jornalista? Não tinha o tipo, o perfil… Aí eu comecei. Eu já contei essa história, mas deixa eu contar outra vez. Cheguei em casa naquele dia e disse
“Consegui! Vou começar no jornal na segunda-feira!”. E a Cida, uma das minhas irmãs mais velhas, falou: “Você é uma boba, sabia? Você sabe que dia é segunda-feira?” Era primeiro de abril! E a Cida continuou: “Eles vão morrer de rir da sua cara quando você chegar lá”. Aí eu fiquei com dúvida: “Eu vou ou não vou? Ah, eu vou, eu vou! Se eles rirem de mim, tudo bem!” Cheguei lá e comecei a trabalhar. Era pra valer! Jornal da ABI – Mas eles te contrataram assim? Sem ver um texto seu? Não viram nada? Ana Arruda – Nada. Eu ia começar fazendo estágio. E era o mês de abril, pouco antes da Semana Santa. O Wilson já gostou porque, como eu participava da Ação Católica, eu entendia de religião, e nenhum repórter entendia. Então as matérias sobre o lavapés, sobre missa de Aleluia, eu entendia. E a Condessa era muito católica. Então eu ainda tive essa sorte, eu caí logo no gosto da Condessa porque ela descobriu que eu sabia a diferença entre bispo e arcebispo, que eu sabia o que era novena, o que era missa... (risos) Até hoje as pessoas não sabem! Eu leio no jornal: “uma missa em homenagem...”. Missa não é homenagem! Outro dia li assim: “é a missa do batizado”. Como é que é? Ou é batizado ou é missa! No jornal, às vezes saem coisas assim. Hoje ninguém mais quer saber de religião, imagina. Mas, enfim, aí eu comecei a fazer umas materinhas e o Odylo gostou muito, logo de cara, porque ele descobriu que eu sabia escrever, no sentido de que eu sabia a Língua Portuguesa. Então, ele ficou muito bem impressionado. Tem uma história que já virou folclore. Um dia o contínuo disse que o Odylo estava me chamando no “aquário”. Cheguei lá e tinha uma entourage, uns três ou quatro caras que eram aqueles repórteres antigos, todos senhores, cheios de sorrisos. Aí o Odylo me perguntou: “O que é que você já leu do Machado de Assis?” Eu parei e pensei: “vou parecer pretensiosa, mas não vou mentir não”. E respondi: “Tudo! Eu li a obra completa do Machado de Assis.” Aí eles começaram a rir e eu fiquei vermelha. “Será que ele pensou que era mentira?” Então o Odylo falou: “Eu não disse? Ela põe todas as vírgulas no lugar. Tinha que ser leitora do Machado de Assis!”. E ali eu já comecei com prestígio dentro do jornal, entendeu? Eu tinha lido. Meu pai tinha a coleção completa. Ele era aquele engenheiro que lia, e lia para mim sempre... Jornal da ABI – Qual era a formação de seus pais? Ana Arruda – Eu tive uma sorte na vida – tive não, eu tenho. Embora tenham me acontecido coisas muito ruins, como a todo mundo, eu sempre digo que tive uma sorte grande na vida. E a primeira delas foi essa:
“Dona Eleonora, lamento, mas eu não quero ser matemática, não quero ser engenheira, não quero ser professora de Matemática, eu quero ser jor-na-lis-ta!” a família na qual eu nasci. Minha mãe era uma santa criatura que estudou francês, piano, pintura, aquelas coisas todas. Ela bem moreninha e meu pai bem branquelo. Meu pai a chamava inclusive de “minha preta”. Não era negra, não, mas como ele era muito, muito branco, dava aquele contraste. O pai dela era um médico de roça – meu avô –, um homem inteligentíssimo. Eu convivi pouquíssimo com ele... Ele tinha uma única filha mulher e três filhos homens, e mandou essa filha para o Rio de Janeiro, evidentemente para casa de parentes, para estudar pintura com o Antônio Parreiras, e piano com Magdalena Tagliaferro. Era 1918 ou 19. Então, ela teve uma educação finérrima... Jornal da ABI – Uma proposta muito ousada para a época, não? Ana Arruda – Muito. Ela nunca fez isso profissionalmente, e aí ela conheceu meu pai e em 1920 eles se casaram. Meu pai era jogador de futebol. Quer dizer, era estudante de Engenharia e jogava futebol no Náutico. Jornal da ABI – Náutico? Ana Arruda – É. Do Recife. Pernambuco. Todo mundo era Náutico! Jornal da ABI – A família inteira? Os quinze? Ana Arruda – Até hoje! Mas meu pai era tão bom jogador que o Doutor Barbosa Lima, com quem eu trabalhei na ABI e que era uma das minhas paixões – Eu tenho paixão pelo Doutor Barbosa até hoje –, dizia: “Eu era um jogador medíocre... craque era o teu pai!”. Eles jogaram juntos e remaram juntos lá em Pernambuco. Mas meu pai se formou, largou o futebol porque foi cuidar da vida, e aí se casaram. Ele foi ser engenheiro de estrada de ferro no interior. Ele era um homem curiosíssimo, curiosíssimo. Queria ser fazendeiro. Tinha essa coisa, o pai dele tinha terras... Mas ele nunca teve dinheiro para ter uma fazenda. Sustentou quinze filhos! Não podia ter dinheiro para ser fazendeiro, mas tentou. Teve uma fazenda em Pernambuco, na Alagoa de Baixo. Chama-se Sertânia, hoje. Vendeu quando a família se mudou para o Rio e comprou uma em Araruama. A de Alagoa de Baixo eu nem me lembro como era, mas a de Araruama eu acompanhei bem... Jornal da ABI – Mas ele tinha talento para o negócio? Ele sabia gerenciar uma fazenda?
Ana Arruda – Ele tentou, inclusive mais tarde, fez um curso numa fábrica para produzir queijo (risos)… O professor de lá via o meu pai com aquele macacão como se fosse um caipirão, e ficava muito espantado porque ele sabia fazer contas. (risos) Ele jamais disse que era engenheiro. Bom, mas mesmo como engenheiro, ele era um engenheiro diferente, porque começou a se especializar em cooperativismo. Meu pai foi diretor do Serviço de Cooperativismo em Pernambuco no tempo de Agamenon Magalhães, e veio para o Rio por isso. Porque, quando o Ministro da Agricultura era o Apolônio Sales, que era muito amigo dele – pernambucano também –, ele nomeou meu pai Chefe do Departamento de Economia Rural, uma coisa assim, mas era para cuidar de cooperativas. E aí nós nos mudamos e veio outra sorte fantástica. Eu tinha sete anos, fiz oito anos no Rio... É que, antes de tomar a decisão de mudar para o Rio, ele viajava para lá, fazia as coisas no Ministério e voltava. E o Apolônio insistia para que meu pai ficasse em definitivo no Rio. E meu pai falou: “Apolônio, eu não posso. Eu tenho uma filharada!” Não eram mais quinze, porque o mais velho, Fernando, já estava no Rio de Janeiro, na Escola da Aeronáutica. Os quinze nunca moraram todos juntos na mesma casa... Meu pai disse: “Não posso, não tenho dinheiro. Como vou ter uma casa no Rio de Janeiro? É impossível!”. Então o Apolônio disse: “Não tem importância, casa eu lhe arranjo”. E sabe qual foi a casa? Vocês conhecem bem o Jardim Botânico? Ali, na entrada principal, tem uma casa meio estilo Tudor com uma varandinha e que agora é a Casa de Pacheco Leão, é o Museu Casa Pacheco Leão. Aquela foi a minha primeira casa no Rio de Janeiro! Eu achava que o Jardim Botânico era meu quintal! (risos) E era! Minha mãe ficava desesperada porque eu e meu irmão menor, o Zé – que ainda hoje é o meu grande companheiro –, íamos passear no jardim e os guardas traziam cajá... O cajá caía e era proibido pegar, mas os guardas pegavam, enchiam aquela palha das palmeiras e levavam pra gente! Era jambo, cajá... Então era uma vida gostosa. Mas fiquei ali muito pouco tempo. Infelizmente. A casa era muito boa, mas durou pouco porque acabou o Governo e meu pai saiu do Ministério. Ele até adoeceu, foi para a fazenda em Araruama que ele tinha comprado havia pouco tempo e a família se dividiu. Os que ainda não estavam no ginásio ficaram na fazenda. Ficaram as caçulas, esse meu irmão, eu e duas que estavam se preparando para o exame de admissão. Os mais velhos ficaram no apartamento onde até hoje uma das irmãs mora, na Senador Vergueiro. É um apartamento grande, com quatro quartos, mas mesmo assim a gente tinha camabeliche, era aquela multidão! E aí, na
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DEPOIMENTO ANA ARRUDA CALLADO Ana Arruda no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Embaixo, um dos livros de sua infância: A Horta do Tomé. Na outra página, foto de sua mãe, Eloisa Araujo.
Jornal da ABI – Que livros o seu pai lhe trazia? O que você lia na fazenda? Ana Arruda – Ah, tudo. Os livros que meu pai levava… A Horta do Tomé e A Leitaria da Rosalina eu me lembro bem porque neles havia elementos que me lembravam a fazenda. Mas me
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JOSÉ DUAYER
fazenda, meu pai contratou uma professora. E minha mãe tinha muito cuidado com ela... e chamava: “Eunice, venha tomar seu leite…” Tudo bem, minha mãe era uma pessoa doce, mas depois eu soube porque ela foi chamada para dar aula pra gente: Eunice tinha ficado tuberculosa e muito fraquinha e o médico recomendou que ela vivesse num ambiente saudável. Então nós tivemos muita sorte... Ela ficou um ano e meio ou dois com a gente, preparou Zita e Maria da Graça para o exame de admissão, e eu ficava só assistindo às aulas. Aí, quando Eunice voltou para Pernambuco, ela disse para minha mãe: “Olha, a Mirta está pronta para fazer o exame de admissão” – minha família me chama de Mirta –, “mas ela não pode fazer porque não tem idade”. Então a minha mãe ficou fazendo, durante dois anos, apenas uma supervisão. Olha que vida boa! Duas ou três vezes na semana minha mãe fazia um ditado, passava contas, pedia para somar umas frações e meu pai, toda semana, trazia um livro para mim. Eu lendo, lendo, lendo e nessa boa vida de escola na fazenda, sem ser obrigada todo dia. Então eu vim fazer o exame de admissão no Colégio Santo Amaro, colégio de freiras beneditinas, colégio careta, mas razoável. Não era nenhum colégio fino, mas era um colégio bom. Ficava em Botafogo, na Rua General Santoro... acho que ainda existe. E eu fiz, passei. A minha irmã Marta, que se casou logo que eu mudei para o Rio, era química e era ótima! Marta foi minha segunda mãe. Quando minha mãe não estava, era Marta quem tomava conta da gente e ela cuidava para que a gente estudasse. Eu me lembro, em vésperas de exame, que ela me apertou e me ajudou muito. Porque tem isso, em família muito grande os mais velhos vão ajudando. Eu não sei como minha mãe arrumava tempo com essa filharada toda! Quando saímos da fazenda para o Rio ela fez um enxoval para mim. Minha mãe fazia tudo e eu achava que eu era uma protegida dela! Mas, conversando depois com minhas irmãs, todas elas tinham essa mesma sensação. Até hoje é um mistério para mim: como a minha mãe arranjava tempo para fazer tudo? Bom, no tal do ginásio, eu aprendi a rezar em latim (risos). Até hoje eu gosto muito... uma das coisas que eu sou saudosista e reacionária é missa em português. Eu acho um horror.
levou A Vida de Joana d’Arc, do Érico Veríssimo... não esqueço. Ah, esse livro me deixava louca... chorava de noite porque a Joana d’Arc tinha morrido queimada. É… Graciliano Ramos, tem um livro que se chama A Terra dos Meninos Pelados, que foi uma das minhas paixões. Nunca mais ouvi falar nesse livro. Eu me lembro de que eu tinha também A Vida de São Francisco de Assis todinho ilustrado, que eu perdi num ônibus quando eu vim para o Rio. Havia também os que eu não deveria ler. A tal estante! Tinha o Machado inteiro. Aí eu pegava o livro e, como não tinha certeza se iam me deixar ler ou não, ia para um quarto que tinha uma janelinha que dava pra um te-
lhado. E eu ficava lá no telhado e ninguém me achava. Um dia, uma de minhas irmãs estava de férias e descobriu. “Você está com o olho inchado...”. Eu estava lendo um romance, chorando porque sempre lia e chorava com aqueles livros. E ela me pegou: “Tava lendo escondida!” Mas eu lia qualquer coisa. Fiquei preguiçosa pra ler agora. Jornal da ABI – Você tinha contato com jornal e revistas nessa época? Ana Arruda – Tinha! O Cruzeiro! Lembro que eu lia Raquel de Queiroz na última página de O Cruzeiro. Isso foi no tempo do ginásio e lia O Cruzeiro, lia jornal... Jornal da ABI – Lia O Tico-Tico? Ana Arruda – Não, engraçado, nunca fui leitora de O Tico-Tico... Mas havia uma revista chamada Edição Maravilhosa, que publicava os grandes romances em quadrinhos! Esses eu chorava! Eu chorei tanto lendo Eurico, o Presbítero. É Alexandre Herculano, clássico mesmo! Eu gostava porque eram histórias interessantes. Tinha O Guarani… eu li muito quadrinhos. Jornal da ABI – Só os clássicos? Ana Arruda – Não, não… Eu também lia o Tocha-Humana, o Príncipe Submarino... No tempo da guerra eram esses os heróis. Eles lutavam contra os japoneses e alemães! Propaganda de guerra. E a guerra chegou muito próxima de mim, porque nós viemos para
o Rio em 1945. Meu irmão Mário não veio com a gente. Mário era uma paixão pra mim. Era um irmão que me carregava nas costas para subir no jambeiro, para andar de automóvel... E Mário estava convocado para ir para a guerra. Não foi, porque a guerra acabou. Ele estava num negócio chamado “Aldeia” que tinha em Pernambuco, que era um terror. Era para se preparar para embarcar. Eu me lembro que fiquei desesperada. Nessa época nós ainda estávamos em Pernambuco e meu pai vivia nesse vai-e-vem Rio–Recife. Eu me lembro que ele e o pai de minha mãe ficavam jogando gamão, mas quando começava o Repórter Esso eles paravam logo! Eu não entendia nada, mas sabia que era uma coisa importante. Em Recife havia blecaute e tocava uma sirene. Então você tinha que botar pano preto nas janelas, não podia acender luz, não podia acender fósforo. A guerra acabou logo depois que chegamos ao Rio, que foi quando o meu irmão foi convocado. Jornal da ABI – Vamos voltar para o teu ingresso no JB. Já havia mulher na Redação ou você foi a primeira. Quem você encontrou lá? Ana Arruda – Já havia. De repórter havia a Sílvia Donato, só, que eu saiba. Mas na Internacional tinha a Clecy Ribeiro. Ela sabia inglês e tinha aquele negócio de traduzir telegrama… A Sílvia fazia mais Polícia. Repórter de Geral, só eu. Agora, havia umas mulheres que eram as “noticiaristas”... tinha isso no jornal. Eram funcionárias do Ministério que
traziam as notícias do Ministério para o jornal no fim do dia. Eram senhoras de mais idade. Mas na Redação havia um preconceito contra a Sílvia, porque ela era uma pessoa mais grosseira, mais bruta no trato, falava palavrão e escrevia muito errado. Eu fiquei muito amiga da Sílvia por isso. Todas as matérias dela, antes do copidesque, passavam por mim. Tanto que, quando ela ganhou o Prêmio Esso me agradeceu no discurso. Ela foi maravilhosa, uma pessoa adorável. Mas eu não sei por que as pessoas tinham esse desprezo pela Sílvia. É horrível dizer isso. Depois até quiseram fazer uma homenagem e me pediram um texto, e eu contei como ela foi solidária comigo. Jornal da ABI – Mas havia jornalistas homens que não escreviam tão bem... Ana Arruda – Sim, nossa, havia aqueles caras, principalmente da Polícia! Engraçado, essa Editoria era um local onde realmente o pessoal só sabia trazer a notícia e às vezes se envolvia demais com a notícia. Jornal da ABI – Será que isso acontecia porque era nessa Editoria que normalmente o jornalista, o repórter, iniciava sua carreira num jornal? Ana Arruda – Talvez, talvez… Porque havia muita gente de alto nível intelectual lá na Redação! Pessoas que tinham feito Direito, outras faculdades... Mas, Jornalismo... O Wilson até me recomendou logo na primeira semana: “Ana, não conta
que você fez curso de Jornalismo, não, porque vão rir de você. Aqui ninguém fez curso de Jornalismo”. (risos) É engraçado isso, né?
Jornal da ABI – Sem querer abrir uma polêmica de gênero, você acha que o ingresso das mulheres na Redação beneficiou o jornalismo? O que é que trouxe de bom, e, eventualmente, o que trouxe de ruim? Ana Arruda – Eu acho que o que trouxe de bom foi uma visão nova durante algum tempo. Você falou em questão de gênero, mas é o seguinte: eu sempre fui feminista nas minhas atitudes, mas nunca fui feminista de carteirinha, sempre tive essa diferença. Mas, de uns anos pra cá, tenho ficado meio desgostosa. Fiz uma palestra certa vez em Resende, num festival que houve lá, e o título era: De Rainha do Lar à Cachorra: Ganhamos Alguma Coisa? Ganhamos alguma coisa? Eu quero trabalhar pela igualdade das mulheres para que elas sejam cidadãs de primeira classe igual aos homens, mas nunca para dar o direito de ser cafajeste. Essa não é minha luta. E voltando ao
Jornal da ABI – Mulheres com comportamento quase que de moleque... Ana Arruda – De cafajeste… Jornal da ABI – Na realidade se vulgarizaram... Ana Arruda – Exatamente. E eu acho que não é por aí. Acho que o respeito é chegar à Presidência da República, não é? Por exemplo, falaram muito quando foi eleita a primeira mulher Presidente do Supremo Tribunal Federal… Já começou tarde! Metade dos desembargadores deveria ser mulher, e não é! Metade das sócias da Confederação Nacional das Indústrias deveria ser mulher. Não é. Estão muito longe disso. E deputados? Que é que tem aí? Pouquíssimas. E senadoras? E governadoras? Então, isso é que é uma luta! Agora lutar para poder ser cafajeste? Uma mulher se gabando de fazer uma porção de coisas que, antigamente quando o homem fazia a gente dizia: “Ô, esse cara aí é um cafajeste!”. E tem um programa com aquela moça, Betty Lago, que diz assim: “Vamos fazer Terapia de Casais”. E perguntam: “Quantas vezes vocês transaram por semana no primeiro ano do casamento?” O que é isso?! O que alguém tem que ver com isso? Há uma falta de privacidade e de certo respeito às pessoas. Jornal da ABI – Pelo jeito, não foi só a mulher que se vulgarizou. Foi a sociedade... Ana Arruda – Totalmente! Mas o que acho é que as mulheres esqueceram pelo que elas estavam batalhando, entendeu? E aí, quando eu dei aquele título terrível De Rainha do Lar a Cachorra é porque elas voltaram a querer ser objeto sexual! E isso era parte da luta da gente. A gente queria ser parceira do homem, e não objeto sexual. Elas voltaram agora a querer ser objeto. Mulher-Melancia, MulherMorango, pelo amor de Deus! Há coisa mais grosseira do que isso? Jornal da ABI – Onde é que o caminho se perdeu? Você suspeita de algo? Ana Arruda – Não, não. Eu acho que as coisas demoram muito a mudar e as mulheres eram oprimidas, claro, sempre foram. Mas a opressão tem sua vantagem também. As feministas vão me matar. A mulher oprimida sempre está propondo, dando um jeitinho, seduzindo, em vez de
enfrentar e conversar. E aí, conquistava muitas coisas. Então eu acho que essa atitude, um pouco de prostituta – para engrossar mesmo! – fica no subconsciente: São mulheres que nunca brigaram, nunca se separaram, e achavam ótimo não ter que trabalhar porque o marido ia trazer o dinheiro para casa. Ele até podia ter outras mulheres fora do casamento... não tem importância! Desde que trouxesse o dinheiro para casa. Isso foi a sociedade brasileira durante séculos. E isso ainda não mudou totalmente. Isso me incomoda muito! Batalhamos tanto para isso? Jornal da ABI – É um pouco por isso que suas biografias são dedicadas às mulheres? Ana Arruda – Só faço biografias de mulheres porque acho que as mulheres estão muito ausentes da História do Brasil. Jornal da ABI – Mas exatamente, como se deu a escolha de cada uma delas? E por quê? Ana Arruda – Olha… A primeira foi por acaso. Toda vez que eu via o Doutor Barbosa fora da ABI estava aquela ‘mulherzinha’ ao lado daquele homem grande. Ele era muito atlético, tinha sido remador, né? E aquela mulher baixinha, pequenininha, pendurada no braço dele... Eu me perguntava: “Quem será essa mulher? Para ser casada com ele não deve ser uma qualquer.” Como eu tinha trabalhado com Fernando Barbosa Lima, filho deles, fui até ele e falei: “Fernando, tenho muita curiosidade sobre sua mãe. Você acha que ela me daria uma entrevista?” E ele respondeu: “Ih, Ana, ela vai adorar! Ela adora contar histórias, contar a vida dela.
Vai lá.” E eu pensei: “Tem história aí”. Mas eu fiquei em dúvida: “Fazer um livro? Não sei fazer livro!” E aí eu tenho que falar aqui que a Denilde Leitão – não sei se vocês conhecem – me ajudou muito, porque me incentivou: “Faz o livro, Ana!”. Ela foi a fotógrafa e me incentivou muito. Jornal da ABI – Uma biografia é uma grande reportagem? Ana Arruda – É isso que eu digo. Toda vez que falam: “Você que é uma escritora…” Eu digo: “Calma. Eu sou uma jornalista que escreve perfis em forma de livro”. É perfil. Inclusive faço questão de dizer que as minhas biografias são perfis. Uma biografia mesmo é uma coisa impossível. Ninguém faz uma biografia… O Ruy Castro tenta. Veja só: “A mãe de Carmem Miranda foi ao mercado, comprou não sei quê, não sei quê e não sei quê. Depois chegou em casa, encheu o tanque de água e jogou a roupa.” Estou brincando... mas ele chega a essas minúcias. Eu acho que ninguém, nunca, vai conseguir retratar uma vida inteira. Nem a própria pessoa. Na autobiografia também. A gente não se lembra desses detalhes… Vai esquecer da verdade, vai falsear, vai inventar. Uma vez eu escrevi um texto em que eu citava exatamente a impossibilidade de se fazer uma biografia, citei o exemplo do Sartre. Ele escreveu a biografia do Gustave Flaubert. São dois volumes, desse tamanho, é uma coisa monstruosa, 900 páginas ou coisa assim. E muita gente achou ruim isso. “Sartre está doido! Diminuiu as aulas, diminuiu os cursos de Filosofia para poder escrever a biografia de Flaubert?” Aí foram perguntar a ele: “Por que você escreveu essa biografia?” E
REPRODUÇÃO
Jornal da ABI – Você também sofreu algum preconceito? Ana Arruda – Não, não. Eu era bem educada, ficava vermelha quando falavam palavrão na minha frente... Mas, não! Eu era muito paparicada. Eu sempre digo que eu senti preconceito fora, pessoas que eu ia entrevistar, em viagem. Aí havia. “Pô. O que é isso? Jornalista o quê? Mulher andando sozinha, viajando sozinha...”. Eu escutei isso muitas vezes. Agora, do pessoal de Redação não. Os fotógrafos quando saíam comigo viravam gentlemen! Podiam não ser, mas comigo eram. E os motoristas? Eu tenho uma saudade daqueles motoristas do JB! Eles eram muito, muito protetores… Eu me lembro de um episódio: quando Gagárin visitou o Brasil, o Governador era Carlos Lacerda. Ele desembarcou no Galeão e havia uma multidão com cartazes, faixas, para recebê-lo. Na hora em que o Gagárin ia saindo, ia passar pela multidão, veio a ordem da Aeronáutica para evacuar toda a multidão. E fizeram isso com violência! Hoje pouca gente lembra disso ou sabe disso. Eles fizeram uma fileira com fuzil assim na mão, e andaram como se fosse um arrastão empurrando as pessoas. E fiquei tão horrorizada quando vi aquilo que eu quis chegar perto e falar com um deles! Foi quando eu senti duas mãos na minha cintura, eu era magrinha: “Ué! Você tá maluca?!”. Era o “seu” Luis, nunca me esqueço, um motorista parrudo. Ele me segurou e falou: “Você está louca? Esses caras te matam e ainda passam em cima!”. E eles estavam mesmo querendo passar em cima da multidão, uma coisa horrorosa. Fizeram isso para que o Gagárin não visse a manifestação a favor dele.
jornal, eu acho que durante um tempo as mulheres foram meio civilizadoras das Redações. Hoje, não sei não. Mas isso é um fenômeno social, entende? Por exemplo: eu moro em cima de um botequim, e durante o Carnaval, às sextas, aos sábados, fica uma gritaria aí embaixo que é uma loucura. E o que eu ouço de palavrão gritado pelas moças, de grosserias e coisas violentas mesmo! Aí, os rapazes caem na gargalhada…
ele: “Porque eu achei que era a pessoa mais diferente de mim que podia existir e tentei descobrir”. E aí perguntaram: “E descobriu?” E ele disse: “Mais ou menos”. (risos) Sartre, né? Monstro… Bom, isso é pra dizer que não dá para fazer biografia e o que eu quero é mostrar a inserção dessas mulheres na História do Brasil. E a dona Maria José, mulher do Doutor Barbosa Lima, foi a primeira. E eu peguei gosto. Vi que ela era uma menina mimada, rica, de São Paulo, aprendeu a dirigir aos 16 anos... Eu até fiquei na dúvida se ela não foi a mulher que tirou a primeira carteira de motorista, mas pode ter sido. Era atrevidíssima, mas não queria nunca casar. E o pai ficava meio inquieto porque uma moça com vinte anos e não casar, naquela época, era uma coisa inquietante para um pai. E quando ela encontrou o Barbosa, os dois se encantaram um pelo outro, e o Barbosa foi pedir a mão dela em casamento. Ele já era Redator-Chefe do Jornal do Brasil. Ele tinha muitos irmãos, cuidava deles, tanto que não pôde casar cedo. Mas quando ele a pediu em casamento o pai não queria aceitar. “Eu quero lhe dizer uma coisa: minha filha não sabe cozinhar, nunca lavou uma roupa na vida, não tem o menor interesse por casa…” E o Barbosa respondeu: “Mas doutor, se eu quisesse uma empregada, seria fácil arranjar, pois eu trabalho num jornal que tem uma quantidade enorme de anúncios de empregadas” (risos), os Classificados do JB. Mas a dona Maria José, então, começou a cuidar da vida dele, como ela me disse: “Minha filha, o Alexandre [Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho] não sabia nem quanto ganhava! Quando era deputado, ele chegava em casa, me dava o dinheiro que ganhava e eu botava no banco e usava.” Então ela fez a casa que eles moraram por muito tempo... Ele só viu a casa quando já estava pronta e os livros dele já estavam todos lá! Quando ele foi Governador de Pernambuco, ela fez um trabalho social... Está bom. Toda mulher de Governador faz trabalho social. Mas com ela foi outra história! Ela fez um chá das senhoras pernambucanas... eu sou pernambucana e sei o que é Pernambuco. Nossa Senhora! Grã-fino em Pernambuco é grã-fino mesmo! Não quer saber do povo de jeito nenhum. Até hoje há aquela mentalidade do usineiro. Aí ela disse: “Olha eu queria falar pra vocês porque estive ontem no hospital e vi crianças morrendo de fome”. Aí, uma delas disse: “Ai, dona Maria José, a senhora me desculpe, mas você veio de São Paulo e não entende a realidade daqui. Não tem ninguém morrendo de fome em Pernambuco”. Ela disse: “Eu vi. O doutor Nelson Chaves me mostrou. Ele fez uma autópsia num menininho que tinha morrido e o intestino estava seco, colado, porque não comia.” Ela ficou horrorizada e começou um trabalho.
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DEPOIMENTO ANA ARRUDA CALLADO
Umas poucas aceitaram, e foi, foi. Quando ela saiu de Pernambuco, três anos depois, havia 140 voluntárias levando mamadeira para aqueles casebres, havia assistência médica, assistência dentária. Então ela transformou a mentalidade de uma porção de mulheres em Pernambuco. Jornal da ABI – Eu imagino que a escolha de todas as personagens se deu obviamente pelo interesse de sua história e de uma certa admiração. Agora, qual é o perigo, para quem escreve, de não cair no texto meramente elogioso? De o jornalista não perder o senso crítico sobre a personagem? Ana Arruda – Bela pergunta. Quando fiz o perfil da Adalgiza Nery, busquei mais a questão de mulher mesmo, porque ela teve dois maridos tão diferentes que eu me perguntava: “Como é que uma mulher se casa com dois homens tão diferentes?” O primeiro foi Ismael Nery, pintor, poeta. Depois ela se casa com Lourival Fontes. O que é isso?! E depois vai trabalhar na Última Hora de Samuel Wainer. Aí eu fiz uma pesquisa, terminei o livro, que foi publicado naquela coleção Perfis do Rio, da Prefeitura. O Wilson Coutinho, que trabalhava na Prefeitura e era o encarregado, leu e me disse: “Pô, Ana estou tão triste.” E eu pensei: “Ai meu Deus, ele achou o livro uma porcaria”. E ele me perguntou: “Você não gostou da Adalgiza?” Eu disse: “Não. Mas achei ela formidável! Está no livro”. Ele disse: “Não, não, o livro é ótimo! Mas a gente sente que você não gostou dela”. E eu disse: “Como é que eu vou gostar de uma mulher que foi uma mãe péssima e que se casou com Lourival por interesse? Eu não posso gostar!”. Ele disse: “Ah, mas eu é que devia ter escrito” (risos) É porque ele era louco por ela, apaixonado pela Adalgiza. E o Samuel Wainer disse assim sobre ela: “Adalgiza era uma mulher má, quase perversa”. Ele a conhecia bem. Isso está no livro. Sobre a Maria Martins foi curioso, porque não a escolhi. A Editora me pediu. Mas foi depois de eu ter ido a uma exposição dela sobre o surrealismo no Centro Cultural Banco do Brasil que tinha uma sala só dela. Quando entrei, disse: “O que é isso? Como é que eu vou falar dessa mulher?” Achei, de longe, a melhor e a mais importante artista que havia naquela exposição! E olha que tinha francês à beça. Fiquei doida pelas esculturas dela. Uns três meses depois, eu recebo um telefonema da dona da Editora Gryphus, Gisela, que me disse: “Ana, nós temos que fazer a biografia da Maria Martins e eu perguntei ao Wilson Figueiredo quem poderia fazer, e ele indicou você”. E eu: “Você está brincando? Acabei de ficar deslumbrada com a obra dela!”. Jornal da ABI – E a Darcy Vargas? Ana Arruda – Quando fiz a Darcy Vargas é que eu reparei que esta-
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va rodeando Getúlio Vargas de várias formas. Eu fiz a Lygia Lessa Bastos, que era inteiramente contra Getúlio, era udenista. Então, eu disse: “Vou direto com a Darcy” – ou Dárci, como a família a chama. Fiz a Darcy Vargas e depois resolvi fazer a Berta Ribeiro. Estou fazendo, já devia ter acabado. Mas a Berta tem uma coisa importante. Ela mostra outras faces de Getúlio, porque nunca ninguém explicou Getúlio! Dizem que agora tem uma biografia ótima dele. Eu preciso ler. Com a Berta eu tenho a oportunidade de mostrar o antisemitismo no Governo Vargas, que eu não havia tocado em meus outros livros. Não só porque eu conheci Berta e gostava dela. Eu gostava muito da Darcy também. Ela era uma coisa maravilhosa, com todos os defeitos do mundo, mas maravilhosa! E a Berta era aquela pessoa muito discreta. Jornal da ABI – Você tem previsão de quando vai ficar pronto o livro sobre a Berta? Você está preparando-o há mais ou menos um ano, não é? Ana Arruda – Mas eu parei, praticamente, por dois motivos: o primeiro, porque havia uma controvérsia sobre a morte dela e eu precisei destrinchar isso. E a segunda porque... eu estou fazendo outra coisa, a fotobiografia do Callado. Jornal da ABI – Numa entrevista você falou que Samuel Wainer era uma peste... Ana Arruda – Eu disse isso? Eu falo demais… (risos) O Samuel Wainer era um jornalista completo! O que ele fez pela Última Hora, o que ele fotografou… Não! Os méritos do Samuel jornalista ninguém pode tirar! Mas, por exemplo, quando a Última Hora estava com problemas com a ditadura... o Paulo Silveira, o Moacyr Werneck estavam ralando, podendo ir pra cadeia, e segurando o jornal, ele estava com a Danuza Leão tomando champanhe em Paris, né?! Para mim essa pessoa não é uma boa pessoa. Mas talvez uma pessoa tão empreendedora – como se diz agora – tenha que ser um pouco malvada, não é? Não sei. Mas ele não era uma boa pessoa, na minha avaliação, como a Adalgiza, que eu acho inteligente, corajosa, foi uma mulher com qualidades fantásticas, mas não era uma boa pessoa. O filho dela foi para o Colégio Joana d’Arc, na França, sem saber falar uma palavra em francês. No inverno, né? E ela viajando com Lourival em Washington! O que é que você acha? Agora… foi maravilhosa. Quando ela fazia a coluna na Última Hora... a coragem daquela mulher que desafiava Deus e todo mundo. Jornal da ABI – Mas, antes de ter essa coluna na Última Hora, ela estava numa dificuldade grande. Intercederam por ela junto ao Samuel…
Ana Arruda – Samuel ajudou. Ela pediu ajuda a Samuel porque conhecia muito o Palácio do Catete por causa do Lourival. Samuel deu uma boa ajuda que funcionou porque a coluna dela era tão lida que Adalgiza foi eleita Deputada sem fazer uma campanha. Não fez um comício… nada. Só avisou na coluna que era candidata. Jornal da ABI – A gente já falou do seu início no JB, mas quanto tempo você ficou lá e como era trabalhar nesse jornal? Ana Arruda – Era um jornal tão fantástico! Era o melhor jornal deste País, não tenho a menor dúvida. Estadão, Folha, O Globo... não havia comparação. Naquele período que trabalhei, de 1958 a 1962, havia certo romantismo. Nós achávamos que éramos donos do jornal. A gente tinha muito orgulho e isso não existe mais. Os jornais viraram empresas mesmo. Empresa onde você chega e só falta bater o ponto. Não, a gente, não. A gente acreditava! Quando eu digo a gente é a maioria mesmo. Você vê o saudosismo que há quando junta muita gente do JB, a conversa é essa. A gente acreditava que estava trabalhando para informar a população, não para agradar o chefe, nem o patrão. Era um outro tipo de jornalismo, heróico… Tanto que a gente ficava até o final do fechamento. Os repórteres ficavam. Havia o copidesque que era outra instituição fantástica, nossa! E que faz tanta falta. E isso dá em erro. Erro de informação, erro de palavras, erro… o que sai hoje em jornal dá vontade de chorar. Era outra mentalidade. Era um jornal bem feito, bem escrito, quer dizer, tinha realmente todas as qualidades. E quando o Jânio de Freitas assumiu, para mim foi a grande fase do jornal até hoje! Dines que me perdoe, mas a grande fase foi a de Jânio de Freitas, que não era sozinho. Ele tinha o Araújo Neto, o Carlos Lemos... até o pessoal brincava dizendo que eram “os cubanos” porque eles tinham ido a Cuba cobrir a entrada de Fidel Castro em Havana. Foram muitos jornalistas brasileiros e quando voltaram assumiram o controle do jornal. Mas a realidade é que era a maluquice de Jânio, porque é doido de pedra, que fez aquela maravilha de jornal! Depois que ele saiu, é claro que o Dines transformou aquilo em uma empresa, foi para isso que ele foi contratado. Depois de algum tempo ele me chamou de volta para o jornal para fazer um caderno infantil. O projeto era ótimo e as pessoas elogiavam. Eu lancei o Miguel Paiva, com o Capitão Eco. Tinha o Guidacci fazendo uma tirinha. Falavam para eu botar algumas tiras estrangeiras e eu disse: “Só admito Hagar, o Horrível, a única estrangeira que pode entrar porque era inteligente.” Era uma briga constante com a publicidade, porque não conseguiam vender. É que a publicidade começou a interferir em assuntos da Redação. E o ca-
“Eu tinha que ser violenta porque sendo amável não impunha respeito. Que coisa, né? Claro que é cruel ver. Mas eles achavam um desaforo ser comandados por uma mulher.” derno infantil foi acabado pela publicidade. A Condessa Pereira Carneiro, numa reunião de fim de ano, me disse: “Ana, eu gosto tanto do caderno infantil!”. E eu já tinha sido avisada pelo Luiz Alberto Bahia que ia acabar, ia fechar. Então eu falei para ela: “Mas eu tenho a impressão de que o caderno não vai durar muito não”. E ela: “Ah! O que é isso? Eu adoro! Vai continuar sim!”. Quinze dias depois o caderno acabou. Tadinha, não mandava nadinha, mas ela era formidável e foi ela que fez aquele jornal. Foi posta para escanteio pelo genro… Jornal da ABI – Fale sobre os dois prêmios que você recebeu, as pautas dos meninos de rua e reforma agrária, problemas ainda tão amargos nos dias de hoje. Ana Arruda – A da reforma agrária foi o Prêmio Herbert Moses, que até me valeu uma homenagem muito cômica, que é a seguinte. Tinha uma senhora chamada Adalzira Bittencourt, que fez o Dicionário Bio-bibliográfico de Mulheres Ilustres, Notáveis e Intelectuais do Brasil. Aí quando saiu esse dicionário me disseram: “Ana, você está no dicionário.” Eu disse: “Como, estou no dicionário? Eu sou repórter”. Aí fui ler o verbete e estava lá: “jornalista... etc... e ganhou um beijo de Herbert Moses ao receber o prêmio”. (risos) Foi o beijo de Herbert Moses, que era da ABI, que me fez entrar nesse dicionário. Jornal da ABI – Esses são dois temas de forte cunho social. Isso também era uma coisa que te mobilizava naquela época? Ana Arruda – Muito. Aí eu estava bem politizada, e a reforma me angustiava muito, tanto que o título da primeira matéria era “Todo mundo fala, mas ninguém faz nada”. Agora estão dizendo que não adianta fazer, pois os assentamentos são péssimos. Pô, dá condição de trabalho, meu Deus do céu! Quer dizer, o problema é eterno. E então, claro que o jornal me deu muito isso. Viajar, ver gente, o jornal me deu uma noção do Brasil, do que era o Brasil, do que precisava mudar. Jornal da ABI – Mas não mudou nada... Ana Arruda – Não mudou nada! Reforma agrária, meninos de rua, corrupção… Jornal da ABI – São matérias que foram escritas há mais de 50 anos e ainda são atuais!
Ana Arruda – Pois é. Hoje, se você me perguntar o que eu penso do Brasil, estou pessimista. Outro dia estava num jantar com algumas colegas, inclusive a Isa Guerra, que é uma velha companheira de batalha, e ela me falou: “Ah, Ana! O Brasil melhorou muito. O pessoal lá do interior da Paraíba está comendo”. E eu: “Sei. Não tem mais pão velho”. E a Isa: “Não, você também está exagerando”. Eu sei que está comendo, por quê? Porque tem a Bolsa Família. Mas tem emprego lá? As pessoas estão se fixando na terra? Não! Tem colégio lá? O colégio é bom? E a Isa me falou: “Não, mas você também está muito exigente”. Era isso o que eu pensava que a gente ia ver no fim da década de 1950! Jornal da ABI – Ser jornalista também é aprender a lidar com frustrações, como essa, por exemplo? Ana Arruda – Não sei. Eu senti isso quando voltei a ser repórter. Quando acabou o caderno infantil fui chamada pela direção do jornal e disseram: “Você faz o que você quiser aqui. Você escolhe”. Aí tive um momento de burrice (risos) e disse assim: “Ah, eu quero voltar pra reportagem!”. Porque eu tinha sido muito feliz na época que eu era repórter. Mas você não volta atrás. É uma burrice voltar atrás. Jornal da ABI – Mas isso era voltar atrás? Ana Arruda – Era. Porque quando eu olhava a pauta, eu via: “Ai, eu já fiz isso. Já li isso. Já escrevi isso. Já li esse jornal”. E depois… o jornal estava cheio de gente muito boa. Lembro que eu quis fazer uma matéria sobre o Ajuricaba, o herói dos manauara. E aí não aprovaram a pauta. Falaram que isso não era matéria de jornal! “Que coisa antiga!” Mas o editor do Caderno B soube da pauta e me encomendou. E saiu. Puxa! O editor que recusou essa matéria ficou enfurecido! Queria me demitir! Jornal da ABI – Quem era? Ana Arruda – Ah... não lembro! Pessoas assim eu prefiro não lembrar. Ele falou que eu era insubordinada, que o jornal é um só! Ué! Eu sou empregada do jornal, o editor do Caderno B me pede a matéria e eu não posso fazer? Ele ficou indignado! Mas então eu achei que nessa época o jornal começava sua decadência. Eram os anos 1970. Claro que durante a ditadura houve aqueles momentos gloriosos, as coisas que sempre se conta, a morte do Allende, aquela página maravilhosa… Tudo bem. Não estou dizendo que o jornal caiu, não. Porque um jornal para cair… demora! Mas… É muito triste não ter Jornal do Brasil, é muito triste. E já estava ruim mesmo… E quando passou para tablóide, aí morreu, né? Ainda existe on-line? Enfim, eu acho que o Brasil é muito frustrante. Darcy Ribeiro tem uma frase célebre que eu
JOSÉ DUAYER
adoro citar, que é: “Fracassei em tudo o que fiz. Quis uma escola para os índios, e fracassei. Quis um País mais justo, e fracassei. Quis fundar uma universidade de qualidade e fracassei. Mas meus fracassos são minhas vitórias. Não gostaria de estar no lugar dos vencedores”. É muito bom! Isso me consola, mas como eu não sou Darcy não fiz tantas coisas maravilhosas, não me consola totalmente. Estou frustrada. Jornal da ABI – Como foi ser a primeira mulher a ocupar um cargo de chefia numa Redação? Ana Arruda – Fui Chefe de Reportagem, sim, mas não de Redação. O Zuenir Ventura era o Chefe de Redação do Diário Carioca. Foi engraçado e foi complicado. Eu tinha o apoio do Doutor Prudente (Prudente de Moraes, neto), que era o Diretor de Redação, representava o dono do jornal, Horácio de Carvalho, e de Zuenir. Mas, engraçado, um apoio muito bom para mim foi o de Amilcar de Castro. Amilcar tinha feito a reforma gráfica do jornal. Um dia Zuenir falou para mim com a maior calma: “Vou passar o fim de semana em São Paulo; você assume”. E eu: “Mas, Zuenir, você está doido? Eu nunca fechei um jornal, eu nunca dirigi uma Redação” E ele: “Menina, o que é isso, você sabe!”. E quando chegou na hora de fechar o Amilcar disse: “Como é que você quer a primeira página?”. Eu respondi: “Eu não sei como eu quero a primeira página”. (risos) Aí ele disse: “Você pensa que o jornal tem a minha cara, mas não tem, não. Tem a cara do Zuenir! Amanhã o jornal tem que sair com a sua cara! Diz aí: qual é a primeira matéria, qual é a segunda?” E aí eu montei a página com ele, porque realmente eu não tinha essa experiência, a minha coisa era a reportagem, conversar com os repórteres, dar dicas, a pauta, complementar a pauta. E nós tínhamos uns três ou quatro estagiários de que eu gostava muito. Então, eu já tinha essa coisa de orientá-los. Mas como Chefe de Reportagem tive mesmo muita resistência com os repórteres mais antigos. E tinha um famoso Secretário de Redação, o Deodato Maia, que no livro da Cecília Costa sobre o Diário Carioca é muito citado. É que as pessoas o adoravam. Todo mundo que trabalhou no Diário Carioca gostava do Deodato Maia. Mas o Deodato era o exemplo exato do jornalista de antigamente. Quando o Chefe de Reportagem tinha que ser sargentão, e o Secretário tinha que ser bem grosseiro mesmo para lidar com o pessoal, com os gráficos inclusive. O Deodato Maia chegava mais tarde e sentava na mesa dele e gritava: “Ô fulano!” E o repórter dizia: “O que é, Deodato?” E aí o Deodato começava a dizer alto tudo o que ele achava da matéria que o repórter escreveu. Ficava criticando. Ele queria me escandalizar para que eu reclamas-
Vocês não sabem quem foi Carlos Lacerda?!”. E um respondeu: “Ele foi o cara que foi cassado porque foi contra a ditadura, né?” E outro disse: “Não, ele foi Prefeito do Rio”. E eu disse: “Calma! Vamos aqui falar do Carlos Lacerda, do Samuel Wainer, da Última Hora, da Tribuna da Imprensa, do Lacerda Governador, do Lacerda derrubador de presidentes, tudo!” Um dia eu estava na Puc, que foi a última faculdade em que lecionei, e comentei com uma colega, a Vera Flora de Figueiredo: “Vera, está ficando pesado dar aula, está ficando chato”. E ela: “É claro, Ana. A cada semestre nós estamos um semestre mais velhas. E entram turmas da mesma idade, depende do período que seja, eles têm sempre a mesma idade. E cada vez mais ignorantes”. Jornal da ABI – Nas últimas décadas, as meninas se firmaram como maioria nas turmas de Jornalismo, não é? Como você explica isso? Ana Arruda – Pois é. Nas Redações você vê muito mais mulheres, mas não nos cargos de chefia...
se. Mas eu ficava na minha, abaixava a cabeça e continuava meu trabalho na minha mesa... E ele ficava me provocando o tempo todo. Ele fazia quase diariamente. Havia alguns que me apoiavam, como o Fabiano Vilanova. Mas havia uns dois indivíduos ali que realmente faziam por onde... só lembro do nome de um deles porque o demiti. É a famosa história da demissão... Falavam que não tinham que me explicar o que iam fazer, para ver como é que eu ia reagir. Aí, um dia, o Jorge Segundo me disse: “Não tenho que explicar nada não. Estou dizendo que a matéria não deu, ué!”. E eu levantei e disse: “Tem que explicar sim. Tem que me dizer o que é que houve, o que é que você fez!”. E ele fez assim: “Ah!”, botou o paletó assim e deu as costas para mim. Nunca me esqueci o gesto com o paletó… Aí eu olhei e tinha três dos antigos no fundo da sala. Eu peguei o telefone: “Seu Zélio, Ana Arruda!” Zélio Valverde, o gerente. “Oi, dona Ana, tudo bem? O que a senhora deseja? Estou às ordens…” E eu falei: “Eu quero que o senhor faça agora a demissão do Jorge Segundo”. Ele disse: “Como?” “Estou pedindo... Pedindo não, estou mandando o senhor demitir esse rapaz agora!” Bati o telefone. Ficou aquele silêncio de morte. Ele foi demitido e nunca mais ninguém chegou para dizer que a matéria não deu e eu não explico. Mas isso é horrível! Eu tinha que ser violenta porque sendo amável não impunha respeito. Que coisa, né? Claro que é cruel ver. Mas eles achavam um desaforo ser comandados por uma mulher. Coisa curiosa, né?
Jornal da ABI – Você falou da tua experiência, de seu gosto de orientar estagiários. E você teve uma longa carreira como professora. O que é que a despertou para isso e qual a sua opinião a respeito da exigência ou não do diploma? Ana Arruda – Eu acho que a exigência do diploma era boa. Se vamos falar do mundo ideal, não devia ter diploma para pessoa nenhuma. Devia-se provar a capacidade. Mas já que existem as profissões, por que o jornalista não deve ter? Tem que ter. Então eu sou a favor da obrigatoriedade do diploma por isso. Eu acho que é uma maneira de valorizar a profissão. “Ah, mas os cursos não ensinam nada”. Ué, o Direito também não ensina, não! Taí a quantidade dos reprovados no exame da OAB. E Medicina? Quantos médicos aí que não sabem nada! Então, não é porque o curso é ruim... E o curso não é tão ruim, embora existam alguns ruins... É porque os jornais, os donos do jornal e os editores, que assumem a cabeça do dono, querem que o menino e a menina saiam da faculdade prontos. Isso não existe em profissão nenhuma. Não existe. Você não pode sair de um curso de quatro anos já sabendo tudo. Eu passei vinte anos dando aula em vários lugares. Eu escutava aluno de Jornalismo perguntando o seguinte: “Ah, professora, essa língua portuguesa é um horror! Por que ‘Economia’ não tem acento e ‘econômico’ tem? (risos) Eu disse: “Bom, voltei para o curso primário!” Houve um dia, na Puc, que eu fiz uma pergunta sobre Carlos Lacerda. Aí eu ouvi aquele silêncio! “Espera aí...
Jornal da ABI – Mas, por que elas estão escolhendo essa profissão? É porque querem aparecer na televisão, por exemplo? Ana Arruda – Olha, você deu um dos motivos mais sérios, infelizmente. Eu via, quando dava aula, que a idéia que tinham do que era ‘ser jornalista’, era a de apresentadora da TV Globo. Essa coisa de ir à cata de notícia e apurar informação não estava na cabeça delas, entendeu? E isso me assusta. Por isso elas chegam na Redação e ficam tontas com as ordens que recebem... Estavam pensando outra coisa. Isso acontece com os meninos também, embora menos. Jornal da ABI – Talvez as mulheres apenas fantasiem mais em cima da questão do estrelato da televisão... Ana Arruda – Eu acho que a gente fantasia mais. Mesmo. Eu sempre digo que quero ter os mesmos direitos, mas não quero ser igual ao homem, não. Eu acho que o feminismo será vencido no dia em que os homens ficarem mais amáveis e as mulheres mais firmes e responsáveis. Os dois têm que mudar. E acho que estão mudando. Eu sigo reclamando, mas acho isso. Nos casais jovens já está havendo esse equilíbrio. Isso já é um avanço muito grande. Me agrada. Jornal da ABI – Como era ser professora? O que a motivava? Ana Arruda – Bom, ser professora… Eu nunca fui ‘professoooora’ (diz ela, dando ênfase à palavra). Eu fazia experimentos na minha sala. A minha idéia, para dar aula, é um pouco como eu fazia com os estagiários. É ver se os alunos tinham noção do que era a profissão… Queria ajudálos a entender o que é ser jornalista.
E, sobretudo – aí preciso dizer que eu sou uma patriota, termo que está em desuso – eu queria que eles gostassem do Brasil. Por exemplo, eu dava uma prova, às vezes, na qual a meta era pegar contos de Guimarães Rosa e, em cima, mandava escrever uma notícia. No fim, fazia uma pergunta: dê os nomes de seis pintores brasileiros vivos. Entendeu? E eu ficava indignada porque nenhum conseguia seis nomes. E alguns não conseguiam nenhum. E falava: “Gente! Tem que ir à exposição. Jornalista não vai só à guerra cobrir tiroteio. Jornalista tem que ir a shows, ao futebol, à exposição de arte, a desfile de moda, à convenção partidária…” O Carlos Lacerda tinha uma definição que é maravilhosa: “O jornalista tem que ter uma curiosidade universal”. Você não pode dizer: “Esse assunto não me interessa!”. Quando diziam isso pra mim eu tinha vontade de socar. Mas, é claro que a gente não pode saber tudo, né? Jornal da ABI – Gostaria que você falasse um pouquinho da experiência de O Sol. Você participou ativamente daquele processo. Ana Arruda – O Sol foi uma idéia louca do Reynaldo Jardim, um inventor maravilhoso. Nos conhecemos no JB... Ele era diretor da Rádio Jornal do Brasil. Eu ia à rádio para ver o Tom Jobim, que às vezes aparecia lá, e era a coisa mais linda do planeta! Eu saía da Redação e ia espiar o Tom. (risos) Depois Reynaldo trabalhou no jornal, onde criou não só o Caderno B, mas também uma seção chamada Onde o Rio É Mais Carioca, que o Amauri Monteiro fazia. Também fazia o Sérgio Noronha... Esse pessoal era todo amigo. Com o tempo, me aproximei do Reynaldo. Fez tanta experimentação, né? Ele inventou de tudo. Aquele Cultura JS – o suplemento do Jornal dos Sports… Era uma maravilha esse suplemento… O Reynaldo… Nossa! Sofri muito com a morte dele. Mas ele tinha uma mulher espetacular – hoje a viúva dele é uma outra pessoa, está em Brasília. Mas a primeira mulher dele, mãe dos filhos, Edelweiss, era inteligentíssima, engraçadíssima. A gente a chamava de “Váis” ou “Vaizinha”. Era na casa deles que a gente fazia o suplemento. A revista Senhor também. Quando ele assumiu a revista, ela já estava em fase de decadência. A Senhor tinha sido uma maravilha no tempo do Nahum Sirotsky, do Glauco Rodrigues, Carlos Scliar... E aí, o Reynaldo assumiu, com um amigo dele chamado Edson Coelho, que era publicitário, achando que podia segurar a Senhor – e não dava. Eu era a secretária da revista. Houve, sim, uma decadência, pois a revista foi minguando. Ficou menos bonita mesmo, não tão bem impressa, papel de menor qualidade… Mas do conteúdo, é claro, nós cuidávamos. Jornal da ABI – O Sol era coordenado por jornalistas talentosís-
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DEPOIMENTO ANA ARRUDA CALLADO JOSÉ DUAYER
simos, mas os repórteres eram todos estudantes. Ana Arruda – Estudantes. Não só de Jornalismo, mas estudantes de tudo. Tínhamos na equipe estudantes de Medicina, Economia, Sociologia. Porque nós fizemos uma seleção assim: “Quem quer trabalhar?”. Até muita gente criticava: “Estão te explorando aí”. Mas todos recebiam. E mais do que os estagiários da Última Hora e de outros jornais… A gente chamava esse pessoal de alunos, pois a idéia era realmente transformar aquilo numa escola de Comunicação. Só que não deu. Era 1967, né? Em 1968 o bicho pegou! Jornal da ABI – Fazer esse jornal devia ser uma loucura. Ele era diário! Porque não pensaram em fazer semanal? Ana Arruda – A gente achava que uma verdadeira escola de Jornalismo era o jornal diário. Jornal diário é que é jornal. E ele buscava um calor também. Ter aquela pressa, ter que fazer pra já…
Jornal da ABI – E quando vocês ouviram pela primeira vez a música de Caetano Veloso? Ana Arruda – Não me lembro. No Sol, a gente discute muito se a música foi para o jornal ou não.
Jornal da ABI – Nesse formato, conseguia se manter publicitariamente? Ana Arruda – Não. Principalmente porque era um jornal atrevido. Muito atrevido. Na forma e no conteúdo. Foi uma experiência absolutamente deliciosa. Jornal da ABI – Você se lembra de algo pontual que tenha feito e sido especialmente marcante? Ana Arruda – Ah, muita coisa! Nossa! Primeiro, o que a gente fez antes de tudo! Com esses alunos selecionados, fizemos um curso. Curso mesmo! A gente conseguiu lançar na Cândido Mendes. E tínhamos os mestres – que a gente chamava de conselheiros. Eram Otto Maria Carpeaux e um outro rapaz, chamado Sérgio Lemos, que morreu pouco depois, um sociólogo. O Carpeaux ligava pra mim: “Ana, quais são as notícias? Quem está fazendo isso aqui?”. Era o que interessava a ele. Depois ia para o repórter: “Fulano, sei sobre o que você vai escrever, mas o que é que você sabe sobre esse assunto?”. E, pronto! Dava uma aula para o cara sobre aquele assunto. Carpeaux era um sábio absoluto. Sabia tudo. Ele escreveu A História Mundial da Música e A História Mundial da Literatura. E sabe o que mais me emocionava no Sol? Era aquela convivência. A gente ia almoçar no botequim do lado... Um dia eu disse assim: “Meu Deus, estou há 20 dias comendo frango assado”, porque era o melhor que tinha lá no botequim. E aí, de repente, aparecia o Gilberto Gil de chapéu de cangaceiro pra almoçar com a gente... Jornal da ABI – Era um ambiente muito efervescente, não é? Ana Arruda – É. Mas tinha também uma coisa que aparece no filme da Tetê Moraes, e era verdade: em
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um trabalho maravilhoso lá. Ele era editor de Polícia. Fazia os meninos escreverem as notícias como se fossem folhetins, apurando direitinho, todos os dados. E um dia tinha um telegrama idiota sobre uma chuvarada que deu na Grécia. E o Cony fez uma chamadinha assim: “Chove paca na Grécia”. De noite, eu recebo a visita do chefe da oficina: “Dona Ana, eu não vou fazer essa manchete”. “O quê?”. “A senhora autorizou uma barbaridade dessas?”. E eu não tinha visto a chamada! Mas não podia dizer isso a ele! Aí parei, e disse: “Autorizei, claro. Não está lá embaixo?”. “Então, eu posso botar isso?”. “É pra botar, essa é a manchete”. Aí, no dia seguinte fez o maior sucesso! Quem colocaria um título assim em jornal, né? Até que alguém me contou muito tempo depois: “Ô Ana, sabe o que está correndo no Rio de Janeiro? É que aquela manchete só saiu porque você não tinha visto”. (risos) E era esse mesmo o caso! (risos)
determinada hora, eu tinha que começar a fechar o jornal! Minha função era essa! Então, o pessoal da oficina me dizia: “Dona Ana, não desceu ainda nenhuma página!”. Aí, eu pá! “Vamos descer logo umas três ou quatro páginas!”. Reynaldo era quem contratava o pessoal da diagramação, que eram duas moças. Ele só trabalhava com mulher na diagramação! Eu via quando a página podia descer, atendia correndo a oficina... Mas cadê que a página da Marta Alencar estava fechada? Aquilo era tudo doido, não é? Pegava aquele pessoal de jeito – ai, meu Deus do céu! Então, eu era a chata, né? Jornal da ABI – Mas, e o lance da grana? Como o jornal sobrevivia? Ana Arruda – O Jornal dos Sports pagava a nossa folha de pagamento toda. Jornal da ABI – Como é que esse projeto foi aprovado pelo jornal? Ana Arruda – O genro da dona Célia Rodrigues, que era a dona, era o José Guilherme Padilha, que ficou encantado, ficou doido pela idéia. E ele queria mesmo fazer uma escola. Então, foi segurando enquanto podia, até que disse: “Olha, está fican-
do pesado”. De vez em quando, encontrava com a gente: “Está ficando pesado”. Foi de fato ficando bem pesado, quando os militares começaram a arrochar – e aí é que não vinha anúncio mesmo… A gente ia levar à falência o Jornal dos Sports, se não tivesse acabado. Eles decidiram acabar. Numa decisão da empresa, que iria falir se continuasse com O Sol. Então, aquele jornal, do ponto de vista de negócio, foi a coisa mais doida do mundo. Errada! Mas do ponto de vista da experimentação foi uma maravilha. Jornal da ABI – Como foi a atuação da censura no jornal O Sol? Ana Arruda – A primeira manifestação da censura no Sol aconteceu quando foi pedida a demissão do Editor de Economia porque eles queriam colocar outra pessoa em seu lugar. Felizmente era um rapaz maluquetinho, delicioso. Depois pediram para demitir o Carpeaux (Otto Maria Carpeaux). Aí nós dissemos: “vamos fechar o jornal!” E o Carpeaux disse: “Não façam bobagem. O importante é que o jornal resista. Eu saio, e vocês ficam aí pelo menos 15 dias mais”. E foi mais ou menos isso. Mas veio a ordem direta. Saiu o Carpeaux!
Jornal da ABI – Durou quanto tempo? Ana Arruda – Ai, meu Deus, eu nunca sei a data... Acho que uns quatro ou seis meses. Foram tantas edições... Uns 170 números, algo assim. (risos) Um dia encontrei um rapaz numa festa que a gente fez para reencontrar essas pessoas. E ele disse: “Ana, você não lembra de mim chegando à Redação exausto de Volta Redonda?”. Tinha ocorrido uma rebelião por lá e ele foi cobrir e conseguiu entrar onde estavam os operários. Ficou de refém, e só depois conseguiu escapar. Aí, voltou para o Rio, depois daquela experiência terrível. Pois eu havia esquecido; a gente que não sofreu, esquece... Bom, ele disse que entrou na Redação e eu disse bem assim: “Tudo bem. Você está bem, está inteiro. Não te bateram?”. “Não, mas…”. “Então tá bom, não vai me contar suas agruras, não. Vai pra máquina escrever, pois o jornal tem que fechar! Não tá faltando nenhum pedaço... Tá tudo bem!”. Ele brincou: “Você foi de uma ruindade comigo...”. Eu respondi: “Desculpe. Desculpe. Mas eu tinha que fechar o jornal”. (risos) Ah, tem uma história engraçada também. O Carlos Heitor Cony gostava de ousar. Fez
Jornal da ABI – O próprio Caetano não reconhece, não é? Ana Arruda – Mas o Gilberto Gil, que é esperto, disse: “inconscientemente, foi”. (risos) Porque o Caetano dizia: “Não, quer dizer, talvez...” Mas ele ia lá buscar a Dedé. Dedé era nossa repórter e eles se casaram. No filme O Sol aparece até o casamento da Dedé e do Caetano. O Sol era encartado (no Jornal dos Sports) e quando ele passou a sair sozinho a gente usou a música dele na nossa publicidade no rádio. O locutor falava e aí tocava a musiquinha dele. É verdade, ele cedeu. Ele cedeu pra gente, como cedeu para o filme da Tetê Moraes e não cobrou nada. Jornal da ABI – Você adaptou Pedro Mico, do Callado, para os quadrinhos. Foi difícil? Ana Arruda – Ah, eu pedi ajuda! Eu não sabia como é que era. Era leitora de quadrinhos, continuo gostando de quadrinhos, mas não a esse ponto. Mas aí, a Leila Name, da Editora Nova Fronteira, me ajudou muito, e também o meu neto Pedro, que ia fazer o texto, mas depois, preguiçoso, só fez uma parte. Então, eu corrigi o texto do Pedro e fiz o resto. Foi bom porque é outra linguagem e experimentar novas linguagens é uma coisa muito boa, completamente diferente. Mas Pedro Mico é teatro. Se fosse um romance, eu ficaria apavorada, porque a linguagem é completamente diferente. Mas no teatro, repare, as falas, os diálogos já são os balões. Pedro Mico foi a peça de Callado que fez mais sucesso. A peça foi encenada muitas vezes e teve até um filme com Pelé… (Ana Arruda dá uma pau-
sa) Callado não teve sorte para o cinema, oh, meu Deus!... Quando ia estrear Madona de Cedro, a Leila Diniz ligou lá pra nossa casa e disse: “Callado, não vá ver o filme, não. A história no filme é uma porcaria”. O Pedro Mico foi um horror. O Ipojuca Pontes resolveu inventar coisas. Há cenas que são um absurdo completo, não têm nada a ver. Mas Callado disse no dia da estréia: “Pelé, estou muito contente. O Pedro Mico tem a tua cara”. Mas a peça fez muito sucesso, só que era sempre com ator branco pintado. Callado ficava horrorizado. Pintavam o cara de preto. Por isso que eu acho maravilhosa A Revolta da Cachaça, que o Callado escreveu sobre isso. É uma peça sobre um ator negro que está furioso porque só faz papel de motorista, de garagista, e ele queria um papel principal. E o amigo dele, que é dramaturgo, promete uma peça em que ele seria o protagonista. Mas ele nunca acaba de escrevê-la. Então, é muito engraçado, porque a peça seria sobre a Revolta da Cachaça e ele entremeia esse fato histórico que se deu no século 17 com a situação dos dois amigos, do ator e do escritor. Jornal da ABI –Você é leitora de biografias? Este é um gênero um pouco em moda. Por isso mesmo, há bobagem demais sendo escrita? Coisas ruins estão sendo lançadas? Ana Arruda – Eu acho que não tem importância que seja ruim ou bom. É comum ter muita biografia aí – e que tenha muito livro. Por exemplo, poesia. Poesia é uma coisa na qual encontro certa dificuldade. Eu só gosto de poesia muito boa. E toda semana eu recebo um livro de poesia não tão bom. Mas, não é bom que sejam publicados esses livros? As pessoas não têm o direito de se manifestar? Eu acho que essa montanha de biografias – porque está na moda – tem esse aspecto positivo. O que eu acho horrível são as biografias só confessionais. A mulher que escreve a biografia dela só pra dizer que o pai a molestou quando ela era menina. Quer dizer, eu acho que é desnecessário, mas esse é um problema meu. Se há muita gente que gosta de ler isso, e se há pessoas que querem contar isso, tudo bem, entende? Agora, o que me interessa nas biografias que escrevo é contar mais a História do Brasil, não tenha a menor dúvida. Todas as minhas biografias são assim. Jornal da ABI – Você não acha que falta nas universidades, nos cursos de Jornalismo, maior enfoque na História da profissão e da sua prática? Ana Arruda – Eu dei essas disciplinas várias vezes. Um dia um aluno que era líder do diretório estava lendo um jornal na minha aula. Aí eu parei e disse: “Eu já lhe dei presença. Então, se você quer ler jornal, fora! Se você quiser ficar, eu tenho muito o
que fazer. Mas lendo jornal enquanto estou aqui trabalhando você não vai ficar ”. Ele saiu. Aí ficou todo mundo rindo... “Ô professora, ele é do Diretório Acadêmico”. Deixei passar. No outro dia, encontro com ele no corredor. “Escuta, você quer ser líder estudantil? Então, precisa ter vocação política. Sem conhecer a História do País – porque o que eu estou dando é a História do Brasil através da História da Imprensa – vai ficar mais difícil”. “Ah, mas esse negócio de Primeiro Reinado... E eu lá quero saber disso? Quando chegar em 1930, assisto à aula”. Veja só! Eu estava dando naquela aula, da qual ele saiu indignado, os dados sobre uma imprensa interessantíssima, que é a imprensa desaforada do Primeiro Reinado! Coisa deliciosa, com Cipriano Barata… Disse assim: “É a História do seu país, meu filho.” Na outra aula, ele estava e nunca mais faltou. Nem leu jornal em sala. (risos) Jornal da ABI – Dá para fazer uma comparação do estudante de hoje com aqueles estudantes que faziam O Sol? Ana Arruda – Ah, mas quem foi fazer O Sol era um pessoal diferente. Eles já sabiam que aquele seria um jornal experimental. Era todo mundo politizado. Ali havia todas as facções, inclusive as de luta armada. Eu só fui saber depois, porque ninguém ia perguntar quem é quem, imagina! Todo mundo era de esquerda. Era antiditadura. Todos, todos. Como eles tinham posição política, tinham interesse nas coisas. Quer dizer, era uma amostragem diferente. Não sei se os estudantes em geral eram daquele mesmo perfil. Os que foram até aquele projeto tinham muito engajamento. De certa forma, era uma amostragem falsa do que estava acontecendo. Não eram representantes absolutos daquela geração. Jornal da ABI – Como foi a sua experiência na Tribuna da Imprensa. Você ficou quanto tempo lá? Ana Arruda – Ah, pelo que eu me lembro... Quando houve a greve dos jornalistas, em 1962, houve um pacto, que o Chagas Freitas autorizou. Ele era o presidente do sindicato dos donos de jornal e fizeram um pacto. Quem for demitido de um jornal não pode ser admitido em outros. Um pacto cruel pra deixar a gente na rua mesmo. O Hélio Fernandes disse: “eu não faço esse pacto!”. Soube que eu estava demitida, e me chamou. Eu nunca tinha feito Economia, e ele me botou nesta editoria. Foi ótimo pra mim… Fui lá para a Confederação da Indústria dos Jornalistas, já encontrei uns seis economistas amigos... Jornal da ABI – Ia lhe perguntar isso... Como uma aluna que fazia o científico, apaixonada por Matemática, não seguiu esse ramo da carreira jornalística, a editoria de Economia?
Ana Arruda – Pois é, nunca me interessou porque eu sempre fui muito contra o capitalismo... (risos) O negócio de ficar na Confederação da Indústria… Fazer a minha coluna era muito divertido, porque a Tribuna estava num momento contra o Governo. E o Roberto Campos era o ministro todo poderoso. Então, a gente ficava só fazendo matéria contra o Roberto Campos. Só dando o cacete! O Hélio é uma pessoa incrível. Quando saía uma coisa muito violenta no jornal, ele era preso toda hora, ou simplesmente chamado a depor. Aí apertavam: “Quem escreveu isso?” Ele: “Tudo que sai no meu jornal é de minha responsabilidade”. Ele nunca deu o nome de nenhum repórter na Polícia. Isso é formidável! Em compensação, tem o outro lado. Um dia estourou o escândalo da Mannesmann. Foi um escândalo terrível. Houve uma inundação de ações da Siderúrgica Mannesmann do Rio. Ações falsas. Acho que foi em 1961. Lacerda ainda era o Governador. Lacerda lutou para prender o Jorge Serpa, ele tinha ódio do Jorge Serpa. Aí é familiar, né? O Jorge Serpa teria sido o responsável por esse derrame. Sabe quando o repórter diz: “Essa pauta é quente!”? Cheguei na Tribuna com uma quantidade de informações fantástica. Quando fui entrando, o Chefe de Reportagem me disse assim: “Ana, o chefe está te chamando”. Aí eu entrei na sala do Hélio, e ele disse: “Ana, o assunto Mannesmann não existe para a Tribuna”. E eu empolgada: “Mas, Hélio… Esse é o assunto do dia no Brasil inteiro. É o único assunto da Economia. E eu tenho muita coisa já levantada”. “Eu estou lhe dizendo, pra você saber que a ordem é minha: este assunto não existe na Tribuna”. Eu ainda insisti: “Mas teve desdobramentos, já marquei uma entrevista amanhã”. “Fique em casa três dias, Ana”. (risos) Àquela altura ele já tinha lá o partido dele, de quem ia tomar dinheiro, né? Jornal da ABI – Então, havia um interesse comercial aí também... Ana Arruda – Evidente… Na Tribuna? O Hélio só fazia jogada. Outra decepção que eu tive foi com uma reportagem que ele me pediu sobre a indústria aeronáutica, sobre as companhias de aviação no Brasil. Eu fiquei eufórica porque meu irmão mais velho, Fernando, tinha sido da Aeronáutica, depois tinha saído, foi piloto civil... E aí eu procurei Fernando e ele me orientou dando os nomes de quem eu podia procurar. Eu peguei um material ótimo, e era uma série de reportagens. Saiu a primeira! Eu estava toda orgulhosa porque saiu com destaque, com meu nome – porque a gente usava muito pseudônimo quando era para atacar o Governo. Eu tinha mais duas matérias já escritas. Saiu a segunda. Aí o Hélio me chama. “Ana, acabou, viu? Você pode engavetar”. “Mas como assim?”, perguntei. “Não vai sair mais
“Foi de fato ficando bem pesado, quando os militares começaram a arrochar – e aí é que não vinha anúncio mesmo… A gente ia levar à falência o Jornal dos Sports, se não tivesse acabado.” nenhuma”. Ele já tinha tomado dinheiro das companhias de aviação! JornaldaABI–Entãovocêficoucom umareportagemnuncapublicada... Ana Arruda – Não dava tempo de chorar, já tinha outra pra fazer... Eu vinha fazendo um monte de matérias, uma atrás da outra. Recentemente descobri tantos artigos e coisas minhas que não lembrava que eu tinha feito… Jornal da ABI – Isso pode vir a ser editado? Ana Arruda – Não. Não pretendo. Vou continuar fazendo o mesmo: biografias de mulheres. Jornal da ABI – Você trabalhou no Jornal de Vanguarda, com Fernando Barbosa Lima. Fale um pouco dessa experiência. Ana Arruda – Ah, na televisão! O Jornal de Vanguarda era meio revista. Eu fazia a parte de costurar os textos. Eu fazia os textos de ligação e as notícias. E uma coisa muito boa do Jornal de Vanguarda era o Cid Moreira. Cid ainda não era famosérrimo, mas era um excelente locutor, e o Cid me ensinou muito porque eu não tinha muita experiência com a linguagem da televisão. Então eu escrevia o texto que ele ia ler, e o Cid chegava antes e lia... E ele falava: “Ana, essa palavra aqui é melhor mudar, está um pouco longa”. E ele me ensinou muito. E outra história fantástica do tempo da televisão é que o Newton Carlos, que participava, falava no programa. Um dia chegou pra mim e disse: “Ana, você me dá licença, depois eu vou te falar o que vou apresentar hoje no programa, mas é que agora eu tenho que descer porque falaram que tem dois rapazes que estão querendo conversar comigo lá embaixo”. Isso era dia 10 ou 12 de dezembro de 1968. E o AI-5 foi no dia 13. E eu disse: “Como é que é, Newton? E você vai descer assim, sem saber o que é?”. E ele: “Por quê? Você acha que pode ser alguma coisa? Será que vão me convidar para ser paraninfo?” Eu disse: “Newton, fica quieto! Você acha que a essa hora da noite alguém vem à televisão para convidar você?”. Newton é muito ingênuo até hoje... (risos) Então o Cid Moreira disse: “Ô Ana, eu desço para comprar cigarro no botequim em frente e dou uma olhada. Quando ele voltou, disse: “Newton, não são dois
rapazes, não. São dois carros cheio de rapazes!”. (risos) Newton fugiu. Eu não lembro quem foi com ele... mas foi alguém da televisão que descobriu uma passagem que tinha no prédio, e ele foi para o outro edifício e depois para o outro. Depois proibiram o Reynaldo (Reynaldo Jardim) que fazia um quadro chamado Barrabás. Ele não poderia aparecer mais. A censura havia chegado ao Jornal de Vanguarda... Aí o Fernando disse: “Tá ficando difícil fazer jornal”. E eu perguntei: “Você vai aceitar isso, Fernando?” Ele disse: “Claro. Eu tenho que manter o jornal”. Tinha anunciante, tinha tudo. Aí ele cortou o Reynaldo. Jornal da ABI – Como era trabalhar com o Fernando? Ana Arruda – Ótimo. Fernando era uma pessoa adorável. Eu trabalhei com ele na Esquire (uma agência de propaganda que ele fundou). Fernando era uma pessoa cautelosa demais. Mas graças a Deus que ele era um homem cauteloso porque ele conseguiu segurar o jornal dele. Jornal da ABI – Como foi participar da produção do filme A Paixão Segundo Callado, do José Joffily? Ana Arruda – Foi muito bom. Era uma idéia da Tessy Callado, filha dele. E nem me lembro como se desenvolveu. Eu não conhecia o Joffily e ele tinha uma vantagem... parece que é bobagem o que eu vou dizer, mas ele não conhecia a obra de Callado. Ele me disse: “Ana, eu não li quase nada da obra de Callado”. Eu disse: “Joffily, não tem importância, porque aí você vai ter um olhar diferente.” E ele fez realmente um filme muito bom. Eu gosto muito. Mas ele pessoalmente é uma pessoa interessantíssima e pegou muito bem. É que o assunto não se esgota, assim como a fotobiografia não vai esgotar. Mas é um bom documentário sobre Callado, porque pegou vários vídeos em que o próprio está dando depoimentos e várias pessoas falando dele também. E a Regina Zappa fez um bom roteiro. Jornal da ABI – Gostaria que você falasse um pouco de outro projeto que está tocando: a fotobiografia do Callado... Ana Arruda – É, esse está me dando muita alegria, muito trabalho, muita aflição. Jornal da ABI – Você chegou a fazer um pedido para lhe enviarem fotos, fez um apelo público... Ana Arruda – Foi o Ancelmo Gois. Ele publicou na coluna. E o Arquivo Nacional ofereceu. Agora, eu tive que comprar dos jornais… Comprei fotos do JB e da Folha de S.Paulo, onde Antônio trabalhou anos. Eles não cederam... O Arquivo Nacional me deu de graça, mas os jornais, não. Eu contei a todos do que se tratava. Pedi ao Jânio de Freitas, com quem não falava há anos, para me indicar com
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DEPOIMENTO ANA ARRUDA CALLADO
quem eu deveria falar na Folha. A moça que me atendeu, secretária do Otavinho, o Otávio Frias, foi da maior gentileza: “Dona Ana, claro, podemos lhe ajudar”. Eu pensei que ela fosse me mandar as fotos. Aí veio a fatura! Quem vai editar a fotobiografia é o Governo de Pernambuco, que, aliás, só depois é que eles me disseram: “Ana, a gente podia ter comprado as fotos, mas elas têm que vir em nosso nome…”. Eu digo: “Veio a fatura em meu nome e eu já paguei”. Em matéria de dinheiro eu sou um fracasso absoluto. (risos) A fotobiografia é uma idéia interessante, porque de vez em quando eu escrevo sobre Callado uma coisa ou outra... E eu tenho um sobrinho, aliás bom jornalista, o Pedro Tinoco, que um dia me disse: “Ah, tia, eu vou fazer a biografia de Callado”. Eu logo reagi: “Tenha modos, menino. Você não vai fazer nuuunca”... Agora ele está me ajudando, já temos uns textos. E eu pensei: “Pô! Mas uma fotobiografia é diferente. Porque nela cabem pequenos textos que várias pessoas podem fazer. E assim estamos fazendo. Já acabamos a pesquisa. O material já foi todo levantado. Nós fizemos uma pesquisa gigantesca. Inclusive todo o arquivo dele, que eu doei para a Casa de Rui Barbosa, eu consultei. Eu doei sem ler, sem olhar, porque aquilo para mim era muito doloroso. Muita coisa eu fui ver só agora. Jornal da ABI – O livro vai acrescentar algum dado novo sobre a personalidade ou a trajetória do Callado que as pessoas ainda não conhecem? Ana Arruda – Acho que muita coisa. As pessoas não conhecem mais nada. Vamos partir desse princípio. Capaz de nem saberem quem foi Callado. Porque nós estamos descobrindo muita coisa, entendeu? Por exemplo, a fase dele em Londres. Eu sabia por alto. Mas teve um livro ótimo chamado Vozes de Londres. E nós descobrimos coisas maravilhosas no jornal e sobre o teatro dele. A Helô, nossa sobrinha, é cenógrafa e foi à Funarte. Tem um material vasto, coisas incríveis sobre a peça dele montada lá em Porto Alegre pela Tônia Carrero – eu nunca soube que o Frankel tinha sido encenado por ela no Teatro São Pedro também. Então, há muita coisa, muita coisa. Claro que não muda o perfil dele. Mas acrescenta informação. A história dele pequeno, das tias, das irmãs. Jornal da ABI – Qual é a previsão de lançamento dessa fotobiografia? Ana Arruda – Essa fotobiografia está me dando muita emoção, porque estou descobrindo uma porção de coisas... Mas não sei ainda qual a previsão. O pessoal de Pernambuco está me cobrando… Agora, eu vou fazer uma viagem para a Europa no final de abril. Então, na metade de abril
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CESAR ITIBERE/FOLHAPRESS
Antonio Callado na Redação da Folha de S. Paulo em 1994.
esse livro tem que estar pronto, no Recife. E o da Berta também. Estou fazendo os dois ao mesmo tempo. Quero entregar tudo antes de viajar. Este ano os dois livros serão publicados. Jornal da ABI – Como foi exatamente o encontro entre você e o Callado? Como é que foi o início dessa história? Ana Arruda – Já contei tanto, mas vou contar outra vez. Callado era já uma admiração minha desde que li Quarup. Inclusive, quando li este livro estava fazendo um trabalho para a Editora Civilização Brasileira. Fiz uma tradução para o espanhol, uma bobagem, estava precisando de dinheiro. Acho que foi em 1965. E aí, na editora tinha um gerente. Era o Coronel Cardoso. Esse coronel virou para mim, e disse: “O Enio está doido. Publicar esse livro de Callado, um livro desse tamanho, que ninguém vai ler. Esse tal de Quarup, uma chatice”. Aí eu mandei: “Eu li, acho que o senhor está enganado. Gostei muito do livro”. Então, desde o início, eu tinha essas notícias sobre ele. Quando houve, eu me lembro bem, a leitura de uma peça, nesse dia eu fiquei suspirando. Ele entrou acompanhado, e eu suspirando. Aí, a mulher do Reynaldo, a ‘Vaizinha’ disse: “Fica quieta, Ana! Ele é muito velho pra você!”. E eu: “Mas ele é maravilhoso, não é, não?”. Foi uma leitura de uma peça do Plínio Marcos. Havia sido proibida, e então fizemos uma leitura do Abajur Lilás. E os ‘caras’ vendo, sabe? Depois, fui trabalhar numa livraria chamada Carli-
tos, aqui no Leblon, que era de três amigos meus. Eu estava desgostosa um pouco com essa história de jornal e fui pra lá, pensando inclusive em ser sócia. Isso nunca ocorreu porque a livraria acabou. As coisas sempre acabam... Aí, ele ia nessa livraria. De vez em quando, Callado ia lá. “Ah, eu preciso dar um presente, o que você recomenda?”. Ficava nisso. Um dia, ele lançou o Bar Don Juan. Quando saiu, eu li, chorei de montão como não chorava desde que lia os livros lá na fazenda, escondida. Fiquei muito emocionada com aquele pessoal, aquele fracasso, enfim. Aí encontro o Armando Lutzenberger, amigo de velha data. “Pô Armando, gostei tanto do Bar Don Juan!”. E ele: “Ana, liga para o Callado e diz isso. Ele está arrasado, porque os amigos dele, gente de esquerda, está todo mundo xingando, dizendo que este é um livro cheio de deduragem, que ele está traindo a esquerda brasileira, ridicularizando…”. Disse: “Ah! São loucos! Não vi nada disso!”. Era a boa e velha ‘patrulha’, né? “Não vi nada disso no livro”, repeti. Ele reforçou o conselho: “Então, liga pra ele e diz isso”. Eu pensei, não vou fazer isso não, dar uma de enxerida, mulher oferecida... (risos) Mas fiquei dois dias com isso na cabeça até que peguei o telefone e liguei! Estava na livraria: “Olha, eu liguei pelo seguinte: amei o Bar Don Juan”. “Ah, Ana. Que maravilha! Você vai me contar isso em detalhes. Quando é que você pode jantar comigo?”. Marcamos um jantar no Álvarus... E, realmente, estávamos os dois querendo um encon-
tro, não é? E a partir desse dia começamos a namorar, digamos assim, e ficamos nisso seis anos. Durante seis anos... Porque tem uma coisa delicada, mas que todo mundo sabe: a mulher dele ainda estava viva, morando na Inglaterra. Eles estavam separados há tempos, mas não tinham ainda se separado de fato. Ela estava muito doente, e aí nesse meio tempo veio pro Brasil, foi pra casa dele, criou-se uma situação chata. O doutor Márcio Alves, me telefonou, e disse: “Ana, vou te pedir um favor: não liga pra casa do Callado’. “Eu sei, Marcio, não sou doida”. “A Jean está muito mal. Vem aqui em casa quando você quiser falar com ele”. Enfim, os amigos estavam todos muito preocupados com aquela situação. E ela morreu na véspera de eu ser presa. Callado voltou do enterro, e quando chegou no jornal, o avisaram: “Ana foi presa”. Nossa Senhora, que tempos! Ela morreu, passou poucos meses aqui, estava terminal. E nós continuamos. Jornal da ABI – Você ficou quanto tempo presa? Ana Arruda – Você sabe que eu já contei tanto essa história, que me esqueço de quantos dias foram? Foram 40 ou 50 dias... Foram 42 de DoiCodi e oito de quartel do Exército! Eles botavam a gente lá, no que costumavam chamar de ‘câmara de compensação’. O cara que mergulha não tem que ficar numa espécie de ‘câmara de compensação’? É mais ou menos isso. Diziam que eu ia sair de lá doida. “Não vai sair bem, não. Se sair de lá, vai sair doida”. Mas aí nós nos reencontramos. As visitas foram possíveis no quartel. No DoiCodi, nem pensar... Callado foi uma vez lá... Ele me levou um livrinho, pois sabia da minha paixão por Joana d’Arc desde os tempos da fazenda, e um relógio de presente de aniversário, pois eu tinha feito aniversário na cadeia, no Doi-Codi. Aí, veio o major, que era metido a ser simpático e amável, sabe aquele tipo? “O relógio; o senhor quer?”, eu perguntei. “Não, o relógio você pode levar, pode ir com ele pra cela. Mas o livro eu quero”. E o idiota ficou três dias olhando as marcações. Todos os livros de Callado, se você olhar qualquer livro que foi dele, é cheio de marcas. Ele tinha um lapisinho, e fazia assim umas marquinhas naqueles trechos que ele achava importantes ou que ele queria usar pra alguma coisa. O cara ficou estudando para ver se aquilo não era uma espécie de código. Agora, por que Callado ia passar código para mim àquela altura? Só me liberaram o livro quando saí, né? Ai, meu Deus! Aí, o julgamento só foi anos depois. Fui presa em 1973, e o julgamento foi em 1977. Jornal da ABI – Mas você foi presa acusada exatamente de quê? Ana Arruda – Todas as coisas que você puder imaginar. Diziam que eu
pertencia a uma terrível organização criminosa que tinha feito assaltos… Só não disseram que tinha matado gente. Nunca peguei numa arma, posso garantir a vocês. Agora, de fato, participei de um grupo em que havia uma parte que queria fazer ações… Chegaram a fazer dois ou três assaltos. Metade morreu. Era um pessoal que não tinha cabeça. Aí, o Modesto da Silveira, que é o meu advogado, quando ia ter o julgamento, disse assim: “Olha, Callado: eu acho melhor vocês casarem. Se a Ana for condenada, imagino por uns três ou quatro anos, você não vai poder visitá-la se não estiverem casados. Eles são muito rígidos nisso”. Houve o julgamento, fui absolvida! No julgamento teve um momento tragicômico. Uma semana! Foi um massacre, uma semana, aquele bando… Não era só eu, não. Éramos 13 pessoas. Aquela coisa horrorosa. E duas coisas maravilhosas. Tem que contar as coisas boas, né? O Modesto: “É possível você conseguir cartas de pessoas que te conhecem? Isso influencia muito”. Aí eu fui pedir uma ao Doutor Prudente de Moraes. Ele era diretor de A Noite. Fui lá, ele sempre com sorriso amável. “O que é, Ana?”. Eu contei. “Doutor Prudente, é um pedido chato, imagina, eu vou ser julgada pela Auditoria”. Ele riu. “Qual é a auditoria, você sabe?”. Digo: “Não, não sei nada”. “Sei. E quem é que vai lá depor?”. “Não sei, ainda não tive a coragem de pedir a ninguém, é uma coisa muito séria pedir a alguém para ir à Auditoria depor”. Ele disse: “Eu vou”. Eu quase desmaiei. Disse: “Doutor Prudente, o senhor não vai fazer essa maravilha…”. “Vou! Eu vou”. E o Alberto Dines fez a mesma coisa. Eu fui pedir uma carta a ele, que disse: “Ana, eu vou depor”. Quando o Doutor Prudente entrou, havia o major e dois tenentinhos. Nossa! Eles só faltaram fazer reverência ao Doutor Prudente, que era considerado um dos líderes civis de 1964. O Callado foi assistir. E num dos depoimentos disseram que ele seria um dos líderes do movimento. Tudo mentira, Callado nunca se meteu nessas coisas. Aí, o Osvaldo Mendonça, um dos advogados, tinha aquele monte de ajudantes, disse: “Ana, não se assuste. Eu vou usar o nome de Callado na defesa que vou fazer”. “Faça o que achar certo, Osvaldo”, respondi. E ele disse assim: “Este processo é tão absurdo, que consta aqui que ‘Antônio Callado seria um dos líderes do grupo julgado… ‘. E eu estou vendo o Callado ali, olha só, assistindo a tudo. Ele não deveria estar no banco dos réus?”. Quer dizer, ele desmontou tudo, mostrou que não havia lógica naquele processo… Quando acabou, fui absolvida. Todos nós fomos absolvidos, menos os três que tinham realmente feito bobagens. Até hoje eu tenho pena, mas enfim… Aí, nunca me esqueço disso: o Callado se sentou, tinha uma cadeira, parecia uma ca-
FRANCISCO UCHA
deira de balanço: “Ana Arruda, quer dizer que quem decide a nossa vida é a Auditoria Militar, é? Você acha isso correto?” Eu disse: “Como assim?”. “Olha, se você fosse condenada, nós iríamos casar. E agora que foi absolvida, não vamos?”. Bem, isso queria dizer que nós iríamos nos casar mesmo. Jornal da ABI – Callado também teve episódios em prisões... Ana Arruda – Teve sim, esteve preso quatro vezes. Mas as prisões dele foram todas anteriores ao meu caso. Jornal da ABI – E que marcas essas prisões deixaram no Callado? Ana Arruda – As prisões? Eu acho que nenhuma. Ele tirou de letra. Callado era tão racional... Não esquece que ele participou do Bogotazo e, segundo o Joel Silveira, subiu no hotel em chamas para pegar a máquina de escrever e as anotações dele quando já ninguém podia subir. Assistiu ao bombardeio em Londres. Então, ele achava a prisão uma besteira. Ele foi preso uma vez com o Glauber (Glauber Rocha) e outras pessoas, e ele dizia que só a presença do Glauber já dava para ninguém ficar deprimido, nem com medo. No primeiro dia estava todo mundo meio constrangido, e aí... aí tem um detalhe importante. Numa cela com várias pessoas, como é que você vai fazer suas necessidades num lugar onde só tem uma privadinha aberta, onde todo mundo vê? Todo mundo olhando um para o outro e Glauber diz: “Que bobagem é essa? Eu, hein!” E sentou no vaso e todo mundo perdeu o medo. Prisão em grupo... Agora, eu fiquei presa sozinha o tempo todo! É horrível! Só, só, só. A cela era enorme, só tinha uma porta que abriam toda hora, a qualquer momento… e tinha uma janela altíssima e a luz ficava acesa o tempo todo em cima da cama. O tempo todo. Fiquei ali 42 dias sem olhar para a minha cara. E… meu pai morreu... Jornal da ABI – E você não pôde ir ao enterro de seu pai? Ana Arruda – Não, me levaram para o enterro! O Fiúza de Castro chegou lá e disse assim: “Ana Arruda…” ai... que homem mais asqueroso!… O Coronel Fiúza de Castro era o chefe do Doi-Codi. E ele disse: “Ana Arruda, para você ver como nós somos muito melhores do que vocês... eu quero lhe avisar que seu pai faleceu, mas que eu vou deixar você ir ao velório dele. Duvido que vocês fizessem isso comigo se fosse o contrário.” Aí eles estiveram no velório o tempo todo só para me baquear mais. Por exemplo, eu estava com o famoso macacão cheirando a vômito que me deram depois de eu estar presa e sem roupa. Mas quando fui ao velório me deram a minha roupa que eu tinha entrado e falaram: “Pode tomar banho”. Me levaram para o chuveiro com que era todo aberto. Aí ficavam passando uns caras dizen-
do cafajestagens! E isso antes de ir ao velório do meu pai! Aí eu fui, acompanhadíssima claro, com escolta… Foi uma coisa tão horrorosa porque eu sabia que eu ia voltar! O que adiantava prorrogar? No velório, me perguntavam: “Você não quer ficar mais um pouco?” Eu disse “Não. Eu vou embora. Não tem nada pra mim aí.” Quando eu voltei, eu estava deitada e, de repente, a porta abriu violentamente! Em geral eles abriam a portinhola, jogavam o capuz para eu colocar e aí eu saía. Dessa vez, não! A porta foi aberta com violência e entraram três caras com metralhadora e um magrela... Nunca esqueci aquela cara! Um magrelinho com instrumentos de médico e me tiraram a pressão. E ele falou: “É comunista mesmo! Só pode ser! Filha da puta! Voltou do enterro do pai e está com a pressão boa.” Os caras pensavam que eu pudesse ter uma baixa... Jornal da ABI – Seu pai soube que você foi presa? Ana Arruda – Não, não! A minha irmã Margarida, maravilhosa – oh, Margarida! Na hora que eu entrei no apartamento, ela me segurou e disse: “Ele não soube, Mirta! Eu disse que você estava viajando. Fique tranqüila.” Jornal da ABI – Como você foi presa? Ana Arruda – É outro momento de burrice. A gente tem uns momentos de burrice... Eu estava na Editora Delta trabalhando quando entram dois caras: “Ana Arruda! Você vai nos acompanhar agora!” Eu disse
“Como acompanhar agora?” E eles: “Nós estamos dizendo: levanta e nos acompanhe”. Aí, vi que eles estavam num carro. E a Maria Inês Duque Estrada foi maravilhosa. Ela estava na mesma sala e percebeu o que ia acontecer e ela disse: “Ana, você vai sair? O trabalho está no meio! O que é que eu digo para o Guga? Não pode sair assim, não!”. E eu respondi: “Não, eu volto logo, vou só tomar um café com eles e volto logo”. Mas ela desceu com a gente e eu falei com ela baixinho: “Maria Inês, vá embora antes que a situação piore”. Logo que entrei no carro, já começou: me botaram no fundo do Fusca, os caras com as pernas em cima... mas, enfim, é uma experiência que a gente não quer pra ninguém no mundo. Ninguém, ninguém... Eu não falava sobre isso antes. Olha só... isso que eu estou contando a vocês comecei a contar há pouco tempo e aos pedacinhos. E acho que eu nunca fiz um relato tão completo. Porque há um lado... que você deixa de ser gente por um tempo, sabe? É tão esquisito, é tão esquisito... Jornal da ABI – É algo tão surreal que a própria pessoa se sente meio envergonhada do que sofreu, não é? Ana Arruda – É... é. A tal da geladeira, que eu fiquei não sei quantos dias, sabe?... O Modesto (Modesto da Silveira) fez as contas e ele acha que eu fiquei três dias. Mas é uma coisa de uma loucura tão grande porque primeiro nos jogavam lá... Era um cubículo escuro, paredes negras, e de repente eles acendem uma luz no
teto fortíssima, uma luz absolutamente forte, pra cegar! Então eles tocavam música alta, um som altíssimo... e aquela luz. De repente apagava e vinha um frio, um frio de tiritar! Frio e calor, luz e escuridão. E você sem noção de onde é. De onde vem. Porque de repente abriam aqui, depois abriam ali, depois ali... Ah, eles queriam te aniquilar... (silêncio). Enfim, até hoje eu não sei se o Fiúza de Castro está vivo ou está morto. Ele é filho de um famoso Ministro da Guerra que foi logo demitido. Esse cara me deu... foi a única vez na vida que tive vontade de matar alguém! Há uma semana eu disse isso e a pessoa que escutava disse assim: “você diz isso no sentido figurado, não é?” E eu respondi: “Não! Se eu tivesse encontrado três pessoas com esse mesmo sentimento eu fazia! Eu saía e matava!” Porque não pode ser pior! Sabe aquele cara cínico? Ele falava: “Está vendo? Essa roupa que a gente põe em vocês, é porque vocês são mulheres. E tem muito homem aqui. É para vocês não ficarem muito atraentes.” Sabe... todas aquelas perversidades... (silêncio). É isso! Corta... (Ana Arruda sorri) Jornal da ABI – Como foi a sua vida, a partir do casamento com Antônio Callado? Como era a convivência entre dois escritores? Ana Arruda – Pra começar, eu não me considerava escritora. Nem era, eu era professora e ele já era um escritor e, para mim, um dos maiores que o Brasil já teve. Era jornalista. Aliás, ele fala muito bem sobre essa relação de jornal e literatura… Ele sempre quis ser dramaturgo e romancista. Jornalista ele foi para ganhar dinheiro e conhecer o mundo. Mas Callado, para começar, era uma pessoa 20 anos mais velha do que eu. E eu sempre recomendo às pessoas essa diferença, porque os homens são mais imaturos do que as mulheres – vocês que me perdoem. (risos) Então, com um homem mais velho, aí dá pra gente conversar… Ele já tinha casado, já tinha tido os filhos dele… E eu dizia que só casaria se eu encontrasse um homem mais feminista do que eu. Encontrei. Callado era uma pessoa que adorava as mulheres e tinha uma solidariedade! No filme do José Joffily (A Paixão Segundo Callado) há um depoimento da Fernanda Montenegro assim: “Callado ouvia a gente! Eu acho que ele tinha um lado feminino.” A Fernanda era muito amiga dele, gostava dele. Nós vivemos juntos 16 anos. E a gente tinha um entendimento muito bom, pois eu cuidava das minhas aulas, ele não interferia no meu trabalho, eu não interferia no trabalho dele... E ele, quando estava escrevendo ficava muito quieto, mas às vezes me chamava: “Ana Arruda! O que é que você está fazendo? Vem pra cá.” E eu falava: “Não... Eu estou jogando paciência. Não tem nada a ver.” E ele: “Eu gosto desse ‘plec-plec’ das
cartas quando você joga paciência!” (risos) Ele não sabia nem como era baralho... E eu gosto muito de paciência. Até hoje eu jogo, com baralho... nada de computador. Então a gente tinha essa coisa... E tinha , por exemplo, no fim do dia... eu chegava da faculdade e ele tinha trabalhado nos originais… Era aquele ritual bom: eu ligava a televisão para ver o noticiário; ele levantava, tirava gelo, botava os copos, eu fazia dois drinques e a gente ficava vendo jornal, tomando nosso uisquinho, sabe como é? Jogo de futebol a gente via junto. Ele era Flamengo. Eu sou Fluminense. Então, quando o Flamengo jogava com o Fluminense, a gente ficava quieto, um com o outro. Mas quanto o Flamengo jogava com qualquer outro time, eu torcia contra o Flamengo, porque eu torço contra o Flamengo qualquer que seja o adversário dele. E ele dizia assim: “Ana Arruda! Não vá torcer contra o Flamengo, não, hein?” E eu: “Não, meu bem, claro que não...” Aí o outro time começava e eu ficava “vai, vai!” (risos) Era isso. Era um companheirismo muito bom. Depois eu descobri Maricá. Íamos para a casa de Maricá. Ele adorava o mar, ele adorou a casa de Maricá. Dormíamos e o mar batendo praticamente na porta da casa. Foram tempos muito bons aqueles de Maricá. Agora, eu falo até hoje, vocês estão vendo que eu falo com entusiasmo, eu ainda sou apaixonada pelo Antônio Callado. Fui e sou. Mas ao mesmo tempo, eu nunca fui uma viúva triste. Sabe do que eu gostava dele? Quando ele falava pra mim: “Bobagem... Não seja boba!”. Agora, quando eu queria cair assim, na tristeza e pensava: “O que eu estou fazendo assim na vida, sozinha?” Eu ouvia a voz dele dizer assim: “Não seja boba!”. Foi muito bom, muito bom... Jornal da ABI – Neste ano, você está fazendo 55 anos de profissão. Já reparou isso? Você começou em 1958 no JB. Ana Arruda – É... taí, vou marcar isso. Jornal da ABI – Nós acabamos de falar aqui sobre seis décadas de jornalismo, de vida acadêmica, de casamento. Tudo valeu a pena? Ana Arruda – Vale. Eu acho que eu vivi e estou vivendo... não quero ficar muito velha, não. Eu fico horrorizada! (risos) Comemorei meus 75 anos no ano passado com uma grande festa! Este ano vou ser mais moderada. Então, não sei se pretendo escrever muitos livros mais. Ah, sim! Eu esqueci de dizer que voltei para Araruama! Voltei para a nova infância, né? Com esse mesmo irmão, que era o meu grande companheiro na fazenda de meu pai, comprei um sítio em Araruama muito lindo. E é claro que um dia vou morar lá. Mas não sei quando. Nós temos patos, marrecos, vacas, meu irmão faz queijo... Tem três vaquinhas e ele faz queijo.
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LIBERDADE DE IMPRENSA REPRODUÇÃO
A ABI lamenta a ofensa de Barbosa ao repórter que queria entrevistá-lo Ele agiu de forma incompatível com a conduta que se espera de qualquer magistrado, disse a ABI. Em declaração publicada na edição de 6 de março pelo Estado de S.Paulo, a ABI informou que recebeu com indignação a reação hostil do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Joaquim Barbosa, ao repórter Felipe Recondo, quando este tentava entrevistá-lo, na véspera, em Brasília. Disse o Presidente da ABI que o Ministro “agiu de forma incompatível com a conduta que se espera de qualquer magistrado e ainda mais do Presidente do Supremo Tribunal Federal”. O incidente entre o Ministro Barbosa e o jornalista foi assim descrito pela Folha de S.Paulo na página 5 de sua edição do dia 6: “O Presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Joaquim Barbosa, chamou ontem de ‘palhaço’ um repórter do jornal O Estado de S. Paulo e recomendou que ele fosse ‘chafurdar no lixo’”. A fala ocorreu na saída da reunião do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que também é presidido por Barbosa. Mais tarde, ele divulgou nota com pedido de desculpas. O Presidente do STF era aguardado por jornalistas ao sair da reunião do CNJ. Na primeira abordagem, ele interrompeu a
pergunta iniciada pelo repórter Felipe Recondo e o destratou aos gritos. O jornalista perguntou: ‘Presidente, como o senhor está vendo...’. Joaquim Barbosa não o deixou concluir e respondeu: ‘Não estou vendo nada. Me deixa em paz, rapaz. Vá chafurdar no lixo, como você faz sempre’. O repórter, então, questionou: ‘Que é isso ministro, o que houve?’ Barbosa respondeu: ‘Estou pedindo, me deixe em paz. Já disse várias vezes ao senhor’. Recondo rebateu: ‘Tenho que fazer pergunta, que é o meu trabalho’. Ainda mais irritado, Barbosa disse que não tinha nada a declarar. ‘Eu não tenho nada a lhe dizer, não quero nem saber do que o senhor está tratando’, afirmou. Afastado por assessores, o Presidente do STF ainda chamou o repórter de ‘palhaço’ ao entrar em um elevador. Os jornalistas esperavam Barbosa para repercutir uma nota divulgada pelas três maiores entidades de juízes do País (AMB, Ajufe e Anamatra) no final de semana. As entidades criticaram Barbosa por ele ter dito que a magistratura tem mentalida-
de pró-impunidade. Afirmaram que ele vive situação de ‘isolacionismo’ e ‘parte do pressuposto de ser o único detentor da verdade’. Em novembro passado, Barbosa já havia criticado um repórter negro que, para o Presidente do STF, teria replicado estereótipos racistas ao perguntar se ele estava sereno no novo cargo. Desculpa
Barbosa divulgou à tarde uma nota para pedir desculpas. Disse que estava tomado pelo cansaço e por fortes dores ao responder o jornalista. ‘Trata-se de episódio isolado que não condiz com o histórico de relacionamento do ministro com a imprensa’, diz a nota divulgada pela assessoria de imprensa do STF. Barbosa informou ainda reafirmar sua crença no papel da imprensa. ‘Seu apego à liberdade de opinião está expresso em seu permanente diálogo com profissionais dos mais diversos veículos.’ O ministro citou como exemplo um encontro que fará com o coordenador da ong Comitê para Proteção de Jornalistas, Carlos Lauria.
Acordo no Reino Unido regula a imprensa Primeiro-Ministro Cameron celebra pacto que defende veículos e cidadãos comuns. P OR C LÁUDIA S OUZA
Os três principais partidos do Reino Unido chegaram a um acordo sobre a criação de um órgão regulador da imprensa. A medida vem em resposta ao escândalo de grampos telefônicos que levou ao fechamento do tablóide News of the World, do magnata Rupert Murdoch, e que deu início a uma série de denúncias contra outros veículos de comunicação no Reino Unido. O Primeiro-Ministro britânico David Cameron apresentou no dia 18 de março aos legisladores o escopo do projeto de criação de um órgão regulador independente. O sistema será voluntário, mas haverá incentivos financeiros para que os jornais o adotem. Disse Cameron que a proposta prevê um organismo de auto-regulação com poderes de impor multas de até 1 milhão de libras (US$ 1,5 milhão) e obrigar jornais a pedir desculpas quando apropriado, com compromissos e financiamento independentes, além de um código de normas, um serviço de arbitragem livre para as vítimas e um sistema ágil de reclamação. As preocupações de que qualquer acordo colocaria em risco a liberdade de expressão adiaram a decisão. Grandes veículos de comunicação ameaçaram boicotar um novo regime regulatório e ativistas cobraram uma regulamentação 26
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mais severa acusando Cameron de ser influenciado pela imprensa. O premier não conseguiu na semana anterior chegar a um acordo para estabelecer as linhas gerais de um órgão com capacidade para regular o setor que não dependesse do poder político nem das empresas jornalísticas, como propunha o chamado Relatório Leveson, em novembro de 2012. Parte dos parlamentares queria uma carta-régia respaldada pela legislação, enquanto o premier apoiou uma carta sem lei. Em troca, o Primeiro-Ministro ofereceu uma carta, sem status de lei, acordada com o Vice-Primeiro-Ministro Nick Clegg e com o líder do Partido Trabalhista, Ed Miliband, em um acordo de última hora para evitar um confronto na Câmara dos Lordes, a Câmara alta do Parlamento. O acordo inclui emendas do Partido Trabalhista e do Liberal-Democrata. A proposta, de acordo com os parlamentares, foi voluntariamente aceita pela mídia e oferece garantias de não-interferência do Estado na liberdade de imprensa. Ed Miliband, líder do Partido Trabalhista, de oposição, defendeu o acordo: “Eu realmente acredito que o acordo defende a liberdade de imprensa e satisfaz os termos que as vítimas de rastreamento (de telefone) estabeleceram. O jornalismo investigativo não será restringido pelo novo arranjo”.
Kirsty Hughes, diretor do grupo Index on Censorship, que defende a liberdade de imprensa, rejeitou a proposta: “O envolvimento de políticos fere o princípio fundamental da imprensa. Nossa democracia ficou manchada com este resultado”. Mais denúncias
A Polícia britânica investiga cerca de 600 novas denúncias de possíveis grampos telefônicos cometidos pelo periódico News of the World. O tablóide, de propriedade do magnata da mídia Rupert Murdoch, encerrou suas atividades em julho de 2011 em razão do escândalo que pôs em xeque a imprensa britânica e culminou agora em 18 de março na criação de um novo órgão regulador das atividades da mídia. Os dados provêm do histórico telefônico de um informante da Polícia transformado em testemunha da Promotoria e que anteriormente era próximo ao grupo midiático. As denúncias foram apresentadas neste 18 de março ao Tribunal Superior de Londres. Na quinta-feira anterior, 14 de março, quatro jornalistas do grupo britânico Mirror foram detidos por supostas escutas telefônicas entre os anos de 2003 e 2004. Antes, já haviam sido detidos, entre outros, dois ex-diretores do News of the World, Andy Coulson e Rebekah Brooks, ambos do círculo do primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron.
Ex-Coronel Paulo Telhada: Assessores financiaram sua campanha.
VEREADOR DE SP AMEAÇA REPÓRTER
“Aconselho você a tomar cuidado com o que vai publicar” No dia 5 de março, o ex-Coronel Paulo Telhada (PSDB), eleito vereador no Município de São Paulo com mais de 89 mil votos, ameaçou uma repórter da Rádio Brasil Atual ao ser questionado sobre a contratação de parentes e financiadores pessoais para assessorá-lo na Câmara Municipal. “Se você quiser publicar o que você não deve publicar... Eu aconselho você a tomar cuidado com o que você vai publicar. Porque a paulada vem depois do mesmo jeito, no mesmo ritmo”, afirmou. A reportagem afirmou que Telhada contratou dois assessores parlamentares que financiaram sua campanha, além de seu primo David Denis Lobão. Os doadores são Antônio José Fonseca da Silva, que contribuiu com aproximadamente R$ 40 mil, e Rodolfo Artur Teixeira, com cerca de R$ 19 mil. Como apurou a reportagem da Brasil Atual, o site da Câmara apontava que Antônio José recebeu R$ 21 mil de salário em janeiro como parte da equipe de Telhada. Já Rodolfo Artur recebeu perto de R$ 18 mil. Em entrevista à Rádio Brasil Atual, o Vereador afirmou que agira dentro da lei, que permite que primos sejam contratados por políticos. “Isso [contratações] é uma coisa minha, eu não tenho de dar satisfação a ninguém. O que eu pago aos meus funcionários é coisa minha com eles, é legal e legítimo”, disse Telhada. Logo após essa resposta o Vereador se exaltou e ameaçou a repórter. Se confirmado, este é o segundo caso de ameaça de Telhada a alguém da imprensa. Em 2012 o jornalista André Caramante, da Folha de S.Paulo, teve que deixar o País após receber ameaças por ter produzido matéria na qual mostrava, às vésperas da eleição, o ex-Comandante da Rota (Rondas Tobias de Aguiar) pregando a violência policial em sua página no Facebook.
São Paulo e Mato Grosso do Sul, a rota de perigo para os jornalistas Os dois Estados são apontados como aqueles que oferecem mais riscos para os profissionais. Estudo divulgado pela organização nãogovernamental internacional Artigo 19 aponta São Paulo e Mato Grosso do Sul como os Estados que mais registraram casos de violações à liberdade de expressão em 2012. A publicação Graves violações à liberdade de expressão de jornalistas e defensores dos direitos humanos traz o resultado das investigações realizadas pela ong com relação aos crimes de homicídios, tentativas de assassinato, ameaças de morte, seqüestros e desaparecimentos em todo o País. Ao todo, a organização investigou 82 possíveis violações graves à liberdade de expressão, das quais apenas em 52 casos foi possível identificar a relação. Destes, oito foram registrados em São Paulo e outros oito em Mato Grosso do Sul. O Maranhão, com sete ocorrências, aparece em seguida.
O relatório aponta que “embora exista um imaginário de que a baixa institucionalização do Estado nas áreas mais remotas do País seria a causa das graves violações à liberdade de expressão, em 2012, nota-se o fenômeno contrário”. O estudo conclui que o Estado (seja na figura de um político, agente público ou da Polícia) reage violentamente contra as denúncias que são divulgadas, publicadas, registradas ou discursadas –principalmente na internet. “Com relação aos mandantes, nota-se um grande número de casos envolvendo o Estado, seja na figura da Polícia, dos políticos e agentes públicos. Do lado da organização da atividade civil e privada, nota-se a atuação do crime organizado, dos produtores rurais/extrativistas e empresários.”
Em grande parte dos Estados do Nordeste não houve ocorrências registradas: Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Ceará. A ong também chama a atenção para um grande número de crimes em cidades pequenas, com menos de 100 mil habitantes, “locais onde há mais proximidade entre Estado e população”. Em relação ao tipo de violação, os homicídios representaram 30% das graves violações de 2012, tentativas de assassinato 15%, ameaças de morte 51% e seqüestros e desaparecimentos 4%. “No Brasil e em outros países da América do Sul, jornalistas, radialistas, editores, defensores dos direitos humanos, ativistas ambientais ou sociais, lideranças rurais e blogueiros estão sendo mortos e constantemente intimidados. Eles
são assassinados ou ameaçados, porque têm um ponto de vista específico sobre os assuntos públicos, porque têm uma opinião, fazem denúncias e defendem seus juízos de valores.” Uma das conclusões do relatório da Artigo 19 diz respeito ao crescimento de casos de ameaças relacionados à internet. Entre jornalistas, este tipo de caso representa quase a metade (40%). Segundo o estudo, conteúdos publicados em blogs pessoais, mídias sociais e sites tornam os jornalistas muito mais expostos. “Tal fenômeno contradiz a aparente liberdade de expressão total na rede que muitos defendem como existente no Brasil. Também demonstra que os desafios da liberdade de expressão online não são somente virtuais e nem apenas legislativos.”
Mais um jornalista assassinado, desta vez em Ipatinga, Minas Os matadores chegaram numa moto, executaram o repórter Rodrigo Neto com dois tiros e fugiram sem deixar pistas. P OR I GOR W ALTZ
Um repórter policial do jornal Vale do Aço, de Ipatinga, no Leste de Minas Gerais, foi assassinado na madrugada do dia 8 de março. A vítima, Rodrigo Neto, que também era locutor do programa Plantão Policial, na Rádio Vanguarda AM 1170, vinha sofrendo ameaças em decorrência das denúncias que fazia. O crime aconteceu próximo a um bar na Avenida José Selim de Sales, uma via movimentada no bairro Canaã. Relatou a Polícia Militar do Estado que Rodrigo Neto saiu do bar e foi em direção ao seu carro; quando se aproximou do veículo, dois homens armados em uma moto efetuaram três disparos. O jornalista foi atingido por dois tiros, um na cabeça e
outro no peito, e chegou a ser socorrido e levado para o Hospital Municipal de Ipatinga, no bairro Cidade Nobre, mas não resistiu aos ferimentos e morreu. Os assassinos saíram em alta velocidade depois do crime, sem serem identificados. Apesar de Rodrigo Neto ter sido alvo de diversas ameaças em razão das denúncias que fazia na imprensa falada e escrita, o Comando da 14º Região de Polícia Militar do Vale do Aço informou que ainda não é possível afirmar se o crime foi motivado por vingança. Natural de Caratinga, a 310 quilômetros de Belo Horizonte, Rodrigo Neto iniciou sua carreira como repórter policial do Diário Popular, no qual foi responsável por uma série de reportagens investigativas. Depois foi para o Diário do Aço,
em Ipatinga, mas sempre teve grande paixão pelo rádio. Ultimamente era um dos locutores do Plantão Policial na Rádio Vanguarda e havia acabado de retornar à imprensa escrita como repórter policial do jornal Vale do Aço. Rodrigo era formado em Direito e estudava para tornar-se delegado. Ele participou de diversos concursos públicos. “O Rodrigo sempre se pautou por ser um jornalista muito incisivo”, afirma um colega da imprensa local, que preferiu não se identificar. “Sempre foi um repórter investigativo muito contundente”, acrescenta. Disse este seu companheiro que Rodrigo Neto tinha uma característica que o diferenciava. “Ele acompanhava o desenrolar dos fatos. Geralmente, o repór-
ter faz o factual e esquece. Ele, não. O Rodrigo tinha uma agenda muito boa, fazia uma ótima apuração. Esse diferencial incomodava muita gente”, afirma. Neto recebia ameaças há muito tempo e teria relatado várias vezes telefonemas ameaçadores e que pessoas o vigiavam em locais públicos. Esses fatos foram levados ao conhecimento do Ministério Público e do Judiciário. “Fica a sensação de insegurança”, comentou esse amigo. “Não mataram só um cidadão, mas um profissional da imprensa. Deram um tiro na liberdade de expressão”, denunciou. A imprensa de Ipatinga exigiu que o assassinato seja investigado e esclarecido com rapidez, empenho e dedicação. Rodrigo Neto deixa a esposa Bia e o filho Artur, de sete anos.
Vice de Aquidauana, MS, xinga e ameaça jornalista O Vice-Prefeito de Aquidauana, Mato Grosso do Sul, Sebastião de Souza Alves, conhecido como Tião Sereia (PP), ameaçou por telefone o jornalista e radialista Wilson de Carvalho, apresentador do programa A Bronca na FM 100,9 e editor do site de notícias Aquidauana News. Na ligação, o político teria desferido palavras de baixo calão, xingamentos e ameaças. Contou o jornalista ameaçado que o Vice-Prefeito foi enfático ao lhe dizer: ‘Se tocar novamente em meu nome, algo de grave vai acontecer ’. Tião Sereia proferiu as ameaças visando me intimidar por conta da matéria sobre a situação de abandono de bairros da cidade, que eu li durante o programa de rádio”, explicou o jornalista.
A matéria levada ao ar por Carvalho falava sobre a mudança de endereço do atual Vice-Prefeito, que teria trocado sua residência no Bairro São Francisco, que enfrenta hoje o acúmulo de lixo e o crescimento do mato em ruas e terrenos, por uma chácara avaliada em R$ 300 mil, fato que possivelmente teria motivado a irritação de Sereia. “Eu até pensei que fosse brincadeira, pois fui funcionário da Câmara Municipal na mesma época em que Tião era Vereador e nós nunca tivemos problemas”, lembrou Wilson, que atua no jornalismo desde os anos 1980 em Campo Grande e está radicado em Aquidauana há 20 anos. Ele destaca ainda que teme por sua segurança e de sua família, já que Tião Sereia é ex-policial. “Ele anda arma-
do e foi muito agressivo ao telefone, disse que eu ia me ferrar e me chamou de vagabundo e safado”, acrescenta Carvalho. Revelou Carvalho que já passou por situações complicadas, mas esta ultrapassou os limites do bom senso. “Privar a comunidade de tomar conhecimento dos fatos com transparência, objetividade e sem adjetivos é um crime contra o cidadão. A ameaça à vida é o que de pior pode ser utilizado por um homem público para evitar ser alvo de críticas. O contraditório na mídia é o que fortalece a democracia”, destaca. Carvalho completou dizendo que “quem não tem nada a temer não ameaça jornalistas. Além disso, é preciso esclarecer que o Vice-Prefeito é empregado do povo e a este deve satisfação”.
Relatou Wilson de Carvalho que a situação indefinida da política aquidauanense tem provocado fatos lamentáveis. Ele cita como exemplo o caso de sua esposa, servidora pública municipal concursada, que acabou sendo alvo de perseguição e humilhação arquitetadas por aqueles que assumiram o poder no Município por decisão judicial. “Ela foi substituída pelo atual Prefeito Zé Henrique (PDT) na função que ocupava simplesmente por uma questão política, sem nenhum respeito pela competência e por sua dedicação ao trabalho”, comenta. No início da tarde de 18 de fevereiro, Carvalho lavrou o Boletim de Ocorrência 506/2013 na Delegacia de Polícia Civil de Aquidauana. JORNAL DA ABI 388 • MARÇO DE 2013
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DIREITOS HUMANOS Comissão da Verdade da Fenaj define prazos
Governo federal quer saber quem explodiu um cabeção-de-negro na OAB Petardo foi lançado nas vésperas da instalação da Comissão Estadual da Verdade. P OR C LÁUDIA S OUZA
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) divulgou nota de repúdio à explosão de uma bomba no prédio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no Rio de Janeiro, na tarde do dia 7 de março. A Secretaria classificou o episódio como “atentado” e se colocou à disposição das autoridades do Estado para colaborar com as investigações. A Comissão Nacional da Verdade também divulgou comunicado e cobrou apuração rigorosa dos fatos e punição aos “que pretendem negar ao Brasil o caminho da democracia e das liberdades.” O Presidente da OAB-RJ, Felipe Santa Cruz, e o ex-presidente da OAB, Wadih Damous, consideraram que o episódio tem relação com a Comissão Estadual da Verdade, que seria instalada no dia 11 pelo Governador Sérgio Cabral. A Comissão terá como função investigar os crimes cometidos no Estado durante a ditadura militar.
O repúdio da SDH
Wadih Damous, que antecedeu a Felipe Santa Cruz na presidência da OAB-RJ, vai presidir o grupo, que terá como integrantes o jornalista Álvaro Machado Caldas, professor de Comunicação Social da Puc/RJ; Eny Raimundo Moreira, Presidente e fundadora do Comitê Brasileiro pela Anistia, co-autora do livro Brasil nunca mais; Geraldo Cândido da Silva, integrante do Coletivo-RJ Memória, Verdade e Justiça, representando a Associação Nacional dos Anistiados Políticos, Aposentados e Pensionistas-Anapap, senador em 1999 e Presidente do Sindicato dos Metroviários do Estado de 1981 a 1987; o advogado Marcelo Cerqueira, deputado federal em 1986, defensor de centenas de presos políticos entre 1968 e 1978 e professor da Universidade Federal Fluminense, Procurador-Geral do Incra; do Cade e da Alerj; Nadine Monteiro Borges, primeira coordenadora do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, doutoranda pela Uff; e Otávio Bravo, promotor de Justiça Militar, pesquisa-
Em reunião realizada em São Paulo, no último dia 11, a Comissão Nacional da Verdade dos Jornalistas fez um balanço dos trabalhos realizados até o momento, redefiniu o prazo para conclusão de seus levantamentos, e produziu novas orientações para as comissões estaduais e locais. A Comissão prepara ações para viabilizar os protocolos de cooperação assinados com a Comissão Nacional da Verdade e com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. A Comissão decidiu indicar três representantes para o Grupo de Integração do Protocolo de Cooperação com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. A próxima reunião do grupo foi agendada para o dia 15 de abril, no Rio de Janeiro. O prazo para conclusão e envio dos relatórios locais à sede da Fenaj foi estabelecido para o dia 1º de agosto. De acordo com a Comissão, Sindicatos de Jornalistas de vários Estados já constituíram suas Comissões da Verdade (Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Grande Dourados, Rio de Janeiro, Goiás, Norte do Paraná, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Piauí, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins). As Comissões locais foram orientadas a localizar dados já sistematizados em Estados que têm leis de reparação no âmbito estadual (BA, CE, ES, RJ, GO, MG, SC, RS e SP) e casos sobre jornais, revistas e outros veículos de comunicação que foram fechados no período 1964/1988. A coleta de depoimentos deve ser feita com pelos menos dois integrantes de cada comissão local.
dor do Núcleo de Direitos Humanos da PucRJ. O grupo iniciou um trabalho de investigações sobre casos de mortos e desaparecidos políticos há dois anos. “Vamos trabalhar em conjunto com a Comissão Nacional da Verdade, que já tem um acervo de informações. Essa simbiose, essa relação, será estreita. Queremos, inclusive, encerrar o trabalho antes do prazo, junto com a comissão federal, o que vai demandar um trabalho intensivo de investigação”, disse Damous. O Secretário de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, Zaqueu Teixeira, foi designado pelo Governador Sérgio Cabral para dar suporte administrativo e financeiro à Comissão, que começará a funcionar imediatamente. Entre os casos a serem investigados, segundo Damous, estão o atentado à OAB, a explosão no Riocentro, a Casa da Morte, em Petrópolis, as mortes de Stuart Angel e Rubens Paiva e os demais que forem encaminhados ao grupo.
“Tardio ato de terror”
“A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República vem a público manifestar o mais veemente repúdio ao atentado cometido nesta quinta-feira (7) contra a seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ). A Ordem dos Advogados do Brasil tem sido um baluarte na defesa da democracia e uma referência para a garantia dos Direitos Humanos no Brasil. O Governo federal seguirá atento e está à disposição para colaborar com o Governo do Estado do Rio de Janeiro para a identificação dos responsáveis. Por fim, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República manifesta solidariedade a todos os membros da OAB-RJ, através de seu Presidente, Felipe Santa Cruz, e de seu ex-presidente e atual Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Wadih Damous.”
“Há três décadas o Brasil e o povo brasileiro decidiram superar o período de violência e medo gerados pelo golpe civil-militar imposto em 1964. A população apostou na democracia e nas liberdades para enfrentar o desafio de construir um País justo e próspero, que gere oportunidades para todos. Hoje um explosivo foi detonado na sede da OAB, no Rio de Janeiro. Trata-se de um tardio ato de terror dos que não querem viver num País democrático. Criando um clima de confronto e desatino “eles” afetam adversários e a si próprios. A Comissão Nacional da Verdade, que visa investigar e reconstituir as graves violações de direitos humanos ocorridas em nossa história política recente, repudia com veemência o ato intimidatório cometido na sede da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ, e a ameaçadora mensagem recebida no local afirmando que o ato visava matar seu ex-presidente, Wadih Da-
mous, a ser nomeado Presidente da Comissão Estadual da Verdade, na segundafeira, pelo governador Sérgio Cabral. A democracia não se constrói com bombas, nem se sustenta com violência. A coragem de defendê-la deve superar o nosso medo do terror. No ano de 1980 uma bomba matou Lyda Monteiro e feriu outra pessoa na sede da OAB no Rio de Janeiro. Felizmente agora não houve vítimas. Precisamos, contudo, estar atentos aos acontecimentos e solidários na resistência. As autoridades competentes estão sendo mobilizadas para adotar as providências cabíveis. A Comissão Nacional da Verdade espera que se apure a autoria e se puna os que pretendem negar ao Brasil o caminho da democracia e das liberdades. Rio de Janeiro, 7 de março de 2013 Rosa Maria Cardoso da Cunha Coordenadora Pro Tempore da CNV”
Eleição de Feliciano é afronta, diz a ABI Por suas opiniões homofóbicas e racistas, esse parlamentar não pode presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, afirma declaração emitida pela Casa. Em declaração divulgada no dia 8 de março, a Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI classificou de afronta aos direitos humanos a eleição do Deputado pastor Marco Feliciano, conhecido por suas opiniões homofóbicas e racistas, para Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
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“A sua eleição é na prática um desrespeito evidente aos direitos humanos, porque, embora diga demagogicamente o contrário, sua presença na Comissão será para defender valores conservadores e desrespeito aos valores democráticos que a sociedade brasileira está a exigir”, afirma a declaração. “Como se não bastassem os posicionamentos homofóbicos e racistas do parla-
mentar do Partido Social Cristão (PSC), vale lembrar que pairam outras dúvidas a respeito do caráter moral do Pastor, inclusive há informações segundo as quais está respondendo a processo no Supremo Tribunal Federal por estelionato e o fato, que pode ser visto no Youtube, dele pedindo a senha de um fiel para dar validade a uma colaboração para a sua
Igreja,” diz a Comissão, que acrescenta: “A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados está sendo desmoralizada com esta escolha. A Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI exige que os parlamentares usem do bom senso e façam uma imediata autocrítica pelo que fizeram e revoguem a escolha.”
P OR P AULO C HICO
O dia 17 de março marcou a passagem de 40 anos do assassinato de Alexandre Vannucchi Leme, estudante de Geologia da Usp, pelos agentes do regime militar. Quando cursava o quarto ano de Geologia, ‘Minhoca’, como era chamado pelos colegas, foi capturado por homens da Operação Bandeirante, por suspeita de integrar a cúpula armada da ALN, encabeçada por Carlos Marighella. Detido em 16 de março de 1973, o jovem foi brutalmente torturado por dois dias e morreu por conta dos ferimentos, como relataram sobreviventes que com ele dividiram as dependências do Doi-
Codi. Inicialmente, os militares alegaram que Alexandre teria se suicidado com uma lâmina de barbear. Porém, diante da pressão pública e da inconsistência desta versão, o governo divulgou nota afirmando que ele teria sido atropelado por um caminhão ao tentar fugir dos militares, quando era transportado até o Hospital das Clínicas. Esta versão foi desmascarada e apontada como falsa pela Justiça e pela União, que reconheceram o crime de assassinato e mandaram indenizar a família de Alexandre. A farsa da ditadura para explicar a morte do estudante, que na época tinha apenas 22 anos, desencadeou enorme reação contra o regime dos generais.
Milhares de pessoas foram até a Catedral da Sé para protestar contra a versão ‘oficial’ apresentada e os crimes cometidos pela ditadura militar. Em homenagem a Alexandre Vannucchi, que dá nome ao DCE Livre da Usp, ocorreram neste mês diversas atividades, encabeçadas pela Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva e chamadas de ‘40 anos depois, Alexandre vive!’. Na noite de 14 de março ocorreu o show Conversando com a Paz, com Sergio Ricardo e convidados, no Centro Cultural São Paulo. No dia 15, em ato promovido pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, no Instituto de Geociências da USP, houve o reconhecimento da condição de
REPRODUÇÃO
Atos lembram 40 anos da morte de Alexandre Vannucchi
anistiado político de Alexandre, com pedido formal de desculpas à família por parte do Estado brasileiro. No mesmo dia, na Catedral da Sé, foi realiza missa em homenagem à memória do jovem.
FOTOS: MARCELO CAMARGO/ABR
Sob o olhar de Ivo Herzog, Clarice mostra o novo atestado de óbito retificado, indicando as verdadeiras causas da morte de Vladimir Herzog, após tortura. O ato público, que teve a participação da Ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, e do secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão, também reconheceu a condição de anistiado político do estudante Alexandre Vannucchi.
Em nome da verdade, um novo atestado de óbito para Herzog Ainda no dia 15 de março, a família do jornalista Vladimir Herzog recebeu da Comissão Nacional da Verdade o novo atestado de óbito do jornalista, morto sob tortura, em 1975. O documento, emitido pelo Instituto de Geociências da Usp, traz como causa da morte “lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do segundo Exército Doi-Codi de São Paulo”. No atestado anterior, a versão para o óbito era de “enforcamento por asfixia mecânica”, numa jamais convincente tentativa dos militares de dar alguma veracidade à falsa versão de ‘suicídio’. A determinação para a emissão do novo atestado partiu do Tribunal de Justiça de
São Paulo (TJ-SP), em setembro do ano passado. O juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos, atendeu a um expediente de iniciativa da Comissão Nacional da Verdade, criada para esclarecer as violações de direitos humanos no período da ditadura militar. Filho de Vladimir, Ivo Herzog falou com o Jornal da ABI sobre a importância do ato. “Tínhamos até o momento um documento mentiroso que tentava ainda sustentar a farsa do suicídio. Era uma situação humilhante para a família ter que aceitar aquele papel. O novo atestado acaba com esta humilhação e, mais importante, abre o caminho para que inúmeras famílias
possam buscar a verdade sobre a morte de seus familiares.” Para Ivo, que dirige o Instituto que leva o nome de Herzog, este é apenas o primeiro passo em busca de justiça. “Esperamos que os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade nos digam quem são as pessoas envolvidas na morte do meu pai. Acreditamos ainda que existe esperança de que o STF reveja seu parecer sobre a aplicação da Lei de Anistia, trazendo-a para o contexto da comunidade internacional. Ou seja, Anistia não se aplica aos agentes do Estado. Desta maneira, poderemos processar e punir aqueles que cometeram crimes durante o regime. Com
certeza, há dezenas, ou centenas, de casos semelhantes ao do meu pai”. Para a Ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário, que participou da cerimônia realizada no Instituto de Geociências da Usp, a democracia é um processo constante e nunca está concluído. E o Brasil experimenta, no momento, um contexto de maturidade do estado democrático. “A democracia vai avançando quando o governo, representando o País, assume uma visão democrática e diz publicamente que renuncia toda a forma de violência e terrorismo de Estado, como ocorreu no período da ditadura”, disse.
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DIREITOS HUMANOS
A busca incessante pela verdade A Comissão Estadual de São Paulo intensifica os trabalhos e realiza diversas audiências que buscam esclarecer crimes cometidos durante a ditadura militar. P OR P AULO C HICO
Os meses de fevereiro e março foram de intensas atividades na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. Neste período, inúmeras audiências públicas foram realizadas na Assembléia Legislativa, buscando lançar luzes sobre a prisão, tortura e desaparecimento de brasileiros, em sua maioria militantes de esquerda, durante a ditadura militar instaurada em 1964. A comissão que leva o nome do Deputado Rubens Paiva – ele próprio um dos desaparecidos durante o regime militar, em 1971 – foi a primeira dessa natureza no âmbito dos estados, tendo sido criada em 10 de fevereiro de 2012, atuando, na esfera paulista, em colaboração com a comissão nacional. Presidente da Comissão, Adriano Diogo disse acreditar que os efeitos mais perversos daqueles anos de exceção ainda não tiveram fim. “A ditadura não acabou. Ela só vai acabar quando os familiares conseguirem enterrar seus entes queridos. A história só pode passar adiante se for contada. Temos uma democracia meia-boca. Embora ninguém possa ser penalizado, punido, a não ser que o Ministério Público leve adiante, pelo menos a verdade será contada. Esse é o objetivo principal. Se essa história dos crimes cometidos na ditadura contra os ativistas políticos que resistiram não for contada, outros crimes e violências contra o cidadão comum continuarão a ser praticados, como está acontecendo”, explica o Deputado estadual petista, geólogo sanitarista por formação e com reconhecida trajetória de líder estudantil durante a década de 1970. Aylton Mortati. Fernando Santa. Edgar Aquino Duarte. Dênis Casemiro. Iara Iavelberg. Honestino Monteiro Guimarães. Ísis Dias de Oliveira. José Maria Ferreira Araújo. Paulo Stuart Wright. Davi Capistrano. Luiz Almeida Araújo. Nestor Vera. Nomes de cidadãos brasileiros que, alguns pegando em armas, outros não, se empenharam para reestabelecer o ambiente democrático no País. A maioria deles pagou caro pela ousadia – perdendo a vida. Estes citados acima e muitos outros tiveram suas trajetórias relembradas – e, em parte, um pouco mais esclarecidas – em audiências realizadas no Auditório Teotônio Vilela, na Assembléia de SP. Houve audiências também com o intuito de esclarecer não apenas processos individuais, mas de comprometimento de instituições. Um desses casos foi discutido em 18 de fevereiro, com a apresen30
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tação de documentos oficiais da ditadura militar, encontrados no Arquivo Público do Estado de São Paulo, onde há indícios de relações entre membros da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e do Consulado dos Estados Unidos com os órgãos de repressão. Em sintonia com esta pauta, no dia 18 de março o ex-marido da Presidente Dilma Rousseff, o ex-Deputado estadual pelo Rio Grande do Sul, Carlos Araújo, denunciou à Comissão Nacional da Verdade a participação ativa de empresários membros da Fiesp no aparelho repressor do Estado, inclusive em sessões de tortura. Araújo, assim como Dilma, era militante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (Var-Palmares), quando ambos foram presos, em 1970. Mulheres do Araguaia Uma das audiências de maior impacto, realizada em 7 de março, tratou das ‘Mulheres Paulistas Desaparecidas no Araguaia’. Foram levantados os casos de Helenira Rezende de Souza Nazareth, Luisa Augusta Garlippe, Maria Lúcia Petit da Silva e Suely Yumiko Kanayama – todas elas guerrilheiras, militantes do PCdoB. E que jamais retornaram dos conflitos ocorridos no sul do Pará, nos anos 1970. Laura Petit, irmã de Maria Lúcia, pediu rigor na apuração do caso. “Infelizmente, decorridos 40 anos, a gente ainda não teve todos os crimes esclarecidos. Tudo é conhecido, tudo é sabido. A gente fica aguardando que se estabeleça a verdade. Chega de mentira, chega de ocultação”, declarou, defendendo a punição dos responsáveis pelos crimes, conforme determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). Relatos fortes marcaram algumas sessões. No dia 14 de março, duas mulheres torturadas durante a ditadura prestaram depoimentos emocionados que deverão ajudar nos trabalhos de identificação de agentes e resgate da história de mortos ou desaparecidos em São Paulo. Ambas fizeram desta audiência – a 22ª da Comissão Rubens Paiva neste ano – uma prova contundente das arbitrariedades praticadas pelos militares. Ieda Seixas, de 65 anos, é irmã de Ivan Seixas, membro da Comissão. E filha de Joaquim Alencar de Seixas, torturado e morto no dia 17 de abril de 1971, um dia após ter sido preso. Ieda disse que, apesar de nunca ter militado, foi presa no mesmo ano junto com a irmã e a mãe. “Fomos levadas para o Doi-Codi, onde fui separada delas. Na
prisão, fui abusada sexualmente e torturada. Era um sujeito asqueroso, parecia um ogro, de chapeuzinho. Ele tirou os sapatos e abusou de mim”. Ieda ficou presa até setembro de 1972. Segunda a depor nesta audiência, Elza Lobo também reviveu momentos de terror. Militante da Ação Popular MarxistaLeninista, foi presa em 10 de novembro de 1969 e levada para a Oban. Lá permaneceu por dois anos e sofreu todo tipo de tortura. “Teve cadeira do dragão, aquela com revestimento de zinco e ligada a terminais elétricos. Choques em todos os dedos da mão, dentro da vagina e nos seios. Tudo o que vocês estão imaginando foi executado. As torturas foram intermináveis”, recordou ela, que fez questão de ressaltar o papel das comissões da Verdade. “Minhas palavras aqui, hoje, não vão mudar o que aconteceu com a gente. Não vai haver punição. Mas deixam para a história o registro de que esse período aconteceu”. O sadismo dos torturadores foi destacado em outros depoimentos. O caso de Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, foi tema de audiência no dia 25 de fevereiro. “Eu saí do pau de arara para o Jonas entrar”, relatou o ex-preso político e jornalista Antonio Carlos Fon. Durante a audiência, o depoente apresentou uma foto, onde, entre outros homens da repressão, está Paulo Bordini, ex-sargento da PM. “Ele matou Jonas”, disse. “Esse homem era um sádico, é responsável por dezenas de mortes”. O operário Virgílio foi militante da organização de esquerda Ação Libertadora Nacional (ALN). Preso em 29 de setembro de 1969, em São Paulo, foi levado ao DoiCodi, de onde desapareceu. “Ouvi os gritos e o interrogatório do Jonas. Ouvi também a risada de Bordini, que por rir enquanto torturava ficou conhecido como ‘Risadinha’”, disse Fon, que foi militante da mesma ALN. Separada dos filhos Emocionada, Ilda Martins da Silva, viúva de Virgílio, contou que, no dia em que o marido foi preso, ela e três de seus quatro filhos foram levados ao Doi-Codi. “Fui interrogada na frente dos meus filhos, sendo que a Isabel tinha só quatro meses de vida. Depois, fui separada deles. Veio uma freira e os levou para um Juizado de Menores. Fiquei nove meses presa, dos quais quatro deles incomunicável. A maior tortura de todas foi ter sido separada dos meus filhos”, relatou. A certeza da morte de Virgílio só veio em 2004, 12
anos depois da volta da família ao Brasil, que fora buscar abrigo em Cuba. “Nesse ano descobriu-se um laudo em que há o registro das condições do corpo, que teria sido enterrado no Cemitério da Vila Formosa”, conta Ilda. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal. E uma das resoluções da audiência que tratou do caso de Virgílio foi a proposição de realização de sindicâncias para investigar as valas clandestinas do cemitério de Vila Formosa, onde foram encontradas ossadas, ainda sem identificação. A Comissão também decidiu que irá requerer informações sobre Paulo Bordini, o chamado ‘Risadinha’. Ainda no mesmo dia 25 foi tratado o caso de Aluísio Palhano Pedreira Ferreira, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), desaparecido em 20 de maio de 1971. Na abertura da audiência, o presidente da Comissão Rubens Paiva destacou que, em nome da transparência, as audiências realizadas ali, ao contrário das promovidas pela Comissão Nacional da Verdade, são sempre abertas ao público. O procurador regional da República, Sérgio Suiama, um dos autores de ação penal movida em maio de 2012 pelo Ministério Público Federal pelo crime de seqüestro de Palhano, prestou depoimento na sessão. Os réus da ação são o tristemente ‘famoso’ coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi entre 1970 e 1974, e o delegado Dirceu Gravina, conhecido como ‘Jesus Cristo’. Este encontra-se ainda na ativa na Polícia Civil de São Paulo. O argumento do MPF para a ação é de crime continuado. Como o corpo nunca foi encontrado, o crime de seqüestro continua e o caso não prescreveu. As testemunhas ouvidas pelo MPF são Altino Dantas Júnior e Lenira Machado, que relataram as torturas sofridas por Aluísio. Também foi utilizado o depoimento de Inês Etienne Romeu dado ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 5 de maio de 1971. Segundo ela, Palhano foi levado à Casa da Morte, centro clandestino de tortura em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. “Altino Dantas ouviu Palhano ser muito torturado por Gravina, e depois ser jogado a pontapés quase inerte no pátio da Oban”, apontou o procurador Suiama. O executado foi funcionário do Banco do Brasil e, por causa do golpe de 1964, exilou-se no México. Quando voltou, Aluísio acabou preso a partir de delação feita por outro famoso e repugnante personagem da época: o agente policial infiltrado Cabo Anselmo.
DOCUMENTÁRIO DIVULGAÇÃO
Os treze presos políticos que foram trocados pelo embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick.
O DIA QUE DUROU 21 ANOS Filme do cineasta Camilo Tavares revela documentos inéditos sobre a participação norte-americana no golpe militar de 1º de abril de 1964. Após obter prêmios em festivais e mostras, a obra chega ao circuito comercial.
A participação violenta e decisiva dos Estados Unidos no golpe militar de 1º de abril de 1964 no Brasil está longe de ser uma informação nova. Porém, quando esta informação é lançada de forma inexorável diante dos nossos olhos e do nosso orgulho, com imagens, documentos históricos e depoimentos dos mais preciosos, o novo impacto daquilo que já era conhecido assume proporções que chegam a ser perturbadoras. É isto que mostra O Dia que Durou 21 Anos, documentário de Camilo Tavares, que após ser aplaudido em mostras e festivais pelo Brasil chegou agora em março ao circuito comercial. O resultado é ao mesmo tempo empolgante e atordoante. No filme, entre outras denúncias e constatações, o cineasta Jean Mazon, famoso por seus documentários ufanistas, é abertamente acusado de ter sido participante do braço de propaganda financiado pela Cia, a central de inteligência norte-americana. É mostrada também de forma incisiva e fartamente documentada a atuação do Instituto Brasileiro de Ação Democrática-Ibad como fachada da mesma Cia para a compra de parte da mídia e parte do Senado brasileiro. O objetivo explícito era influenciar a opinião pública nacional favoravelmente a toda e qualquer ação proveniente dos Estados Unidos, além de instaurar o pânico contra a “perigosa comunização” do Governo João Goulart. O documentário lembra ainda que, ao se instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito-CPI para investigar
a atuação do Ibad, o relator escolhido foi Rubens Paiva, que viria a ser assassinado pela ditadura, em janeiro de 1971. “A idéia do filme nasceu do premiado livro O Dia em que Getúlio Matou Allende, de autoria do meu pai, Flávio Tavares”, conta o diretor do documentário. “Inicialmente, pensamos em fazer um retrato de Flávio no golpe de 1964, mas logo nas primeiras reuniões de roteiro descobrimos que ele tinha em mãos alguns telegramas originais do Departamento de Estado dos Estados Unidos, que conseguiu através de um amigo que trabalhava no Jornal do Brasil. Estes documentos tinham ficado arquivados por muitos anos, e percebemos que tínhamos obrigação de tornar isto público. A partir daí, a linha do filme mudou totalmente”, conta Camilo Tavares. Mais do que “pai do diretor do filme”, o jornalista e escritor Flávio Tavares foi Presidente da União Estadual de EstudantesUEE no Rio Grande do Sul, comentarista político do jornal Última Hora e um dos fundadores da Universidade de Brasília. Preso durante a ditadura, acusado de participar de ação armada para libertar presos políticos na Penitenciária Lemos de Brito, foi exilado para o México, onde passou a escrever no jornal Excelsior. Trabalhou também na Argentina, onde colaborou para a Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo. Flávio fez parte do grupo de presos políticos trocados pelo Embaixador Charles Elbrick, mas em 1977 foi seqüestrado por militares de órgãos uruguaios ligados à repressão. Morou em Lisboa e retornou ao Brasil com a anistia de 1979. Vinte anos depois, publicou seu livro autobiográfico
JFK LIBRARY
P OR C ELSO S ABADIN
Kennedy e Lincoln Gordon: conversas gravadas
Memórias do Esquecimento. Atualmente com 78 anos, trabalha e mora na cidade de Búzios, no Estado do Rio. Os telegramas que Flávio guardou durante todos estes anos serviram de eixo narrativo do filme O Dia que Durou 21 Anos. “Direcionamos a pesquisa para investigar a fundo a documentação dos Estados Unidos entre 1961 e 1968, mudamos o foco da narrativa, e o filme passou a ter como ponto de vista a participação norteamericana no golpe”, explica Camilo. Mesmo com a produção recente de um bom número de filmes brasileiros sobre a época da ditadura (embora o tema mereça ser lembrado sempre, para jamais repetirmos antigos erros), O Dia que
Durou 21 Anos consegue trazer à luz informações que ainda estavam parcial ou até totalmente na obscuridade. “A grande surpresa foi descobrir que John Kennedy, em 1962, já havia decidido derrubar João Goulart!”, diz Camilo Tavares. “A informação está registrada em telegramas e em uma gravação de áudio de uma conversa entre o Presidente e Lincoln Gordon, embaixador americano no Brasil, na época”, diz o cineasta, que explica também como obteve o precioso material: “Robert Bentley, assessor direto do Embaixador Lincoln Gordon , era conhecido do meu pai, em Brasília. Foi ele quem confirmou fatos importantes da conspiração civil americana para derrubar Jango, e a compra da mídia, de deputados e senadores pelo Ibad, que recebia muito dinheiro da administração Kennedy em 1962 e 1963”. Na visão de Gordon, João Goulart poderia vir a ter, para o Brasil, a mesma força que Perón representou para a Argentina, e alertou insistentemente Kennedy sobre este “perigo” contra o american way of life. Além de Gordon, o filme especifica também de forma clara e direta a atuação do Coronel Vernon Walters, adido militar dos Estados Unidos no Brasil, não somente como uma das grandes forças que levaram à queda de Jango, mas também como uma das mais importantes influências na escolha do nome do Marechal Castelo Branco para primeiro Presidente da ditadura militar. A produção de O Dia que Durou 21 Anos contratou pesquisadores em Washington e em Nova York, além de contar com o apoio do historiador Carlos Fico e da jornalista Denise Assis para levantar o máximo de documentos, áudios e imagens de televisão referentes a John Kennedy e a Lyndon Johnson sobre o Brasil. “O acesso aos arquivos brasileiros foi mais difícil e penoso que o acesso aos arquivos americanos”, afirma Camilo. “Nos Estados Unidos tudo é regulamentado pela Lei do Livre Acesso à Informação, a Freedom of Information Act-FOIA, que libera documentos classificados como top secret da CIA e da Casa Branca com o passar dos anos. Após muita pesquisa e dinheiro, conseguimos imagens inéditas das redes de televisão CBS e NBC. São arquivos muito caros, mas organizados e muito bem preservados”, explica. Camilo lamenta que no Brasil a situação seja oposta: “Só para dar uma idéia, basta dizer que no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, não encontramos quase nada do Presidente João Goulart. Houve queima de arquivos do Jango e o material que existe está em condições de difícil acesso, pois não foi digitalizado e não está bem catalogado. Muitas imagens importantes de nossa História, que são de domínio público, estão nas mãos de particulares que as negociam a preço de ouro”. Sobre os arquivos e documentos oficiais brasileiros, Camilo faz uma provocação: “Imaginem se todas as conversas do Palácio da Alvorada fossem gravadas e estivessem acessíveis ao público como estão as conversas feitas nos Estados Unidos. O Sarney nem queria liberar os documentos oficiais da Guerra do Paraguai, quanto mais os da ditadura!”, concluiu.
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DEPOIMENTO
TATA AMARAL
“O Brasil precisa resolver seus traumas do passado. Precisa punir seus criminosos”. FOTOS: DING MUSA
jeito simbólico, se é que dá para pensar assim, que para você dar um passo à frente você precisa resolver os traumas do passado. De certa forma, é um filme que a gente fez pensando muito numa concepção de Brasil, que é um país que quer ir pra frente e está indo pra frente, é uma democracia cada vez mais próspera, está resolvendo um monte de coisas. Mas para realmente o Brasil caminhar para uma situação de sociedade justa, ele precisa resolver este trauma do passado, esta mácula. Precisa punir os seus criminosos. Uma das pessoas que entrevistei como material de pesquisa para o filme fala que uma sociedade que não trata a questão da tortura é uma sociedade que aceita a tortura. E a verdade é que a gente aceita a tortura. Agora não é mais uma tortura política, mas é uma tortura das pessoas pobres que estão na cadeia. A gente sabe que elas são torturadas, a gente vê nos jornais, a Polícia levando o moleque para um canto e atirando no pé. A gente vê isso, é conivente, e nunca tratamos disso. É importante, é atual, e não é passado: é hoje.
P OR C ELSO S ABADIN
Um filme sobre os anos de chumbo da ditadura militar brasileira, totalmente realizado sem nenhuma imagem de arquivo, sem nenhuma reconstituição de época. Assim é Hoje, longa-metragem produzido e dirigido por Tata Amaral, que investiga antigos medos e culpas que parecem jamais morrer. O Jornal da ABI conversou com exclusividade com a cineasta. Jornal da ABI – A ditadura realmente acabou ou ela de alguma maneira continua viva dentro das pessoas?
Tata Amaral – Olha, eu acho que ela acabou, sim. O que o filme Hoje fala, é que ela deixou marcas, principalmente pelo fato de que no Brasil a gente não identificou e não puniu os responsáveis pela tortura. Estas pessoas que viveram, tiveram perdas ou que foram torturadas trazem consigo marcas desse período. Muitas destas marcas se referem ao fato de que elas nunca realmente falaram do que aconteceu com elas, como se vivessem sob um silêncio autoimposto. Muitas delas não souberam a verdade em relação às pessoas que perderam. Esse é o caso da nossa personagem, a Vera (Denise Fraga), que ficou anos atrás do seu companheiro desaparecido. Ela viveu durante anos numa espécie de estado de “suspensão”, sem saber se era viúva ou não. Essa situação da ditadura militar, de o Governo brasileiro não reconhecer a morte das pessoas, de não assumir estes crimes, fez que muita gente ficasse nesse estado de suspensão. Um pai, um marido ou uma mulher não podia se casar de novo porque não era oficialmente viúva ou viúvo. O filho não podia herdar porque na verdade o pai não morreu oficialmente; uma criança não podia viajar sozinha com a mãe porque não tinha a certidão de óbito do pai, nem autorização para viajar; enfim, muita gente viveu nesse estado de suspensão. Neste sentido, a Lei dos Desaparecidos [Lei 9.140, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979] se propôs a investigar as circunstâncias do desaparecimento de algumas pessoas, e é essa situação que vive a personagem Vera: ela acaba de ter a morte do seu marido decretada pelo Estado, que reconhece então o assassinato e a indeniza. Com o dinheiro da indenização, Vera compra um apartamento. Jornal da ABI – Claro que sem contar o segredo final do filme, a sensação que
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Tata Amaral: O filme Hoje mostra que a ditadura militar deixou marcas, principalmente pelo fato de que no Brasil não foram identificados e nem punidos os responsáveis pela tortura.
passa é que Hoje também fala fortemente sobre culpa.
Tata Amaral – Exatamente, porque a culpa é uma das coisas mais importantes na ausência de verdade. As pessoas negociavam a sua própria dor com a tortura. Na época, existia a conhecida “regra das 48 horas”, ou seja, na pior fase da ditadura, se um militante ficasse 48 horas sem se encontrar com outro militante, isso significava que a pessoa tinha sido presa, e o outro deveria fugir. Quem foge, foge com culpa. Os regimes de opressão são horríveis porque eles fazem a vítima se sentir culpada. O filme trata disso também. Jornal da ABI – Por que este tema te interessou como cineasta? O que você viveu da ditadura?
Tata Amaral – Eu vivi muito pouco porque eu era criança e depois pré-adolescente nesse período. Não tive nenhum parente diretamente envolvido com a militância nessa época. Posteriormente, o pai do meu primeiro marido foi cassado, mas eu mesma não vivi diretamente este período. A história do filme é baseada no livro Prova Contrária, de Fernando Bonassi. Quando eu li o livro, vi que ele falava muito de uma situação de perda e de ausência, de uma relação que foi rompida de forma abrupta no passado. Me chamou a atenção em especial um
capítulo sobre suicídio, onde a mulher fala de como ela quis morrer de tanta falta que ela sentia do marido desaparecido. Eu me identifiquei imediatamente com isso, porque perdi meu primeiro marido, o pai da minha filha, quando eu tinha apenas 19 anos. E eu lia aquele livro e pensava: “Nossa, mas é muito pior que isso que está escrito”. E senti que eu queria fazer um filme sobre isso, sobre a ausência de uma pessoa que se foi muito cedo das nossas vidas, e de uma forma violenta. No caso dele não foi política, embora, nós dois fôssemos militantes de uma organização clandestina. Mas, enfim, o livro trata exatamente deste período, da história de uma mulher que compra um apartamento com o dinheiro que ela recebe de indenização pelo desaparecimento do marido, e no dia da mudança, o marido volta. Jornal da ABI – O “dia da mudança” de que você fala é extremamente significativo, porque ela não só está tentando mudar, como ela passa o filme todo tentando arrumar aquele apartamento como se fosse uma arrumação interna dela.
Tata Amaral – Exatamente, é um dia especial para ela, um dia em que ela dá um passo à frente, quando ela finalmente se dispõe, tem condições de deixar o passado para trás. Ela está querendo ir pra frente. O filme de certa forma coloca de um
Jornal da ABI – O fato de termos uma Presidente que foi torturada, de certa forma fecha um ciclo?
Tata Amaral – Eu acho que é um passo importante para fechar o ciclo. Acho que o ciclo só se fechará quando, a exemplo de alguns países da América Latina, a gente conseguir colocar um fim nisso. O fim é identificar e punir. Da forma que for. Você não pode dar perdão àqueles que não pedem. Essas pessoas cometeram um crime que lesa a Humanidade. A tortura é um crime contra a Humanidade. Hoje se você encontra um nazista na rua, por mais velhinho que seja, você tem que entregálo à autoridade, você não vai deixar de fazer isso. É crime não fazer isso: ocultação de criminoso. Aqui no Brasil a gente tenta fingir que isso não aconteceu. Jornal da ABI – Você vê no jovem de hoje essa noção do que foi a ditadura militar ou parece uma coisa muito distante para eles?
Tata Amaral – É engraçado, muito curioso. Eu vejo alguns jovens que nem sabem exatamente o que é uma ditadura, mas por outro lado vejo jovens militantes, jovens que estão pregando cartazes de desaparecidos, que estão atrás de resolver isso, de fazer com que a gente olhe para isso, militando muito mais do que adultos ou pessoas que foram militantes na época. Vejo as duas coisas. Eu me lembro também de que, minha filha, Caru, nasceu em 18 de agosto de 1979, três dias depois de promulgada a Anistia. Eu lembro que quando ela nasceu, eu e o pai dela,
a gente se abraçou e falou que queríamos que nossa filha crescesse e tivesse uma vida inteira vivendo com liberdades democráticas. Isso está acontecendo. Acho que vai acontecer, e tudo indica que ela vai ter essa vida inteira. O que a gente não podia imaginar é esse esquecimento. Eu não sou tão velha assim, nem ela, e no entanto, parece que houve um hiato de experiências.
Tata Amaral e Denise Fraga durante as filmagens: “Denise foi um achado para mim e para o filme. Ela conferiu ao personagem um sentimento muito profundo e, ao mesmo tempo, muito suave.”
Jornal da ABI – O cinema ajuda a suprir este hiato?
Tata Amaral – O cinema, a cultura, a escola, o conhecimento, o fato político, a Comissão da Verdade, a identificação dos criminosos, tudo ajuda. É um conjunto de coisas. O filme Hoje é basicamente um filme de amor. Ele tem um ambiente político, mas é um filme que fala de sentimento, e além disso, ele fala de hoje, ele não faz flashback, não mostra o passado. Ele encontra, hoje, as pessoas que tiveram um passado, e isso foi uma coisa que a gente buscou mesmo representar: como lidamos com o passado, hoje. Não através da reconstituição de época, mas através daquilo que fica no coração e na memória das pessoas. O filme traz uma busca, uma representação. Fiquei um tempo para descobrir como eu ia falar disso. A idéia das projeções nas paredes do apartamento vem suprir essa necessidade de criar uma
representação do passado, hoje. Tudo são emoções e ambientes. O coração e a realidade estão ali na parede, estão se relacionando o tempo inteiro, porque são presentes. Ela evoca suas emoções e lembranças de hoje. Jornal da ABI – Um filme com dois grandes protagonistas fortíssimos precisava de um elenco igualmente forte. Você optou por César Trancoso e Denise Fraga. Como chegou nestes nomes?
Tata Amaral – A Denise foi um achado pra mim, para o filme, pra minha vida, porque ela é uma pessoa muito especial e muito amorosa, e eu tive muita sorte de encontrá-la. Ela conferiu ao personagem um sentimento muito profundo, mas ao mesmo tempo muito suave de certa forma. Ela não pesa, não tem aquela coisa do drama grego, mas tem a dor profunda do personagem com muito amor. E o César também, foi muito importante ele ser um estrangeiro [o ator é uruguaio] por vári-
as razões: o personagem do Luiz se afastou durante um tempo da vida de Vera. Ele, uruguaio, não estava no país, que é uma situação dramaturgicamente importante. Isso tem a ver com o César ser uruguaio e ser um cara desta magnitude. Ele tem uma intensidade e ao mesmo tempo, uma economia na atuação, uma precisão que era muito importante para esse personagem. Jornal da ABI – Como nos seus filmes anteriores, Através da Janela, Céu das Es-
As mulheres põem política na tela Em documentários e produções ficcionais, elas levam ao cinema os dramas coletivos e individuais do Brasil de hoje. A força das mulheres, presente em todos os campos da atividade humana, também se faz sentir nos filmes brasileiros de viés político. Tanto no cinema ficcional, como é o caso de Hoje, como no documental. O cinema documental, diga-se, tem vivido uma espécie de “Era de Ouro” desde 11 de setembro de 2001, data-chave em que se percebeu que a realidade poderia ser muito mais fantástica e espetacular que a ficção. No Brasil não é diferente, com o país lançando em circuito uma média de 40 longas documentais a cada ano, afora aqueles que, pelos mais diversos motivos, sequer chegam aos cinemas. A força feminina, aliada ao interesse pelos documentários, somada a uma necessidade intrínseca brasileira de rever nosso passado recente, permite criar um “recorte” (para usar a palavrinha da moda) bem específico dentro do cinema brasileiro: o das mulheres cineastas dispostas a investigar com suas câmeras os diversos aspectos da nossa História Política. O tema não é exatamente uma novidade. Já em 1974, em plena ditadura, a cineasta Ana Carolina realizou seu longa Getúlio Vargas, utilizando vasto material de arquivo do Departamento de Imprensa e Propaganda-Dip, da Agência Nacional e Fundação Cinemateca Brasileira. Na época, a crítica direta aos militares não era possível, mas quem soube ler nas entrelinhas percebeu o subtexto de
condenação contra todo e qualquer despotismo estatal. Mais tarde, passada a fase mais truculenta do regime militar, Tetê Moraes lançou Terra para Rose, documentário sobre a luta do movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Rio Grande do Sul que na época, 1987, já durava 14 anos. Naquele momento de abertura lenta e gradual, o filme encantou as platéias então desacostumadas à discussão de temas sociais, e ganhou 12 prêmios nacionais e internacionais. Terra para Rose geraria também uma continuação, O Sonho de Rose – 10 Anos Depois, dirigido pela mesma cineasta, em 1996, e lançado no ano 2000. Nesta seqüência, vários dos personagens do primeiro filme são revisitados dez anos depois, como diz o próprio título do longa, mostrando que muitos daqueles Sem Terra conseguiram transformar seus sonhos em realidade, tornando-se pequenos agricultores e trabalhando em cooperativas. O Sonho de Rose – 10 Anos Depois foi premiado como o Melhor Documentário pelo Júri Popular na 26ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entre vários outros prêmios. A narração é de Lucélia Santos, que no ano seguinte, 2001, lançaria seu próprio documentário como diretora: Timor Leste, O Massacre que Ninguém Viu, sobre a sofrida história recente da ex-colônia portuguesa na Ásia.
Ainda nos anos 1980, Lúcia Murat lançou Que Bom Te Ver Viva, misto de documentário com dramatização que através de depoimentos e da atuação da atriz Irene Ravache denuncia situações de tortura vividas durante a ditadura militar brasileira. Murat, ela própria torturada, ao contar as trajetórias de algumas mulheres brasileiras que pegaram em armas contra o regime, tornava-se também
pioneira na abordagem deste tema ainda tão recente e ainda tão proibido. Anos depois, a cineasta retoma o assunto com Uma Longa Viagem, de 2011. Agora, porém, sob um prisma diferente: a narrativa é levada pelo irmão mais novo de Lúcia, que ao contrário de sua irmã não participa da luta contra a ditadura, exilase voluntariamente em Londres, viaja pelo mundo e acaba sofrendo problemas psiquiátricos. Como não poderia deixar de ser, argumentos mais sintonizados com o universo feminino também fazem parte dessa linha de documentários. Dirigido por Ana Luiza Azevedo, Ventre Livre, por exemplo, já chamava a atenção, em 1994, para o fato de “no maior País católico do mundo”, (como dizia o material de divulgação da época) mais de 30 mil mulheres morrerem anualmente em conseqüência de abortos. Enquanto Leite e Ferro, que Claudia Priscila filmou em 2010, enfocou as dificuldades que as mulheres detentas sofrem para terem o direito de amamentar seus filhos na penitenciária Assuntos não faltam nem faltarão. No próximo mês de maio, chega aos cinemas o documentário investigativo Elena, roteirizado e dirigido pela estreante Petra Costa. Resvalando em assuntos políticos e pessoais, ela tenta desvendar o mistério da morte da irmã que dá título ao filme, desaparecida em Nova York, 20 anos atrás.
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DEPOIMENTO TATA AMARAL
ACONTECIMENTO ROBERTO STUCKERT FILHO
trelas e Antonia, você retrata uma história de uma mulher forte. Isso é consciente ou é consequência natural de sua obra?
Tata Amaral – Pois é, eu já tinha terminado a trilogia das mulheres com Antonia, mas acho que sobrou alguma coisa dos personagens femininos, e eu acabei, sem querer nesse processo todo, fazendo outra trilogia, que eu chamei de “iluminar o passado”. Trata-se de Rei do Carimã, um documentário sobre um episódio ocorrido na vida do meu pai; a minissérie Trago Comigo, que eu fiz para TV Cultura, e vai virar longa-metragem; e Hoje. Apesar de ter um personagem feminino sim, eu acho que são trabalhos que falam da iluminação do passado, da necessidade de trazer à tona o que está escondido. E embora eu deteste o simbolismo, eu flerto muito com ele através dos nomes dos personagens: ele, Luiz, nome que significa Luz; e ela, Vera que significa Verdade.
Jornal da ABI – Do que se trata em “Rei do Carimã”?
Tata Amaral – É um documentário que conta a seguinte história: no dia do velório da minha mãe, meu tio, irmão do meu pai, começou a falar do meu pai e da minha mãe. E me disse que meu pai tinha sido uma pessoa muito rica, coisa que eu nunca tinha ouvido falar. Eu dizia: “Tio, como é que ele arrumou tanto dinheiro? E que fim levou este dinheiro?”. Então meu tio conta que tudo aconteceu antes dele conhecer minha mãe, que houve um problema que envolveu uma fuga para o Mato Grosso, enfim, uma história que ele não conseguiu contar por inteiro durante o velório. Mas fiquei com aquilo na cabeça, fui perguntando para os outros tios e cada hora eles me respondiam uma coisa diferente. Tudo muito evasivo. Então eu quis fazer um filme para descobrir o que aconteceu com o meu pai, fiz o filme e descobri. Foi um processo libertador, porque minha família não sabia tudo o que o filme descobriu. Na verdade, não é que eles eram evasivos, mas o meu pai, por ser o irmão mais velho, não contou tudo para todo mundo. Então cada um sabia um pedaço da história, e foi maravilhoso para minha família ter feito este filme, ter colocado luz nestes fatos, trazido à tona essa verdade.
Jornal da ABI – Também tem um fundo político ou é mais uma questão pessoal?
Tata Amaral – Questão pessoal mesmo. No fim, tem um fundo político, e tem a ver com o momento em que Estados Unidos entraram no Brasil no final dos anos 1940 e começo dos 1950. Truman, Dutra, tem a ver com tudo isso sim, mas de uma forma muito indireta. Para saber mais, só vendo o filme [risos].
Jornal da ABI – E os novos projetos?
Tata Amaral – Finalizei a montagem de Trago Comigo, que é este longa-metragem baseado na série de mesmo nome, que realizei com a TV Cultura e Sesc TV. E agora tem o filme De Menor, que eu produzi, e é a estréia na direção da minha filha Caru Alves de Souza. É a história de uma jovem advogada que sai da faculdade de Direito, interpretada por Rita Batata, que consegue um emprego na Defensoria Pública, defendendo menores infratores. 34
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A Presidente Dilma Rousseff encontra o Papa Francisco no Vaticano, logo depois de sua eleição: a imprensa acompanhou o passo-a-passo do Pontífice.
O show da imprensa na eleição do Papa Francisco I A escolha do sucessor de Bento XVI atraiu a Roma 5.600 jornalistas de 1.400 veículos, de 24 idiomas e 65 países. P OR C LÁUDIA S OUZA E I GOR W ALTZ
A eleição do sucessor do papa emérito Bento XVI chamou a atenção da imprensa mundial. Pelo menos 5.600 jornalistas, de 1.400 veículos de imprensa, de 24 idiomas e 65 países, obtiveram credenciais para a cobertura do conclave, que começou no dia 12 de março. Antes da concessão de autorização, o Vaticano levantou informações sobre os profissionais e os veículos que representam. O Vaticano montou uma estrutura específica para a cobertura do conclave. Havia uma sala de imprensa na Santa Sé com direito a informações e imagens enviadas pela Rádio Vaticano, o Centro Televisivo Vaticano e o Conselho Pontifício para as Comunicações Sociais e da União Européia de Rádio FM (EBU). A equipe de imprensa do Vaticano foi eficiente e cuidadosa: em geral, transmitiu informações em vários idiomas em tempo real, mas o conteúdo atualizado com mais freqüência era o divulgado em italiano. No centro de imprensa foram definidas 18 posições para os cinegrafistas, 21 cabines para os repórteres de rádio e espaço para 28 emissoras de televisão. Apesar do esforço para a organização, o espaço era insuficiente para a quantidade de jornalistas presentes na cobertura. Muitos tentavam evitar o uso da sala de imprensa em busca de informações diferenciadas e da garantia de internet. A Votação
O conclave, votação secreta que escolhe o novo pontífice, foi convocado após
a renúncia de Bento XVI, anunciada em 11 de fevereiro e concretizada dezessete dias depois. Ele foi o primeiro Papa a renunciar em mais de seis séculos, gerando um clima de desconforto para a Igreja. Bento XVI alegou que não tinha mais forças para o trabalho na Igreja. Contudo, seu pontificado atravessava várias crises, como escândalos de acobertamento de inúmeros casos de pedofilia e vazamento de documentos secretos no chamado escândalo VatiLeaks. O conclave ocorreu após dez congregações gerais de cardeais, nas quais os problemas da Igreja foram debatidos. De acordo com a imprensa italiana, um dos principais temas das discussões teria sido um dossiê preparado em 2012, a pedido de Bento XVI, sobre irregularidades na Cúria Romana. Na segunda votação, o conclave definiu no dia 13 de março o nome do Cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio como novo Papa, Francisco I, sucessor de Bento XVI à frente da Igreja Católica Apostólica Romana. Jorge Mario Bergoglio, 76 anos, foi o primeiro padre jesuíta a assumir com a missão de manter a unidade da Igreja, que, nas palavras de seu antecessor, está dividida e imersa em crises, escândalos de pedofilia, de corrupção e vazamento de documentos secretos. Às 19h06 do horário do Vaticano (15h06 de Brasília), a fumaça branca surgiu e os sinos da Basílica de São Pedro dobraram. Sob frio intenso e chuva, centenas de milhares de pessoas aguardavam o anúncio do novo pontífice, feito pelo mais velho dos cardeais-diáconos, o francês Jean-Louis Tauran.
Em breve aparição na varanda central da Basílica de São Pedro, o Papa agradeceu ao seu predecessor, o agora Papa Emérito Bento XVI: “Vocês sabem que o objetivo do conclave era dar um bispo a Roma. E parece que meus amigos cardeais o foram buscar quase no fim do mundo (fazendo referência à Argentina). Mas aqui estamos. Obrigado. E antes de mais nada, gostaria de fazer uma oração pelo nosso Papa Emérito, Bento XVI. Oremos todos juntos por ele, para que o Senhor o abençoe e Nossa Senhora o receba”. Jorge Mario Bergoglio também pediu orações pelo seu pontificado: “Rezem por mim. Nesta quinta-feira vamos orar para Nossa Senhora. Boa noite a todos e bom descanso”, finalizou, sob aplausos da multidão. O nome de Jorge Mario Bergoglio foi escolhido pelos 115 cardeais. A decisão surpreendeu já que o argentino não aparecia nas listas de favoritos, que incluíam o brasileiro Dom Odilo Scherer e o italiano Angelo Scola. Nascido em 17 de dezembro de 1936, em Buenos Aires, na Argentina, Jorge Mario Bergoglio formou-se engenheiro químico, mas escolheu posteriormente o sacerdócio, entrando para o seminário em Villa Devoto. Em março de 1958, ingressou no noviciado da Companhia de Jesus. Em 1963, estudou Humanidades no Chile, retornando posteriormente a Buenos Aires. Entre 1964 e 1965, Bergoglio foi professor de literatura e psicologia no Colégio Imaculada Conceição de Santa Fé e em 1966 em um colégio de Buenos Aires. De 1967 a 1970, estudou Teologia. Em 13 de dezembro de 1969, foi ordenado sacerdote.
ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO/ACERVO ÚLTIMA HORA
HISTÓRIA
O fotógrafo Roberto Maia fez o registro do embarque do casal Wainer, no Galeão.
UM MONUMENTO À MEMÓRIA O Arquivo Público do Estado de São Paulo preserva um dos maiores acervos da imprensa brasileira. Boa parte já está digitalizada e disponível. P OR M ARCOS S TEFANO
“Neste nefasto Dia de São Bartolomeu, precisamente às 8:35 horas, praticou o suicídio o Presidente Getúlio Vargas, com um tiro de revólver no coração, quando se encontrava em seu quarto particular, no terceiro andar do Palácio do Catete. O general Caiado de Castro, Chefe do Gabinete Militar da Presidência da República, correu para os aposentos presidenciais, ao ouvir o disparo, e ainda encontrou o Presidente Vargas agonizante. Chamou às pressas a assistência pública, que dentro de cinco minutos já se encontrava no Palácio do Catete. Mas o grande Presidente Vargas já estava morto. Não pode ser descrito o ambiente no Palácio Presidencial. Tudo é consternação. Membros da família do Presidente, serviçais, militares que guarnecem o Palácio choram a morte do insigne brasileiro. O povo em massa acorre para o Palácio do Catete, estando repletas as ruas que dão acesso à casa em que se matou, vítima da ignomínia e das campanhas infamantes de adversários rasteiros, o maior estadista que o Brasil teve, neste século. Cenas de profunda dor estão sendo assistidas na rua. Lê-se o pesar no ros-
to do povo. O povo brasileiro chora a perda do seu Presidente, por ele escolhido, por ele eleito e que – na crise gerada por seus inimigos – só saiu do Catete morto.” Foi com este texto estampado na primeira página que o jornal Última Hora chegou às bancas naquele fatídico 24 de agosto de 1954. A foto e a frase da manchete eram quase as mesmas da véspera. No dia anterior, o jornal publicara uma entrevista exclusiva na qual o Presidente declarava: “Só morto sairei do Catete”. Agora, poucas horas após o suicídio, o jornal noticiava: “Última Hora havia adiantado ontem o trágico propósito. Matou-se Vargas! O Presidente cumpriu a palavra: ‘Só morto sairei do Catete!’”. Ele cumprira sua palavra e o título dado pelo “severino” João Cabral de Melo Neto, então asilado na Redação, foi repetido porque já estava composto na oficina. O próprio Samuel Wainer mandou reimprimi-lo com a primeira página modificada às pressas para noticiar o momento histórico e de enorme efervescência. Uma multidão vinda da Central do Brasil se concentrou diante da sede do jornal. Surpreendido ao sair das oficinas, Wainer foi instado a falar com o povo. Mesmo sem microfone e tremen-
do de emoção, debruçou-se à janela da sobreloja e, com a voz rouca, pediu calma: “Ele morreu por vocês!”. Naquele dia, as rotativas não pararam. Não há números oficiais, mas há quem diga que 800 mil exemplares foram impressos e se esgotaram rapidamente. Entre aplausos e gritos, a turba se dispersou empunhando a Última Hora, o único jornal nas ruas, uma vez que quase todas as outras grandes publicações, que vinham atacando Getúlio Vargas, foram impedidas de circular ou rasgadas nas bancas. Diferente do que muitos pensam, a imprensa não somente é testemunha da História, ela é parte relevante dessa História. Sua importância não se limita às 24 horas em que os diários normalmente circulam. Transcende o tempo para se tornar retrato de épocas, de povos e da vida social. Conhecer o passado é essencial para compreender o presente e construir o futuro sem repetir os erros de outras horas, essa missão é quase utópica sem documentos e registros históricos, como os jornais e periódicos. Mas não se trata somente de preservar esses materiais. É preciso também garantir que o público tenha acesso a eles. Hoje,
no Brasil, poucas instituições conseguem cumprir tão bem esses papéis quanto o Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp). Suas origens remontam a 1721, quando o capitão-mor Dom Rodrigues César de Meneses, então Governador da Capitania de São Paulo, solicitou ao ViceRei “cópias das ordens mais modernas que há de haver”. Ele havia assumido o cargo mas não encontrou nada que pudesse nortear o começo de sua administração. Coube ao Secretário de Governo, Gervásio Leite Rebelo, promover o arrolamento dos papéis oficiais, estabelecendo aquilo que seria o núcleo inicial do acervo atual. Apesar dessa e de outras iniciativas, foi somente em 1892 que a atividade foi institucionalizada, com a tarefa de preservar os documentos da administração pública. Hoje, às vésperas de seu terceiro centenário, o Arquivo paulista é um dos maiores do País e conta com mais de 26 quilômetros lineares de documentação textual (a medida é tomada com as folhas empilhadas!), livros, imagens, mapas e periódicos. Um acervo proveniente das secretarias de Estado, do Poder Judiciário, de prefeituras, cartórios e coleções particulares, que vão desde manuscritos do Brasil Colônia aos prontuários do extinto Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo, o Deops/SP. A História da Imprensa preservada
Em meio aos vários fundos públicos (produzidos pelos órgãos do Poder Executivo de São Paulo), privados (doados ou comprados de particulares), e cartoriais (registros civis e de imóveis), a História contada nas páginas dos periódicos salta aos olhos. A instituição tem em sua guarda jornais e periódicos que datam desde o nascimento da imprensa no Brasil, ainda na primeira metade do século 19. “Há centenas de coleções dos mais variados jornais e revistas. Uns são mais simples, como aqueles produzidos nas comunidades de imigrantes, mas outros são de grande importância histórica. O foco é a imprensa paulista, mas também existem títulos de reconhecida relevância nacional”, destaca Lauro Ávila Pereira, Diretor do Departamento de Preservação e Difusão do Acervo do Arquivo. As coleções de periódicos estão em papel ou microfilme. Desde 2002, o Arquivo mantém o Projeto Memória da Imprensa, no qual, por meio de ações pontuais, esse acervo vem sendo sistematicamente digitalizado. Para superar a onipresente falta de recursos, a instituição conta com parcerias com grandes empresas para viabilizar o trabalho. Exemplo foi a associação, em 2007, com a gigante Advanced Micro Devices (AMD), uma multinacional que fabrica processadores para computadores. Além de permitir a digitalização de vários títulos, ela permitiu reunir alguns deles no site Memória da Imprensa. Estão lá exemplares de dez diferentes jornais, desde o século 19, e sete revistas literárias, culturais ou de variedades, do começo do século 20. Páginas especiais sobre cultura, esportes, gastronomia, abolição da escravidão, moda e a metrópole paulistana, além de homenagens a Millôr Fernandes e Nelson Rodrigues, completam o material online.
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MARCOS STEFANO
HISTÓRIA UM MONUMENTO À MEMÓRIA
Apesar da variedade, essa é apenas uma demonstração do acervo do Apesp. Nele, pesquisadores e interessados podem encontrar preciosidades que narram a trajetória da imprensa no Brasil, algumas que só existem lá. Entre coleções completas e parciais, estão a do pioneiro Correio Braziliense e do inovador Correio da Manhã; o Farol Paulistano, primeiro periódico da capital paulista, que circulou entre 1827 e 1833; e o Correio Paulistano, primeiro diário da província, lançado em 1854. Algumas das principais revistas ilustradas do final do século XIX e começo do XX também estão disponíveis. Entre elas, O Jornal das Senhoras, na verdade, uma publicação ilustrada com cara de revista, que apresenta as principais tendências da moda européia em fins do século 19; a Vida Paulista, com o principal da crônica paulista da virada do século; a modernista Anauê!; a satírica O Malho; e A Cigarra, esta última com mais de 300 exemplares já digitalizados e disponibilizados no site da instituição. A relevância de Última Hora
Neste panteão da notícia, nenhum fundo é mais significativo que o da Última Hora, o revolucionário e controvertido periódico do “profeta” Samuel Wainer. O material foi adquirido em 1990 pela Secretaria Estadual da Cultura, na época comandada pelo jornalista Fernando Morais, junto à família Wainer. Além de quase todas as edições cariocas do jornal, lançadas entre os anos de 1951 e 1970, há 166 mil fotografias, 2.223 ilustrações e mais de 900 mil negativos – inicialmente, pensava-se que seriam 600 mil, mas já tratados e catalogados cerca de 300 mil, percebeu-se que ainda havia mais de 2/3 do serviço por se fazer. “A coleção não está completa, mas sua relevância é enorme. Já digitalizamos e disponibilizamos no site as edições históricas e aquelas que estavam microfilmadas e vão de 1955 a 1969. Também há 112 mil fotos lá. Todo esse material está disponível para fins pedagógicos e educacionais. Para fins comerciais, é preciso autorização dos detentores dos direitos, no caso, o próprio fotógrafo ou sua família. Com o objetivo de facilitar os contatos, o Arquivo está montando um cadastro atualizado”, explica Pereira. Lançada em 12 de junho de 1951, UH, como era chamada, é apontada como uma das mais significativas experiências do jornalismo brasileiro no século passado. Ainda hoje é lembrada pelas inovações na apresentação gráfica, pelo vigor das opiniões em seus editoriais e nos textos de seus colunistas, pela agilidade nas reportagens e na cobertura dos fatos do dia-adia e pela valorização daqueles que trabalhavam lá – na época, era comum os repórteres terem vários empregos para se sustentar, o que não acontecia no vespertino, que pagava melhor. Com linguagem leve e pessoal, fotos grandes que traziam figuras públicas em poses ousadas e promoções e concursos, UH mostrou que era possível ser popular sem ser popularesco. Informar sem perder a seriedade. Mas a publicação não era somente popular, era também populista. Primeiro, carregou nas entrelinhas – algumas vezes de forma ostensiva – o modelo político 36
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getulista. Depois apoiou Juscelino Kubitscheck e, por fim, João Goulart. Incomodou a concorrência, formada pelas famílias tradicionais da imprensa do País, viu os grandes anunciantes sofrerem pressão para tirar seus produtos das páginas do jornal e, depois de 1964, foi duramente reprimida pelo governo militar. Nas mais de 44 mil páginas digitalizadas e disponibilizadas na rede pelo Arquivo, é possível encontrar tudo isso e ver como a publicação se tornou um espelho para o jornalismo atual. Em UH momentos marcantes da História recente ganham destaque em manchetões e textos provocativos. Considerada de menor importância em outros periódicos, a seção de esportes,
liderada pelo futebol, ganhou destaque na primeira página, com fotografias de metade de capa e profissionais específicos fazendo sua cobertura, era outra inovação de UH. Em vez de espaços restritos, apenas com resultados dos jogos ou narrativas cansativas sobre as partidas, textos dinâmicos e emotivos sobre a “arte” da bola. Em tempos de Copa do Mundo, ainda mais. Sob a direção de Samuel Wainer, o jornal acompanhou cinco mundiais. Na conquista do primeiro, em 29 de junho de 1958, na Suécia, contra os donos da casa, a festa foi tão grande que, nas palavras do periódico, “o povo antecipou o Carnaval”. A mesma comemoração se repetiria em 1962. Com sua estratégia de cobertura voltada para as comemorações nas ruas, mesmo na chegada dos jogadores brasileiros depois do triunfo, a edição carioca de 19 de junho destaca em letras garrafais: “TODO POVO FOI ABRAÇAR NAS RUAS OS SEUS HERÓIS”. Na Copa seguinte, em 1966, o jornal já sentia os efeitos da ditadura e o tom dos esportes acompanhava o tom político, indicando “de que forma o tri foi destruído”. Porém, a partir desse mundial ganha notoriedade a figura de João Saldanha. Um dos responsáveis pela cobertura e cronista do jornal, formulava críticas ao trabalho da Comissão Técnica e da então Confederação Brasileira de DesportesCBD, apresentando os bastidores e conchavos dos dirigentes. Antes de se tornar técnico do escrete canarinho, Saldanha foi um dos maiores críticos da transformação do esporte num mero e lucrativo negócio, à parte toda a paixão da nação. Como mostram os exemplares do fundo mantido pelo Apesp, o jornal era eclético. Além da morte de Vargas, há reportagens marcantes como a visita de Fidel Castro ao Brasil, a inauguração de Brasília e o golpe de 1964. “Extra, Extra, Extra” era uma expressão recorrente nas capas do jornal. Caso do assassinato do Presidente dos Estados Unidos John Kennedy, em 1963. “Não se conhecem ainda os motivos do monstruoso crime, mas tudo leva a crer que se trata do gesto de um fanático racista”, dizia o jornal, em sua primeira página. Em 14 de dezembro de 1968, o dia seguinte ao Ato Institucional número 5, a publicação estava sob vigília constante dos militares. Mesmo assim, conseguiu abrir espaço para um texto sobre um protesto silencioso realizado pelos freis capuchinhos do Rio de Janeiro e vaticinar: “Última sexta-feira 13 do ano não foi abençoada”. Tom bem diferente daquele adotado em 20 de julho do ano seguinte. Nessa data, a chegada do homem à Lua rendeu duas edições extras. Numa delas, destaque para a já famosa frase do astronauta Neil Armstrong: “Este é um pequeno passo para um homem, mas um salto gigantesco para a humanidade”. Menos nobre, mas igualmente badalada era a cobertura de crimes policiais. Colunas como Na Ronda das Ruas adotavam tons misteriosos para noticiar assassinatos cometidos na calada da noite. “Seria mais ou menos meia-noite quando o Sr. Luis Alves, proprietário de um bar localizado na Rua São Carlos, 67, preparava-se para fechar o seu estabelecimento. Nisso, um rapaz, ainda jovem, banha-
Lauro Ávila Pereira: Foco na imprensa paulista, sem deixar de lado títulos de reconhecida relevância nacional.
do em sangue, ingressou no bar e exclamou: ‘Covardes! Me mataram!’”, trazia a edição de 5 de setembro de 1956, usando um tom quase de folhetim. Esmero no texto era essencial em UH e por isso Wainer montou uma equipe de colunistas notáveis que contava com Arthur da Távola, Ignácio de Loyola Brandão, Jô Soares, Juca Chaves, Nelson Motta, Rubem Braga, Vinicius de Moraes e Adalgiza Nery. Durante dez anos, de 1951 a 1961, Nelson Rodrigues escreveu, seis dias por semana, sua A Vida Como Ela É e fez sucesso com contos sobre adultério, conflitos familiares e amores proibidos. Em outra parte, Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, exibia críticas do mundo das artes. Tudo complementado por caricaturas, charges e ilustrações, que já não se limitavam mais à política e eram assinadas por nomes como Nássara, Jaguar, Octávio, Henfil, Egberto e Caulus. Agora, com o trabalho de digitalização do acervo, personagens que marcaram época, como o Corvo, representando o jornalista e político Carlos Lacerda, e os gorilas fardados, aludindo aos militares, ganham nova vida na internet. A riqueza dos Diários Associados
Pela importância que teve, seu caráter de resistência e mítica que se formou em torno do jornal, o Fundo Última Hora é o mais conhecido sob a guarda do Arquivo paulista. Mas não é o único. Outros acervos relevantes por conta das imagens e edições são do jornal Aqui São Paulo, do alternativo Movimento e dos Diários Associados em São Paulo. Este último contém os registros produzidos e acumulados pelo antigo Diário de São Paulo e pelo Diário da Noite, dois importantes veículos da cadeia de Assis Chateaubriand, entre as décadas de 1930 e 1980. Além de edições das publicações, há muitas fotografias, ilustrações, caricaturas e jornais. Contas preliminares estimam quase um milhão de itens e imagens. “A riqueza desse material não está somente no fato de São Paulo ser uma praça forte para a cadeia dos Associados. Também por conta da troca de materiais feita com outros jornais e revistas do grupo que, por anos, foi o maior do País. Como sabem aqueles que já trabalharam nas Redações, os jornais acumulam recortes, folhetos,
O NOVO E CENTENÁRIO ARQUIVO PÚBLICO Há 120 anos, quando o Arquivo Público do Estado de São Paulo foi oficialmente criado, ainda com o nome de Repartição de Estatística e do Archivo do Estado, podia-se realmente criticar o brasileiro por ter memória curta. Apesar de ser um tempo agitado, no qual a tipografia a vapor virou coqueluche e jornais, revistas e folhas tipográficas eram produzidas aos montes, os documentos históricos do Estado ficavam nos porões do Palácio do Governo, que funcionava no Pátio do Colégio, no Centro da capital paulista. Em dias de faxina, quando o piso do andar de cima era esfregado com sabão, a água suja escorria com ímpeto pelas frestas, encharcava a papelada lá embaixo e levava consigo a tinta e parte da História. De lá para cá, muita coisa mudou. Inclusive a documentação, que passou por sete diferentes endereços, dos fundos de uma igreja que acabou demolida, a uma antiga fábrica de tapetes, a Manufactura de Tapetes Santa Helena, onde pesquisaram historiadores e cientistas sociais como Fernando Henrique Cardoso e Sergio Buarque de Holanda. Somente em 1997 o Arquivo veio para o espaço onde se encontra até hoje, na Rua Voluntários da Pátria, 596, em Santana, ao lado do Terminal Tietê. A princípio, essas antigas instalações, que pertenciam a outra tapeçaria, a Fábrica de Tapetes Ita, também ofereceram apenas um espaço improvisado. Mas isso mudou em junho de 2012, quando o órgão finalmente ganhou uma casa à altura de sua importância: um novo e moderno prédio, erguido no mesmo espaço.
Com investimentos de 87 milhões de reais, a construção foi especialmente projetada para abrigar os escritos históricos, com a adoção de inovações e tecnologias específicas. A começar pelo próprio conceito, uma estrutura vertical e com grande capacidade de armazenamento. Com altura de dez andares, o edifício possui cinco pavimentos com pé direito duplo, uma estrutura reforçada, capaz de suportar quase nove vezes mais peso do que a convencional, e estantes fixas, que podem guardar mais material e dispensam os armários deslizantes, muito mais caros. Com espaço maior, a instituição agora pode guardar até 70 quilômetros de documentos, mais do que o dobro do acervo atual, e mesmo realizar palestras e até exposições físicas. Essencial para a conservação de documentos, a climatização recebeu atenção especial. O novo prédio foi revestido com placas térmicas, dispostas para diminuir a entrada de luz e prevenir o aquecimento. Para manter diferentes temperaturas nos diversos ambientes e ainda controlar a umidade, esse sistema atua junto com outro, voltado à refrigeração. Em uma torre alta, 1,5 milhão de litros de água gelam durante a noite e, de dia, circulam pelo edifício. Assim, o andar reservado à cartografia pode funcionar sob condições diferentes daquele onde estão a hemeroteca e a biblioteca da instituição. Para garantir a segurança do acervo e também das 280 pessoas que ali trabalham foram instaladas câmeras, controle de acesso pela impressão digital e um sensível sistema contra incêndio.
O caminho da preservação
DIVULGAÇÃO
encartes nacionais e estrangeiros, radiofotos e outras coisas que um dia podem ser úteis. O desafio é separar tudo isso”, diz o jornalista Vladimir de Abreu Sacchetta, Presidente da Associação de Amigos do Arquivo, entidade parceira do Apesp em vários projetos. Ainda mais impressionante do que o acervo em si é a forma como chegou ao Arquivo Público. A história se assemelharia a uma charge humorística se não se parecesse mais com um folclore trágico. Os bens dos jornais foram à leilão há alguns anos e acabaram arrematados por um sucateiro, interessado nos móveis. Ele só não esperava que os arquivos viessem “cheios” de papel. Pior: que boa parte fosse composta por arquivos de ferro, deteriorados pela ferrugem. Sem valor comercial, essa parte foi passada adiante. Assim, o material passou pela Editora Companhia Nacional e pelo jornal Folha de S. Paulo. O problema era: o que fazer? Tratava-se de 235 arquivos de ferro carregados. Para que tudo fosse preservado seria preciso um alto investimento e isso estava fora do alcance daquelas empresas. Assim, doar tudo para o Apesp surgiu como opção de um bom negócio. “Precisamos de vários cinzéis e martelos para abrir tudo”, brinca Lauro Ávila Pereira, mas não sem uma dose de preocupação. “Acervos assim são vistos nos negócios como verdadeiros ‘elefantes brancos’. Este dos Diários Associados, como o da Última Hora, veio para nossas mãos. Mas quantos já não se perderam ou foram destruídos? É uma parte importante da História da imprensa e da memória brasileira que se esvanece”. Atualmente o fundo dos Diários Associados se encontra indisponível. Tudo está separado e preservado em 4.200 caixas, mas faltam os recursos para tratar, organizar e digitalizar. Em 2011, o Programa de Preservação de Acervos, financiado pelo BNDES, selecionou e aprovou o projeto, mas ainda não foram liberados os recursos para a empreitada. Acreditase que serão necessários quase R$ 655 mil para concluí-la. Mas a falta de verba não limita somente esse trabalho. “Nossa missão não é somente preservar, também garantir o acesso dos materiais que estão sob nossos cuidados ao maior número de pessoas. Para isso, o alvo é digitalizar e o caminho será longo”, afirma a bibliotecária Renata Gonçalves, Diretora Técnica do Núcleo Biblioteca e Hemeroteca do Apesp. Não há exagero em suas palavras. Somente da hemeroteca do Arquivo Público fazem parte 1.371 títulos de jornais e outros 1.188 de revistas. Entretanto, a instituição recebeu recentemente a guarda do acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de São Paulo e com ele mais 4.984 títulos de jornais e 1.152 títulos de revistas e outras publicações. Boa parte da capital paulista e do interior do Estado, mas também de todo o Brasil e do exterior. Algumas completas, outras não. Umas correntes, outras já encerradas. Só da coleção do Correio da Manhã, jornal fundado em 1901, no Rio, por Edmundo Bittencourt, são 892 pastas de exemplares. Trata-se de uma – ou várias – História que ainda precisa ser contada.
A climatização recebeu atenção especial no novo prédio, que foi especialmente projetado para abrigar documentos históricos com a adoção de inovações e as mais modernas tecnologias.
Quando novos materiais e documentos chegam, é a hora de os técnicos e laboratórios entrarem em ação. O primeiro passo é identificar sua procedência e relevância, se é histórico e se deve ser guardado. Mas antes de ir às prateleiras, esses papéis passam por uma quarentena. A preocupação é com ameaças biológicas e microbiológicas, como as temidas brocas e os fungos. Se qualquer praga for identificada, todo o material permanece isolado em dois grandes depósitos de 300 metros quadrados até ficar completamente livre da infestação. Um dos tratamentos mais costumeiros é o da anoxia, pelo qual a documentação é colocada num ambiente sem oxigênio por um período de 30 a 40 dias. Somente após esse tempo, o lote pode ser higienizado. Com cuidado, claro. Para tirar a poeira e incrustações superficiais dos documentos, os técnicos do Arquivo usam pincéis de cerdas macias, principalmente aqueles de pelos de animais. Mas, em alguns momentos, até eles podem ser trocados por simples bombinhas de ar. É o caso da higienização dos negativos fotográficos. Constituídos por nitrato ou acetato de celulose, eles são extremamente frágeis e vulneráveis. Pinturas e livros com aquarelas, por causa das tintas e das cores, enquadram-se na mesma situação. Somente em situações mais extremas, quando por exemplo o negativo está muito sujo, pode ser limpo com uma solução de álcool isopropílico. “É assim que estamos procedendo com centenas de milhares de negativos do Fundo Última Hora. – aponta o historiador Marcelo Lopes, Diretor de Preservação do Arquivo. Ele explica que o material é dividido em lotes, inventariado, higienizado e reacondicionado em novas embalagens e só então microfilmado ou digitalizado. “Transcrevemos todas as informações dos envelopes originais, em péssimas condições de conservação, rasgados ou esfarelando, e feitos de papel ácido, que danifica os negativos. A proposta é manter o máximo possível a organização original, inclusive, com o nome da pauta ou da cobertura fotográfica. Só depois fazemos a captura das imagens com uma câmera de alta resolução”, completa. A partir daí, enquanto o negativo é levado para o armazenamento definitivo, a imagem é tratada: são feitas correções, inversão para o positivo, aplicação de marca d’água, inserção de metadados e gerados dois formatos. O JPEG é para visualização rápida, o TIFF, de maior qualidade, para impressão gráfica. “Essa não é a parte mais complicada”, garante o historiador Wellington Oliveira Teixeira, Executivo Público no Núcleo
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FOTOS ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO/ACERVO ÚLTIMA HORA
HISTÓRIA UM MONUMENTO À MEMÓRIA
de Acervo Iconográfico da instituição. “Nossa missão é facilitar ao máximo o acesso do público a esse material. Mas temos apenas o nome, quando muito, dos fotógrafos. Precisamos encontrá-los ou a seus familiares e disponibilizar contatos para quem quiser adquirir as imagens. Já conseguimos fazer isso com umas duas dezenas, mas ainda faltam mais 277 profissionais”, conta ele. Não são poucas as vezes que os técnicos do Apesp precisam realizar verdadeiros milagres para salvar documentos históricos. No caso de papéis antigos, quando estão danificados, o reparo tem que ser mecânico. As intervenções são variadas e dependem do grau da deterioração. Clips, grampos e outros objetos metálicos são simplesmente tirados. Vincos, dobras e amassamentos são corrigidos com aplanamento. Rasgos, se forem pequenos, dependendo do documento, podem ser tolerados. Apenas conservados em papel neutro alcalino ou poliéster, como acontece com mapas e fotografias antigas. Se forem maiores ou estiverem faltando partes inteiras do papel, pode ser preciso tratamento químico. “Para corrigir esses defeitos, usamos papéis japoneses de diferentes gramaturas, com cola à base de celulose e solúvel em água. É o que chamamos de reversibilidade. Pior mesmo é arrumar jornais. Esse é o pior tipo de suporte em papel: é mais frágil e mais ácido. Ninguém gasta com qualidade na celulose de eucalipto, pois a informação tende a caducar em 24 horas”, analisa a química e restauradora Norma Cianflone Cassares, Diretora do Núcleo de Conservação e Restauro. Quando algum acidente envolvendo a documentação de órgãos da administração pública em São Paulo acontece, os técnicos do Arquivo normalmente são chamados. E, acredite, fazem milagres. Foi o que aconteceu nos primeiros dias de 2010, quando a cidade de São Luiz do Paraitinga foi arrasada por uma forte enchente. Pelo menos oito prédios históricos do Município, entre eles a igreja matriz e a Prefeitura, ficaram debaixo de água. Alguns desabaram. Enquanto a população assistia ao desastre pela televisão, o pessoal do Apesp via suas conseqüências in loco. Norma lembra bem da ocasião: “Toda a documentação histórica foi resgatada e trazida para cá. Era terrível. Por causa da água e da lama, os papéis se transformaram numa massa de celulose suja. Não dava para separar uma folha de outra.” O tratamento foi demorado e quase artesanal. Toda aquela pasta foi submetida ao chamado tratamento aquoso. Mergulhada em um tanque de água, com PH neutro, foi limpa e, levemente, separada folha a folha. Finalmente, após dois anos de muito trabalho e outras ações que se sucederam, grande parte daquilo que aparentemente estava perdido foi recuperada. “Ações assim exigem esforço nem sempre reconhecido. Mas quando temos a oportunidade de ver os resultados ou de salvar relíquias, como os desenhos dos antigos viajantes, pintando à mão a fauna e a flora brasileiras, vejo que valeu a pena. A história está em nossas mãos. Não é contada, é real. E estamos 38
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ajudando a escrevê-la também”, completa a química, restauradora e também milagreira Norma. Mais que amigos, parceiros
“A chave para a preservação da memória no Brasil é a vontade política.” A avaliação é contundente, correta e não saiu da boca de qualquer um. O jornalista Vladimir de Abreu Sacchetta acompanha há algum tempo as ações do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Tempo de sobra para saber que orçamentos nunca são suficientes, mas recursos sempre podem ser obtidos. Consegui-los é a função da Associação Amigos do Arquivo, entidade cujo Conselho Administrativo ele preside. Criada no dia 16 de setembro de 1987, aniversário do primeiro inventário de documentos públicos feito em São Paulo, a entidade surgiu para ajudar no aprimoramento técnico e cultural do Arquivo, mobilizar a comunidade a apoiar a instituição e captar recursos para ela. Se o Arquivo tornou-se modelo no País, deve muito disso à Associação, sua principal parceira na atualidade. Seminários, cursos, oficinas, exposições, publicações e os mais diversos projetos, entre eles a digitalização do jornal Última Hora, preservação de documentos históricos das cidades de São Paulo e de Campinas, dos séculos XVIII e XIX, tratamento e preservação de fichas e prontuários do Deops/SP e catalogação e preservação de documentos sobre a escravidão em terras paulistas. Perdão pelo trocadilho, mas nenhum desses projetos sairia do papel sem o trabalho da Associação. “A Associação dá suporte a tudo isso. Às vezes, o Arquivo apresenta suas demandas e solicita ajuda. Outras, são elaborados projetos comuns, entramos nos editais e os qualificamos. Assim, conseguimos contratar gente especializada para desenvolver, num tempo determinado, digitalizações, comprar equipamentos e conseguir recursos. Também estabelecemos parcerias com outras instituições, como universidades públicas, institutos e fundações”, diz Sacchetta, ressaltando ainda que a entidade é uma Organização Social de Interesse Público, uma Osip, e como tal é fiscalizada pelo Ministério Público. Parcerias como essas viabilizaram projetos como o Resistir é Preciso, do Instituto Vladimir Herzog, que digitalizou cerca de 100 páginas de publicações alternativas e de oposição ao regime militar no Brasil. No caminho para transformar o Arquivo paulista numa referência, a entidade conta com a força acadêmica e política. Já na sua fundação participaram personalidades como o professor Dalmo de Abreu Dallari, então Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a escritora Lygia Fagundes Telles, e funcionários do Apesp, entre eles o atual coordenador, o professor Carlos de Almeida Prado Bacellar. Atualmente, no Conselho Administrativo, estão professores renomados, como Boris Kossoy, Luiz Carlos Bresser Pereira, Marcelo Siqueira Ridenti e Maria Luiza Tucci Carneiro. (Marcos Stefano)
O Arquivo Público do Estado de São Paulo está empenhado em identificar o nome dos fotógrafos de milhares de fotos, como este retrato de Samuel Wainer, creditado apenas como Paulo Reis.
TESTES DE PATERNIDADE Arquivo Público de São Paulo faz campanha para identificar perto de 200 mil fotos do jornal carioca Última Hora e do paulistano Aqui São Paulo, publicadas entre as décadas de 1950 e 1970. P OR G ONÇALO J UNIOR
O clichê comum nas Redações diz que uma imagem fala mais que mil palavras e o seu impacto pode ser ainda maior que o da reportagem. É verdade. Historicamente, porém, sem informações básicas, como local e data, fica difícil compreendê-la. Muito menos se fora do contexto em que foi publicada. Do ponto de vista da memória, saber o nome do autor também é fundamental, o que nem sempre é anotado na correria do dia-a-dia dos diários. E esse tem sido o desafio do Arquivo Público do Estado de São Paulo nos últimos três anos: descobrir principalmente quem tirou cerca de 200 mil fotos do total de 600 mil negativos que compõem o acervo do extinto diário Última Hora, do Rio de Janeiro. Por isso, o Centro de Acervo Iconográfico e Cartográfico do Departamento de
Preservação e Difusão da instituição iniciou em março uma campanha para que fotógrafos, jornalistas, diagramadores, paginadores e outros funcionários dessas publicações ajudem a descobrir a paternidade das imagens. No momento, três dos oito funcionários da unidade estão empenhados na tarefa. Os organizadores já sabem os nomes da maioria dos profissionais, o que facilita a busca por eles. Entre os entraves, entretanto, destacam-se o fato de que vários já morreram e, em muitos casos, os seus nomes estão incompletos. Na lista aparecem nomes como Adir Vieira, Benedito Salomão, Carlos Mesquita, Demócrito Bezerra, Edson Moura Jam Kusal, Jáder Neves, Machado Ribeiro, Mário Sampaio, Paulo Galante, Paulo Medeiros, Walter Santos e Wilson Nascimento. Dos que se sabe apenas o primeiro nome ou pseudônimo destacam-se Amaro, Américo, D. Melo, De Paula (provavelmente, João Ba-
Estas três fotos fazem parte das quase 200 mil do acervo de Última Hora cujos fotógrafos estão sem uma identificação precisa. Da esquerda para direita, a pose da estudante Maria de Lourdes Monteiro, Rainha da Primavera de 1956, registrada por “Simão”; o cineasta Lima Barreto, através da lente de “Leite”; e o ator Paulo Gracindo, fotografado por “A. Meira”.
tista de Paula), Domingos, Firmino, Fonseca, Guerra etc. Elisabete Savioli, diretora do Centro, explica que a prioridade tem sido digitalizar os negativos por causa da sua fragilidade e risco de desgaste no manuseio por pesquisadores, apesar de toda coleção estar acondicionada em papel neutro e guardada em armários deslizantes, arrumados em salas climatizadas e sob constante vigilância. Do total, apenas cerca de 20 mil fotos em película são de base de nitrato, que poderia causar combustão espontânea e incêndio. “Essa hipótese não existe porque estão sempre sob monitoramento e em condições climáticas ideais”, afirma ela. Os negativos, já “positivados” – cerca de um terço – podem ser vistos em baixa resolução pelo site do Arquivo Público – www.arquivoestado.sp.gov.br –, na página de “Memória Pública” (goo.gl/0jCTd). Quem precisar de reprodução melhor, basta ir ao Arquivo e pedir. O que não
aparece identificado é tratado como de domínio público. Não há limite para as solicitações, mas a instituição restringe o fluxo, de modo a atender ao maior número possível e de maneira razoável os pesquisadores. Assim, é preciso retirar em quantidades menores. O lote de 166 mil imagens ampliadas em gelatina e prata sobre papel já passou pelo processo de higienização e catalogação e pode ser consultado diretamente. A digitalização, nesse caso, só acontece por demanda, de acordo com a necessidade do público. Dentre os fotógrafos identificados está o francês radicado no Brasil Jean Manzon (1915-1990), repórter fotográfico e diretor de documentários cujo nome se tornou referência em fotojornalismo. Ele trabalhou durante o início dos anos de 1950 como free-lancer para a edição carioca de Última Hora – a primeira de várias lançadas em vários Estados brasileiros, como São Paulo. Suas fotos da época – muitas inéditas – foram digitali-
zadas. Não aconteceu o mesmo com outros nomes. Elisabete observa que as anotações sumárias nos envelopes onde eram guardados os negativos muitas vezes não dão pistas sobre a identidade ou paradeiro destes profissionais. Os nomes registrados podem ser telegráficos, como “Cherman”, “Cognac”, “Simão”, “Padilha”, “Nilo” etc. E nem todos eram fotógrafos de ofício. Muitas vezes a foto era assinada por alguém que, na verdade, era repórter, e apenas improvisou algumas fotos para determinada matéria. De qualquer forma, identificar e achar esses 96 fotógrafos – ou suas famílias, no caso dos já falecidos – é uma questão de grande importância para o Arquivo. “Identificar a autoria garante os direitos e a lisura no uso dessas imagens”, afirma o Coordenador do Arquivo Público do Estado de São Paulo, Carlos Almeida Prado Bacellar. A tarefa é árdua pelo tamanho da coleção. “O trabalho tem sido interessante porque ti-
vemos contatos com algumas pessoas que viveram o dia-a-dia das duas Redações”, observa Elisabete. Como os fotógrafos Ignácio Ferreira, o Ferreirinha, e Walter Firmo, que se empenharam em ajudar na identificação das fotos. “Essas pessoas ficam emocionadas porque voltam a ter contato com imagens que foram fundamentais em suas vidas, com as quais construíram os alicerces de suas carreiras. Tanto tempo depois, vêem esse material por outra ótica”. Outro desafio do Centro é descobrir quem fez parte das 2.140 ilustrações originais, entre charges, caricaturas e desenhos que marcaram o projeto gráfico inovador do jornal de Samuel Wainer. Passaram pelo jornal artistas importantes como o uruguaio Guevara, Mendez, Nássara, Jaguar e muitos outros. “Esse é ainda um projeto que está em andamento”, diz Elisabeth. Nesse caso, a ajuda de pesquisadores e especialistas em artes gráficas poderá facilitar muito o trabalho de identificação.
Procurados vivos ou mortos São 96 os fotógrafos que ainda não foram identificados e/ou encontrados cujas fotos estão no acervo de imagens de Última Hora. Quem conhecer algum poderá entrar em contato com o Centro de Acervo Iconográfico e Cartográfico do Departamento de Preservação e Difusão do ArÁlvaro Paes Leme A. Mello (provavelmente, Antônio Mello) A. Nunes Adão Adir Vieira Álvaro de Barros Amaro Américo Armando Cunha Batista Benedito Salomão Carlos Mesquita Cherman Cognac Crespim D. Melo Demócrito Bezerra De Paula (provavelmente, João Batista de Paula) Domingos Edson Moura Jam Kusal Estrela (Waldir Braga) Firmino
Fonseca Francisco Ruas Guerra Heitor Almeida J. Ribeiro Jáder Neves Jair Mavigno Jam Kusal Firmino Jamilo Jankiel Gonczarowski João Etcheverry João Rocha Joel Maia Jonas José Casal José Gomes José Mavigno José Montenegro José Pinto Kanai Leite Luís Pinto Luís Santos Luiz Belo Machado Ribeiro
quivo Público do Estado de São Paulo, pelo telefone (011) 2089-8104 ou pelo e-mail iconográfico@arquivoestado.sp.gov.br. Nome completo, contato com a família, telefones, pistas de lugares onde esse fotógrafo trabalhou, qualquer informação é valiosa para a instituição. Eis seus nomes: Madaleno Magda Manoel Marcelo Mário Sampaio Marques Maurício Layl Mauritônio Meira Mera Silva Millagres Mineiro Miranda Mise Lacerda Monteiro de Barros Nélio Berto Nevelle Nilo Odair Odyr Amorim Orlando Alli Oscar Osvaldo Mattos Padilha Paulo André Paulo Galante
Paulo Medeiros Paulo Ourives Paulo Reis Paulo Rodrigues Pedro Braga Rodolfo Maia Rodrigues Júnior Rodolpho Machado Ronaldo Rubens Rui Costa Ryan S. Coelho Salviano Sarmento Sebastião Vieira Severino Sidney Silva Silvio Simão Soares Walter Santos Wilson Nascimento
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IMPRENSA
P OR J OSELIA A GUIAR
A estampa na capa, como se fosse azulejo, dá a pista: vem de Portugal o principal tema do jornal Pernambuco na edição que circula nos primeiros dias de março. A novíssima geração de ficcionistas d’além mar se apresenta nas páginas principais. O número de fevereiro trazia um Dom Quixote inteiro em branco a correr de frente, em fundo vermelho e preto vibrantes – o tema era a nova edição brasileira do clássico de Cervantes. A edição de janeiro tratou de literatura em tempo de internet: Clarice e Pessoa são alguns dos escritores que aparecem na capa como cabeças de livros. Inéditos de estreantes e consagrados, resenhas de lançamentos de editoras de todo o País preenchem as demais páginas da cada número, e assim um suplemento literário inicialmente estadual rompe as divisas nordestinas em que circula para, fincado numa pauta de abrangência nacional, alcançar por meio de site (www.suplementopernambuco.com.br), versão em flip e página do Facebook leitores da língua portuguesa em todo o mundo. Para quem só o conhece dos últimos meses, quando cresceu sua presença na internet, o jornal Pernambuco parece novidade, mas se trata de uma nova fase do Suplemento Cultural do Diário Oficial que existe desde os anos 1980, lembra um dos seus coeditores, Schneider Carpeggiani. Não é um jornal sobre a literatura pernambucana, nem sobre literatura nacional, como ressalta: “É um jornal de literatura, seja lá onde isso for. E mais: um jornal graficamente forte, em que as ilustrações sejam um texto à parte.” Cada número nasce da sintonia entre dois editores com perfis diferentes. Carpeggiani, 35, jornalista e doutor em teoria literária, entrou há dois anos vindo da 40
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área de cultura do Jornal do Commercio. Chegou para ajudar o veterano Raimundo Carrero, 66, ficcionista premiado com obras como Minha Alma é Irmã de Deus, quatro décadas de exercício do jornalismo e realizador de oficinas literárias conhecidas no Recife. A saúde falhou – primeiro um enfarto, depois um AVC o paralisaram por um tempo – e agora restringiu um pouco sua participação. Carrero ficou com a produção de textos, uma coluna com duas páginas e a supervisão. A edição é tocada por Carpeggiani. Iniciada a nova fase em 2007, época em que Carrero se tornara editor, Pernambuco ganhou o nome atual depois do debate de várias sugestões. O antigo Suplemento Cultural era, por assim dizer, uma publicação de gabinete. Logo decidiram que não haveria espaço para um jornal tradicional. Carrero recorda: “Queríamos um jornal que fosse além da resenha. Pensávamos na obra como discussão da vida e da literatura. E investimos nisso. Procuramos colaboradores que estudassem também ciências sociais, jornalismo etc. Parece que acertamos.” A equipe busca “acrescentar algo ao jornalismo cultural feito no Brasil, que tem se rendido a textos minúsculos, sem personalidade”, como diz Carpeggiani. “Nossa perspectiva não é informar, mas fazer que o leitor pense.” A pauta se define por evitar o factual do jornalismo. “Como há competição forte com os jornais diários e a internet, não nos interessa muito o atual, mas justamente o avesso: o espírito do momento. E como o jornal não depende de vendas para existir, isso dá muito mais liberdade de criação”, explica Carpeggiani. “Talvez o jornalismo cultural ganhasse justamente mais se não se preocupasse com o mercado. Parece irônico propor isso, mas pode ser uma saída,
Letra viva, a serviço da literatura Com circulação na internet, suplementos e revistas literárias alcançam repercussão nacional sem abandonar a versão impressa. afinal se preocupar com o mercado não está sendo o melhor”, acrescenta. Na arte, a mudança também foi grande, conta Carrero. “Resolvemos explorar uma diagramação renovadora, com mais espaços brancos e textos leves, misto de resenhas e comentários, com espaço para revelar novos autores, sobretudo contistas e poetas. Mudamos a bitola, inclusive.” Entre os diagramadores, seguiram-se Jaíne Cintra, Hallina Beltrão e agora Jânio Júnior. São de Hallina Beltrão, que continua a colaborar, as ilustrações de capa. Vivendo desde 1997 entre Recife e Barcelona – onde fez mestrado em design gráfico editorial e pós-graduação em ilustração criativa –, ela é também ilustradora fixa da revista espanhola Que Leer. Os tons vivos são uma de suas marcas. Pernambuco tem tiragem de 6 mil exemplares impressos, circula com o Diário Oficial, é vendido nas lojas da Livraria Cultura e entre os assinantes da Revista Continente, também editada pela Cepe – Companhia Editora de Pernambuco, responsável pelo Diário Oficial. A partir de março haverá mais quatro páginas. Em abril, terá uma assinatura própria. Está também todo disponível no site que existe desde 2009 e, como afirma Carpeggiani, “é fundamental, não só
para divulgar o jornal em outros Estados, como porque é importante que todo conteúdo esteja online, de forma aberta ao público”. As redes sociais ajudam a fazer o suplemento circular: “Quanto mais as pessoas tiverem acesso às nossas publicações, melhor. E há também textos que aparecem no jornal que funcionam bastante e melhor nas redes sociais, sobretudo porque nós acreditamos na importância da crônica. E a rede social é o melhor lugar para divulgarmos crônicas, porque são textos mais imediatos, com frases de efeito, que são uma provocação ou um afago para o público”. Os cinco anos dessa nova fase foram comemorados em fins do ano passado com a coletânea Ficcionais, antologia de textos de cerca de 30 nomes contribuintes da coluna Bastidores, espaço para que escritores contem sobre o processo de composição das suas obras. O volume inclui de Bernardo Carvalho e Julián Fuks a Ronaldo Correia de Brito. Tradição mineira
No nicho em que Pernambuco desponta como nova estrela o Suplemento Literário de Minas Gerais caminha para completar quase meio século. Já entrou para a História como um dos mais importantes órgãos
culturais do País, uma História que nunca se interrompeu, apesar das dificuldades que esse tipo de publicação costuma enfrentar – mesmo com a questão do financiamento resolvida, as mudanças de governo sempre podem alterar prioridades e, assim, prejudicar os suplementos culturais. Na estréia, em setembro de 1966, o Suplemento Literário tinha à frente Murilo Rubião, escritor de obra original, entre o absurdo e o fantástico, como O Pirotécnico Zacarias. O contista Jaime Prado Gouvêa, o atual Diretor de Redação, era ainda um estudante de Direito quando se integrou a essa equipe em fins daquela década. Na época, vencera um prêmio no Concurso de Contos do Paraná, o que o ajudou a obter uma vaga na Redação por indicação de um amigo de adolescência que já estava lá, Humberto Werneck, hoje consagrado cronista e jornalista cultural. A trajetória de Gouvêa incluiu seis passagens pelo suplemento, por períodos de tempo diversos; na última, a partir de 1994, para ficar à frente do periódico – nas vezes anteriores era apenas redator. “O leitor, portanto, se confunde com o redator”, reconhece. Gouvêa lembra dos primeiros tempos. No começo, a equipe ocupava uma sala da Imprensa Oficial, que fica na Avenida Augusto de Lima, 270. “Quando funcionava no endereço antigo, a Redação, digamos assim, fervia mesmo nos bares do Edifício Maletta ou no Saloon. Mas isso quando todos éramos vivos, jovens e tínhamos fígados saudáveis. Ali, além da nossa turma, os então meninos do Clube da Esquina iniciavam suas travessias, capitaneadas pelo compositor Fernando Brant. “Como Paris, o Suplemento Literário era uma festa”. A Redação ocupa hoje o número 342 da Avenida João Pinheiro, num anexo do Museu Mineiro, entre a Praça da Liberdade e o Centro de Belo Horizonte. Na tradição dos suplementos literários, o que predomina em suas páginas é a literatura; distancia-se, portanto, do formato habitual dos segundos cadernos, que noticiam artes e cultura em geral. As pautas são definidas a partir do material que chega: “Às vezes pedimos colaboração, muitas vezes elas são enviadas para nós. Procuramos equilibrar contos, poemas e ensaios proporcionalmente, e, sempre que possível, editar algum autor jovem que demonstre talento, como o Murilo Rubião fez conosco no início. Essa mescla de autores de algum renome com os novos era uma forma de agir dele que tento manter”. A tiragem é de 13 mil exemplares de números normais, bimestrais. Desses, seis mil são encartados no Minas Gerais, o órgão oficial do Governo. O jornal tem cerca de 500 assinantes no País e no exterior. As edições especiais, semestrais, saem com 1.000 exemplares. A internet “atinge um novo público, e resolve, em parte, o velho problema orçamentário que sempre enfrentamos na distribuição do jornal impresso”, afirma Gouvêa. “O que interessa é que o jornal seja lido pelo maior número de pessoas possível”. Os números digitalizados, a partir de 2006, podem ser encontrados no site da Secretaria de Estado da Cultura do Governo de Minas Gerais (goo.gl/YdMou). Num mercado cada vez mais digital, qual a importância de manter uma edição
impressa? Gouvêa fala como leitor: “Gosto de acreditar que quem gosta de literatura gosta de ler o texto impresso. Sempre vai haver quem prefira folhear um jornal.” Efervescência paranaense
Sem possuir mercado editorial forte, o Paraná é o Estado que tem concentrado um número de publicações literárias razoavelmente sólidas, com sucesso nacional. Como pioneira, e talvez a maior inspiradora dessa onda de publicações paranaenses, costuma-se apontar a revista cultural Joaquim, de Curitiba. Foi criada pelo então iniciante autor Dalton Trevisan, hoje um clássico contemporâneo com obras como O Vampiro de Curitiba. Circulou entre os anos de 1946 e 1948, período de euforia com o fim da Segunda Guerra Mundial e de redemocratização do País pós-ditadura do Estado Novo. Teve 21 números. Parece pouco, mas, “historicamente, no Brasil, revistas literárias não passam do quinto número”, como lembra o poeta Rodrigo Garcia Lopes, um dos três criadores da publicação de arte e literatura Coyote, de Londrina, que já com-
pletou uma década. É a herdeira da tradição iniciada com a Joaquim. Assim como Garcia Lopes, os dois outros editores, Ademir Assunção e Marcos Losnak, eram estudantes de Jornalismo quando iniciaram o projeto, em 2002. O mais difícil, ressalta Garcia Lopes, é manter-se financeiramente. “Fidelidade dos leitores, nós temos. Colaboradores também não nos faltam: há ótimos poetas, escritores, fotógrafos, artistas e tra-
Um século de revistas literárias Sem repetir a fartura de títulos das décadas de 1920 e 1970, o número de publicações sobre literatura mantém-se estável. Não é uma época de explosão de revistas literárias, como o foram as décadas de 1920 e a de 1970, mas a quantidade de títulos se mantém sem recuar, em torno de três dezenas, em fins do século 20. Esse, um dos resultados apontados pelo levantamento Revistas Literárias Brasileiras – Século 20, cuja nova edição acaba de sair. Os próximos anos parecem promissores, a julgar pelos sinais vistos até aqui. As impressas entre 2001 e 2012, como explica o organizador Paco Cac, “apresentam-nos multiplicidade temática, incorporam tecnologias e linguagens, possibilitando-nos acesso a horizontes inéditos na experimentação de novos espaços sensoriais e de construção de significados”. Até agora, foram catalogadas 182, excluindo as de academias de letras e as de programas de pós-graduação. Nas duas primeiras décadas do século 20, localizou oito revistas. Na década de 1920, o número salta para 15. Entre 1930 e 1950, são 37. Um recuo marca as duas décadas seguintes: são 16 de 1950 a 1969. Nova explosão de publicações ocorreria depois: somente entre 1970 e 1980, serão 48. Nos anos 1980, 33; nos 1990, 34. Por Estado, o Rio de Janeiro é o líder absoluto, com 63. Depois vem São Paulo, com 43. Minas Gerais aparece em terceiro no levantamento, são 23. Em quarto, há a Bahia, com 10. Ceará e Distrito Federal têm sete. O Rio Grande do Sul, Estado que costuma apresentar número maior de leitores na média do País, tem 6. A busca se deu em todos os Estados, mas não foram encontradas no Amazonas, Pará, Roraima, Rondônia, Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul e Sergipe.
Entre as que o levantamento localizou, há desde as publicações que, com pouco dinheiro, como a Sirrose (AM) ou a Sociedade dos Poetas Novos (RJ) “mantêm a chama da produção coletiva muito comum nos anos 1970”, quanto revistas “com altíssima qualidade gráfica”, policrômicas, que reúnem textos, fotos e ilustrações, como a Et Cetera – Literatura & Arte (PR). “Navegam no oceano nada pacífico da literatura revistas que seguem padrões tradicionais de produção gráfica e outras que procuram provocar o leitor em suas formas de leituras do objeto gráfico”, avalia. Entre as inovadoras, um exemplo é a Arraia Pajéurbe (CE), em circulação no formato triangular. A revista Mininas (MG) é outro exemplo que considera digno de nota: produzida por escritoras e não mais em circulação, pode ser considerada, no seu formato, uma das menores revistas literárias brasileiras. Um egresso do ramo das revistas literárias, Paco Cac, pseudônimo de Paulo Cezar Alves Custódio, é professor de literatura brasileira e portuguesa e poeta, autor de, entre outros, Ajustes de Contas (1977) e Pulso (2004). Dirigiu a revista literária Gandaia, de 1976 a 1980, e coeditou a Urbana, de 1985 a 1991, ambas baseadas no Rio de Janeiro. Seu interesse pelo tema o levou a iniciar o levantamento em 1978, quando organizou a Mostra de Publicações Independentes, no Rio de Janeiro. “Fui guardando as revistas e também comprando em sebos e ganhando de amigos”, recorda. Depois de oito mostras, direcionou o arquivo para as Revistas Literárias – sobre elas, já realizou três exposições.
dutores em atividade no País, sempre dispostos a divulgar material inédito. A revista tem um enorme prestígio. O que não temos é dinheiro para fazê-la crescer. ” Para funcionar, a revista tem o apoio do Programa Municipal de Incentivo à Cultura (Promic) da Prefeitura local para garantir os custos mínimos para a impressão e circulação. A edição da Coyote, média de duas por ano, tem 52 páginas e é distribuída pela editora Iluminuras. O site é um antigo projeto ainda não realizado. A mais longeva publicação literária independente do País também fica no Paraná, mas não tem o formato de revista. É um jornal, o Rascunho, fundado há 12 anos e com circulação mensal que nunca se interrompeu. Surgiu em 2000 como um encarte de oito páginas do Jornal do Estado, de Curitiba. A aposta de seu criador e editor, Rogério Pereira, foi em longos textos, entrevistas longas, espaço para inéditos, “algo em franca decadência na imprensa brasileira naquela época, tão apaixonada pelas novidades da internet”, reforça. “Sempre fui muito perfeccionista e exigente comigo mesmo. Então, não poderia fazer um jornalzinho de literatura. Era preciso fazer o melhor, mesmo sem nenhum dinheiro, pouquíssima visibilidade, conhecimentos mais do que frágeis. Enfim, uma aventura como outra qualquer, cujos prejuízos seriam mínimos.” O Rascunho se tornou independente ao completar quatro anos, já com 32 páginas, 40 em edições especiais. O jornal é editado pela Letras & Livros, “criada por razões fiscais e cujo patrimônio é uma sala atulhada de livros, um computador, uma impressora e algumas dívidas”, explica Pereira. O endereço fiscal continua sendo o da casa de sua mãe. A cada mês, são rodados 5 mil exemplares, distribuídos por todo o País por meio de assinaturas e cortesias. Existem pontos de distribuição gratuita em livrarias de vários Estados, e algumas edições seguem também para universidades e embaixadas brasileiras no exterior. A impressão se dá nas gráficas da Gazeta do Povo; em troca, todo o conteúdo vai para o site do jornal (que pode ser acessado em rascunho.com.br). A dificuldade em obter anúncios é grande, informa Pereira. Para se sustentar financeiramente, realizam-se projetos em torno do jornal, como Paiol Literário, que recebe autores para longas conversas diante de uma grande platéia. As principais têm sido reunidas em livros, organizados por Luís Henrique Pellanda para a editora Arquipélago. O site, por enquanto, não ajudou muito o Rascunho. Pelo contrário, como diz Pereira: “O site ‘piorou’ a vida: não ganhamos dinheiro com ele, só gastamos e cresceu muitíssimo a nossa demanda. Todo dia tem alguém entrando em contato, mandando textos, mandando livro etc. Um verdadeiro inferno, no bom sentido (acho).” Mas hoje há mais leitores no site do que na versão impressa, como reconhece: ao todo, são quase 30 mil leitores. Não dá para reclamar, como diz seu criador: “A aventura deu certo. O Rascunho cresceu, tomou corpo, importância e hoje é, apesar da arrogância do slogan, ‘o jornal de literatura do Brasil’”. Em tempo: Rogério Pereira se prepara para estrear na ficção, um dos temas da edição de março do suplemento-primo Pernambuco.
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QUADRINHOS
O talento premiado de André Diniz Jovem artista carioca leva seus álbuns de quadrinhos para a Europa e se destaca como um dos mais talentosos roteiristas e desenhistas da nova geração.
Por décadas, pareceu haver uma regra tácita no Brasil de que numa história em quadrinhos importava exclusivamente o nome do desenhista. Tanto que somente a sua identificação aparecia na apresentação. O roteirista não interessava – teve de brigar muito para ter seu trabalho reconhecido como artista no processo de produção de uma história, o que só começou a acontecer no final da década de 1960. O resultado disso se mede ao longo da trajetória das hqs no País. Embora tenha tradição nesse gênero de revista – são publicadas há oito décadas –, não existem grandes obras nacionais e apenas alguns poucos desenhistas são de fato consagrados. Nas duas últimas décadas, porém, percebeu-se que sem um bom argumento e roteiro não se conquista leitores nem é possível ser competitivo com a produção que vem de fora. E surgiram muitos roteiristas. Alguns de primeira linha. O carioca André Diniz se destaca entre os novos talentos por, pelo menos, três motivos: é muito produtivo, tem qualidade como escritor e roteirista e, se não bastasse, descobriu-se há pouco tempo que ele desenha muito bem – por muitos anos, ele apenas criou histórias. Só recentemente se assumiu como desenhista. “Tenho muito mais obras como roteirista (argumentista) do que no papel de desenhista. Julgo-me de fato um desenhista a partir de 2008, quando fiz o primeiro álbum ilustrado por mim”, explica. Não por acaso, portanto, Diniz começa a ter seus trabalhos publicados na Europa. O mais recente, Morro da Favela, com fotos de Maurício Hora, acaba de sair em Portugal, ao mesmo tempo em que tem versões em francês e inglês. Ele conta como conseguiu lançar o livro naquele país – fruto do mero acaso. Em janeiro deste ano, ele tinha se programado para ir ao festival de quadrinhos de Angoulême, na França, um dos mais famosos do mundo. A viagem era para autografar a edição francesa de Morro da Favela e fazer novos contatos com editores, para lançar antigos álbuns seus. Como não conhecia Portugal, aproveitou a viagem e colocou o país nos seus planos – faria escala rápida em Lisboa. “Contatei Paulo Monteiro, responsável pela Bedeteca – como são chamadas as bibliotecas de quadrinhos naquele país, numa referência à banda desenhada (quadrinhos, em Portugal) – da cidade de Beja. Ele havia se tornado um grande amigo que conheci, curiosa42
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André Diniz e seu álbum Morro da Favela, que já foi traduzido para o inglês e o francês e acabou de ser lançado em Portugal. No alto, um detalhe da hq Paulo Afonso e abaixo, Homem de Neandertal, que sai em abril pela Nova Fronteira, juntamente com Z de Zelito (na outra página, acima) ambos produzidos em parceria com Marcela Mannheimer. Na outra página, abaixo, Negrinho do Pastoreio.
mente, em um evento no sertão do Cariri, Ceará, em 2010. Eu queria lhe dar um abraço somente.” Monteiro, porém, aproveitou a sua ida e o convidou a fazer uma exposição na Bedeteca. “Foi uma honra para mim. Paulo, então, comentou com o editor Rui Brito sobre minha ida e sobre a exposição.” Daí o convite para publicar o livro
DIVULGAÇÃO
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por sua editora, a Polvo. “É uma empresa pequena, mas seu trabalho tem um espaço muito importante no cenário dos quadrinhos portugueses.” A versão portuguesa, então, ganhou nova capa e uma série de extras: a edição vem acompanhada de ilustrações dos artistas brasileiros Laudo, Will, Pablo Mayer, José Aguiar, Marcelo Costa, Magno Costa e Ricardo Manhães.
A conquista francesa
A entrada no mercado francês se deu de uma forma inusitada, no ano passado, mas foi resultado da perseverança desse incansável artista. “Antes de Portugal, eu não tinha quaisquer contatos com editoras fora do Brasil, apenas a dica de meu amigo Ricardo Manhães sobre alguns nomes de editoras francesas que tinham publicado seus quadrinhos lá e poderiam se interessar por um trabalho como o meu.” Como não falava nada de francês, Diniz usou uma solução mambembe: escreveu uma carta em português e traduziu via Google Translator. “Não sabia avaliar o resultado da versão para aquela língua. Assim, converti o texto de volta ao português e conferi o que mudou no sentido original. Fiz algumas vezes assim. Nesses trechos, simplificava ainda mais o texto. E mandei a mensagem. Não é que uma editora respondeu, interessada?” No caso, a Des Ronds Dans l’O. Toda a negociação e edição do livro foi feita dessa forma, via tradutor do Google. “Hoje, estudo francês e já me viro bem melhor”, observa. Mas a maior surpresa disso tudo foi a recepção muito positiva que o álbum teve pela crítica na França. Photo de la Favela, como ficou em francês, teve críticas muito positivas em publicações como Paris Match, L’Express, Lire, France Info e várias outras publicações. Sem falar nas especializadas em quadrinhos, que são muito fortes no país. O mesmo livro saiu na Inglaterra quase simultaneamente. As tiragens são modestas, mas promissoras: mil exemplares em Portugal e três mil na França. “Confesso que não sei a tiragem da edição Inglesa.” No momento, Diniz tem várias negociações em andamento. “Morro da Favela, se tudo se confirmar, será publicado em mais dois países. E quanto à França e Portugal, já há outros títulos meus na fila para serem publicados”, conta ele, animado. Morro da Favela foi lançado em 2012 no Brasil pela editora LeYa, dentro do selo Barba Negra, que já não existe mais (a editora parou de lançar quadrinhos). Baseada em fatos reais, a história de Diniz tem como personagem central o fotógrafo Maurício Hora, morador do Morro da Providência, no Rio de Janeiro. Na busca de entender melhor sua origem, Hora pesquisou a história de sua comunidade e descobriu que as raízes do bairro estavam cravadas em uma favela brasileira que começou a surgir em 1897. Ao mesmo tempo, conta sua difícil história; seu pai era bandido e a mãe morreu cedo, acidentalmente atingida por um tiro pelo pai, numa das muitas discussões que acabavam com ela de arma em punho. Depois disso, o irmão mais velho “sumiu” após se meter no tráfico de drogas.
ARTE
Autor premiado
Com 16 prêmios no currículo, a primeira obra de Diniz, Fawcett, data de 2000, e saiu pela Editora Nona Arte, fundada por ele. Era a adaptação para os quadrinhos das aventuras do coronel inglês Percy Fawcett pela Amazônia brasileira em busca de uma cidade de ouro. Os desenhos são do mestre Flavio Colin (19302002). No ano seguinte, saíram 31 de Fevereiro e Subversivos – Companheiro Germano, também pela Nona Arte. Após intervalo de quatro anos, em 2005, saiu pela
Conrad o elogiado Chalaça – O Amigo do Imperador. E não parou mais: Chico Rei e Ponha-se na Rua, ambos pela Franco Editora, circularam em 2006. A primeira grande editora brasileira a apostar no seu trabalho foi a Record, do Rio de Janeiro, com o elogiado álbum A Incrível História do Homem Mais Velho do Mundo. Em 2007, pela Escala Educacional, publicou nada menos que 12 livros voltados para o segmento de paradidáticos – dentre eles, A Independência do Brasil, A Inconfidência Mineira, A Revolta de
Canudos e A Guerra dos Farrapos. Seguiram-se os livros 7 Vidas (Conrad, 2009), Ato 5 (edição independente, 2009), O Quilombo Orum Aiê (Record, 2010), Morro da Favela (LeYa, 2011) e A Cachoeira de Paulo Afonso (Pallas, 2011). No ano passado, saíram os álbuns Mwindo (Record) e O Negrinho do Pastoreio (Ygarapé). Mesmo como um dos mais produtivos autores de quadrinhos do País, André Diniz ainda não vive exclusivamente dessa arte. Pelo menos como gostaria. Mas garante que está perto de conseguir. “Complemento meu orçamento com algumas pequenas rendas, trabalho hoje praticamente só com quadrinhos. Eventualmente, também faço ilustrações e até gostaria de fazê-las mais. Também dou aulas de roteiros para quadrinhos na Quanta Escola de Artes, em São Paulo.” Ele tem se destacado por conseguir resultados excelentes no modo de contar visualmente suas histórias, na exploração do contraste preto e branco – que tem mostrado experimentos e busca por um estilo mais pessoal. “Na verdade há justamente uma leva de trabalhos meus coloridos a ser publicada que são mais experimentais. É uma nova fase minha, em que trabalho em parceria com Marcela Mannheimer, minha esposa.” Diz ele que a sensibilidade que Marcela tem com as cores abriu um novo caminho para ele. “Mas meu trabalho em preto e branco é mais conhecido até agora e jamais será abandonado.” Vem muito da influência que sofreu da estética da xilogravura, que o encanta pela rusticidade. “Quero cada vez mais dizer mais com menos. Trazer mais emoções e informações com menos traços e menos palavras. Meu desenho não retrata, ele simboliza. Daí vem também minha busca pela estilização, que é onde entra minha paixão pela arte africana, outra grande influência.” Diniz aposta nas referências tipicamente brasileiras de Morro da Favela para impressionar os portugueses. “Sempre gostei muito de xilografia e arte africana. Coloquei uma cena nesse estilo num livro de 120 páginas e eram essas as páginas de que as pessoas mais gostavam. Encontreime e agora ninguém me segura.” E muita novidade vem ao longo de 2013. Os próximos projetos incluem a publicação de nada menos que oito livros. Diniz tem dois lançamentos previstos para abril: Homem de Neandertal, uma hq sem textos onde um homem dos tempos das cavernas se apaixona pela arte dos humanos e tenta, com suas limitações, aprender a interpretá-las e reproduzi-las. O outro é Z de Zelito, a história de um jovem aspirante a ilustrador que vem ao Rio de Janeiro às vésperas de estourar o episódio que ficou conhecido como A Revolta da Vacina, em 1904. “No momento, trabalho na transposição para os quadrinhos do romance O Idiota, uma adaptação bem atípica do clássico do Dostoievski. Contraponho um romance maravilhosamente verborrágico com uma adaptação quase sem textos, praticamente toda contada através de desenhos estilizados e minimalistas. Quero terminá-la ainda este ano.” É preciso. Muito há para ganhar forma no papel de sua mente inquieta e inventiva.
Juarez Machado, um catarinense internacional Radicado em Paris há 16 anos, ele impressiona pela agilidade das cores de suas pinturas. P OR P AULO RAMOS DERENGOSKI
O catarinense de Joinville Juarez Machado mora há 16 anos em Paris, sendo um dos poucos pintores brasileiros conhecidos – e reconhecidos – no mundo todo. Dotado de fervor imaginário, Juarez domina o traço-desenho-linhas-cores com grande dose de ironia e pintadas de ceticismo. Utilizando jogos de luzes e sombras, consegue criar uma atmosfera psicológica densa e irreverente. Brinca com o espaço e joga com o tempo, mesmo ao retratar coisas simples como cadeiras, mesas e copos. Sua produção é constante. Do estúdio de Montmartre já saíram milhares de quadros e as aberturas de suas vernissages têm impacto em Paris. São exposições temáticas: O Circo, Os Libertinos, A Festa, etc. Nas telas sempre surge um lado erótico, mas um erotismo sofisticado, elegante, social, como um sorriso a despertar paixão fulminante. O método de trabalho de Juarez é original: primeiro desenha as telas e depois pinta a um só tempo, abusando das cores verde avermelhadas e vermelho azuladas. Muitos de seus pôsteres são comercializados na internet, e hotéis do mundo inteiro procuram suas telas. Pela precisão do desenho, pela agilidade das cores, pelos retratos iluminados dos salões, das mulheres, da alegria noturna, as telas de Juarez Machado lembram cada vez mais o trabalho de Toulouse Lautrec – o anão maldito de Montmartre... Por sua grande obra, Juarez Machado deveria ser tombado como “bem imaterial” de Santa Catarina, do Brasil – e do mundo! PAULO RAMOS DERENGOSKI, radicado em Lages, SC, é jornalista e escritor.
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LIVROS
Um gosto amargo de bala Este é o título da autobiografia de Vera Gertel, lançada em março deste ano. O livro conta a trajetória desta atriz e jornalista, ao mesmo tempo que recorda as agruras dos anos de exceção democrática no Brasil, vividos no século passado. ARQUIVO VERA GERTEL/ACERVO MANCHETE
P OR P AULO C HICO
Nem tão popular assim, certamente por ter se dedicado mais ao teatro do que à televisão, Vera Gertel é uma das maiores atrizes de sua geração. Protagonista da primeira montagem da célebre peça Eles Não Usam Black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, atuou também como jornalista. Sua vida sempre foi cercada de histórias curiosas, como a razão da escolha de seu verdadeiro nome: Anéli. Na verdade, tratava-se de uma homenagem de sua mãe à Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente de oposição à ditadura Vargas. Pois a trajetória desta artista – hoje com 75 anos e que fez parte do Teatro de Arena, marco da dramaturgia nacional – está agora ao alcance do grande público. Foi lançado, no dia 6 de março, na Livraria Argumento, no Rio de Janeiro, Um Gosto Amargo de Bala. Em 272 páginas, o livro comprova o quanto a vida pessoal de Vera, desde a mais tenra idade, está profundamente entrelaçada com as diversas fases da História do País, ao longo das últimas décadas. “Contando a sua história, ela conta a História do seu tempo. E o tempo de Vera Gertel não foi qualquer tempo. Foi, no Brasil e no mundo, um tempo de conflitos e transformações que marcariam a vida de todos. Talvez em nenhum outro período da vida da nação a história pessoal de cada um tenha se entrelaçado tanto com a História com ‘H’ maiúsculo. Além do testemunho sobre os anos cinzentos e a luta política, Vera faz um emocionado e emocionante relato de perdas e alegrias de uma vida decididamente longe do comum”, afirma Luís Fernando Veríssimo, um dos escritores que assinam a orelha do livro, publicado pela Editora Civilização Brasileira. “Nada que ela narra aqui é por ouvir falar. Em qualquer cenário, seja nas reuniões do Partido, na saga do Teatro de Arena ou na resistência à ditadura militar, Vera esteve fisicamente lá. (...) O índice de nomes deste livro é um ‘who’s who’ do Brasil dos anos 1940 aos 1970. Mas seu protagonista é uma mulher que nunca deixou de seguir em frente — mesmo agora, quando olha para trás para contar a história”, afirma Ruy Castro, outra personalidade que assina um dos textos de capa da obra. Leia a seguir entrevista concedida por Vera Gertel ao Jornal da ABI: 44
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Vera Gertel com um colega no tempo da Bloch, escolhendo fotos para um encarte da revista Manchete sobre saúde. Ao lado, a capa do livro.
Jornal da ABI – Quem eram seus pais? Qual sua primeira lembrança de perseguição política? Como foi, em parte da infância, ter sido criada pelos avós?
Vera Gertel – Meus pais eram militantes comunistas. Minha mãe, Raquel, tecelã desde os 14 anos de idade, entrou para o PCB ainda quando operária para lutar contra aquela condição em que acordava às 4h da manhã para estar de volta em casa às 21h. Ela achava indigna de uma pessoa aquela vida. No Partido conheceu meu pai, Noé Gertel, estudante de Direito, do Largo São Francisco, em São Paulo. Apesar do nome, ela não era judia. Casaram-se durante a Intentona Comunista. Após duas prisões, meu pai foi obrigado a fugir para o Rio, onde, aos 24 anos, fez parte do Comitê Central, com a direção do PC em queda acelerada. Nasci em São Paulo, mas fui registrada como carioca, ou seja, na época, como nascida no Distrito Federal, num cartório em que meu pai teve de mentir tudo, até o endereço residencial... Pois, afinal, era um fugitivo da Polícia. Foi preso em 1940 e condenado a cinco anos de cadeia, dos quais três passou na Ilha Grande, junto com Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Agildo Barata, Davi Capistrano e tantos outros
comunistas de renome. Como minha mãe teve que trabalhar muito para nos sustentar, fui praticamente criada pelas avós. Primeiro, a materna, portuguesa analfabeta, viúva, mas muito carinhosa e que cuidava de tudo na casa proletária onde vivíamos, na Quinta Parada. Quando comecei a ir para a escola fui morar no Bom Retiro, bairro judeu de São Paulo, com a avó paterna, que arrendava um açougue para vender galinhas kosher (mortas pelo rabino). O único problema em ser criada pelas avós é que adorava minha mãe e chorava todas as noites por sua ausência. A família só se reuniu mesmo quando eu já tinha 12 anos. Antes disso, porém, ouvi de minha avó paterna pela primeira vez os nomes de Bertolt Brecht e Maiakovski. Apesar de ter fugido do império austrohúngaro por causa da pobreza e dos pogroms, pode-se dizer que ela era uma intelectual, pois lia a imprensa ídiche, ficando por dentro de tudo. Jornal da ABI – Falta jogar luzes de esclarecimento histórico sobre o que foi o Estado Novo de Vargas? Como definiria esse período ditatorial no Brasil?
Vera Gertel – A pretexto da Intentona Comunista, em 1935, Getúlio Vargas, que se apossara do Governo na Revolução
de 1930, decretou o Estado Novo, em 1937, quando passou a perseguir tanto os comunistas quanto os líderes sindicais e de entidades populares. Havia tortura e muita, sob a batuta do Chefe de Polícia, Filinto Muller. Foram, sobretudo, os comunistas que lutaram para que Vargas, indeciso e encantado com o nacionalsocialismo fascista de Benito Mussolini, finalmente aderisse aos Aliados na Segunda Guerra Mundial, dando origem à Feb, a Força Expedicionária Brasileira, quando nossos pracinhas foram para a Itália lutar contra o nazismo. A partir daí, os presos políticos, pelo menos os da Ilha Grande, passaram a ter um tratamento diferenciado, mais ameno, com certas liberdades, como andar soltos por uma ilha de onde era impossível fugir e construir uma casa para receber suas mulheres, por quinze dias, duas vezes ao ano. Durante esse período de cinco anos vi meu pai apenas duas vezes, tal a dificuldade de atingir o presídio através de uma viagem que durava treze horas de São Paulo ao Rio, mais seis horas para chegar a Mangaratiba, uma hora de lancha até à Ilha e mais outra na boléia de um caminhão para alcançar o presídio. Eu era muito pequena e chegava sempre doente, o que preocupava numa ilha sem recursos.
Vera Gertel – O paralelo que se poderia traçar está na extrema e generalizada repressão com tortura, mortes e desaparecimentos de pessoas que muitas vezes sequer pegaram em armas e até defendiam o caminho pacífico para a derrubada dos regimes autoritários. Após 1968, com o AI5, o objetivo, sob o Governo Nixon nos Estados Unidos e o Secretário de Estado Kissinger, era o extermínio de qualquer rastro da esquerda, não só no Brasil, mas em toda a América Latina. Nas décadas de 1960 e 1970 houve golpes no Chile, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, na Bolívia, no Peru, sem falar da Operação Condor, sempre com a ajuda da Cia. A partir da década de 1950, no período de democracia até o golpe de 1964, houve o maior florescimento das artes: museus de arte foram fundados, o teatro – principalmente o Teatro de Arena de São Paulo e o Oficina – passou a montar peças de autores nacionais. Surgiram o Cinema Novo, a Bossa Nova e tantas outras iniciativas como os CPCs – os Centros Populares de Cultura. Enfim, eram brasileiros em busca de sua identidade política e cultural. Jornal da ABI – Quais marcas estes dois períodos de totalitarismo e censura deixaram nas artes brasileiras?
Vera Gertel – O teatro brasileiro lutou valentemente contra todo tipo de censura e sofreu as conseqüências disso. As peças eram montadas com todos os custos dos ensaios, cenários, figurinos, para serem censuradas no dia do ensaio geral, na véspera da estréia. Uma perseguição implacável que passou a tornar inviável aos artistas viverem dessa arte. As campanhas de alfabeti-
BEL PEDROSA
ARQUIVO NOÉ GERTEL
Jornal da ABI – É possível traçar algum paralelo entre a ditadura Vargas e o período pós-1964? Qual destas duas fases foi mais perversa para com a cultura? E qual a mais violenta?
Vera quando criança, com laço de fita nos cabelos, como a mãe adorava, e agora, ao lado do ator Nelson Xavier.
zação do País, a cargo de grandes educadores como Anísio Teixeira e Paulo Freire, foram interrompidas, às custas do assassinato do primeiro e exílio do segundo. Jornal da ABI – O que a levou a escrever Um Gosto Amargo de Bala? Qual é o real significado deste título?
Vera Gertel – Todo esse contexto descrito acima me levou a escrever o livro. Nele narro com mais detalhes os malefícios dos golpes militares em nosso Continente. Mas não só. Minha intenção foi mostrar às novas gerações como é viver sob ditaduras. E às mais velhas dar meu testemunho pessoal de militante, atriz e jornalista dos melhores e piores anos de nossa vida artística e política. Sem amargura pelas derrotas. Se o título der a impressão oposta, será preciso ler o livro... Jornal da ABI – Como tem sido a receptividade dos leitores?
Vera Gertel – Fiquei contente pela receptividade dos mais diferentes perfis de
leitores, que têm me mandado e-mails e feito telefonemas elogiosos. Eles não precisariam fazê-lo, caso não tivessem gostado.
um trabalho de estudos e pesquisas em torno de um personagem. A televisão, pelo contrário, te dá popularidade – e o que fica para o público, na maioria das vezes, é o nome do personagem e não do artista. Nada contra, uma vez que hoje o que sustenta o ator é a televisão, e nela também é possível ver grandes interpretações, mas nunca é a mesma coisa. Numa das entrevistas que fiz com Fernanda Montenegro ela explica melhor a diferença: quando se trata do trabalho do ator, estamos nos referindo ao teatro, ocasião em que ele se depara tão só diante do público, a cada espetáculo. No cinema, o trabalho maior é o diretor. E na televisão é do diretor de tv. Quer um exemplo? Você em determinada cena, dá ênfase num gesto de mão e o diretor capta o teu olhar. Ou ao contrário, seu olhar diz tudo, mas o diretor de tv enquadra a sua mão. O filtro é dele.
Jornal da ABI – O jornalismo e a carreira artística pontuaram sua vida. Como fez para conciliar ambas as profissões? Arrepende-se de alguma escolha feita neste percurso?
Vera Gertel – Comecei a trabalhar como jornalista a partir do momento em que ficou impossível sobreviver de teatro, após o AI-5. Ainda tentei conciliar as duas profissões durante dois anos, mas foi ficando cada mais difícil arrumar horários, turnos e plantões, até que optei pelo jornalismo. Ainda tentei televisão e fiz a primeira novela de Janete Clair para a telinha, intitulada O Acusador, na extinta TV Tupi, ao lado do saudoso Jardel Filho, antes mesmo da existência da TV Globo. Não era a minha praia. Há uma grande diferença entre ter prestígio e ser popular. O prestígio que o teatro dá é altamente gratificante, resultado de todo
Jornal da ABI – Eles Não Usam Black-tie foi mesmo sua montagem mais marcante nos palcos?
ARQUIVO VERA GERTEL
Vera Gertel – Essa peça, de autoria do Gianfrancesco Guarnieri, foi um dos maiores sucessos do teatro brasileiro. Pela primeira vez, o povo era o protagonista da história. Estreou em 1958 e se passava numa favela carioca, durante uma greve de operários. Sua importância veio do fato de que até então as raras peças nacionais tratavam quase sempre de gente rica em que o grande problema da mocinha era ter engravidado, ainda solteira. E já em 1958 Black-tie tinha na história um fura-greve que não podia perder o emprego porque a noiva estava grávida. Para surpresa da platéia, ela prefere ficar sozinha a se casar com um fura-greve.
Jornal da ABI – Para concluir, uma pergunta absolutamente pessoal: você foi casada com Odulvaldo Vianna Filho, Carlos Lyra e Jânio de Freitas – respectivamente dramaturgo, compositor de Bossa Nova e jornalista. Todos eles, a seu modo e em suas respectivas áreas de atuação, comprometidos com as questões sociais. O casamento, para você, sempre foi também um enlace ideológico?
A atriz Vera Gertel contracena com Gianfrancesco Guarnieri no filme O Grande Momento
Vera Gertel – Engraçado isso... As pessoas costumam dizer que tive maridos importantes – esses três citados por você. E me perguntam se meus enlaces tiveram também motivações ideológicas. A resposta está em Um Gosto Amargo de Bala... JORNAL DA ABI 388 • MARÇO DE 2013
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LIVROS
VIDAS
“O cinema é a arte de fato contemporânea” Ferreira Gullar lança seleção de críticas sobre arte contemporânea brasileira que publicou nas revistas Veja e IstoÉ nos anos 1970 e 1980 e critica conceitos dominantes hoje. IMS
P OR G ONÇALO J ÚNIOR
Em 1977, ao voltar ao Brasil após sete anos de exílio – experiência que ele narra no ótimo e indispensável No Rabo do Foguete (Editora Mauad) –, o poeta e ensaísta Ferreira Gullar encontrou uma forma das mais agradáveis para retomar a vida em seu país: escrever novamente na posição de crítico de arte para os leitores, dessa vez para a revista semanal Veja – e, pouco depois, IstoÉ. Tinha autoridade para tal função. Afinal, havia sido o autor do Manifesto Neoconcreto, que direcionou talentos como Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape. Não só isso. Seu trabalho de crítico importante na década de 1960 havia sido bruscamente interrompido pela necessidade de deixar o País, por questões ideológicas. Não seria uma simples volta, pois sua cabeça mudara muito. Impedido de visitar galerias e museus no Brasil, acompanhava os acontecimentos pela imprensa. “Não obstante, mantive vivo meu interesse pelas questões estéticas, não apenas aproveitando meu tempo, quando recluso, para ler e refletir sobre os problemas artísticos, como também para reavaliar minhas opiniões”, afirma ele. No exterior, esse universo se abriu, quando pôde ver de perto a produção artística internacional, além de perder a conta dos números de museus que visitou, entre os mais importantes do mundo. “Nos anos finais de meu exílio, passados em Buenos Aires, pude acompanhar, pela leitura de jornais brasileiros que me chegavam, o que se produzia de arte no meu país. Isso sem falar no contato direto com obras eventualmente exibidas nas galerias portenhas”, explica. Para sua alegria, ao voltar, foi imediatamente convidado a assinar a seção de crítica de arte de Veja. O espaço era muito reduzido, o que o obrigou a escrever textos curtos, concisos, mas com erudição, em que dizia o que achava mais interessante em produção naquele momento – mesmo com a censura ainda vigilante contra a liberdade de expressão. Em todos eles procurava falar só do essencial das obras analisadas de artistas como Burle Marx, Iberê Camargo, Alfredo Volpi, Tarsila do Amaral, Amilcar de Castro, entre outros. Agora, 80 desses textos foram reunidos no livro Arte Contemporânea Brasileira, pela Lazuli Editora. O único porém da edição é a falta da data da publicação de cada texto. Por outro lado, funciona como um valioso documento de época. Como Gullar faz questão de ressaltar, essa produção saiu sem a análise profunda de cada exposição, com46
JORNAL DA ABI 388 • MARÇO DE 2013
Gullar: Interesse pelas questões estéticas.
pensada pelos registros do que havia de mais significativo no momento. “Espero que a leitura desses textos contribua para a avaliação de um período muito particular da produção artística brasileira, quando a pintura, a escultura e a gravura ainda se faziam presentes na maioria das galerias e museus do País”, diz ele. Um exemplo disso foi o que escreveu sobre Iberê Camargo: “Sem convite, sem catálogo, sem lista de preço, na sala menor, quase no porão da galeria, está aberta uma exposição de pintura e desenho de Iberê Camargo (1914-1994). Uma extraordinária mostra de arte. Não me refiro aos desenhos, que são apontamentos feitos no quartel do Regimento Caetano Faria, onde o pintor esteve preso meses atrás. Refiro-me à sua pintura, com que não tínhamos contato há tantos anos e agora ressurge diante de nós como uma redescoberta”. E acrescentou: “Dizer que Iberê é hoje um mestre da arte brasileira é dizer a verdade, mas não é tudo: ele é o protagonista de uma aventura estética que dá nova dimensão à nossa pintura.” Numa palestra feita em São Paulo no dia 25 de fevereiro, para lançar a obra, ele destacou que a característica mais relevante da fase mostrada no livro foi o surgimento do que se passou a chamar de arte conceitual. “Lembro de uma artista que foi me visitar e estava fazendo esse tipo de arte. E uma das coisas que ela tinha feito era dar nó em corda. E ela estava zangada porque um outro cara tinha feito a mesma coisa e me disse que ele a estava copiando. Eu perguntei, ‘mas você inventou o nó em corda?’ E disse que desde quando eu era criança os barqueiros lá em São Luiz faziam isso.” Quando lidas em conjunto, as resenhas de Ferreira Gullar ganham força e
formam um amplo painel da produção artística brasileira no fim da ditadura ainda não devidamente aprofundado em discussões e em produção de textos acadêmicos. Era um momento de virada, mais que ruptura, em que se buscava um meio-termo diante do regime falido e fracassado, com obras ao mesmo tempo aguerridas, inovadoras e criativas, sem parecer panfletárias. Trabalhos marcados pela busca de uma linguagem que estava de olho no que acontecia no mundo. Na mesma palestra, Gullar falou da crise da Arte e da sempre complicada relação entre Arte e Mercado. Segundo ele, boa parte do que atualmente é mostrado como manifestação artística, principalmente quando tratado como “vanguarda” ou de “arte conceitual”, não merece tal atribuição. “Eu critico aqui coisas que não têm nada que ver, como botar gente nua no museu, botar urubu numa gaiola e mandar para a Bienal. São coisas que considero tolices”, ressaltou. Referia-se à performance “Imponderabilia”, de Marina Abramovic, realizada de modo polêmico em 1977 e refeita sem o mesmo impacto em 2010 – um casal ficava completamente nu em uma porta e pedia ao público que passasse no pequeno espaço entre os dois; e a instalação “Bandeira Branca” (2010), de Nuno Ramos, que colocou três grandes esculturas de formas geométricas, com alto-falantes que tocavam trechos de músicas, e três urubus vivos que voavam de um lado para o outro – a platéia era protegida por uma gigantesca tela, que formava uma espécie de viveiro. Na ocasião, representantes de organizações de defesa dos animais protestaram, o Ibama revogou a licença que Ramos havia conseguido. Assim, as aves foram retiradas. Gullar destacou como um dos problemas de hoje nas artes plásticas é que falta inovação. Mesmo os que se consideram de vanguarda têm feito obras que já não são novidades há anos. Com ironia, o crítico lembra “Fonte” (1917), de Duchamp, que consistiu em colocar um urinol como obra de arte, e que ainda serve de referência para artistas atuais. Assim, acredita ele, as artes plásticas perderam parte de sua importância e já têm um substituto: “As artes plásticas não têm hoje na sociedade o peso que tiveram nos séculos passados. A arte mais atual hoje, para mim, é o cinema. É a arte de fato contemporânea. Uma arte nascida da tecnologia e que expressa as coisas da vida contemporânea e do passado”. Mesmo assim, ele reconhece que ainda há bons artistas plásticos, inclusive no Brasil. E cita Siron Franco, Antonio Henrique Amaral e Ana Letícia.
Araquém, o repórter P OR I GOR W ALTZ
Aos 77 anos morreu, no dia 8 de março, no Rio de Janeiro, o jornalista, advogado e ex-assessor jurídico da ABI Araquém Moura Roulien. Com diversas passagens por jornais cariocas, Araquém faleceu no Hospital Ordem Terceira do Carmo, no Centro do Rio, em decorrência de uma infecção contraída após uma cirurgia de coluna. Ele foi cremado no Cemitério do Caju, na Zona Norte da cidade. Durante as décadas de 1950 e 1960, Araquém teve passagem por jornais como Gazeta de Notícias, A Noite e O Dia e na sucursal carioca do Diário de S. Paulo. Também atuou na Última Hora, de Samuel Wainer, e no Diário Carioca, publicações nas quais assumiu a chefia de reportagem, e foi membro da Associação de Cronistas de Carnaval– ACC. Também teve passagem pelo funcionalismo público, atuando como técnico de comunicação da Previdência Social. Araquém encerrou suas atividades no jornalismo em 1975, quando passou a dedicar-se exclusivamente à advocacia. Ubirajara Moura Roulien, seu irmão mais novo e também ex-Tesoureiro da ABI, lembra que ele integrou uma das equipes mais atuantes da editoria de Segurança e Justiça da Última Hora, ao lado de repórteres como Jarbas Domingos Vaz, Oscar Cardoso e Amado Ribeiro, entre outros. “Meu irmão é do tempo em que repórteres de polícia andavam à noite. Em 1959, enquanto caminhava pela Praça Mauá [Centro do Rio de Janeiro], deparou-se com uma cena em que um grupo de policiais prendeu um famoso bandido, conhecido na época como Fernandinho. Mas o meliante conseguiu aplicar uma gravata no chefe dos policiais, tomou-lhe a arma e caminhou com a pistola apontada para a cabeça dele até à Praça Tiradentes, de onde conseguiu escapar. Araquém publicou tudo”, conta. Ubirajara, que atuou como jornalista ao lado dele na Última Hora, no Diário Carioca e no Diário de S. Paulo, também lembra outro acontecimento marcante na carreira do irmão. “Em abril de 1957, enquanto tomava um café na esquina das Ruas da Alfândega e Miguel Couto, Centro do Rio, Araquém ouviu gritos ‘pega ladrão’. Ele viu um homem caído na rua e o ajudou a levantar-se. O homem era na verdade um assaltante internacional de bancos. A ação foi fotografada e no dia seguinte a imagem do meu irmão foi para as capas dos jornais com a manchete: Repórter ajuda a capturar ladrão. Araquém Moura Roulien deixou a esposa, Wilma Moura, e os filhos Luciana e Fabio.
LUIZ ACKERMANN/AGÊNCIA O GLOBO
Enrico Bianco e a brava gente brasileira Um dos grandes nomes da arte nacional no século 20, o artista ítalo-brasileiro morreu aos 94 anos e deixou como legado um olhar sensível sobre o povo do País que o acolheu. P OR G ONÇALO J ÚNIOR
Em 1937, ao chegar ao Brasil com a família, o italiano Enrico Bianco tinha apenas 18 anos e uma vida para recomeçar. Tanto ele quanto o pai e a irmã tinham vindos de Roma, então sob o regime fascista liderado por Benito Mussolini. Nada parecia dar certo para eles nos dois últimos anos, desde que a mãe do rapaz, a pianista Maria Bianco-Lanzi, morrera prematuramente. Enrico crescera na fartura de um casarão romano, em ambiente culto, de vasta erudição, cercado de livros e de um arsenal de material de pintura e desenho, como lápis coloridos, folhas para esboços de desenhos, tintas e telas. Aprendera a pintar e parecia ter um talento promissor. Dedicava-se a essa arte desde os seis anos de idade, incentivado também pelo pai, Francesco Bianco, escritor e correspondente internacional do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. O menino tivera entre seus professores nomes conhecidos da arte italiana, como Deoclécio Redig de Campos, que seria Diretor do Museu do Vaticano, e Dante Ricci, professor da família real, não muito famoso, mas conhecido por ser capaz e severo. Além das técnicas, Bianco aprendeu com eles conceitos de rígida disciplina, necessária para quem pretende levar adiante qualquer trabalho artístico. Assim, treinava pelo menos seis horas ao dia. Até que Maria morreu e tudo mudou. Francesco Bianco tivera fama e fortuna, ocupara o posto de deputado pela democracia cristã, mas, por causa da ascensão do fascismo, foi banido da vida política. De uma hora
para outra, perdeu o emprego no jornal brasileiro. Para trabalhar na imprensa ou em qualquer órgão de comunicação em seu país, precisaria ter a carteira de fascista, que lhe seria negada, certamente, e ele não pretendia pedir. Concluiu que a saída seria se mudar para o Brasil, onde estivera na década anterior. Havia para ele naquele país distante a oferta de emprego na Italcable, serviço telegráfico por cabos submarinos italiano que concorria com a Western americana. Sem saída, pediu ao médico da família, que era também cardiologista de Mussolini, para tentar junto ao ditador a concessão de passaporte para ele e os filhos. E o pedido, para sua surpresa, foi atendido – foi dito depois que o ditador teria assinado a autorização por engano, mas existe a versão de que ele se lembrou de Bianco e aprovou. Se o pai conseguiu de imediato dar algum conforto aos filhos, o rapaz teve de esperar seis meses até viver o momento que mudou sua vida. Tudo aconteceu quando o pintor Paulo Rossi lhe sugeriu visitar uma obra que o renomado Cândido Portinari estava preparando na sede do Ministério da Educação e Cultura (Mec), a pedido do Ministro Gustavo Capanema. Ele foi, mas só encontrou lá três ajudantes: o paisagista Burle Marx e o casal de pintores Inês e Ruben Cassa. “Ao perceber as dificuldades que os três estavam tendo com a ampliação da imagem da mão de um garimpeiro, em afresco, Bianco pediu que o deixassem tentar e, com o assentimento do trio, pintou sozinho aquele detalhe”, narra Paulo Victorino, no perfil biográfico que escreveu de Bian-
co. Segundo ele, pouco depois chegou Portinari, que, com intuição de mestre, percebeu a interferência e perguntou com certa irritação quem tinha feito a mão da figura. Os discípulos apontaram para o amedrontado Bianco, encolhido a um canto, a quem o mestre aparentemente deu pouca ou nenhuma atenção. Só na hora do almoço, quando o jovem italiano faminto decidiu voltar para casa, ao se despedir de Portinari, ouviu deste a pergunta para aonde ia naquele momento. Ao ouvir a resposta, estendeu a mão ao rapaz e, com a mesma cara de zangado, perguntou-lhe se voltaria no dia seguinte, como se fizesse um convite. E desse modo Bianco entrou para a equipe de Portinari. Foi seu aluno no Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal – UDF – e se tornou um de seus mais importantes auxiliares. O quadro A Mão do Garimpeiro foi sua primeira intervenção na pintura do mestre. O destaque maior dessa parceria seria o painel Guerra e Paz, os painéis do Banco da Bahia, o edifício da Onu, além dos murais do Mec. “E a influência de Portinari em Bianco é visível em muitos de seus quadros. O pintor cresceu, ganhou vida própria, mas nunca se afastou do estilo que assimilou e aprendeu a respeitar”, observou Victorino. A aproximação entre Bianco e Portinari, diz Victorino, se de um lado só lhe trouxe orgulho e admiração, de outro também lhe causou problemas, notoriamente pela aversão de alguns políticos brasileiros a Portinari, principalmente por sua ideologia e posições políticas. “Conquanto o mestre não fosse um ativista, o simples
fato de demonstrar simpatias ao comunismo o colocava sob a mira macarthista e, com ele, todos aqueles que o seguiam.” Essa proximidade com Portinari também permitiu ao artista conviver com os grandes nomes das artes brasileiras como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Oscar Niemeyer, Monteiro Lobato e muitos outros que mudaram a história da cultura brasileira na virada para a segunda metade do século 20. A relação intensa com esses futuros grandes mestres ajudou a forjar seu gosto pela brasilidade que permearia toda a sua obra, como as ruas das grandes cidades, o sertão nordestino e o dia-a-dia do povo brasileiro. Ajudou também a amizade com Burle Max, que lhe permitiu desenvolver sua obra sob a influência de grandes artistas nacionais, explorando temas relacionados aos costumes da sociedade brasileira. Já com essa influência, realizou em 1940 sua primeira exposição individual no badalado Copacabana Palace, então o mais importante hotel do Brasil. Aproximou-se também da literatura de modo mais direto, ao ilustrar a edição especial do livro Caçador de Esmeraldas, de Olavo Bilac, e o álbum de gravação do poema sinfônico Anhanguera, de Hekel Tavares, em 1951. Em 1960, aconteceu uma grande decepção, quando o México preparava sua 2ª Bienal e mandou um representante para escolher alguns nomes que considerava relevantes entre os brasileiros. Bianco foi um deles. Ficou encarregado de preparar três quadros especialmente para o evento. Como o Itamarati se prontificou a pagar as despesas da viagem, alguns burocratas resolveram rever a lista de convidados e excluir Bianco, sob a alegação de que ele nasceu na Itália e, portanto, não representava a arte brasileira. Ele argumentou que sua temática era toda voltada para o País que o acolheu, com sua gente e costumes. Em artigo publicado na revista Manchete, Rubem Braga saiu em sua defesa. Afirmou que viu os quadros e os achou melhores do que esperava: “São bons quadros de pintura moderna em qualquer parte do País e do mundo, e são os quadros de um pintor formado no Brasil e sensível às sugestões e ao sentimento da vida brasileira; são, portanto, quadros excelentemente representativos da pintura brasileira em qualquer mostra internacional.” Rubem não teve êxito e Bianco ficou mesmo de fora. Ao morrer, com 94 anos, no dia 7 de março, no Hospital Samaritano, em Botafogo, na Zona Sul do Rio, Enrico Bianco fora vencido por um câncer na próstata, depois de cinco dias de internação. Estava consagrado fazia muito tempo como o artista que desenvolveu sua arte em meio à efervescência do modernismo brasileiro, deflagrado pelo Movimento Modernista de 1921, no Rio de Janeiro, e que ganhou consistência a partir da Semana da Arte Moderna de 1922, em São Paulo. Embora tenha sido trazido pela necessidade, escolheu o Brasil como sua segunda pátria e se fixou no País para sempre, onde desenvolveu praticamente toda sua obra, com influência inegável de artistas brasileiros. Por tudo isso, Bianco pode ser incluído, com muita propriedade, entre os grandes pintores do Brasil. JORNAL DA ABI 388 • MARÇO DE 2013
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