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A Câmara patina na liberação das biografias

CNV: Balanço positivo no primeiro ano

Proibição em vigor viola a liberdade de expressão. PÁGINA 3

A ditadura tinha 36 centros de tortura, revela a Comissão da Verdade. PÁGINA 28

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SILVIO RIBEIRO/AE

PEDRO RUBENS

M AIO 2013

PÁGINAS 39 E 44 E EDITORIAL “DUAS PERDAS, E DOLOROSAS ” NA PÁGINA 2.

VIDAS ACURCIO RODRIGUES • JOÃO DE SCANTIMBURGO • NELSON MEDEIROS • FRANCISCO THAUMATURGO • ÁLVARO QUEIROZ • LANA FONSECA


EDITORIAL

DESTAQUES 03 ESPECIAL - Censura às biografias, atentado à liberdade ○

09 REFLEXÕES - A Palavra e a censura, por Rodolfo Konder ○

14 E SPECIAL - Memórias de um repórter francês, da Última Hora para o L’Express ○

16 PREMIAÇÕES - Wilton Junior ganha mais um Prêmio, o Embratel ○

17 P ESQUISA - Os jornalistas diante do espelho ○

18 E STUDO - A imprensa precoce de Resende e seu pioneirismo ○

19 DEPOIMENTO - José Carlos Avellar ○

30 PROMOÇÃO - Filme ressuscita o NP por um dia ○

32 H ISTÓRIA - Tropicalismo. Quem lê tanta notícia? ○

35 LANÇAMENTO - Uma biblioteca é mais do que a soma dos livros ○

36 H UMOR - O início do século revisitado ○

37 IMPRENSA - “Juntos, fizemos História” ○

SEÇÕES

DUAS PERDAS, E DOLOROSAS

0 A CONTECEU NA ABI 10 Os jovens engrossam a campanha “Fora Marin” ○

EM MENOS DE DEZ DIAS, neste fatídico mês de maio, a imprensa brasileira foi privada de dois de seus mais destacados profissionais, o jornalista Ruy Mesquita, Diretor de O Estado de S. Paulo, e Roberto Civita, Presidente do Grupo Abril, os quais marcaram de forma indelével sua presença na área de comunicação e na vida política e cultural do País. Cada um a seu modo, ditado pela origem familiar, a formação acadêmica e o temperamento, ambos legaram aos que ficam singulares exemplos de amor ao Brasil e, partindo de diferentes convicções, aos interesses do povo brasileiro. AVESSO À PROMOÇÃO DE SUA individualidade, Ruy Mesquita teve uma atuação notável como criador de veículos, como a Edição de Esportes, o Jornal da Tarde e a Rádio Eldorado, e como corajoso militante das causas da liberdade de expressão e dos direitos humanos. Além de idealizar a publicação de receitas culinárias no lugar de matérias censuradas que não poderiam deixar espaços em branco, o Dr. Ruy, como era reverentemente chamado, não vacilou em proteger jornalistas de suas empresas ameaçados de graves riscos nos tempos mais ásperos da ditadura militar, os anos 1970, como depõem agora, entre outros, Marco Antônio Rocha, Fernando Morais e Paulo Markun. Além de acompanhá-los aos organismos de repressão, com o fim de protegê-los de brutalidades como as que sacrificaram o jornalista Vladimir Herzog em 25 de outubro de 2

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1975, o Dr. Ruy abrigou em sua casa, como forma de resguardá-lo, seu editorialista Marco Antônio Rocha, um dos perseguidos pela ditadura. NESSA ÉPOCA ROBERTO CIVITA já dera o salto prodigioso que exaltaria sua capacitação profissional, a criação da revista Realidade, que elevaria o jornalismo do País a invejável patamar de criatividade e de técnica de montagem de textos. Seu passo seguinte foi a criação da revista Veja, também esta inovadora num mercado dominado pelas chamadas revistas ilustradas. A par dessas iniciativas, Civita promoveu a valorização salarial dos profissionais de suas empresas, permitindo-lhes fazer da atividade jornalística seu meio de vida, numa repetição do que fizera nos anos 1950 o jornalista Samuel Wainer, fundador da Última Hora. Ao mesmo tempo, Civita empenhou-se como poucos em empreendimentos destinados ao aperfeiçoamento de repórteres e editores, como a criação do Curso Abril de Jornalismo e, posteriormente, da pós-graduação em Jornalismo, em colaboração com a Escola Superior de Propaganda e Marketing-ESPM. Mais que um empresário competente, foi um grande jornalista. POR TODOS ESSES MOTIVOS, o passamento de Ruy Mesquita e Roberto Civita abre um largo vácuo na imprensa brasileira, que tão cedo não produzirá jornalistas da dimensão que ambos alcançaram.

13 Juiz autorizou a posse da nova Diretoria ○

MAURÍCIO AZÊDO

11 Os militares perseguidos denunciam que ainda sofrem ○

L IBERDADE DE I MPRENSA 24 Juíza do Pará cria zona proibida para jornalistas em Belo Monte ○

26 Balanço da Unesco: 90% dos crimes contra jornalistas ficam impunes ○

D IREITOS H UMANOS 27 Ex-torturador processa deputado autor de reportagem-denúncia ○

28 Um ano da Comissão da Verdade: 15 audiências, 268 depoimentos ○

31 CARTAS DOS LEITORES ○

VIDAS 39 Editor, empresário, professor, por Alberto Dines ○

40 Roberto Civita, o homem que caminhava sobre as águas ○

43 Acurcio Rodrigues e a liberdade de informar ○

44 O combativo Ruy Mesquita ○

47 João de Scantimburgo, Nelson Medeiros, Francisco Thaumaturgo, Álvaro Queiroz, Lana Fonseca ○

ANGELI: PÁGINA 36


ESPECIAL

MUNIR AHMED

Uma das instituições mais significativas do regime democrático, a Câmara dos Deputados reluta em mudar a legislação para retirar de cena a prática freqüente de censura às biografias não-autorizadas. POR PAULO CHICO

A

quem pertencem os direitos sobre a história de personalidades? No caso de artistas, vale mais o resguardar da privacidade ou o direito do respeitável público ao livre acesso à informação? Impedir, por meio da Justiça, que biografias não-autorizadas cheguem às livrarias é, ainda que disfarçada, uma prática de censura? Questões como essas alimentam o debate acerca do Projeto de Lei nº 393/2011, que altera o artigo 20 do Código Civil, dispondo sob o fim da necessidade de autorização prévia do próprio biografado, ou de seus familiares, para a publicação de obras do gênero.

De autoria do Deputado federal Newton Lima (PT-SP), o texto havia sido aprovado em caráter terminativo – sem a necessidade de ir a plenário – na Câmara dos Deputados no dia 2 de abril passado. Pelos trâmites normais, seguiria diretamente para votação no Senado. No entanto, o Deputado Marcos Rogério (PDT-RO) e mais 72 parlamentares assinaram requerimento solicitando a discussão da proposta pelos componentes da Casa. Um retrocesso que poderá não somente atrasar, mas inviabilizar a aprovação do projeto. “Essa volta do projeto para a Câmara representa uma frustração, sem dúvida. Tí-

nhamos a perspectiva de enviá-lo diretamente para o Senado, que o apreciaria. Depois, o mesmo seguiria para a sanção da Presidente Dilma Rousseff. Com a solicitação do Deputado Marcos Rogério, que conseguiu o volume de assinaturas necessárias para levar o projeto a plenário, iremos prolongar ainda mais a eliminação deste ranço da censura brasileira, que é a possibilidade de interpretação do Código Civil, por alguns magistrados, da necessidade de autorização prévia da celebridade ou personalidade, ou de seus familiares no caso da pessoa morta, para que uma biografia seja escrita”. JORNAL DA ABI 390 • MAIO DE 2013

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ESPECIAL CENSURA ÀS BIOGRAFIAS, ATENTADO À LIBERDADE DIVULGAÇÃO

Censura editorial e ameaça

Fora do ambiente político, a linha de pensamento coincide com as crenças do Deputado. Como pondera Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras. “Há uma confusão geral quando se debate este assunto. Os crimes de deturpação de informação ou de ofensa continuarão previstos, e poderão ser discutidos na Justiça, para proteger os biografados que se sentirem atingidos. O objetivo do projeto é apenas impedir o veto à publicação dessas obras. Isto é, garantir às pessoas o direito do acesso à informação e ao conhecimento. Mesmo que não seja aprovada agora, após o debate a ser promovido pelos Deputados, a lei terá que ser implementada, mais dia ou menos dia. Essa legislação vai ter que mudar, a não ser que o Brasil queira 4

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de autorização prévia. Os autores ficam temerosos... É natural! Uma biografia séria é um trabalho que leva alguns anos de execução, e eles não querem correr o risco de ter todo esse desgaste em vão”, revela ele, que pondera. “Essa questão da obrigatoriedade da autorização prévia ou não passa, sobretudo, pela interpretação jurídica. Como editor, entendo que ela não cabe... Na Companhia das Letras, nós encaminhamos esses livros para uma consultoria jurídica que, por vezes, aconselha o autor a tirar ou a reescrever determinados trechos, justamente por eles serem possíveis alvos de processo, quando vistos por determinadas brechas jurídicas. Já fizemos isso algumas vezes, em concordância com o autor, até mesmo pelo compromisso de não ver comprometida a obra por inteiro.” Pedido de dinheiro

Newton Lima: Não houve contestação quanto à constitucionalidade do projeto de lei.

viver em retrocesso, associando-se em definitivo a países onde de fato existe a prática da censura editorial, como a China, por exemplo”. Para Schwarcz, as famílias que proíbem a publicação de biografias não percebem que, assim, acabam por desvalorizar a imagem desses personagens. “Ao tentar controlar a história de pessoas que são públicas, elas prejudicam o registro de parte da História do Brasil. A aprovação do projeto é importante justamente para garantir que os estudantes que hoje freqüentam as escolas tenham direito de conhecer a fundo os personagens de seu país, para formar uma consciência crítica. A história de uma pessoa pública, por definição e coerência, deve ser de conhecimento público. Pertence a toda a nação”. Quarta das cinco ex-mulheres do cantor Raul Seixas, Kika Seixas deu uma declaração bombástica em 2009. Em telegrama enviado ao jornalista Edmundo Oliveira Leite Júnior, que preparava um livro sobre a vida do ‘Maluco Beleza’ do rock nacional, alertou: “Caso o senhor insista na realização irregular de tal biografia, serão tomadas as medidas judiciais cabíveis”, advertia a mensagem. Em entrevista a uma coluna social de um jornal carioca, Kika sentenciou: “Escrever biografias sem autorização no Brasil é cometer suicídio”. Raul até foi retratado no filme O Início, o Fim e o Meio, de Walter Carvalho, que, com diversos depoimentos emocionados e o filtro das ex-mulheres do artista, chegou aos cinemas no ano passado. Mas, certamente não por mero acaso, a biografia não saiu. O impacto da ameaça feita por Kika Seixas não é apenas o de uma frase de efeito. Para Luiz Schwarcz a interpretação jurídica sobre o que diz o Código Civil aterroriza escritores. E amedronta editoras. “Acho que podemos, sim, afirmar que existe uma demanda retraída de biografias neste País. Não tenho dúvida de que há anos existe no Brasil uma espécie de autocensura prévia dos escritores. Alguns projetos não saem do papel exatamente por existir essa absurda obrigatoriedade

Lançada pela Companhia das Letras, a biografia Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha é um dos casos mais simbólicos das inúmeras batalhas jurídicas travadas por escritores e editoras, de um lado, e os familiares dos personagens retratados, do outro. “O livro foi alvo de uma reportagem no Fantástico, na TV Globo, uma semana antes de seu lançamento, ocorrido em 1995. Logo depois, recebemos um comunicado, na verdade um pedido de dinheiro por parte das filhas do craque do Botafogo, que sabiam desde sempre do projeto e até haviam colaborado com o Ruy Castro na sua produção. Elas entraram com vários processos, de naturezas diferentes. Em um deles, nos acusavam de invasão de privacidade. Em outro, de difamação, por citarmos a questão do alcoolismo do jogador, que sempre fora de conhecimento público.

RENATO PARADA

O parlamentar do PT diz que, neste novo cenário, não há data definida sequer para o debate na Câmara. “Infelizmente o projeto de lei, que foi aprovado por unanimidade pelas Comissões de Educação e Cultura e Constituição e Justiça – o que significa dizer que não houve nenhuma contestação quanto à constitucionalidade –, entrou na fila de projetos para serem apreciados pelo plenário. Minha expectativa é que a sociedade civil se organize – os autores, biógrafos, editoras e pessoas interessadas, para pressionar a Câmara dos Deputados a votá-lo o mais rápido possível”, disse Newton Lima em entrevista ao Jornal da ABI. O maior risco, levantado pelo próprio autor do projeto, bem como por escritores e editores ouvidos pelo Jornal da ABI, é que o lobby dos políticos inviabilize a aprovação da proposta. Nos corredores da Câmara, em Brasília, especula-se que muitos parlamentares, das mais diversas correntes, seriam inicialmente contrários à Lei. A razão é simples. Quase óbvia. Teriam medo de serem, eles próprios, alvos de biografias não-autorizadas. Newton Lima confirma que o clima é de apreensão entre seus colegas. “Essa tese tem fundamento – não é mera especulação. Foi justamente o argumento utilizado pelo Deputado que solicitou a apreciação do plenário. Ele justificou uma preocupação de ordem política e eleitoral. Diz que se as biografias forem liberadas alguém poderá escrever um livro sobre um político para prejudicá-lo. Essa tese é um absurdo, primeiro porque o meu projeto não altera em nada o direito à imagem, à indenização por danos morais ou por difamação. Tudo isso está garantido na Constituição. Além do mais, quem iria gastar dinheiro com um livro, colocar no mercado um produto que é caro e trabalhoso de se fazer, só para atingir a imagem de um político? Basta fazer uma denúncia nos órgãos competentes que a própria imprensa irá divulgar se o político for ‘ficha suja’. Essa tese também não se sustenta quando olhamos a legislação eleitoral, que garante aos políticos entrar com ações na Justiça contra aqueles que estão falando mentira ou difamando sua imagem. Acredito que mesmo com essa tese absurda sendo ventilada a maioria dos deputados irá apoiar o projeto, pois é latente a necessidade de garantir o direito à informação”, afirmou.

Em outro, reclamavam direitos sobre fotos e sobre a própria obra. Perceba que, no conjunto das ações, havia uma clara contradição. Por um lado, as filhas de Garrincha queriam tirar o livro de circulação. Por outro, queriam receber dinheiro por ele”, conta Luiz Schwarcz. O imbróglio rendeu uma longa briga na Justiça, na qual a editora ganhou em primeira instância, e as filhas de ‘Mané’, em segunda. Como resultado, o livro ficou por quase uma década fora de catálogo. E, por decisão da Justiça, as herdeiras embolsaram uma boa quantia em dinheiro – embora não recebam qualquer percentual sobre as vendas. “De um modo geral, a aprovação do projeto do Newton Lima abrirá o mercado para que se possa tentar escrever, finalmente, a grande História do Brasil – inclusive a recente. Nunca fiquei limitado a biografias – com ou sem a liberação delas, continuarei produzindo livros. Pena que, neste momento, as perspectivas de sua aprovação na Câmara não sejam tão animadoras. Além disso, a dispensa da necessidade de autorização prévia para publicação de biografias de personalidades públicas poderá pôr um fim na postura de muitos familiares, que buscam nesses livros meios alternativos de obter rendimentos”, declarou o próprio Ruy Castro ao Jornal da ABI. Para o autor de Estrela Solitária – obra que levou o Prêmio Jabuti 1996 de Melhor Ensaio e Biografia – o gênero traz peculiaridades em relação à tradicional reportagem. Mas precisa gozar do mesmo princípio de liberdade editorial. “Nem todos os grandes biógrafos foram repórteres, e o fato de o sujeito ser um grande repórter não garante que vá fazer uma boa biografia. A biografia exige muitos outros atributos, inclusive uma ampla base cultural, que os repórteres nem sempre têm. Mas é verdade que qualquer censura a livros será uma agressão à liberdade de expressão, o que inclui a liberdade de imprensa”, avalia o escritor, que também assinou as biografias de Nelson Rodrigues – O Anjo Pornográfico, lançada em 1992 – e de Carmem Miranda – Carmem, de 2005. Afinal, o que diz a lei?

Luiz Schwarcz: A história de uma pessoa pública pertence a toda a nação.

A Constituição aprovada em 1988 repôs o Brasil no caminho da normalidade democrática, acabando com dispositivos espalhados em leis despóticas, criadas sob inspiração do regime militar. Contudo, até hoje sobrevivem inúmeros mecanismos antidemocráticos, frutos do chamado ‘entulho autoritário’. É o caso do artigo 20 do Código Civil, que assegura o direito à privacidade, e que, interpretado em contraposição ao artigo 5º da Constituição – aquele que garante a ‘inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da imagem’ – tem-se revelado um eficiente instrumento de censura. As vítimas preferenciais desse dispositivo são autores de biografias de homens públicos em geral que, pela importância de suas obras, ou da trajetória na vida política ou cultural, não merecem ter a história apagada da memória nacional. Mas é justamente isso o que têm conseguido, por meio de processos judiciais com base nesse artigo, parentes e herdeiros de biografados.


DIVULGAÇÃO/EDITORA RECORD

“De fato, os autores hoje têm um problema muito sério, devido ao artigo 20 do Código Civil”, explica Pedro de Franco Carneiro, advogado especializado em propriedade intelectual. O citado texto diz exatamente o seguinte: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”. “A proposta do projeto de lei agora em discussão é acrescentar a este artigo o tópico de que ‘pessoas públicas poderão ser biografadas sem autorização prévia’. Em geral, é importante frisar, a regra continua a mesma. As biografias ainda precisarão ser autorizadas, com a exceção dos casos de pessoas cujas trajetórias tenham uma dimensão pública ou cujos fatos narrados sejam de interesse da coletividade”, diz Pedro de Franco. O questionamento posterior – caso a lei seja aprovada – é: quem vai decidir isso? A quem caberá apontar se uma história, que inicialmente presumese pessoal, é de real interesse público? Um dos mais respeitados jornalistas do País, Geneton Moraes Neto é craque em resgatar episódios históricos em reportagens de fôlego, como a série Dossiê, produzida para a GloboNews. Sua estréia no terreno das biografias ocorreu neste ano de 2013, com o lançamento de Garrafas ao Mar: A Víbora Manda Lembranças, filme em que retrata a personalidade e a trajetória de um dos maiores repórteres brasileiros de todos os tempos: Joel Silveira. O documentário – definido pelo próprio diretor como uma ‘crônica’ sobre a longa amizade com Joel – já teve sessões no canal jornalístico por assinatura e agora segue sendo exibido e debatido em faculdades de Comunicação, em diversos Estados. Geneton também falou com o Jornal da ABI. “Permitir censura prévia é coisa de republiqueta. Em qualquer país do mundo quem se sente prejudicado recorre à justiça. Ponto. O direito à informação é garantido pela Constituição. Ao contrário do que os abutres defensores da censura querem fazer crer, o projeto do Newton Lima não defende nem de longe o sinalverde para que se cometam abusos contra a privacidade de quem quer que seja. O que se quer é mandar a censura prévia para o lugar de onde ela jamais deveria ter saído: a lata de lixo! O pior é que esta restrição, inventada no Brasil por algum gênio do mal, criou uma espécie de comércio da honra, já denunciado pelas editoras. São, em geral, herdeiros que negociam o que pode ou não ser publicado. Triste País! Mas aposto as fichas no Congresso: não é possível, é intolerável, é inimaginável que os deputados queiram fazer o triste papel de censores. É o que acontecerá, se eles não derrubarem as restrições às biografias. Neste caso, o que estará manchada para sempre é a biografia do próprio Congresso!”, criticou.

Vergonha. Vergonha. Vergonha.

Geneton lembrou ainda o caso mais emblemático de censura envolvendo a biografia de uma personalidade brasileira. “O trabalho de anos e anos do jornalista Paulo Cesar de Araújo, biógrafo de Roberto Carlos, foi para o lixo. A cena – patética, deprimente, horrorosa, indefensável, injustificável — saiu no jornal: caminhões recolhendo caixas e caixas de exemplares do livro Roberto Carlos em Detalhes, no depósito da editora. Vergonha. Vergonha. Vergonha. A visão de livros incinerados ou triturados é digna da era nazista. Com raras exceções, a violência de inspiração nazista cometida contra o biógrafo de Roberto Carlos mereceu apenas reações burocráticas da imprensa, na época. Não conheço Paulo Cesar de Araújo pessoalmente. Mas ele merece toda a solidariedade. Onde estavam os editoriais irados na imprensa? E as páginas de reclamação, briga, confronto, questionamento? O assunto não podia ter morrido assim. Onde estavam os editores todos, que não fecharam o trânsito na Avenida Paulista e na Avenida Rio Branco para protestar?”, questiona Geneton. Vale lembrar que neste mês de maio o censor – ou melhor, o cantor – Roberto Carlos voltou ao centro da polêmica. O objetivo do ‘Rei’ agora é retirar das livrarias Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude, livro de Maíra Zimmermann, lançado pela Estação Letras e Cores. O artista capixaba, ele próprio o expoente máximo do movimento que revolucionou costumes da juventude dos anos 1960, tenta arregimentar o apoio de colegas para impedir a comercialização da obra, bem como barrar a mudança do Código Civil que trata das biografias. Não satisfeito em produzir música, Roberto Carlos parece determinado em sua incumbência de decidir o que as pessoas podem ou não ler. Os advogados do artista apresentam o argumento para censurar o livro. Reclamam de uma ‘caricatura’ do cantor na capa. “Fazer aquela caricatura de forma desautorizada viola os direitos de imagem do Roberto”, disse o advogado Marco Antônio Campos. O empresário Dody Sirena, complementa: “Fazemos

isso em situações que não configuram homenagem ao Roberto, mas em casos que usam a imagem dele apenas para ganhar dinheiro”. Em tempo, o livro de Zimmermann saiu com uma tiragem inicial de apenas mil exemplares. A nova investida da ‘tesoura’ implacável do autor de Esse Cara Sou Eu, é claro, provocou reações. “Esse livro sequer é uma biografia! Ele conta a história de um período que todos nós vivenciamos, e que mudou o comportamento de uma geração. O Roberto, por ter sido personagem central do movimento, acredita que o livro precisa de sua autorização – o que é um equívoco. A lei, como está, termina por impedir que parte da História brasileira seja registrada. As pessoas fazem uma baita confusão, achando que a mudança proposta pelo projeto do Newton Lima vai possibilitar que obras difamatórias sejam publicadas. Mas, na verdade, a lei continuará prevendo que livros que tragam injúria ou difamação sejam alvos de processos. Figuras públicas têm suas histórias contadas diariamente nos jornais, nas revistas. Não há razão para restringir o registro desses fatos”, defende Sônia Jardim, Presidente do Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livros), que faz ainda uma comparação. “Nos países mais desenvolvidos é possível ver, convivendo lado a lado nas livrarias, as biografias autorizadas e não-autorizadas de artistas como Freddie Mercury. Cabe ao leitor escolher qual mais lhe agrada. De qual autor mais se aproxima. E, se ele for muito fã, acaba comprando todas...”. Diretor-adjunto do site Diário do Centro do Mundo, jornalista e músico, Kiko Nogueira também tratou do tema, em artigo publicado na internet no dia 6 de maio. “Um grupo de ‘celebridades’ quer lançar um manifesto contra o projeto de lei que permite biografias. À frente do grupo está Roberto Carlos. Essa atitude, aliada à nossa cultura do compadrio, alimenta uma indústria milionária de mentiras e empulhações. Um dos resultados é a eterna falta de bons livros e filmes sobre personagens brasileiros, quaisquer que sejam. Tudo tem de ser autorizado e nada que não seja uma hagiografia passa. O filme sobre Renato Russo, por exemplo,

O trabalho de anos do jornalista Paulo Cesar de Araújo foi para o lixo: o livro biográfico Roberto Carlos em Detalhes foi proibido pelo cantor.

Somos Tão Jovens, não fala de sua homossexualidade – o que, nesse caso, não é fofoca, mas um elemento fundamental de sua obra. Fica-se sempre na superfície para não haver problemas. Críticas, ou qualquer coisa que não seja elogio, são vistas como tentativas torpes de destruir reputações”, escreveu ele, que já foi Editor da Veja São Paulo; Diretor de Redação da Viagem & Turismo e do Guia Quatro Rodas. Os mortos não mentem

Não por acaso, Ruy Castro declarou, em debate realizado na Bienal do Livro de 2009, no Rio de Janeiro, que recomenda aos jovens biógrafos que escrevam sobre pessoas mortas que, de preferência, não tenham herdeiros. “É um jeito de não ter dor de cabeça e tentar escapar do oficialismo. É muito melhor biografar morto do que vivo. Porque o biografado vivo vai mentir para você, e ainda vai atrás de outras pessoas para que elas mintam para você também. Os mortos não mentem, você só tem que saber lidar com os herdeiros dele”, provocou. Tamanho temor dos autores é algo inimaginável no ambiente de liberdade editorial experimentado em países como os Estados Unidos, onde mais de uma centena de biografias sobre o astro Michael Jackson convivem democraticamente nas estantes das livrarias. E, por certo, outras tantas ainda serão escritas, com ou sem o consentimento da família. Editor-executivo da Editora Record, Carlos Andreazza escreveu contundente artigo sobre o tema – É a Liberdade que Está em Jogo. O texto foi publicado na seção de Opinião de O Globo no dia 9 de abril deste ano. “Sob o falso manto de se resguardar a imagem de pessoas públicas, é o direito fundamental à liberdade de expressão, mais do que a produção e a circulação de biografias, que se encontra sob tutela hoje. Vivemos um tempo de retrocesso evidente, em que a falência do debate público não é o menor dos sinais. A cada vez que um editor – ou um escritor – precisa considerar primacialmente elementos que não aqueles inerentes ao seu trabalho, dá-se um passo atrás no terreno da livre circulação de idéias. Falo com base em meu ofício, que tende a se aca-

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ESPECIAL CENSURA ÀS BIOGRAFIAS, ATENTADO À LIBERDADE DIVULGAÇÃO

nhar, já se acanha, achacado por sucessivos processos judiciais, inviabilizado pela indústria das imagens feridas e pelo advento, bem-sucedido, do ‘advogado de porta de livraria’. Não se avalia um original hoje apenas pela força de seu argumento, pela qualidade do texto e pelas possibilidades de mercado. É preciso lê-lo com olhar jurídico. Ou, por que não dizer?, com medo”, confessou, para dar seguimento à argumentação favorável ao Projeto de Lei nº 393/2011. “Hoje é necessário antecipar possíveis problemas; discutir com o autor não a fraqueza literária de uma passagem cujo texto pode melhorar, mas a presumida vulnerabilidade de determinada referência, que precisará ser removida de modo a que se evite uma complicação nos tribunais. Não está aqui em questão o fato de que o editor – bem como o autor – precisa ser responsável e ter cuidado com o que publica. Isto é óbvio. Este é um trabalho arriscado mesmo, que pressupõe coragem e apostas – e que pode e deve ser punido, como ocorre freqüentemente nos Estados Unidos, quando erra, quando excede. Não queremos uma janela para sair desonrando pessoas públicas. Não é isso. Mas algo grave ocorre quando o editor se aproxima do covarde. Falamos de livro, ora! Da produção e da circulação de livros; de um processo – que chamaria de editorial, não fosse, bem antes, essencialmente humano – que precisa ser cumprido, para o bem de uma república cujas instituições se pretendem maduras”, concluiu. Uma grande afronta

“Sem dúvida, assistimos a uma grande afronta, pois a proibição de biografias cerceia dois direitos fundamentais garantidos pela Constituição: a liberdade de expressão e o direito à informação. Ou seja, não apenas o autor é prejudicado, mas também o leitor, o cidadão, a sociedade. E além da biografia de Roberto Carlos, que é de minha autoria e foi lançada originalmente em 2006, atualmente estão também proibidas biografias de Guimarães Rosa, Noel Rosa, Lampião...”, lamenta Paulo Cesar de Araújo, que tenta encontrar na Medicina uma explicação razoável para o comportamento do cantor do qual é fã, ao qual dedicou anos e anos de cuidadosa pesquisa e que, por fim, o censurou. “Roberto Carlos sofre de transtorno obsessivo, compulsivo, o toc. Segundo especialistas, um dos sintomas desta doença é a obsessão compulsiva de tudo controlar sobre si mesmo. Mas o cantor está revelando uma voracidade censória que já passou dos limites. Ontem proibiu uma biografia, hoje proíbe um livro sobre a Jovem Guarda, amanhã poderá proibir uma enciclopédia de mpb que cite o nome dele. E nada justifica isto. Roberto Carlos é apenas tema de um livro. Da mesma forma que ele faz músicas sobre Jesus Cristo e Nossa Senhora – personagens da História – autores podem fazer livros tendo sua trajetória como tema.” Paulo Cesar acredita que, se aprovado, o projeto do Deputado Newton Lima permitirá que as editoras invistam mais na produção do gênero biográfico. “Atualmente, há vários projetos engavetados e até alguns livros que estão 6

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Sônia Jardim: Figuras públicas têm suas histórias contadas diariamente nos jornais e revistas.

prontos e não são lançados com receio de processos ou mesmo por ameaças de herdeiros. É o caso de um perfil de Manuel Bandeira escrito por Paulo Polzonoff, pela Ediouro. Pretendo, sim, relançar meu livro por outra editora, pois ficará difícil para o Roberto Carlos proibi-lo com uma nova legislação sobre o tema. Roberto Carlos é considerado ‘Rei’, mas não poderá estar acima das leis do País. Além disso, vou lançar outros projetos, inclusive livros sobre Roberto Carlos, mesmo que o artigo 20 do Código Civil não seja modificado, porque sigo o que está na nossa Constituição, que diz no seu artigo 5º, parágrafo IX: ‘É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’. A rigor, se os juízes seguissem o que diz a nossa Carta Magna, a lei nem precisaria ser mudada. Mas, infelizmente, os magistrados, especialmente os de primeira instância, têm priorizado o que diz o aberrante artigo 20 do Código Civil – uma lei ordinária, e não a Lei Maior.” Apesar dos projetos que anuncia, Paulo Cesar está descrente da aprovação do projeto de Lei. “Acho mais difícil, agora que o projeto voltou para a Câmara e precisa ir a plenário. Aliás, não acredito em aprovação de nenhum projeto sem pressão ou mobilização dos segmentos interessados. Acho que seria necessária uma mobilização de editores, autores e intelectuais para pressionar o Congresso a realizar a votação pró-liberdade de expressão. Sem isso acho muito difícil aprovar a mudança. O argumento utilizado pelo deputado que impediu que o projeto fosse logo para o Senado é realmente tosco, mas capaz de sensibilizar o espírito corporativista de muitos congressistas. Tosco porque qualquer político pode também ser alvo de reportagens desfavoráveis em jornais, revistas, rádio ou tv. E aí, como ficamos? Vamos restringir a liberdade de imprensa por causa disto? É duro esperar algo positivo de políticos com essa mentalidade. Agora estou apostando mais na ação que a Associação Nacional dos Edi-

tores de Livros ajuizou no Supremo Tribunal Federal pedindo que a Corte declare inconstitucional a aplicação do artigo 20 do Código Civil. Acho que esta resposta sai antes do que a votação do PL 393/ 2011 no Congresso”. Do texto da referida ação direta de inconstitucionalidade, citada por Paulo Cesar de Araújo, datada de 5 de julho de 2012 e assinada pelo advogado Gustavo Binenbojm, consta esta argumentação: “O condicionamento de obras biográficas ao consentimento do biografado, ou de seus familiares, sacrifica conceitualmente o direito fundamental à livre divulgação da informação pelos historiadores e biógrafos, assim como o direito à obtenção de informação, cuja titularidade pertence a todos os cidadãos. O princípio do pluralismo (político, histórico e cultural), previsto no art. 1º, inciso V, da Constituição da República, também incide, na espécie, para afastar a necessidade da prévia autorização do biografado ou de outras pessoas retratadas em obras biográficas. Afinal, o monopólio da biografia autorizada representa, na prática, a antítese da idéia do pluralismo em relação às visões da história política, artística e social do País”. Aberração jurídica

Paulo Cesar de Araújo conclui: “A alteração proposta não traz nada de inovador ou revolucionário. Apenas corrige uma aberração jurídica. Não se trata de querer abolir o direito à privacidade, garantido pela Constituição, mas permitir à sociedade brasileira condições de compatibilizar a garantia dos direitos individuais com a ordem democrática. Hoje é o meu livro, ontem foi o de Ruy Castro e o de Fernando Morais. Qual será a próxima biografia censurada? Se a lei não mudar, poderá ter fim no Brasil um gênero literário que, desde Plutarco, na Grécia, tem contribuído para o estudo e a grandeza das sociedades”. O projeto de Newton Lima beneficiaria não apenas as biografias editadas em livro, mas também traria maior liberdade de expressão às obras audiovisuais. A censura, acredite, já se fez presente até em minisséries de televisão. O Marajá é uma minissérie brasileira que estrearia pela extinta TV Manchete em 26 de julho de 1993, mas que foi proibida de ir ao ar devido a uma ação judicial. Escrita por José Louzeiro, com direção de Marcos Schechtman, a trama mostraria a vida de Fernando Collor de Mello, Presidente da República que sofrera impeachment no ano anterior. “Nesse caso eu tive que enfrentar o Collor que, realmente, é um moleque, um ‘porra-louca’. Continua sendo. No dia 8 de maio ele teve um ataque e rasgou um relatório de prestação de contas do DNIT em plena sessão no Senado, você viu? Não sei como um sujeito desses pode ser eleito senador. Devia estar internado! Ele certamente daria uma biografia não-autorizada das melhores... Mas, com a legislação atual, se chegasse às livrarias, seria logo retirada... Na época de O Marajá brigamos na Justiça e ganhamos o direito de exibir a minissérie, mas um sobrinho do Adolpho Bloch, que na verdade nem gostava do velho, um tal de Jaquito, armou com par-

ceiros e simplesmente sumiu com todo o material de minhas novelas. Deixou o tio Bloch sentado na poltrona, esperando a exibição do primeiro capítulo da série, que nunca foi ao ar”, recordou José Louzeiro ao Jornal da ABI, esclarecendo que a proposta real da produção era fazer uma brincadeira, uma sátira bem-humorada. “A verdade é que, se a biografia for somente elogiosa, ninguém da família reclama de nada... Mas, se for um levantamento histórico real, haverá certamente implicações no que tange aos direitos autorais. Eu, particularmente, não conheço um caso de biografia em que o escritor tenha o objetivo claro de espinafrar seu biografado – a não ser em casos de pessoas muito famosas e reconhecidas por sua atuação condenável, como, por exemplo, o Adolf Hitler. No geral, as biografias são feitas mesmo com o intuito de exaltar os personagens, com seus defeitos e qualidades, é claro”, acredita Louzeiro, um dos fundadores do gênero romance-reportagem no Brasil, autor de diversos livros e de telenovelas como Corpo Santo, além de roteirista de filmes como Pixote, A Lei do Mais Fraco e O Homem da Capa Preta. “Este País já viveu e ainda vive situações de extremo ridículo. Veja o caso dos Governos militares, que se sucederam após o golpe de 1964, e dos quais destaco em especial o período do imbecil do Costa e Silva. Essas figuras todas são merecedoras de biografias à revelia. E o fato de não podermos fazê-las é, por si só, mais um episódio ridículo. É uma pena que a produção bibliográfica nacional, bem como a cobertura de mídia sobre as chamadas personalidades públicas, seja cada vez mais dedicada à simples e vazia exaltação, sem qualquer viés crítico”, lamentou. “Essa brutalidade precisa acabar”

Citado por Paulo Cesar de Araújo, Fernando Morais também já manifestou publicamente seu apoio ao Projeto de Lei nº 393/2011. Autor de biografias sobre Paulo Coelho, Olga Benário Prestes e Assis Chateaubriand, o escritor defende o direito de a sociedade se informar sobre ela mesma. “Não se trata de uma luta corporativa, do direito dos escritores, e sim do sagrado direito da população de se informar. Observamos nos últimos anos a substituição da censura fardada pela censura togada”, criticou, numa referência às sentenças do Judiciário contra a publicação de biografias. Fernando Morais também enfrentou batalha traumática. Em 2005, um juiz de Goiânia determinou a busca e apreensão de Na Toca dos Leões, por suposta ofensa ao Deputado Ronaldo Caiado. O juiz proibiu o escritor de dar declarações públicas sobre o trecho do livro referente ao político. A obra, que retratava a história dos publicitários Washington Olivetto e Gabriel Zellmeister, sócios da agência W/Brasil, acabou retirada das livrarias. “Em um livro de 450 páginas, usei apenas três linhas para narrar uma passagem envolvendo o Deputado. Essa brutalidade da qual fui vítima precisa acabar. Existe sim uma ameaça, porque como não há uma legislação específica, a Constituição deixa margem a ambigüidades. E ficamos à mercê da interpretação do juiz quando as famílias do biografado recorrem à Justiça”, explica


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FRANCISCO UCHA

ESPECIAL CENSURA ÀS BIOGRAFIAS, ATENTADO À LIBERDADE DIVULGAÇÃO

Regina Echeverria: Cerceando de todos os lados, inclusive o econômico.

Morais, referindo-se a títulos como Estrela Solitária e Roberto Carlos em Detalhes. Craque na produção de biografias, Regina Echeverria tem manifestado publicamente seu apoio ao projeto do Deputado Newton Lima. A escritora falou com o Jornal da ABI. “A verdade é que, do jeito que as coisas estão, as editoras já evitam programar ou publicar livros que não tenham autorização da família ou de herdeiros. O autor no Brasil, fora os best-sellers, recebem apenas 10% do preço de capa. Se ainda tiver que dividir isso com os familiares... A própria Lei Rouanet não libera patrocínio se não tiver essa carta de autorização. Você está cerceando de todos os lados, inclusive o econômico. É comum ter um grande personagem para retratar e não poder fazê-lo. Nunca tive processo,

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mas já deixei de fazer vários livros. No caso da biografia que escrevi sobre a Elis Regina, por exemplo, eu sei que os filhos dela não gostam. Sei que não gostam da obra, que escrevi em 1985, mas nunca falaram isso diretamente para mim. Estão até produzindo um novo livro, vão fazer um filme que não é baseado no meu livro... Tudo bem, tudo certo. Quero mais é que existam muitos livros sobre a Elis. Até hoje só existe o meu, e uma outra obra pequena”. Regina aponta como curiosidade o fato de que em boa parte dos casos o veto à publicação de biografias é uma iniciativa de familiares ou de pessoas públicas que, em geral, sempre expuseram muito de suas vidas particulares. Parece mesmo que, numa época marcada pelo culto às celebridades, em que muitas delas expõem seus banheiros e banheiras em páginas de revistas, não há mais espaço para o relato de uma vida real, isto é, cheia de pecados e virtudes, erros e acertos. “Não é possível nossa Constituição nos garantir total liberdade de expressão e outra lei, menor, nos proibir de escrever a história de pessoas públicas. Sinto uma pena enorme, porque todo artista busca a fama; quando ela chega, alguns parecem querer fugir dela. A história de vida de pessoas públicas não pertence a ninguém, pertence ao País.” A escritora acredita que os membros do Congresso Nacional serão fiéis à Constituição, embora acredite que a maioria teme, sim, ter sua vida pesquisada. “Sinceramente, salvo raras exceções, quem poderia ser biografado no Congresso? Torço para que alguém entre eles tenha aprendido a viver na democracia. Continuo na torcida. Eu mesma já estou biografando vultos da história. No momento, a Princesa Isabel, que não necessita de autorização. Acho que o Brasil, depois do fim da ditadura, ainda não aprendeu a viver plenamente a democracia”. Jornalista, escritora e autora de biografias de diversas mulheres, Ana Arruda Callado é taxativa ao classificar a conduta das famílias que tentam evitar o acesso do público à trajetória dos biografados. “O

Ana Arruda Callado: O veto é um misto de burrice e ganância. As pessoas pensam que se ganha muito dinheiro com um livro.

veto é um misto de burrice e ganância. As pessoas pensam que se ganha muito dinheiro com um livro. Antes fosse verdade... As pessoas que se expõem o tempo todo, em razão mesmo de seu trabalho, de sua importância pública, quando partem para o veto, devem estar pensando em autobiografia. Mas a vida real é muito complicada. Como saber, de fato, tudo o que uma pessoa viveu? As autobiografias, em geral, ou exibem os defeitos como catarse, ou os omitem. Por exemplo: na autobiografia de Gilberto Amado, é difícil para o leitor entender que ele matou um homem, um poeta gaúcho que – hoje se diria – o assediava moralmente. Ele escamoteia o fato, que é importantíssimo em uma biografia. Esta loucura atual de confessionismo é quase sempre falsa. Ou, repare só, abrange apenas a vida sexual. Ninguém fala dos trambiques que deu, de apropriação indébita de trabalho de alunos na universidade ou outras coisas do tipo”, questionou. Ana Arruda, que trabalha atualmente na produção da fotobiografia de Antônio Callado, com quem foi casada, diz sempre ter contado com o apoio dos parentes de seus biografados. “No caso de Adalgisa Nery foi complicado, porque os dois filhos dela se detestavam. Mas consegui contornar bem e no dia do lançamento estavam lá os dois – que não se falaram,

DIRETORIA – MANDATO 2013-2016 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Fichel Davit Chargel Diretor Econômico-Financeiro: Sérgio Caldieri Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretor de Arte e Cultura: Henrique Miranda Sá Neto Diretor de Jornalismo: Alcyr Cavalcanti CONSELHO CONSULTIVO 2013-2014 Ancelmo Gois, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Miro Teixeira, Nilson Lage, Teixeira Heizer, Villas-Bôas Corrêa. CONSELHO FISCAL 2013-2014 Adail José de Paula, Dulce Tupy Caldas, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2013-2014 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: José Pereira da Silva Segundo Secretário: Moacyr Lacerda Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório. Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa. Conselheiros Efetivos 2013-2016 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Dulce Tupy Caldas, Fernando Foch, Germando de Oliveira Gonçalves, João Máximo, Marcelo Tognozzi, Milton Temer, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Sérgio Cabral, Sérgio Caldieri e Zilmar Borges Basílio Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto

mas foram muito amáveis comigo. No caso de Darcy Vargas, eu diria que as netas, Celina e Edith, foram maravilhosas. Ficaram orgulhosas de ver que alguém queria dar visibilidade à avó, sempre ofuscada por Getúlio. Claro que eu tomo certos cuidados, para não cair no detalhe escandaloso, que não acrescentaria nada à história. Meu objetivo ao escrever essas biografias de mulheres é conhecer mais a História do Brasil.” Ana acha difícil que o PL 393/2011 seja aprovado no Congresso. “Dizem que o Brasil vive uma democracia. Eu acho que não há democracia em lugar nenhum do mundo. Há países que caminham nesta direção, como os escandinavos. Mas, no nosso continente – e eu falo da América em geral – ainda é uma utopia. Há democracia em um país, como os Estados Unidos, onde a população convive e em grande parte aprova Guantánamo? Falam da Venezuela, mas e a Argentina? E nós, com este Congresso corrupto, que faz o povo desdenhar da tal democracia?” Uma das lições básicas de um regime democrático, acredita a escritora, é justamente a plena convivência entre as diferenças. E o compromisso de conhecer a própria História, por meio de seus personagens mais destacados. Sem medo. Sem máscaras. “E é aí que entram as biografias. De início, aprendemos que Maria Antonieta era uma malvada que mandava o povo faminto comer brioches. De uns tempos para cá, a moda entre historiadores é retratá-la como vítima. Malvados, então, seriam os revolucionários. O bom seria que muitas outras opiniões fossem emitidas, com base em pesquisas e documentos, para que afinal soubéssemos quem de fato foi ela – ou qualquer outra figura da História. Ou não é possível saber exatamente como foi determinada pessoa? Daí a graça de escrever biografias, ou perfis, como eu. Estou agora tentando descobrir quem foi Berta Ribeiro. Vou fazer um livro. Que venham outros, para que esta e outras mulheres sejam conhecidas e avaliadas.”

Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2013-2016 Antônio Calegari, Aluízio Maranhão, Carlos de Sá Bezerra, Daniel Mazola, Gilson Monteiro, Ilma Martins da Silva, José Cristino Costa, Luiz Carlos Azêdo, Manoel Pacheco, Marceu Vieira, Miro Lopes, Moacir Lacerda, Paulo Gomes Netto, Vilson Romero e Yacy Nunes. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Alberto Marques Rodrigues, José Pereira da Silva, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Marcus Antônio Mendes Miranda e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Daniel Mazola; Alcyr Cavalcanti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Carlos de Sá Bezerra, Carlos João Di Paola, Daniel Mazola, Ernesto Vianna,Geraldo Pereira dos Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Milton Temer, Miro Lopes, Modesto da Silveira, Vilson Romero, Vitor Iório e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. Assistente: Rosani Abou Adal REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

JORNAL DA ABI • MAIO DEABI 2013 O 390 JORNAL DA NÃO ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.


REFLEXÕES

A Palavra e a censura POR RODOLFO KONDER

ELIANE SOARES

A

s palavras escritas freqüentemente escoiceiam as verdades oficiais, como cavalos alados. Mordem os torturadores, atacam os corruptos e os burocratas, conduzidas pela ética de quem as organiza. Além disso, elas nos fazem sonhar; abrem portas, janelas, cofres, alçapões e caixas de Pandora; permitem que as flores nasçam em pleno asfalto; transformam o naufrágio da velhice num tempo de ventura, quando restam apenas “o homem e sua alma”. As palavras escritas nos levam à Dinamarca ou nos transportam sobre as águas geladas do Báltico; percorrem conosco as veredas do Central Park, cobertas pelas folhas mortas de um outono tardio; hospedam-nos num maravilhoso castelo do século 14, em West Sussex, junto a um cemitério; revelam-nos os mistérios dos maias e dos tehotihuacanos, dos toltecas e dos babilônios, dos minóicos e dos astecas; descem suavemente com a neve sobre os vivos e os mortos; desvendam os segredos do passado – “este quimérico museu de formas inconstantes” – e antecipam as vertigens do futuro; iluminam Paris e Jerusalém; despertam paixões, ressuscitam os mortos e desafiam os poderosos. Elas são mágicas e possuem poderes ilimitados, orientadas pela estética de quem as reúne. Há pessoas que sonham – e vão buscar nas palavras o meio de manifestar seus sonhos. Num delicado trabalho de ourivesaria, elas selecionam frases, fazem o polimento das concordâncias, montam parágrafos, para provocar emoções e despertar a imaginação dos seus leitores. Esses misteriosos seres, solitários e eternamente insatisfeitos, são chamados escritores. Os escritores geralmente não sabem administrar bens nem lidar com dinheiro, não entendem de política cambial nem de juros acumulados. Às vezes, sofrem de insônia, pressão alta e enxaqueca. Vivem acossados pela insegurança: Será que o meu livro vai fazer sucesso? Ficará encalhado? Você gostou do texto? Temem sempre os críticos, a rejeição dos leitores e, em certos países sombrios, à espada cega e implacável da censura. Mas essas criaturas de aparência frágil tornam a vida muito mais intensa, fazem das palavras um instrumento de magia, distribuem sonhos e emoções. Os regimes autoritários sempre odeiam quem escreve. Na América Latina, por exemplo, poetas, romancistas, críticos e jornalistas foram perseguidos, durante os chamados “anos de chumbo”. Nos países socialistas também, porque as “ditaduras do proletariado” temiam os escritores e o poder desarmado de suas palavras. Até hoje, isso acontece em Cuba, no Marrocos, na Síria, na Líbia, no Iraque, no Afeganistão, no Irã, na China e em outras nações que ainda não se encontraram com a democracia. Muitas vezes os escritores e jornalistas acabam na prisão. Mas a cadeia não é o único mal que se abate sobre

eles. Há processos variados de intimidação, ameaças, isolamento, desemprego. Há também a censura, que os brasileiros já conheceram em diversos períodos da vida nacional. Durante a ditadura de Getúlio Vargas – o período conhecido como “Estado Novo” –, tivemos um inesquecível exemplo da ação dos censores. Depois do golpe militar de 1964, também fomos obrigados a conviver com a censura, que se abateu sobre o País como uma praga, brandindo sua ignorância e sua truculência de forma implacável. Apesar de todos esses problemas, apesar de tantos obstáculos, escritores e jornalistas escrevem. São teimosos, quase obstinados. Escrevem sempre, mesmo na penumbra. Até na escuridão, escrevem e nos iluminam. Com o seu

ofício, eles nos ensinam, nos enternecem, nos emocionam, nos humanizam, nos aprimoram. E nos fazem sonhar. Num tempo já quase esquecido e tornado mítico, William Shakespeare escreveu: “Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos”. O sonho, portanto, é o nosso ponto de partida – e o nosso ponto de chegada. Talvez até nos acompanhe na viagem derradeira ao outro lado do tempo. “Morrer, dormir, quem sabe sonhar...”, sugeriu o próprio Shakespeare, um escritor que, mesmo morto, ainda nos oferece sonhos fantásticos com seus textos imortais. RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.

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ACONTECEU NA ABI

Os jovens engrossam a campanha “Fora Marin” Movimento contra a presença de José Maria Marin na direção da Confederação Brasileira de Futebol entusiasma sobretudo a garotada das torcidas. ALCYR CAVALCANTI

P OR C LÁUDIA S OUZA A Frente Nacional dos Torcedores e a Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI promoveram na noite de 3 de maio um vibrante ato de lançamento da campanha “Fora Marin – Regulamentação Desportiva Já”, pela destituição de José Maria Marin do cargo de Presidente da Confederação Brasileira de FutebolCBF. O evento foi realizado na Sala Belisário Távora, no 7º andar do edifício-sede da ABI, que foi sacudido pelos surdos e taróis que a garotada trouxe para marcar as declarações e os momentos que considerava mais significativos. O motivo da campanha “Fora Marin” se deve aos ataques desferidos por Marin, quando Deputado estadual pela Arena de São Paulo, contra profissionais de imprensa da TV Cultura, dias antes da prisão e posterior assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, nas dependências do Doi-Codi de São Paulo. Vlado chefiava o jornalismo da emissora. Na ocasião, conforme documentação dos arquivos da Assembléia Legislativa paulista, Marin pediu providências às autoridades contra o jornalismo da TV Cultura e teceu elogios a Sergio Fleury, delegado do Dops de São Paulo. Participaram do evento na ABI João Hermínio Marques, Presidente da Frente Nacional dos Torcedores(FNT); Vitória Grabois, Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais; Mário Augusto Jacobskind, Presidente da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI; Continentino Porto, Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro; Aderson Bussinger, representante da Comissão de Direitos Humanos da OABRJ, o historiador Raul Miliet, o Deputado estadual Marcelo Freixo (Psol) e os Deputados federais Chico Alencar (Psol-RJ), Alessandro Molon (PT-RJ) e Fernando Ferro (PT-PE), autor da PEC 202/2012, que prevê a inclusão na Constituição de princípios para a organização desportiva no País. A proposta foi formulada a partir de sugestão (SUG 40/11) da Frente Nacional dos Torcedores(FNT). Convidados para o encontro, os ex-jogadores de futebol Afonsinho e Romário, que é Deputado federal (PSB-RJ), não puderam comparecer. O economista e professor Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, e Ivo Herzog manifestaram em vídeo apoio ao movimento “Fora Marin”. “É ultrajante imaginar essa pessoa como anfitrião da Copa de 2014, recebendo centenas de autoridades internacionais em nome do nosso País. Por conta disso, iniciei uma petição na internet pedindo a saída de Marin da CBF, com o que o futebol brasileiro ganhará dignidade”, afirmou Ivo Herzog.

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Mário Augusto Jacobskind ao lado do Deputado Chico Alencar: A ABI está presente nesta luta.

Mário Augusto Jacobskind abriu a manifestação saudando a platéia, formada em sua maioria por jovens. “A ABI está presente nesta luta. Nós, jornalistas, não podemos concordar com a presença deste senhor à frente da CBF, lembrando o seu passado de comprometimento com a ditadura e com o assassinato de Vladimir Herzog. É importante que o Rio de Janeiro se manifeste e se posicione contra esta situação na CBF, que, apesar de ser uma entidade privada, representa o nosso futebol. É lamentável que após a saída de Ricardo Teixeira, em um cenário de corrupção, enfrentemos agora a figura de Marin. Esperamos que esta campanha se multiplique.” Apologista da repressão O Deputado Chico Alencar falou em seguida sobre a mobilização da juventude em torno da campanha. “É comovente ver tantos jovens na platéia da ABI e sua centenária trajetória contra a ditadura e em defesa dos direitos humanos. Muitos movimentos encabeçados pela Associação aconteceram em uma época em que os jovens aqui presentes não eram nascidos. Vocês estão resgatando aspectos da História brasileira. Estamos unidos pelo amor à democracia e ao futebol como traço da cultura brasileira e elemento de eficaz integração social das nossas crianças e contra a violência.” Lembrou Chico Alencar que o discurso de José Marin na Assembléia Legislativa de São Paulo foi marcado pela apologia à repressão e à restrição à liberdade de imprensa. “Eles criticavam a TV Cultura que era uma réstia de jornalismo crítico de qualidade

no Brasil daquela época. Enquanto o futebol era usado para reforçar ideologicamente o regime, centenas de militantes eram torturados e mortos nos porões da ditadura. Marin representava a extrema direita e a linha-duríssima do regime. Precisamos regulamentar as atividades desportivas, sem intervencionismo, em nome do interesse público e da transparência. Quem foi cúmplice da tortura e da corrupção não pode estar à frente do futebol brasileiro.” “Desrespeito ao esporte” Relator da PEC 202/2012 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), o Deputado Alessandro Molon assinalou os avanços da proposta junto ao Congresso Nacional.“Desejamos uma representação no futebol que orgulhe os brasileiros e não que nos envergonhe. Para tanto, precisamos fazer avançar a PEC do Deputado Fernando Ferro, que prevê o acréscimo de um parágrafo ao artigo 217 da Constituição, que diz: ‘O Estado regulará na forma da lei a administração desportiva segundo os princípios da democracia, da participação da sociedade, da transparência, da moralidade, do humanismo, da justiça e da popularização esportiva.’ Recebemos no dia 30 de abril o estudo da Consultoria Legislativa da CCJ dando sinal-verde para o prosseguimento da PEC. Com isso, na próxima semana apresentarei o meu parecer pela admissibilidade da proposta.” O representante da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Aderson Bussinger, classificou como indigna a presença de José Marin na CBF e incoerente com o movimen-

to pela memória, verdade e justiça no Brasil. “A OAB entende que esporte, educação e direitos humanos estão interligados. Temos um compromisso com a defesa da democracia e das liberdades. José Marin na presidência da CBF representa um desrespeito ao esporte e ao momento em que estamos apurando a participação de militares e civis na tortura, no seqüestro e nas mortes durante a ditadura. A figura dele na CBF é incompatível, indigna e inaceitável. Os insufladores também são responsáveis pelo assassinato de Vladimir Herzog. Queremos o Marin na Comissão Nacional da Verdade respondendo pelos seus atos e mais adiante na Justiça sendo responsabilizado pela colaboração com a ditadura.” Para o Deputado estadual Marcelo Freixo, o afastamento de José Marin da CBF está relacionado com o amplo debate sobre a democracia. “Qualquer pessoa que tem alguma responsabilidade sobre o que foi a ditadura não pode ocupar cargo público e deve responder por isso. Acabamos de ter o afastamento de João Havelange diante de uma crise brutal. Ele renunciou no momento em que está sendo investigado sobre uma denúncia de R$ 45 milhões em favorecimento dele e de Ricardo Teixeira, seu ex-genro, através da ISL, marketing esportivo que comprovadamente ganhou os direitos de diversas Copas do Mundo por meio de fraudes na Fifa. Na democracia, Marin representa a imagem da ditadura; no futebol, a escola de Havelange e Ricardo Teixeira”. Vitória Grabois, Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ, expressou solidariedade ao movimento pela destituição de José Marin da presidência da CBF e estimulou a participação popular na campanha. “Há 28 anos a nossa entidade luta pelo resgate da memória, da verdade e da justiça. Estou feliz em ver tantos jovens presentes neste evento. A participação da sociedade em torno desta campanha é primordial para o seu sucesso.” Elitização A mobilização da classe jornalística contra a presença de José Marin na CBF foi detalhada por Continentino Porto, representante do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro. “O sindicato, juntamente com a ABI, está presente nas manifestações contra José Marin. Durante um seminário promovido pela Fenaj em janeiro último, em Porto Alegre, apresentamos um documento considerando José Marin ‘persona non grata’ para os jornalistas de todo o Brasil, exortando diretores e editores dos veículos de comunicação do País a informar leitores, ouvintes e telespectadores sobre o que ele representa”. A sustentação de nomes como José Marin, Ricardo Teixeira e João Havelange no comando do futebol brasileiro estaria correlacionada a forças políticas favoráveis, grifou o historiador Raul Miliet. “Na década de 1990 houve uma elitização da política de esportes do Governo federal. A realização de megaeventos foi contemplada em detrimento da política de democratização esportiva. Neste sentido você abre brecha para pessoas como Havelange, Ricardo Teixeira e José Marin. Com o dinheiro gasto em Pan-Americano, Olimpíada e Copa do Mundo, você colocaria milhares de crianças em escolas de maneira adequada.”


Os militares perseguidos denunciam que ainda sofrem Os impressionantes relatos de membros das Forças Armadas que até hoje são punidos por terem resistido ao golpe militar. ALCYR CAVALCANTI

O vexame de Pinochet Autor da PEC 202-12, o Deputado Fernando Ferro assinalou a relação histórica entre futebol e política e chamou a atenção para a falta de apoio ao esporte popular. “Gostaria de expressar a minha satisfação e alegria em estar na ABI, templo sagrado da democracia para todos os brasileiros. Aqui aconteceram momentos importantes da nossa História. Manifestações políticas da maior seriedade foram aqui acolhidas ou daqui partiram. Eu gostaria de lembrar que apenas escrevi e dei corpo jurídico e legislativo a uma iniciativa da Frente Nacional dos Torcedores, que levaram a idéia da PEC. O futebol faz parte da vida do brasileiro. Como pernambucano, sou torcedor do Náutico; em São Paulo o meu time é o Santos, e no Rio de Janeiro torço pelo Fluminense. É muito amor pelo futebol (risos). O esporte sempre foi utilizado por boas e más práticas políticas. Hitler usou o esporte para passar a idéia de superioridade nas Olimpíadas e foi derrotado por um negro. A ditadura brasileira usou o futebol, especialmente a Copa de 1970, para se legitimar e buscar apoio popular. As ditaduras argentina e chilena também o fizeram. A seleção de Pinochet, por exemplo, organizou um jogo de futebol com o Santos para se promover. Perdeu de 5X0. Foi meio constrangedor.” (risos). O Deputado defendeu a formulação de políticas públicas direcionadas ao futebol no âmbito socioeducativo. “Acolhi a sugestão da PEC como uma missão política. Atualmente o Estado brasileiro interfere, através do BNDES, colocando dinheiro nesses estádios, na iniciativa privada para encher o rabo de muita gente por aí, que faz uso dos esportes em defesa de interesses particulares. O Estado brasileiro deve interferir com valores, idéias e apoio, não aos grandes craques, mas para aquele campo de várzea que está sendo destruído para a construção de um prédio; para o pequeno clube, para os jogadores que ganham salários miseráveis. Apenas 2% dos jogadores de futebol recebem altos salários. Há uma ação política em tudo isso. A união das torcidas, a formação do caráter, a prática da solidariedade são valores construídos no futebol. A PEC prevê que o futebol seja regido sob os princípios da democracia, da moralidade e do humanismo. Temos histórias para contar, como a do jogador Almir, que foi morto quando escrevia um livro sobre as entranhas do futebol. Afonsinho levantou a bandeira do direito ao passe. Paulo César Caju lutou contra o racismo. Sócrates é o símbolo da luta pela cidadania no futebol. Vamos avançar neste movimento por um futebol que faça parte da construção da nossa nacionalidade.” Ao encerrar o evento, o Presidente da Frente Nacional dos Torcedores(FNT), João Hermínio Marques, revelou otimismo em relação ao movimento “Fora Marin”. “Já vimos o resultado da campanha ‘Fora Teixeira’, mas não basta trocar o nome do comandante, mas sim de todo o sistema que envolve a organização do esporte no Brasil. Defendemos a regulamentação esportiva para que sejam respeitados os trâmites legais e as políticas de defesa do interesse público e social. Não vamos admitir que agentes da ditadura manchem a nossa História.”

P OR I GOR W ALTZ A Comissão Nacional da Verdade-CNV e a Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro realizaram no dia 4 de maio, na sede da ABI, uma audiência pública para ouvir relatos de militares e de seus familiares perseguidos pelo regime instaurado em 1964. O encontro foi motivado por um depoimento do Brigadeiro Rui Moreira Lima, que relatou em outubro de 2012 as perseguições e prisões que sofreu durante a ditadura militar. Durante a audiência, que se estendeu desde a manhã até o começo da noite de um sábado, a numerosa assistência ouviu impressionantes relatos de perseguições, discriminações, injustiças e, acima de tudo, esquecimento: grande parte dos punidos ainda aguarda a concessão de anistia. Um grupo de trabalho criado na CNV calcula que 7.488 militares tenham sido perseguidos e 30 acabaram mortos. Entre os perseguidos, esteve o fuzileiro naval Paulo Novaes Coutinho, enviado em 27 de março de 1964 ao Sindicato dos Metalúrgicos, em São Cristóvão, com a missão de desalojar marinheiros que ocupavam o prédio. Coutinho integrava um grupo de 23 fuzileiros que tomaram uma decisão surpreendente para o Comando da Marinha: jogaram no chão os fuzis e se recusaram a atirar contra os colegas. O gesto foi visto como uma afronta pelos militares, que dias depois tomariam o poder, e significou para os 23 fuzileiros mais de 100 dias de prisão e a perseguição durante todo o Governo militar. Os mais perseguidos Ao discussar na abertura da audiência, o Presidente da ABI assinalou que, ao lado dos jornalistas profissionais, os militares foram um dos grupos mais perseguidos pela ditadura militar. “A ABI tem uma grande preocupação com a questão da busca da verdade sobre os crimes cometidos na ditadura. Esta instituição se orgulha de oferecer à CNV os subsídios ricos e densos de uma categoria profissional que foi atingida pelo golpe militar, os jornalistas, que ao lado dos militares constituem o segmento da população brasileira mais perseguido pelo regime. Continuamos aqui a luta pela Verdade e por aquilo que é fundamental para vitalidade da Memória, a Justiça, até hoje sonegada a uma importante parte do povo brasileiro”, afirmou. Azêdo aproveitou a oportunidade para colocar à disposição da CNV para consulta todo o material produzido pelo Jornal da ABI a respeito das violações dos direitos humanos cometidas pelos golpistas. “A ABI possui um acervo de matérias, produzidas de forma continuada, em seu jornal institucional, acerca das violências e

Wadih Damous: A ditadura criou uma máquina de publicidade responsável por mentiras e distorções.

crimes da ditadura. Essas matérias reúnem um importante elenco de informações a esse respeito, que disponibilizamos à Comissão Nacional da Verdade para que através da consulta dessas coleções seja possível levantar uma série de questões que perturbam nossas consciências.” Os verdadeiros traidores O Presidente da Comissão da Verdade do Estado do Rio, Wadih Damous, que também discursou, declarou que é preciso recuperar a memória daqueles que foram perseguidos. “A missão das Comissões é justamente a de reescrever a História. A ditadura implementou uma máquina de publicidade, responsável por mentiras e distorções. Nosso papel é justamente reverter isso e esclarecer à sociedade sobre o que de fato se passou naqueles anos. O termo ditadura militar esconde essa situação paradoxal de militares que foram perseguidos. Foram militares que resistiram ao golpe e pagaram com alto preço, tendo uma série de direitos cassados. São estigmatizados como traidores ou desertores, quando na verdade é o contrário. Os traidores são aqueles que perpetraram o golpe. É preciso que a população brasileira saiba que existiram heróis que resistiram bravamente e honraram a farda e a pátria.”

A voz das vítimas A advogada Rosa Cardoso, professora da Universidade Federal Fluminense e integrante da Comissão Nacional da Verdade, lembrou que essa revisão histórica não pode basear-se tão somente em trabalhos desenvolvidos por pesquisadores e historiadores, mas deve dar voz a vítimas, sobreviventes e familiares. “O contar essa História não é somente contar entre nós próprios, mas transformar a produção dessa História numa grande campanha de mobilização. Ela ainda não é completamente conhecida por nossa sociedade. A sociedade precisa estar indignada, como os militares perseguidos, para que eles possam obter as vitórias pelas quais se empenham. A CNV, com seus problemas e limitações, é uma oportunidade de dar visibilidade a essa luta. Diferente do que muitos dizem, a mídia é muito interessada em saber o que essa Comissão tem a dizer, garantindo-lhe visibilidade em âmbito nacional.” A verdade sobre Jango O Presidente do Instituto João Goulart, João Vicente Goulart, comemorou a decisão da CNV, junto com o Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul, de reabrir o inquérito sobre a morte do Presidente de-

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ACONTECEU NA ABI

A Operação Mosquito A audiência reservou espaço para que os militares pudessem se manifestar. O Coronel-Aviador da reserva Roberto Baere contou detalhes da chamada Operação Mosquito, conspiração de oficiais da Aeronáutica para matar João Goulart antes que ele tomasse posse em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros.O plano dos golpistas era abater o avião em que Goulart faria a viagem a Brasília para tomar posse. Baere, então tenente do 1º Grupamento de Aviação de Caça da Base Aérea de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, disse ter recebido ordens do comandante da Base para preparar os caças que seriam usados no ataque ao avião que transportava o Vice-Presidente. Baere e três cole-

gas se recusaram a cumprir a missão e pediram para não serem escalados. “Pedimos que ele não nos escalasse porque entramos nas Forças Armadas para defender a Constituição e não para agredi-la. O plano acabou não sendo colocado em prática, mas passei a ser perseguido e punido três anos depois, já durante a ditadura, instituída pelo golpe de 31 de março de 1964. Fui sumariamente expulso, após ficar 50 dias incomunicável na prisão, policiado na porta por um oficial portando metralhadora, como se fosse um marginal de alta periculosidade. Após liberto, nunca mais pude cumprir minha função de aviador, nem mesmo como civil.” Baere concluiu fazendo um apelo à CNV, em que solicitou empenho dos componentes para que combatam as discriminações que militares como ele sofrem no campo administrativo e político. “Espero que nosso apelo chegue às autoridades constituídas, em especial os Ministros da Defesa, Celso Amorim, e da Justiça, José Eduardo Cardozo.” Iracema Teixeira depõe Em vídeo, Iracema Teixeira, líder do Movimento Feminino pela Anistia e viúva do Brigadeiro Francisco Teixeira, falecido em 2012, prestou seu depoimento. Titular do 3º Comando Aéreo e reconhecido publicamente como de esquerda, Francisco Teixeira foi proibido de exercer sua profissão de piloto aéreo, sua casa foi incendiada e seu filho, Aloísio Teixeira, ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, seqüestrado. O relato de Iracema Teixeira abriu a segunda parte da audiência pública, à tarde.

ELZA FIÚZA/ABR

posto pelo golpe de 1964. O corpo de João Goulart, enterrado atualmente na cidade de São Borja, Rio Grande do Sul, poderá ser exumado. “A Comissão está dando um grande passo com a retomada dessa investigação, que estava parada nos arquivos do Ministério há mais de seis anos. Meu pai, João Goulart, assim como os heróis presentes na audiência de hoje, é o que precisamos resgatar na memória nacional. Quantos heróis anônimos temos no seio da resistência das Forças Armadas e que lutaram contra o golpe de Estado em nosso País. Mais de 7,5 mil militares foram cassados e perseguidos para que outros pudessem instalar um regime de restrições democráticas, esse manto terrível de tortura, perseguição e morte que se instaurou sobre a sociedade brasileira.”

João Vicente Goulart comemorou a decisão da Comissão da Verdade: “É um grande passo”.

“Meu marido sempre participou do movimento pela legalidade, sempre foi a favor de que se cumprisse a Constituição, e por isso era mal visto por um grupo que queria o poder a todo o custo. Participei sempre como observadora desse movimento, mas muita coisa aconteceu. Minha casa foi invadida, tive filhos detidos, minha casa

incendiada. Durante toda ditadura, cada vez que havia a mudança para a escolha do Presidente, meu marido era previamente preso, durante alguns dias, pois tinham medo de que ele liderasse algum movimento. Apesar disso, ele nunca abandonou suas idéias, sempre foi a favor do povo, da democracia e da liberdade.”

“Somos tratados como párias nas repartições” Mesmo quando conseguem a anistia, os militares vítimas da ditadura são discriminados nas unidades militares. P OR M ÁRIO A UGUSTO J AKOBSKIND Na segunda parte dessa histórica audiência pública promovida pela Comissão Nacional da Verdade com militares perseguidos pela ditadura, vários dos protagonistas daqueles tempos sinistros prestaram depoimentos sobre as perseguições sofridas. Muitos deles ainda guardam seqüelas das torturas praticadas por agentes da repressão não só em quartéis militares como nos departamentos de ordem política e social, os Dops. Cabos e sargentos que em março-abril de 1964 tomaram posição em defesa da legalidade foram os mais atingidos. Muitos deles continuam tentando conseguir a anistia e serem reconhecidos como membros das corporações militares, que os tratam como párias em suas repartições. Integrantes do Corpo de Bombeiros de Nilópolis, como Casimiro da Silva, contaram em detalhes as perseguições sofridas e como foram reprimidos por oficiais militares, entre os quais o então muito temido na região da Baixada Fluminense Capitão José Ribamar Zamith e seu preposto José Ribamar Lemos, depois promovidos a general. Um dos casos mais impactantes, ocorrido alguns anos depois do golpe foi narrado por Luís Claudio Monteiro da Silva, que contou

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que foi preso no início dos anos 1980 por estar lendo um artigo elogioso a Darcy Ribeiro no alojamento da unidade em que estudava. Além de ter sido expulso do curso que fazia, frustrando seu sonho de se tornar militar, Luís Cláudio foi preso e torturado. Ele guarda até hoje seqüelas desse sofrimento. A Comissão Nacional da Verdade ouviu também depoimentos de testemunhas de torturas de presos políticos nas dependências de quartel da Aeronáutica, mais precisamente no Galeão. Segundo um dos depoimentos, enfermeiros são testemunhas da presença de presos políticos com pernas gangrenadas e que não tiveram a assistência médica devida. Outros depoimentos demonstraram que até os dias atuais militares, sobretudo os de escalões inferiores, seguem tratados como párias. Tanto eles como os oficiais perseguidos quando se dirigem atualmente a alguma repartição militar para tratar de questões burocráticas são tratados como se fossem leprosos, como também havia relatado o ex-Capitão Eduardo Chuahy em seu depoimento, na parte da manhã. Dos 8 mil cabos expulsos das três Armas, 2.500 foram anistiados, mas a efetividade da decisão foi sendo protelada. Muitos já morreram e hoje restam pouco menos de mil aguardando o cumprimento do que foi decidido.

A prudência de Jango No final dos depoimentos, o advogado Daniel Renout da Cunha, do Instituto João Goulart, afirmou que documentos tornados públicos em Washington deixam claro que um dos objetivos do movimento militar de 1964 era a divisão do País, como aconteceu na Coréia, dividida em Coréia do Norte e Coréia do Sul. Percebendo esse quadro, o Presidente João Goulart não reagiu ao golpe, segundo o advogado, para preservar a unidade nacional. “O clima estava armado para uma guerra civil sangrenta. Se houvesse uma reação legalista, o Governo norte-americano reconheceria o Governo de Minas Gerais, então sob o comando de Magalhães Pinto, como representante oficial do Brasil. Os Governos de São Paulo e do então Estado da Guanabara apoiariam esse reconhecimento. Então, não há nada a lamentar por não ter havido reação por parte da oficialidade legalista”, disse Renout da Cunha. Em um dos documentos, afirmou, aparece a informação segundo a qual o então Presidente John Kennedy teria se convencido da necessidade de os Estados Unidos fazerem algo no Brasil e sugeriu que se supervalorizasse a infiltração comunista. Mas o verdadeiro objetivo, disse Renout da Cunha eram os nacionalistas que contrariavam interesses econômicos norte-americanos.

O mesmo tipo de estratégia, disse, foi utilizado recentemente pelo Departamento de Estado na Bolívia, presidida por Evo Morales. A Cia estimulou governadores de três Estados para se separarem da Bolívia, os quais contariam com o reconhecimento dos Estados Unidos, que estimulavam a dissidência. A reação legalista e a participação popular impediram que o plano desse certo. A derrota dos nacionalistas O professor de História Renato Lemos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez uma palestra sobre o período que antecedeu ao golpe de 1964, mostrando que as Forças Armadas, sobretudo o Exército, estavam divididas entre a oficialidade nacionalista, que defendia a legalidade, e o grupo dos liberais democratas, de direita, também conhecidos como entreguistas. Havia então disputas acirradas entre os dois grupos, o que se podia constatar nas eleições para a diretoria do Clube Militar. Esta disputa, disse Renato Lemos, remonta aos anos 1940 e 1950, em que ocorrem episódios como a campanha O Petróleo é Nosso, o suicídio de Getúlio Vargas, a posse de Juscelino Kubitschek, todos vencidos pelos militares nacionalistas, e o golpe de 1964, desta vez vencido pelos entreguistas liberais democratas.


AVANIR NIKO

Juiz autorizou a posse da nova Diretoria Eleitos com 93,8% dos votos, candidatos assumem seus postos. P OR C LÁUDIA S OUZA Depois de cerrada batalha judicial contra o ex-Diretor Domingos Meirelles e seus partidários, a ABI conseguiu empossar sua nova Diretoria, eleita por 93,8% dos associados que votaram em 26 de abril. A cerimônia foi realizada na tarde do dia 20 de maio, na Sala Belisário Távora, no 7º andar do Edifício Herbert Moses. O Presidente do Conselho Deliberativo, jornalista Pery Cotta, conduziu a sessão, cuja Mesa foi formada pelo Secretário José Pereira da Silva, o 2º Secretário Moacir Lacerda e o Presidente da ABI, Maurício Azêdo. O Juiz Gustavo do Nascimento Silva, da 8ª Vara Cível da Comarca da Capital, autorizou a posse da Diretoria da ABI. Em sua decisão, disse o magistrado: “A fim de se evitar graves danos na administração da ré, que, ao menos por ora, encontra-se acéfala, reconsidero a decisão de fls. 200, desde que a ré comprove, nos termos da decisão de fls. 129, que comunicou aos seus associados, ao contrário do que consta de fls. 198, que a eleição da nova diretoria e todo o processo eleitoral encontram-se sub judice.” “Portanto, estamos aqui para dar posse ao Presidente reeleito da ABI, Maurício Azêdo, a quem vou pedir que apresente os demais componentes da nova Diretoria para que sejam igualmente empossados,” disse Pery Cotta ao abrir a sessão. Maurício Azêdo esclareceu que como a posse resultou de uma decisão posterior do Juiz Gustavo do Nascimento Silva, o VicePresidente da ABI, Tarcísio Holanda, estava ausente à cerimônia, em razão de um exame cardiológico marcado em Brasília para a mesma data. “O Presidente Pery Cotta poderá declará-lo empossado assim como os demais membros da Diretoria, que reúne Fichel Davit Chargel, Diretor Administrativo; Sérgio Caldieri, Diretor Econômico-Financeiro; Ilma Martins da Silva, Diretora de Assistência Social; Henrique Miranda Sá Neto, Diretor de Arte e Cultura, e Alcyr Cavalcanti, Diretor de Jornalismo. Após declarar empossada a nova Diretoria, Pery Cotta reconduziu a palavra ao Presidente Maurício Azêdo, que parabenizou os associados presentes à solenidade, com destaque para Ruth Lima, que veio de

Buenos Aires, na Argentina, especialmente para a sessão. “Considero o ato de hoje uma vitória da ABI e do processo democrático da nossa instituição, que está enfrentando uma campanha impiedosa e desonesta de associados que têm a sedução do poder, como Domingos Meirelles, e não vacilam em recorrer aos meios mais torpes para a tentativa de chegar ao poder na ABI. Ainda agora, vimos no site de um dos acólitos de Domingos Mei-

relles, o associado Andrei Bastos, que colocou em seu blog uma fotografia de máquinas datilográficas desativadas pela ABI, que se encontram em uma sala do 11º andar. Ele as apresenta como prova do desmazelo e do abandono da atuação da ABI, como se fosse possível, salvo em casos excepcionais, o uso de máquinas de escrever na rotina de trabalhos burocráticos da Associação Brasileira da Imprensa. É este tipo de gente que estamos enfrentando. A Diretoria tem agido

com firmeza em relação às suas obrigações estatutárias e vai prosseguir neste caminho com o aporte do conjunto de diretores e de um núcleo valoroso de companheiros que vão permitir a continuidade do que vem sendo executado, acrescido de novos planos. Em seguida, me dirigirei à Sala da Presidência para digitar a Ata desta sessão, tendo em vista a necessidade que temos de registrá-la para a movimentação das contas da ABI na rede bancária”, disse Maurício Azêdo. Antes de encerrar a sessão, Pery Cotta anunciou para o dia 28 de maio, às 15h, a realização da primeira reunião entre Diretores, Conselheiros e membros das Comissões. “A reunião do dia 28, assim como esta cerimônia de posse, representa um marco na História recente da ABI. Houve uma tentativa de desqualificar, ignorar e destratar este Conselho, como se ele não fosse o responsável por todo o processo democrático que se realizou com a convocação das eleições, a indicação da Comissão Eleitoral, a prestação de contas da Diretoria, a Assembléia-Geral, as eleições. No momento em que este Conselho se preparou para dar posse à nova Diretoria, houve outra tentativa de desmoralização. O desrespeito desses dois associados atinge cada um de nós. Eles poderiam ter trazido a este espaço de luta pela liberdade de expressão todas as demandas a serem discutidas, mas preferiram adotar uma postura contrária aos princípios da centenária ABI, cuja trajetória de honradez não pode ser manchada.”

OS QUE VIERAM VOTAR A Adail José de Paula, Adolfo Martins, Afonso Maria de Assis Faria, Aglaete Nunes Martins, Alcyr Mesquita Cavalcante, Alfred Aurélio de Belmont Pessoa, Alfredo Enio Duarte, Altenir dos Santos Rodrigues, Amilton Loureiro da Silva, André Luiz Fernandes Andries, André Luiz Lacê Lopes, André Moreau Louzeiro, Andréa Cristina Lopes Garcia, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Antônio Carlos de Carvalho, Antônio Mota Carneiro, Antônio Vilar, Arcírio Gouvêa Neto, Argemiro do Carmo Lopes do Nascimento, Arnaldo Luiz Fontes, Arthur Fraga Filho, Arthur José Poerner, Ayrton de Souza Porto

B Beatriz de Oliveira Santacruz Lima, Benicio Neiva de Medeiros, Bernardino Capell Ferreira, Bernardo Bastos Guimarães, Bruno Torres Paraíso

C Carlos Alberto Gomes Afonso, Carlos Alberto Leite, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Carlos Anselmo C. Vasconcelos, Carlos da Silveira Ruas, Carlos de Sá Bezerra, Carlos Di Paola, Carlos Gomes do Nascimento, Carlos Jurandir Monteiro Lopes, Celso Balthazar, Celso Gonzáles de Araújo, Clemente Sebastião de Almeida Campos, Clóvis Assunção de Melo, Cosme Ademir Pereira Simas

D Dácio Gomes Malta, Daniel Mazola Froes de Castro, Daniela Tássaro Sepúlveda, Diana Mellinger Selton Braga, Dirmar Reis Caiereyt de Souza, Dulce Tupy Caldas

E Edmilson Francisco da Silva, Edmilson Gomes Soares, Edson Vinhas da Silva,

Edyr Dias Raposo, Eliane Faccion, Eliasar dos Santos, Ely Moreira da Silva, Emília da Conceição P. Almeida, Erno Schneider, Evaldo Alves de Carvalho, Everaldo Lima Alvarenga

F Fábio Costa Pinto, Fernando Figueiredo Milfont, Fernando Foch de Lemos Arigony da Silva, Fichel Davit Chargel, Francisco Baleixe Fernandes Filho, Francisco Carlos Ucha Montoto, Francisco de Assis da Cruz, Francisco Paula Freitas

José de Jesus Louzeiro, José de Ribamar da Costa Velozo, José Ernesto Muzell Vianna, José Henrique Cordeiro, José Manuel de Carvalho Mesquita, José Pereira da Silva, José Roberto Vieira Botelho

K Klécius Barata Santana

L

O Odete Ferreira, Oscar Maurício de Lima Azêdo, Othon Oswaldo Ávila Amaral

P Paulo Apulcro Fonseca, Paulo Cavalcanti Valente, Paulo de Tarso Moraes Forni, Paulo Gomes Netto, Paulo Henrique da Cruz, Paulo Roberto de Paula Freitas, Pedro Eduardo de Oliveira, Pery de Araújo Cotta

Geraldo Caetano, Geraldo Pereira dos Santos, Gerdal Renner dos Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, Gesy Haddad Tapias, Glauco Alexandre de Oliveira

Laerte Costa Moraes Gomes, Lafayete Siqueira Porto, Laís Honor, Leda Acquarone de Sá, Lilian Costa Nabuco dos Santos, Luiz Augusto Freitas Erthal, Luiz Carlos de Oliveira Chesther, Luiz Carlos de Souza, Luiz Edmundo Continentino Porto, Luiz Eduardo Souto Aguiar, Luiz Wanderley da Silva, Luiz Roberto Pio Borges, Luiz Sérgio Caldieri

H

M

S

Haroldo Costa Sayão, Héctor Eliseu Escobar, Hélio Alonso, Henrique João Cordeiro Filho, Henrique Miranda Sá Neto, Hidelberto Cerqueira, Humberto Rangel

Manoel Pacheco dos Santos, Manuel Epelbaum, Marco Antônio Pereira de Andrade, Marcos Alexandre de Souza Aranha Mello Mattos de Castro, Marcus Antonio Mendes de Miranda, Maria Clara Capiberibe Azêdo, Maria das Dores Augusta dos Santos, Maria das Graças Ananias Oliveira, Maria de Souza Lima, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Maria Lúcia Lima Puty, Maria Luisa N. de Almeida, Maria Nascimento Santos Carvalho, Mário Antônio Caruso, Mário Augusto Jakobskind, Mário Rodrigues Soares, Marion Elizabeth Monteiro, Mauro Rodrigues Filho, Mirian Malina, Milton Ximenes Lima, Miro Teixeira, Moacyr Andrade, Moacyr Bahia Lacerda, Moises Celeman

Samuel Rodrigues de Souza, Sebastião de Souza, Sérgio Cabral Santos, Sérgio Moura Bicca, Sérgio Nicolau Ribeiro, Shirley Fioreti Costa, Silvio Tendler, Siro Darlan de Oliveira, Solange Rodrigues Pereira, Suely de Assis Rodopiano

G

I Ilma Martins da Silva, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Israel Manoel da Paixão, Isnard Manso Vieira, Itamar Guerreiro, Itair Rodrigues Ferreira

J Jarbas Domingos Vaz, Jeff Thomas, Jerônimo Alberto de Carvalho, Jesus Soares Antunes, João Carlos Cardoso, João da Silva Leite, João Di Paola, João Henrique Medeiros, João Máximo, Jorge Antônio Barros da Costa, Jorge Milton Temer, Jorge Ribeiro Silva, Jorge Roberto Mantino, Jorge Saldanha de Araújo, José Alves Pinheiro Júnior, José André Borges, José Baptista de Souza, José Bernardino C. M. Vieira, José Bernardo Cabral, José Cristino Costa Ferreira, José da Costa Andrade,

N Nacif Elias Hidd Sobrinho, Nilo Marques Braga, Nilson Nobre de Almeida

R Rafael Belmiro da Silva, Ralph Anzolin Lichote, Robson Waldhelman, Ronaldo de Souza Reis, Rosina Gioconda Cavaliere, Rubem dos Santos (Rubem Confete), Rubens Nogueira

T Tamar de Castro Oliveira, Tarcísio Holanda, Teixeira Heizer, Telmesson Pirassol Ruas, Thales José Maciel Bento

U Ubirajara José dos Reis Loureiro, Ulysses Claudio Lonzetti

V Valtair de Jesus, Venilton Pereira dos Santos, Victor Cavagnari Filho, Vitor Mário Iório

W Waldir Muniz Pereira, Wilson Fadul Filho

Z Zilda Cosme Ferreira, Zilda Werneck, Zilmar Borges Basílio

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ESPECIAL

Memórias de um repórter francês, da Última Hora para o L’Express As aventuras do jornalista francês Edouard Bailby desde a sua permanência no Brasil, como jovem estagiário, à sua atuação em seu país, mais de 15 anos depois.

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uando desembarquei no Rio de Janeiro em fins de 1948, com 19 anos de idade e 50 dólares no bolso, pensava ficar dois ou três meses e depois seguir viajando pela América do Sul. Fiquei quinze anos iniciando a minha carreira de jornalista na imprensa carioca e de repórter na Última Hora do Samuel Wainer. Estava tão feliz, me sentia tão ligado com o Brasil que não conseguia ir embora. Cheguei a visitar rapidamente três países vizinhos: Argentina, Paraguai e Uruguai. Mas com o correr do tempo senti que tinha de resolver de uma vez por todas o rumo que ia dar à minha vida: morar definitivamente no Rio ou em Paris? É o dilema dos que têm duas pátrias no coração. Em dezembro de 1963 acabei voltando para a França, certo, porém, de que retornaria com freqüência ao Brasil. O golpe militar poucos meses depois deixou-me atordoado: colegas e amigos presos ou torturados, outros obrigados a se esconder. De certa forma a situação no Brasil, onde havia vivido tanto tempo, facilitou a minha integração na imprensa francesa, apesar de não conhecer praticamente ninguém. Enquanto procurava emprego chegando a fazer um estágio no Le Monde, alguém sugeriu que escrevesse um livro. Interessada, a editora Calmann-Lévy deume quatro meses para realizar o trabalho. Em outubro de 1964 a obra de 267 páginas foi publicada sob o título Brésil, pays clef du Tiers Monde. Foi nessa época que André Fontaine, diretor da Redação do Le Monde, recentemente falecido, me recomendou à revista L’Express de Jean-Jacques ServanSchreiber e Françoise Giroud. Entrei para a Redação em dezembro de 1964. Com a minha experiência no Brasil e os meus conhecimentos lingüísticos, fui encarregado de cobrir os países de língua portuguesa e espanhola no mundo. Vasto programa. A não ser a Espanha do General Franco e em menor escala Portugal de Salazar, últimas ditaduras da Europa, L’Express estava mais preocupado com outras realidades do mundo dentro do clima geral da Guerra Fria. Cada segunda-feira tínhamos uma conferência de Redação durante a qual devíamos sugerir artigos e reportagens. A América Latina não era uma prioridade. Certa vez, numa assembléia-geral, lamentei esse desinteresse. “Mon cher Edouard, les pays pauvres n’intéressent personne” (Meu caro Edouard, os países pobres não interessam a ninguém), retrucou Jean-Jacques Servan-Schreiber. De tanto insistir, fazendo em especial referência ao Brasil, a revista começou a publicar matérias.

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Por coincidência a minha volta para a França correspondeu à época das ditaduras no Cone Sul com milhares de refugiados políticos em todos os países da Europa, principalmente no meu. Surgiram inúmeras organizações populares que mobilizaram a opinião pública para lhes prestar ajuda. A presença entre os exilados de escritores e artistas de renome despertou um interesse inesperado pela América Latina. Marcel Niedergang no Le Monde passou a ser o jornalista de referência, pois era quem conhecia melhor esse continente para onde viajara com freqüência. Christian Rudel, repórter do diário católico La Croix, era outro jornalista que seguia de perto os acontecimentos latino-americanos. Ambos falavam espanhol e tinham conhecimentos da língua portuguesa. Os demais ou viajavam raríssimas vezes àqueles países ou escreviam ocasionalmente em órgãos de pouca circulação. L’Express tinha a sua sede num edifício moderno de vários andares a poucos passos da Avenida dos Champs-Elysées, em Paris. Graças a uma apresentação gráfica mais moderna e a um conceito redacional inspirado de Time e Newsweek, a revista tornou-se rapidamente o principal newsmagazine da imprensa francesa. Politicamente defendia posições de centro direita favoráveis à socialdemocracia européia, depois de haver sido um jornal de centro esquerda durante a guerra colonial na Argélia. Com uma equipe de cento e tantos jornalistas, que tinham ao seu dispor 50 documentalistas, inclusive uma brasileira, L’Express teve durante anos um papel fundamental na formação da opinião pública. No campo da política internacional JeanJacques Servan-Schreiber – JJSS como se dizia – entendia que os seus jornalistas tinham de percorrer o mundo para conhecer a realidade de perto. Melhor: além de polivalente, cada um devia ter uma especialidade geopolítica. No meu caso a escolha era evidente. Falando espanhol, foi assim que passei a cobrir tudo o que era importante na Espanha do General Franco. Viajando 10 ou 15 vezes por ano a Madri e Barcelona, percorri todo o país entrevistando clandestinamente líderes sindicais e estudantis, eclesiásticos, personalidades de qualquer tendência, independentistas da Catalunha e do País Basco, até ministros do Governo. Cheguei a ficar amigo de um sobrinho do Caudilho, o único liberal da família. Como L’Express estava proibido com freqüência de circular na Espanha, a revista acabou substituindo os meus artigos com

propaganda comercial. Bom jornalista, dizia-se, tem de ser objetivo. Foi o que eu fiz. Cada vez que achava interessante entrevistar um ministro do Governo publicava as respostas, sem comentários, no meio da minha reportagem sobre greves, atentados às liberdades, presos políticos. L’Express não estava autorizado a entrar na Espanha, porém os jornais espanhóis comentavam as declarações que me havia feito tal ou qual ministro. Era o jogo divertido do ratinho com o gato. No final da ditadura pedi um encontro com o chefe da Censura no Ministério da Informação. O pretexto era perguntar por que o Governo havia censurado o Madrid. Imaginava que iria me responder que o diário havia noticiado uma greve, o que era proibido por lei. Quando entrei na sala o homem, muito amável, disse-me: “É com prazer que recebo um jornalista que conhece muito bem a Espanha”. Repliquei: “Por que então vocês censuram sistematicamente as minhas

“As minhas reportagens na Espanha de Franco e em Portugal no tempo do Salazar e seu sucessor Marcelo Caetano eram ocasionalmente arriscadas, o que me obrigava a ser cauteloso.” reportagens?” Resposta: “Justamente porque você conhece muito bem a Espanha”. Não quis me apresentar à “linda mulher” encarregada com lápis vermelho de ler os meus artigos. As minhas reportagens na Espanha de Franco e em Portugal no tempo do Salazar e seu sucessor Marcelo Caetano eram ocasionalmente arriscadas, o que me obrigava a ser cauteloso. Certa vez, quando desembarquei de tardinha no aeroporto de Lisboa, o policial de serviço me informou que eu era uma persona non grata. Trancoume numa sala avisando que teria de voltar para Paris pelo primeiro avião no dia seguinte. Sorte minha foi um empregado do aeroporto que me perguntou discretamente se precisava de ajuda. Já era uma da madrugada. Graças a esse desconhecido que sabia da minha situação consegui telefonar para a agência France Presse, a qual avisou a Embaixada. De manhã apareceu um carro oficial com um funcionário do Ministério das Relações Exteriores. Eu estava autorizado, com as desculpas do Governo, a pisar terras lusitanas. O mais divertido

aconteceu poucos dias depois. O policial do aeroporto cruzou com os meus passos na Avenida da Liberdade. Espantado, pediu o meu passaporte. Abriu, viu o visto de entrada. Olhou para minha cara e ia falar quando disse: “Tenho dentro de quinze minutos uma entrevista marcada com o ministro da Informação, creio que não vai gostar se eu atrasar”. Quando o ministro perguntou se tudo estava correndo como queria, respondi: “Um policial quis prender-me na Avenida da Liberdade”. Comentário dele: “Essa gente nem sempre tem cabeça”. Os meus conhecimentos da língua portuguesa reservaram-me surpresas na minha vida de jornalista. Em companhia de um redator de Le Monde e outro de um diário regional, fiz com Olivier Stirn, número dois do Quai d’Orsay, o Ministério francês das Relações Exteriores, uma viagem de sete dias à África num pequeno jato oficial. Primeira escala: Nuakchott, capital da Mauritânia. Seguimos depois para Monróvia (Libéria), Freetown (Serra Leoa), Bissau (Guiné Bissau), Banjul (Gâmbia), Dakar e São Luis (Senegal) e finalmente Praia (Cabo Verde). Na capital da Guiné Bissau passamos algumas horas apenas, durante as quais notei o carinho dos nossos anfitriões pelo Brasil. No coquetel de despedida conversei com alguns funcionários. Ficaram espantados com o meu português. Expliquei que tinha morado quinze anos no Rio. Um deles, que se refugiara no Brasil no tempo de Salazar, fez questão de me apresentar ao ministro, que estava conversando com Olivier Stirn.”Monsieur Bailby é francês, disse, mas fala a nossa língua”. Intrigado com a longa conversa que tive em português, Stirn perguntou no avião: “Você acredita no futuro desse país? Conte-me a sua experiência”. Em junho de 1974 a Organização da Unidade Africana (OUA) escolheu para a sua décima-primeira conferência geral Mogadiscio, a capital da Somália. Soube que alguns dirigentes da Frente de Liber-


tação Nacional de Moçambique (Frelimo) em luta contra Portugal estariam presentes. Por intermédio de amigos pedi a Miguel Arraes, exilado em Argel, que facilitasse os meus contactos com a delegação. Graças à sua intervenção conheci Marcelino dos Santos, um dos responsáveis da Frelimo. Pedi-lhe várias vezes durante a conferência que ele organizasse uma entrevista com Samora Machel, presidente da organização revolucionária. “Não está aqui, respondia, vá a Tanzânia”, sem dar maiores explicações. Resolvi então viajar a Nairóbi, a capital do Quênia, onde conhecia um jornalista que poderia eventualmente me ajudar. Poucos minutos depois da decolagem ouço uma voz. “Você aqui, Bailby? Sempre no meu caminho”. Acabou dando durante o vôo um número de telefone em Dares-Saalam. Consegui a entrevista! Samora Machel havia reunido uns vinte combatentes da Frelimo para uma aula de formação política. Convidou-me para sentar, queixando-se repentinamente de uma dor violenta na perna. Alguém disse que o “Paulo” tinha voltado a Tanzânia e que deveria pedir uma consulta. Pensei logo que o tal de Paulo devia ser um brasileiro que passando por Paris me dissera confidencialmente que estava viajando a Dares-Saalam para dirigir o hospital de campanha da Frelimo. Perguntei a Samora Machel: “O Paulo não é um médico brasileiro?”. Quando soube que eu era amigo dele, iniciou a entrevista e disse aos combatentes do seu movimento. “A Revolução é como as estrelas, declarou, as nuvens podem escondê-las por algum tempo mas acabam reaparecendo”. Fiz muitas viagens à África, inclusive Moçambique quando colônia de Portugal e à África do Sul durante o apartheid. As reportagens minhas eram publicadas geralmente em revistas como Géo e Continent 2000 ou alguns jornais. L’Express, onde trabalhei durante quinze anos, considerava que era da minha responsabilidade tratar com prioridade da Península Ibérica e da América Latina. Viajei tanto nesses países que não restava muito tempo para percorrer outros continentes. Além do mais, as ditaduras, os movimentos de guerrilha, os golpes de Estado, o subdesenvolvimento davam muita matéria para reportagens. A revista tinha dinheiro. Foi assim que viajei por todo o continente várias vezes por ano. Graças aos recursos do L’Express, que outros órgãos de imprensa não tinham, gozei de uma vantagem indiscutível em relação a muitos jornalistas. Naturalmente o Brasil sempre teve uma importância especial na minha vida. Por um lado queria dar aos leitores a imagem de uma nação dinâmica, berço de uma civilização tropical, construindo o futuro dentro do espírito da mestiçagem. Por outro, queria denunciar os crimes da ditadura. Não podia esquecer velhos amigos da Facudade Nacional de Filosofia, onde estudei nos anos 1950, colegas de trabalho e muitos conhecidos que eram presos, torturados ou desaparecidos. Uma reportagem, intitulada A aula de tortura, teve repercussão internacional. Passando pelo Rio numa viagem a vários países da América do Sul, Jorge Miranda Jor-

“Irritado, acabei a conversa. De repente Casoy olhou para o relógio. ‘Vou ter que ir, disse, viajo de trem para Bruxelas dentro de 60 minutos’. Foi embora sem pagar a conta.” dão e Moacir Werneck de Castro, jornalistas prestigiosos de quem me tornara muito amigo desde os tempos da Última Hora, Ênio Silveira, diretor da Civilização Brasileira, Miguel Urbano Rodrigues, editorialista de O Estado de S. Paulo, e muitos outros contaram-me coisas estarrecedoras sobre o terror no Brasil. Reunindo fatos concretos durante três semanas, viajei de volta para Paris com cerca de 200 páginas manuscritas na minha mala. Publicada no L’Express, a reportagem valeu-me um comunicado do Exército, que me acusou de dirigir uma campanha internacional contra o Brasil. Durante dois anos a revista achou por bem não me deixar voltar ao Rio. Perigoso demais. Recebia em Paris visitas estranhas. Uma delas foi a do jornalista Boris Casoy, que eu conhecia apenas de nome. Telefonou-me de Bruxelas, onde estava sendo organizada a participação do Brasil numa importante feira internacional. O homem queria ver-me no dia seguinte, convidando para um almoço perto do L’Express. Estranhei a proposta. Depois de um papo geral sobre assuntos relacionados com a situação política na França e as minhas atividades jornalísticas, Boris Casoy perguntou: “Você acha que os exilados estão preparando um atentado contra o Brasil na feira de Bruxelas?” Insistiu o tempo todo durante o almoço para saber quem poderia organizar um atentado. Fiquei perplexo. Esse homem, pensei, crê que estou muito bem informado e que acabarei dando nomes sem querer. Em outras palavras, era eu um idiota que colaboraria com a ditadura. Irritado, acabei a conversa. De repente Casoy olhou para o relógio. “Vou ter que ir, disse, viajo de trem para Bruxelas dentro de 60 minutos”. Foi embora sem pagar a conta. Houve o impacto da Revolução cubana que abalou os espíritos. Para os franceses, no entanto, a experiência da Unidade Popular no Chile era mais interessante em relação à sua própria História e às similitudes dos partidos políticos. Será que o Presidente Salvador Allende conseguiria estabelecer por via democrática um regime autenticamente socialista com a participação do Partido Comunista? O assunto apaixonava de tal maneira todas as correntes políticas da França que o L’Express mandou que fosse várias vezes ao Chile, que percorri de Norte a Sul. Estive em Santiago pela última vez no tempo de Allende duas semanas antes do golpe. Quando retornei um mês depois, o General Augusto Pinochet havia destruído a democracia e organizado o assassinato em massa de cidadãos chilenos. Caminhando pelas ruas de Santiago, ouvia vozes atrás de mim avisando que tivesse cuidado. Mesmo assim, consegui uma entrevista com o Almirante Merino, um dos quatro homens da Junta Militar. A sua

principal preocupação naqueles momentos, disse-me, era achar um velho selo inglês de cor chocolate. No dia seguinte um homem armado veio prender-me no meu hotel em frente ao palácio presidencial de La Moneda. Por sorte uma jornalista norte-americana do The New York Times, que estava no saguão, assistiu de longe à cena e avisou à agência France Presse. Levado ao quartel geral da Polícia, fizeram durante horas as mesmas perguntas: Como conheci Allende? Onde? Quando? Por quê? Dava eu a mesma resposta: “Fiz o meu trabalho de jornalista”. Não havia jeito, repetiam as mesmas perguntas. No final do dia soltaram-me dando 48 horas para deixar o Chile. Um carro da Embaixada da França levoume ao aeroporto no dia seguinte para evitar qualquer problema. Dois anos depois, em julho de 1975, novo problema. Estava esperando no bar do meu hotel, em Buenos Aires, que a minha reportagem sobre a greve geral na Argentina chegasse por telex à Redação do L’Express quando três homens se acercaram dizendo que eram dos serviços de inteligência da Presidência. Subiram comigo para o meu apartamento, pegaram os meus documentos, todos os meus papéis, e levaramme num carro sem placa para o quartel geral da Polícia. Já era noite. Um colega do diário Le Figaro assistiu por acaso à cena e avisou logo a agência France Presse. Depois de um interrogatório que durou 24 horas, irritados com as minhas respostas evasivas, os policiais de plantão trancaram-me num calabouço. Certas horas ouvia os gritos de mulheres torturadas. Fiquei uma semana sem saber qual seria o meu destino. Graças à intervenção do embaixador da França, à mobilização dos meus colegas europeus e latino-americanos, tive a sorte de reaparecer à luz do dia. Em torno de Isabel Perón os militares já estavam preparando o golpe do ano seguinte. Comandos armados agiam na sombra. Quando veio a ditadura dezenas de milhares de pessoas foram assassinadas ou desapareceram. Uma tragédia. Os problemas políticos mais complica-

“A imprensa não parava de escrever que a situação econômica da ilha era catastrófica e que o regime de Fidel Castro ia cair de um dia para o outro, ignorando as conquistas sociais da Revolução.” dos na minha vida de jornalista deram-se com a interpretação da Revolução cubana. Por causa dos anos passados no Brasil e das inúmeras viagens minhas à América Latina e ao Caribe, a minha análise da realidade em Havana divergia das opiniões da maioria dos meus colegas franceses. A imprensa não parava de escrever que a situação econômica da ilha era catastrófica e que o regime de Fidel Castro ia cair de um dia para o outro, ignorando as conquistas sociais da Revolução que nenhum outro país latino-americano havia realizado antes, a não ser o Uruguai há um século. Ví-

tima do embargo dos Estados Unidos, Cuba sempre viveu uma situação difícil. Em janeiro de 1969, Fidel tenta mais uma vez dar um impulso à economia anunciando diante de um milhão de pessoas reunidas em Havana que o país terá que fazer um esforço sobrehumano e produzir dez milhões de toneladas de açúcar no ano seguinte, seja o dobro da melhor ”zafra” antes da Revolução. Desafio histórico. L’Express resolveu então que deveria viajar novamente a Cuba. Durante três semanas percorri mais de mil quilômetros num velho Chevrolet meio quebrado, desde a província de Pinar del Rio, na região ocidental, até Santiago, no extremo Leste. O espetáculo era desolador: lojas vazias, botecos com água da bica apenas, cafezinho não havia, filas à beira das estradas para conseguir uma carona. Centenas de milhares de cubanos haviam sido obrigados a deixar provisoriamente o seu posto de trabalho para participar da “zafra”. Voltando para Paris descrevi na minha reportagem a dificílima situação econômica de Cuba, realçando no entanto as conquistas sociais da Revolução: saúde e educação grátis, nenhuma criança abandonada nas ruas como no resto da América Latina, trabalho para todos, ninguém passando fome. Saí de férias deixando a matéria pronta. Aproveitando a minha ausência, L’Express reescreveu as duas primeiras laudas num tom radicalmente anticastrista. Colocoram o retrato de Fidel na capa da revista com o título: “O fim das ilusões”. Fiquei fulo de raiva. Se houvessem escrito: “O fim de uma ilusão” poderia ter aceito esta fórmula ambígua, mas a frase empregada era uma trampa. Não era assim que eu entendia a chamada “objetividade” jornalística. Reagi posteriormente com um longo artigo no Le Monde Diplomatique explicando que o fato da “zafra” não ter ultrapassado 8,5 milhões de toneladas não significava o fim das ilusões, apenas o fim de “uma” ilusão. Quando o milionário franco-britânico Jimmy Goldsmith comprou L’Express no final dos anos setenta, confiando a direção da revista a Jean-François Revel, acabei sendo demitido em julho de 1979, quando publiquei o primeiro guia turístico de Cuba na França. Um ano antes alguns jornalistas pediram-me que eu fundasse com eles a Associação dos Jornalistas Especializados na América Latina e no Caribe (Ajalc). Elegeram-me presidente. Rapidamente conseguimos reunir cerca de 50 jornalistas e cronistas de todas as tendências políticas que seguiam de perto os acontecimentos no outro lado do Atlântico. Não havia associação similar no resto da Europa. Organizamos seminários, conferências e manifestações culturais. Realizamos uma viagem de três semanas ao Brasil com cerca de 15 jornalistas. A Ajalc foi uma associação prestigiosa mas sem recursos. Durou menos de 25 anos. Foi na Última Hora de Samuel Wainer que aprendi a ser repórter. Quando voltei de vez para a França tive a sorte de entrar para a Redação do L’Express de Jean-Jacques Servan-Schreiber e de colaborar desde então com Le Monde Diplomatique. Grandes experiências na minha vida de jornalista.

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PREMIAÇÕES

Wilton Junior ganha mais um Prêmio, o Embratel A fotografia “Touché” conquista mais uma láurea, a terceira. P OR I GOR W ALTZ Foram anunciados no dia 2 de maio os vencedores de cinco categorias regionais e de 12 nacionais da 14ª edição do Prêmio Imprensa Embratel, escolhidos por três comissões julgadoras. Foram inscritas 1.862 reportagens de 860 jornalistas de todo o País. Na cerimônia de premiação, realizada em 14 de maio, no Rio de Janeiro, foi anunciado o vencedor do Grande Prêmio Barbosa Lima Sobrinho. Um dos grandes destaques entre os vencedores foi o repórter-fotográfico de O Estado de S.Paulo Wilton Junior, que conquistou o Prêmio Imprensa Embratel de melhor foto com Touché (ao lado), que retrata a Presidente Dilma Rousseff durante cerimônia na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ). Pela imagem, publicada em agosto de 2011, Wilton Junior já havia recebido Esso de 2012 e o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha do ano passado. Outra grande vencedora foi a Folha de S. Paulo, laureada na categoria Esporte, pela série de reportagens sobre a queda de Ricardo Teixeira, ex-Presidente da Confederação Brasileira de Futebol-CBF. As reportagens foram produzidas no ano passado pelos jornalistas Filipe Coutinho, Julio Wiziack, Leandro Colon, Rodrigo Mattos e Sérgio Rangel. O mesmo trabalho ganhou em novembro de 2012 o Grande Prêmio Esso de Jorna-

Os vencedores REPORTAGEM REGIONAL CENTRO-OESTE “Fim do 14º e 15º salários” Correio Braziliense Equipe: João Valadares, Adriana Caitanto, Karla Korreia, Renata Mariz, Junia Gama, Ricardo Taffner e Lilian Tahan.

lismo e no dia 29 de abril o Prêmio Nacional João Saldanha de Jornalismo Esportivo, promovido pela Associação de Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro-Acerj. Recorde de inscrições Em 2013, houve um crescimento de 32% de inscritos sobre o total da edição anterior. Foram registradas 1.577 reportagens nas 12 categorias nacionais e 285 nas cinco categorias regionais. Nas categorias nacionais, o maior volume de inscrições foi para as reportagens em

REPORTAGEM CULTURAL “Tinoco” TV Globo – Globo Rural Equipe: Repórter, José Hamilton Ribeiro; Produção, José Augusto Bezerra; Operador de áudio, Wilson Berzuini; Edição, Maurino Marques; Editores, Orlando Daniel e Olympio Giuzio; Cinegrafista, Jorge dos Santos; Arte, Fernando César.

REPORTAGEM ECONÔMICA

REPORTAGEM REGIONAL NORTE

REPORTAGEM DE RÁDIO

“Cheia do Século – Estamos prontos para outra?” A Crítica – Caderno Especial Equipe: Elaíze Farias, Leandro Prazeres, Carolina Silva, Cimone Barros, Jonas Santos, Adauto Silva e Carla Yael (editora).

“Os 50 anos da renúncia de Jânio Quadros” Rádio Senado Equipe: Repórter, Adriano Faria; Produção, Jefferson Dalmoro; Áudio, Josevaldo Souza e Carlos Xavier; Edição, Ester Monteiro.

“Morte S/A” Estado de Minas Equipe: Mateus Parreiras, Valquiria Lopes e Luiz Ribeiro.

REPORTAGEM REGIONAL SUL “Polícia fora da lei” Gazeta do Povo Equipe: Mauri König, Diego Ribeiro, Felippe Aníbal e Albari Rosa.

REPORTAGEM CINEMATOGRÁFICA “BRS Presidente Vargas” TV Brasil – RJ (Repórter Rio) Equipe: Repórter cinematográfico, Marco Motta; Repórter, Júlio; Auxiliar e motorista, Bruno.

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Com a reportagem Viva Nélson, o Rodrigues, a repórter Manuela Franceschini, do SporTV, conquistou o Grande Prêmio João Saldanha de Jornalismo Esportivo de 2013. A festa de gala, promovida pela Associação de Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro-Acerj, aconteceu no dia 29 de abril no salão nobre da sede histórica do clube Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Com produção de Rodrigo Araújo e Flavio Winter, a reportagem, exibida no programa SporTV Repórter e que também foi vencedora na categoria Televisão, homenageou os cem anos de um dos maiores cronistas esportivos e dramaturgos brasileiros, completos em 2012. O especial foi ao ar no dia 25 de agosto do ano passado. Na categoria Jornal, o destaque foi para a série de reportagens Os negócios de Ricardo Teixeira, da Folha de S. Paulo. O trabalho, de autoria do jornalista Sérgio Rangel, da Sucursal do Rio, revelou como o ex-Presidente da CBF usou a entidade para beneficiar a si e a amigos. (Igor Waltz)

I NTERIOR 1º Do Futebol Direto para a Igreja – Leonardo Barros e Kiko Charret (Jornal O São Gonçalo); 2º Crônica: Eternos Vilões – José Roberto Padilha (Entre-Rios Jornal) 3º O Leão da Coroa Ainda Resiste – Wesley Machado (O Diário – Campos)

“Paraíso às avessas” Jornal do Commercio (Recife/PE) Equipe: Ciara Carvalho e Ricardo B. Labastier.

REPORTAGEM REGIONAL SUDESTE

SporTV vence o João Saldanha

Quem venceu

“Onde o Brasil desponta” Exame Equipe: Mariana Segala, Eduardo Salgado, Luciene Antunes, Patrick Cruz, Lucas Vettorazzo, Daniel Barros, Angela Pimenta, Lucas Amorim e Tatiana Gianini.

REPORTAGEM REGIONAL NORDESTE

Jornais/Revistas/Internet/Tema Livre – com 307 registros; seguida de Responsabilidade Socioambiental, com 173; Econômicas, 170; em Emissoras de Televisão/Tema Livre, 168; Fotografia, 149; Educação, 142; Cultural, 103; Esportiva, 97; Rádio, 97; TI/Comunicação e Multimídia, 84; Investigativa, 70; e Cinematográfica, 18. Nas categorias regionais, o Nordeste registrou o maior número de inscrições, com 77 reportagens, seguido da região Sudeste, com 75 reportagens. Na seqüência, vieram as regiões Centro-Oeste, com 54; Sul, com 51 e Norte, com 27. O valor total líquido das premiações (R$ 194 mil) representa 16% mais do total da edição anterior. Além disso, o Prêmio Imprensa Embratel foi totalmente informatizado e teve a inclusão da mídia internet na categoria Jornais e Revistas (tema livre), que passou a ser denominada “Jornais, Revista e Internet (tema livre)”.

REPORTAGEM DE TELEVISÃO “Juízes Ameaçados” GloboNews (Jornal das Dez) Equipe: Repórter, Rodrigo Carvalho; Cinegrafista, Egledio Vianna; Editora de Texto, Ana Terra Athayde; Editor de Imagem, Felipe Martins; Produção, Inês Valladão.

REPORTAGEM EM JORNAL/REVISTA/ INTERNET (TEMA LIVRE) “Filhos da rua” Zero Hora Equipe: Letícia Duarte e Jefferson Botega.

REPORTAGEM ESPORTIVA “Os negócios suspeitos e a queda de Ricardo Teixeira”

Folha de S. Paulo Equipe: Leandro Colon, Filipe Coutinho, Júlio Wiziack, Rodrigo Mattos e Sérgio Rangel.

REPORTAGEM FOTOGRÁFICA “Touché” O Estado de S. Paulo Autor: Wilton Junior, Repórter-Fotográfico.

REPORTAGEM INVESTIGATIVA “Madeira Chipada” TV Centro América Equipe: Repórter, Jonas Campos; Cinegrafistas, Carlos Rodrigues e Idemar Marcatto; Apoio Técnico, Adiel Lima; Arte, Renato Mendes, Cheyla Ferraz e Robson Ricardo Crivelli; Edição de Imagem, Alexandre Castanho.

REPORTAGEM SOBRE EDUCAÇÃO “Aula de Excelência na Pobreza” O Globo Equipe: Repórteres, Antônio Góis, Chico Otavio, Carolina Benevides, Efrem Ribeiro, Letícia Lins e Odilon Rios; Fotógrafos, Marcelo Carnaval, Paula Giolito, Jarbas Oliveira, João Brito Jr. e Hans von Manteuffel.

REPORTAGEM SOBRE TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO, COMUNICAÇÃO E MULTIMÍDIA “Nordeste em rede” Diário de Pernambuco Equipe: Reportagem, Silvia Bessa; Edição, Vandeck Santiago.

REPORTAGEM SOCIOAMBIENTAL “Paraíso dos agrotóxicos” Ciência Hoje Equipe: Repórter, Henrique Kugler; Editor Científico, Jean Remy Guimarães; Editoras, Alicia Ivanissevich e Sheila Kaplan; Revisor, Ricardo Menandro.

JORNAL 1º Série: Os Negócios de Ricardo Teixeira – Sérgio Rangel (Folha de S. Paulo) 2º Série: Na Raiz do Futebol – Raphael Zarko e Marjoriê Cristine (Jogo Extra) 3º Série: Centenário Fla x Flu – Bruno Braga, Rodrigo Lois e Thiago Bokel (Lance!) LITERATURA 1º Nunca Houve um Homem Como Heleno – Marcos Eduardo Neves 2º Valdo, o Artilheiro – Valterson Botelho 3º Escravos do Jogo – Marlos Bittencourt R ÁDIO 1º Ricardo Gomes: Um Ano Depois – Gustavo Penna (Rádio Brasil) 2º Racismo no Esporte – Rafael Araujo (Rádio Brasil) 3º O Lado Light do Abelão – André Luiz (Rádio Globo) SITE 1º Ronaldinho Gaúcho e o Início do Fim – Guto Seabra, Marlucci Martins, Diogo Dantas e Marjoriê Cristine (Extra Online) 2º Encontre os Super-Humanos / Perfis dos Jogos Paralímpicos – Cahê Mota (Globoesporte.com) 3º Racismo Contra a Judoca Brasileira Rafaela Silva nos Jogos Olímpicos de Londres 2012 – Ary Cunha e Luiz Ernesto Magalhães (Globo Online) TELEVISÃO 1º Viva Nelson, o Rodrigues – Manuela Franceschini (SporTV) 2º Duas Paixões Brasileiras: Música e Futebol – Rogério Bastos Medeiros (TV Brasil) 3º Série “Dez Anos do Penta” – Sidney Garambone (TV Globo)


PESQUISA

Os jornalistas diante do espelho

CARGA HORÁRIA DE TRABALHO DOS JORNALISTAS BRASILEIROS (2012)

Pesquisa revela o perfil desses profissionais no Brasil. Derruba mitos, confirma verdades. E poderá ajudar a compreender melhor as características, demandas e reivindicações da categoria. P OR P AULO C HICO O jornalista é mesmo um ‘ser esquisito’. Curioso por natureza, quer saber de tudo – e de preferência sobre todos. Não resiste a uma pesquisa, e muito menos a um pedido da chefia para decifrar estatísticas. Traduzir em informação palatável a frieza exata dos números. Assim, curiosa mesmo, é a inexplicável escassez de dados a respeito desses profissionais. Afinal, o que sabem os jornalistas sobre eles mesmos? Não seria essa uma bela pauta? Certamente que sim, ainda que não mais inédita. Pois foi lançado, no dia 6 de maio, o livro Perfil do Jornalista Brasileiro – Características Demográficas, Políticas e do Trabalho Jornalístico em 2012. A obra, publicada pela editora Insular, apresenta os resultados quantitativos da enquete com 2.731 profissionais, realizada entre setembro e novembro do ano passado, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, em convênio com a Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj. O projeto teve ainda o apoio da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo e do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo. E traz informações curiosas sobre o perfil atual dessa classe profissional no País – como a presença maciça de mulheres (elas são 64%) e de jovens (59% têm até 30 anos). Jacques Mick, 42 anos, é jornalista e doutor em Sociologia Política, além de professor da UFSC. E coordenador-geral do projeto de pesquisa. Ele falou ao Jornal da ABI sobre a importância do livro. “A pesquisa permite que se avance no entendimento de uma série de características da categoria hoje no Brasil. Havia muito ‘chute’ sobre, por exemplo, as suas reais dimensões, o número de trabalhadores sem registro, o número de jornalistas sem diplomas, a distribuição dos profissionais na mídia e em assessorias de imprensa. A pesquisa oferece parâmetros mais confiáveis para o debate sobre cada um desses aspectos”, afirmou ele, que contou com o auxílio de outros dois coordenadores no projeto – os professores Alexandre Bergamo e Samuel Lima, ambos da universidade catarinense. Doutor em Mídia e Teoria do Conhecimento pela UFSC, e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Samuel complementa a análise de Jacques. “A partir das pesquisas, dois mitos fundamentais foram pulverizados. O primeiro deles diz respeito à formação: 98% dos profissionais têm formação superior – e deste total 91,7% são jornalistas com formação superior em cursos de Jornalismo. Esse dado revela o impacto do crescimento da oferta de mão-deobra graduada na reconfiguração do campo profissional. Afinal, o Brasil saiu de 61 cursos

JORNALISTAS COM RENDA INFERIOR E SUPERIOR A 5 SALÁRIOS MÍNIMOS, POR SEXO (2012)

de Jornalismo em 1990 para 317 em 2010. O segundo ponto que destaco é a configuração por área de atuação: 55% trabalham em empresas de mídia; 40% fora da mídia – em assessorias de comunicação e/ou de imprensa – e os outros 5% na docência superior”. Entre outros dados, o levantamento revela que, além da quase totalidade de formação superior, 40% dos jornalistas do País já possuem pós-graduação. Segundo os coordenadores da pesquisa, isso comprova como a abundante oferta de cursos na área transformou significativamente a composição do campo profissional. E, mais do que isso, que esses trabalhadores estão em atividades de ponta na chamada sociedade da informação, o que os pressiona na direção da formação continuada – estratégia vital para a inserção e a preservação do posto de trabalho em certos ramos de atividade – sobretudo na área da docência. No que tange à remuneração, a pesquisa aponta que 59,9% dos jornalistas recebem até cinco salários-mínimos; cerca de 50% trabalham mais de oito horas por dia; 27% trabalham em mais de um emprego. No quesito raça/cor, 75% são brancos. No aspecto político, metade dos jornalistas se considera de esquerda, mas quase um terço refuta qualquer classificação ideológica – e nove em cada dez não são filiados a partidos políticos. Ainda segundo o livro Perfil do Jornalista Brasileiro – Características Demográficas, Políticas e do Trabalho Jornalístico em 2012, a ampla maioria defende a exigência de algum tipo de formação superior para o exercício da profissão; mais da metade defende a diplomação específica em jornalismo (55,4%). Apenas 6,1% se posicionaram por não haver a exigência de formação superior em qualquer área. Sobre a natureza do em-

prego, 25% deles atuam no setor público; o mesmo percentual tem contratos de prestação de serviços, como freelancers ou pessoas jurídicas. E quatro em cada dez atuam no setor privado, com carteira assinada.

Demandas Será que, a partir desses dados, é possível pensar na categoria como um todo? Quais são, por exemplo, as suas principais carências, ou demandas mais urgentes? “A divulgação desses resultados encerra a primeira etapa da pesquisa e abre a segunda fase, em que a equipe de investigadores pretende analisar com profundidade os dados, a partir de cruzamentos e aprofundamentos teóricos. Essa seqüência já tem dois primeiros resultados – estudos apresentados no II Colóquio Internacional Mudanças Estruturais no Jornalismo (Mejor 2013), realizado em Natal, na primeira semana de maio. Um deles comparou as características dos profissionais de mídia às daqueles que atuam fora da mídia, em especial como assessores. Outro analisou os fatores que contribuem para a baixa taxa de sindicalização da categoria. Em agosto, no Rio de Janeiro, os dados serão debatidos durante o Encontro Nacional de Jornalistas de Assessoria de Imprensa-Enjai. Creio que a pauta de reivindicações da categoria poderá ser sensivelmente aprimorada”, observou Jacques. A questão sindical chamou a atenção de Samuel. “De apenas 25,2% foi a taxa de sindicalização aferida, contra a média de mais de 59% entre os trabalhadores urbanos pelos dados do último Censo IBGE. Ainda assim, há margem para crescimento desse índice, uma vez que 43,2% dos que responderam não estar filiados a sindicatos de jornalistas alegaram razões que dão margem ao diálogo com as lideranças sindicais – tais como ‘a Diretoria do sindicato não representa a categoria’, com 10,6% de citações; ‘não conheço o sindicato’, com 17,1%; ‘o sindicato não responde às demandas específicas da área de atuação’, com 13,4%; e ainda ‘a Diretoria dificulta sindicalização’, com 2,1%. Contudo, há um dado preocupante: 34,5% cravaram ‘não tenho interesse’ em sindicalizar-me”. A realização de uma pesquisa sobre o perfil dos jornalistas era antiga pauta nos congressos promovidos pela Fenaj. Dada a

dificuldade de realizar uma pesquisa junto à população tão dispersa no território nacional – e empregada em inúmeras atividades –, a Fenaj não conseguiu levar adiante a proposta. “Eu discutia esse problema com o então Presidente da Federação, Sérgio Murilo de Andrade, em viagens de Florianópolis a Joinville, quando ambos éramos professores de um pequeno curso de Jornalismo ligado à IECLB de lá – o Bom Jesus/ Ielusc, do qual o Samuel Lima foi diretor por longo tempo. Quando me tornei professor da UFSC, em 2009, e passei a atuar no Núcleo de Estudos sobre Transformações no Mundo do Trabalho, encontrei o ambiente e os parceiros certos para realizar a pesquisa.” A primeira dificuldade do estudo foi estimar o tamanho e a distribuição da população de jornalistas, base para qualquer pesquisa por amostragem. É o que conta Jacques Mick. “Colhemos dados de maio de 2011 a julho de 2012 junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, aos 31 sindicatos filiados à Fenaj e às 317 coordenações de cursos de Jornalismo no País, em busca de critérios para estimar, aproximadamente, as dimensões da população e as taxas de concentração nas principais regiões do País. Do cruzamento dos dados obtidos nesse trabalho de formiguinha surgiu a estimativa de 145 mil profissionais registrados, e o plano amostral obedeceu às taxas de distribuição regional desses registros.” O desafio agora, por mais paradoxal que possa parecer, é encontrar espaço na mídia para a divulgação do estudo e do livro. Será que os jornalistas não se interessam por conhecer as características da própria categoria? “A Fenaj, a UFSC e a equipe de pesquisa trabalharam bastante para dar visibilidade a esse trabalho. A Fenaj promoveu entrevista coletiva em Brasília, no início de abril, e divulgou a síntese dos principais dados. A Agência de Comunicação da UFSC fez ampla divulgação do lançamento do relatório, em Florianópolis. Remetemos correspondência com um link para a pesquisa a quatro mil profissionais que responderam à enquete em rede, em 2012. Milhares de jornalistas de todo o País, portanto, já dispõem dos dados e estão produzindo análises. Nosso dever, na universidade pública, é permanecer disponíveis para o debate, seja na mídia ou fora dela. Não há nada que impeça os jornais de abrirem espaço para essa discussão. Se assim desejarem, podem contar com a nossa cooperação.”

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ESTUDO

A imprensa precoce de Resende e seu pioneirismo Lá surgiu o primeiro jornal do interior fluminense, que participou das lutas políticas pós-Independência de 1822, sustentando idéias liberais e enfrentando Dom Pedro I. P OR M ARIA C ELINA W HATELY Poucos sabem que o Município de Resende, no sul do Estado do Rio, teve um papel de destaque na História da Imprensa no Brasil, não só pela volumosa produção de periódicos durante o século 19 (34 jornais) como pela precocidade ao entrar no mundo da tipografia ,em 1831, com a publicação do jornal O Gênio Brasileiro, editado de 1831 a 1839. Com isso, Resende passou a ser a primeira cidade do interior da então Província do Rio de Janeiro e do Vale do Paraíba fluminense a ter um jornal, só encontrando precedente no jornal Echo, publicado em 1829 em Niterói. Pioneiro no plantio e difusão do café no Vale do Paraíba, no início do século 19, o clima de euforia e prosperidade daí decorrente. contaminou seus habitantes e concorreu para o desenvolvimento de uma pequena mas empolgada elite letrada, que seria responsável pela criação dos diversos periódicos surgidos naquele momento. Os primeiros jornais de Resende iniciam sua publicação envolvidos nas lutas que tomaram conta do País, em 1822, logo após sua separação de Portugal. Os debates de então eram polarizados entre os favoráveis a um governo forte e os defensores de uma maior descentralização. O primeiro jornal de Resende – o Gênio Brasileiro – surge como um pasquim liberal, de forte oposição à política autoritária de Dom Pedro I, como ficava claro pela sua epígrafe estampada na primeira página: “Toda força é insuficiente contra a vontade de um povo que não quer ser escravo”. Seu editor, o Padre José Marques da Mota era um mineiro vindo de São João Del Rei, imbuído de idéias libertárias, que se instalou em Resende tornando-se logo um vereador muito atuante, tendo liderado, inclusive, um movimento para criação de uma nova Província, independente do Rio de Janeiro, que incluiria parte do território de Minas e São Paulo, tendo Resende como capital. Não conseguindo êxito nessa sua empreitada, Padre Mota passou a dedicar-se a uma intensa campanha para elevação da Vila de Resende à categoria de cidade, o que só viria a acontecer, no entanto, em 1848, quando ele já havia falecido. Neste tipo de reivindicação envolveu-se também o jornal Echo Constitucional (18371843), criado por Pacífico Américo de Siqueira, do ramo de “secos e molhados”. Entre os anos de 1843 e 1865 verifica-se um inexplicável hiato na imprensa resendense, surpreendente principalmente por ter sido nessa época que Resende tem seu apogeu na produção cafeeira. Ou, talvez, por isso os recursos disponíveis fossem investidos na compra de mais terras e escravos para garantir o desenvolvimento da lavoura cafeeira.

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Preciosidades do Arquivo Histórico de Resende, preservados pelo seu funcionário Claudionor Rosas: Astro Rezendense, de 1827; O Rezendense, de 1876; Itatiaya, de 1884; Tymburibá, de 1913.

Passado esse marasmo na imprensa vemos surgir o jornal Astro Rezendense, publicado de 1865 a 1873, de propriedade do político João Batista Brasiel, do historiador e advogado João Maia, do Padre Felipe de Melo e do professor Jacome de Campos, defensor de idéias liberais, dono do mais importante colégio particular da época para meninos e outro para meninas. Nesse jornal colaborou Narcisa Amália, filha de Jacome de Campos, considerada a primeira jornalista do Brasil. Além de publicar poesias, elogiadas por escritores como Machado de Assis e Raimundo Correia, Narcisa escrevia artigos a favor do abolicionismo e do regime republicano, além de publicar textos defendendo a emancipação feminina. Isto fez que recebesse freqüentes críticas por parte da elite conservadora, inconformada por ela não se dedicar aos bordados e outras prendas domésticas para escrever artigos em jornais.1 No Astro Rezendense eram debatidos temas da maior relevância, como a polêmica entre os adeptos do transporte do café pelo Rio Paraíba e os defensores da via férrea como um meio de transporte mais rápido e barato, símbolo da modernidade que chegava ao País. Esse jornal, bem como outros do século 19, podem ser encontrados no Arquivo Histórico de Resende e constituem uma raridade que nem a Biblioteca Nacional possui. Nessa época, o último quartel do século 19, verifica-se uma verdadeira explosão de periódicos na cidade, registrando-se de 1865 até o final do século 19 trinta e quatro jornais.2 Entre os de maior duração citamos o

Tymburibá (1881 a 1936) e o jornal A Lyra (1898 a 2000). Este último, que atravessou todo o século 20 merece um estudo à parte, já que passou por várias fases e diferentes proprietários, desde Álvaro Silva, seu fundador, Ademar Vieira, seu redator até 1966, seguido por Amaral de Matos e Mário Ferreira na direção do jornal, tendo como jornalista responsável Arisio Maciel. Em 1978 Noel de Carvalho, então Prefeito de Resende, passou a ser proprietário do jornal e entregou a Redação ao seu tio Frederico de Carvalho que fez uma verdadeira revolução na Lyra. Com a aquisição de uma linotipo o jornal deixava de ter sua composição feita manualmente e a impressora podia rodar duas páginas de uma só vez! O jornal, antes com apenas quatro páginas, chegou a ter 32 páginas no aniversário da cidade, com três suplementos – um literário, outro de humor (A Tocha) e outro dedicado à mulher. Pela primeira vez foi criada uma Redação com editorias (política, esporte, polícia, cultura, etc) e articulistas variados. No entanto, um ano depois, com a saída de Frederico de Carvalho da editoria do jornal (era ele quem fazia a ponte entre o proprietário e a intrépida troupe que agitava a Redação) a Lyra começou a perder sua liberdade de expressão e vários dos editores tomaram novos rumos. Foi então que surgiu um jornal alternativo, O Pé da Serra, tendo como editor Gustavo Praça. Depois dos “anos rebeldes” da Lyra o jornal passou por vários editores, entre os quais Chico Junior, Ricardo Alves, Ricardo

Bruno, Grice, Márcia Siqueira, Virginia Cales Arbex, Barcimio Amaral, Flavio Collistet, Vera Cuiabano e Laís Amaral, que editava o jornal quando no ano de 2000 esse centenário hebdomadário fechou suas portas. Como curiosidade registramos a existência no início do século 20 de um jornal manuscrito, feito por três jovens – Francisca Jacira da Silva, Helena Amanda e Julia Lopes, que viviam na Capelinha, uma fazenda a cerca de 20 quilômetros de Resende. O jornal chamava-se O Sorriso e, em seu artigo de abertura dizia:3 “Sempre que alguém se apresenta em público, é de praxe vir de chapéu na mão e explicar seus fins; é isto que vamos respeitosamente fazer, hoje, que entramos na arena difficil do jornalismo.” Os nossos fins são bons e boas são as nossas intenções; temos por fim distrahir os nossos leitores, amenizando de algum modo, com leitura humorística e recreativa , o tédio da vida, que neste lugar é simplesmente enfadonha. Além disto, é nossa intenção instruir-nos com o hábito de escrever pois, para não lhes sermos desagradáveis é mister que a nossa escrita não revele ignorância. Eis-nos, pois, todas curvadas a solicitar a vossa complascência para o nosso humilde jornalzinho, e, offerecendo-vos o nosso pouco préstimo, nos certificarmos que seremos eternamente gratas pela vossa assignatura.” Os assinantes pagavam, adiantadamente, 200 réis por mês. Havia também alguns anunciantes de lojas de Resende, como, por exemplo, um que dizia com pouca modéstia: “Antonio Menandro da Silva, único e grande estabelecimento de secos e molhados, tanto do país como do estrangeiro, vendendo-se em retalho ou por atacado, por preços baratíssimos” E ainda anúncios de “doceira, costureira, professora de português e aritmética”. Havia também as fofocas da Capelinha, como: “a Albertina não quer mudar-se do Pirapetinga...” ou “a Chiquita brigou por causa da poesia Saudade... a Sinhana tem o defeito do macaco, mexe no que não é da sua conta...” Em cada número era publicada a tradução de um folhetim francês. É interessante notar que as editoras, embora morando na roça, conheciam perfeitamente a língua francesa, o que fazia parte da formação da elite na época. O jornal trazia também uma parte de humor, com piadas e anedotas, além de charadas e poesias. Conta a lenda que, no entanto, O Sorriso não teria uma longa duração, apesar do sucesso que fazia, já que as mães não viam com bons olhos suas filhas passando a maior parte do tempo dedicadas ao jornal, ao invés de fazerem bolos e outros trabalhos domésticos. Não pretendemos com este artigo esgotar o assunto nem chegar aos dias de hoje. Nossa intenção é apenas chamar a atenção de possíveis pesquisadores que possam se aprofundar neste tema. 1. Para mais informações sobre Narcisa Amália, ver Mulheres Fluminenses do Vale do Paraíba – CEDIM/Rio de Janeiro. 2. Para a relação de todos os jornais editados no século 19, ver Whately, Maria Celina – Resende, centro pioneiro do café no Vale do Paraíba, anexo II. 3. Barbierei, Elias – Capelinha de todos os tempos, Resende, 1995. MARIA CELINA WHATELY é historiadora e Presidente de Honra da Academia Resendense de História.


DEPOIMENTO

FRANCISCO UCHA

O crítico afirma que há falta de uma discussão cultural na imprensa brasileira e que os jornais precisam criar um novo produto diante da crise.

POR FRANCISCO U CHA

A

paixão pelo cinema, que começou na infância, sempre norteou a vida profissional de José Carlos Avellar. Atraído pelo jornalismo, passou por vários veículos, até se firmar como o principal diagramador do Jornal do Brasil. Mas, desde a época em que trabalhou para os Diários Associados, já escrevia sobre cinema, pois essa era a sua formação intelectual. Daí a se tornar também um dos mais importantes críticos de cinema do Caderno B e da imprensa brasileira, não demorou muito. Para viver ainda mais

intensamente sua paixão, ele se envolveu com a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e, em seguida, trabalhou na direção cultural da Embrafilme e da Fundação do Cinema Brasileiro. Foi DiretorPresidente da RioFilme, curador do Festival de Gramado e continua como consultor de alguns dos mais importantes festivais de cinema do mundo. Hoje, além de programar a sala de cinema do Instituto Moreira Salles, Avellar é o curador da série de lançamentos em dvds do IMS que

resgatam um pouco da história do cinema mundial. São verdadeiras pérolas que dificilmente seriam lembradas por outras distribuidoras. Nesta entrevista ao Jornal da ABI, José Carlos conta um pouco de sua trajetória, sua dedicação à administração cultural do cinema brasileiro e de seu trabalho no IMS. Fala também da crise na imprensa e da falta de uma discussão mais analítica e ensaística no jornalismo diário. Segundo ele, “a cultura está reduzida a um elemento a mais dentro do mercado de consumo.” JORNAL DA ABI 390 • MAIO DE 2013

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Robert Altman durante as filmagens de Cerimônia de Casamento, entre Mia Farrow e Vittorio Gassman.

Jornal da ABI – Quando você começou no IMS? José Carlos Avellar – Desde 2009 faço a programação de cinema e, há alguns meses, começamos a montar uma coleção de dvds. O primeiro saiu em outubro de 2012. Foi o Shoah, de Claude Lanzmann. Jornal da ABI – Qual é a linha da coleção? José Carlos Avellar– Escolhemos três áreas de seleção de dvds, das quais numa delas ainda não lançamos nenhum título. Vamos fazer uma seleção de filmes de ficção, outra de documentários, brasileiros ou não, e teremos uma terceira linha, na qual editaremos algo que fica entre o documentário e o documento, como a leitura de poemas que o Instituto chegou a fazer antes de lançar esta coleção de dvds, com poemas do Drummond e Poema Sujo de Ferreira Gullar. Também queremos lançar palestras e mesas de debate sobre fotografia, documentos sobre o processo de algum fotógrafo, conversas, filmes que não tenham a construção de um documentário, uma espécie de documento em estado bruto. Já temos em vista algumas palestras, entrevistas com fotógrafos, coisas sobre música, literatura, mesas com escritores, poetas e ensaístas. Acreditamos que exista interesse por esse tipo de material, para além do consumo regular que hoje existe, de filmes em dvd. Essa mídia serve não apenas para a difusão de filmes cinematográficos que inicialmente foram destinados à exibição em salas de cinema. Pode ser também utilizada numa área de edição próxima à de um livro. Pode conter um filme de ensaio, um registro de algum acontecimento entre uma reportagem e um documentário. Nós mesmos, aqui no Instituto, organizamos, com freqüência, mesas-redondas sobre música, cinema e literatura. Mesmo no lançamento do primeiro dvd da coleção, Shoah, organizamos duas mesas-redondas. Uma delas, sobre a questão cinematográfica do filme, como ele foi construído e que tipo de características tem, e outra sobre a questão do Holocausto, de como é possível a gente hoje narrar, se referir e analisar o que ocorreu durante o Holocausto na Segunda Guerra Mundial. Mesas como essas, em alguns momentos, podem gerar um dvd que seja de interesse a esse tipo de espectador a quem nós procuramos nos dirigir. Dentro de cada uma dessas três linhas de trabalho, escolhemos de acordo com, digamos, a ausência desses filmes no espaço cinematográfico brasileiro, levando em conta o seu valor intrínseco. Nos interessa ter, na coleção, um filme do Robert Altman ou do Bernardo Bertollucci, como também filmes de diretores menos conhecidos aqui, mas que no momento da realização tiveram uma interferência significativa na compreensão do fenômeno cinema-

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tográfico, como é o caso de Ermanno Olmi, diretor pouco conhecido no Brasil. Ele passou a ser conhecido no meio de sua carreira, na década de 1970, depois de ganhar um prêmio em Cannes com A Árvore dos Tamancos, o primeiro filme dele exibido comercialmente no Brasil. Muito antes dessa produção, Olmi realizou uma série de filmes de ficção e muitos documentários que foram uma contribuição muito nova na produção cinematográfica italiana em particular e na européia de um modo geral. Era uma revisão do que o neo-realismo tinha feito logo depois da guerra. Então, interessa-nos apresentar um filme do Olmi. Jornal da ABI – Já há algum título previsto? José Carlos Avellar – O escolhido é o segundo longa-metragem dele, que se chama O Emprego (Il Posto). A história conta sobre uma situação que pode ter eco na crise de desemprego atual na Europa. No filme, os piores tempos do pós-guerra na Itália tinham acabado e existia a possibilidade de se conseguir emprego; a economia do país voltava a uma situação normal. Discutir que perspectivas de emprego tinha um trabalhador em 1960 com os olhos na questão atual. Que perspectivas tem hoje um jovem que começa a buscar trabalho no mercado europeu, seja na Itália ou na Espanha? Existiam outros filmes do Olmi que poderiam ser escolhidos, mas este nos pareceu estabelecer uma discussão em paralelo com a situação contemporânea. Outro que vamos lançar adiante, certamente antes ainda de O Emprego, é um filme de Joseph Losey, um diretor razoavelmente conhecido por várias realizações e, naturalmente, pela qualidade delas. O público vai se lembrar de O Mensageiro, ou de O Criado. Mas nós fomos buscar um filme menos difundido aqui, que é Cerimônia Secreta (Secret Ceremony). A gente busca um filme para, através dele, colocar o espectador em contato com questões da construção cinematográfica, de como se faz um filme, de como a compreensão desse filme pode nos ajudar a ver um outro. Há uma série de questões que nos orientam na escolha de um título. Jornal da ABI – Os dvds vêm acompanhados de encartes informativos bem completos. Como é o processo de edição desse material? José Carlos Avellar – Todos os nossos dvds são acompanhados de um livreto impresso com um texto de um ensaísta brasileiro, ou de um brasileiro e um americano – quando se trata de um filme americano – ou um europeu – quando se trata de um filme europeu –, de modo que se possa dar ao espectador uma porta de entrada para o filme, uma possível maneira de interpretá-lo. Procuramos lançar os filmes com uma conversa com a platéia. Os textos dos livretos são

uma primeira possível análise crítica do filme, escritos especialmente para nossos lançamentos ou selecionados de alguma publicação de referência. Queremos que, a partir da leitura e da visão do filme, o próprio espectador possa fazer o seu juízo, e que possamos chamar a atenção para duas ou três questões. No caso do Cerimônia de Casamento, fomos buscar um texto do Hernani Heffner, que é o conservador da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, e um texto de um crítico americano. Então, há um ponto de vista brasileiro sobre o trabalho do Altman, e um ponto de vista de um crítico de seu país, e as duas coisas podem ajudar o espectador a compreender. No caso de Conterrâneos Velhos de Guerra, do Vladimir Carvalho, fomos buscar um texto de análise do cinema de Vladimir feito em torno de Brasília, o que ele filmou, como chegou ali, como a vida na Capital acabou interferindo no trabalho cinematográfico dele. Para O Emprego, do Olmi, selecionamos um capítulo inteiro dedicado a esse filme extraído de um livro sobre cinema italiano do pós-guerra. No caso do Cerimônia Secreta, do Losey, buscamos um capítulo de um livro publicado na França que é resultado de dois anos de entrevistas de Michel Ciment, um crítico francês, com o Losey (Le Livre de Losey). Há um capítulo em que o diretor fala sobre como surgiu a idéia do filme, como ele recebeu e se interessou pelo conto – que é de um escritor argentino –, o que ele modificou, como ele filmou, enfim; indicações que permitem ao espectador, vendo o filme, ter uma informação de base para poder se relacionar melhor com ele. Este é o modo com que a gente está trabalhando. Jornal da ABI – Você pensa em lançar clássicos da cinematografia russa?

José Carlos Avellar – Claro. Estamos em discussão com alguns realizadores, não só da Rússia, mas da Europa Oriental. Estamos buscando filmes húngaros, poloneses e russos dos anos 1960 a 1990. Há um grupo de cineastas, alguns deles ainda em atividade, como Andrzej Vajda e Miklós Jancsó, um diretor húngaro também pouco conhecido aqui, com uma carreira que começou nos anos 1960. Ou, como recentemente tivemos a exibição de O Cavalo de Turim, uma descoberta fantástica da força do cinema húngaro. Essas são preocupações que temos, de buscar alguns clássicos e alguns realizadores contemporâneos desses países. Muitas vezes foram lançados no Brasil dvds com filmes do Eisenstein, do (Vsevolod) Pudovkin, do (Dziga) Vertov. Estamos vendo também alguns realizadores recentes. Há um filme fantástico do Alexander Sokurov, Fausto. Então, vamos buscar um clássico, um filme mudo, um filme recente, na medida em que a gente possa encontrar um título capaz de servir para um trabalho de formação de cinéfilos, como um filme do Eisenstein que tenha tido uma pequena difusão aqui. Todo mundo conhece O Encouraçado Potemkin, mas talvez não se conheça tanto Ivan, o Terrível ou o Alexandre Nevsky. Há uns cinco anos mais ou menos, os alemães descobriram uma cópia do Potemkin original que estava guardada na cinemateca. Fizeram a restauração dessa cópia e a exibiram no Festival de Berlim. Fizeram também um dvd que circula na Alemanha, uma versão supercompleta com a montagem absolutamente original, porque esse material não foi danificado durante a guerra. Era um material feito a partir do negativo original que foi enviado para Berlim quando se fez uma versão sonora para distribuição fora da então União Soviética. O músico era alemão e

Eisenstein foi a Berlim e trabalhou com ele na música do filme. Coisas assim nos interessam. Nós temos ainda muitos filmes brasileiros para lançar. Talvez, o nosso próximo lançamento de maior impacto não seja um filme novo, mas são dois filmes que nunca foram lançados no Brasil em dvd. Vamos fazer uma caixa reunindo os três longasmetragens baseados nas obras de Graciliano Ramos: Vidas Secas, Memórias do Cárcere, que saíram em vhs, mas nunca em dvd, e vamos reeditar o São Bernardo, do Leon Hirszman, cada um deles acompanhado de um livreto. Filmes brasileiros não desconhecidos, dois diretores e um autor muito conceituados e bem vistos no Brasil, mas a idéia é que ao apreciar os três o espectador possa estabelecer uma relação que ligue ao ponto de partida – o Graciliano –, e que se possa estudar a relação entre cinema e literatura, tal como ela se desenvolveu no Brasil nos últimos anos. Jornal da ABI – Esses livretos podem suprir um pouco a falta de espaço que o ensaio crítico tem hoje na imprensa diária? José Carlos Avellar – Talvez em parte, mas não foi essa a intenção. Os espaços para uma discussão mais interpretativa, crítica, analítica ou ensaística na imprensa hoje são menores. Mas o que nos levou a optar por produzir os livretos em cada dvd é a diferença na relação entre o espectador e o filme, do tempo em que a gente via predominantemente os filmes em salas de cinema, e o que acontece hoje, quando a gente vê em casa, na televisão, no computador, às vezes com a família, mas a maior parte do tempo sozinho. O que se pode imaginar em relação ao folheto é que, depois de ver o filme, o espectador pode ter alguém com quem, ainda que indiretamente, possa ‘conversar’, trocar idéias. Era o que se fazia nor-


malmente quando se saía do cinema, por mais ligeira que fosse a observação na saída de um filme. Bastava olhar para a cara de seu vizinho e ver se ele gostou ou não, trocar duas ou três palavras, às vezes acendia uma fagulha e você pensava a partir dali. Qualquer comentário, por concordância ou por uma surpresa, nos levava a pensar no filme. Procuramos textos com alguma coisa que possa estimular esse mesmo diálogo do espectador com o filme. É claro que não se pode substituir a conversa viva após a projeção, mas podemos acrescentar uma série de dados importantes. E os textos de cada livreto são muito diferentes entre si, porque a idéia é variar, e não criar uma fórmula, uma repetição. É individual, autoral, é a relação de um espectador com um filme. Aquele filme provocou naquela pessoa que escreveu o texto um determinado tipo de reação, um outro filme vai provocar numa outra pessoa uma reação diferente. Jornal da ABI – Parece que os textos são selecionados com tanto carinho quanto os filmes. José Carlos Avellar – Sem dúvida. Não ocorreu ainda nenhum caso, mas a gente poderia dizer: ‘Escolhemos primeiro o texto e depois o filme’. Não é o caso, nós escolhemos sempre o filme primeiro, mas feita a escolha do filme saio correndo pelas possíveis fontes de textos que possam ser usados. Ou solicito a alguém. Jornal da ABI – É difícil fechar os contratos dos filmes? José Carlos Avellar – Varia muito. Alguns filmes, por questões diversas, custam mais caro. Não só o preço que se paga, mas a negociação mesmo. Outros, não. Os contratos são padronizados em todo o mundo, o que se costuma oferecer pelos filmes não é uma grande variedade. A questão está em buscar o filme, comprar os direitos de distribuição por algum tempo e apresentar esse filme. Jornal da ABI – Falamos da falta de espaço do ensaio crítico na imprensa. Como você vê a atual crise da imprensa diária? José Carlos Avellar – Estou fora da imprensa há algum tempo, não tenho vivência para fazer uma análise como jornalista. Mas a minha sensação, como leitor, é a de que uma grande parte da imprensa não soube criar um produto novo diante das circunstâncias existentes. Quando o jornal surgiu, não existia o rádio, ele era a primeira informação. Quando veio o rádio, ele soube se adaptar. Quando chegou a televisão, ele começou a não se adaptar tão facilmente, e hoje, com a internet, tem mais dificuldade de gerar um produto próprio, porque nós não queremos comprar um jornal mais para ver a notícia tal como saiu na televisão, no rádio ou na internet. Eu solicito do jornal a infor-

mação que não cabe nos outros veículos. Um texto interpretativo, ou uma imagem mais viva que na televisão. O cinema não acabou com a literatura e não a tornou menos interessante, não acabou com o teatro e não o tornou menos interessante. E a televisão não acabou com o cinema. Há uma coisa específica em cada veículo de informação e expressão que é insubstituível. Não sei se a gente pode falar em crise, mas os jornais estão enfrentando essa necessidade de descobrir um espaço próprio. Essa foi uma questão vivida pelo cinema durante muito tempo. Na primeira metade do século passado, se a gente for consultar o que se falava de cinema, era sempre um grupo de gente procurando o que era específico do cinema, o que era próprio do cinema e não existia nas outras artes. O que o cinema tem de diferente, que os outros não têm? O que é o próprio do cinema? Às vezes, eu tenho a sensação de que o jornal diário está enfrentando essa mesma busca, de explicar para si mesmo o que tem que fazer hoje quando, antes de chegar à banca, na manhã seguinte, uma boa parte dos leitores já viu a notícia e as imagens na noite anterior. Ou acabaram de acordar, ligaram o computador e viram um informativo na internet, ou alguém passou a notícia por uma rede social. Há que se buscar esse espaço característico dos jornais. Essas coisas estão em transformação. Jornal da ABI – Como você vê a crítica cinematográfica hoje nos jornais? José Carlos Avellar – Acho que hoje existe menos espaço para a crítica. Eu falo de cinema, mas é igual para crítica de teatro, de música e a crítica literária. Há uma redução de espaços críticos nos jornais, que se encaminharam para uma direção que procura mais a informação acrítica. Quando existiam grandes espaços para reflexões nos jornais, havia na análise de cada uma das formas de expressão, seja na análise de um livro, filme, peça de teatro ou de um show musical, um estudo comportamental da sociedade, uma reportagem ao vivo do mundo em que estávamos vivendo. Podia-se pegar um livro de um autor brasileiro qualquer e, através daquele livro, discutir em termos de literatura, de que modo ele estava analisando o mundo em que vivia. Disso, o jornal abriu mão. Hoje nós temos um volume de informação muito grande, mas uma pequena tentativa de compreensão do que está por trás dessas informações. Isso a gente está deixando para o leitor. É uma afirmação meio irresponsável, mas quem comenta hoje os fatos – não que comente bem – são os leitores, através da internet. O comentário é pobre, mas não importa. É possível que uma das soluções seja um jornalismo mais analítico do que o que se faz hoje. De qualquer modo,

ram uma saída por aí. O fato é que há uma modificação considerável das apresentações de informações e os órgãos de imprensa procuram uma saída, um produto diferenciado dentro de suas características.

se essa é ou não é a solução para os jornais, é uma ausência em termos de comentários sobre a expressão artística. Hoje se dá mais importância aos números, ao ‘economês’: quantos espectadores o filme fez, quanto custou, como vai ser distribuído, com quantas cópias. Quase nada se fala sobre o que é que o filme está comentando conosco. Nem mesmo da história. A idéia das sinopses, que foi uma coisa muito usada décadas atrás nos jornais, hoje são três ou quatro linhas. É como resumir Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, em três linhas. Há a preocupação de transformar tudo num texto para o Twitter. Em 140 batidas se resume a Bíblia. É uma brincadeira, mas é um pouco por aí. Uma das coisas que se pode fazer numa edição de dvd que lançamos é justamente estimular esse espaço crítico. Acho que há uma parte de espectadores carentes desse tipo de coisa. Jornal da ABI – O jornalista está comprando o marketing que as grandes distribuidoras americanas vendem? José Carlos Avellar – Não foi muito diferente antes, existia muito isso também. O que houve é que, em um certo momento na produção jornalística brasileira, editores, repórteres e redatores de jornais estavam interessados em uma discussão sobre a expressão artística brasileira. Estamos falando de cinema, mas era incrível como se fazia críticas de pintura, por exemplo. As exposições tinham uma apreciação crítica. Toda obra de teatro tinha mais de uma crítica, uma na abertura do espetáculo, outra lá pela metade que levava em conta as melhorias ou a redução da eficácia do espetáculo. Existia uma apreciação do fenômeno expressivo teatral, musical, das artes plásticas, da literatura, da poesia. Hoje, a cultura está reduzida a um elemento a mais dentro do mercado de consumo. Nem é preciso ir muito longe. Antes, várias pessoas iam às peças do Nelson Rodrigues para discutir com Nelson Rodrigues. Não porque concordassem com ele necessariamente, mas iam para um enfrentamento cultural. Ninguém ia agredir Nelson Rodrigues, era um enfrentamento cultural mesmo. Essas coisas mudaram. Se a discussão está em nível menor – e eu acho que está –, ela existe ainda através da internet, lugar em que as pessoas opinam sobre qualquer coisa e onde existem também alguns blogs e sites com discussões bastante razoáveis. Não imagino que tenha cessado a reflexão sobre a produção artística, mas seguramente, ela se reduziu muito na imprensa diária. Jornal da ABI – Então a imprensa diária está dando de bandeja esse conteúdo para a internet? José Carlos Avellar – Pode ser, ao adotar como estratégia uma outra

Jornal da ABI – Vamos falar um pouco de sua experiência no Jornal do Brasil. Você trabalhou lá mais de 20 anos... José Carlos Avellar – Fiquei entre 27 e 28 anos. Quando eu entrei, no final de 1961, o Jornal do Brasil já era grande. Fiquei até 1988. Saí um tempo, passei dois anos trabalhando na direção cultural da Embrafilme, depois voltei para o jornal, passei um tempo na Última Hora, colaborei com O Estado de S. Paulo e com vários outros jornais, mas não voltei mais ao jornalismo diário, porque o tipo de coisa que eu queria continuar fazendo tinha seu espaço muito reduzido. A minha formação é jornalística, mas minha formação intelectual é de cinema.

coisa, mas ela pode tentar voltar a produzir isso. Eu encontro, algumas vezes, em órgãos diários europeus uma tendência a fazer um jornalismo mais analítico do que noticioso. Eles não se preocupam em dar o fato em primeira mão, mas em analisar o fato e discutir. Alguém botou uma bomba na Maratona de Boston; não se trata de dizer, no dia seguinte, que alguém botou uma bomba, mas começar a investigar, não para descobrir o fato, mas o que está por trás, em redor dele, por que teria ocorrido. Essas coisas são parte também do jornalismo e alguns jornais procu-

Jornal da ABI – Qual paixão chegou primeiro em sua vida? José Carlos Avellar – A paixão pelo cinema. Morei longo tempo num bairro perto de Cascadura, Engenho de Dentro (no Rio de Janeiro). E bem criança, eu me lembro, tinha quatro cinemas. É uma coisa da qual me lembro com muita diversão. Existiam três cinemas e eu saía de casa e não tinha nem que atravessar a rua para chegar a eles. E havia um cinema do outro lado da avenida, mas meu pai dizia: “Do outro lado da avenida você não pode ir sozinho”. Isso é para ter uma idéia de que, num bairro de baixa classe média, na Zona Norte do Rio de Janeiro, num certo momento, havia quatro cinemas para escolher, sem ter que pegar nenhuma condução. Todo mundo ia ao cinema, era uma coisa normal, interessados em cinema ou não, todo mundo ia ver os filmes. O cinema era um centro de informação, de reunião social, de conhecimento e de enriquecimento. Cheguei a me interessar por jornalismo um pouco mais tarde, eu devia ter uns 17 anos, porque alguns colegas estavam entrando em Redações de jornais. Comecei a fazer algumas coisas no Diário Carioca e a trabalhar nos Diários Associados, no O Jornal, no Diário da Noite, e gostei do trabalho, não sei dizer bem o quê. Jornal da ABI – O que você fazia, era repórter? José Carlos Avellar – Fiz várias coisas, mas nunca cheguei a ser repórter. Fui fazer algumas reportagens quando já escrevia sobre cinema. Eu fotografava, desenhava um pouco e diagramava. A minha atividade por mais longo tempo foi a de diagramador. Essa era a minha principal função no Jornal do Brasil. Escrevia sobre cinema, mas estava lá como diagramador. Existia um modelo de diagramação no JB anterior à minha chegada, que foi

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ACERVO UCHA

Othon Bastos e Isabel Ribeiro em São Bernardo. Abaixo, Vidas Secas.

entra para ver, todos dentro de um universo cinematográfico, e não ter alguém que sabe tudo e vai dizer para você o que deve ver ou não. Mas o que o jornal, na verdade quer, naquela época e ainda hoje, é que alguém diga “Vá ver este filme e não vá ver aquele outro”. Apesar de que existem críticos que são autoritários, há diretores de cinema que são autoritários, como há jornalistas que são autoritários. Faz parte do contexto.

desenhado pelo Amilcar de Castro. Quando comecei no JB, ele ainda estava lá e desenhava o Caderno B e a primeira página. Depois que ele saiu e foi para o Correio da Manhã, eu passei a desenhar a primeira página e o Caderno B, e fiquei um longo tempo nessa função. Mais tarde fiquei só na primeira página, mas passei a integrar a equipe de cinema do Caderno B.

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REPRODUÇÃO

Jornal da ABI – Como foi que a Redação o descobriu como crítico de cinema? José Carlos Avellar – Havia uma integração muito grande. O Amilcar era um artista plástico, então ficávamos ali todos conversando no intervalo sobre questões de expressão artística. Quem estava no copidesque do JB naquele momento? O José Carlos Lago Burnett, poeta maranhense, o Ferreira Gullar, o José Ramos Tinhorão. Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade eram colaboradores. Hoje a gente olha para trás e diz “esses caras todos trabalharam ali naquele jornal”. Estava ali também, como copidesque, o Nelson Pereira dos Santos, que foi redator do JB durante muito tempo. E muito antes, quando o Nelson foi para lá, eu já escrevia sobre cinema. Por quê? Eu ia ver muitos filmes, andava sempre com algum livro de cinema embaixo do braço e conversar sobre cinema era uma coisa natural. Quando fui para o JB, eu já havia escrito sobre cinema no O Jornal, desde 1960. Eu trabalhava lá com o Pedro Lima, que era o crítico do O Jornal, ficamos muito amigos e discutíamos muito sobre filmes. Quando houve a Convenção de Crítica de Cinema, em 1960, em São Paulo, o Pedro Lima não pôde ir, mas eu fui, fiz a cobertura e, a partir dali, fiquei escrevendo com alguma assiduidade no O Jornal. Então, cheguei ao JB como diagramador e não escrevi sobre cinema inicialmente. Mas uns dois anos depois, comecei a escrever. Num determinado momento criaram uma página semanal onde vários críticos de cinema escreviam. Alguma coisa como O Globo faz hoje raramente naquele “O Filme em Questão”, nós fazíamos todas as semanas. Escolhíamos um filme e todos os críticos de cinema escreviam sobre aquele filme. Logo passei a dividir os textos com o Ely Azeredo. Quase todo dia saía uma crítica de cinema no Caderno B: um dia eu escrevia, um dia o Ely. E às vezes escrevíamos sobre o mesmo filme, às vezes tínhamos opiniões diferentes, ele gostava, eu não gostava e vice-versa. Em algumas semanas escrevia mais, tinha uma razoável liberdade e acabei escrevendo sobre cinema no JB durante toda a década de 1970, até 1985. O tamanho de um texto crítico no jornal era mais ou menos entre 60 e 90 linhas. Algumas vezes, a gente podia escrever um pouco mais, dependendo do filme. Houve casos de filmes em que saíram textos quase de página inteira, duas

pessoas escrevendo, às vezes uma só. Isso era uma coisa de interesse dos editores do jornal. Jornal da ABI – Você se lembra de algum problema durante o fechamento? Ou algum erro grave que acabou sendo publicado? José Carlos Avellar – Uma vez eu tive uma discussão enorme no jornal. No envio de um texto sobre um filme do Buñuel para a oficina, perderam a legenda da foto. Sabe como era que fazia, não é? Escrevia-se a legenda, dobrava-se a lauda com a foto dentro e mandava para fazer o clichê. E eu não estava lá no momento em que o redator que fazia a revisão percebeu que estava faltando a legenda. Aí, alguém da Redação do Caderno B mandou uma legenda dizendo mais ou menos isso: “Mais um filme idiota desse surrealista do Buñuel”. Foi publicado assim e a matéria estava assinada por mim. O texto era exatamente o oposto do que dizia a legenda. Houve uma briga. Havia uma

coisa no jornalismo de que eu gostava muito quando escrevia crítica em jornal diário. Nós estávamos sujeitos a tantos erros quanto um filme no cinema. O projecionista dormia, abreviava cortes. Eu conhecia muitos gerentes de salas de cinema e me lembro que o gerente do antigo Cinema Vitória, que hoje é uma livraria, me dizia assim: “Não vem ver filme na última sessão aqui. Eu não consigo impedir, mas o operador quer ir embora mais cedo e corta o rolo antes de acabar, e começa o outro rolo já começado, você perde cinco ou seis minutos do filme”. Os filmes estavam sujeitos a esse tipo de interferência. Da mesma maneira, nós que fazíamos o jornal estávamos sujeitos a intervenções, acidentais ou não. Uma vez, num texto que escrevi sobre o Lacombe Lucien, do Louis Malle, eu falava todo o tempo que um jovem queria entrar para a resistência francesa e como não deixaram, ele se tornou um nazista. A revisão ‘corrigiu’ o texto de ‘resistên-

cia’ para ‘residência’! (risos) E mesmo assim, até fazia sentido. Mas foi um absurdo. Um erro de revisão, não é um complô, erros assim ocorrem de quando em quando. Me lembro também de um texto sobre o filme do Diegues, Joanna Francesa, em que eu estava escrevendo “exus, exus” e saiu “eguns, eguns”. Isso sem falar que, provavelmente, escrevendo na Redação, você mesmo comete alguns erros. Quando escrevia em jornal, eu gostava dessa coisa de não ter a palavra definitiva, ter uma estrutura de relação com o cinema e trabalhar dentro dessa estrutura. Isso me agradava muito. Eu escrevia sobre um filme para um sujeito que, ao mesmo tempo em que estava me lendo, podia ver o filme. Ou então, que acabou de ver o filme. Era uma coisa muito viva. Eu gostava desse tipo de relação porque não dá ao crítico uma atitude de sabichão. Ele é alguém que faz parte desse contexto. Há quem fez o filme, quem projeta o filme, quem vende o ingresso, quem

Jornal da ABI – Você chegou a ter algum problema com a ditadura militar? José Carlos Avellar – Todos os jornalistas tiveram problemas, não tenha dúvida. Não saberia dizer exemplos claros, mas uma vez eu fiquei uns tempos sem poder escrever dentro do jornal. Foi em 1977, creio eu. Saiu um pacote do Governo que ficou conhecido no jornal como ‘Pacote de Abril’. Por uma coincidência, naquele momento três filmes brasileiros estrearam nos cinemas do Rio: A Queda, Chuvas de Verão, do Cacá Diegues, e um terceiro filme que eu não me lembro qual foi. Esses filmes ficaram em cartaz mais tempo do que o esperado pelos distribuidores e atrasaram algumas estréias de filmes americanos. Então houve uma reação das distribuidoras americanas, porque havia uma lei que dizia que se entrasse um filme brasileiro e ele fizesse um certo percentual de lotação da sala – 60 ou 70 por cento –, teria que dar uma segunda semana. Se na segunda semana isso se mantivesse, teria de dar uma terceira semana. E esses filmes tiveram uma aceitação de público razoavelmente acima do normal e ficaram em cartaz, atrasando a entrada de alguns filmes americanos. Então, fiz intencionalmente um texto chamado ‘O Pacote de Abril’, no qual falava que esses três filmes brasileiros atrasaram outras estréias. Isso foi lido como uma discussão de um tema proibido pela Censura. Então, fiquei quase um ano sem escrever. Eu me lembro que fui para Cannes em abril e essa cobertura até saiu, porque foi em cima do acontecido, mas depois só voltaram a publicar meus textos perto de fevereiro. Mas isso era uma coisa que acontecia normalmente com todo mundo. Jornal da ABI – Fale um pouco sobre sua experiência como consultor de festivais internacionais. José Carlos Avellar – Ainda sou consultor do Festival de Berlim, desde 1980. Fui consultor dos festivais de San Sebastian, de Montreal, de Guadalajara e, durante três ou quatro anos, do Festival de Tókio. São trabalhos um pouco diferentes o que faço em cada um deles, mas em suma o que os festivais pedem é que eu seja um informante. Eles querem saber o que você acha que tem de interessante no cinema do seu país, ou o que você acha de um filme que você escreveu. Em algum momento, Berlim


me pedia indicações sobre a América Latina, e eu dizia que era muito grande, mas que eu tinha conhecimento sobre dois centros de produção: a do México e da Argentina. Comecei a trabalhar para o Festival de Tókio quando um dos programadores desse festival me conheceu no México. Eu participava de uma mesa-redonda sobre a produção mexicana daquele momento e ele me chamou para ser informante do cinema mexicano, queria saber o meu contato, e quando descobriu que eu era brasileiro, quis informações do cinema brasileiro também. São sempre informações. Você aponta algumas coisas, conhece mais ou menos o que o festival está procurando, se alguma produção vai agradar àquele festival independente de me agradar ou não. Jornal da ABI – Esse trabalho ajuda a colocar o cinema brasileiro em alguns mercados estrangeiros? José Carlos Avellar – Ajuda, é claro, mas não é uma coisa definitiva. Muitas vezes eu insisto com eles no interesse por um determinado filme que não faz parte do grupo de coisas que eles estão procurando, mas a decisão final é deles. O que pode ocorrer de quando em quando é que esses festivais me consultam sobre determinados títulos, e aí eles tomam uma decisão. Minha função é ser informante e, em vários casos, participar de alguma atividade dentro do festival: uma mesa-redonda, uma discussão sobre um filme que está selecionado, uma apresentação do filme eventualmente num debate depois da projeção, são coisas que esses festivais pedem. O trabalho era mais com o grupo de programação do festival. Jornal da ABI – Pode-se dizer que você foi o salvador do Festival de Gramado? José Carlos Avellar – Não, não. Gramado chamou a mim, ao Sérgio Sanches, em 2005, fizemos um contrato de três anos com eles, mas ficamos na verdade, até 2011. Jornal da ABI – Como estava a situação do Festival de Gramado quando você assumiu e que tipo de benefício você conseguiu? José Carlos Avellar – Não sei se podemos falar em benefício. O que eu e o Sanches procuramos fazer foi dar um recorte aos festivais. As pessoas têm a sensação de que um festival de cinema é uma espécie de competição aberta de filmes, e a minha prática como jornalista e como colaborador de festivais é que eles buscam um determinado recorte na produção mundial. Então, nós fomos buscar um recorte na produção brasileira e latino-americana. Eles nos chamaram para fazer um festival internacional em Gramado! Eu não acreditava nesse caminho e o Sanches não concordava muito. Então resolvemos fazer uma competição brasileira e uma competição latino-americana.

Oferecemos para eles, como uma linha possível do festival, trabalhar com um cinema mais marcadamente autoral. Eu acho que, na estrutura da cinematografia, existem realizadores mais autorais e realizadores que se empenham em fazer cinema industrial, dentro de certas regras do comportamento da indústria. As duas coisas são necessárias e possíveis para a existência de uma cinematografia, mas nós achamos que um festival como o de Gramado ia se beneficiar do fato de ter uma seleção um pouco mais autoral, por dois motivos. No caso brasileiro, essa seleção era a que menos tinha espaço de promoção no quadro de exibição no País e poderia estabelecer um diálogo com a produção latino-americana. Ou seja, nós trabalhamos aqui e em vários países latino-americanos com uma produção que não tem uma base industrial como ponto de partida. Não existe um produtor, uma linha de produção, que chame um diretor para ele fazer um projeto. É o diretor que levanta o projeto que ele quer fazer. Então, o que nós temos como base é uma estrutura autoral. Vamos puxar e discutir esses filmes. Podemos encontrar filmes que sejam do agrado maior ou menor do público, mas nos interessa, no festival, fazer uma seleção com o que se considere mais significativo dentro da faixa de produção autoral. Podemos ter um filme de pretensões industriais, que tenha sido produzido dentro dos padrões de narração e padrões temáticos industriais, mas vamos privilegiar a competição, a mostra principal do festival, com essa linha de produção. E uma terceira faixa, intermediária entre o cinema autoral brasileiro e o cinema autoral dos países da América Latina, uma competição aberta de filmes documentários, porque acho que na tradição do cinema autoral brasileiro o documentário é uma presença forte e nós queríamos sublinhar isso. Jornal da ABI – Como você vê a produção de documentários no Brasil? José Carlos Avellar – A produção de documentários no Brasil é tradicionalmente muito inventiva e de qualidade. Temos uma variação fantástica de filmes, de diretores e de projetos. E, hoje em dia, não é uma coisa que se restrinja ao caso brasileiro. Vários países da América Latina estão produzindo documentários de boa qualidade, criativos. Tanto que o cinema mexicano, que é tradicionalmente apoiado numa ficção de regras melodramáticas bem estabelecidas – não se trata sequer de uma ficção realista –, mesmo ele tem hoje um dos grandes realizadores de documentários da América Latina que é o Juan Carlos Rulfo, que fez e continua fazendo filmes muito interessantes. No caso brasileiro, há uma produção altamente significativa de documentários desde o final da década de 1960.

Jornal da ABI – E o cinema nacional, hoje em dia? José Carlos Avellar – É muito diversificado. É claro que o cinema nacional tem as suas características, mas dentro da produção brasileira hoje há variedades de linhas de atuação. Há o filme que conta com o apoio da televisão, que consegue ter uma comunicação pelo menos da sua existência – o público fica sabendo que o filme vai entrar em cartaz –, e há outros filmes que não contam com uma empresa distribuidora. A distribuidora entra no último momento, se associa ao projeto, mas não o toma como um projeto seu, é uma executora de trabalhos. Continua tendo uma coisa boa e uma coisa ruim no cinema de autor: o diretor faz o filme, mas ele mesmo tem que fazer tudo, tem que buscar todas as coisas para o filme. Não tem nenhum apoio. Jornal da ABI – Mas houve um aumento da variedade de filmes e gêneros? José Carlos Avellar – Não sei se aumentou, não. Acho que a maioria dos filmes que estamos produzindo aqui são comédias ligeiras, os que chegam às salas de cinema, que circulam no circuito comercial. Temos muitos filmes de ação, baseados numa tentativa de reproduzir aqui um esquema de estrelismo. Não é que isso seja bom ou ruim, mas é um modelo bem marcante que não é exclusividade brasileira. Tenho a impressão de que nos países europeus acontece a mesma coisa, ou seja, para se defender da invasão do cinema hegemônico existe a produção de uma linha de comédias, para gargalhar ou irônicas, mais leves, que não saem do país, com uma conversa meio cifrada com o espectador. Parecem muito aqueles seriados cômicos de televisão americana, com tudo girando em torno do mundo deles. Isso tem acontecido na produção daqui. Ao mesmo tempo, filmes de autor – e eu exagero um pouco dizendo isso –, a rigor, cada um é um. Mesmo um autor ao fazer o seu segundo ou terceiro filme não se repete. Essa é uma característica comum a uma boa parte de autores. Veja Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, todos do Glauber Rocha. Eles não são nada parecidos entre si. Há uma constante busca de novos desafios, de narração dramática, no cinema de autor. Jornal da ABI – Está acontecendo uma enorme quantidade de festivais pelo Brasil. Você vê isso de forma positiva? José Carlos Avellar – É interessante, sem dúvida. Podemos criticar a atuação de um ou outro festival, podemos criticar a atuação em um ano de um festival, e em outro ano de outro festival, a repetição do modelo de competição, dar prêmios etc, mas é preciso não esquecer que em algumas cidades não passam filmes

brasileiros, a não ser na época do festival. O festival, hoje, é um substituto de um circuito de exibição em salas de cinema absolutamente carente. Existem pequenos e grandes eventos que são substitutos ou estimuladores de um circuito de exibição comercial que, no nosso caso, é muito pequeno para as condições brasileiras. O problema é que quando surgiram a televisão, o vhs, quando vieram essas novidades de consumo de filmes, o mercado de exibição não soube reagir, simplesmente fecharam as salas de cinema, não souberam se adaptar. O enfrentamento de algumas novidades de canais de comunicação gera, de tempos em tempos, a incapacidade de adaptação, de modernização em alguns grupos de exploração. E estamos vivendo agora uma outra mudança: a passagem da projeção em 35mm para a digital vai desmontar uma série de salas que não estão preparadas para se adaptar a essa nova tecnologia. Quem só tem o projetor 35mm e, de repente, recebe uma cópia digital, não tem como exibir. Laboratórios que trabalhavam fazendo cópias em 35mm terão que se adaptar também. Jornal da ABI – Você disse que durante um tempo teve uma atuação na área cultural do cinema. Como foi essa experiência? José Carlos Avellar – No mesmo tempo do Jornal do Brasil, eu tinha uma atuação cultural na Cinemateca do Museu de Arte Moderna. Fazia a programação da Cinemateca. Depois, num certo momento fui vice-diretor da Cinemateca, porque eu dava cursos de cinema lá, e cheguei a ser diretor por um tempo relativamente pequeno, uns dois anos. Passei dois anos, 1986 e 1987, como diretor cultural da Embrafilme, cuidando da parte cultural: festivais de cinema, produção de filmes documentários e de filmes que não se destinavam ao mercado comercial de salas de cinema, e à atividade cultural, publicação de revistas, co-edição de livros, atividades com festivais nacionais e internacionais e com cinematecas. Isso era parte do meu trabalho na Diretoria Cultural da Embrafilme. Depois trabalhei um tempo também na parte cultural da Fundação do Cinema Brasileiro e, de 1993 até 2000, trabalhei na Riofilme, distribuidora de cinema da cidade criada no final de 1992. Comecei a trabalhar com dois programas da Riofilme, que era fazer cinema nas universidades e nas escolas. Jornal da ABI – Funcionou? José Carlos Avellar – Funcionou muito bem. E, depois disso, assumi a direção cultural e, logo, a direção da Riofilme. De 1994 a 2000, eu dirigi a empresa. Jornal da ABI – Você trabalhou com produção e direção? José Carlos Avellar – Bem menos. É mais como um complemento do meu trabalho de crítico, assim como

alguns diretores de quando em quando escrevem algo sobre cinema. Eu fotografava, fui fotógrafo em alguns filmes, montei alguns filmes e fiz alguns filmes em conjunto. Jornal da ABI – Que tipo de filme você gostaria de fazer hoje? José Carlos Avellar – Documentários. Acho que a gente aprende com o documentário todo o tempo. Jornal da ABI – E é quase jornalismo... José Carlos Avellar – É.Digamosque vai um pouco além do jornalismo. Não no sentido que seja mais importante, mas vai além do jornal, da informação imediata, porque tem uma coisa de construçãodramática,decinema,uma construção cinematográfica. E, para mim, sempre foi o que me motivou. Sempre ficava mais interessado em aprender com a história real, como contar uma história no cinema. Jornal da ABI – Se você pudesse destacar o nome de um diretor que resumisse o cinema, quem seria? José Carlos Avellar – É impossível resumir tudo a um diretor. Tem uma infinidade de diretores que me influenciaram, que eu aprecio. Sempre quis estar perto do cinema assim que eu me entendi como gente. Talvez eu tenha me interessado em escrever sobre filmes, e não fazer filmes, depois de ler os textos do Eisenstein, que eram textos tão especiais que me davam a sensação que era tão agradável ler quanto ver um filme. Mas há uma infinidade de diretores, em níveis diferentes, em momentos diferentes, que me influenciam. Nem mesmo como memória imediata eu me arrisco a dizer, porque depois que acabo de dizer penso que esqueci fulano e beltrano. O que me encanta muito é o fenômeno cinematográfico. Eu brinco com os amigos dizendo, mas é uma verdade: prefiro ver um filme ruim a não ver filme nenhum. O filme ruim me ensina justamente porque não deu certo. É tão enriquecedor quanto um filme que me parece ter dado certo. A minha relação é com a expressão cinematográfica. Existe um número enorme de realizadores das mais diferentes épocas, gostos e países que me interessam. Estou tentando trazer para o Instituto Moreira Salles uma parte desses filmes que, num certo momento, achei que disseram alguma coisa que pode rebater em algo atual. Até agora foram quatro filmes: Shoah, de Lanzmann; La Luna, de Bertollucci; Cerimônia de Casamento, de Altman, e Conterrâneos Velhos de Guerra, de Vladimir Carvalho. Os próximos que vamos lançar são Cerimônia Secreta, do Losey; As Praias de Agnès, de Agnès Varda; O Emprego, de Ermanno Olmi; Memórias do Cárcere e Vidas Secas, do Nelson Pereira dos Santos, e São Bernardo, do Leon Hirszman. Colaborou Celso Sabadin

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LIBERDADE DE IMPRENSA

PM do RJ joga máquina de fotógrafo na privada

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Profissionais que cobriam protestos na região foram expulsos por serem “não-índios”. A Federação Nacional dos JornalistasFenaj e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Pará-Sinjor-PA divulgaram no dia 7 de maio declaração conjunta em que repudiam a decisão da Juíza estadual Cristina Sandoval Collyer, da comarca de Altamira, Pará, que impediu o livre acesso da imprensa a um dos canteiros de obras da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Município de Vitória do Xingu. Localizado a 75 quilômetros de Altamira, o canteiro foi ocupado no dia 2 de maio por manifestantes que exigiam a regulamentação do processo de consulta aos povos tradicionais (índios e quilombolas) sobre os empreendimentos que venham a afetar seus interesses, e defendem a paralisação dos projetos hidrelétricos até que sejam ouvidas as comunidades, formadas na maioria por índios de etnia munduruku. No dia seguinte à ocupação a Juíza acatou parcialmente o pedido de reintegração de posse do canteiro Belo Monte feito pelo Consórcio Construtor Belo MonteCCBM, responsável pelas obras da usina. A magistrada afirmou que não tem competência para determinar a desocupação total da área e que o pedido deveria ser encaminhado à Justiça Federal. Contudo, concedeu a reintegração de posse contra os não-índios que estavam no local. Com a medida, foram expulsos da área o fotógrafo Lunaé Parracho, da Reuters; o repórter François Cardona, da Rádio France Internationale-RFI, e o jornalista Ruy Sposati, assessor do Conselho Indigenista Missionário-Cimi, que foi multado em R$ 1 mil, segundo a juíza, por ter contrariado a decisão judicial de 2011, que o proibia, juntamente com outras pessoas, de retornar ao local. O processo de consulta aos povos tradicionais está previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do TrabalhoOIT. O Brasil é signatário da norma internacional, aprovada pelo Congresso Nacional em 20 de junho de 2002, na forma do Decreto nº 143, promulgado pela Presidência da República em 19 de abril de 2004. O texto estabelece, entre outros itens, que devem ser consultados os povos indígenas e os que são regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes e tradições ou por legislação, mediante procedimentos apropriados e por meio de instituições representativas, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das propostas. A Secretaria-Geral da Presidência da República divulgou no dia 6 nota em que afirma: “O Governo federal mantém sua disposição de dialogar com os munduruku para a pactuação de um procedimento

RUY SPOSATI

A Polícia Militar do Estado do Rio abriu inquérito para investigar denúncias de violência durante uma operação no Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, no dia 2 de maio. Quatro pessoas prestaram queixa na 21ª DP (Maré), onde contaram que foram ameaçadas e agredidas por policiais do grupo da elite da PM. A operação tinha como objetivo combater o tráfico de drogas na região. A Defensoria Pública do Estado anunciou no dia seguinte que entraria com uma ação cível contra o Estado pela invasão das casas. O fotógrafo Ubirajara Carvalho informou que quando chegou em casa encontrou as roupas e documentos espalhados, além de móveis revirados. Ele teve a sua câmera fotográfica jogada dentro do vaso sanitário. “Na hora da operação estava acompanhando um fotógrafo italiano na comunidade”, contou o fotógrafo. Ubirajara disse ter sido alertado sobre o caso por vizinhos. “Quando voltei, vi que eles [policiais] tinham entrado na minha casa e quebrado tudo. Estava tudo revirado e a minha máquina fotográfica, material de trabalho, estava dentro do vaso sanitário”, disse, acrescentando que não chegou a ver os policiais porque eles já tinham ido embora. A Defensoria Pública decidiu pedir a responsabilização dos policiais envolvidos e do superior que ordenou a entrada nas residências de moradores sem mandados de busca. “É lamentável que isso seja uma realidade que cada vez mais acontece. Policiais sem qualquer mandado invadem casas de moradores”, disse o coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública estadual, Henrique Guelber. A Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado-Alerj, presidida pelo Deputado Marcelo Freixo (Psol), que acompanha o caso, enviou ofício à Secretaria de Segurança para saber o motivo de os policiais terem entrado nas casas dos moradores sem terem mandado. “Há indícios de que as casas foram invadidas e reviradas”, disse o Delegado da 21ª Delegacia de Polícia, sediada em Bonsucesso, José Pedro Costa, responsável pelas investigações. O Delegado pediu à Corregedoria da Polícia Militar o nome de todos os policiais envolvidos na operação.

Juíza do Pará cria zona proibida para jornalistas em Belo Monte

O correspondente no Brasil da Radio France Internationale-RFI, François Cardona, foi um dos jornalistas impedidos de realizar a cobertura da ocupação do canteiro de obras de Belo Monte.

adequado de consulta a esse povo. Mas queremos dialogar com lideranças legítimas. Na região do Tapajós está em curso uma experiência prática de participação planejada e conjunta, que será uma espécie de laboratório para a regulamentação da Convenção 169 no Brasil. O diálogo com os indígenas servirá de modelo para a regulamentação da consulta prévia, con-

duzida de forma participativa e transparente pela Secretaria-Geral.” Alegando razões de segurança, o Consórcio Construtor Belo Monte paralisou a obra durante vários dias. A Norte Energia, empresa responsável pela instalação e operação da usina hidrelétrica, recorreu à Justiça Federal para obter a reintegração de posse da área.

“Judiciário age contra a justiça” A declaração da Fenaj e do Sinjor-Pará tem este teor: “O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado do Pará e a Federação Nacional dos Jornalistas vêm a público repudiar, veementemente, a forma violenta e antidemocrática com que o fotógrafo da Reuters Lunaé Parracho, o jornalista do Conselho Indigenista Missionário Ruy Sposati e o correspondente da Radio France Internationale-RFI no Brasil, François Cardona, foram retirados do canteiro de obras no Sítio Belo Monte, localizado no Município de Vitória do Xingu, a 60 Km de Altamira, em cumprimento a uma ordem judicial expedida dia 3 de maio deste ano, que determinou a retirada de pessoas não indígenas do local. Cumprindo a decisão, e como não havia pessoas não indígenas no canteiro de obras ligadas ao movimento de ocupação, o oficial de Justiça, acompanhado de força policial (Força Nacional e PM/PA) e de representante da empresa

Norte Energia, resolveu impedir os profissionais de jornalismo que estavam atuando na cobertura do fato, apesar de a referida decisão ser direcionada às partes do processo. A gritante inversão de valores, que condena quem se dispõe a prestar o serviço da denúncia de diversos problemas vividos pela população daquela região à sociedade paraense e brasileira, não é apenas mais um dos capítulos da História onde Judiciário, policiais e empresários, por puro desconhecimento, desrespeitam os profissionais de jornalismo no nosso Estado. É sim um fato lamentável que depõe, lamentavelmente, contra a empresa e o Judiciário paraense, órgão que deveria agir como promotor da Justiça e não o seu contrário. Diante de tal episódio, que demonstra claramente uma brutal agressão ao exercício profissional, o Sindicato acredita que atitudes como esta extrapolam o respeito e atingem a liberdade de

expressão e de imprensa em nosso Estado, tendência desgraçadamente verificada em vários outros Estados, vitimando outros jornalistas e jornais. O Sindicato não permitirá que fatos como estes intimidem a categoria dos jornalistas como um todo, a despeito de vivermos formalmente dentro de um regime democrático de direito, em que a liberdade de expressão acha-se consagrada na Constituição. Em vista disso, o Sindicato dos Jornalistas no Estado do Pará não medirá esforços, dentro do que lhe é possível, no sentido de garantir o livre exercício profissional e o respeito aos profissionais de jornalismo. Ao mesmo tempo, motivar que a imprensa em nosso Estado não se cale diante das violações de prerrogativas dos jornalistas. Belém, 6 de maio de 2013. Sindicato dos Jornalistas no Estado do Pará-Sinjor-PA Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj.”


Em Belo Monte, um histórico de ilegalidades Delegado toma notebook e gravador de repórter durante desocupação de área dos índios Terena, em Mato Grosso do Sul P OR I GOR W ALTZ

Durante uma ação de desocupação de indígenas Terena da fazenda Buriti, na tarde do dia 18 de maio, em Sidrolândia, Mato Grosso do Sul, o Delegado Alcídio de Souza Araújo, da Delegacia de Defesa Institucional (Delinst), Superintendência Regional de Polícia Federal no Estado, apreendeu um notebook e um gravador profissional de áudio do jornalista do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Ruy Sposati, que, assim como outros profissionais de comunicação, cobria a ação. Revelou o jornalista que Araújo se negou a protocolar a apreensão ou a dar qualquer justificativa legal do ato e em nenhum momento apresentou qualquer ordem da Justiça ou de órgão competente para busca e apreensão de equipamentos, que seguiriam em posse da PF. A fazenda foi ocupada por indígenas desde 15 de maio. De acordo com o Cimi, há um histórico de ilegalidades nos despejos das comunidades Terena. Particularmente na Terra Indígena Buriti, em 19 de novembro de 2009, mesmo havendo decisão judicial favo-

rável à posse da comunidade, os indígenas foram violentamente despejados por cerca de 30 fazendeiros e 60 policiais militares. Por temerem que a história se repetisse, os indígenas solicitaram a presença de uma delegação de observadores externos, no sentido de coibir possíveis violações por parte dos aparelhos de repressão do Estado. Ruy conta que chegou à ocupação por volta das 13h acompanhando uma comitiva de observadores externos composta por Cimi, Comissão Permanente de Assuntos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil, Comissão Pastoral da Terra, Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Mato Grosso do Sul e outras instituições, que foram ao local para verificar possíveis violações de direitos humanos. Ainda segundo o jornalista, por volta das 16h30m a Polícia Federal chegou para participar das negociações pela saída dos indígenas da fazenda, objeto de liminar de reintegração de posse concedida pela Justiça. Ruy e outros profissionais da imprensa se aproximaram para acompanhar a conversa, permanecendo a uma certa distância para fotografar o local.

Neste momento, o oficial de Justiça, que cumpria a ordem de despejo, apontou Ruy ao Delegado como sendo fotógrafo do Cimi. “Eu estava me afastando quando fui alcançado pelo Delegado Araújo, que pediu minha identificação e iniciou a revista da minha mochila”, afirmou. Sem justificativa, o delegado tomou seu computador e gravador. De nada teria adiantado o protesto do jornalista, que se identificou como membro da imprensa no exercício legal de sua profissão. “Ele só dizia que atuava no Estado há vários anos e nunca tinha ouvido falar do Cimi, como se isso fosse alguma justificativa para pegar minhas coisas”, afirma Ruy. Sobre o fato de o jornalista ser membro de uma organização social, é preciso reforçar que o Cimi não é réu nem consta de nenhum inquérito que justifique apreensão de equipamentos. Advogados afirmam que a ação do Delegado Araújo é ilegal porque não havia ordem judicial de busca e apreensão, o jornalista não cometeu nenhum ato que justificasse interrogatório e não há nada no Código de Processo Penal que embase seu comportamento. Ao contrário, o artigo 3º,

item J, da Lei nº 4.898 (Direito de Representação e o processo de Responsabilidade Administrativa Civil e Penal) afirma que constitui abuso de autoridade “qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional”. Rotina

“Este não é um caso isolado. Durante a ocupação indígena do plenário da Câmara dos Deputados, em abril deste ano, o jornalista Renato Santana, editor do jornal Porantim, veículo impresso mensal do Cimi, foi espancado pela Polícia Legislativa enquanto realizava cobertura da ação. Na ocupação indígena da usina hidrelétrica Belo Monte, em maio, jornalistas que cobriam o caso foram expulsos pela Polícia Militar e pela Força Nacional, através de uma decisão judicial, e o jornalista de nossa entidade foi multado em mil reais por ter realizado a cobertura dos acontecimentos. Em relação a todos estes casos, entraremos com medidas judiciais e denúncias cabíveis com mandado de segurança na Justiça, representações no Ministério Público Federal e na Corregedoria da Polícia Federal”, afirma Ruy Sposati.

Desembargador censura o Consultor Jurídico Por publicar informações que desagradaram um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, a revista eletrônica Consultor Jurídico está proibida de falar no nome dele. Além de estar há mais de dois anos e meio sob censura, a revista foi condenada, em primeiro grau, a pagar indenização ao magistrado. Em segundo grau, o desembargador pediu a majoração da pena. O julgamento foi suspenso por pedido de vista, mas a indenização por danos morais, por enquanto, está entre R$ 20 mil e R$ 35 mil. O Tribunal discute recurso da ConJur – representada pelos advogados Alexandre Fidalgo e Gislaine Godoy, do escritório Espallargas, Gonzales, Sampaio, Fidalgo Advogados – e do desembargador contra sentença que condenou a revista a pagar R$ 10 mil ao magistrado por causa de uma notícia. O texto, que já foi retirado do ar por ordem judicial, falava sobre a abertura de uma sindicância contra o desembargador pela Corregedoria Nacional de Justiça-CNJ. Ele era acusado pela seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil de ter se recusado a receber um advogado em seu gabinete. Foi informada ao então Corregedor Nacional, Ministro Gilson Dipp, a recusa do desembargador e a corregedoria do CNJ entendeu que havia notícia

de abuso por parte do magistrado e decidiu apurar o caso. No primeiro grau, a Juíza Jacira Jacinto da Silva, da 16ª Vara Cível Central de São Paulo, entendeu que a notícia, replicada da assessoria de imprensa da OAB-SP, ofendeu a honra do desembargador. A decisão, de novembro de 2010, determinou à ConJur que pagasse R$ 10 mil pelos danos morais e R$ 5 mil pelos danos materiais causados ao desembargador, membro e decano da 18ª Câmara de Direito Privado do TJ. Tanto o ConJur quanto o desembargador recorreram: a revista; para cassar a sentença, o juiz, para aumentar o valor da indenização. No TJ de São Paulo, o caso foi para a 10ª Câmara de Direito Privado, na relatoria da Juíza Márcia Regina Dalla Déa Barone, convocada ao Tribunal para ser substituta em segundo grau. Ela aceitou o recurso das duas – o da revista, parcialmente. Cassou a condenação por danos materiais e majorou a indenização por danos morais para R$ 25 mil. Ela entendeu que a divulgação da notícia, além de causar prejuízos à honra do desembargador, constitui ilícito porque divulgou fatos contidos em processo administrativo que corre sob sigilo. O revisor do caso no TJ, Desembargador João Carlos Saletti, concordou com

a definição de ilicitude da notícia e com os argumentos de Márcia Regina, mas votou por majorar ainda mais a indenização: a quantia, por ele, saltaria de R$ 10 mil para R$ 35 mil. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do Desembargador Elcio Trujillo, que não teve acesso aos autos, apenas à discussão da tese e às sustentações orais. Outros alvos

O Desembargador tentou a mesma medida com o site Última Instância, que divulgou a mesma notícia, mas não conseguiu. Por maioria, a 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que a divulgação de fatos verídicos pela imprensa em notícias não causa dano moral e nem pode ferir a honra do magistrado. A questão foi definida por dois votos a um e levada ao TJ pelo Última Instância, já que em primeiro grau o site foi condenado, também pela Juíza Jacira Jacinto da Silva, da 16ª Vara Cível da Capital. O Desembargador Percival Nogueira, relator do caso do Última Instância, que foi defendido pela advogada Taís Gasparian, entendeu que a notícia do site fez juízo de valor sobre o caso, tratando a informação de maneira tendenciosa. Com isso, argumentou, o veículo condi-

cionou o leitor a interpretar o fato de forma distorcida. Mas ele ficou vencido. Os Desembargadores Paulo Alcides Amaral Sales e Francisco Loureiro, revisor e terceiro juiz, respectivamente, discordaram do relator. Paulo Alcides foi o autor do voto vencedor. Afirmou que, por mais que a sindicância contra o desembargador tenha sido arquivada, a notícia de sua abertura não deixou de ser verdade. E noticiar a verdade, ressaltou, é papel da imprensa. Não houve dano moral nem divulgação de informação com a intenção de difamar, concluiu. “Meros dissabores, aborrecimentos ou contrariedades fazem parte do cotidiano da vida, principalmente para quem exerce atividade pública, e a despeito de serem desagradáveis, não podem ser interpretados como doesto à atuação profissional do ofendido”, anotou o desembargador. “Considere-se, por fim, que a imprensa, de forma geral, possui papel preponderante em uma sociedade democrática; patrimônio imaterial, através do qual é possível apurar evolução político-cultural de um povo. Sua atuação livre é garantia do interesse público; afinal, opera como formadora de opinião, espaço natural do pensamento crítico e alternativa à visão oficial dos fatos.” JORNAL DA ABI 390 • MAIO DE 2013

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LIBERDADE DE IMPRENSA

Balanço da Unesco: 90% dos crimes contra jornalistas ficam impunes Ao redor do mundo, a cada semana é assassinado um profissional de comunicação.

Como parte das celebrações do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, transcorrido em 3 de maio, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura-Unesco divulgou levantamento em que aponta que, em média, apenas um entre cada dez crimes cometidos contra profissionais de imprensa é levado a julgamento e termina em punição dos culpados. Informou a entidade que em quase toda semana é registrada ao redor do mundo a morte de mais de um jornalista em decorrência de sua atividade profissional. A estimativa da Unesco é que durante a última década mais de 600 jornalistas tenham sido assassinados em todo o mundo, muitos durante a cobertura de situações não conflituosas. Só no ano de 2012, revelou a Unesco, foram assassinados 121 profissionais de comunicação. Em mensagem conjunta, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, e a Diretora-Geral da Unesco, Irina Bokova, alertam que, além do clima de impunidade dos assassinatos, “muitos jornalistas também sofrem intimidações, ameaças e violências, ou são detidos de forma arbitrária e torturados, freqüentemente sem acesso a recursos legais”. Para marcar a data, a Unesco no Brasil e o Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil-Unic-Rio, lançaram a versão em português do

Plano de Ação das Nações Unidas sobre a Segurança de Jornalistas e a Questão da Impunidade. O conjunto de ações prevê que as agências da Organização das Nações Unidas e seus parceiros trabalhem juntos para criar um ambiente de trabalho mais seguro para os jornalistas. A versão em português do Plano está disponível no site segurancadejornalistas.org. A estratégia de implementação do Plano de Ação inclui ajuda a governos para desenvolver leis de salvaguarda de jornalistas e mecanismos favoráveis à liberdade de expressão e informação; treinamento para jornalistas em segurança e segurança digital; provisão de plano de saúde e seguro de vida; estabelecimento de mecanismos de resposta de emergência em tempo real; descriminalização da difamação; entre outros pontos. Predadores da liberdade

Também por ocasião do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, a organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras-RSF publicou uma lista com 39 “predadores da liberdade de informação”, que inclui chefes de Estado, políticos, líderes religiosos, milícias e organizações criminosas que censuram, prendem, seqüestram, torturam e até matam jornalistas. A compilação conta com cinco novos nomes: o do novo presiden-

te chinês, Xi Jinping; do grupo jihadista sírio Jabhat al-Nusra, ligado à rede terrorista Al-Qaeda; do partido Irmandade Muçulmana do Egito; de grupos armados no Paquistão e dos extremistas religiosos das Ilhas Maldivas. A lista também inclui líderes de regimes ditatoriais, como Kim Jong-un, da Coréia do Norte, Issaias Afeworki, da Eritréia, e Gurbanguly Berdymukhamedov, do Turcomenistão. Nesses países, assim como na Bielorrússia, Vietnã e outras ditaduras da Ásia Central, o silêncio da comunidade internacional “é mais do que culpado, é cúmplice”, diz RSF, que também pede que os Estados Unidos respeitem mais os direitos humanos “escondidos por trás de interesses econômicos e geopolíticos”. Brasil cai no ranking

O relatório informa que o Brasil caiu nove posições no ranking da liberdade de imprensa. A queda do País na escala acontece em razão do assassinato de cinco jornalistas durante o ano de 2012 e por problemas persistentes que prejudicam o pluralismo da mídia, afirma a RSF. O fato é não somente um dado negativo para profissionais brasileiros, mas também exemplo de um padrão de agravamento em países que servem de modelo para os vizinhos. A Rússia, que mantém grande influência nas ex-repúblicas soviéticas, caiu seis posições, enquanto a Índia teve uma queda de nove postos. No Irã, o Presidente Mahmoud Ahmadinejad e o líder supremo da República Islâmica, Ali Khamenei, são acusados de impedir a cobertura independente da elei-

MAUREEN LYNCH

P OR I GOR W ALTZ

Irina Bokova: Muitos jornalistas são detidos de forma arbitrária e torturados.

ção presidencial de 14 de junho. O informe destaca ainda a onda de prisões de jornalistas e detenções registradas desde o “Domingo Negro”, em 27 de janeiro deste ano. Registra o relatório que pelo menos 300 jornalistas continuam presos em cadeias em países com governos ditatoriais ou autoritários. A muitos dos presos não foi feita nenhuma acusação formal nem houve julgamento anterior. Estão há mais de dez anos encarcerados, “submetidos a duras condições de vida ou sem poder ver suas famílias ou ter qualquer contato com o exterior”. No informe também é denunciada a morte de pelo menos 36 jornalistas nos últimos anos na Síria. A Anistia Internacional considera o país como altamente perigoso para o trabalho dos jornalistas, que sofrem abusos tanto por parte de autoridades como por grupos armados da oposição.

Empresário foi o mandante da execução do jornalista Rocaro Divergências político-partidárias motivaram o crime, concluiu a Polícia de Ponta Porã, Mato Grosso do Sul. P OR I GOR W ALTZ

O jornalista Paulo Roberto Cardoso Rodrigues, o Paulo Rocaro, editor do Jornal da Praça, de Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, pode ter sido assassinado por motivação política. Segundo investigações da Polícia Civil da cidade, que faz fronteira com o Paraguai, o empresário Cláudio Rodrigues de Souza, conhecido como “MeiaÁgua”, foi o mandante do crime, ocorrido em 13 de fevereiro de 2012. Os resultados das investigações iniciadas no dia da morte foram apresentados em 7 de maio. O crime teria ocorrido por divergências entre Rocaro e Souza sobre quem seria indicado para concorrer à Pre26

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feitura da cidade pelo PT, partido ao qual os dois eram ligados. Enquanto o jornalista apoiava o nome do ex-Prefeito, Vagner Piantoni, o empresário, dono de postos de gasolina em Ponta Porã, defendia a indicação de sua esposa, Sudalene Alves Machado, para representar a legenda nas eleições municipais. Meia-Água, que também foi condenado por homicídio em São Paulo, com pena de 17 anos de prisão, negou ter sido o mandante do crime em sua página em uma rede social e anunciou que pretendia se apresentar para esclarecer o que classificou como uma “limpeza de gavetas da delegacia” por parte do delegado que comanda as investigações. O empresário

negou estar foragido e diz que pretende conceder uma coletiva à imprensa após contatar o seu advogado. Acerto de contas

No dia 11 de fevereiro de 2011, o empresário teria chamado Rocaro para uma conversa, que não acabou bem, segundo relatório da Polícia. No encontro, o jornalista disse que escreveria matérias sobre a máfia e o crime organizado, referindo-se a supostos negócios de Souza. De acordo com a investigação, foi depois dessa conversa que o empresário planejou o crime, executado, segundo a Polícia, por Luciano Rodrigues de Sou-

za e Hugo Stancatti Ferreira da Silva. No dia 12, por volta das 23h30min, quando o jornalista voltava para casa após uma festa na casa de Piantoni, o carro dele, um Fiat Uno, foi abordado por dois homens em uma motocicleta, os quais dispararam 12 tiros de pistola 9 milímetros contra ele. Quatro balas o atingiram, perfurando o braço direito e o tórax. Rocaro morreu horas depois, na madrugada do dia 13, quando teve uma hemorragia. Hugo desapareceu da cidade após o crime e há informações de que vive em Pedro Juan Caballero, cidade paraguaia vizinha a Ponta Porã. A Polícia não tem informações sobre o paradeiro de Luciano.


DIREITOS HUMANOS

Ex-torturador processa Deputado autor de reportagem-denúncia Agora pastor de uma igreja que fundou, o ex-policial incrimina quem lembra seu passado.

A instalação da Comissão Nacional da Verdade tem levado o Brasil a confrontarse com seu passado mais sombrio, justamente as duas décadas de exceção democrática, em que o País esteve sob o comando dos militares. Em algumas das sessões, como na ocorrida em 10 de maio, em Brasília, fica evidente o quanto permanece tenso o clima entre os personagens daquela época. Nesse dia, em depoimento contraditório, o Coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra chamou de terrorista o Vereador de São Paulo Gilberto Natalini (PV), militante de esquerda nos anos 1960 e 1970. A acusação feita pelo militar, apontado como agente torturador, gerou um bate-boca, que encerrou a sessão. Nem só na capital federal a visita ao passado tem gerado confrontos. O mesmo tem acontecido nos Estados. Na Bahia, por exemplo, ocorreu recentemente um caso sui generis, que bem poderia ser classificado de cômico, se não fosse trágico. Um ex-torturador, hoje convertido em pastor evangélico, processa um jornalista, também Deputado federal pelo PT baiano, acusando-o de ter feito denúncias de suas atividades como agente da repressão durante a ditadura militar. Emiliano José, o Deputado alvo de processo, é autor do livro Premonições de Yaiá, no qual, através de relatos de uma mãe, conta o sofrimento de Renato Afonso de Carvalho, torturado pelo regime. As declarações presentes no livro são atestadas pelo torturado e sua genitora que asseguram a condição de torturador de Átila Brandão, ex-oficial da Polícia Militar da Bahia, de grande currículo na repressão aos estudantes e contra os militantes que combatiam o regime. O hoje pastor, que por vezes atende por ‘bispo’, despeja sua ira contra o jornalismo e a liberdade de expressão. Contra todas as evidências documentais, sentindo-se convenientemente ‘caluniado’, Átila entrou com queixa-crime no Juizado Especial Criminal de Salvador, contra o jornalista Emiliano José, que publicou no jornal A Tarde um texto intitulado A Premonição de Yaiá, em 11 de fevereiro deste ano, com base no depoimento gravado de Maria Helena Rocha Afonso, conhecida como Dona Yaiá. Mãe do ex-preso político e hoje bastante reconhecido professor de História, Renato Afonso, ela faleceu recentemente. “Dona Yaiá me deu essa entrevista quando do processo de produção do livro, com as informações que o próprio Renato, hoje professor universitário, logo depois me confirmou. Átila decidiu fazer a

dizendo que ele torturou, e ponto. Quem tem que provar o contrário, e terá de fazê-lo junto às Comissões da Verdade, é ele. Terá que provar que não torturou”, afirmou Emiliano José ao Jornal da ABI. O parlamentar explica que, segundo a ficha de Rosalindo de Souza, morto e desaparecido na Guerrilha do Araguaia, feita pelo SNI, Átila atuou na repressão a partir de 1968. O advogado Rui Patterson, em seu livro Quem Samba Fica, escreveu que ele era um dos comandantes da repressão na Bahia. “Até quando ele agiu, não sei. Sei que Renato Afonso informa que foi torturado por ele em 1971, no Quartel dos Dendezeiros, da PM da Bahia, Salvador, quando ele ainda era oficial da corporação”, conta Emiliano, ele próprio também vítima dos militares. “Estive preso entre o fim de 1970 e o fim de 1974. Emiliano José: acerto de contas com o torturador. Fui brutalmente torturado pelos Capitães Hemetério Chaves queixa-crime contra o artigo, o que é algo Filho, do Exército, e Gildo Ribeiro, da PMabsolutamente equivocado, sob todos os BA. Marcas desse período, seguramente fitítulos, um desrespeito à Constituição, à caram muitas, superadas pela continuidaliberdade de imprensa. Ele nem sequer se de na luta”. dá ao cuidado, na acusação, de tentar conO Deputado e jornalista fala ainda tornar a Constituição. Agride-a abertasobre como pretende reagir à ação judicimente, como também à liberdade de maal. “Meus advogados estão atentos, a par de nifestação. Tenho uma fonte, duas aliás, saberem tratar-se de um absurdo. Ele quer CARLOS AUGUSTO

P OR P AULO C HICO

tanto a condenação penal como uma indenização de R$ 2 milhões, baseando tudo isso numa estupidez. Volto a dizer, num ataque à liberdade de expressão, o que é inaceitável”. A visão de Emiliano é corroborada pelo Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia, que aponta a iniciativa como uma tentativa do atual pastor de não responder às acusações dos crimes cometidos durante a ditadura. Em nota firmada por seu Presidente, Joviniano Neto, também membro de Coordenação do Comitê Baiano pela Verdade, diz o grupo: “Agressão ao exercício da função de jornalista, à liberdade de manifestação e expressão, tentativa de se recusar a responder diante das acusações de tortura e ações policialescas praticadas durante a ditadura militar. Estes são os significados do processo instaurado pelo ex-policial e atualmente pastor evangélico Átila Brandão contra o professor e jornalista Emiliano José, de reconhecida atuação na área dos direitos humanos e na reconstituição do passado militar. O Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia, na condição de continuador da luta pela Anistia e membro da coordenação do CBV – Comitê Baiano pela Verdade, denuncia ao povo brasileiro esta ação como mais uma das que tentam impedir a reconstituição da verdadeira História do Brasil.” Doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia, professor aposentado da Faculdade de Comunicação, onde lecionou por 25 anos, e escritor com nove livros publicados,

“Parecia que a tortura lhes dava um estranho prazer” São trechos do tocante depoimento de Renato Afonso, publicados em CartaCapital, que o Jornal da ABI reproduz nos dois parágrafos a seguir: “Quando senti a angústia do pau-de-arara, a força tenebrosa dos choques, o terror do afogamento, pensei em Mário Alves, assassinado ali, empalado, no início de 1970. Todos nós, quando caíamos, militantes do BR, tínhamos a pretensão de apenas dar o nosso nome, revelar nossa condição de militante comunista, e nada mais dizer. Como fizera Mário Alves, trucidado, morto da forma mais covarde por aqueles filhos-da-puta. E esta foi a minha primeira atitude. Nessa etapa da tortura, me desculpem falar assim, sentia saudades do corredorpolonês. Ali, ao menos, você não está inteiramente imobilizado, nem está nu, nem está de cabeça pra baixo, nem está sentindo aqueles choques que penetram não o corpo, mas a alma, os choques trespassam a alma, sacodem sua existência mais íntima, que quem nunca passou por isso jamais há de imaginar o que se sente. E os torturadores iam num crescendo, sem contemplação.

Pareciam enlouquecidos. Não sei se simulavam ou se sentiam ódio mesmo. Parecia que a tortura lhes dava um estranho prazer. Eles insistiam que insistiam, queriam mais e mais, além de minhas confirmações, e tome-lhe choque, tomelhe pau-de-arara, tome-lhe afogamentos, tome-lhe pancadaria. Tinham consciência de minha estratégia e de minha tática. Desse caminho, eu estava disposto a não me afastar. E de repente, me tiraram do pau-de-arara, mandaram que eu vestisse a roupa, e me levaram de volta para a cela. Esmola quando é demais o santo desconfia. Eu não entendi. Foi algo assim súbito. Como se tivesse vindo uma ordem de cima. E fora de fato isso: é que meu pai, Orlando Afonso de Carvalho, procurador de Justiça em Salvador, acionou seus contatos na Igreja Católica, e conseguiu com que o Cardeal do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Sales, viesse à Barão de Mesquita, falasse com o general, e pedisse a preservação da minha vida. A partir disso, não fui mais torturado, e tenho convicção de que se não fosse isso seria morto lá”.

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DIREITOS HUMANOS Emiliano José, de 67 anos, é paulista de nascimento. Ele recebeu no plenário da Câmara Federal o apoio de diversos colegas, como o Deputado Geraldo Simões, também do PT-BA, em discurso proferido em 14 de maio. “Jornalista de profissão, Emiliano construiu sua carreira nas Redações da Tribuna da Bahia, Jornal da Bahia, Estado de S. Paulo, O Globo, revista Visão, jornais Movimento e Em Tempo, e ainda assina reportagens nas revistas CartaCapital e Caros Amigos, além de sites como Carta Maior e Terra Magazine. Quinzenalmente, publica artigos no jornal A Tarde”, iniciou o parlamentar, para prosseguir. Premonição da mãe

“Dona Yaiá, numa premonição, em 1971, sentiu que o filho Renato, preso no quartel da Polícia Militar dos Dendezeiros, situado na Cidade Baixa, bairro do Senhor do Bonfim, corria perigo, coisa corriqueira naqueles tempos sombrios. Pegou um táxi, saltou no Quartel, passou pelo sentinela e começou a fazer barulho para ver seu filho. Interrompeu assim uma sessão de tortura comandada pelo então oficial PM Átila Brandão. A mãe salvou a vida de seu filho, o ex-preso político Renato Afonso, que confirmou suas denúncias, em minucioso depoimento, também prestado ao jornalista, que o publicou num texto intitulado Corpo Amputado Querendo se Recompor, no site da CartaCapital”. Antes de enfrentar a crueldade de Átila Brandão, o filho de Dona Yaiá já havia sido torturado no Rio de Janeiro, no temido quartel da Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, tendo sido salvo da morte por intervenção do Cardeal Eugênio Sales. Era fevereiro de 1971, e ele tinha, então, apenas 21 anos. Completaria 22 logo depois, em março. Com a entrada em cena de Dom Eugênio, Renato foi transferido para Salvador. No quartel dos Dendezeiros, da Polícia Militar, já recuperado, é que reapareceu o torturador Átila Brandão, o mesmo que os estudantes quiseram expulsar da universidade federal, em confrontos, em 1968. Chegou ao quartel com uma equipe de tortura. Renato foi retirado de sua cela. Logo Átila começou a comandar a pancadaria, mas não contava com a chegada súbita de Dona Yaiá, que foi direto para a sala onde o filho estava sendo torturado, como se soubesse exatamente o local. Não entrou, barrada pelo sentinela. Este, no entanto, avisou o oficial, que se retirou com a equipe que o acompanhava, levando consigo os equipamentos de tortura. Não gostou, irritou-se. Mal havia começado a sessão. O antigo torturador hoje se autodenomina bispo de uma igreja que outros pastores batistas dizem que ele criou apenas para si próprio: Igreja Batista do Caminho das Árvores, localizada na capital baiana. Caminho das Árvores? Resta saber, árvores de que tipo? A partir de que elas floresceram? Quais frutos amargos darão? 28

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Um ano da Comissão da Verdade: 15 audiências, 268 depoimentos Suas investigações permitiram levantar o mapa de 36 centros onde eram torturados e mortos os contestadores da ditadura militar. MARCELO CAMARGO/ABR

P OR P AULO C HICO

Ao completar um ano de trabalho, a Comissão Nacional da Verdade divulgou, em 21 de maio, um balanço de suas atividades. Mais do que números, chamou a atenção a declaração do Professor Paulo Sérgio Pinheiro, um dos integrantes do colegiado. “Os documentos analisados até agora permitem confirmar que a prática da tortura como técnica de interrogatório nos centros do regime é anterior à luta armada, portanto desde 1964, logo após a implantação do golpe, e não a partir de 1968, com o Ato Institucional-5”. A afirmação derruba a falsa tese de que os militares teriam lançado mão da prática como espécie de resposta legítima às ações terroristas de guerrilheiros – numa batalha suja travada em nome da preservação do País da ‘ameaça comunista.” Com as denúncias das torturas pela imprensa, que ainda não estava censurada pelo AI-5, os militares chegaram mesmo a reduzir a intensidade da prática em 1965, após relatório feito por Ernesto Geisel, então Chefe de Gabinete do Presidente Castelo Branco. Geisel, no lugar de reconhecer a existência de tais crimes, encobriu-os. Forjou o relatório solicitado por Castelo Branco e, assim, assegurou a impunidade para os torturadores. “Em 1969, com a imprensa calada pela mordaça da censura, a tortura explodiu no País. Mas desde 1964 ela já ocorria regularmente. Não se enganem. A tortura foi um procedimento padrão de repressão, desde sempre”, acusa Paulo Sérgio Pinheiro. Natural do Rio de Janeiro, Pinheiro é doutor em Ciência Política pela Universidade de Paris, na França, além de professor titular de Ciência Política e pesquisador associado ao Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo. Sempre atuou na área da defesa dos direito humanos, inclusive na Onu. É com esse currículo que responde às freqüentes críticas feitas à CNV – tais como a de que ela teria um perfil de vingança e revanchismo, e não de resgate histórico. Ou ainda rebate notas divulgadas pela imprensa, dando conta de que a Presidente Dilma Rousseff estaria insatisfeita com os rumos dos trabalhos do grupo. “Vi alguns comentários ‘psicografados’ sobre o que ocorre dentro da Comissão, de que a Presidente esperava maior repercussão pública de nossas ações. Isso não existe. Todas essas notinhas ‘mediúnicas’ de que a Dilma não está gostando da Comissão só estão se fazendo por telepatia. O que a Presidente me diz não é isso. Ela entende

Paulo Sérgio Pinheiro: A tortura como técnica de interrogatório foi praticada pelo regime desde 1964.

que, da mesma maneira que uma investigação criminal não pode ser acompanhada em tempo real na internet, alguns depoimentos não podem ser públicos. Assim foi na África do Sul, no Chile, no Peru. Não achamos haver a necessidade de informar cada passo do que fazemos. O excesso de publicidade, ao contrário, pode impedirnos de chegar à verdade”, defendeu-se. Balanço

A Comissão Nacional da Verdade realizou 15 audiências públicas em nove unidades da Federação e percorreu as cinco regiões do País. Já recolheu 268 depoimentos. Desse total, a maioria (77,2%, ou 207) foi concedida por civis, vítimas e testemunhas das ações dos militares. Os agentes e colaboradores do regime – como o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – prestaram 37 depoimentos (13,8% do total). Outros 24 relatos foram concedidos por vítimas existentes entre os próprio militares. “Os testemunhos orais têm fornecido informações extremamente relevantes. Essencialmente dinâmicos e quase sempre dotados de forte carga emocional, os depoimentos são apenas a parte verbal de um processo maior, em que fatos invariavelmente marcantes e emoções são revividos em todas as suas dimensões”, aponta a Comissão, no relatório em que resume seu primeiro ano de atividades. Segundo este estudo, as atrocidades cometidas nos porões da ditadura contavam com pleno conhecimento das altas patentes militares. De 1964 a 1985, a política de extermínio e tortura de adversários políticos foi organizada por asses-

sores diretos dos Presidentes da República, além de oficiais das Forças Armadas que estavam na ponta da pirâmide. Já nos primeiros anos após o golpe contra o Presidente João Goulart, a partir de 1964, o regime montou uma série de centros de detenção e tortura, em unidades do Exército ou civis. Mapa preliminar dos centros de detenção e de tortura indica que em sete Estados foram identificados 36 desses locais, entre os quais até universidades – casos verificados no Rio de Janeiro (na Universidade Federal Rural, em Seropédica) e em Pernambuco (UFPE). Instalações da Petrobras, como refinarias, e navios também eram usados para esses fins sórdidos. Esses levantamentos foram conduzidos pela equipe da Professora Heloísa Starling, assessora da Comissão e coordenadora do Projeto República, da Universidade Federal de Minas Gerais. A data inicial para a apresentação do relatório final da Comissão, com o encerramento de suas atividades, era 17 de maio de 2014. Na prática, mantendo-se este prazo, ela teria apenas mais seis meses de investigação, já que a previsão é de que a fase de elaboração do documento dure seis meses. Diante disso, a Presidente Dilma resolveu, em 14 de maio, prorrogar a duração da Comissão até dezembro do próximo ano – na esperança de que isso permita a redação de um relatório mais encorpado, incluindo a conclusão de algumas investigações importantes e que enfrentam gargalos, como a participação de empresários brasileiros no financiamento a atos terroristas durante os anos de chumbo.


DIVULGAÇÃO

Lembranças da execução de Vlado Fotógrafo Silvaldo fala da última foto do jornalista

O fotógrafo Silvaldo Leung Vieira não reconheceu nenhuma das salas do prédio: “Tive a informação de que tudo foi mudado.”

P OR P AULO C HICO

Em São Paulo, o dia 27 de maio foi marcado por um reencontro de um personagem histórico com o passado. Um triste passado. Silvaldo Leung Vieira, autor da foto do falso suicídio de Vladimir Herzog, retornou à sede do Doi-Codi onde, em 25 de outubro de 1975, então aos 22 anos, fotografou o corpo inerte do jornalista, preso pelo pescoço às grades de uma cela. O próprio Silvaldo, radicado há mais de três décadas nos Estados Unidos, contou essa experiência no Jornal da ABI número 375, de fevereiro de 2012. A pedido da Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, o fotógrafo voltou ao local do registro. Silvaldo percorreu as celas e salas de tortura para tentar reconhecer o local onde o corpo de Herzog estava naquela ocasião, mas devido ao tempo passado – quase 38 anos – e às reformas feitas no prédio, disse não ser capaz de reconhecer o local exato. “Não reconheci nenhuma das salas do interior do prédio. Tive a informação de que tudo foi mudado. Na minha concepção era um lugar escuro, com um muro alto e um portão de ferro também alto. E, de dentro da sala, a única coisa que eu lembro é que a janela ficava em frente à porta. Eram alas... Era possível perceber que havia celas de um lado e do outro. Naquele episódio, não cheguei a me locomover no local”, disse. O fotógrafo explicou que ao tirar a foto o que mais lhe chamou a atenção foram os dois pés de Herzog encostados, apoiados no chão. Algo incomum, incompatível com a alegação de suicídio por enforcamento. “Uma fotografia que aparentemente era um treinamento para um jovem estudante, que eu era na época, passou então a ser algo sigiloso. A orientação era que não comentássemos absolutamente nada do que tínhamos visto ali”, recorda Silvaldo, que confessa ter temido por sua própria segurança. Diante da encenação montada pelos militares, preferiu apenas fazer o registro, adotando a lei do silêncio sobre o caso. Sem problemas; a imagem feita por ele já dizia tudo. Em decorrência do retorno ao local da execução, Silvaldo voltou a falar com o Jornal da ABI. “Recebi um convite para um depoimento na Comissão da Verdade da Câmara de São Paulo, por parte de seu presidente, o Vereador Gilberto Natalini (PV). E logo me coloquei à inteira disposição. Espero que minhas lembranças possam ajudar em algo. Como já disse, ainda

carrego um triste sentimento de ter sido usado para montar essas mentiras... Quanto à ida ao Doi-Codi, não sei até que ponto ajudei. Só estive lá duas vezes. Ambas há mais de 35 anos... E foram passagens rápidas e tensas”. Falando da Comissão Nacional da Verdade, o autor da foto histórica, que evidencia o assassinato de Vlado nas dependências do Doi-Codi, mostra-se descrente em relação aos resultados concretos de todas as investigações. “Nesse primeiro ano da Comissão, pelo que eu tenho acompanhado, não acredito que ela vá funcionar muito. Afinal, não há como penalizar os culpados pelos cri-

mes. Sempre achei que é preciso haver uma revisão da Lei da Anistia, pois os que a elaboraram fizeram uso exatamente desse benefiício, se anistiando. Quer dizer, eles disseram ‘eu me perdôo’ pelo que fiz e, por tabela, ‘também perdôo minhas vítimas’. Uma coisa mal feita, que representa total desrespeito às vítimas do regime militar e seus familiares”. Voltando a falar de Vladimir Herzog, Silvaldo considera que o seu vulto protagonizou o ponto alto da CNV até aqui. Foi em resposta a uma solicitação dessa Comissão que o Juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos

do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, determinou a emissão do novo atestado de óbito do jornalista. Onde antes se lia “enforcamento por asfixia mecânica”, passou a constar, como causa da morte, “lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do segundo Exército”. O novo documento foi entregue à família do Diretor de Jornalismo da TV Cultura em solenidade realizada no dia 15 de março deste ano. “Essa correção do atestado de óbito, na minha opinião, foi o trabalho mais importante da Comissão Nacional da Verdade até agora”, disse Silvaldo.

Comissão da Verdade RJ ouvirá vítimas de torturas Programa “Testemunhas da Verdade” recolherá depoimentos de pessoas que sofreram violências durante a ditadura. Instalada no dia 8 de maio em ato na sede da Ordem dos Advogados do BrasilSeção do Estado do Rio de Janeiro, com a presença da Ministra dos Direitos Humanos, Deputada Maria do Rosário Nunes, e do Governador Sérgio Cabral, a Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro vai recolher depoimentos de pessoas que foram vítimas de torturas durante a ditadura militar, como subsídio para os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – informou o advogado Wadih Damous, Presidente da CV-RJ. O Vice-Presidente da OAB-RJ, Ronaldo Cramer, destacou a importância da OAB para os trabalhos a serem desenvolvidos pela CV-RJ. “A Comissão terá

Os integrantes da Comissão Estadual Além de Wadih Damous, a Comissão Estadual da Verdade contará com os seguintes titulares: ÁLVARO MACHADO CALDAS Professor da Faculdade de Comunicação da Puc/RJ. Jornalista com atuação em diversos jornais de circulação nacional.

muito trabalho porque no Rio de Janeiro aconteceu boa parte dos crimes da ditadura. A OAB do Rio estará à disposição da Comissão”, disse Cramer. Em seu discurso de posse, Damous, que foi Presidente da OAB-RJ, anunciou que esses relatos integrarão o programa ‘Testemunhas da Verdade’, cujo primeiro depoimento foi marcado para 23 de maio. A testemunha: professora Dulce Pandolfi, atual pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas-FGV. Dulce foi presa durante o regime militar e utilizada como cobaia no treinamento de torturadores. “Os professores ensinavam todos os tipos de tortura e Dulce foi a es-

ENY RAIMUNDO MOREIRA Co-autora do livro Brasil Nunca Mais, é presidente e fundadora do Comitê Brasileiro pela Anistia. GERALDO CÂNDIDO DA SILVA Presidente do Sindicato dos Metroviários de 1981 a 1987, foi Senador em 1999. Integra o Coletivo-RJ Memória, Verdade e Justiça, representando a Associação Nacional dos

colhida para sofrer todo tipo de barbaridade”, disse Wadih Damous. O objetivo da Comissão Estadual da Verdade é acompanhar e subsidiar a Comissão Nacional da Verdade no exame e esclarecimento das graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, contribuindo para a efetivação da justiça, do direito à memória e da verdade histórica. A Comissão RJ conta com apoio administrativo e financeiro da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos e terá uma sala no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, em Botafogo, o que lhe facilitará a consulta aos documentos preservados no acervo da instituição. (Igor Waltz)

Anistiados Políticos, Aposentados e Pensionistas (Anapap). MARCELO CERQUEIRA Deputado federal em 1986, defendeu centenas de acusados com base na Lei de Segurança Nacional entre 1968 e 1978. É professor da Universidade Federal Fluminense. Foi Procurador-Geral do Instituto Nacional de Reforma Agrária-Incra; Procurador-Geral do

Conselho Administrativo de Defesa Econômica-Cade e ProcuradorGeral da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro-Alerj. NADINE MONTEIRO BORGES Primeira Coordenadora do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos-OEA. É doutoranda da Universidade Federal Fluminense.

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PROMOÇÃO

FILME RESSUSCITA O NP POR UM DIA FOTOS: REPRODUÇÃO

Editado em São Paulo entre 1963 e 2001, o falecido jornal Notícias Populares é utilizado como apelo para o lançamento de um longa-metragem. P OR C ELSO S ABADIN

Os leitores da Folha de S.Paulo foram surpreendidos no dia 24 de maio por um caderno no mínimo inusitado: encartada no jornal estava nada menos que uma edição de oito páginas do histórico Notícias Populares, o vespertino diário que marcou a imprensa de 1963 até 2001 com seu noticiário sanguinolento e matérias de gosto pra lá de duvidoso. Em letras garrafais, como sempre, a manchete dessa inusitada edição gritava: Treta por rabo de saia termina em tiros. As páginas internas seguiam a mesma linha, com títulos como Lá no fundo, toda guerra é por uma calcinha. O que estaria fazendo, dentro da Folha, uma edição de um jornal que não circula há mais de uma década? Um segundo olhar, mais atento, revela: trata-se de uma criativa peça publicitária desenvolvida para o lançamento do filme brasileiro Faroeste Caboclo, de René Sampaio. “O filme tem tudo a ver com os temas que o Notícias Populares abordava: amor, traição, sangue, briga e sexo”, explica Wilson Feitosa, diretor-geral da Europa Filmes, empresa que coproduz e distribui o longa. “Além, disso, a música de Renato Russo na qual o roteiro se baseia foi escrita na época em que o NP ainda circulava, ou seja, a adequação é total”, diz Feitosa. Para recriar o espírito e o estilo bem particulares do NP, a Agência Click Isobar, autora da idéia, reuniu antigos redatores e editores do jornal para esta edição especial. Ebrahim Ramadan, José Luiz Proença, Antônio Marcos Soldera, José Luiz da Conceição e outros profissioO ex-Secretário de Redação do NP, José Luis Proença, assistiu ao filme junto com os antigos companheiros de Redação. nais da “era de ouro” do Notícias Populares foram convidados para assistir ao filme e desenvolver as noFeitosa está consciente que os mais jotícias como se elas tivessem acontecido no vens não alcançarão exatamente a dimenambiente proposto pelo roteiro. O resulsão da brincadeira, já que o Notícias Populares tado é de uma marcante veracidade em renão circula há 12 anos. Mas isso não o prelação às edições “verdadeiras” do NP, onde ocupa: “O público que queremos atingir nenhum detalhe foi esquecido: até o hocom esta campanha é bem mais amplo. Preróscopo e os “anúncios” da edição têm retendemos alcançar pessoas de todas as idalação com a trama de Faroeste Caboclo. des, pois a Legião Urbana é uma banda que “O projeto resgata um veículo que marextrapolou todas as faixas etárias e é um cou uma geração inteira, assim como o filme sucesso até hoje nas diversas camadas da conta uma história que ouvimos desde sempopulação. Haja visto, por exemplo, o supre nas músicas da Legião Urbana”, afirma cesso do filme Somos tão Jovens, baseado na Eduardo Battiston, diretor de criação da vida de Renato Russo”, comenta. Click Isobar. A campanha também se estenQuando perguntado se lia o Notícias Pode para a internet e redes sociais, onde utipulares, Feitosa abre um sorriso: “Claro! Eu liza linguagem semelhante à do NP. No site comprava para procurar emprego de office do filme, por exemplo, há a ameaça de que boy. O jornal era bem baratinho e na épovai “cair o bilau” de quem não compartilhar. ca ainda não existia o Primeiramão, que era 30

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O Editor-Chefe Ebrahim Ramadan (acima), o Repórter Policial Antonio Marcos Soldera (abaixo à esquerda) e o fotógrafo José Luiz da Conceição (à direita), que trabalharam no Notícias Populares, se reuniram novamente para editar a nova “última” edição, promocional do filme Faroeste Caboclo.

gratuito. Muito menos a internet”, brinca. Lançado em 29 de maio em 450 salas de cinema em todo o País (o Brasil tem 2.200 salas em sua totalidade), Faroeste Caboclo tem uma expectativa de vender cerca de 2 milhões de ingressos.

Ironicamente, esta edição “publicitária” do Notícias Populares sai exatamente no ano em que o jornal completaria meio século, se estivesse ativo. E com 300 mil exemplares, tiragem que jamais alcançou sequer em seus melhores dias de “Bebê Diabo”.

UMA HISTÓRIA QUE NASCEU NA ROMÊNIA Notícias Populares entrou para o imaginário coletivo como “o jornal que quando se espreme sai sangue”. Manchetes sensacionalistas usando e abusando do duplo sentido, fotografias de mulheres seminuas e matérias explorando sexo e violência eram os pratos principais do diário. Mas há um lado geralmente esquecido do NP: sua ousadia vanguardista. Muito antes de virar moda em outros veículos de maior penetração (com o perdão do trocadilho), o Notícias Populares já abordava abertamente assuntos do universo gay e prestava orientações sexuais aos seus leitores. Rosely Sayão, atualmente na Folha de S. Paulo, mantinha no NP a coluna Tudo Sobre Sexo, uma das mais lidas, ao lado do Espaço Gay. E mais: Sob o pseudônimo de Voltarie de Souza, Marcelo Coelho escrevia contos sobre temas polêmicos, enquanto vários jornalistas se

revezavam para manter a coluna Histórias da Boca, que trazia crônicas de nítida inspiração rodrigueana. Mas é claro que o grande chamariz do jornal eram mesmo suas manchetes espalhafatosamente impressas em letras garrafais que podiam ser lidas nas bancas mesmo por quem estava do outro lado da rua. Bicha põe rosquinha no seguro, Aumento de merda na poupança e Broxa torra o pênis na tomada eram alguns dos títulos que ruborizavam os mais conservadores, na época em que as pessoas ainda enrubesciam. Muitas dessas manchetes não tinham, por assim dizer, eufemisticamente falando, o rigor da verdade jornalística. Cachorro fez mal à moça, por exemplo, falava prosaicamente de uma garota intoxicada por um cachorro-quente; Violada no auditório noticiava o fato de o cantor Sérgio Ricardo ter atirado sua viola contra o público do


CARTAS DOS LEITORES

REPERCUSSÃO

• Caríssimo Maurício Azêdo, Festival de Música da Record, em 1967. E Traficantes derrubam avião no Jardim Ângela era sobre um garoto que transportava drogas entre o consumidor e traficante, conhecido na gíria local como “avião”. Em 1968, no auge da Jovem Guarda, a Redação do NP ficou sabendo que um repórter da TV Record estava tentando localizar o cantor Roberto Carlos para uma entrevista, mas não obteve sucesso. Foi o suficiente para o jornal, no dia seguinte, estampar a manchete Despareceu Roberto Carlos. O sucesso de vendas foi estrondoso. No dia seguinte, com tudo esclarecido, veio a nova manchete: Acharam Roberto Carlos. Era impossível não imaginar o quanto a Redação do Notícias Populares devia se divertir. Poucos casos, porém, ficaram tão famosos como o do Bebê Diabo. Em 10 de maio de 1975, na região do ABC paulista, uma criança havia nascido com duas saliências na testa, problema rapidamente corrigido através de uma operação realizada na própria maternidade. O repórter do Notícias Populares, Marco Antônio Montadon, foi ao local e logo verificou que nada

havia ali que justificasse uma notícia. Decidiu, então, inventar. E com a manchete Nasceu o Diabo em São Paulo, o jornal publicou, no dia seguinte, sua crônica de horror: “Durante um parto incrivelmente fantástico e cheio de mistérios, correria e pânico por parte de enfermeiros e médicos, uma senhora deu a luz num hospital de São Bernardo do Campo a uma estranha criatura, com aparência sobrenatural, que tem todas as características do Diabo, em carne e osso. O bebezinho, que já nasceu falando e ameaçou sua mãe de morte, tem o corpo totalmente cheio de pelos, dois chifres na cabeça e um rabo de aproximadamente cinco centímetros, além de um olhar feroz, que causa medo e arrepios”. Estava criada a saga do Bebê Diabo. Com repercussão e venda em bancas desproporcionais, o jornal decidiu manter a “brincadeira”, e diariamente, por quase um mês, publicou mais notícias sobre a saga do monstrinho, que chegou até a ser “fotografado” fugindo pelos telhados paulistas. E o mais divertido: o slogan de Notícias Populares era “Nada mais que a verdade”.

JORNALISTA PRESO POR FAZER OPOSIÇÃO AO REGIME É ENVIADO PARA SIBÉRIA Se ainda estivesse circulando, o NP completaria meio século no próximo dia 15 de outubro. Foi nesta data, em 1963, que o jornal idealizado e editado por Jean Mellé chegava às bancas pela primeira vez. Mellé era um jornalista romeno que fundou em Bucareste o jornal Momentul, que fazia oposição ao regime de Stálin. Em 1947, ele foi preso e enviado para a Sibéria após publicar uma edição com a manchete Russos estão roubando o pão do povo. Após dez anos de trabalhos forçados nas minas de carvão, Mellé foi finalmente libertado e emigrou para o Brasil em 1959. Chegando na capital paulista, trabalha em O Estado de S. Paulo e Última Hora, enquanto acalenta o sonho de criar uma publicação que combatesse frontalmente o periódico de Samuel Wainer. Conhece então Herbert Levy, Presidente da UDN, e com o apoio dos empresários José Ermírio de Moraes Filho, Luiz Pinto Thomaz e João Arruda, viabiliza finalmente

o seu diário de direita, que se oporia ao Última Hora, na época pró-João Goulart. A primeira edição de Notícias Populares saiu com 8 mil exemplares. A inspiração vinha das publicações sensacionalistas norte-americanas, que priorizavam matérias que criassem rápida e imediata identificação com o grande público, como catástrofes, tragédias, salvamentos espetaculares, mortes violentas. O gênero teve imediata aceitação do público brasileiro, e o Notícias Populares chegou a superar a marca dos 120 mil exemplares diários, marcando fortemente seu estilo no jornalismo brasileiro. Décadas depois, com as vendas do jornal despencando e perdendo cada vez mais seus leitores para os noticiários policialescos da televisão, o jornal foi fechado. A última edição de Notícias Populares circulou melancolicamente em 20 de janeiro de 2001. Jean Mellé faleceu em 1971.

queria muito agradecer o espaço enorme que o Jornal da ABI, cada dia melhor, me deu. A repercussão foi maravilhosa. Não merecia tanto, mas gostei muito. Além disso queria dizer que cancelei, por motivo de saúde, a viagem que faria no dia 24 agora. E também por essa razão, não fui votar. Estou um pouco melhor, me medicando, e assim que estiver me sentindo bem vou aí para lhe dar um abraço pela reeleição e pela atitude tomada diante das irresponsáveis e grosseiras acusações que a diretoria – você, particularmente, já que os acusadores eram também da diretoria – da ABI sofreu. Uma continuação de sua boa administração é o que espero de você e da turma que assumiu agora. A volta de alguns sócios ao Conselho me alegrou muito. Um abraço de ANA ARRUDA CALLADO

SOBREVIVENTES

Estimado Presidente e amigo Maurício Azêdo: Somos todos sobreviventes, como você, que acaba de nos dar mais um exemplo de coragem e tenacidade, resistindo às agressões dos traidores e pusilânimes. Parabéns, Maurício. Abraços afetuosos de todos os conselheiros de São Paulo (Fausto Camunha, George Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra) e da nossa assistente Rosani Abou Adal. Com o abraço amigo do RODOLFO KONDER

fiquei contra a parede e soltei o verbo, sem ilusão e sem resquício de ressentimento ou coisa ainda pior. Vivi o jornalismo como vida e profissão. Vivi – e só agora me dou conta – um período em que se processou a redução do número de jornais e a metamorfose das empresas editoras que deram outro tom ao jornalismo e profissionalizaram a atividade dos jornalistas. Mas este já é outro capítulo. Os elogios que tenho recebido, inclusive aqui na FSB, da parte de seus diretores e companheiros do vício de ler e comentar jornais, me levaram a reler a entrevista e lamentar quanto podia ter arredondado nas opiniões de que me dei conta quando as vi impressas. O fim daquele jornalismo que se fez na primeira metade do Século 20 e o salto da segunda, ainda por ser levantado com os personagens que o fizeram, bem merecem uma empreitada para expor, de maneira didática e com outras vozes, diferenças que não podem ser esquecidas. Queria dividir com você as palavras com que tenho sido premiado no texto em que, por seu intermédio, resumi uma experiência que continua porque nada é imutável. O Chiquinho, Presidente da FSB, é um encantado pelo tema do jornalismo, e gostou da entrevista que é o espelho de uma época que ficou para trás e, no caso da imprensa, uma lição da própria História. Muito obrigado pela fidelidade com que captou uma época de transição do ainda principal meio de divulgação à luz do tempo. Muito obrigado pela lealdade e fidelidade, com o abraço do WILSON FIGUEIREDO

CARLOS VEREZA

Prezados senhores editores. Diante do artigo do senhor Carlos Vereza, Jornal da ABI 388 - Pág. 7, em que o mesmo considera que “métodos” dos ditadores de 1964 são repetidos pelos Governos Lula/Dilma, manifesto ao mesmo votos de pronto restabelecimento. Atenciosamente, JORNALISTA VALDIR SUZIN Prezado Valdir Suzin, Há um equívoco em seus reparos ao artigo do ator Carlos Vereza, pois em nenhum momento ele faz menção aos Governos Dilma-Lula. Não há por que, por isso, encaminhar-lhe os votos de pronto restabelecimento que Você formula. Cordialmente MAURÍCIO AZÊDO PRESIDENTE DA ABI

GRANDE VALIA

• A Biblioteca da Faculdades Integradas

AGRADECIMENTO

Meu caro Paulo Chico, Têm sido tantos elogios pela entrevista no Jornal da ABI que não posso mais adiar o agradecimento que lhe devo. Afinal, foi você quem conseguiu me destravar a língua e apelar à memória, que é a melhor amiga que fiz na vida. Pela primeira vez,

Rio Branco, instituição de ensino superior, localizada na Cidade de São Paulo na Rua José Maria de Faria, 111 – Lapa, Cep 05038-190; manifesta grande interesse no recebimento do Jornal ABI. Esta obra será de grande valia para o enriquecimento do nosso acervo atendendo principalmente os alunos do curso de Comunicação Social, com habilitação em jornalismo, editoração, relações públicas, propaganda e publicidade e Rádio e Televisão. Atenciosamente, ALICE K. MATSUMOTO COORDENADORA DA BIBLIOTECA

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HISTÓRIA

Tropicalismo. Quem lê tanta notícia? Documentário reúne imagens e depoimentos sobre um dos momentos mais polêmicos da música popular brasileira e reaviva o debate sobre o velho confronto entre a novidade e a rotina.

DIVULGAÇÃO

Os Mutantes, Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa: revolução cultural.

P OR C ELSO S ABADIN O lançamento do documentário Tropicália, primeiro nos cinemas e posteriormente em dvd, mais que comemorar os 45 anos da histórica primeira apresentação da música Alegria, Alegria, reacende o interminável debate da força do novo contra a comodidade do estabelecido, dentro da conservadora sociedade brasileira. Se hoje o filme foi recebido de braços abertos, o Tropicalismo em si, nos anos 1960, não teve tanta sorte, provocando polêmicas também na nossa imprensa. Já nos bastidores do Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, o então repórter da rádio e da tv que promoviam o evento, Reale Jr., pergunta a Caetano Veloso, imediatamente após ele ter interpretado Alegria, Alegria: “O que levou você a fazer uma música falando de Claudia Cardinale, Coca-Cola e guerrilha?”. Caetano responde: “Foram a Claudia Cardinale, a Coca-Cola e a guerrilha...”. O Tro-

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picalismo engatinhava e a imprensa tinha dificuldades em decifrá-lo. Da mesma forma que seus criadores não estavam muito preocupados em explicá-lo. Dentro de seu eterno intuito de classificar, rotular e colocar tudo em caixinhas, os críticos da época e a imprensa em geral foram surpreendidos com um novo estilo musical e comportamental que desafiava tudo o que já havia sido feito até então. Sons eletrônicos, letras aparentemente desconexas e cabelos compridos impactaram a todos. Público e imprensa. O Jornal do Brasil, por exemplo, em matéria não assinada publicada em 17 de setembro de 1968, dá uma boa dimensão da repercussão do Tropicalismo, ao relatar o acontecido no Teatro da Universidade Católica no dia anterior: “Caetano Veloso apareceu para defender sua música com as mesmas roupas que usara na primeira eliminatória: calça e blusa de plástico. A reação do público ao vê-lo foi muito mais violenta que a anterior, pois, além de vaiá-lo

ensurdecedoramente, passou a lhe dirigir palavrões. Caetano Veloso entrou amedrontado para cantar, acompanhado do conjunto Os Mutantes. Quando lhe atiraram papel, ovos e tomates, ele procurou desviar-se, mas era impossível ouvi-lo. Foi a partir daí que desistiu de cantar”. O jornal também dá aspas ao protesto do cantor diante da platéia: “Vocês querem tomar o poder no Brasil, mas no fundo são iguais ao pessoal do Comando de Caça aos Comunistas”. A reportagem também classifica Caetano como “o líder do tropicalismo”. Talvez as novas gerações, que a tudo aplaudem indiscriminadamente, tenham dificuldades em captar o conceito de que, naquela época pré-Facebook, vaias e protestos eram reais, não virtuais, comuns nas ruas, em shows e teatros. Inclusive contra o Tropicalismo, que não foi um sucesso imediato, muito menos unânime. Tanto que o Jornal da Tarde, em 4 de outubro de 1967, publica também em texto não asssinado: “Gilberto Gil sabe que poderá levar outra vaia sex-

ta-feira, no Teatro Paramount, quando apresentar sua música Domingo no Parque, acompanhado de guitarras elétricas, consideradas como uma heresia entre os defensores radicais da música popular de raiz” Para se defender, na mesma matéria, Gil cita o grupo de maior sucesso daquela época: “Na música pop de hoje, os Beatles passam a utilizar todos os tipos de música e de instrumentação eruditas que não pertenciam ao que chamavam ‘iê-iê-iê’. Estão evoluindo sempre, enquanto no Brasil a própria música chamada jovem se torna conservadora. E na música popular brasileira o conservadorismo é muito pior. Se pensássemos sempre assim, estaríamos tocando nossas músicas com instrumentos indígenas”. O toque divertido do texto fica por conta da forma pela qual Gil se refere a Os Mutantes: “São dois rapazes com guitarra e contrabaixo elétricos e uma moça tocando pratos”. Oswaldianamente Mas enquanto parte do público vaia, parte da crítica elogia. Em generoso texto de não menos generosos 9 mil toques (ou seis laudas, como se dizia naquela época em que os jornais ainda publicavam críticas de seis laudas), o escritor, poeta e ensaísta Augusto de Campos tece importantes elogios em O Estado de S.Paulo de 25 de novembro de 1967: “Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, parece-me assumir, neste momento, uma importância semelhante a Desafinado, como expressão de uma tomada de posição crítica em face dos rumos da música popular brasileira (...) A explosão de Alegria, Alegria soa como um novo desabafo-manifesto, mais do que necessário, ante a crise de insegurança que, gerando outros preconceitos, tomou conta da música popular brasileira e ameaçou interromper a sua marcha evolutiva (...). Caetano Veloso e Gilberto Gil, com Alegria, Alegria e Domingo no Parque, se propuseram, oswaldianamente, ‘deglutir ’ o que há de novo nesses movimentos de massa e de juventude e incorporar as conquistas da moderna música popular ao seu próprio campo de pesquisa, sem, por isso, abdicar dos pressupostos formais de suas composições, que se assentam, com nitidez, em raízes musicais nordestinas. Pode-se dizer que Alegria, Alegria e Domingo no Parque representam duas faces complementares de uma mesma atitude, de um mesmo movimento no sentido de livrar a música nacional do ‘sistema fechado’ de preconceitos supostamente ‘nacionalistas’, mas na verdade apenas solipsistas e isolacionistas, e dar-lhe, outra vez, como nos tempos áureos da bossa-nova, condições de liberdade para a pesquisa e a experimentação, essenciais, mesmo nas manifestações artísticas de largo consumo, como é a música popular, para evitar a estagnação”. Contudo, as palavras apaixonadas de Augusto de Campos não fazem do Tropicalismo uma unanimidade. O sociólogo Maurício Vinhas, citado em reportagem da revista O Cruzeiro de 20 de abril de 1968, diz que o movimento “pode ser uma boa mercadoria que já está alcançando altos preços nos mais vulgares veículos de comunicação de massas e talvez – como querem alguns de seus profetas – algo que chegue até a produzir divisas, como parece que Carmen Miranda (aí também uma precursora do Tropicalismo?) produziu a seu tempo. Mas nada


disso, nada desses cacoetes alambicados e gongóricos tem a ver com o verdadeiro Brasil, o Brasil jovem e trabalhador, o Brasil de amanhã”. Na mesma matéria, Vinhas define o Tropicalismo como “essa cafajestada sob encomenda”, expressão que a repórter Arlette Neves incorpora no título de sua matéria, na citada O Cruzeiro: “Tropicalismo: movimento, mito, escola ou cafajestada sob encomenda?”. Já o crítico Nelson Motta, figura obrigatória em toda e qualquer análise de música brasileira, publica um texto confuso no Última Hora de 5 de fevereiro de 1968. Na matéria, Motta solta pérolas como “Já é tempo de abandonar as influências estrangeiras e criar nossos próprios grandes místicos. Quem tem Arigó não precisa de Muriaachi Maeshi para nada. Lançados cartazes com grandes figuras nacionais do Tropicalismo, para todo mundo colocar em suas salas gigantescas fotografias de Ademar de Barros, Leonel Brizola, Benedito Valadares, grandes ases precursores do Tropicalismo” e “Enquanto existir Tom Jobim e Vinicius, o Tropicalismo estará furado”. Talvez o pró-

prio articulista estivesse tentando ser Tropicalista em sua matéria. Por outro lado, em matéria publicada em 30 de outubro de 1968, a Folha de S. Paulo lamenta o fato de a televisão brasileira ter demorado tanto tempo (“mais de um ano após o estouro de Alegria, Alegria e Domingo no Parque”, diz o texto) para dedicar um programa ao Tropicalismo. A reportagem, sem assinatura, diz que “somente um ano depois de discutidos, condenados e elogiados Caetano Veloso e Gilberto Gil conseguem um programa na televisão. Só anteontem em Divino, Maravilhoso, na TV Tupi, o público telespectador, ou a massa média, começa a apreciar mais extensamente a estética nova que os baianos se propõem e propõem comunicar”. A matéria talvez atribua à televisão uma importância desproporcional: “Só agora, com programa regular, sistemático, Caetano e Gil têm oportunidade de testar o seu novo comportamento musical. Da aceitação popular ou não, da deglutição ou não, do consumo ou não”. De qualquer maneira, seria mesmo impossível que um movimento tão revolu-

O movimento tropicalista inspirou até a publicidade e ajudou a vender mais produtos.

cionário quanto o Tropicalismo, deflagrado numa sociedade tão conservadora como a brasileira, numa época tão efervescente como os anos 1960, tivesse passado pela imprensa sem estas saudáveis doses de polêmica.

Marcelo Machado, o diretor: “O Tropicalismo era inevitável” DIVULGAÇÃO

Muito mais do que um documentário musical, Tropicália fala de política, de sociedade, ditadura e de um dos períodos mais conturbados da História do Brasil. Como diz Tom Zé num dos depoimentos dentro do filme, pode até parecer que a letra da música Baby, de Caetano Veloso (“você precisa saber da piscina, da margarina, da gasolina”), seja uma bobagem, “mas é uma baita malandragem para driblar a censura”, afirma. Para que ele falasse mais de seu filme e das transformações políticas e sociais que o envolveram, o Jornal da ABI conversou com Marcelo Machado, diretor e co-roteirista do filme.

Jornal da ABI – Você fala em ruptura, e a gente sente no filme Tropicália uma ruptura estética: ele começa num determinado ritmo até a chegada do AI-5. E depois disso o filme muda. Marcelo – Sim, como o AI-5 representou, entre outras coisas, a prisão do Gilberto Gil e do Caetano Veloso, e o conseqüente rompimento de tudo o que vinha acontecendo até ali, o filme foi realmente construído um pouco assim, em duas partes, onde o AI-5 representa uma quebra. Eu precisava ter elementos para marcar isso. O filme apresenta elementos para construir o que vem antes do AI-5 e elementos que digam o que vem depois.

Jornal da ABI – Se não houvesse ditadura, se não houvesse o AI-5, haveria o movimento Tropicalista? Marcelo [pensativo] – É difícil responder isso. Vou dizer que sim. Claro que o contexto é muito importante para tudo o que está acontecendo, mas eu quero crer que este contexto acabaria acontecendo de algum outro jeito, porque são as forças do Brasil que estão ali em jogo. Tudo aquilo, de alguma forma, toda aquela confluência de situações acabaria acontecendo talvez um pouco mais cedo, talvez um pouco mais tarde, mas era inevitável que acontecesse. Jornal da ABI – O que você chama de “as forças do Brasil”? Marcelo – O Brasil estava se modernizando, vinha da primeira metade do século 20 com a industrialização, a Bossa Nova e a inauguração de Brasília meio que coroando todo este processo. Um Brasil moderno. Aí acontece um rompimento abrupto com a democracia, que é o golpe de 1964. Eu acredito que este enrijecimento, a censura, o AI-5, tudo o que veio com o golpe dá uma quebrada no ânimo do Brasil naquela primeira metade de século 20. Estas eram as forças políticas, econômicas. Agora, há

fluência dessas forças não acontecesse ali, naquele momento, tudo acabaria estourando mais para frente. Era inevitável.

Marcelo Machado: Há um caldo de cultura que é a própria identidade brasileira.

um caldo de cultura que é até anterior à questão da industrialização e do golpe, que é a própria identidade brasileira, nosso jeito de ser, o nosso caráter. Por isso que eu acho que, se a con-

Jornal da ABI – Aliás, uma das coisas que mais chamam atenção no filme é o material de arquivo, de pesquisa. Onde foram pesquisadas todas aquelas imagens? Algumas são inéditas, não? Marcelo – Tem bastante material inédito. O filme é baseado em muita pesquisa de acervos e arquivos. Para isso tivemos dois pesquisadores, Eloá Chouzal, de São Paulo, e Antônio Venâncio, no Rio, que pesquisaram em todo tipo de acervo organizado, como Museu de Arte Moderna-Mam, Cinemateca, TV Record, TV Globo, e também fora do Brasil, como na Rádio e Televisão Portuguesa-RTP e Instituto Nacional do Audiovisual, na França. Contatamos também documentaristas como o inglês Murray Lerner, que filmou o histórico show na Ilha de Wight. Houve pesquisas ainda em arquivos não organizados, nas casas das pessoas envolvidas, suas memórias, álbuns de fotografia, rolinhos de super-8 perdidos em gavetas, tudo isso foi vasculhado por mais de ano, sob a coordenação de

Talvez chame mais a atenção o fato de o movimento causar repercussões ainda até hoje, como mostrou o portal Uol, em fevereiro deste ano, com sua matéria intitulada Lobão Diz que Tropicália Estimulou o Atraso e a Preguiça. No texto sem assinatura, o cantor afirma que “tinha aversão à coisa da antropofagia, da Semana de 22, da precariedade, da malandragem, da preguiça. Sempre fui avesso a esse tipo de coisa e a Tropicália é uma subsidiária, né? Quem sentou no colo do Alexandre Pires foi o Caetano Veloso, o brega e micareta, todos esses subgrupos, esse sertanejo, esse pop brega. Isso vem da complacência intelectual da semana de 22”, conclui. Da minha parte, como jornalista que na época era garoto e que acompanhou tudo isso com euforia de menino, prefiro fazer minhas as palavras que Augusto de Campos publicou na citada matéria de seis laudas do antigo Estadão: “E foi com esse sentido que o compositor, na primeira apresentação da música, triunfando sobre o desagrado de um público preconcebido (...), terminou, ao final, por exclamar, braços abertos à platéia conquistada: “Por que não?”.

Chouzal e Venâncio. Foi um garimpo onde encontramos várias pepitas. Jornal da ABI – O que há de inédito? Marcelo – A primeira cena do filme, com Raul Solnado, Gil e Caetano, é um material inédito da RTP. Eles estão no programa Zip Zip, da tv portuguesa. Outros exemplos: o lançamento do disco Panis et Circensis, com todos os tropicalistas juntos no Rio de Janeiro; o material dos Mutantes na tv francesa; a festinha de aniversário que acontece em Londres, quando eles estão no exílio... Nem fiz a conta do que é inédito ou não. Jornal da ABI – Existe uma espécie de mantra na cultura brasileira, que fica repetindo que “o povo brasileiro não tem memória”, mas você está provando que tem, não? Talvez ela esteja um pouco desorganizada, mas existe? Marcelo – Todo povo tem memória, não há povo sem memória. A questão é como você cuida da sua memória. Acho que a gente cuida um pouco mal da nossa. Nosso esforço no filme é de trazer esse momento, recuperar essa memória. Esforço é uma boa palavra porque deu um trabalhão, não só para encontrar, mas também para recuperar, limpar, restaurar, pois muitas coisas estão muito mal guardadas. É uma pena. Por outro lado, vejo que existe um esforço não só meu, mas de outros documentaristas musicais de fazer perpetuar esta riqueza que é a música brasileira. Acho que a gente está numa onda que já vem acontecendo. Quero crer que a gente foi bem esforçado, organizado e bastante profissional, porque a Bossa Nova Filmes [empresa produtora de Tropicália] deu uma estrutura incrível pra gente fazer este trabalho. Jornal da ABI – Você falou de outros documentaristas, muitos deles reclamam da questão de direitos autorais. Alguns projetos acabam inviabilizados por causa disso. Você teve problema nessa área? Marcelo – Nós não tivemos problemas porque quando a gente começou este projeto, nas minhas primeiras conversas com as produtoras Denise Gomes e Paula Cosenza, ficou

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HISTÓRIA TROPICALISMO. QUEM LÊ TANTA NOTÍCIA? DIVULGAÇÃO

muito clara a enorme importância de uma boa assessoria jurídica. Se não tivéssemos uma eficiente assessoria jurídica durante o processo de fazer o filme, chegaríamos ao final e teríamos de iniciar do zero toda uma outra jornada, que é a da liberação dos direitos. Tudo foi feito com assessoria jurídica e com critérios. Parte das vezes a gente estabelecia o valor que a iríamos pagar e não ficamos ouvindo o que eles pediam. Esta foi uma das medidas tomadas, mas houve muitas outras, como não deixar as negociações para o final. Costumo dizer que o making of deste filme é um advogado sentado numa mesa, pendurado no telefone [risos]. O processo de liberação desses direitos, que muitas vezes é complicado, aqui no Brasil é um pouco enrolado, os critérios são um pouco tortos, mas desde o começo a gente fez direitinho, muito cuidadosamente. Jornal da ABI – Imagino que uma das grandes dificuldades do filme foi amarrar tantos assuntos, que muitas vezes não são fáceis de serem explicados rapidamente, como a política da época, a questão da ditadura. Você conseguiu dar um panorama muito bem completo disso tudo. Como foi esse trabalho de condensar tanta coisa em pouco mais de uma hora e meia? Marcelo – É um grande mérito da montagem. Digo que o filme foi feito na ilha de edição, foi estabelecido na montagem. Não quer dizer que a gente não tivesse trabalhado em roteiro, é claro que trabalhamos, e muito, mas sempre com um grau de insatisfação. Sempre parto do princípio de que o documentário tem que ter uma forma, porque o documentarista é conteudista, ele vem com o conteúdo, mas ele tem que estabelecer claramente uma forma, e eu busquei várias formas. Mas também não cheguei a me satisfazer com várias delas. Podemos dizer que eu “descobri” o filme na montagem. Jornal da ABI – O que ficou de fora? Marcelo – Ah, muita coisa! O movimento Tropicalista são muitos personagens, muitos acontecimentos e não dá para abraçar o mundo. É fundamental que se faça um recorte no tema. O primeiro recorte que temos é cronológico, temporal. Trabalhamos com material apenas de 1967, 1968 e 1969, porque todo o Tropicalismo aconteceu em menos de dois anos. Só com esta opção, muita coisa de 1972, 1973 já ficou de fora, e mesmo assim o universo ainda era muito grande, com muitos personagens. Só para dar uma idéia de alguns exemplos de temas que ficaram de fora: primeiro, o show da Rhodia. Existe um momento do Tropicalismo em que a Rhodia banca um desfile de modas para lançar o nylon no Brasil. Foi um grande happening, e como todo mundo fala muito disso, começamos um trabalho para chegar na fonte, que era o cenógrafo Ciro Del Nero. Infelizmente ele faleceu no meio do processo, e a nossa fonte para contar um pouco desta história se foi. Também ficaram de fora, mas vão fazer parte do dvd, duas longas entrevistas, uma com o maestro Julio Medaglia, outra com Manoel Barenbein, produtor dos discos dos tropicalistas. São pessoas fundamentais que eu não consegui encaixar na constelação que armei ali para contar, em 80 e poucos minutos, toda essa história. Como o Julio é muito racional e dá uma explicação completa, a gente vai deixar esta verdadeira aula para os extras do dvd, assim como todos os lados de produção dos discos contados pelo Barenbein. Ficou de fora também José Agrippino de Paula, um persona-

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tiva, dirige também, fez recentemente um especial sobre Serge Gainsburg. Ariene Ferreira, produtora e toda essa base de negociação, direitos e a estrutura para isso funcionar. O Ricardo Fernandes, diretor de arte, nesse filme a montagem e a arte trabalharam em salas uma do lado da outra, cada solução da arte surgia num problema de montagem, ele vai andando junto. Então não é assim, você chega no fim da montagem e chama o cara para fazer os gráficos, e isso deu uma riqueza muito grande também. É um monte de gente, nem dá pra falar de todos aqui, fora o pessoal para fazer o restauro, enfim, é um time grande mesmo jogando junto. As pessoas me cumprimentam, eu adoro, fico com ego inchado, mas o filme é um trabalho coletivo, de vários egos inchados. Não há como fazer se não for com bastante gente. Jornal da ABI – Na sessão de imprensa de Tropicália houve uma piada: como a Ancine liberou um documentário musical que não tem depoimento do Nelson Motta? Marcelo [risos] – Já ouvi essa piada. Quando eu era menino, eu ligava no jornal da uma da tarde da Globo, e estava lá o Nelson Motta fazendo crítica de música. Eu adorava aquilo! Lembro que minha mãe falava “Nossa, esse moço é tão simpático!”. E realmente o Nelson passou a vida inteira apoiando, produzindo música brasileira, e é um especialista. Não acho estranho que ele esteja em tantos filmes, porque ele sabe o que fala. Ele é o pai da matéria. Mas eu não queria ter especialistas, jornalistas e críticos no filme. Queria falar só com os artistas, que mesmo assim já é muita gente. Caetano Veloso, líder do movimento: Divino, maravilhoso.

gem fundamental, espécie de ideólogo do movimento, escritor, e diretor de teatro. Eu precisava ilustrar o Zé Agrippino e no filme A Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla, tinha uma linda seqüência com ele saindo de um rio, vestido meio de guerrilheiro, uma coisa perfeita exatamente de 1967. Mas este material nós não conseguimos comprar porque o produtor Antônio Polo Galante, que atualmente mora em Curitiba, sempre bancou seus próprios filmes; quando fui negociar, ele me disse: “Meu filho, cada centavo que você está vendo aí no filme, eu botei do bolso. Ou você paga o que eu quero, ou você não vai ficar com nada”. Não tivemos orçamento e não compramos o material dele, que era um absurdo de caro! Jornal da ABI – A Rita Lee não quis falar? Marcelo – Não, ela não quis falar. Ela não chegou explicitamente a negar, mas não respondeu aos nossos pedidos, ficou em silêncio. Eu já tinha ouvido histórias que a Rita tinha ressalvas e alguns problemas com esse período, e a gente respeitou isso. Como tínhamos acesso a outras entrevistas dela, preferimos usar este material, e não ficar insistindo. Jornal da ABI – Você tem uma carreira ampla, uma visão muito forte em publicidade. Isso ajuda, complementa, atrapalha ou não tem relação na hora de fazer um longa para cinema? Marcelo – Eu sou o que eu sou. Vim da televisão, do vídeo, passei pela publicidade, e agora estou fazendo documentários, e esse filme foi pensando no cinema mesmo. Acho que o que eu faço tem um pouquinho de tudo que eu já passei. Com certeza, a publicidade também influencia

o meu jeito de olhar para as coisas. Eu não sou um puro, não sou um cineasta que viveu só no cinema. Sou uma pessoa que já fez um pouco de tudo na área audiovisual, e acho que o filme representa muito bem esse híbrido que eu sou, uma formação misturada no audiovisual. Em alguns momentos cheguei até a me incomodar com isso, mas hoje tenho até um certo orgulho de ter atuado em tantas áreas assim, e acho que meu trabalho tem que expressar exatamente o que eu sou, não tentar ser este cineasta que eu não sou. Sou da televisão, do vídeo. Jornal da ABI – Você veio, junto com o Fernando Meirelles, daquela safra da produtora Olhar Eletrônico, que promoveu experiências e novidades em vídeo nos anos 1980. Isto deve ter dado uma base incrível naquele momento em que o homevideo estava começando. Marcelo – Foi um começo superentusiasmante. O grupo era muito bom, com Fernando Meirelles, Marcelo Tas, Paulo Morelli, Renato Barbieri, Hugo Prata, Adriano Goldman, Márcia Meirelles, Ione Sassa, Davilson Brasileiro, Marina Abs André, Roberto D’Ávila, Dario Vizeu. Isso tem a ver com Tropicalismo também, esta história de trabalhar juntos. A história de que “viva a rapaziada, o gênio é uma grande besteira”, esse filme também é de um time. Sou o maestro, mas o montador é quase um co-autor desse filme. Eu tinha um assistente, o Fernando Honesko, que hoje é diretor, montador, um cara de um nível bom, dirigiu o curta Funeral Cigano, premiado em Gramado. O time é grande! Tem o Osvaldo Santana, montador de Bruna Surfistinha, do Natimorto. A Paula Cosenza, que é produtora execu-

Jornal da ABI – A aula do “especialista” foi dada pelo Tom Zé, não? Marcelo – Tom Zé é professor, PhD em tropicalismo. O cara fez pós-graduação, mestrado, doutorado. Genial o Tom Zé. Jornal da ABI – É possível dirigir Tom Zé ou basta ligar a câmera que ele faz tudo sozinho? Marcelo [risos] – É possível. Você cria uma situação, mas ele reage a essa situação. Ele reage criativamente, ele surpreende sempre. Eu montei uma salinha escura com uma tela grande para tentar emocionar os artistas. Ele quebra tudo, bagunça o coreto. O incrível é o seguinte: você vê o material bruto dessa aula do Tom Zé, faz sentido da primeira à última letra, toda aquela loucura tem por trás uma inteligência incrível. Legal um cara inteligente, mas irreverente, divertido... um cara louco. Gosto muito do Tom Zé. Jornal da ABI – Já dá para pensar em novos projetos? Marcelo – Há alguns anos tenho trabalhado alguns documentários sobre o processo de transformação urbana que está acontecendo em Araraquara, minha cidade natal. O primeiro é O Apito do Trem. Eles estão tirando a ferrovia do centro da cidade e eu tenho acompanhado isso. Numa outra escala, eu produzo na cidade, levanto dinheiro na cidade e exibo na cidade. É outra coisa não ter distribuição nacional, mas faço com o mesmo carinho. Venho gravando há algum tempo o trabalho de Benjamim Taubkin, que é um pianista, um músico incrível. Também estou fazendo uma série com a O2, que é para NatGeo, e claro, cortejando uns temas para um próximo longa-metragem, mas ainda não tenho um tema fechado. Então, não vou adiantar sobre aquilo que nem eu sei.


LANÇAMENTO

Uma biblioteca é mais do que a soma dos livros P OR R ITA B RAGA

MUNIR AHMED

Num mundo de pressa, de informações em caracteres contados e de textos mais do que curtos, ainda são lançados livros com a disposição de discutir coisas tão subjetivas como tempo, espaço, hábitos e até “manias” de leitura. E sabemos que há leitores, ou seja, há pessoas que investem uma parte considerável da vida nesse desafio milenar de imergir em entrelinhas. Eles podem ter suas diferentes fases e interesses, mas há alguns traços que nos ajudam a identificar quem é um “leitor”: a disposição, apesar do cansaço (fato que leva muita gente a aproveitar a insônia em companhia de um livro); a curiosidade (como na “história de um condenado pelo Terror revolucionário lendo um livro na carroça que o conduzia ao cadafalso, e que marcou a página em que parara antes de subir para a guilhotina”), ou ainda, a saudade do silêncio no meio de um dia corrido. Resumindo: para ser um bom leitor, a coragem de se entregar à introspecção é um diferencial discreto, mas recorrente. Para essas pessoas, o livro Fantasmas na Biblioteca – A Arte de Viver Entre Livros (Civilização Brasileira, 2013) pode ser um deleite, pois tem o tom ensimesmado que cedo ou tarde arrebata e reflete qualquer leitor. O título já é um trocadilho feliz, pois “fantasma”, Segundo o Petit Larousse, é o nome dado à “folha ou cartão que se põe no lugar de um livro saído da prateleira de uma biblioteca, de um documento emprestado.” Há algo do velho Bradbury nessa brincadeira. Somos nós leitores os fantasmas colocados no lugar dos livros ausentes, dos que lemos e esquecemos, dos que ainda vamos ler, “sem falar nos livros que nos fazem perguntar, ao serem relidos, como pudemos amá-los.” (página 67) Em uma prosa coloquial e intimista, Jacques Bonnet – editor, tradutor e um dos maiores especialistas em bibliofilia e Teoria da Literatura – nos convida a passear por seus pensamentos, por suas estantes e, claro, por sua erudição. Uma maneira de apresentar este autor do livro é colocá-lo ao lado de José Mindlin, Umberto Eco e Alberto Manguel. Mas isso diz menos do que apresentar uma pitada de sua própria escrita recheada de citações: “Leio sem escolher, apenas para entrar em contato.” (citando Walter Benjamin, na página 64) “A leitura de um livro de Cervantes, de Flaubert, de Schopenhauer, de Melville, de Whitman, de Stevenson ou de Spino-

za é uma experiência tão forte quanto viajar ou se apaixonar” (citando Jorge Luís Borges, na página 73) É possível que alguém se incomode com opção editorial de inserir as traduções dos títulos no corpo do texto, evitando as notas de rodapé e as referências bibliográficas tão caras aos confrades desse círculo. Ainda assim, não chega a ser um problema para quem gosta de vasculhar os sebos da cidade. Difícil mesmo é apresentar este livro, tão denso e singelo, ao mesmo tempo. A tentativa de seguir os princípios do autor aliada à brasileiríssima pressa editorial alcança conclusão similar: “Escrever um artigo de jornal sobre uma obra que acabou de ser lançada exige – pelo menos no que se refere a mim – duas leituras: a primeira para descobrir o livro enquanto leitor inocente, a segunda para pôr ordem nas impressões e idéias. E no fim das contas, de fato, esquecemos a maior parte daquilo que lemos.” (página 61) Esse esquecimento tem a ver com a quantidade de informações e com o ritmo acelerado da nossa Era Multimídia, mas alimenta a vontade de reler algumas faces da bibliofilia (e da bibliomania) mostradas em seus nove capítulos: Dezenas de Milhares de Livros; Bibliomanias; Ar-

rumar e Classificar; Práticas de Leitura; De Onde Vêm?; Ler as Imagens; Personagens Reais e Personagens Fictícios; O Mundo ao Seu Alcance e Fantasmas de Bibliotecas. Vale dizer que perguntas outrora já comentadas por seus companheiros bibliófilos são respondidas com a singularidade de quem revela experiências pessoais. Ao comentar, por exemplo, os dilemas da classificação de seus milhares de livros em uma biblioteca pessoal, vemos que todo critério tem sua brecha, sua exceção, sem contar inúmeros “autores que parecem ter um prazer malandro em subverter todo princípio de classificação”. Pode ser que o leitor até compreenda sua angústia, mas na maior parte dos casos sabe-se que não há por que se privar do riso. Quem já ouviu Manguel confessando que, “em viagem, ouvia seus livros o chamarem no meio da noite”, sente vontade de puxar

conversa e compartilhar também seus próprios “causos” de leitor ou leitora. “Instauram-se então relações estranhas entre o bibliômano e seus milhares de livros. As mesmas relações que existem entre o jardineiro e uma trepadeira invasora: a planta se desenvolve por si própria, de modo invisível a olho nu, mas com uma progressão aparente no fim de algumas semanas; o homem, a não ser que a corte, só pode indicar a direção que deseja vê-la tomar. Assim, as bibliotecas prolíficas se autonomizam, tornam-se seres vivos.” (página 38) É exatamente isso que Bonnet faz: conta suas histórias com os livros e a partir dos livros. E o que é mais bonito disso tudo: por ser leitor, ele torna-se livro. “Ler me cansa tão pouco quanto a um peixe nadar ou a um pássaro voar. Às vezes, tenho a impressão de não ter verdadeiramente começado a existir a não ser pela leitura, e espero morrer, como Segalen na floresta de Huelgoat, com um livro na mão.” (página 69) Aliás, para terminar (ou para “começar”), como convite à leitura, fica aqui a pérola selecionada como epígrafe: “Depois do prazer de possuir livros, não há quase nenhum mais doce do que falar deles.” (citando Charles Nodier, página 7)

Trechos “[...] a biblioteca obedece a uma economia mais vasta das relações com o mundo. Deve, para de fato representar seu papel, ser abandonada de vez em quando, provocar saudades e felicidade no retorno. De longe, ela se idealiza e ajuda a suportar as dificuldades das viagens. Espera-nos e se enriquece com antecedência graças àquilo que vamos levar para ela.” (página 128)

“[...] O importante não é ler depressa, mas ler cada livro com a velocidade que ele merece. É tão prejudicial passar tempo demais com alguns quanto ler outros rapidamente demais. Há livros que se dão a conhecer pelo folhear; outros que apreendemos somente depois da segunda ou terceira leitura; outros ainda que serão lidos a vida inteira com proveito. [...]” (página 61)

Fantasmas na biblioteca – A arte de viver entre livros, Jacques Bonnet, Civilização Brasileira.

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HUMOR

O início do século revisitado Charges de Angeli sobre Oriente Médio para a Folha de S.Paulo são reunidas em volume indispensável para fãs e estudiosos do tema. P OR G ONÇALO J UNIOR A modernização da imprensa a partir do século 19 e principalmente nos últimos cem anos, que permitiu reprodução cada vez melhor de imagens, ampliou consideravelmente as formas de se contar um fato, um período, a História de uma nação, um país ou da própria Humanidade. E de refletir com mais profundidade também a respeito do passado e do presente. Não é de hoje que o humor gráfico faz isso em jornais e revistas, graças às caricaturas, aos cartuns, às charges ou às tiras de quadrinhos. Mas essa forma de expressão artística ainda espera o merecido reconhecimento desse papel, como se nota ao ler obras como O Lixo da História, do cartunista paulistano Angeli, que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras. Certamente não será tratado como um volume que supere a posição de mera coletânea para provocar risos, embora seu autor aposte mais na reflexão, com seus personagens reais retratados de modo tão sombrio. Em 300 páginas, são repassados os últimos doze anos de conflitos gerados pelos atentados terroristas nos Estados Unidos, ocorridos na manhã do dia 11 de setembro de 2001. Um período que se estende até a chamada Primavera Árabe, ocorrida nos três últimos anos contra regimes autoritários no Oriente Médio – e que ainda não terminou. Naquela data, foram feitos ataques suicidas contra os Estados Unidos coordenados pela organização fundamentalista islâmica AlQaeda. Dezenove terroristas seqüestraram quatro aviões comerciais de passageiros e, logo depois, colidiram intencionalmente dois dos aparelhos contra as Torres Gêmeas, do complexo empresarial World Trade Center, na cidade de Nova York. Na ocasião, morreram cerca de três mil pessoas que estavam nas aeronaves ou trabalhavam nos edifícios. Ambos os prédios desmoronaram menos de duas horas após os impactos, sem dar tempo para socorrer as vítimas, ao mesmo tempo em que destruíram os edifícios vizinhos. O que se seguiu foram guerras, muitas delas, de todos os tipos e lugares, principalmente no Oriente Médio e até mesmo na América, com a paranóia de novos ataques terroristas difundida por todo o país pela catastrófica gestão do presidente republicano George W. Bush. De São Paulo, para a página de editorial da Folha de S. Paulo, tudo isso era rotineiramente filtrado pelo olhar sensível, aguçado e ferino de Angeli, que os interpretou de modo bem pessoal, por meio de desenhos

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inconfundíveis. Através dos seus cartuns, o leitor aprendeu que os atentados tiveram um impacto econômico significativo nos Estados Unidos e nos mercados mundiais, com quedas nas bolsas, perda de milhares de empregos etc. Ou que o espaço aéreo norte-americano foi fechado por vários dias e as viagens aéreas dimi-

nuíram após a sua reabertura, levando a uma redução de quase 20% da capacidade de transporte aéreo e agravando os problemas financeiros da indústria aérea do país. Mas o pior ainda estava por vir: muitos governos por todo o mundo alteraram ou criaram uma legislação antiterrorismo. Nos

EUA, o Departamento de Segurança Interna foi montado para coordenar os esforços antiterrorismo em todo o seu território. Em 7 de outubro, ainda em 2001, o Exército norte-americano atacou o Afeganistão porque o governo talibã que comandava o país se negou a entregar Osama Bin-Laden, que havia assumido a responsabilidade pelos atentados do 11 de Setembro. Em janeiro do ano seguinte, os norte-americanos começaram a construir a cadeia de Guantánamo, em Cuba, para interrogar suspeitos de terrorismo – seria considerada a pior prisão do mundo, onde as pessoas eram mantidas sem saber do que estavam sendo acusadas e sem direito a defesa. E se voltaram para o Iraque que, supostamente, teria armas químicas de destruição em massa – pretexto que levaria a uma guerra, em 20 de março, sem o aval da Onu. O ditador Saddam Hussein, foragido desde o começo do conflito, foi capturado em dezembro e executado no final de 2006. Os desdobramentos se prolongariam nos seis anos seguintes, com mais luta contra os extremistas e transformações políticas em vários países da região – Egito, Líbano, Líbia etc. Sem escolher que lado deveria ficar, Angeli optou por retratar o insano. E, assim, radiografou o Governo Bush, as guerras do Afeganistão e do Iraque, o conflito entre Israel e Palestina, até chegar aos distúrbios recentes no Egito e na Síria. O resultado é um painel abrangente das principais questões que mobilizaram o noticiário político internacional nas duas primeira décadas do século 21, representado por quase três centenas de charges políticas, organizadas cronologicamente e com projeto gráfico de Elisa Randow, responsável pelo volume Toda Rê Bordosa, publicado pela mesma editora em 2012. Como anexo, uma extensiva cronologia, que parte da fundação do Estado de Israel, ilumina e aprofunda os temas abordados pelo autor. O humor de Angeli aqui aparece em sua melhor forma. Longe da irreverência dos personagens urbanos e marginais de São Paulo – Bob Cuspe, Rê Bordosa, Meia-Oito, Mara Tara, Os Skrotinhos etc –, ele explora tipos de verdade que se matam e morrem em nome da religião e da ideologia do poder, criaturas bizarras que se confrontam de modo inconseqüente e irresponsável, a ponto de colocar em risco a sobrevivência da própria Humanidade. São cartuns em que a figura da caveira é presença constante, pelos resultados sombrios que esses conflitos trazem. Começa com um general num museu, que lista uma série de guerras promovidas pelos Estados Unidos e diz: “Meu filho, guerra boa é guerra na casa dos outros”. Enquanto isso, na Palestina, um bebê tenta alcançar um brinquedo pendurado sobre seu berço que é, na verdade, uma armação com quatro granadas. De acordo com a teoria de Darwin, dois macacos observam a guerra no Iraque e um comenta com o outro: “É muito triste! A gente põe filhos no mundo, eles crescem, e depois... Olha só no que dá!” O artista faz pensar. Numa cena cotidiana de Bagdá, uma mãe esbraveja depois que um carro em alta velocidade passou sobre uma poça e molhou-a e ao filho... de sangue! Depois de uma chacina no Iraque, três soldados norte-americanos observam a cena e um deles tem uma idéia: dizer que o fato aconteceu por causa de um confronto com integrantes de uma facção criminosa de São Paulo. É Angeli, melhor cada vez mais.


IMPRENSA

JORGE BUTSUEM

N

ão é difícil montar uma coleção da revista Realidade – que circulou por onze anos, entre 1965 e 1976 – a partir dos sebos físicos ou virtuais. Não raro, depara-se com coleções completas, vendidas em conjunto ou em números avulsos. Os preços variam de valores absurdos a módicas quantias de alguns reais cada exemplar. Tanta oferta se explica porque perto de 200 mil pessoas compravam regularmente a publicação mensal da Editora Abril que se tornou marco na História da imprensa brasileira. Em alguns momentos, a tiragem passou dos 500 mil exemplares. E um bom número desse universo a colecionava também. Sobravam motivos para isso. Tanto que perto de uma dúzia de livros – além de incontáveis dissertações de mestrado e teses de doutorado – foi escrita para explicar a sua importância. O mais recente deles, porém, Realidade – História da Revista que Virou Lenda, chega às livrarias carregado de recomendações: foi escrito pelo jornalista Mylton Severiano, um dos nomes mais relevantes da primeira Redação da revista criada por Roberto Civita – falecido no dia 26 de maio, aos 76 anos – e dono de uma memória prodigiosa para relembrar fatos daquela época – Realidade surgiu há quase meio século, ressalta-se.

Relato de Mylton Severiano, que participou da lendária Redação de Realidade, conta a história da mais revolucionária publicação da História da imprensa brasileira. P OR G ONÇALO J UNIOR

Eduardo Barreto (de costas), Roberto Civita, Paulo Patarra e Woyle Guimarães participam de uma reunião de pauta na Redação da Realidade.

“Juntos, fizemos História” Um dos trunfos desse livro indispensável foi o acesso que o autor teve ao acervo de Paulo Patarra (1933-2008), criador e seu primeiro editor, que guardou numa caixa de papelão, por quatro décadas, uma coleção de cartas, bilhetes e fotos dos tempos em que comandou a publicação. Um pouco antes de falecer, em 23 de janeiro de 2008, ele entregou o material a Severiano, por saber que o velho companheiro – e redator da revista – preparava um livro sobre o título que criaram juntos. Patarra havia deixado também uma espécie de “diário de bordo” sobre sua experiência ao fazer as primeiras 33 edições – mas só sobreviveram os relatos dos 16 iniciais, xerocados. Como escreve o autor, Realidade só entrou para a História com seu jornalismo de vanguarda porque a Redação “deu liga”. Ou seja, soube transformar um projeto editorial não muito claro e definido numa referência de jornalismo no País. “Éramos bons, do redator-chefe ao office-boy, do dono (da editora, Victor Civita) ao seu filho (Roberto Civita). Separados, teríamos trabalhado direito. Juntos, fizemos História”, explica ele na introdução do livro, depois de lembrar que assim também aconteceu com The Beatles, a mais importante banda de música pop do século 20. Aconteceu o que ele chamou de “espírito de colméia”, que reuniu a equipe que mudou a cara do jornalismo brasileiro. A revista reuniu uma equipe quase toda formada por jornalistas jovens, porém experientes. Cancha que dava a Patarra segurança para experimentos ousados na preparação dos textos: nada de pieguice, adjetivos

riosamente, não havia “repórteres” no expediente da revista, mas somente “redatores”. Eram eles: Carlos Azevedo, Micheline Gaggio Frank, Narciso Kalili, José Carlos Marão, Luís Fernando Mercadante e Hideo Onaga. A pesquisa inicialmente ficou sob a responsabilidade de Duarte Lago Pacheco. O secretário gráfico era Woile Guimarães e o chefe da arte, Eduardo Barreto Filho. Dois diagramadores fixos cuidavam da edição: Jaime Figuerola e Rubem Moraes. Na equipe de fotógrafos, atuavam como fixos Roger Bester, Walter Firmo e Lew Parella. Na sucursal do Rio trabalhavam Alessandro Porro, Milton Coelho e Nélson di Rago. Dois nomes não apareciam nos créditos iniciais, mas faziam parte do grupo: Roberto Freire e Mylton Severiano, então colaboradores freelancer. ou sensacionalismos. Diferentemente de outras publicações, os fotógrafos de Realidade ganharam status de repórteres e foram escolhidos dentre os melhores à disposição no mercado. Por causa da política de valorização das imagens, as fotos eram “casadas” com o texto. Ou seja, não estavam nas páginas apenas para ilustrar a matéria. Eram informações adicionais importantes à reportagem. Assim, a diagramação de Eduardo Barreto estampava fotos hipervalorizadas, bem abertas, texto bem mostrado, sem firulas. A Redação da revista ficava no centro de São Paulo, na Rua João Adolfo, 118, 14º. andar. Nos dois primeiros anos, o comando da primeira Redação de Realidade coube à dupla Patarra (redator-chefe) e Sérgio de Souza (editor de texto). Cu-

É o amor

Mas havia muito mais que jornalismo na empreitada que fez de Realidade uma revista cultuada, segundo Severiano. “O que marca a fundamental diferença, então, é que nós também nos amávamos. E que amor tínhamos pelo povo brasileiro”. Paulista da cidade de Marília, ele conta que escreveu um livro movido a paixão pelo jornalismo. A procura pela revista tem sido tanta, que de 2003 a 2010, ele concedeu 35 entrevistas por e-mail e perdeu as contas das vezes em que falou ao vivo. É uma história rica em detalhes e cheia de episódios interessantes a que ele escreve, alguns reveladores, outros engraçados e alguns comoventes. Conta que estava no Jornal da Tarde – lançado em 4

de janeiro de 1966 –, quando, alguns meses depois, mudaria para a Redação de Realidade, lançada no ano anterior. “O JT sacudiu o jornalismo diário, pela diagramação e pela linguagem. Realidade foi mais fundo, mexeu com as estruturas do ‘sistema’, desafiou os conservadores, os preconceituosos, quebrou tabus.” O número de estréia de Realidade, lançado em abril de 1966, chegou às bancas anunciado como a primeira grande revista de reportagens de São Paulo. Foi um acontecimento pioneiro e inquestionável que trazia para o Brasil o que havia de mais moderno em técnica jornalística americana em sua completude e cujo embrião a Abril havia lançado com a experiência de Quatro Rodas. Tratava-se de uma forma mais intensa, humanizada e com retoques literários de narrar e que Sérgio de Souza e alguns colegas já conheciam desde os tempos da Folha de S. Paulo e da revista Senhor como new journalism. A publicação saiu três meses depois da estréia do Jornal da Tarde. Sua tiragem precisa foi de 251.230 exemplares. E cresceria mês a mês até o fim daquele ano, quando ultrapassou os 400 mil exemplares. Em sua edição número sete, de outubro, Realidade chegou a 485.700 de tiragem, quase o dobro da primeira edição. Quando isso aconteceu, vivia-se no País os temores crescentes quanto a um controle da imprensa, difundidos pelo regime militar desde abril de 1964. Essa ameaça começou a gerar conflitos políticos declarados entre os militares e a sociedade civil – que incluía em suas trincheiras políticos contrários ao regime repres-

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IMPRENSA “JUNTOS, FIZEMOS HISTÓRIA”

sor que ganhava forma e que tinham sido banidos da vida pública ou tentavam esboçar uma oposição. Não havia mais expectativa de que se realizassem eleições diretas para Presidente da República tão cedo. O clima de repressão nas ruas se tornara pesado. Enquanto isso, Realidade se transformou num fenômeno editorial nunca visto no País em tão pouco tempo de circulação. Ainda no primeiro semestre de 1966, alcançou 550 mil exemplares, marca que a semanal Veja levaria 17 anos para atingir. Inovação

A fórmula criada por Patarra, única e jamais repetida em outra publicação, mandou para as bancas uma revista com doze ingredientes, em sua maioria reportagens, mais um ensaio fotográfico, uma peça de humor e um conto-reportagem de João Antônio. Nada disso teria sido notado se a revista não se alimentasse sempre de pauta quente, preocupada com a inovação no tratamento dos assuntos e com as transformações no comportamento dos jovens. Se havia tabus, a publicação chegava para cutucá-los e, a longo prazo, derrubá-los. Desde o começo, falou abertamente em revolução sexual, virgindade e mãe solteira. Destacou também o casamento de padres, o divórcio e o sexo antes e fora do casamento, além do homossexualismo. Nos dois primeiros anos, a revista fez jus ao seu título, com atualidades polêmicas como a Guerra do Vietnã, a pílula anticoncepcional e o amor livre. Na música, mostrou a revolução promovida pelos grupos britânicos The Beatles e The Rolling Stones, além do americano Bob Dylan. E havia mais em suas pautas. Falava dos hippies, dos efeitos alucinógenos do LSD; da luta pelos direitos civis dos negros americanos, liderada por Martin Luther King; da nouvelle vague francesa no cinema; e dos protestos pacifistas que se alastravam pelos Estados Unidos e pela Europa. Suas matérias profundas com até 12 páginas cobriram o maio de 1968 que incendiou Paris e cujo slogan pichado nos muros dizia: “Aquele que fala da revolução sem mudar a vida cotidiana tem na boca um cadáver ”. Sobre o Brasil, enfocou a ditadura militar e os rumos da política, os festivais de mpb transmitidos pela tv, censura, tortura, a moda da minissaia, o cinema novo de Glauber Rocha e destacou os novos nomes da mpb: Paulinho da Viola, Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Sua periodicidade mensal contribuiu para uma melhor observação e captação de informações por parte dos jornalistas. Um dos momentos mais explosivos da fase inicial dessa experiência aconteceu quando a revista enviou José Hamilton Ribeiro aos campos de guerra do Vietnã, no começo de 1966. A experiência lhe custou a perna esquerda, amputada após ter sido estraçalhada por uma mina em que ele pisara. Para mostrar o drama de seu repórter, a revista estampou na capa a foto de Ribeiro sendo socorrido por um solda38

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A edição proibida: Em janeiro de 1967, dois magistrados ordenaram a apreensão do número 10 da Realidade, alegando “obscenidade” e “ofensa à honra da mulher”. Abaixo, o relato de José Hamilton Ribeiro nos campos de guerra do Vietnã, no começo de 1966, foi dramático.

do americano. Era uma foto chocante, com muito sangue, uma das mais impactantes da imprensa brasileira em todos os tempos – só comparada à imagem do corpo do jornalista Vladimir Herzog pendurado por uma gravata para simular suicídio, depois que foi morto sob tortura pela ditadura militar, em 1975. Numa reportagem de doze páginas, Ribeiro narrou com minúcias o drama que viveu, num marco do jornalismo nacional. A guerra não acabou aí para a revista. Algum tempo depois, publicou entrevista com um vietcongue condenado à morte. Escrito em pequenos blocos de textos, numa linguagem saborosíssima, o livro faz o leitor ficar grudado a cada página. Severiano comentou depois: “Neste momento,

quase meio século depois, reflito sobre as perguntas que mais me fizeram os estudantes todos esses anos: por que não fazem mais uma revista como Realidade? Por que não fazem mais reportagens como aquelas?”, reflete Severiano. Uma resposta pode ser encontrada na apresentação de Paulo Henrique Amorim: “A revista captou aquela ânsia de entender o mundo desorganizado dos anos de 1960, os costumes, os novos personagens, a miséria que São Paulo desconhecia: uma realidade que soltava um cheiro parecido com o dos mictórios dos bares que nós freqüentávamos. Tudo misturado à intervenção militar.” Foi nesse contexto que, a partir do começo de 1968, com o agravamento da situação política do País provocada pela explosão do movimento estudantil contra a ditadura, que o idealismo que movia Realidade começou a ruir. Numa tarde do final de outubro de 1968, a Redação foi informada de que Patarra seria promovido a editor especial da Abril e, portanto, estaria, a partir daquele momento, desligado da revista. Uma forma política de tirá-lo do comando. Todos concluí-

ram que era uma investida da editora no sentido de controlar ao máximo a produção e o conteúdo da publicação, de modo a não criar atrito com os generais. O filho mais velho de Victor Civita jamais se pronunciou sobre a saída de Patarra, mas os colegas suspeitaram que houvesse pressão da cúpula militar para maneirar nas matérias de conteúdo subversivo, como sexo e religião. Para isso, concluiu que seria preciso afastar o editor. Depois de afastar Patarra, Roberto Civita nomeou para comandar a revista o jornalista italiano Alessandro Porro, que comandava a sucursal carioca, pelo qual a turma não tinha o menor respeito, tanto profissional quanto ético. Decidiu-se, então, pedir demissão coletiva. O levante começou depois de um atrito com o novo editor, provocado por uma sabotagem da Redação. Porro, que ocupou imediatamente a sala de Patarra, estava fechando a edição de dezembro de 1968, que teria como destaque uma entrevista com Roberto Carlos feita por Freire. Depois de datilografada, suas páginas foram acidentalmente embaralhadas e não numeradas. Em seguida, entregues a Porro. Horas depois, o editor chamou Freire para elogiar a matéria. “Enquanto ele desfilava seus hipócritas elogios, passei os olhos pela matéria e concluí que ele não havia lido e, mesmo que o fizesse, não poderia fazer avaliação alguma, pois as páginas estavam embaralhadas”. Freire não se conteve e chamou o chefe de “hipócrita, mentiroso e puxa-saco”, uma vez que elogiava uma matéria que não lera só para ser simpático. Foi imediatamente demitido. Logo em seguida, no mesmo dia, Woile Guimarães teve também uma discussão com Porro e foi também mandado embora. Na mesma tarde, num dos bares da vizinha Galeria Metrópole, nos fundos da Biblioteca Mário de Andrade, catorze jornalistas da revista acertaram seu desligamento da editora em protesto. A partir daí, nas horas seguintes, começaram a chegar à mesa de Porro pedidos de demissão de toda a equipe. Significava que quase toda a Redação da mais badalada revista brasileira seria extinta. E assim aconteceu. Do dia para a noite, Realidade ficou sem a maioria dos nomes que a tinham feito luzir desde a estréia e que elevaram sua tiragem para mais de 550 mil exemplares e em ritmo crescente – e prometia chegar a médio prazo à marca estabelecida por Roberto Civita de um milhão de exemplares vendidos por mês. No livro, Severiano revela a verdade sobre a queda de Patarra, um segredo que ele guardou por 40 anos e que não se deve aqui antecipar para não estragar o furo. Não seria justo com todos esses bravos jornalistas que o defendiam a unhas e dentes, com o perdão do clichê.


VIDAS praxe sugere uma advertência que este observador cumpre a contragosto: ao assumir uma amizade de cinqüenta anos fica parecendo que este texto estaria condicionado pelas emoções da perda pessoal. A pulsão de contar uma história (ou a compulsão do testemunho) geralmente obedece a motivações subjetivas, o que não as desqualifica nem as subordina a outros interesses. O relato acrítico, pretensamente objetivo, este sim é sempre deficiente. Ruim. Os releases biográficos publicados na mídia foram pródigos em lembrar as façanhas de Roberto Civita ao criar Realidade, Veja e Exame num mercado de revistas até então dominado por O Cruzeiro e Manchete visivelmente dependentes do glamour da antiga capital federal. Quando RoC (como assinava os bilhetes) procurou dar uma entonação verdadeiramente nacional à próspera editora de quadrinhos e revistas de serviços (fundada pelo pai, Victor Civita, na Marginal Tietê), deslocou para sempre o eixo jornalístico do País. Os formidáveis aportes dos “anos de ouro” do jornalismo carioca (1949-1956) foram ultrapassados por um profissionalismo made in São Paulo jamais manifestado ou suplantado.

GERMANO LUDERS/GRUPO ABRL

A

Editor, empresário, professor

Em busca do modelo

Aqui entra o “professor” Roberto Civita com a sua obsessão por treinamento e qualificação. Parte do sucesso inicial de Veja deve-se ao curso pelo qual passou o seu quadro de jornalistas antes mesmo de impresso o projeto-piloto. O “estilo Veja de redação” (que tanta celeuma provocou nos primeiros anos) não aconteceu por acaso, foi seu subproduto. O Curso Abril de Jornalismo, criado na década de 1980, mantém até hoje turmas anuais e, de certa forma, foi a matriz do seu projeto mais ambicioso em matéria de formação profissional: o Pós-Graduação em Jornalismo com Ênfase em Direção Editorial, em parceria com a ESPM, hoje na terceira edição anual. Durante dois anos, Roberto Civita percorreu as principais escolas de jornalismo dos Estados Unidos, conversou com reitores, analisou grades curriculares, ajudou a selecionar o corpo docente e inclusive assumiu uma disciplina. Isso fazia parte de um postulado que não cansava de repetir: “Alguém precisa fazer o papel de chato, melhor que seja eu”. Ironia, Veja foi o primeiro veículo de grande porte a atacar a obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo (1982), mas a Editora Abril foi também a primeira organização jornalística a ter como publisher um graduado em Jornalismo (pela Universidade da Pensilvânia). Impossível verificar se em 2009 Roberto Civita concordou com o Ministro Gilmar Mendes, relator da questão do diploma no Supremo Tribunal Federal, de que jornalismo, não sendo profissão, dispensa uma formação específica. A verdade é que todo o seu currículo como editor, publisher e empresário representa uma aposta consistente na direção contrária. Esta vocação ancestral para ensinar aliada à insaciável curiosidade intelectu-

POR A LBERTO D INES

al e amparadas por um fabuloso tino comercial foram as responsáveis por um trunfo que os primeiros obituários não tiveram tempo de valorizar: a Abril Educação (herdeira da Fundação Victor Civita, criada nos anos 1980) é empresarialmente tão importante quanto a Editora Abril – um poderoso conglomerado de editoras de livros didáticos, cursos de idiomas, escolas técnicas e universidades particulares. Enquanto o jornalismo impresso debate-se em busca de um modelo de negócios capaz de neutralizar alguns efeitos da formidável onda digital, a Abril aponta na direção da indústria do conhecimento, um binômio estável, composto por vetores convergentes e associados: Imprensa e Educação. Empresas divididas

De todas as nossas indústrias a da Comunicação é a que se assume como a mais legítima representante do modo capitalista de produção. Contudo, nem todas as empresas

e grupos jornalísticos nacionais seguem seus paradigmas. Como se a ruidosa filiação à iniciativa privada e ao capitalismo fosse suficiente para garantir o sucesso empresarial. Não é. O fato de serem organizações familiares não chega a ser entrave. Mas a transparência permanece uma questãochave, mesmo quando não são empresas de capital aberto ou quando suas ações não estão cotadas em bolsa. Os irmãos Roberto e Richard Civita sempre trabalharam juntos, depois se separaram agressivamente, dividiram a empresa (Editora Abril e Abril Cultural). Apesar do forte sacolejo, o processo seguiu os cânones modernos da administração graças à intervenção de consultores e árbitros respeitados pelas partes. Reconciliaram-se como irmãos, a sociedade acabou. As débâcles do Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil, Grupo Bloch, as precariedades do espólio dos Diários Associados e o susto por que passa o Grupo Estado exibem uma caricatura do sistema capitalista jus-

tamente numa indústria que deveria ser o seu abre-alas, carro-chefe. Em aberto

Ao lembrar que a biografia de Roberto Civita começa a movimentar-se quando a família é obrigada a fugir da Itália fascista e anti-semita, somos remetidos a um conjunto de situações e ingredientes geralmente desconsiderados ou atenuados em nosso biografismo e historiografia. Por duas vezes os Civita foram obrigados a abandonar as editoras em que trabalhavam tocados pelo terror político. A segunda vez foi nos anos 1970, quando o ramo argentino, da noite para o dia, deixou a sua empresa e o país assustados pelas ameaças simultâneas das milícias de extrema esquerda e extrema direita. O tópico lembra uma agenda de conversas infelizmente inconclusa. Roberto Civita, o racional, não a deixaria assim. Texto publicado originalmente no site Observatório da Imprensa no dia 28 de maio.

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PEDRO HENRIQUE/EDITORA ABRIL

VIDAS

E

u era ainda um jovem repórter das revistas Propaganda e Marketing quando fui entrevistar Roberto Civita. Era comum, na Editora Referência, que editava ambas as publicações, fazer extensas entrevistas com líderes da comunicação brasileira. Meu editor, o saudoso José Cláudio Maluf, ao me pautar, me disse que antes de fazer a entrevista eu deveria estar a par de uma famosa “fábula” que o mercado contava sobre Roberto. Dizia a “lenda” que, certa vez, Roberto Civita saiu caminhando da sede da Editora Abril, na Marginal Tietê, e se dirigiu diretamente em direção ao rio. Chegando próximo da margem do poluído Tietê, não diminuiu seu passo, e para o espanto de todos, caminhou tranquilamente sobre as águas, mal molhando as solas dos seus sapatos, até alcançar a outra margem. Milagre? Não. A piada dizia que Civita estava na verdade caminhando sobre o gigantesco encalhe das primeiras edições da revista Veja, que seu pai, Victor, enfurecido, havia mandado jogar no fundo do rio. Na época, achei a historinha divertida, e ela nunca saiu da minha cabeça. Mais tarde, percebi que, muito mais que uma simples piadinha de mercado, o caso do encalhe das primeiras edições de Veja mostra, antes de mais nada, um Roberto Civita obstinado e profundamente determinado a levar em frente aquilo em que acreditava. Como se sabe, Veja causou uma verdadeira revolução em 1968, ano de seu lançamento. O mercado editorial brasileiro, acostumado com revistas eminentemente visuais e fotográficas, estranhou profundamente uma publicação semanal com tamanho volume de texto. Tanto que, na época, o nome completo da revista era Veja e Leia. Num primeiro momento, o fracasso foi gigantesco. Poucos, pouquíssimos executivos e empresários teriam a coragem de assumir os primeiros anos de um prejuízo que estava longe de ser pequeno. Roberto Civita teve. Ele sabia, ou talvez pressentisse, que o consumidor brasileiro estava, sim, preparado para uma leitura semanal de mais consistência e conteúdo, e que tudo seria apenas uma questão de tempo. E foi. Graças à persistência e tenacidade do executivo, Veja saiu “do fundo do Tietê” para se tornar a maior revista brasileira, e este ano completa 45 anos de existência. É a morte deste Roberto Civita empreendedor e ousado que todos lamentamos. Nascido em 1936, Roberto era um adolescente quando seu pai, Victor, fundou a Editora Abril. Italiano como o pai, ele nasceu em Milão, mas logo aos três anos de idade toda a família foi morar em Nova York, fugindo do fascismo e da Segunda Guerra. Após uma temporada nos Estados Unidos, os Civita se estabeleceram na Argentina e depois, desta vez fugindo do peronismo, no Brasil. Enquanto Victor editava O Pato Donald e criava na capital paulista as bases do que viria a ser o poderoso Grupo Abril, o jovem Roberto retorna aos Estados Unidos, onde inicia uma

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P OR C ELSO S ABADIN

verdadeira maratona acadêmica: começa, mas não termina, o curso de Física Nuclear na Rice University, no Texas, forma-se primeiramente em Jornalismo e depois em Economia na Universidade da Pensilvânia, e faz pós-graduação em Sociologia na famosa Universidade de Columbia. Dedicado, consegue um estágio na prestigiosa editora Time, das revistas Time, Life e Sports Illustrated, onde se apaixona pelo ramo editorial, principalmente pela publicação de revistas. Em 1958, retorna ao Brasil determinado a lançar no País, no mínimo, três novas publicações: uma de informação semanal nos mesmos moldes da Time, outra de negócios e mercado

como a Fortune e uma terceira para o público masculino, tendo a Playboy como inspiração. Já solidamente estabelecido no Brasil como editor, o pai, Victor, oferece todo o suporte ao filho. E nasce na editora Abril a semente para a elaboração do que viria a ser a revista Veja. Porém, seriam necessários ainda mais alguns anos de maturação para um projeto tão ousado. Antes da tão sonhada revista semanal de informações, viriam ainda Quatro Rodas (lançada em 1960), Cláudia (em 1961), Zé Carioca (também em 61), Realidade (66), Exame (67), além da galinha dos ovos de ouro da editora: uma série de coleções dos mais variados assuntos

disponibilizadas nas bancas de jornais pelo sistema de fascículos encadernáveis. Até que, depois de vários estudos, pesquisas e “números zero”, chega finalmente o histórico 11 de setembro (a data parece emblemática) de 1968, dia em que desembarca nas bancas de todo o País a primeira edição de Veja. Ou Veja e Leia. Na capa, a manchete O Grande Duelo no Mundo Comunista e uma provocativa (para a época) ilustração da foice e do martelo. Seu editorial já preconizava: “Veja quer ser a grande revista semanal de informação de todos os brasileiros”. Num mercado dominado por O Cruzeiro, Manchete e Fatos & Fotos, tudo em Veja


A família Civita: O fundador da Editora Abril, Victor (sentado), ao lado da mulher Sylvana, e dos filhos Roberto (ao centro) e Richard. REPRODUÇÃO

Roberto Civita em sua sala repleta de capas da revista Realidade – um de seus projetos mais ousados –, em pose registrada por Jorge Butsuem. ACERVO ALBERTO DINES

Em 1990, com a morte de Victor Civita, Roberto assume a presidência do Grupo Abril, um conglomerado então composto pela editora, a indústria gráfica e um braço de distribuição e logística que, somados, representavam um invejável faturamento anual de quase meio bilhão de dólares. Nada menos que 155 títulos eram editados, entre revistas semanais e mensais. Roberto permanece 23 anos à frente do Grupo. Nesta gestão, enxuga e otimiza o cardápio de títulos editados, reduzindo-o para 54 publicações. Assumindo abertamente a era digital, diversifica a área de atuação da Abril, que passa a publicar também conteúdo e serviços online, atuar em tvs segmentadas, comércio eletrônico e na área de educação, através de livros didáticos e sistemas de ensino. Chegou inclusive a criar um curso de pósgraduação em jornalismo em parceria com a Escola Superior de Propaganda e Marketing-ESPM. “Sem a melhoria da educação não adianta falar da melhoria da mídia”, dizia. Como resultado, aufere uma renda líquida de quase 3 bilhões de reais em 2012, de acordo com o balanço oficial da empresa. No seminário que comemorou os 40 anos de Veja, em 2008, Civita, bastante crítico, afirmou: “Embora existam, e sempre existirão, jornais, revistas, televisões e rádios sem qualquer preocupação com padrões de ética ou qualidade, e apesar do ainda péssimo nível geral da educação em nosso País, tudo indica que o público acaba preferindo o conteúdo de melhor qualidade, tanto eletrônico quanto impresso. Imagino que isso só é assim porque, como nunca é demais repetir, o leitor /telespectador/internauta não é bobo. E também porque acredito que haja outro círculo virtuoso em ação: à medida que o nível da mídia se eleva, à medida que são produzidas reportagens e matérias mais inteligentes, mais bem pesquisadas, mais claras e mais bem apresentadas, o público passa a ser mais exigente e a valorizar os veículos que atendem suas expectativas”. Roberto Civita fez parte do Conselho Superior do Instituto Verificador de Circulação e do Conselho Deliberativo da Escola Superior de Propaganda e Marketing. Foi membro do Board of Governors do Lauder Institute e o do Wharton Advisory Board. Era ainda Presidente da Fundação Victor Civita, dedicada à melhoria do ensino fundamental no País. E mesmo assim, sempre que tinha oportunidade declarava em entrevistas que gostava mesmo era de editar revistas. “A única coisa que eu sei mesmo fazer na vida é ser editor”, costumava dizer. E deixou seu ensinamento: “Uma das principais atribuições de um bom editor é buscar o equilíbrio permanente entre a excelência e a integridade de suas publicações e a saúde econômica e financeira de sua empresa: para mim, as duas coisas não são antagônicas, mas complementares. Desde que o edito-

DIVULGAÇÃO/EDITORA ABRIL

era estranho. Seu formato menor, sua aparentemente inexpugnável quantidade de textos, a ausência de grandes fotos coloridas, o caráter analítico das matérias. “A fórmula é muito simples. Difícil é aplicá-la o tempo todo”, afirmou Roberto. O público rejeitou. E pior: não bastasse a luta contra a acomodação de um leitor que naquele instante ainda preferia revistas grandes com belas fotos para serem folheadas, três meses após o lançamento da revista acontece a infame decretação do Ato Institucional n° 5, que esfaqueava o pouco que ainda restava das liberdades democráticas brasileiras e colocava uma terrível mordaça em toda a imprensa. Como fazer uma revista analítica sob estas condições? A capa de Veja que noticiava o AI-5 mostrava uma bela foto do General Costa e Silva sentado solitariamente no plenário do Congresso que ele próprio havia condenado ao fechamento. A edição foi sumariamente apreendida, e a revista, assim como todo o jornalismo brasileiro, foi forçosamente obrigada a conviver, nos anos seguintes, com o câncer da censura prévia. Anos mais tarde, Roberto recordaria: “Lembro de meu pai e eu termos, em conjunto, agüentado tantas broncas, ameaças, pressões e sanções que caíam sobre a Abril enquanto Veja insistia em dizer, ou insinuar, o que não se podia. Isso incluiu a apreensão de duas edições da revista, a censura durante quase uma década, o corte de toda e qualquer verba de publicidade do Governo e suas empresas estatais em retaliação de qualquer crítica e, não menos importante, o veto permanente à entrada da Abril em rádio ou televisão”. Com muito jogo de cintura, negociações políticas, profissionalismo e também muito bom humor (Roberto sempre perguntava aos seus colaboradores e funcionários se eles estavam se divertindo enquanto trabalhavam, fato que considerava essencial para um bom desempenho), a Abril conseguiu se sobrepujar aos anos de chumbo e de censura. Como lembrou ao Jornal da ABI o jornalista Thomaz Souto Corrêa, amigo pessoal de Civita e membro do Conselho Editorial do Grupo Abril, “duas preocupações fundamentavam a busca pela qualidade editorial, sempre preconizada por Roberto Civita: respeitar o leitor, conhecê-lo e atendê-lo, não só no que ele declara querer, mas também no que ele não sabe que o interessa; e trabalhar para tornar o importante em interessante. O segredo do sucesso está na busca do relevante e do irresistível”. Realizados os sonhos de fazer a Time brasileira e a Fortune Brasileira (que seria a Exame), restava então lançar a Playboy em terras tupiniquins. A concretização total do sonho finalmente aconteceu em 1975. Mesmo licenciada por Hugh Hefner, o criador da Playboy americana, aqui a tão esperada revista masculina de entretenimento e belas mulheres inicialmente foi publicada com o título Homem, para finalmente ser rebatizada com a marca internacional Playboy em 1978.

Roberto Civita ao lado do amigo, jornalista Alberto Dines, em 1977, nos estúdios da TV Bandeirantes, durante as comemorações do 10° aniversário da revista Veja.

rial nunca seja subordinado ou confundido com os interesses comerciais de curto prazo, seu fortalecimento inevitavelmente acabará atraindo mais leitores e anunciantes e produzindo melhores resultados ao longo dos anos”. Roberto Civita deixou a esposa, Maria Antônia Civita, e três filhos: Giancarlo Civita, vice-chairman da Abrilpar, holding da família Civita que controla a Abril S/A e a Abril Educação S/A, Victor Civita Neto e Roberta Civita. Filhos para os quais ele deixou bastante clara a sua

mensagem de inquietação e inconformismo, em entrevista concedida no ano passado ao Observatório da Imprensa: “Se você não está gerando reações fortes, está fazendo algo errado. Não acredito em imprensa que quer agradar a todo mundo. Por que você faz uma revista? Só para ganhar dinheiro? Eu acho que vem junto uma responsabilidade. Eu falo isso há 50 anos... Para todo mundo. Para os meus filhos. Eles não gostam, mas eu falo. Se você não quer ter a responsabilidade, vai fazer álcool, vai plantar batata...”

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VIDAS PEDRO RUBENS

O patrão mais visível P OR A UDÁLIO D ANTAS

“Fui empregado da Editora Abril, onde o patrão mais visível era o Roberto Civita. Ele passava pela Redação da Realidade, quase como se fosse um penetra – não era fácil lidar com aquele pessoal – , perguntava, palpitava, mas só isso. Presente, mesmo, ele se fazia por meio de bilhetinhos, assinados RC, em que fazia elogios ou críticas às matérias publicadas. Tive lá as minhas queixas – quem não se queixa de patrão, a não ser os puxasacos? – e divergências que se acentuaram com a passagem do tempo. Acho que RC andou se descuidando de seus bilhetes e deixou algumas de suas publicações à solta... Mas foi sempre um prazer reencontrá-lo. A última vez, com tempo para uma longa conversa, foi em sua casa, com vista para o verde dos Jardins. Fui com a repórter Inês Pereira, para uma entrevista para a revista que dirijo, a Negócios da Comunicação. RC foi o “homem da capa”. Não mandou bilhete, mas telefonou para elogiar a matéria. E disse, até, que gostaria de fazer uma revista igual.

O líder de um império da comunicação Desenho em homenagem a Roberto Civita criado e divulgado pela Mauricio de Sousa Produções.

Mauricio de Sousa: “Estou honrado por ter crescido à sombra da Arvorezinha da Abril” Mauricio de Sousa, criador da Turma da Mônica, enviou o seguinte depoimento sobre Roberto Civita ao Jornal da ABI: “Roberto Civita direcionou a vida editorial da Turma da Mônica durante 17 anos. Foram os importantes anos de implantação das nossas revistas que, em pouco tempo, se transformaram em cartilhas informais de alfabetização para milhões de brasileiros. Durante todo esse

tempo, Roberto sempre foi atento, cordial e extremamente elegante, até nos raros momentos de desacordo. Deixa saudades e referências por conta desse seu estilo de liderança. Neste tempo de despedida, estou honrado por ter crescido à sombra da Arvorezinha da Abril e por ter convivido com o Roberto e aprendido muito com esse convívio. A Turminha está tristinha, hoje.”

Uma amizade de duas gerações P OR J OSÉ R OBERTO W HITAKER P ENTEADO

Eu era menino e meu pai trabalhava na agência de propaganda J. Walter Thompson. Lembro-me com nitidez do dia em que ele chegou do trabalho, com uma revista de capa colorida – O Pato Donald – e deu-me, dizendo: – Um amigo meu está, agora, editando esta revista, no Brasil. O amigo do meu pai, claro, era Victor Civita. E assim foi o início de uma amizade de duas gerações. Só conheci Roberto bem anos mais tarde, ainda dessa vez pelas ações de nossos pais. Foi no Clube Paulistano, e o jovem executivo Roberto Civita estava recebendo um importante prêmio da ADVB – o de Homem de Vendas do Ano. Nossos orgulhosos pais apresentaram-nos e fiquei conhecendo o meu amigo Roberto. Nossos caminhos iriam cruzar-se outras vezes. Em 1968, eu era gerente de produtos da Atlantis Brasil Ltda – e respondi a um anúncio magnífico, que procurava um “Young Marketing Genius”, para

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lançar um produto novo no mercado brasileiro. Depois de passar por uma série de testes, recebi um telefonema: era Roberto, dizendo – Você foi selecionado. Tratava-se do lançamento da revista Veja, da qual fui o primeiro publisher. Não cheguei a participar do sucesso em que se tornou a idéia visionária de RC – de uma Time brasileira. Ele só veio 10 anos depois do número 1 editado em plena ditadura para um mercado publicitário que esperava uma revista concorrente para Manchete. Eu parti para outras atividades, que resultaram na minha entrada definitiva para a Escola Superior de Propaganda e Marketing, onde fui reencontrar Roberto como atuante membro do Conselho e orgulhoso ex-aluno. Além de muita amizade e respeito, Roberto e eu tínhamos, em comum, o gosto pela cozinha (por fazê-la, além de consumi-la) herdado e incentivado por nossas respectivas mammas. A de RC enviava-

lhe as receitas, quando ele vivia como estudante, nos Estados Unidos. Eu, também, como jovem expatriado nos Estados Unidos e na Europa preparava as minhas de memória – pois sempre fui fascinado pelas atividades culinárias da minha mãe, dona Irma, oriunda do Veneto e de Nápoles. Encontramo-nos também nas cabeças. Roberto dizia sempre o que pensava e o que pensava, em geral, era bom. Seu livro de bordo para liderança chefe era o Nononsense Management (de Richard Sloma), de que nem sempre as pessoas gostam, mas que considero paradigma de relação profissional. É claro que a sua rara e aguda inteligência ajudou a que as suas empreitadas dessem certo – e que ele, seguindo a trilha do empreendedorismo do velho VC, tenha feito do Brasil e do mundo lugares melhores para se viver e se pensar. Morreu cedo, aos 76 anos. Mas faria muita falta, mesmo que tivesse vivido o dobro.

Roberto Civita morreu de choque séptico às 2lh45min do domingo, 26 de maio, no Hospital Sírio Libanês, na capital paulista, onde estava internado desde o começo de fevereiro, quando foi acometido de um aneurisma. Seu corpo foi velado no Município de Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, e cremado no dia 27. Ao falecer, aos 76 anos, Roberto Civita comandava um conjunto de empresas de mídia e educação, produzindo revistas para 25 segmentos, em todos com a liderança em vendas, segundo ele informou em entrevista concedida em 2012 ao jornal Valor Econômico. Os 52 títulos de revistas da Editora contam com 4,7 milhões de assinantes e uma circulação anual de 200 milhões de exemplares. Em suas empresas trabalham 9.500 pessoas. Criador da revista Veja, em 1968, Civita marcou sua presença no jornalismo brasileiro a partir dos anos 1960, quando criou e dirigiu a revista Realidade, editada sob a liderança dos jornalistas Paulo Patarra e Sérgio de Souza e que contava com repórteres como José Hamilton Ribeiro, Luís Fernando Mercadante e Narciso Kalil e redatores como Mylton Severiano da Silva, o Miltainho. Habituado aos padrões salariais das empresas jornalísticas dos Estados Unidos, Civita promoveu a valorização dos profissionais de comunicação da empresa, pagando-lhes salários em nível que lhes permitia viver apenas do jornalismo. Nesse aspecto, repetia o que fizera Samuel Wainer no começo dos anos 1950, quando criou o diário Última Hora. Seu sucessor é o filho Giancarlo Civita, que asssumira a presidência do Conselho de Administração do Grupo Abril em março passado, após sua internação. Civita era sócio da ABI desde 30 de novembro de 1971.


DIVULGAÇÃO/MONITOR MERCANTIL

Acurcio Rodrigues e a liberdade de informar P OR P AULO C HICO

Por triste ironia do destino, foi justamente no Dia do Trabalho que Acurcio Rodrigues de Oliveira descansou. O Diretor-Presidente do Monitor Mercantil morreu no 1° de maio, aos 84 anos. Mesmo com a idade avançada, marcava presença todos os dias no jornal. Faleceu após sofrer um infarto. Deixa viúva, um filho – teve outro, Ricardo, que morreu em 2007, também de infarto – e duas netas. E uma história pessoal marcada pela superação. No campo profissional, uma trajetória de dedicação ao jornalismo. Nascido em Saquarema/RJ, Acurcio ficou órfão de pai ainda criança. Sua mãe, então, foi obrigada a sustentar os três filhos sozinha, o que fez com grande dificuldade. No começo da adolescência, mudou-se para a capital fluminense atrás de oportunidades melhores. Logo começou a trabalhar na área de publicidade do jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Autodidata, aprendeu os macetes da profissão e fixou-se com sucesso. No jornal, teve a oportunidade de ouvir, ao vivo, os comentários das feras que trabalhavam na publicação. "Meu pai sempre falava das resenhas do cotidiano que ele ouvia de Nelson Rodrigues", lembra o filho, Marcos de Oliveira, Diretor de Redação do Monitor Mercantil, que falou com o Jornal da ABI. "A quantidade de amigos que manifesta-

ram pesar e o carinho que eles demonstraram, nos dias seguintes ao falecimento de meu pai, mostram com clareza, mais que qualquer depoimento que eu possa dar, o caráter e o quão ele era querido." Marcos revela ainda o impacto da morte de Acurcio. "Ele gozava de perfeita saúde, subia os três andares até a sala dele sem parar, não tomava remédios, porque deles não precisava... Freqüentava a academia até nos finais de semana... Enfim, a morte repentina foi um choque. Fica sempre o consolo de que ele não sofreu – não consigo imaginá-lo em cima de um leito de hospital – e que gozou a vida. Tanto a lazer quanto a trabalho, conheceu quase todos os países do mundo; adorava cruzeiros; passou uma pequena temporada nos Estados Unidos, lá pelo final da década de 1960, início da de 1970, estudando marketing na Ucla (University of California). E, apesar de trabalhar na área de publicidade, ele sempre foi um jornalista. Respeitava e gostava da Redação e dos veículos em que trabalhou", contou. E eles não foram poucos. Acurcio passou pelo Jornal dos Sports, pelas revistas Senhor e Manchete e pelo jornal O Globo, sempre na área de publicidade. Com a experiência adquirida em importantes veículos, montou em 1975 uma empresa de representação publicitária para publicações estrangeiras, a Interpress Mídia Internacional. Agenciou no Brasil, por exemplo, a revista americana Forbes, por

33 anos, e o maior jornal do mundo, o japonês Asahi Shinbum. Em 1985, comprou o Monitor Mercantil, fundado por Elysio de Carvalho, editado no Rio e com grande tradição na cobertura do noticiário econômico. Amigo de muitos anos, Sérgio Barreto, jornalista e colunista do Monitor Mercan-

Nas mãos de Acurcio, o Monitor Mercantil ganhou inventimentos e se modernizou.

til, conheceu Acurcio justamente em O Globo. "Eu atuava na Redação e ele era gerente de publicidade; em geral, profissionais desses dois setores têm pouco relacionamento. Mas o Acurcio sempre mostrava simpatia com todos e era muito popular. Mais tarde, ele foi para Última Hora, sob o comando de Ary Carvalho – na época dono do influente O Dia. Ocorre que Ary era também dono do Monitor Mercantil, mas não parecia ter aptidão para investir nesse jornal econômico. Ao que sei, Ary lhe fez um convite para assumir o MM, que já teria sido recusado por outros. Se Acurcio abrisse mão do desafio, possivelmente Ary pensava em fechar o jornal, o que seria uma pena. Acurcio me contou que, com um pouco de temor e muita confiança, aceitou a dura empreitada. Com capital restrito, fez tudo o que lhe era possível para superar os primeiros meses. Pode-se dizer que, mais do que capital próprio, usou como alavanca sua respeitabilidade no mercado para tirar a empresa da inércia. Conseguiu apoio publicitário, ativou a área jornalística e, em cerca de um ano, o MM se tornou viável". Primeira jornalista especializada na cobertura de leilões, que tornou-se referência no Rio de Janeiro, Ledy Mendes, que assina a coluna Leilão & Companhia no Monitor Mercantil, desde 2005, também falou com o Jornal da ABI. "Faço e envio minha coluna de casa, por isso mesmo não cheguei a ter um contato profissional mais estreito com Acurcio. Fato que não me impede de traçar-lhe o perfil de grande ser humano. Era um homem de caráter, honesto, além de uma pessoa sensível, que se preocupava de verdade com a situação e os eventuais problemas de cada funcionário e companheiro do jornal. Senti muito sua morte", lamentou. Um dos editores do MM, Randolpho de Souza também manifestou ao Jornal da ABI seu pesar pela morte de Acurcio. "Se existe algo que mais possa agradar um jornalista é a liberdade de informar. Essa possibilidade fica bem visível para quem trabalha no Monitor Mercantil. Trata-se de um jornal que prima em dar ao profissional de imprensa o direito de tratar a notícia como informação, prática que ele delegou ao seu filho Marcos de Oliveira, dentro das responsabilidades de Diretor de Redação. Sua visão empresarial o levou a modernizar o veículo, que acabou sendo um dos primeiros jornais diários informatizados da Redação às rotativas. Coerente com a sua vida marcada pela vontade de produzir, Acurcio morreu no Dia do Trabalho". Segundo Luiz Antonio dos Santos, que também integrou a equipe do Monitor, "é perda enorme a de Acurcio Rodrigues de Oliveira. O jornalismo que faz o MM é cada vez mais raro. Tenho certeza que o Marcos de Oliveira, Diretor de Redação, e equipe saberão dar prosseguimento ao trabalho de tão grande qualidade de informação e opinião". O corpo do jornalista foi enterrado no dia 2 de maio, no Memorial do Carmo, no bairro do Caju.

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VIDAS

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ão se trata de noticiar “apenas” a morte de um jornalista. O desaparecimento de Ruy Mesquita não pode ser visto por nós, da imprensa, ou por todos os formadores de opinião, como simplesmente mais uma perda lamentável de um grande profissional. É muito mais que isso. Ruy Mesquita, segundo as palavras de seu filho, Roberto, “foi o último grande jornalista do século 20”. E “símbolo de uma geração da imprensa brasileira”, como expressou a Presidente Dilma Rousseff, em nota oficial. Junto com ele, morre toda uma forma de se fazer jornais que marcou as bases da imprensa, durante o século passado. Junto com Ruy Mesquita talvez esteja desaparecendo definitivamente toda uma maneira de se encarar a própria profissão. “O jornalismo precisa ter um ponto de encontro que seja uma referência para uma discussão de onde estamos e para onde vamos. É assim que ele olhava o jornal”, disse o filho Roberto Mesquita, neto de Julio de Mesquita Filho e bisneto do patriarca Julio de Mesquita, que em 1891 assumiu a direção de O Estado de S.Paulo. É muita tinta, muito papel e muito jornalismo correndo nas veias de uma mesma família. Com Ruy Mesquita não seria diferente. Afinal, “ele era um jornalista nato, que nasceu para a missão. Era capaz e firme e aprendeu desde criança os padrões de responsabilidade que uma empresa jornalística tem com a democracia”, disse o Jurista Paulo Brossard. Nascido em São Paulo em 16 de abril de 1925, Ruy cresceu embalado pelo incessante ruído das antigas prensas do jornal do pai. Mas como era de se esperar de uma respeitada família da bem-sucedida elite paulistana, foi cursar Direito na tradicionalíssima Faculdade da Universidade de São Paulo. O fascínio das históricas arcadas do Largo São Francisco, porém, não foi suficiente para “desviar ” o jovem Ruy do seu inexorável (e no caso, genético) destino de jornalista: ele logo troca o Direito pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, também da Universidade de São Paulo, e aos 23 anos inicia sua carreira como repórter. O ano era 1948. Um mundo novo, agora livre da ameaça nazista, acenava com ventos de liberdade e um desenvolvimento nunca visto até então. Da mesma forma, o Brasil, liberto da ditadura Vargas, respira novamente a democracia e se prepara para um gigantesco salto para o futuro. O cenário não poderia ser mais promissor para um jovem e inquieto repórter trabalhando no poderoso O Estado de S.Paulo. Logo Ruy passa a ocupar o cargo de redator e, pouco depois, o de editor da seção internacional. Um julgamento apressado poderia irresponsavelmente creditar sua ascensão ao fato de ele ser o chamado “filho do dono”, afirmação que o amigo, colega de jornal e jornalista Villas-Bôas Corrêa imediatamente descarta: “Ser dono de um jornal e ser um grande jornalista são coisas diferentes,

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O combativo Ruy Mesquita POR C ELSO SABADIN mas o Dr. Ruy era as duas coisas”. Não por acaso, por ocasião da Revolução Cubana, Ruy Mesquita foi o único brasileiro a entrevistar Fidel Castro. Coisa de grande jornalista com alma de repórter. Mas se na ilha de Fidel o socialismo impera, por aqui a direita toma o poder. Ao lado do pai Julio de Mesquita Filho, Ruy e o sempre tradicionalista Estadão optam por apoiar o golpe de 1964, embora não utilizassem esta palavra para defini-lo: “contragolpe”, “revolução” ou “contra-revolução” eram os eufemismos preferidos pelo jornal. A postura de O Es-

tado de S.Paulo sintonizava com os setores mais conservadores da população, que temiam o comunismo e desfilavam seus temores em praça pública, através das “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”. Certamente uma publicação afinada com a classe dominante seria simpática ao golpe. Porém, em 27 de outubro de 1965, a edição do Ato Institucional n.º 2, que cancelou as prometidas eleições diretas e extinguiu os partidos políticos, fez que até O Estado de S.Paulo retirasse o seu apoio aos militares. Percebendo os caminhos som-

brios que o golpe estava trilhando, a família Mesquita passa a combater o regime e, conseqüentemente, a sofrer represálias. Matérias censuradas eram substituídas por receitas culinárias e trechos de Os Lusíadas, como forma branda de desobediência civil. “Na época mais difícil da ditadura, Ruy Mesquita resistiu com coragem”, lembra o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso. No mesmo ano, Ruy começa a dirigir, com o comando de Mino Carta e a colaboração de Murilo Felisberto, o projeto de um novo veículo diário que iria revo-


ESTADÃO CONTEÚDO

lucionar o jornalismo brasileiro: o Jornal da Tarde. Após uma série de “números zero” editados ainda em 1965, o novo jornal inaugura em grande estilo o ano de 1966, com sua primeira edição chegando às bancas no dia 4 de janeiro. Ruy o definiu como “um misto entre o jornal diário e uma revista semanal”. Toda a liberdade criativa do Jornal da Tarde se contrapunha aos anos de chumbo que se seguiriam. O jornalista Sandro Vaia se recorda de um final da tarde do fatídico 13 de dezembro de 1968: “Ruy Mesquita juntou-se a um grupinho de jornalistas para ouvir, em rede nacional, o locutor que lia pausadamente o preâmbulo e os artigos ameaçadores do Ato Institucional nº 5 – que consolidava inequivocamente a ditadura nascida em 31 de março de 1964. Ruy Mesquita trovejou, soturno: “Acabou. Estamos f....” Mas nada estava acabado, e a luta continuou. Passado o período mais difícil, Ruy se torna efetivamente diretor responsável pelo Jornal da Tarde em 1988, após uma grande reestruturação administrativa do grupo da família. Em 1996, após a morte do irmão Júlio de Mesquita Neto, Ruy Mesquita passa a ser diretor responsável de O Estado de S.Paulo para, no ano seguinte, assumir a Presidência do Conselho de Administração, cargo que ocupou até 1998. Os primeiros anos deste século viram um intenso processo de reestruturação administrativa do grupo O Estado de S.Paulo, com vários dos membros da família Mesquita deixando suas cadeiras nas mãos de outros diretores executivos ou de

Uma dinastia apaixonada pelo jornalismo: Ruy Mesquita, Julio de Mesquita Filho, Luiz Carlos Mesquita e Julio de Mesquita Neto.

profissionais de mercado nem sempre sintonizados com os históricos ideais da empresa. Assim, no ano passado o comando da companhia retornou para Francisco Mesquita Neto, primo de Ruy Mesquita, que passou a ocupar o cargo de diretorpresidente do Grupo. O jornalista Fernando Pedreira, à sua maneira, posiciona Ruy na “árvore genealógica” da Família Mesquita: “Ruy é o derradeiro dos três filhos, os três mosque-

teiros do velho Júlio de Mesquita Filho que com ele comandavam a Redação quando entrei para o jornal, em setembro de 1958. Já em 1970, apenas meses depois de seu pai e seu tio Francisco, morria o Carlão, o mais querido dos três irmãos. Um quarto de século mais tarde, era a vez do Júlio. E agora, o Ruy. Abre-se assim a porta, afinal, para uma geração mais moça que terá passado, talvez, tempo demais nos bastidores, nas coxias”.

Até o último mês de abril, Ruy manteve sua rotina de trabalho, reunindo-se diariamente com editorialistas e definindo o conteúdo das tradicionais Notas & Informações da página 3. Um câncer, porém, obrigou sua internação, da qual não se recuperou, vindo a falecer no último dia 21 de maio, aos 88 anos. Deixa a mulher, Laura Maria Sampaio Lara Mesquita, os filhos Ruy, Fernão, Rodrigo e João, 12 netos, um bisneto e uma história de lutas a favor da liberdade de expressão.

Histórias, lembranças, casos e repercussões ESTADÃO CONTEÚDO

O jornalista Renato Lombardi, especializado em assuntos policiais, e atualmente na TV Record, em depoimento ao Jornal da ABI, conta que: “Nos 27 anos que trabalhei no Estadão tive alguns encontros com o Doutor Ruy, principalmente depois que ele assumiu a diretoria do jornal, depois da morte do irmão Júlio Neto. Ele, como o irmão, sempre foi justo, ético, profissional acima de tudo e tratava seus subordinados como profissionais devem ser tratados. Quando decidi sair do jornal, ele mandou me chamar e perguntou por que eu estava indo embora. Era repórter especial, tinha uma ótima situação no jornal, um ótimo salário. Disse-lhe que tinha passado a metade da minha vida no jornal e estava na hora de sair. Ele perguntou para onde eu iria. Disse-lhe que era a TV e ele argumentou se eu não queria um ano de licença não remunerada. ‘Se você não se acostumar, você volta’. Agradeci e fui embora. Esse era o doutor Ruy”. Outros dois jornalistas, Marco Antonio Rocha e Paulo Markun, recordam-se de fatos importantes acontecidos em 1975, ambos relacionados a Ruy Mesquita. Em matéria publicada no site do jornal O Estado de S.Paulo, Rocha relata o ocorrido em 25 de outubro de 1975, o dia

Depois da morte do irmão Júlio Mesquita Neto (direita) em 1996, Ruy Mesquita se tornou o Diretor responsável de O Estado de S.Paulo.

seguinte à morte de Vladmir Herzog. Juntamente com vários colegas de profissão, ele também estava sendo procurado pelas forças da ditadura. “Depois de conversar com minha mulher, resolvi me apresentar e, em seguida, liguei para o Estadão. Puseram-me em contato com o Dr. Ruy Mesquita. Ele me disse que viesse para São Paulo, mas não fosse para minha casa, e sim para a Redação do jornal. (...) Ali o Dr. Ruy me disse que naquela noite eu dormiria na casa dele e só no dia seguinte decidiríamos se eu me apresentaria às chamadas ‘autoridades’, ou não. Passei, de fato, a noite na casa do Dr. Ruy, no quarto do filho dele, o Ruyzito, que estava viajando (...) No dia seguinte, segunda-feira, eu, o Dr. Ruy, Olinda [esposa de Rocha] e o Presidente do Sindicato dos Jornalistas, Audálio Dantas, fomos os quatro ao quartel do II Exército para que eu me apresentasse. Fomos recebidos pelo General Ferreira Marques, uma vez que o então comandante, General Ednardo D’Ávila Mello, tinha ido para Brasília. A conversa durou cerca de meia hora, com a presença de outros oficiais graduados. E nela ficou acertado que eu permaneceria nas dependências do II Exército para prestar depoimento e responder às perguntas que me fossem feitas”.

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VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO CONTEÚDO VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO CONTEÚDO

Nesta sua matéria/depoimento, Marco Antonio Rocha ressalta ainda que “o importante, na conversa, foi o que o Dr. Ruy disse ao final, e que resumo no seguinte: ele, Dr. Ruy Mesquita, e o jornal que dirigia, o Estado, a partir daquele momento passariam a considerar o General Ferreira Marques pessoalmente responsável pelo que acontecesse ao jornalista Marco Antonio Rocha, que ali estava presente e ali ficaria para ser interrogado. O General, pretendendo não ter entendido o porquê da advertência, protestou que ela era inteiramente desnecessária, ao que o Dr. Ruy afirmou que se tornara necessária à luz dos fatos do sábado que haviam resultado na morte do jornalista Vladimir Herzog, não no quartel-general, mas em dependência policial militar vinculada ao II Exército. Com esse final, todos se despediram e eu fiquei ‘internado’ para o depoimento e interrogatório que durariam uma semana”. Rocha esclarece que naquele momento ele não era “ninguém especial, nem no jornal nem na vida do Dr. Ruy ou de sua família. Não podia esperar ser tratado pelo patrão com a hombridade, dignidade e coragem demonstradas pelo Dr. Ruy naqueles dias trágicos e politicamente violentos.” Dois anos depois, o mesmo patrão, que nada me devia, nem mesmo laços de amizade, teria um segundo gesto de apreço pela verdade e pelo seu funcionário, ao comparecer perante o Tribunal Militar para depor em minha defesa no processo em que fui acusado de ser subversivo, comunista e traidor da Pátria, nos termos da Lei de Segurança Nacional da época, que, como quase ninguém hoje sabe, ou se lembra, previa pena de morte para os condenados. Fui absolvido. De tudo ficou em minha consciência o exemplo de um dos melhores e mais atentos jornalistas que conheci nos meus 55 anos de profissão, mas também de uma figura humana de grandeza sem par: Ruy Mesquita”, conclui Rocha. Também referenciando Vladimir Herzog, Paulo Markun se recorda do mesmo mês de outubro de 1975, quando saiu da prisão: “Eu fora demitido retroativamente pela direção da TV Cultura, que teve a indelicadeza de apontar minha demissão quando Vlado ainda dirigia o jornalismo da emissora, onde eu chefiava a reportagem. Minha mulher à época, Diléa Frate, também foi demitida. Passamos momentos complicados. Luis Fernando Mercadante sugeriu que eu procurasse o Dr. Ruy Mesquita, a quem não conhecia. O Dr. Ruy me recebeu, expliquei a situação e pedi uma chance. Ruy Mesquita não fez qualquer comentário. Simplesmente autorizou a abertura de uma vaga no Jornal da Tarde, onde fiquei um ano. Nesse tempo, tive poucos contatos com ele. Nunca mencionou o fato. Mais de uma vez, o entrevistei. Até mesmo no Roda Viva, onde fiz questão de registrar o ges-

ESTADÃO CONTEÚDO

VIDAS

to, que o Dr. Ruy teve com muitos outros perseguidos pelo regime. Sem alarde.” A jornalista Cecília Thompson lembra que começou a trabalhar no Estadão em 1975, “uma época terrível, onde Vlado Herzog acabara de ser assassinado nos porões da ditadura”. “Fui convidada por Frederico Branco, editor de Internacional, editoria que era a menina dos olhos do Dr. Ruy. Eu traduzia os correspondentes estrangeiros que, àquela época, escreviam nas suas línguas originais. Bem mais tarde, Dr. Ruy e eu nos tornamos amigos, mas nos anos iniciais eu tinha, não digo medo, mas um respeito temeroso por ele e por Dr. Júlio. Coisa da minha cabeça jovem. Depois me tornei editora da seção Opinião e das colunas de Defesa do Cidadão e do Consumidor. Na página 3, a tarefa era editar (e muitas vezes encurtar) os artigos dos pensadores convidados. A página foi se tornando mais pluralista a cada ano, e nunca houve interferência em meu trabalho. Fui chamada à sala da diretoria, para esclarecimentos, apenas duas vezes: quando publiquei um artigo do Chico Mendes, ilustrado por uma xilogravura muito socialist reality, de seringueiras com um cara escondido atrás de um rifle (Chico ainda não tinha sido assassinado) e, mais tarde, quando Genoíno foi lá se queixar de que um artigo dele não tinha saído. Dr. Ruy conversava abertamente sobre tudo, dizia que eu era uma ‘comunista

Ruy Mesquita durante a festa comemorativa do primeiro aniversário do Jornal da Tarde. Ao seu lado, a jornalista Teresa Montero Otondo. À esquerda, ele recebe o prêmio Personalidade de Comunicação 2004.

chic’ e que ele também havia sido comunista quando jovem. ‘Quem não é comunista quando jovem é mau caráter’, dizia”. Ainda que com toda a sua vida profissional totalmente enraizada no Grupo Estado, o talento e o profissionalismo de Ruy Mesquita também são reverenciados pela concorrência. Segundo Otavio Frias Filho, Diretor de Redação da Folha de S.Paulo, “Ruy Mesquita foi uma das mais expressivas personalidades do pensamento liberalconservador no Brasil, apegado a princípios rigorosos e comprometido com a excelência jornalística. A liberdade de expressão perde um inestimável defensor”. Giancarlo Civita, Vice-Presidente do Conselho de Administração do Grupo Abril, faz coro: “O Brasil e o jornalismo perdem um grande defensor da democra-

cia, da livre iniciativa e da liberdade de expressão”. Fábio Barbosa, Presidente executivo da Abril S.A., diz que “a coragem, a força e a crença na construção de um Brasil melhor, ideais que sempre estiveram presentes na trajetória do Dr. Ruy Mesquita e do Grupo Estado, certamente deixaram um legado para o País e todos os brasileiros”, enquanto Jayme Sirotsky, Presidente emérito do Grupo Rede Brasil Sul-RBS, diz que “Ruy Mesquita deixa exemplo de integridade, com destaque na defesa da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa como sustentáculos da democracia”. As repercussões da morte de Ruy Mesquita ultrapassaram, e muito, as fronteiras brasileiras. Com sede na Alemanha, a World Association of Newspapers-WAN, representante de 18 mil publicações, lamentou a morte de Ruy, classificando-o como “um gigante do jornalismo brasileiro”, e “reconhecido amplamente como um defensor da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão”. Em Buenos Aires, Fernando Saguier, Vice-Diretor do La Nación, ressaltou que “a qualidade, a veracidade, o rigor e a independência protagonizados por Ruy Mesquita fizeram do Estado um dos grandes jornais do Brasil e do mundo”. Espanha e Portugal também noticiaram a morte. Já o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, considerava Ruy Mesquita “um desses raros exemplos de dono de jornal apaixonado pelo jornalismo”. E finalizando, Rodolfo Konder, Diretor da Representação da ABI em São Paulo, também enviou nota oficial a O Estado de S.Paulo, representando a Associação Brasileira de Imprensa: “Infelizmente, Ruy Mesquita se foi, embora continue abraçado à nossa memória de jornalistas e democratas, que sempre admiraram a sua coragem no combate ao autoritarismo. Fui colaborador regular de O Estado de S.Paulo durante anos, num tempo que exigia lideranças capazes de batalhar pela liberdade de imprensa e pela democracia, como Ruy Mesquita.”

Pesar da ABI pela morte de Ruy Mesquita A ABI divulgou declaração em que manifestou seu pesar pelo falecimento do jornalista Ruy Mesquita e destaca que ele deixou um “fecundo exemplo de como os jornalistas podem contribuir para a elevação dos padrões culturais e éticos do povo brasileiro”. Diz a declaração: “A Associação Brasileira de Imprensa recebeu com grande pesar o falecimento do jornalista Ruy Mesquita, Diretor do jornal O Estado de S. Paulo, que foi uma das mais destacadas personalidades da imprensa do País em seus mais de dois séculos de existência. Ao lado de seu pai, Júlio de Mesquita Filho, e de seu irmão Júlio de Mesquita Neto, o Dr. Ruy, como era respeitosamente chamado, participou das lu-

tas cívicas em que o Estadão se envolveu ao longo de mais de meio século e se notabilizou, como o irmão, pela coragem nas lutas contra a supressão das liberdades públicas e dos direitos individuais e pelo restabelecimento do Estado de Direito entre nós. Intelectual de grande envergadura, Ruy Mesquita deixa fecundo exemplo de como os jornalistas podem contribuir para a elevação dos padrões culturais e éticos do povo brasileiro. Contristada, a ABI apresenta à família enlutada e à corporação do Grupo Estado suas sentidas condolências. Rio de Janeiro, 22 de maio de 2013 Maurício Azêdo Presidente da ABI.”


Scantimburgo, jornalista e escritor, aos 97 anos REPRODUÇÃO

P OR P AULO C HICO

Jornalista, professor e escritor, integrante da Academia Brasileira de Letras ABL e da Academia Paulista de Letras APL, João de Scantimburgo faleceu no dia 22 de março deste ano, em Pacaembu/SP, aos 97 anos. Nascido em Dois Córregos, no interior de São Paulo, em 31 de outubro de 1915, cresceu e estudou em Rio Claro, Município no mesmo Estado, onde dirigiu o jornal diário Cidade de Rio Claro. Mudou-se para São Paulo em 1940. Depois de um começo árduo, conseguiu uma posição na Rádio Bandeirantes através de José Pires de Oliveira Dias – industrial farmacêutico da região. Saiu da rádio em 1943. Trabalhou para O Estado de S.Paulo, na época sob a direção de Abner Mourão. Na área da Comunicação, foi ainda Diretor dos Diários Associados (Diário de S. Paulo e Diário da Noite) e do Correio Paulistano – jornal de sua propriedade, que durou dois anos. Em sociedade, fundou a Televisão Excelsior (canal 9), da qual foi Presidente. Também esteve à frente do Diário do Comércio, jornal econômico-financeiro, editado em São Paulo e pertencente à Associação Comercial. Dirigiu a Digesto Econômico, revista bimestral de cultura, e a Revista Brasileira, da ABL, onde ingressou em 1992. Entrou para a APL em 1977. “Este foi um homem notável. Tive meu primeiro contato com ele quando era aluno do Colégio Dante Alighierie e estava indo mal em Filosofia. João de Scantimburgo era amigo do pai de um colega e nós dois tivemos aula com ele. O professor era

muito bom e rapidamente recuperamos as notas. Depois, fui encontrá-lo quando da minha candidatura para esta Academia. Ele me deu seu apoio e se tornou uma espécie de tutor dentro da casa. Mas o que precisa ser ressaltado é sua competência profissional. João foi um grande estudioso, um belo historiador, um excepcional professor, um jornalista de escol e um intelectual de nomeada. Além disso, foi um

homem íntegro e um marido excepcionalmente dedicado à esposa. A morte de homens como ele diminui o gênero humano”, lamentou o Presidente da Casa, Antonio Penteado de Mendonça. Seus escritos tinham o enfoque da universalidade e o poder de síntese dos grandes intérpretes dos cenários econômico, político, filosófico e social da vida contemporânea. Deixou mais de trinta livros Dentre eles, é possível destacar títulos como O Destino da América Latina – A Democracia na América Latina (Editora Nacional, 1966); José Ermírio de Moraes – O Homem e a Obra (originalmente pela Editora Nacional, em 1975, e relançado pela José Olympio, em 1986); Interpretação de Camões à Luz de Santo Tomás de Aquino (Edusp, 1979); O Brasil e a Revolução Francesa (Pioneira, 1989); e Eça de Queiroz e a Tradição (editado pela Siciliano, em 1995, e relançado pela Universitária, em 1998), além de Tratado Geral do Brasil (Editora Nacional/Edusp, publicado originalmente em 1971 e com várias reedições). João de Scantimburgo foi membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta–Rádio e Televisão Educativa (São Paulo), da diretoria da Fundação Bunge, do Conselho Curador da Fundação Bienal de São Paulo e da Irmandade da Santa Casa. Além da ABL e da APL, fez parte dos quadros de diversas outras instituições culturais, como o Instituto Brasileiro de Filosofia; o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro-IHGB e o PEN Clube do Brasil, entre outras respeitadas entidades brasileiras e internacionais.

Radialista morta a tiros no Amazonas

Álvaro Queiroz, o “Sociólogo”

A radialista Lana Micol Cirino Fonseca, 30 anos, coordenadora da Rádio Nacional do Alto Solimões, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), foi assassinada na noite de 26 de maio, na entrada de sua casa, localizada em Tabatinga, no Amazonas. O crime está sendo investigado pela polícia, que suspeita de motivação passional. Lana deixou dois filhos do primeiro casamento. De acordo com os funcionários da emissora, Lana estava com a filha e o namorado, o Sargento Alan Bonfim, quando dois homens em uma moto se aproximaram e efetuaram vários disparos. O sargento socorreu a radialista, que morreu a caminho do hospital. “A cidade toda parece que perdeu a voz. Está todo mundo calado. É uma tristeza muito grande ter perdido a nossa querida Lana, que era mais do que uma chefe de trabalho. Era uma pessoa que lutava pela segurança pública e para trazer informações que mudassem a vida das pessoas”, disse a radialista Mislene Fereira, colega de trabalho de Lana. A Rádio Nacional do Alto Solimões decretou luto oficial no dia 27 e retransmitiu a programação da Rádio Nacional da Amazônia. Lana iniciou a carreira ainda jovem nas rádios da cidade de Tabatinga, ao lado do pai, Moisés Fonseca. Seu corpo foi removido para a cidade de Manaus, onde foi sepultado.

A apenas uma semana de seu 78º aniversário, morreu no dia 21 de maio o jornalista Álvaro Gonçalves de Queiroz, cujo corpo foi sepultado em São Gonçalo, na presença de amigos e companheiros de profissão. Em nome destes e da ABI, fez a saudação póstuma a Álvaro o jornalista Randolpho Silva de Souza, Editor do jornal Monitor Mercantil. Sócio da ABI desde 1977, Álvaro militou na imprensa do Rio de Janeiro, na qual teve passagens marcantes, como, por exemplo, repórter do antigo Jornal dos Sports, no tempo em que era Chefe de Reportagem o jornalista Geraldo Romualdo da Silva. Como Álvaro era formado em Ciências Políticas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio, Romualdo ironizava a qualificação acadêmica de seu repórter, tratando-o de “Sociólogo”. Depois do JS, Álvaro trabalhou em diferentes jornais, como Última Hora e O Globo, entre outros, e na Rádio Roquette-Pinto. Ao lado do falecido jornalista Ricardo Bueno, que criou o programa, foi colaborador de Faixa Livre, da Rádio Bandeirante do Rio. Há anos Álvaro se isolara em Maricá, sem perder a vinculação com o hábito de escrever: Estava produzindo um livro e planejava lançar um jornal do condomínio onde morava. Álvaro deixa viúva e dois filhos, Alexandre e Ana Lúcia.

Medeiros, um mestre na arte do rádio O Brasil perdeu no dia 1º de maio o radialista Nelson Medeiros, de 83 anos, que era o mais antigo profissional do rádio em atividade, apresentador do programa Atrações e Variedades Nelson Medeiros, na Rádio Tropical (830 AM). Mineiro de Juiz de Fora, ele chegou a Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, na década de 1940 – e de lá não mais saiu. Nelson inaugurou a Rádio Solimões no dia 19 de julho de 1956, ZYP 32, AM 1520 Klcs-FM 107,9, sendo o primeiro radialista a ocupar seus microfones, na fase áurea do rádio no Brasil. Apresentava-se com suas músicas na Rádio Tupi e mantinha um programa na extinta Rádio Vera Cruz, no Centro do Rio. De suas atrações participavam estrelas da época, como Cauby Peixoto, Emilinha Borba, Marion Duarte, Aracy Costa e Carlos Moreira. Mesmo com problemas na saúde, seriamente agravados nos últimos anos, ao lado do neto, Nelson Medeiros Neto, ele seguia apresentando seu programa na Tropical, aos domingos, das 10h às 12h. Nelson Medeiros foi Príncipe do Rádio em 1957, eleito pela Associação Brasileira do Rádio, e foi coroado como o primeiro Rei Momo de Nova Iguaçu, em 1959. Vale lembrar, também, que encarnou o personagem Papai Noel da cidade por vários anos. Sua vida como comunicador, produtor e artista – atuou ainda como ator e compositor – sempre contou com o patrocínio das Indústrias Granfino, da qual foi funcionário por muitos anos. O sepultamento foi realizado no dia 3, no cemitério municipal de Nova Iguaçu.

Thaumaturgo, 63 anos de ABI A apenas seis meses de completar um século de vida, que transcorreria em agosto próximo, faleceu em Rio Branco, Acre, em 16 de fevereiro, o jornalista Francisco Thaumaturgo, que era sócio da ABI desde outubro de 1949, quando dirigia o jornal O Rebate. Natural do Amazonas, onde se registrou no Conselho Regional de Odontologia, Thaumaturgo radicouse no Acre, onde foi Deputado estadual por quatro legislaturas a partir de 1962. Seu último mandato encerrou-se em 1991.

JORNAL DA ABI 390 • MAIO DE 2013

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