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Crise na imprensa brasileira: de quem é a culpa?

CineOP: A censura nunca acabou. Hoje é sutil.

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JUNHO-JULHO 2013

DIVULGAÇÃO/CIA DAS LETRAS

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

Mia Couto ENTREVISTA EXCLUSIVA

FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

“Sou produto de uma nação que emergia com vontade de ser futuro.” PÁGINA 14

O repórter Pedro Vedova, da Globo News, foi alvejado por bala de borracha na testa.

P ÁGINA 17 E E DITORIAL “O TERROR NO PODER” NA PÁGINA 2.

VIDAS JACOB GORENDER • SCARLET MOON • MIGUEL BORGES • RICHARD MATHESON • TATIANA BELINKY • ROBERT APPY


MARCELLOCASAL JR/ABR

EDITORIAL

DESTAQUES 03 I MPRENSA - Jornais brasileiros: retratos de uma crise que não está no papel ○

09 I MPRENSA - Novas cabeças e novos modelos no jornalismo, por Natalia Viana ○

11 REFLEXÕES - A civilizada Quebec, por Rodolfo Konder ○

13 I NCENTIVO - Para festejar seus 60 anos, a Petrobras cria o maior Prêmio de Jornalismo do País ○

14 DEPOIMENTO - Mia Couto ○

21 CONVULSÃO - O dia em que a ordem da PM era atirar e bater ○

FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

O TERROR NO PODER MAURÍCIO AZÊDO AS GIGANTESCAS MANIFESTAÇÕES de ruas que mobilizaram milhões de pessoas comuns em várias cidades do País ao longo de junho revelaram o alto grau de indignação do povo com as mazelas com que se defronta no diaa-dia, expressas nas criminosas deficiências no atendimento à saúde, na péssima qualidade do ensino, na falta de transportes públicos de qualidade, apesar dos gastos bilionários que cevam os lucros das empresas, e no desperdício de dinheiros públicos, como os desembolsados para bancar as despesas da Copa das Confederações e da Copa do Mundo de 2014. Os responsáveis por essa orgia com os recursos que faltam para os investimentos essenciais surpreenderam-se com a magnitude das manifestações: pensavam que o povo estava apático, destituído de rigor crítico em relação a tantos absurdos e tanta corrupção, tanto desrespeito aos contribuintes. A PRESENÇA DO POVO nas ruas demonstrou a vitalidade da democracia no País e a ânsia da cidadania de ter uma participação decisiva na definição dos destinos nacionais. Por um forte paradoxo, as manifestações exibiram em toda a sua crueza e insensibilidade a permanência no Poder de práticas que se acreditava sepultadas para sempre após o fim da ditadura militar, como aquelas que marcaram as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro e que se reproduziram

em outros centros. Tal como fez a ditadura militar nos ásperos dias que se seguiram ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões de tortura do Doi-Codi de São Paulo, em 25 de outubro de 1975, os chefes da nova repressão estabeleceram zonas vedadas à realização de atos públicos, em feroz subtração do direito de ir, vir e permanecer assegurado pela Constituição. Contaram para esse fim com a cobertura colonialista da Fifa, à qual as autoridades federais, estaduais e municipais fizeram no chamado Caderno de Encargos das duas competições concessões que ofendem de forma irremediável a soberania nacional.

22 CONVULSÃO - A PEC da Impunidade já era ○

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26 PROJETO - Cães e Homens vai levar à tela os horrores da ditadura no Nordeste ○

28 EVOLUÇÃO - A informação, desde o tambor à internet ○

29 H ISTÓRIA - Todos contra a Última Hora ○

32 PERFIL - Indayassu Leite ○

34 MEMÓRIA - O inventor de revistas ○

36 L IVROS - No meio do caminho havia um cronista, por Rita Braga ○

36 E LEIÇÃO - FHC, o novo imortal ○

37 H ISTÓRIA - Uma viagem que mudou a imprensa no Brasil ○

40 A MBIENTE - Ruschi fora de risco ○

SEÇÕES

COMO TAMBÉM NA ÉPOCA da ditadura, a repressão manifestou-se de forma cruel e impiedosa, atacando pessoas desarmadas com gás lacrimogêneo, gás de pimenta, balas de borracha e vários tipos de agressões, que sitiavam as pessoas em restaurantes, bares, estações do metrô e até em entradas de hospitais, como se deu no Rio de Janeiro. Com comandos totalitários, a repressão estava fora de si, sem controle; perdera o senso de humanidade.

120 A CONTECEU NA ABI A volta do cronista

O MINISTÉRIO PÚBLICO Federal e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro estão a dever à cidadania a identificação dos responsáveis por tanta brutalidade e a responsabilização administrativa e penal desses criminosos.

45 Na inteligência de Scarlet Moon, o brilho da própria luz

120 Homenagem ao jornalismo alternativo ○

L IBERDADE DE I MPRENSA 17 Manifestações chacoalham a imprensa ○

20 Levantamento da Abraji revela: 52 jornalistas vítimas de violências ○

21 Sem script, sem cronograma, por Alberto Dines ○

27 CARTAS DOS LEITORES ○

VIDAS 44 Gorender e a coerência necessária ○

46 O cinema perde o fecundo Miguel Borges ○

46 Richard Matheson, a lenda ○

47 A versátil Tatiana Belinky ○

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Robert Appy, um pioneiro na área de economia ○

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23 H ISTÓRIA - Cinema brasileiro: É preciso preservar o que já foi feito


IMPRENSA

JORNAIS BRASILEIROS: RETRATOS DE UMA CRISE QUE NÃO ESTÁ NO PAPEL Explosão do número de demissões de jornalistas assusta e coloca em xeque o futuro da categoria. E lança no ar questões sobre as causas reais da atual crise dos veículos impressos.

O

ano de 2013 tem sido marcado por perdas de grande vulto para o jornalismo brasileiro, como a morte de Ruy Mesquita, de O Estado de S.Paulo, em 21 de maio, e Roberto Civita, da Abril, no dia 26 do mesmo mês. Pior do que isso. Mais do que a partida de importantes criadores, o setor de comunicação defronta-se com a enfermidade de muitas de suas criaturas. Como diria o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ‘nunca antes na história deste País’ um volume tão grande – e de tamanho peso – de publicações impressas mergulhara em águas tão turvas. Invariavelmente, o noticiário acerca da impren-

POR PAULO CHICO sa, nos últimos meses, bate repetitivamente em algumas teclas, tais como a reestruturação de vários cadernos dos principais jornais, com a redução do número de páginas. A extinção de alguns suplementos. E a demissão em massa de jornalistas. Sinais de uma crise profunda. Logo no início deste ano, o mercado foi sacudido com as informações sobre a reestruturação no Grupo Estado – que em 31 de outubro de 2012 já havia jogado a fúnebre pá de cal sobre o revolucionário Jornal da Tarde, fazendo chegar às bancas de São Paulo sua última edição. Nos cortes anunciados em abril, foi confirmada a compactação da edição impressa

de O Estado de S.Paulo em apenas três cadernos e um suplemento – bem como a demissão de cerca de 50 profissionais, muitos deles ‘sobreviventes’ da Redação do JT. Na época, Francisco Mesquita Neto, Diretor-Presidente do Grupo, apressou-se em explicar tais medidas: “Nossas pesquisas confirmaram o que já vínhamos detectando: as pessoas querem mais eficiência no consumo da informação, sem abrir mão do aprofundamento e da análise. O resultado será um jornal centrado em três cadernos noticiosos, e cada dia com seu suplemento temático. Aos finais de semana, quando os leitores têm mais tempo, a oferta se amplia”. JORNAL DA ABI 391 • JUNHO/JULHO DE 2013

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IMPRENSA JORNAIS BRASILEIROS: RETRATOS DE UMA CRISE QUE NÃO ESTÁ NO PAPEL

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mesma estratégia de enxugamento foi adotada pela Folha de S.Paulo. Num pacote de medidas anunciadas em 4 de junho, do qual se destacou o fim do caderno Ilustríssima, o tradicional jornal promoveu demissões em vários setores. Os cortes, estima-se, chegaram a 10% do corpo de funcionários, com o desligamento de profissionais em São Paulo e no Rio de Janeiro, entre eles, Fábio Seixas, até então coordenador da sucursal carioca, e a escritora Danuza Leão, que deixou de ser colunista – assim como Nelson Motta perdeu o posto no Estadão. O cenário da crise pela qual passam alguns dos principais veículos impressos no Brasil está longe de ter atingido seu ápice final. Bastou a morte de Roberto Civita para que, em menos de duas semanas, o Grupo Abril anunciasse a reestruturação de suas unidades, com demissão de executivos, redução nos quadros de funcionários e suspeição quanto à continuidade de títulos consagrados, como as revistas Playboy, Contigo e Capricho. Somente no dia 7 de junho teriam sido 70 as baixas profissionais no império dos Civita. O Valor Econômico, jornal pertencente ao Grupo Folha e às Organizações Globo, também demitiu quase 30 jornalistas este ano. No interior do Estado de São Paulo houve demissões. O desligamen-

to ocorreu em A Tribuna, o maior jornal da região da Baixada Santista, e na Rede Anhanguera de Comunicações, que domina as regiões ao redor de Campinas, Ribeirão Preto e Piracicaba. E se repetiu em veículos de outras regiões, como em A Crítica, do Amazonas, e no Diário Catarinense, de onde partiu uma ‘barca’ com cerca de 20 profissionais, em 21 de março. Apesar de falar em “crescimento expressivo de 62%” nos últimos três anos, a Editora Trip demitiu cerca de 20 profissionais no dia 29 de maio, entre funcionários de texto, arte e comercial. Eles atuavam nas revistas Trip e TPM que, ao que tudo indica, terão partes de suas Redações unificadas. A Folha de Pernambuco demitiu nove profissionais de várias editorias. Desde 3 de junho, houve dispensas na área de fotografia, no caderno de Esportes, na coluna social e na revista publicada pelo periódico. Além disso, o Editor-Chefe do jornal, Henrique Barbosa, entregou o cargo. Chargistas e editores-executivos entraram na lista. Os cortes estariam relacionados à redução de custos, para promover a “melhora econômica da empresa”. Como resultado da transferência da Redação de São Paulo para o Rio de Janeiro, o Brasil Econômico demitiu em abril vários jornalistas, sendo 22 registrados em carteira e dois PJs (pessoa jurídica). Do mesmo grupo Ejesa, o jornal Marca já havia sido des-

continuado em janeiro. Também mergulhado em crise financeira, o Estado de Minas busca um comprador para o edifício onde está montada sua Redação, localizada na Avenida Getúlio Vargas, num dos pontos mais valorizados de Belo Horizonte. De acordo com fontes do mercado imobiliário, o jornal, que pertence aos Diários Associados, estaria pedindo R$ 50 milhões pelas instalações, mas teria recebido ofertas de, no máximo, R$ 30 milhões. Assim como o Estadão, o Estado de Minas enfrenta custos crescentes, queda de circulação e diminuição da receita publicitária. Como se vê, a lista é quase interminável. E poderia incluir ainda o gigante O Globo, que, no mercado publicitário, vem encontrando sérias dificuldades em ne-

gociar a inserção de espaços em suas páginas impressas – e no próprio site. As organizações dos Marinho batem cabeça em busca de fórmulas de comercialização de seus produtos – e vêm amargando prejuízos e críticas ao adotar medidas radicais e impopulares, como as restrições de compartilhamento de seu conteúdo no Google e nas redes sociais, dentre as quais se destaca o Facebook. Nem mesmo a fé tem sido suficiente para preservar os postos de trabalho. Em março, a Editora Universal, responsável pela Folha Universal, dispensou metade de seus quadros. Em grande parte administrada pelo mesmo grupo de bispos, a TV Record tem feito sucessivos cortes, sacrificando, sobretudo, cabeças no Departamento de Jornalismo. Afinal, o que justifica tamanha crise? O que está acontecendo com a mídia brasileira, em especial, com os jornais impressos? Estarão eles fadados à extinção ou, mais do que uma crise do jornalismo de papel em tempos de mídia digital, o setor estaria experimentando as agruras diante da própria incapacidade de adaptar-se aos novos modelos de negócios? Como reverter esse jogo, garantir a sobrevivência de tradicionais publicações e o emprego de tantos jornalistas? São respostas a essas e outras perguntas que esta matéria especial do Jornal da ABI busca responder.

ONDE O PROBLEMA

BATEU E BATE FORTE JORNAL DA TARDE O ESTADO DE S. PAULO FOLHA DE S. PAULO EDITORA ABRIL VALOR ECONÔMICO A TRIBUNA, DE SANTOS REDE ANHANGUERA A CRÍTICA, DE MANAUS DIÁRIO CATARINENSE REVISTA TRIP

As análises de Noblat, Daniel Castro, Alberto Dines, Paulo Nogueira, Marcelo Coelho e Augusto Nunes

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Não há como! Essa equação não fecha! E não há como jogar a culpa por isso tudo apenas nas costas da internet...”, aponta Ricardo Noblat, blogueiro de O Globo. Na análise de Noblat, com passagens por cargos de chefia no Correio Braziliense e no Jornal do Brasil, tem faltado criatividade e capacidade de adaptação dos donos de jornal e dos editores às novas realidades de produção e difusão da informação. “Os jornais têm que procurar oferecer conteúdo exclusivo aos seus leitores. Eles ficam repetindo o que está no site, replicando informes de agências. Hoje, quase todo mundo produz e publica algum tipo de conteúdo. Por isso, é preciso oferecer algo exclusivo, com aprofundamento, tratar dos fatos relevantes, que eventualmente a internet trata superficialmente. Aliás, a própria internet deveria aprofundar mais a sua cobertura”. Nesta entrevista ao Jornal da ABI, Noblat segue em sua análise. “Os jornais fazem assim por falta de imaginação, por preguiça, sei lá! Acredite: mais que os donos dos jornais, os jornalistas são muito conservadores... Posam de progressistas. Mas, de verdade, não querem mudar nada. Até a forma de escrever lead

DIVULGAÇÃO

“Essa crise não começou com a internet, e sim com a má gestão dos próprios jornais, que se afundaram em grandes obras. Fazer dívidas é sempre fazer uma aposta – que pode ser muito ruim. O mercado amarga os resultados de uma crise de gestão. Os jornais, em geral, são empresas mal geridas. Essa crise financeira reflete-se no conteúdo. A onda de demissões pode até ter se agravado agora, mas já ocorre há muito tempo. Como empresas, os jornais apostam no enxugamento, inventam teorias fantásticas para justificar os cortes, querem edições mais compactas... Um jornal feito em Redações mal dimensionadas tem sua qualidade comprometida – e essa política infindável de redução é um suicídio. Não há como se recuperar sem bom conteúdo. Precisa haver renovação, rejuvenescimento... Mas não podemos ter em todos os jornais só gente recém-formada. Essa é a realidade de hoje: temos Redações exageradamente jovens, compactas, e quase sempre mal pagas, pois há um achatamento dos salários. Esses jovens jornalistas são inexperientes – e estão sobrecarregados. E a direção quer entregar ao leitor um produto de qualidade superior...

Daniel Castro: Vivemos uma crise dos donos dos jornais. O jornalismo vai bem, obrigado.

e subleads – que é um negócio do século passado – é seguida até hoje. Eles não querem arriscar ir contra o estabelecido. Fica todo mundo acomodado, esperando um pauteiro. O que falta aos jornalistas é justamente o ato de sair em campo,

partir para a rua, descobrir assuntos interessantes. O mundo está cheio de histórias, e ainda apostamos numa cobertura convencional. A pauta, pode reparar, é toda amarrada às fontes oficiais. A cobertura no Congresso Nacional é ‘palavrória’, baseada em discursos. Falta esmiuçar, fuçar as conversas de corredor. Os jornalistas não enxergam notícias que, por vezes, passam bem na sua frente. Continuam encantados por declarações, que logo viram manchetes, tais como ‘Lula fala mal da imprensa’. Ele fala sempre, pois tem a certeza de que aquilo será publicado no dia seguinte. E os jornais caem nesta armadilha! Abrem espaço para essa repetição, como se o ex-Presidente promover toda essa esculhambação ainda fosse uma coisa nova”, criticou. Daniel Castro, 46 anos, atuou por 18 anos na Folha de S.Paulo. Em 2009, migrou para a Record, atraído por uma proposta de direção de programa de tv – que nunca saiu do papel. Atualmente, trabalha para o meio digital – escreve sobre televisão em um blog do portal R7 – e comenta sobre mídia no Jornal da Record News, apresentado por Heródoto Barbeiro. Freqüentemente, o tema da crise


FRANCISCO UCHA

dos impressos é debatido no telejornal. “Numa perspectiva analítica, a crise dos jornais brasileiros é conseqüência do histórico baixo índice de leitura, ou seja, resultado de uma política elitista que, lá atrás, expurgou a grande maioria da população do acesso à informação. Porque a televisão também sofre concorrência da internet, mas não está em crise, ainda. E porque jornais de países com grande tradição de leitura, como os Estados Unidos, também sofrem, mas exibem bastante vigor”, disse. A crise é ainda conseqüência da falta de habilidade dos veículos ao lidarem com a internet, acredita Daniel. “Os grupos que exploraram melhor a nova tecnologia, como a Folha de S.Paulo, não estão tão mal. Os jornais não souberam tirar proveito dos novos recursos nem souberam criá-los, como a tv vem fazendo com a chamada segunda tela. Não souberam fazer a web render dinheiro de publicidade tanto quanto o impresso. Os jornais, diante da concorrência com a internet, trataram de tornar suas páginas mais atraentes graficamente e os textos mais curtos. Correto. Mas se ‘esqueceram’ de que, para concorrer com a internet, têm que oferecer algo a mais, ou seja, a profundidade e a exclusividade, mesmo que em textos curtos”. A pedido do Jornal da ABI, o colunista do R7 fez uma análise do momento atual de O Estado de S.Paulo – uma das publicações que agonizam em praça pública. “O grupo sofreu dois grandes golpes da internet: a nova mídia matou as listas telefônicas e os classificados, suas duas maiores fontes de receitas. E o jornal demorou a visualizar os impactos que a internet traria, não reagiu. Até hoje o Estadão não tem uma plataforma de web realmente relevante. Os jornais não souberam enfrentar a internet adequadamente. Insistem na cobrança de assinatura, de pay-wall, quando ninguém mais está disposto a gastar um centavo por informação. Deveriam ter buscado fórmulas de ganhar dinheiro na web com publicidade, como fazem no impresso. Ou como o Uol vem fazendo, oferecendo serviços de TI. Acredito que vivemos uma crise dos donos dos jornais. O jornalismo vai bem, obrigado.” Apesar disso, Daniel não é nada otimista em relação ao futuro reservado às publicações impressas. “Os jornais parecem condenados à extinção porque as novas gerações não têm o hábito de lêlos, nem aceitam que se destruam milhares de árvores e se poluam rios para ter acesso a um veículo que pode ser substituído por outro ecologicamente mais correto. Além disso, os jornais erram ao trocar jornalistas experientes por focas. Nada contra a renovação das Redações, mas a substituição tem sido muito rápida e motivada apenas por cortes salariais. Jovens podem até produzir mais, mas nem sempre podem oferecer a contextu-

alização e a análise de um fato que um profissional experiente e bem pago pode proporcionar. Essa renovação acelerada afeta a qualidade dos impressos e os torna mais parecidos com a internet – mais descartáveis e menos indispensáveis, portanto”. O próprio Daniel cumpriu a transição do impresso para o meio digital – televisão e site. E tece uma comparação crítica, quase impiedosa, sobre as mudanças na natureza do trabalho do jornalista que migra de uma plataforma para outra. “O principal impacto é a mudança de público. Na internet, falamos para um público muito maior, popular e, até certo ponto, ingênuo, embora boa parcela seja tão crítica quanto o leitorado de impresso. De certa forma, migrar para a internet é trocar um jornalão por um jornal popular. E hoje, quem quer audiência na web e na televisão tem que falar para a classe C, ou seja, de uma forma simples, e explorar assuntos como celebridades e animais domésticos. Tudo bem ter que fazer isso... O problema é que tem portal que só pensa em audiência e esquece do jornalismo ‘mainstream’. Então, a migração do impresso para o online não está sendo plenamente satisfatória: há muito entretenimento e pouco jornalismo na web. Muita fofoca e pouca informação relevante, exclusiva. Inclusive – ou principalmente – nas versões online dos chamados jornalões”. Os jornais populares – no Rio, há os casos de Meia Hora e Expresso – têm alcançado bons números de vendas. Mas dificilmente, acredita Daniel, eles podem vir a nortear um novo posicionamento dos impressos no Brasil. “Uma coisa é o nicho dos populares, e outra o dos grandes jornais. A chamada grande imprensa deveria, sim, apostar em conteúdo mais analítico e exclusivo, para se diferenciar da internet, mas deveria também tornar-se mais acessível, insistindo em uma linguagem simples e clara, numa diagramação agradável e fartamente ilustrada, e oferecendo mais conteúdo que o público deseja, como a cobertura de esportes, celebridades e bastidores da televisão”.

ANÁLISE DETALHADA SOBRE A CRISE, A PARTIR DO CASO ESTADÃO Em artigo publicado no Observatório da Imprensa no dia 30 de abril, Alberto Dines elencou uma série de razões para a crise que assola o jornal dos Mesquita. “De repente, a esqualidez coletiva, a magreza como exercício de descartabilidade. O suicídio assumido publicamente pelo antigo Estadão a partir da segundafeira, dia 22 de abril, foi compartilhado

menos duas horas para ler a safra de jornais e revistas, o tempo de leitura vai se reduzir substancialmente. Pouco adiantará esticar os infográficos, dramatizar os episódios policiais e as abobrinhas oriundas da tv. Nosso jornalismo esgotouse, patina na desimportância, incapaz de reencontrar as fontes de vitalidade e renovação. Nem a antecipação do embate presidencial conseguirá aumentar a circulação ou a receita da mídia impressa, porque onde não há diversidade, não há surpresas. O inesperado não se sustenta automaticamente.” Linha um pouco mais radical foi adotada pelo jornalista Paulo Nogueira, no artigo A agonia do Estadão. Baseado em Londres, ele é ex-Diretor da Exame (Abril) e da Editora Globo, além de fundador e Diretor Dines: Nosso jornalismo esgotou-se, patina na desimportância, incapaz de reencontrar as fontes de vitalidade e renovação. Editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do com uma sensação de alívio pela concorMundo. “O Estadão está virtualmente rência. O novo figurino Ersatz – sucedâmorto. Está cumprindo todas as excrucineo inferior – caiu do céu, presente dos antes etapas da agonia dos jornais (e das deuses. É extremamente conveniente aos revistas) na era da internet: demissões, diários ditos nacionais e regionais, finaldemissões, demissões. Menos páginas, mente desobrigados de competir em quaborderôs menores. E futuro nenhum. lidade e densidade. As elites endinheiraPode ser que, em breve, o Estadão circule das não gostam de jornais opulentos, duas ou três vezes por semana, como está substanciosos, preferem a sublime draacontecendo com tantos jornais no maturgia das telenovelas, fingem que são mundo. A Folha de S.Paulo, em outras cirinformadas pelas mídias sociais e adoram cunstâncias, vibraria. Na gestão Frias, um desfolhar revistas com as irresistíveis dos dogmas na Alameda Barão de Limeicitações proferidas por celebridades de ra era que apenas um jornal sobreviveria shortinho. Já as empresas jornalísticas, em São Paulo. Semimorto o Estado, ficaincapazes de multiplicar talentos e há ria a Folha, portanto. Mas os problemas da décadas apostando em estrelas fatigadas Folha são exatamente os do Estado. Pela pela rotina da submissão, começaram a extrema má gestão dos Mesquitas, eles afiar bisturis e guilhotinas, ávidas para apenas estão levando mais cedo o Estadão cortar custos e gorduras”, escreveu ele, ao cemitério. Isso quer dizer que não vai que seguiu em sua argumentação. sobrar nenhum”, sentenciou. “Mesmo que a internet não apareça Membro do Conselho Editorial da como vilã dessa crise, a verdade é que Folha de S.Paulo, Marcelo Coelho avaliou nossa economia não tem fôlego para susas mudanças na seara do jornalismo imtentar uma imprensa bem nutrida, criapresso, atendendo a um pedido do Jornal tiva, variada, estimulante. Aquela sucesda ABI. “Os jornais têm cometido alguns são de anúncios de página inteira vendenpecados... Dentre eles, acho especialmente do a felicidade imobiliária dá prejuízo, as ruim que, em busca de mais leitores, se tente construtoras e incorporadoras gozam de ‘popularizar’ o jornalismo de mais prestítremendos descontos, condenadas a sergio. Acho que a ‘vespertinização’ dos granvir de atração para o negócio de classifides jornais tende a torná-los supérfluos face cados tal como as montadoras de carros à rapidez da internet. Em busca dos leitoque só conseguem escapar da anorexia res perdidos, muitas publicações têm tencom o corte no IPI. Nossa indústria de eletado, em suas versões impressas, ‘se aprotrodomésticos esgotou-se, os aparelhos ximar’ do formato digital. O caminho desão os mesmos há anos, os cadernos do veria ser justamente o oposto, isto é, busúltimo fim de semana só ofereciam celucar a diferenciação e a valorização do conlares e tablets. Razão pela qual nenhum teúdo do impresso. O pior caminho é aposjornal se arrisca a denunciar o desastrotar na burrice do leitor”, defende, para conso serviço das operadoras de telefonia e cluir em seguida. “Provavelmente, o futuprovedoras de acesso digital”. ro do jornal impresso está na sua elitização. Para Dines, a autoflagelação do antigo Mas, no Brasil, acho que ainda há campo Estadão é apenas o começo de uma peripara o crescimento de circulação média, gosa desertificação jornalística. “Se até dadas as vantagens da elevação geral do paagora se gastava no fim de semana pelo drão de vida e de educação da população.”

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IMPRENSA JORNAIS BRASILEIROS: RETRATOS DE UMA CRISE QUE NÃO ESTÁ NO PAPEL

vras. A solução está no jornalismo analítico. A internet proporciona a informação rápida. As análises são feitas às pressas, e por isso mesmo são incompletas ou muito rasas. Esse espaço deveria ser ocupado pelos jornais que, no entanto, não estão cumprindo esse papel. Se eu assumisse a direção de uma Redação, hoje, minha primeira medida seria acumular o comando do jornal impresso e do site, para harmonizar as coisas. O site antecipa notícias. Logo, o jornal deveria explicar ao leitor o que está acontecendo”, disse ele, que atualmente é colaborador e colunista da Veja.

DIVULGAÇÃO

Ao longo da carreira, Augusto Nunes dirigiu as revistas Veja e Época, além da edição brasileira da Forbes. Esteve no comando de diários como O Estado de S.Paulo, Jornal do Brasil e Zero Hora. É com todas essas credenciais que avalia a situação atual dos impressos, especialmente para o Jornal da ABI. “Faltam criatividade e capacidade de adaptação à internet tanto aos donos dos jornais, quanto aos jornalistas. O maior pecado cometido é a redundância. Quem lê hoje os sites dos grandes jornais está lendo o que estará impresso amanhã. As manchetes se repetem, às vezes com as mesmíssimas pala-

Nem todos vêem os mesmos sinais de agravamento

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circulação. Mas, ainda assim, creio que não seja possível afirmar que o meio como um todo vive um momento de crise. O crescimento não é tão robusto como há seis ou sete anos, mas o País caminha na contramão do cenário verdadeiramente negativo que vemos em mercados mais desenvolvidos. Se fizermos uma análise por forma de distribuição, por exemplo, constatamos aumento de 3,4% no volume de exemplares comercializados por assinaturas em 2012”, pondera Pedro Martins, para quem o surgimento da internet e sua veloz popularização de acesso vieram alterar em definitivo as regras da circulação da informação. “Não há qualquer dúvida de que a internet está mudando essa forma de consumo. O IVC também realiza a auditoria na internet. Notamos crescimento expressivo no tráfego dos websites com audiência verificada. Contudo, o impacto para os jornais é relativo. Acredito que os editores brasileiros possuem criatividade e capacidade de adaptação e esse fator é favorecido quando há um cenário de investimentos. Dois aspectos que deixam isso claro é a ascensão dos jornais populares e, agora, o crescimento do consumo das edições digitais de publicações. Em 2012, a circulação delas teve a expressiva alta de 128%. Vale aqui esclarecer que há diferença entre ‘audiência web’ e ‘circulação de edições digitais’ das publicações. A primeira é referente aos acessos nos websites das publicações. No caso da ‘circulação de edições digitais’, estamos falando de uma cópia da versão impressa entregue em ambiente digital”. A manutenção da média geral da circulação de jornais no País pode ter sua explicação no fenômeno das publicações populares que, em boa parte devido à aposta no humor, tomaram conta das bancas na última década. “Esses títulos, com preços de capa de até 99 centavos, foram os grandes impulsionadores da evolução da circulação brasileira. Eles têm fundamental im-

Pedro Martins Silva: O setor apresenta elevação de leve a moderada ano após ano.

portância na formação de novos leitores. Esse movimento foi beneficiado por avanços na educação e pelo momento econômico favorável que o País vive. Contudo, o crescimento da circulação deste segmento está em desaceleração e o aumento em 2012 foi de 1,8%, – diferentemente de anos anteriores, quando a alta chegou à casa dos dois dígitos. De qualquer forma, esse nicho conquistou seu espaço no mercado e deve continuar tendo importância significativa nos próximos anos para a circulação dos jornais”, aposta o Presidente Executivo do IVC.

A CAPITAL NÃO É MAIS O ÚNICO CENTRO DA ATIVIDADE PROFISSIONAL José Augusto Camargo é Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP), além de SecreDIVULGAÇÃO/SJSP

“A circulação média do meio jornal no Brasil vem crescendo desde 2009, quando houve o último declínio, ainda efeito da crise econômica internacional. A partir de 2010, houve retomada e os números já superam os patamares de 2008, quando o segmento tinha crescimentos mais vigorosos. Atualmente, o setor como um todo apresenta elevação de leve a moderada ano após ano, dependendo da segmentação. Considerando os principais jornais do País, tivemos no último balanço uma evolução de 1,2%. No caso dos jornais com preço de capa entre R$ 1 e R$ 2, que inclui alguns dos principais títulos regionais, o avanço foi ainda melhor. Constatamos crescimento médio de 2,4% para esse grupo”, avalia o Presidente Executivo do IVC-Instituto Verificador de Circulação, Pedro Martins Silva, em entrevista ao Jornal da ABI. Mas, então, onde está a crise? O que justifica as reduções de tamanho das edições e – sobretudo – tantas demissões? Uma suspeita é de que embora a venda dos exemplares se mantenha estável, os jornais perderam muitos recursos advindos do mercado publicitário. Segundo relatório do IAB Brasil (Interactive Advertising Bureau), a verba publicitária da internet superou a dos jornais no primeiro trimestre de 2012, tornando-se a segunda mídia com maior receita publicitária no Brasil, perdendo apenas para a televisão. Embora boa parte desses anúncios vá parar nas empresas tradicionais de comunicação – como no portal Uol, do Grupo Folha –, uma generosa fatia vai para os sites de busca, como o Google – que entrega aos anunciantes um retorno mais ‘selecionado’. Esse último modelo somou R$ 3,82 bilhões em anúncios em 2012 – com taxa de crescimento de 39% em relação a 2011, sendo o formato de publicidade que mais se expandiu nos últimos dois anos. Milhões de reais que, certamente, antes eram empregados nas páginas dos impressos. “O IVC, é importante dizer, toma como parâmetro apenas os números de

Guto: mercado não vai mal, mas existe um problema de ‘gestão estratégica’.

tário-Geral da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas). Guto, como é chamado, tem acompanhado de perto as demissões nas publicações paulistas. Em sintonia com a avaliação feita por Ricardo Noblat no início desta reportagem, ele crê que o aperto nas finanças das empresas jornalísticas é provocado mais por gargalos de gestão do que por uma suposta retração do mercado. “Como mostram os dados do IVC, o problema principal está na administração. Mas existem casos emblemáticos de alguns jornais importantes, que passam por crises neste momento. O mercado geral, como um todo, não vai mal. A explicação mais plausível é a de que existe um problema de ‘gestão estratégica’ nas grandes redes de comunicação, que não se reflete na totalidade das publicações.” A tese defendida por Guto considera que as empresas jornalísticas tradicionais, quando do surgimento da internet, não compreenderam o potencial da nova mídia. Inicialmente, utilizaram o meio basicamente como uma forma de ‘marketing’, divulgando o conteúdo gratuitamente, tentando chamar a atenção para o impresso. E, agora, depois que criaram o hábito em toda uma geração de buscar informações jornalísticas de graça, querem cobrar por elas. “Hoje, esses grupos perceberam que a internet é uma mídia específica, na qual chegaram atrasados. Eles estão tentando recuperar o tempo perdido. Na minha opinião, ainda não acharam o caminho”. O Presidente do SJSP chega mesmo a questionar a existência de uma onda de demissões nas Redações de São Paulo. Os dados coletados pelo Departamento Jurídico do Sindicato, a partir das homologações feitas – todas as demissões de jornalistas com mais de um ano de casa precisam passar pela entidade – apontam para um quadro bastante diferente da percepção comum que se tem sobre a situação da profissão. Em 2010, foram realizadas 672 homologações, sendo 46,8% demissões pela empresa e 52,5% pedidos de demissão. Neste ano, talvez imbuídos pelo lema do Capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite, mais jornalistas ‘pediram para sair’ do que foram demitidos. Em 2011, foram realizadas 902 homologações – sendo 55,9% demissões pela empresa e 43,6% pedidos. Em 2012, foram realizadas 863 homologações – sendo 54,5% dispensas pela empresa e 43,5% solicitações. Não há como arriscar um panorama final para 2013. “Os números demonstram que há quase um equilíbrio constante entre demissões e pedidos de demissões, o que aponta para uma grande rotatividade de mão-de-obra no mercado. Por outro lado, os dados da Relação Anual de Informações Sociais-Rais mostram um crescimento contínuo do mercado formal de trabalho de jornalista, ou seja, daqueles que têm carteira de trabalho assinada. Os números revelam que o mercado passou de 11.945 empregos em 2006 para 16.596 empregos em 2011, um aumento de quase 40% no


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DIVULGAÇÃO

IMPRENSA JORNAIS BRASILEIROS: RETRATOS DE UMA CRISE QUE NÃO ESTÁ NO PAPEL

mercado formal. Isso demonstra que o campo para jornalistas está crescendo. Na verdade, o que está acontecendo é a diminuição dos postos nas grandes Redações e a abertura de vagas em pequenas empresas e no interior, mudando o perfil do mercado, que deixa de se concentrar em poucas empresas da capital e se diversifica em muitas espalhadas por várias localidades – o que, inclusive, traz novos desafios à atuação do Sindicato”, afirma Guto. Dados coletados pelo SJSP confirmam essa tendência, ao comprovarem que em 2000 o Município de São Paulo representava 66% do mercado de trabalho formal para o jornalista; em 2011 — último ano da pesquisa — este índice baixou para 55%. Segudo o sindicalista, o setor no interior do Estado é bastante diversificado. Há jornais locais, alguns já centenários, e redes de publicações regionais. Naturalmente, neste contexto, alguns estão consolidados, enquanto outros passam por dificuldades. A abertura de vagas nestas cidades deveu-se, principalmente, à interiorização das redes de TV. Ao se avaliar os números do triênio 2010-2012, é possível perceber que a empresa que mais demitiu neste período foi justamente a Editora Abril (326 jornalistas), seguida pelo Grupo Estado, com 281 demissões. “A situação da Abril é explicada pelo fato de ela ser a maior empregadora de jornalistas da América do Sul. E o Estadão, este sim, pela crise de gestão pela qual passa nos últimos anos”, acredita o Presidente do Sindicato, que comenta ainda a atuação da entidade diante da dispensa dos profissionais. “As empresas bem estabelecidas no mercado geralmente respeitam mais os direitos trabalhistas. Nestes casos, os maiores problemas são as horas extras não pagas e eventuais períodos de trabalho como ‘freela fixo’. As ações jurídicas são tomadas normalmente e temos obtido alto índice de ganho na Justiça. Os grandes dilemas ficam por conta de empresas que vão ‘minguando’ até desaparecerem, deixando um rastro de problemas com seu fechamento. São os casos de Gazeta Mercantil, do Jornal do Brasil, do antigo Diário Comércio, Indústria & Serviços, entre outras. O Sindicato parte do princípio que o emprego deve ser sempre preservado, mas, infelizmente, em alguns casos isto se torna impossível devido à intransigência patronal. Nessas situações extremas a negociação para compensar as demissões se torna inevitável. Foi isto que aconteceu recentemente no Estadão/Jornal da Tarde e no Brasil Econômico/Jornal Marca, onde conseguimos a extensão do plano de saúde por seis meses e uma indenização para os demitidos, além, naturalmente, da garantia do recebimento de todos os direitos.”

A CRISE REPERCUTE NA MÍDIA ALTERNATIVA Natalia Viana começou sua carreira em 2002, na revista Caros Amigos – outra res-

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peitada publicação que recentemente efetuou cortes em sua equipe. Sempre teve a rua como habitat, até mesmo para alimentar sua sede pelas reportagens investigativas. Autora de artigo escrito especialmente para o Jornal da ABI, e que complementa esta matéria, a jornalista fundou em 2011 a Agência Pública que, segundo definição em seu próprio site, tem como missão “produzir reportagens de fôlego pautadas pelo interesse público, sobre as grandes questões do País do ponto de vista da população – visando ao fortalecimento do direito à informação, à qualificação do debate democrático e à promoção dos direitos humanos. Além de produzir, a Pública atua para promover o jornalismo investigativo independente, através de programas de formação para jovens jornalistas e bolsas de reportagem”. Por isso mesmo, a agência já dedicou generosos espaços para tratar do tema abordado nesta reportagem. Em matéria publicada no dia 10 de junho, com o título A Revoada dos Passaralhos, destacou: “Passaralho é um jargão agressivo para as demissões em massa nos meios de comunicação. Remete a pássaros, revoadas de algo que destrói tudo por onde passa. (...) Considerando apenas os jornalistas registrados em carteira e somente na cidade de São Paulo, foram registradas 280 demissões homologadas de janeiro a abril deste ano, 37,9% a mais que no mesmo período de 2012, quando foram contadas 203 homologações por conta de demissões. Ou seja, tudo indica que 2013 será pior que o ano passado, quando mais de 1.230 jornalistas foram demitidos de Redações no Brasil. Os motivos, em geral, foram ‘reestruturações’, que nada mais são que novas formas de organizar o trabalho usando menos pessoas e mais tecnologia”. Existe uma crise nos impressos? Nada a declarar, respondem os jornais. Este é o título de outra matéria publicada no site – de autoria de Camila Rodrigues, Bruno Fonseca, Luiza Bodenmüller e da própria Natalia Viana. No elucidativo texto, é constatado o fato de que, embora se diga aos quatro ventos que a crise dos jornais não chegou ao Brasil, os conglomerados estão, sim, vendo os anúncios migrarem. Ao que tudo indica, de maneira irreversível. “Existe a crise”, garantiu, em off, um alto executivo da indústria editorial à reportagem da Agência Pública. “O que não se sabe é dividir entre o que é estrutural e o que é conjuntural”. Conforme relato feito pelo Presidente do IVC, é notório que, embora a circulação dos jornais continue crescendo um pouco, ela está sendo ‘puxada’ pelos populares – como o Extra, do Rio, e Super Notícias, de Belo Horizonte. Já a circulação de revistas caiu 4,6% em 2012. “Hoje continua fazendo sentido investir em impressos. Agora, se houver uma migração de publicidade mais agressiva, é algo que vamos ter que pensar daqui a um tempo”, pregou o interlocutor da Pública.

Zuenir Ventura: A crise tem várias causas e causa perplexidade diante de tantos impasses.

Para ele, a internet, “ao mesmo tempo que democratizou o acesso à informação, está tirando parte do financiamento das publicações, das empresas de comunicação”. O grande vilão são os anúncios online – daí a velha bronca da indústria de notícias com o Google, que tem faturado grande parte da publicidade na internet. A briga é feia, e levou alguns dos maiores jornais do País a retirarem seu conteúdo da busca do site, exigindo o pagamento de ‘royalties’. Não deu certo. Aos poucos, todos estão voltando. Por isso mesmo, a política radical de O Globo de proteção de seu conteúdo fora de suas cercanias digitais – que ainda está em voga – é vista por especialistas como de alto risco. Um potencial ‘suicídio empresarial’. A médio prazo.

AS OBSERVAÇÕES DE UM MESTRE Mestre na arte do Jornalismo, com históricas passagens pela revista Visão e pela Redação do Jornal do Brasil e atualmente colunista de O Globo, Zuenir Ventura fez uma análise do cenário atual da imprensa no País especialmente para o Jornal da ABI. “Em geral, na pressa da internet, o jornalista amador não quer saber da controvérsia, do ‘outro lado’, que são exigências da democracia. Ele é o ‘dono da verdade’. Como não leio todos os jornais diariamente, não posso opinar sobre a imprensa como um todo. Mas, pela minha amostragem, tenho a impressão de que há inegável esforço para enfrentar a crise criada pelas novas tecnologias da informação – um esforço, porém, nem sempre coroado de êxito”, diz ele. Autor de livros como 1968: O Ano Que Não Terminou (editado pela primeira vez pela Nova Fronteira, em 1989) e Cidade Partida (Companhia das Letras, em 1994), Zuenir lista alguns dos possíveis motivos do enfraquecimento do setor que, para

ele, de fato, ocorre. “A exemplo de todas as crises, a nossa também tem várias causas: o advento da internet com a informação em tempo real, uma certa incapacidade de adaptação às novas demandas e exigências, as injunções do mercado, que transformaram em ‘produto’ o que é também, e sobretudo, um ‘bem cultural’. E, é claro, uma certa perplexidade diante de todos esses impasses. Sem falar na luta permanente pela independência em relação ao Estado – nos países socialistas – e ao mercado, nos países capitalistas. No entanto, como as crises não contém apenas vírus destrutivos, mas germes transformadores, espero que a gente saiba tirar proveito do potencial criativo”. Na opinião de Zuenir, um dos efeitos mais perigosos da deficiência no processo produtivo foi o princípio do ‘enxugamento’, uma síndrome que, a pretexto de cortar a dispensável ‘gordura’, serviu muitas vezes para instalar nas Redações uma dieta que, em lugar de emagrecimento, causa anorexia. “Como me situo também do outro lado, ou seja, sou entrevistado em função de minha atividade como escritor, constato com preocupação o fenômeno: é comum eu ser a terceira, ou até quarta, pauta do dia do repórter. Ele cobriu a entrevista do secretário de Cultura, entrevistou a diretora da peça que vai entrar em cartaz, a atriz do programa de tv e vai não sei para onde depois de mim. Como esperar dele uma matéria bem apurada e bem escrita, sobre um livro que ele não teve tempo de ler, por exemplo? Alguns já me disseram que em Redações onde havia três repórteres hoje há apenas um. Isso não pode deixar de afetar a qualidade”. Se não há como concorrer em velocidade com a internet, a saída é mergulhar no conteúdo, aprofundar a análise. “Acho que para enfrentar a concorrência da internet e dos audiovisuais, a solução


seria reforçar a nossa própria identidade, isto é, a palavra escrita. É um erro tentar mimetizar as outras mídias, valorizando mais a imagem do que o texto. É preciso buscar a diferenciação e a valorização do conteúdo do impresso, em contraposição à rapidez e superficialidade do online. Os jornais deveriam investir na explicação. Hoje, desde que acorda, o leitor é bombardeado por informação – pelo rádio, pela internet, pela tv. É informação demais, e seu excesso é ruído, dá indigestão. Sabemos tudo o que está acontecendo, mas raramente o porquê, as causas e as implicações passadas e futuras de cada fato. É claro que é mais difícil fazer uma imprensa de explicação do que de informação, mas vale a pena tentar. Aproveitar o fato de que a informação via online é rápida, imediata – mas efêmera e descartável – e trabalhar com o que é menos perecível: a análise, a reflexão e a explicação”, argumenta Zuenir, que inclui no debate outra polêmica questão: a derrubada da exigência do diploma de jornalistas. E mais que isso: o surgimento de uma ‘nova geração’ de profissionais de mídia. “De verdade, não sei se o fim da exigência de diploma contribuiu para essa crise. Mas o boom de ‘jornalistas’ da internet, sim. Hoje qualquer internauta se considera repórter, só porque presenciou um acidente na esquina, fotografou com seu celular e o relatou. Esquece que existe uma hierarquia do saber – há pessoas que sabem mais do que as outras. Aprende-se nas faculdades e Redações que o jornalista não sabe tudo, mas precisa saber quem sabe, isto é, recorrer aos especialistas. Uma notícia é feita com o que o repórter viu, mas também com o que ele ouviu e leu de outras pessoas, principalmente das que sabem mais do que ele em cada setor. A internet pode ter feito bem à liberdade de opinião, mas não à qualidade da informação. É comum ver internautas opinando, isto é, dando seus pontos de vista com a maior convicção, crentes de que estão informando. Informar, mesmo, é diferente: é fornecer os dados, às vezes conflitantes, para que o leitor chegue à sua conclusão.” No fim de tudo, Zuenir deixa uma mensagem de otimismo. “Virou moda falar no fim do jornalismo escrito. O que posso afirmar é que todos os que disseram que o jornalismo ia acabar acabaram antes. Ele já foi feito em papiro, em pedra, nos muros e pode vir a ser feito em outro tipo de suporte, quem sabe, num ‘papel ecológico’, que não precise derrubar árvores. Mas ele sobreviverá, como o teatro sobreviveu à televisão, a pintura à fotografia e esta ao cinema. Terá, no entanto, que se adaptar, se reformar, se atualizar,” Provoco o mestre entrevistado. Quero saber dele o que faria, de imediato, caso assumisse hoje o comando da Redação de um grande jornal. Desafio proposto. A resposta é taxativa. “Você deve estar brincando. Essa é uma hipótese que nem em tese eu encaro”.

Novas cabeças e novos modelos no jornalismo Qual será o futuro próximo da indústria do jornalismo? Essa questão inquieta empresas e profissionais no Brasil, no Continente e no Mundo. P OR N ATALIA V IANA ESPECIAL PARA O JORNAL DA ABI

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mês de maio foi de terror nas grandes Redações brasileiras. Em pouco mais de duas semanas os temidos passaralhos passaram sobre as Redações do Estadão, Valor Econômico, Folha de S.Paulo e da Editora Abril, a maior do País – e já tinham, poucos meses antes, atingido Redações menores, como Brasil Econômico, Editora Trip e Caros Amigos. Ficou difícil até mesmo para os donos dos jornais negarem que existe uma crise nos impressos. “Existe a crise. O que não se sabe é dividir entre o que é estrutural e o que é conjuntural” admitiu um alto executivo do setor, em entrevista em off à Agência Pública. Depois da revoada de passaralhos, veio o silêncio. Mas aos poucos, os jornalistas que se importam com o futuro da indústria que ajudaram a construir começam a discutir questões que antes ficavam restritas aos donos dos veículos. Qual será o futuro da indústria do jornalismo? Se há uma crise de anunciantes, como o jornalismo pode ser financiado? Não existe, ainda, nenhuma resposta para essas questões. Mas tampouco são essas as perguntas que devem ser feitas neste momento. Afinal, como deixaram claro os pesquisadores da Universidade de Columbia, no estudo O Jornalismo Pósindustrial: Adaptando-se ao Presente, a

indústria de notícias não está em crise. Ela já acabou. “Não existe mais uma indústria de notícias. (…) Antes a indústria era mantida pelas condições que determinam o que é uma indústria: métodos similares dentre um grupo relativamente pequeno e coeso de empresas, e uma inabilidade competitiva da produção de todo o resto daqueles que estavam fora deste grupo. Essas condições não são mais verdadeiras”. A indústria de notícias fazia sentido quando estávamos na era do papel. Centralizar uma grande Redação em um só edifício para possibilitar a tomada imediata de decisões e a execução mais rápida do processo noticioso, dividido por tarefas fragmentadas que se completam – o repórter, o diagramador, o checador – em busca de produzir antes que o concorrente, dando o “furo”, que por sua vez vende jornal – há muito tempo esses padrões foram abandonados, por força das transformações tecnológicas. O “furo” não faz mais sentido, não só porque fotos de celulares e tuítes quase anônimos conseguem transmitir a informação mais rápido, como porque qualquer “furo” é imediatamente copiado, colado, retransmitido por milhares de outras fontes através da rede. A briga por “estar lá primeiro”, “estar lá antes do concorrente” nós, jornalistas, perdemos. Enquanto isso, dentro das Redações os jornalistas, cada vez mais infelizes, acumulam funções – no jornal Metro, por exemplo, onde trabalhei, eles diagramam,

selecionam fotos, editam a página, apuram (pelo telefone). Ao mesmo tempo, fora delas é fácil e barato produzir jornalismo de qualidade. Leva tempo, e muitas vezes a falta de estrutura (ou uma marca tradicional) é um grande empecilho. Mas há espaço para infinitas possibilidades, experimentações, e, mais importante, para que o jornalista volte a ser o ator principal na produção da reportagem. A internet é o melhor antídoto à alienação do jornalista em relação ao fruto do seu trabalho. Está cada vez mais nas mãos dos jornalistas encabeçarem essa mudança; as novas Redações não substituirão as antigas – nem o novo jornalismo vai suprir o vácuo do “jornalismo de massas”, do discurso único, esse também em franca decadência. Mas a variedade de modelos de produção que já estão pipocando em muitos países permite uma nova comunicação que tem como marca os valores próprios da internet: a interatividade, a experimentação, o código aberto – documentos, dados – à disposição pública, a originalidade e a colaboração. Para quem quer saber que caminhos são possíveis, vale a pena voltar os olhos para a nossa América Latina. Nos últimos anos, diversos veículos online independentes têm ganhado reputação e influência, explorando maneiras variadas de produção e de financiamento. No mês passado, 10 deles se reuniram em Buenos Aires para a fundação de uma associação continental que vai ampliar as experimentações e busca de soluções: a rede ALiados. São eles: Agência Pública, do Brasil, agência de reportagens com foco em questões de direitos humanos e transparência; o site Animal Político, portal de notícias do México que em dois anos se converteu em um dos mais relevantes do país; CIPER-Chile, centro de jornalismo investigativo sem fins lucrativos que esteve na vanguarda de denúncias em áreas como mineração, educação e meio ambiente; o Confidencial, revista eletrônica semanal da Nicarágua; El Faro, de El Salvador, o veículo online mais antigo do continente, com cobertura exaustiva sobre imigração e cartéis de drogas; o IDLReporteros, centro de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Peru liderado pelo jornalista Gustavo Gorriti, cujas investigações ajudaram a levar Fujimori à cadeia; o La Silla Vacía, site colombiano que cobre política; o Plaza Pública, da Guatemala; o The Clinic, site satírico do Chile; e a revista eletrônica El Puerco Espin, fundado pela jornalista Graciela Mochkofsky, autora de um texto brilhante da revista Piauí, no qual descrevia a decadência financeira e moral dos jornais argentinos e americanos. Além de serem veículos capitaneados por jornalistas, o que eles têm em comum é a produção de qualidade, bem apurada, em tempos de “memes” e re-reproduções de agências de notícias pela internet; e a independência de meios estatais ou corporativos que dominam o cenário latinoamericano.

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IMPRENSA NOVAS CABEÇAS E NOVOS MODELOS NO JORNALISMO

Há muito o que aprender com todos eles. Vejamos o La Silla Vacía, por exemplo, que em quatro anos tornou-se referência na cobertura política colombiana, ao trazer uma linguagem nova, atraente para um público mais jovem que está deixando de ler jornais impressos; dirigido pela destemida e direta jornalista Juanita León, é um constante calo nos pés dos governantes, misturando artigos críticos, opinião, reportagens e tecnologias inovadoras para cobrir a política colombiana – além de fazer uso extensivo das colaborações de leitores: cada um tem o seu perfil, e eles podem propor histórias (30% delas são propostas pelos leitores), escrever artigos e editar textos. O Silla sobrevive com um misto de doações de fundações internacionais, venda de reportagens, anúncios, seminários e worshops de “alfabetização digital”, além de consutorias em tecnologia. No início deste ano, o Silla Vacia fez uma campanha de crowdfunding para levantar fundos para o site, e conseguiu arrecadar cerca de 25 mil dólares entre seus apoiadores. Outro site independente, este mais novo, é o Plaza Publica, da Guatemala, que também conquistou um público jovem pela sua cobertura ousada e radical dos temas que afligem a população. Com uma pauta bastante focada em direitos humanos, o Plaza Publica se destacou, por exemplo, na cobertura do julgamento do genocida Rios Montt, no começo deste ano; segundo seu fundador Martin Pellecer, de apenas 30 anos, foi o único veículo guatemalteco a apoiar o julgamento e exigir a condenação desde o princípio. Fundado em 2011, conta com financiamento da universidade católica Rafael Landívar. O trato é claro: a universidade dá o nome, o financiamento e a estrutura para ter um veículo inovador e respeitado. Há apenas uma restrição na pauta: o Vaticano. Quan-

Jornal da ABI ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha presidencia@abi.org.br / franciscoucha@gmail.com

Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva. Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP

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do o novo Papa Francisco assumiu, o site retirou do ar um blog que criticava o Vaticano. Seu editor, Martin Pellecer, escreveu no site uma nota deixando claro que se tratava de uma extrapolação do acordo com a universidade. Após diversas críticas, Pellecer convocou uma reunião pública para discutir o assunto, em um bar no centro da Cidade da Guatemala, onde os mais de 200 presentes puderam discutir, acaloradamente, com o editor. O site segue, mais fortalecido, depois de se oferecer a tal exercício de crítica e transparência. No Chile, um site de reportagem e artigos satíricos, o The Clinic, tem uma trajetória digna de nota. Começou a ser feito em 1998 como um panfleto, por um grupo de artistas, com a missão declarada de vilipendiar, de todas as formas possíveis, a memória de Pinochet (o nome é referência à clínica em Londres onde Pinochet se internou para tratar de uma hérnia – e onde foi detido por ordem do juiz espanhol Baltazar Garzón). Em pouco tempo atingiu enorme popularidade entre os jovens, e chega agora à sua edição de número 500 como a revista mais lida do Chile, com um site que recebe mais de 1 milhão de visitas por mês, e que inclui reportagens de fôlego e análises sobre a atualidade. Embora seu fundador Patricio Fernández siga buscando um modelo que possa ser sustentável em longo prazo, o The Clinic supreende pelas variadas formas de receita. O site vende franquia de produtos com a sua marca e é ligado a um bar popular e moderninho da Rua Monjitas, em Santiago.

SLOW JOURNALISM A experimentação de novos modelos de organização da producão e disseminação tem na Agência Pública, da qual sou codiretora, aqui no Brasil, uma seguidora e entusiasta. Nós a fundamos em 2011 com

base na distribuição livre de conteúdos em creative commons, como uma agência livre – não de notícias, mas de reportagens. Slow journalism, aquele que leva tempo e dá trabalho de apurar, é o que fazemos, e nossas investigacões são republicadas desde veículos tradicionais – como o Jornal do Commercio, de Recife, o Agora, de São Paulo, e o Diário do Pará – até portais da internet como Yahoo e Terra, chegando, finalmente, a qualquer blogueiro ou usuário de Facebook, que pode republicar nosso conteúdo, já que na internet todos são emissores de infomação. No ano passado, quando traduzimos a série de entrevistas O Mundo Amanhã, feitas por Julian Assange, editor do WikiLeaks, resolvemos ampliar a divulgação, oferecendo o conteúdo de antemão para quem quisesse publicar simultaneamente conosco. Registraram-se para o projeto – e foram fiéis republicadores – desde as versões online do Diário de São Paulo, do Estado de Minas, da EBC e do Estadão até o site do Anonymous Brasil, a TVT, ligada à CUT, e dezenas de usuários de Facebook que se inscreveram para publicar os vídeos nas suas páginas. A Pública é uma organização sem fins lucrativos – financiada principalmente por fundações internacionais como a Ford e a Open Society Foundations – e com uma estrutura mais horizontal possível. Brincamos que somos “a rebelião dos repórteres” e temos como diretriz principal permitir aos nossos jornalistas serem donos do seu trabalho. A iniciativa de cada um é tão fundamental na produção da Pública quanto o rigor na apuração e a busca pelo esmero visual; é a criatividade, a paixão pelo jornalismo bem feito e o compromisso com o fato de interesse público que marcam a nossa produção. Não é a toa que, em um ano e meio de cobertura dos abusos da Copa do Mundo – em especial sob

DIRETORIA – MANDATO 2013-2016 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Fichel Davit Chargel Diretor Econômico-Financeiro: Sérgio Caldieri Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretor de Arte e Cultura: Henrique Miranda Sá Neto Diretor de Jornalismo: Alcyr Cavalcanti CONSELHO CONSULTIVO 2013-2016 Ancelmo Gois, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Miro Teixeira, Nilson Lage, Teixeira Heizer, Villas-Bôas Corrêa. CONSELHO FISCAL 2013-2014 Adail José de Paula, Dulce Tupy Caldas, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2013-2014 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: José Pereira da Silva Segundo Secretário: Moacyr Lacerda Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa. Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório. Conselheiros Efetivos 2013-2016 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Dulce Tupy Caldas, Fernando Foch, Germando de Oliveira Gonçalves, João Máximo, Marcelo Tognozzi, Milton Temer, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Sérgio Cabral, Sérgio Caldieri e Zilmar Borges Basílio Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz,

o viés da população, dos abusos de direitos humanos e da falta de transparência – a Pública se tornou referência em informações de fôlego e consistência sobre os temas que levaram a população à enorme revolta contra a Copa do Mundo e a Copa das Confederações. Assim como não acredita em competição, mas em colaboração – que é, também, uma marca fundamental da rede ALiados – a Pública não tem a visão de ser um centro único produtor de jornalismo investigativo; o que queremos é que a possibilidade de produzir de forma independente seja aproveitada, espalhada e incentivada. Por isso, desde a nossa fundação, damos bolsas de reportagem para jornalistas que queiram realizar a investigação dos seus sonhos, contribuindo não só financeiramente mas também dando um acompanhamento próximo, orientando, compartilhando as angústias e buscando soluções conjuntamente com os nossos bolsistas. Provenientes de várias partes do Brasil, eles já investigaram o fracasso das promessas de assentamentos de reforma agrária em São Gabriel, no Rio Grande do Sul, os “campos de concentração” de indígenas na ditadura e a truculenta Polícia da Bahia. Agora, a Pública quer ampliar o alcance deste projeto, distribuindo mais bolsas, e radicalizando no financiamento. Vamos expandir o projeto de bolsas através do financiamento coletivo, permitindo também que mais jornalistas inscrevam seus projetos – e que o público decida que investigações merecem ser realizadas. É um convite àqueles jornalistas que acreditam que dá, sim, para fazer a diferença na nova era do jornalismo digital; e ao público, para que integre nosso conselho editorial. NATALIA VIANA é jornalista, fundadora da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho. Conselheiros Suplentes 2013-2016 Antônio Calegari, Aluízio Maranhão, Carlos de Sá Bezerra, Daniel Mazola, Gilson Monteiro, Ilma Martins da Silva, José Cristino Costa, Luiz Carlos Azêdo, Manoel Pacheco, Marceu Vieira, Miro Lopes, Moacyr Lacerda, Paulo Gomes Netto, Vilson Romero e Yacy Nunes. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Alberto Marques Rodrigues, José Pereira da Silva, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Marcus Antônio Mendes de Miranda e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Daniel Mazola; Alcyr Cavalcanti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Carlos de Sá Bezerra, Carlos João Di Paola, Ernesto Vianna,Geraldo Pereira dos Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Milton Temer, Miro Lopes, Modesto da Silveira, Vilson Romero, Vitor Iório e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. Assistente: Rosani Abou Adal REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor), Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

JORNAL DA ABI • JUNHO ULHONÃO DE 2013 O J391 ORNAL DA/JABI ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.


REFLEXÕES

A civilizada Quebec Um cenário maravilhoso, que parece um conto de fadas.

A

ELIANE SOARES

gaivota está parada no parapeito da janela. Ao me ver, mergulha. Estamos numa torre, no alto do castelo – o Château Frontenac. No 12° andar, precisamente. Ela sobrevoa o imenso varandão de madeira, que se estende junto ao castelo, na beirada dos despenhadeiros que caem sobre as águas do Rio Ste. Lawrence. Os habitantes de Quebec conhecem o varandão como promenade des governeurs ou Terasse Dufferin, um passeio perigoso e elegante, que leva, mais à direita, à Cidadela – um complexo de fortificações que emerge praticamente intacto dos labirintos e combates do passado. A gaivota flutua ao vento, que a empurra para a esquerda, onde aparecem, com rara delicadeza, as ruas da Vieux Quebec. A parte antiga da cidade, com as vielas sempre limpas, as casas de fachada impecável, as lojas refinadas, a iluminação suave, lembra um cenário de brinquedo, vista aqui de cima. O pássaro enfrenta a pressão do vento e se desloca na direção do rio, que aqui se afunila – este é o exato significado da palavra kéoec, na língua dos algonquinos, “onde o rio se estreita”. A gaivota paira por alguns momentos sobre as águas profundas do Ste. Lawrence. Enormes blocos de gelo se deslocam devagar, arrastam-se, em movimentos sinuosos, com os de uma enorme serpente, na direção do Oceano Atlântico. O hálito do monstro percorre as margens e varre a cidade, afugentando as pessoas. Um grupo de estudantes caminha com cuidado, abrigando-se junto dos muros que cercam a Vieux Quebec. Estão todos bem agasalhados, botas forradas, gorros de lá, os rostos protegidos por cachecóis coloridos. Mais adiante, um casal se agarra a um poste, para não ser carregado pelo hálito letal da serpente banca. O pássaro mergulha novamente e vai se esconder nos penhascos que se debruçam sobre a correnteza. Séculos atrás, navegadores espanhóis também passaram por aqui e seguiram rio acima. Numa época igualmente fria, foram em seus

POR RODOLFO KONDER

barcos até o coração da América do Norte – e chegaram aos Grandes Lagos. Então, dizem que o comandante olhou a paisagem completamente branca e desolada, e concluiu: “Acá, nada”. Assim teria nascido o Canadá. Agora, porém, o país é tudo. Tudo de bom. Há três anos encabeça a lista da Onu dos países com melhor qualidade de vida. Simboliza liberdade e desenvolvimento. Diversidade e tolerância. Quinhentas mil pessoas vivem hoje neste cenário maravilhoso, que parece de um conto de fadas. Nos dois lados do rio, a última cidade fortificada da América do Norte tornou-se um centro singular de cultura e convivência, onde canadenses de origem francesa, canadenses de origem inglesa e canadenses de origem ameríndia exibem, sem inibições ou receios, sua arquitetura, sua arte, sua língua e sua ancestralidade. Eles se orgulham dos seus museus, das suas bibliotecas, da sua gastronomia e de suas festas populares. Os bairros históricos foram tombados pela Unesco como Patrimônio da Humanidade. Temos aqui um exemplo único de mul-

ticulturalismo, um fascinante laboratório onde convivem diversas religiões, diferentes etnias, idiomas variados. O segredo? A aceitação da diversidade, das diferenças. Mas nem sempre foi assim. Aqui, franceses e ingleses já se odiaram e se mataram. Nas Planícies de Abraão, podemos ouvir os ecos das batalhas golpeadas pela artilharia do General Wolfe, a cidade esteve seis vezes sitiada, até ser transformada na capital da província canadense de Quebec, em 1867. Aqui também os soldados europeus atacaram impiedosamente os índios algonquinos. Houve muita luta, até entre diferentes tribos que habitavam a região. A terra ainda está encharcada de sangue. E um vulcão adormecido, que pode acordar novos ressentimentos, caso os seres humanos não consigam preservar o espírito da convivência entre desiguais e da tolerância, marcas de uma maravilhosa cidade civilizada, “onde o rio se estreita”. RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.

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ACONTECEU NA ABI FRANCISCO UCHA

A volta do cronista Carlos Jurandir lança livro de crônicas e critica a falta de espaço para contos nos jornais de hoje. P OR P AULO C HICO

O edifício-sede da ABI foi palco, na tarde do dia 3 de julho, do lançamento do livro Aves Noturnas, do jornalista e escritor Carlos Jurandir, profissional de imprensa que, desde o início da carreira, no final da década de 1960, acumulou passagens de destaque por veículos como O Globo, Jornal do Commercio, Última Hora, Jornal do Brasil e TVE, além do próprio Jornal da ABI. A obra reúne 20 contos que traçam um painel histórico sobre o Brasil a partir de variados períodos e assuntos, como o suicídio de Getúlio Vargas, um concerto de Bossa Nova no Carnegie Hall, em Nova York, o Tropicalismo, o golpe de 1964 e a escalada da violência nos grandes centros. O autor falou sobre o livro e explicou a razão de seu instigante título. “Aves Noturnas é, na verdade, o título de um dos contos. De acordo com um dos personagens do livro, dono de botequim, este era aquele freqüentador noturno que não se contentava em apenas beber, mas gostava de ficar horas filosofando em silêncio diante do copo. Atitude que refletia os tempos difíceis que o País vivia. Tanto em causas particulares, quanto coletivas. O ‘filósofo’ diante dos colarinhos desfeitos do copo de cerveja é o pianista Carlos Moraes, que já conhecera dias melhores no Beco das Garrafas, em Copa-

cabana, e àquela altura, começo dos anos 1970, se apaixonou por uma revolucionária desaparecida após mais um seqüestro em troca de presos políticos. Cada gole, então, naturalmente tinha um gosto de mágoa e raiva”, descreve Carlos Jurandir. Ele lamenta a falta de espaço para contos e crônicas nos jornais de hoje. “Isso é péssimo! Esse desmonte cultural é uma das heranças da ditadura, junto com o desmonte político. Mas décadas atrás um editor de grande jornal já advertia seus comandados: ‘O espaço do jornal é caro’. Ou seja, tem preferência o que corresponde ao interesse econômico ou político. A questão da informação fica em segundo plano. O da formação, então, nem se fala. Mesmo correndo o risco de parecer professoral, digo ainda que a crase foi praticamente abolida. E olha que a crase – como diziam na minha época – não foi feita para humilhar ninguém. Erros de concordância, especialmente com percentuais, empregos de palavras que demonstram desconhecimento do significado... Como, por exemplo a palavra ‘polêmica’ e seus derivados. Outra palavrinha recorrente é ‘questionar’, indevidamente usada no lugar de ‘perguntar ’. É preciso dizer que quem questiona já sabe a resposta, ao passo que quem pergunta, não. Os jornais, até em proveito próprio, deveriam estimular a leitura. Seria uma forma de resistir à crise

Carlos Jurandir: O desmonte cultural é uma das heranças da ditadura

em que estão mergulhados, com a constante perda de leitores para a internet”. A carreira no circuito literário teve início em 1979, com a publicação do romance Morto Moreno, pela Editora Civilização Brasileira. Será que, em algum momento, Carlos Jurandir enfrentou impasses entre a profissão de jornalista e a de escritor? “O jornalista se faz presente na vida do escritor, e vice-versa, em todos os sentidos. Mas, conflitos, não há. Na ficção, tudo ajuda. Sou jornalista, mas sobretudo escritor, capaz de ver as coisas sob determinado prisma. Alguém já disse que o artista enxerga o que ninguém vê. O jornalista também, é claro. Mas o escritor também faz suas pautas, que vai construindo passo a passo, de matéria a matéria”. Em

tempo; no lançamento realizado na ABI, o público pôde reencontrar-se com outra obra do autor: o livro Colar de Pérolas, publicado originalmente em 2011 e que trata da vida de um jovem na Belém – cidade natal de Jurandir – da década de 1950. “É um prazer recordar aquele tempo. Tem alguma coisa de autobiográfico – digamos 1%. É pura ficção, gostosa de fazer. Relendo, sou capaz de ouvir a música ecoando naqueles mágicos finais de tarde da Praça Batista Campos. Tudo mentira, é claro. Como diria Drummond, para quem ‘todo poeta é mentidor ’”, brinca. Por fim, pergunto sobre o fechamento e a crise de alguns dos principais jornais do País. A imprensa precisa se reinventar? A resposta é dada com a reprodução do trecho de um texto escrito por ele no começo da década de 1970. Prova de que o cenário sombrio de hoje já vinha sendo forjado há tempos. “Os jornais ‘descobriam’ que eram acima de tudo empresas, e a matéria-prima com que lidavam, a notícia, não passava de mercadoria, como o sabão em pó e a goiabada. Afinal, vivia-se no sistema capitalista. O noticiário não podia atrapalhar o departamento de publicidade, porta de entrada do dinheiro. Na tv já usavam a receita há tempos, e não fazia mal que a loucura cinzenta lembrasse às vezes uma tempestade de gafanhotos. O negócio era mesmo mandar às favas os escrúpulos, como aconselhava aquele coronel nortista a propósito da ‘edição’ do AI-5. Os recémformados em ‘comunicação’ não tinham a menor intenção de começar a vida a figurar entre os milhões de desempregados. E o prêmio, além da existência estável e sem riscos, era o frenesi de subir na vida, ter carro do ano, apartamento no Leblon”, apontava Jurandir, há 40 anos. Um relato preciso. Profético. Deu no que deu.

Homenagem ao jornalismo alternativo Câmara Municipal do Rio agracia o jornal Brasil de Fato com a principal honraria da Cidade. P OR D ANIEL M AZOLA

A Medalha Pedro Ernesto, a maior honraria do Município do Rio de Janeiro, e algumas Moções de Congratulações e Louvor foram entregues a diversas iniciativas da mídia alternativa, coletivos e pessoas que trabalham para democratizar a comunicação e a cultura no País. O evento ocorreu no dia 14 de junho no auditório da ABI em reconhecimento à comunicação alternativa e contra-hegemônica. A homenagem foi uma iniciativa do Vereador Renato Cinco (PSOL) e contou com o apoio da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI. Participaram da cerimônia de entrega o Editor-Chefe do Brasil de Fato, Nilton Viana, o jornalista e Conselheiro da ABI Mário Augusto Jakobskind, o Deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), o Deputado federal Chico Alen12

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car (PSOL), o cineasta Silvio Tendler, o professor Mauro Iasi, o Repper Fiell, Claudia Santiago, do Núcleo Piratininga de Comunicação-NPC, e integrantes do Levante Popular da Juventude. Em reconhecimento aos dez anos de comunicação livre e independente, o jornal Brasil de Fato foi o grande homenageado da noite ficando com a medalha Pedro Ernesto. O semanário é um jornal escrito por trabalhadores e movimentos sociais do campo e da cidade, tendo sido nos últimos dez anos uma voz alternativa à imprensa comercial, comprometida com as grandes empresas e governos. Desde o dia 1º de maio o jornal está com uma edição regional gratuita circulando semanalmente no Rio de Janeiro. Na ocasião, também foram homenageados com moções honrosas da Câmara Municipal o Jornal da ABI, a Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI, a Agência de Notí-

cias das Favelas, a Agência Petroleira de Notícias, a Agência de Notícia Pulsar, o Núcleo Piratininga de Comunicação, o jornal O Cidadão, o jornal Voz da Favela, o jornal Sem Terra, a revista Vírus Planetário, a Rádio Santa Marta, o Programa Faixa Livre, a TV CAOS, o APPAFUNK, o Domingo É Dia de Cinema, o Bonde da Cultura, a Orquestra Vermelha, o Latuff Cartoons, o Portal Comunitário da Cidade de Deus, o fotógrafo Samuel Tosta e Naldinho, da Escola de Fotógrafos Populares da Maré, e o blog Hempadão. Para o Vereador Renato Cinco, “uma década de Brasil de Fato é uma vitória para toda a imprensa alternativa e popular e deve ser comemorada”. O Vereador também destacou a importância da edição recém-lançada do Rio de Janeiro, onde semanalmente 100 mil exemplares trazem as questões de interesse do morador da cidade: “Grande parte das contradições da nossa sociedade se manifesta no dia-a-dia

das cidades. Um jornal do lado dos trabalhadores é um instrumento poderoso contra as remoções, a elitização do futebol, a criminalização das lutas e a desigualdade social.”


INCENTIVO

Para festejar seus 60 anos, a Petrobras cria o maior Prêmio de Jornalismo do País O objetivo do certame é reconhecer trabalhos de qualidade e estreitar ainda mais os laços da empresa com a mídia e a população. O montante total das premiações chega a R$ 443.950,00.

Talvez nenhuma outra estatal ocupe manchetes nos principais jornais do País com tamanha regularidade. Oscilações no valor de suas ações na Bolsa são temas de editoriais em telejornais e sites especializados. A alta em seu principal produto tem impacto direto nos preços dos combustíveis – o que resvala no bolso de quase todos os brasileiros e, via transportes, tema atualmente de elevada sensibilidade social, pouco custa alimentar o temido monstro da inflação. Como se vê, a relação da Petrobras com a população é mais do que estreita – é cotidiana. A comunicação se dá por meio de ações de publicidade e propaganda e, preferencialmente, pela via jornalística. Por isso mesmo, a empresa de capital aberto, que tem na União sua acionista majoritária, realiza a primeira edição do Prêmio Petrobras de Jornalismo. “Lançado pela Presidente Maria das Graças Silva Foster, no dia 9 de maio passado, o Prêmio tem como objetivo reconhecer a importância dos meios de comunicação e, sobretudo, dos jornalistas que participam do processo de democratização e de disseminação de informações relevantes para o País. Também se propõe a estreitar e consolidar o relacionamento da Petrobras com a imprensa, em uma demonstração concreta e efetiva de estímulo aos profissionais no desenvolvimento de reportagens que contribuam positivamente para a sociedade”, contou o Gerente Executivo da Comunicação Institucional da Petrobras, Wilson Santarosa, ao Jornal da ABI, lembrando que a empresa do ramo de petróleo completa 60 anos no dia 3 de outubro de 2013. Os temas abordados no concurso – que recebe inscrições até 10 de julho, via internet – foram definidos espelhando a organização interna da Gerência de Imprensa, reproduzindo as editorias em que possui forte atuação de apoio e patrocínio. Assim, serão entregues 35 prêmios divididos nas categorias Nacional e Regional nos temas Cultura, Esporte, Responsabilidade Socioambiental e Petróleo/ Gás/Energia para reportagens veiculadas em jornal/revista, rádio, televisão e portais de notícias. A Petrobras também vai premiar a melhor fotografia nas categorias Nacional e Regional em qualquer um dos temas e veículos descritos acima. No total, serão distribuídos R$ 443.950,00 brutos em prêmios. O regulamento e procedimentos para inscrição podem ser consultados no site da Agência Petrobras (petrobras.com.br/agenciapetrobras).

Wilson Santarosa explica como será o processo de julgamento dos materiais que serão recebidos no concurso, que conta com o apoio da ABI, dentre outras importantes instituições do setor. “Na primeira etapa será feita a avaliação de todos os trabalhos inscritos por uma Comissão de Pré-Seleção, supervisionada pela Secretaria Executiva do Prêmio e composta por cinco membros. Eles receberão mapas de votação para pontuação dos trabalhos. As notas concedidas a cada um deles devem variar de 0 a 10 pontos, sendo admitidas frações de apenas meio ponto. Serão considerados pré-selecionados os cinco trabalhos mais bem pontuados de cada um dos temas. Na segunda etapa os trabalhos pré-selecionados serão avaliados pela Comissão Julgadora, composta por cinco jornalistas externos à Petrobras, também com vasta experiência. Por fim, será realizada uma reunião da Comissão Julgadora, após a computação dos pontos para as confirmações. Caberá à Comissão a escolha dos 17 trabalhos vencedores da Categoria Regional e dos 17 vencedores dos temas da Categoria Nacional, além do vencedor do Grande Prêmio Petrobras de Jornalismo”, conta ele, que prefere não arriscar uma previsão da quantidade de trabalhos que serão recebidos. “Acreditamos na receptividade dos jornalistas, mas não estabelecemos metas”, afirmou. Blog polêmico

Há alguns anos, o lançamento do blog Fatos e Dados provocou polêmica ao contestar algumas matérias e dados veiculados pela chamada ‘grande imprensa’ sobre a Petrobras. Por isso mesmo, essa iniciativa da área de comunicação foi alvo de inúmeras críticas, na época. Hoje, quais papéis básicos esse canal desempenha? E como está, em linhas gerais, a relação da empresa com a mídia? “Criado em 2009, o blog tem sido um dos principais canais utilizados pela companhia para comunicar à sociedade as informações sobre suas atividades. Desde o início, a idéia não é contestar as matérias, mas comunicar. E é isso que temos feito. Além de ser reconhecida como líder mundial na exploração e produção em águas profundas, a Petrobras se destaca com sua atuação cultural, social e ambiental. É a maior patrocinadora da cultura nacional e, pelo sétimo ano consecutivo, participa do Índice Dow Jones de Sustentabilidade. A enorme visibilidade exige que ela mantenha permanente processo de comunicação com seus públicos de interesse, respondendo às demandas

AGÊNCIA PETROBRAS

P OR P AULO C HICO

Wilson Santarosa: Objetivo de consolidar o relacionamento da Petrobras com a imprensa.

existentes”, explica Santarosa, para quem a relação da estatal com a imprensa se dá de maneira transparente e amadurecida. “Como exemplo, podemos citar o prêmio ‘Empresas que Melhor se Comunicam com Jornalistas’, promovido pela revista Negócios da Comunicação, que a Petrobras ganhou pelo segundo ano consecutivo. A escolha foi feita por 25 mil profissionais de imprensa das principais Redações e agências de comunicação do País. A pesquisa ‘Fala, Jornalista!’, promovida pela Deloitte em parceria com o Comunique-se, tam-

bém apontou a Petrobras como a empresa que melhor se comunica com os jornalistas. Isso é reflexo do projeto Agência Petrobras de Notícias, implementado em 2006, que aumentou a agilidade nas respostas à imprensa com a adoção de novos processos e ferramentas”, festeja. Em tempo: só poderão ser inscritas no Prêmio Petrobras de Jornalismo matérias veiculadas no período de 10 de maio de 2012 a 9 de maio de 2013. Os trabalhos vencedores e seus respectivos autores serão conhecidos em outubro deste ano.

As especificidades de cada categoria Reportagem Cultural – Matérias que abordem manifestações culturais e artísticas do País, ou o incentivo em áreas como música, cinema, teatro, artes plásticas, dança e literatura, incluindo as promovidas a partir do apoio público e/ou empresarial, com o objetivo de promover a democratização e a disseminação da cultura brasileira. Reportagem Responsabilidade Socioambiental – Matérias sobre ações sociais e de preservação ambiental, desenvolvidas em todo o Brasil, incluindo as promovidas a partir do apoio do setor público e/ou empresarial, como projetos direcionados à educação, à geração de renda, aos direitos humanos, ao reflorestamento, à preservação de ecossistemas e da biodiversidade brasileira. Reportagem Esportiva – Matérias que abordem o incentivo às atividades esportivas profissionais ou amadoras,

incluindo as promovidas a partir do apoio público e/ou empresarial, como projetos de formação de novos atletas e de esporte educacional. Reportagem petróleo, gás e energia – Matérias relacionadas aos processos de exploração, produção e distribuição de energia sob diversas formas, como combustíveis fósseis, eólica, biomassa, elétrica, nuclear e outras fontes alternativas e que destaquem a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico. Fotojornalismo – Coberturas fotográficas sobre qualquer um dos temas acima relacionados que, sozinhas ou como parte integrante das reportagens, foram capazes de transmitir o impacto de cenas do diaa-dia ou de acontecimentos marcantes, cumprindo o papel disseminador da informação. Não serão aceitas fotografias que apresentem manipulação digital que altere seu conteúdo.

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KARIME XAVIER/FOLHAPRESS

DEPOIMENTO

P OR M ÁRIO M OREIRA

M

ia Couto é um inconformado. No melhor sentido do termo. O moçambicano, que acaba de receber o Prêmio Camões, principal premiação literária para autores de língua portuguesa pelo conjunto da obra, mantém a verve e a inquietude que o caracterizam como um dos escritores ao mesmo tempo mais líricos e profundos, críticos e divertidos da atualidade. Em entrevista exclusiva ao Jornal da ABI, feita por e-mail na véspera de sua viagem a Lisboa para receber o prêmio entregue no dia 10 de junho, Mia Couto falou de seu estilo literário, dos autores que o influenciaram, da situação de Moçambique – cuja economia cresceu em torno de 7,5% em 2012 –, de resistência cultural e do que a premiação pode vir a representar em sua obra. Fiel à sua literatura, ele critica a globalização, exalta a língua portuguesa como “um foco de resistência contra a hegemonia do inglês” e diz ter muitas razões para escrever: “Como cidadão, é mais fácil eu me entender e tenho causas cívicas e morais de que não abdicarei nunca. Mesmo que sejam condenadas a nunca vencerem.” Que Mia Couto é um autor especial seus muitos leitores já tinham percebido. A prosa marcadamente poética, a invenção e o jogo de palavras, a riqueza de situações e de personagens e a preocupação de retratar o Moçambi-

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que natal, com suas qualidades humanas e mazelas políticas e sociais, são alguns dos atributos que o consagraram. O reconhecimento “oficial” à importância do trabalho do escritor veio agora com o Prêmio Camões, conferido pelos Governos do Brasil e Portugal, no valor de 100 mil euros. Foi o segundo moçambicano a ganhar a distinção, depois do poeta José Craveirinha, agraciado em 1992. Mas Mia já colecionara outras. Seu romance de estréia, Terra Sonâmbula, de 1992, foi considerado um dos 12 melhores livros africanos do século 20. No Brasil, seus 13 títulos editados pela Companhia das Letras já superaram a marca de 200 mil exemplares vendidos. Mia Couto, aliás, virá ao País no segundo semestre para o lançamento de Cada Homem é uma Raça, livro de contos lançado originalmente em 1990. António Emílio Leite Couto, que completou 58 anos no dia 5 de julho passado, nasceu na Beira, segunda principal cidade de Moçambique, no litoral central do país. Chegou a estudar Medicina, mas abandonou o curso para se dedicar ao jornalismo. Hoje, além de romancista, poeta, cronista e contista, é biólogo e trabalha em sua empresa de projetos ambientais na capital moçambicana, Maputo. A seguir a íntegra da entrevista. As respostas respeitam a grafia das palavras tal como Mia Couto as redigiu.

Jornal da ABI – Durante uma homenagem a Jorge Amado em 2008, em São Paulo, você disse que ele foi o escritor de maior influência na gênese da literatura dos países africanos de língua portuguesa. No seu caso específico, foi ele também a maior influência? Mia Couto – Não direi influência, mas um marco, uma referência. Jorge Amado representou para toda uma geração de escritores africanos de língua portuguesa uma espécie de luz verde na procura de caminhos próprios, caminhos demarcados do modelo europeu e português de literatura. Os brasileiros introduziram uma marca de identidade na própria língua portuguesa, a mostrar que aquele idioma já era dos brasileiros. No território comum da língua eles hasteavam a bandeira da individualidade. Isso estava nos livros de Jorge. Para além disso, as histórias de Jorge Amado traziam de volta essa África que tinha viajado para o outro lado do oceano e que permanecia, afinal, oculta de um e de outro lado do mundo. As suas personagens podiam bem ser as nossas e as cores, sabores e cenários devolviam a confiança

que essas realidades nossas eram dignas de serem cantadas. Havia uma sensualidade, um sabor do tempo que sendo baianas eram muito nossas, de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, São Tomé e Guiné Bissau. Mas eu fui mais influenciado por poetas como João Cabral de Melo Neto e por Carlos Drummond de Andrade e Manoel de Barros. E ainda Hilda Hilst, Adélia Prado, Manuel Bandeira. Para não deixar de mencionar João Guimarães Rosa, que, sendo prosador, é sobretudo um poeta. Jornal da ABI – No Brasil você é comumente comparado a Guimarães Rosa, pela criação e reelaboração de palavras. Você até o citou em uma epígrafe no livro O Outro Pé da Sereia. Que pontos de contato identifica entre a sua literatura e a dele? Mia Couto – Guimarães fez outra coisa, ele viajou ao encontro de uma geografia que ele mesmo inventou, esse sertão que, mais do que real, é um produto da sua ficção. Esse sertão era um espaço de resistência contra um Brasil que se modernizava e que erguia Brasília como símbolo dessa modernidade homogenei-


zante. No meu caso eu sou produto de uma nação nova que emergia com vontade de ser futuro. Sou produto de povo que, na sua quase totalidade, tinha o português como segunda língua, estava em trânsito para casamentos entre línguas africanas e o português e entre a oralidade rural e a escrita. Jornal da ABI – Em relação aos neologismos, é algo que vem da infância? Você sempre gostou de criar palavras? Os vocábulos da língua portuguesa não dão conta de tudo o que há para ser dito? Mia Couto – Os meus pais mantiveram durante muito tempo o registro gravado de um momento em que, com cinco anos, eu contei uma história. Era uma história sem qualquer valor mas, no final, o meu pai perguntavame o significado de palavras que pareciam inexistentes. E eu terei respondido: são palavras que ninguém sabe o que querem dizer. Não se trata de uma prova de precocidade. Eu gostaria de acreditar que, já naquela altura, eu sentia dificuldade de dizer as coisas da minha alma numa língua que parecia estar já definitivamente acabada. De qualquer modo, é isso que eu sinto: algumas das histórias que quero contar passam-se numa dimensão que apenas a linguagem poética, livremente recriada, é capaz de dar conta.

Jornal da ABI – Como é a criação dos seus personagens? Algum deles existe realmente? Mia Couto – Não, nunca existem. Mas são fundados em gen-

te que encontro, em momentos de descoberta do Outro que não se esgotam no imediato. Eu dou nomes aos personagens de modo a afastá-los da realidade, de modo a que eles não possam ser confrontados com o teste da realidade. Quero mostrar que esses personagens são irreais, e que não se pode pedir verosimilhança a essas vozes múltiplas que contam histórias. Jornal da ABI – Num discurso em 2001, quando recebeu em Lisboa o Prêmio Mário António por seu livro O Último Vôo do Flamingo, você falou no compromisso de lutar “contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos (...), contra a mentira, o crime e o medo”, e que esse compromisso com a sua terra e o seu tempo guiou todos os seus romances até então. Doze anos depois, continua a ser essa a sua razão maior de escrever? Mia Couto – A razão de escrever é essa e são mil outras. E de repente nem sei se existe uma “razão” para eu escrever. Há qualquer coisa que me motiva mas é tão funda e vaga que não pode ser da ordem da Razão. Como cidadão, é mais fácil eu me entender e tenho causas cívicas e morais de que não abdicarei nunca. Mesmo que sejam condenadas a nunca vencerem. Jornal da ABI – No final desse mesmo livro, ante a desmedida ambição dos “desgovernantes”, os deuses decidem levar os países africanos para as profundezas, onde ficariam “em suspenso, à espera de um tempo favorável para regressar ao seu próprio chão”. Esse tempo favorável está agora perto de chegar em Moçambique? Hoje há mais motivos para ser otimista ou pessimista? Mia Couto – Há motivos para se ser um optimista com pouca esperança. Ou um pessimista com muita esperança. O segredo é alcançar uma boa mistura de coração e razão, de lucidez realista e de utopia irrealista. Moçambique vive um momento bom

mas com nuvens cinzentas. É demasiado ousado, nos tempos de hoje, fazer previsões. Em Moçambique, em África ou em qualquer ponto do mundo. A verdade é que precisamos confessar que entendemos pouco das dinâmicas de mudança que governam e desgovernam a actualidade. Jornal da ABI – Seus livros falam muito do encontro de civilizações e da estranheza mútua provocada por crenças e hábitos muito diferentes. Em tempos de globalização, continua a ser assim em Moçambique e na África? E em que medida pode ser bom ou ruim que esse estranhamento persista? Mia Couto – Sim e não. Há muitos Moçambiques como há muitos Brasis. As nossas cidades já partilham muito daquilo que pode ser tido como uma cultura urbana, cosmopolita e que é próxima daquela que se vive em outras capitais do mundo. As zonas rurais estão ainda insuficientemente inseridas no mercado mundial e preservam, muitas vezes, peculiaridades e idiossincrasias de sociedades com pouco contacto com o resto do mundo. Mas deve ficar claro que isso que chamamos de “mundialização” é a expansão de uma pequena e seleccionada parte do mundo. É a exportação do imaginário de alguém que se apresenta, com arrogância, como sendo a “comunidade internacional”. Aquilo que se está homogeneizando no mundo não é o mundo: são os interesses dos poderosos, os que mandam no mercado. Qualquer resistência contra essa

tórias que estão para além dos relatos, das queixas e confissões. E vai-se apercebendo nesse exercício que, para além das diferenças culturalmente construídas, somos todos muito parecidos uns com os outros. Eu acho que a procura da universalidade se alcança assim: indo mais fundo, tendo mais tempo para estarmos com os outros numa relação de plena troca e plena disponibilidade.

hegemonia parece-me saudável, no sentido de salvaguardar uma diversidade que está em risco. A própria língua portuguesa, a nossa, é, nesse sentido, um foco de resistência contra a hegemonia do inglês. A tentação maior é sermos todos parecidos, de uma mesma e inexistente cidadania que não tem território algum. Jornal da ABI – Lendo seus livros, a impressão que dá muitas vezes é a de que poderiam ser ambientados não só em outro país africano como no Brasil ou em qualquer nação latino-americana, seja pela temática, pela linguagem e diversidade dos personagens ou pelo absurdo de certas situações. Reside aí a universalidade da sua obra? Mia Couto – Eu escuto histórias da gente comum do campo e da cidade em Moçambique. Acredito que um escritor é um escutador. Ele escuta o que lhe chega como vozes e como silêncios. Ele escuta as histórias onde parece não haver narrativa, his-

“Nenhum prémio torna uma escrita melhor. Ou alteram a pessoa. Se isso acontecer o premiado não merece o prémio. Ou não merece ser escritor. Eu escrevo para deixar de ser. E raramente me vejo sequer como escritor.” DIVULGAÇÃO/BEL PEDROSA

Jornal da ABI – O acadêmico Alberto da Costa e Silva afirma, na apresentação da edição brasileira de Terra Sonâmbula, que o livro é um romance de cavalaria. Você o reconhece como tal? Mia Couto – Esse foi o único livro que me doeu escrever. No resto, sou muito feliz naquilo que faço. Mas Terra Sonâmbula foi redigido num momento em que havia ainda a guerra civil no meu país e o meu sono era roubado pela lembrança de gente morta, amigos meus barbaramente assassinados. Eu tinha a convicção que apenas escreveria um romance sobre a guerra quando já estivéssemos em paz. Mas aconteceu que fui sendo assaltado por visitações nocturnas e o romance nasceu, imposto por insónias quase delirantes. Era como se eu, para sobreviver, estivesse criando o meu espaço de paz, de reconciliação com os mortos.

“Um escritor é um escutador. Ele escuta o que lhe chega como vozes e como silêncios. Ele escuta as histórias onde parece não haver narrativa, histórias que estão para além dos relatos, das queixas e confissões.”

Jornal da ABI – O que pode falar de seu livro Cada Homem é uma Raça, que será lançado este ano no Brasil? Mia Couto – Foi o meu segundo livro de contos numa altura em que a inovação lingüística e o investimento na palavra era uma preocupação central no meu trabalho. Eu tinha publicado o primeiro livro de contos, chamado Vozes Anoitecidas, em 1984. Esse livro de estréia estava marcado pela leitura do angolano Luandino Vieira. Luandino trabalhava muito na influência das línguas africanas sobre o português falado em Luanda. Os seus livros possuem uma inventividade vocabular que me influenciou muito. E li depois declarações suas dizendo que ele mesmo tinha sido marcado pelo brasileiro João Guimarães Rosa. E saí eu à procura de livros do mineiro que era médico e escritor. Nessa altura a guerra civil tinha feito cerco a Moçambique e era quase impossível o contacto com o exterior. Mas mesmo assim recebi por via de amigos algumas fotocópias de contos de Rosa. E isso marcou muito a escrita de Cada Homem é uma Raça. Foi possivelmente o livro onde levei mais longe o jogo de invenção lingüística. Jornal da ABI – Como ganhador do Prêmio Camões, você agora figura numa espécie de panteão dos escritores de língua portuguesa, ao lado de nomes como José Saramago, João Cabral de Melo Neto e Jorge Amado. Como se sente? Algo muda na sua obra a partir de agora? O prêmio pode ajudar numa repercussão ainda maior de seus livros? Mia Couto – Não creio que exista panteão. Eu pelo menos fugirei de lá se me quiserem lá desenhar. Não por causa da companhia, mas por causa de não me representar nunca desse modo mistificado. Nenhum prémio torna uma escrita melhor. Ou alteram a pessoa. Se isso acontecer o premiado não merece o prémio. Ou não merece ser escritor. Eu escrevo para deixar de ser. E raramente me vejo sequer como escritor.

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DEPOIMENTO MIA COUTO

Obra é multifacetada como a cultura moçambicana P OR M ÁRIO M OREIRA

Inovação lingüística, personagens populares, valorização das tradições de sua terra, crítica social e política. São muitas e marcantes as características da literatura de Mia Couto, de acordo com especialistas em sua obra consultados pelo Jornal da ABI. Para o acadêmico, historiador e africanólogo Alberto da Costa e Silva, que participou do júri do Prêmio Camões deste ano, Mia Couto é um escritor com várias qualidades, que fizeram dele “um nome praticamente de consenso” entre os seis jurados – além dele próprio, participaram da escolha o brasileiro Alcir Pécora, os portugueses Clara Crabbé Rocha e José Carlos Vasconcelos, o angolano José Eduardo Agualusa e o moçambicano João Paulo Borges Coelho. “Em primeiro lugar, Mia Couto é um mestre da linguagem. Ele conseguiu mostrar como funciona a variante do português falado em Moçambique, suas maneiras de falar e palavras, que enriquecem o patrimônio comum da língua portuguesa”, exalta o historiador. “É um autor interessantíssimo, que tem mostrado uma riqueza de concepções, enredos, situações e criação de personagens fora do comum.” Para Costa e Silva, que foi embaixador na Nigéria e no Benin e prefaciou a edição brasileira de Terra Sonâmbula, primeiro romance de Mia Couto, o escritor também “traz um pouco da magia da África, essa visão especial que todos têm desse continente onde o real se mistura com o espiritual, onde os mortos continuam os vivos e os vivos continuam os mortos”. Por fim, aponta o historiador, a obra do moçambicano se guia pelo sentimento de pluralidade. “O mundo é complexo, o comportamento das pessoas e as situações se modificam de uma hora para a outra. Como diz o próprio Mia Couto, cada homem é uma raça, cada um de nós é único. Mas ele também poderia ter dito que cada homem é todas as raças.” Segundo Alberto da Costa e Silva, o litoral moçambicano foi, desde antes da era cristã, um lugar de troca de experiências e culturas muito intensa. “Por lá se encontraram abissínios, gregos, árabes, hindus, indonésios, negros, persas”, enumera. “Foi um local onde procuraram se abrigar os hereges de quase todas as religiões, porque era um território livre.” A chegada dos portugueses no século 16, explica, só fez aumentar esse caldeirão cultural. “Ali o mundo se encontrou, o mundo movido pelo grande comércio. Mia Couto é fruto dessa mistura milenar, especialmente atento a essa multiplicidade.” Ao mesmo tempo, destaca o historiador, o novo ganhador do Prêmio Camões consegue ser “profundamente africano”. “É um desses escritores em que as experi16

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ências do presente tomam forma mítica. O mundo dos antepassados é um mundo presente na mente de cada africano. Eles levam a carga de sua ancestralidade.” Do ponto de vista lingüístico, analisa ele, Mia Couto, influenciado por Guimarães Rosa, “tentou, e continua tentando, ter uma expressão própria pessoal, na qual se reflita a maneira de ser moçambicana”. “Não é tanto inventar palavras, mas refazê-las, dar a elas outro sentido, que esteja profundamente ligado ao que quer dizer e contar. É um recurso que se torna necessário naquele momento.” A professora Rita Chaves, da Universidade de São Paulo, especialista em literatura africana de língua portuguesa, concorda. “Mia Couto faz com as palavras um jogo bastante criativo e sedutor. E o mais interessante é que muitas vezes essa sedução esconde outras características mais profundas, como os problemas com que trabalha e os tipos de personagem.” Rita – que organizou e vai lançar no Brasil em setembro o livro Mia Couto: Um Convite à Diferença (Editora Humanitas), coletânea de artigos de professores brasileiros, portugueses e moçambicanos, com a indicação de teses acadêmicas já defendidas sobre o escritor – vê influência “explícita” de Guimarães Rosa na escrita do moçambicano, mediada pelo angolano Luandino Vieira, outro inovador da língua e que, segundo ela, apresentou ao moçambicano a obra do autor mineiro. O próprio Luandino foi o escolhido para o Prêmio Camões em 2006, mas recusou a honraria. Mia Couto não escreve, por exemplo, que o motor de um carro engasgou, mas que “nhenhenhou-se”. Nem que determinado personagem ficou abatido, mas que “cabisbaixou-se”. Ele também usa e abusa de termos inventados, como “nenhumarias” (assuntos irrelevantes) ou “pedinchorão” (para descrever um personagem ao mesmo tempo pidão e lamurioso). Segundo Rita Chaves, porém, o autor “vem depurando um pouco” esse recurso em seus livros mais recentes. A importância do marginalizado

Em relação aos personagens, a professora destaca a importância do marginalizado na obra do escritor moçambicano. “Os protagonistas são crianças em situação de carência; ou mulheres, que ainda são vistas como marginais em todas as sociedades; ou velhos, que já foram figuras muito importantes nas sociedades africanas e hoje vivem uma situação de exclusão”, exemplifica. Outra característica que aos poucos se acentua nos romances de Mia Couto, diz ela, é “o personagem errante, que se desloca nos espaços e vai vivenciando a experiência da perda”. São “deslocados”, no senti-

do próprio e figurado. De acordo com ela, a guerra de independência de Moçambique, que durou cerca de dez anos e só terminou em 1975, e os subseqüentes 16 anos de guerra civil obrigaram muitas pessoas a migrarem dentro do país, abandonando seus locais de origem e gerando nelas uma sensação de perda e orfandade. “Lá a terra também está ligada aos espíritos dos antepassados, é algo muito forte.” Ainda segundo Rita Chaves, também vem ganhando relevo na obra de Mia Couto a crítica às elites moçambicanas, numa “indicação de que a utopia socialista não vingou” no país – na segunda metade da década de 1980, Moçambique acabou recorrendo ao Banco Mundial e ao FMI para tentar debelar sua crise econômica, e nos anos 1990, após a guerra civil, adotou o pluripartidarismo. “A diluição dessa utopia causou frustração no país, porque as elites que assumiram o poder ficaram fiéis a si mesmas e traíram o projeto socialista”, analisa ela. Mia Couto, diz, faz “uma crítica bastante forte à apropriação, pelas elites, da riqueza coletiva do país”. Do ponto de vista estilístico, a professora acredita que o uso do termo realismo mágico para classificar a obra do autor moçambicano não pode ser descartado. A expressão é normalmente associada a alguns escritores latino-americanos, como o colombiano Gabriel García Márquez e o argentino Julio Cortázar. “Há alguma polêmica sobre isso, porque é um conceito que surgiu para definir um tipo de literatura em que as fronteiras entre o racional e o que está além são borradas. Na África, o que se percebe é que a morte está dentro da vida. Os espíritos existem e são determinantes na tomada de decisões pelos personagens, que costumam consultar os antepassados, sempre através de

algum tipo de curandeiro. Falar em realismo mágico no caso de Mia Couto não é disparatado, porque ele é um homem de fronteira. Vem de uma família portuguesa que vivia num bairro na fronteira entre a cidade branca e a cidade negra, e ele próprio conta que ia muito à casa de vizinhos negros para ouvir as histórias deles.” Segundo a professora, pode vir daí, desse ambiente misturado, multifacetado e algo caótico, a identificação do leitor brasileiro com Mia Couto. “Ele consegue articular dois planos: oferece o diferente, aquilo que nos faz pensar na sociedade moçambicana; e ao mesmo tempo cria essa identificação, mostra parte dessa realidade que nós conhecemos. Provoca uma sensação dupla: conhecer outra terra e encontrar um pouco da própria terra na mesma literatura.” Já o acadêmico João Ubaldo Ribeiro, ganhador do Prêmio Camões em 2008, destaca na obra do colega moçambicano “a alta qualidade literária, não só dos romances como dos contos e dos ensaios”. “Bastaria, para consagrar qualquer escritor, um livro que é em si consagrado, Terra Sonâmbula’”, diz o escritor baiano. Ubaldo enxerga em Mia Couto a influência de seu conterrâneo Jorge Amado. “É inegável que Jorge Amado tem alguma coisa a ver. Não proximamente, mas tem, porque de certa maneira todos nós, romancistas da língua portuguesa, temos alguma coisa a ver com ele, seja pela temática, seja pelas posições, seja pela narrativa, seja pelo apego a raízes populares. Jorge Amado é uma presença indiscutível. E na literatura africana mais ainda, desde o tempo em que Jorge era contrabandeado para as colônias portuguesas; era uma leitura proibida e cobiçada e de certa maneira uma literatura em que os povos colonizados que sofriam aquilo tudo queriam espelhar-se”, afirma Ubaldo, que também vê em Mia Couto “uma certa identidade” com Guimarães Rosa. Embora tenha recebido o Prêmio Camões, entre outras razões, por sua literatura “especialmente densa das culturas portuguesa, africanas e dos habitantes originais do Brasil”, característica que estabelece elementos de contato com a obra de Mia Couto, o autor de O Sorriso do Lagarto refuta maiores similaridades. “Quer dizer, temos semelhanças por sermos, embora de países tão diferentes, ele lá no Oceano Índico e eu aqui no Atlântico Sul, do lado de cá, ambos de países colonizados, ambos herdamos a mesma língua, ambos partilhamos de preocupações com os destinos coletivos dos nossos povos, procuramos ter alguma participação como jornalistas e outras intervenções. Mas com a minha obra não vejo muita semelhança não.”


MARCELO CAMARGO/ABR

LIBERDADE DE IMPRENSA

MANIFESTAÇÕES CHACOALHAM A IMPRENSA Entre reivindicações justas e abusos indefensáveis, protestos sacodem todo o Brasil, trazem à tona novo comportamento dos brasileiros – e chamam a atenção para a imagem que a sociedade tem do País, dos governos e da mídia. Entre erros e acertos, a geração que nasceu, cresceu e se arregimentou no Facebook, enfim, mostra a sua cara. E o Poder, agredindo o Estado Democrático de Direito, promove o terror, como fazia a ditadura militar. P OR P AULO C HICO

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iretas Já, em 1984. Fora Collor, no ano de 1992. Após pouco mais de duas décadas da última manifestação popular no Brasil, o País assiste a população voltar às ruas das principais capitais e cidades do interior. Os protestos que em junho de 2013 sacudiram a nação deixaram muitas perguntas no ar. A maioria delas ainda sem respostas. Como os atos foram organizados? Qual é a pauta de reivindicações? Com quem negociar? As passeatas tiraram o sono da classe política – e não somente dela. Alvos de cobranças, ao lado da Presidente da República estavam governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores e... veículos de comunicação. A imprensa foi acusada de praticar uma coberta parcial dos fatos, com franca tendência a atuar não em favor dos cidadãos comuns, e sim em defesa dos interesses dos chamados ‘donos do poder’ – governantes, instituições financeiras e grandes empresários, para citar apenas alguns. Se a gritaria geral contra a imprensa procede ou não, está aí uma boa questão. O princípio básico de qualquer regime democrático é justamente a liberdade de expressão – não faz sentido, pois, que jornais, rádios e emissoras de televisão sintam-se ofendidos, ou mesmo tentem coibir manifestações de repúdio às linhas editoriais que praticam. Ponto pacífico é que, infelizmen-

te, em atos realizados em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, a legítima revolta popular tenha sido corrompida, travestida de terror em atos de pura violência, agressão e vandalismo. Mais uma vez, ao lado de prédios públicos, como sedes de Prefeituras e Assembléias Legislativas, foram atacadas instalações particulares. Agências bancárias foram depredadas. Lojas de rua, saqueadas. Concessionárias de veículos, arrombadas. Carros de emissoras de tv, incendiados. No Rio, na noite de 20 de junho, as chamas lamberam por completo um Fiat Idea, que fazia o papel de unidade móvel de reportagem do SBT. Dois dias antes, na capital paulista, já havia sido destruído um veículo de link da TV Record que, repleto de equipamentos, incluindo uma antena de transmissão, tinha valor estimado em R$ 500 mil. Mais do que perdas materiais, as manifestações evidenciaram casos de agressão física. Nos protestos de 13 de junho, em São Paulo, cerca de 15 jornalistas foram feridos, dois deles com maior gravidade, atingidos por tiros de borracha na região dos olhos. Por dias seguidos, equipes da TV Globo que tentavam cobrir o evento foram hostilizadas. “Só fui impedido de trabalhar pela ditadura e sob tortura”, reagiu o repórter Caco Barcellos, do Profissão Repórter, diante dos gritos de ‘manipulador’ e palavrões vocife-

rados por cerca de 100 exaltados manifestantes no Largo da Batata, no dia 17. Os problemas enfrentados nas ruas foram tantos, que a Globo liberou o uso de microfones sem manoplas de identificação da emissora, numa tentativa de preservar a identidade – e a integridade física – de seus profissionais. Repórteres de outros canais, como SBT e Band, também relataram situações de intimidação. Essa não é a primeira vez que jornalistas são coagidos nas ruas. Durante a campanha das Diretas, no início da década de 1980, era comum o cerco de militantes de partidos de centro-esquerda a carros de reportagem da TV Globo – emissora que resistiu ao máximo dar visibilidade aos atos públicos que pediam a redemocratização do País. Mas nunca como neste mês de junho os profissionais da imprensa estiveram sob fogo tão cerrado. E cruzado. Foram enxotados e esculhambados por manifestantes radicais de um lado. Alvejados pela Polícia de outro. A Associação de Repórteres Fotográficos e Cinematográficos do Estado de São Paulo chegou a distribuir 70 coletes para facilitar a identificação de associados por parte dos policiais. Atingido, no dia 13 de junho, no olho esquerdo por uma bala de borracha, o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, da agência Futura Press, foi submetido a cirurgia no Hospital de

Olhos Paulista. “Ele tentava se esconder atrás de uma banca de jornal. Fez uma foto e, quando foi se abaixar para ver como tinha ficado no painel de led, foi atingido”, disse a esposa de Sérgio, a jornalista Kátia Passos, de 37 anos. Segundo os médicos, o fotógrafo dificilmente conseguirá recuperar a visão do olho afetado. Ele pretende processar o Governo Alckmin pela truculência das forças policiais. No Rio e em outras cidades, mais cenas de violência

No Rio de Janeiro, o cenário não foi diferente. Com mais de 300 mil pessoas nas ruas, na noite de 20 de junho, houve confronto entre a tropa de choque da Polícia Militar e manifestantes que tentavam invadir o prédio da Prefeitura. Os conflitos se alastraram para outras áreas do Centro. Policiais teriam lançado bombas de gás lacrimogêneo contra boêmios que estavam em bares da Lapa e da Cinelândia e até contra feridos que aguardavam atendimento no Hospital Souza Aguiar. Cerca de 400 estudantes buscaram abrigo nos prédios da Faculdade Nacional de Direito, na Praça da República, e do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, o famoso Ifcs, no Largo de São Francisco, próximo à Praça Tiradentes, ambas unidades ligadas à UFRJ. Os jovens alegavam que a Polícia estava fazendo prisões arbitrárias na região. Os préJORNAL DA ABI 391 • JUNHO/JULHO DE 2013

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dios foram cercados pela tropa de coque. As pessoas só começaram a sair na madrugada, acompanhadas por representantes da Ordem dos Advogados do Brasil. Nesta mesma noite, o repórter Pedro Vedova, da GloboNews, foi atingido por uma bala de borracha. O jornalista, que foi encaminhado para o hospital, disse que a passeata seguia tranqüila até que um grupo mais exaltado chegou à Prefeitura, onde se deu o confronto. “A gente tentou pegar um posicionamento mais distante, eu me escondi atrás de um coqueiro. Os policiais começaram a atirar e um dos tiros acertou a minha testa. No momento, eu caí atordoado, dali eu fui socorrido pela equipe de segurança que me acompanhava, e daqui eu sigo para o hospital, onde vou ser atendido”, contou o repórter em vídeo exibido pelo canal logo após o incidente. Na cidade de Natal/RN, um carro da Band também foi incendiado, mas não houve profissionais feridos. Em João Pessoa/PB, uma repórter da afiliada da TV Globo foi expulsa das manifestações e xingada. Em Brasília, jornalistas também foram hostilizados por manifestantes e policiais. Foram poucos os repórteres de tv que conseguiram fazer entradas ao vivo e um furgão – novamente da Band – foi vandalizado próximo ao prédio do Ministério das Relações Exteriores. No Comitê de Imprensa da Câmara, cujas janelas dão para a área do conflito, as luzes foram apagadas para não atrair a atenção possíveis agressores. Ainda na noite do dia 20, um jornalista da Folha de S. Paulo, Filipe Coutinho, foi empurrado por um sargento da Polícia Militar, que o impediu de se aproximar do Congresso. O repórter torceu o pé sem gravidade. Intolerável agressão à Constituição

Diante de tantos casos de agressão a jornalistas e a bens de empresas do setor, a ABI dirigiu representações ao Ministério Público da União em São Paulo e ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro reclamamando a identificação das autoridades que determinaram as violências contra jornalistas e pessoas comuns e a instauração dos procedimentos cabíveis para a responsabilização penal desses agentes públicos. Em ambas as representações a ABI denunciou como intolerável agressão à Constituição a decisão das autoridades de diferentes Estados de criar zonas vedadas à realização de manifestações públicas, com violação do direito de ir, vir e permanecer assegurado pela Carta Magna. Quase em uníssono, outras entidades divulgaram notas de repúdio aos casos de agressão a jornalistas, ocorridos em diversos pontos do País. A Sociedade Interamericana de Imprensa-Sip publicou comunicado no dia 24 de junho, pedindo que autoridades brasileiras investiguem os abusos ocorridos e garantam condições de trabalho para os profissionais do setor. “Não existe nenhuma justificativa para que os jornalistas e meios de comunicação sejam agredidos ou ameaçados. Justamente em um período de conflito, a melhor garantia para os cidadãos é que a informação possa fluir sem problemas”, disse Claudio 18

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Paolillo, Presidente da Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação da Sip, cujo comunicado citou os nomes de outros jornalistas atacados, como Vagner Magalhães, do Portal Terra; Giuliana Vallone, da TV Folha; Leandro Morais, do Portal UOL; Piero Locatelli, da CartaCapital, e Fernando Mellis, do Portal R7; além de Caco Barcellos, da TV Globo. O Grupo de Trabalho sobre Direitos Humanos dos Profissionais de Comunicação no Brasil divulgou no dia 14 uma nota pública em que repudiou os atos de violência verificados na capital paulista na noite do dia 13. O grupo é formado por representantes da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, dos Ministérios da Justiça e de Comunicações, do Ministério Público Federal, e de várias entidades do setor, como a própria ABI. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul, a Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj, e a Associação Riograndense de Imprensa (ARI) também manifestaram solidariedade aos profissionais de comunicação de Porto Alegre (RS), especialmente aos funcionários do Grupo RBS, que sofreram ataques durante os protestos ocorridos em 17 e 20 de junho. De acordo com o jornal Zero Hora, manifestantes radicais tentaram atacar o prédio do Grupo, “e tiveram de ser contidos pela Brigada Militar, que usou bombas de gás e balas de borracha para dispersar os agressores que lançavam pedaços de paus e pedras contra os policiais”. Legítimas manifestações públicas

“As entidades reconhecem legítimas as manifestações públicas sobre reivindicações pessoais ou de grupos, mas não podem compactuar com ameaças de invasão a prédios públicos ou privados. O jornalista está no seu direito fundamental de apurar os fatos e reportá-los ao conjunto da sociedade, e está trabalhando para que os cidadãos possam exercer o direito à informação e, por isso, merece o respeito de toda a sociedade. Identificar o profissional jornalista com as empresas de comunicação é um erro primário que não deve ser cometido por nenhum segmento da sociedade civil organizada. O jornalista está em permanente batalha pela diversidade de fontes e pelo contraditório, na busca da qualidade da informação e da verdade dos fatos. Nesta batalha, muitas vezes é vítima de seu patrão, mas não abre mão dos princípios técnicos, teóricos e éticos de sua profissão”, diz a nota do SJRS e Fenaj, que segue: “A sociedade deve, sim, ir para as ruas com pautas que possam mudar esse sistema, primando em especial pelo fim do monopólio das empresas de comunicação, mas para isso não pode ameaçar, mesmo veladamente, a integridade física dos profissionais que nelas trabalham. Com isso, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS e a Fenaj, que lutam por um novo Marco Regulatório nas Comunicações, querem a garantia e o respeito ao trabalho de todos os profissionais, que no seu cotidiano vão em busca da melhor informação, no sentido de atender os anseios de toda a sociedade”.

O meio digital muda o jogo político. E põe a mídia tradicional em xeque A nota do SJRS e da Fenaj utiliza um termo que, possivelmente, ajuda a entender o fenômeno de impopularidade enfrentado hoje pela imprensa brasileira – que passa do papel de franca atiradora para a desconfortável situação de ‘vidraça’. A palavra em questão é ‘monopólio’. Os principais pontos dos cartazes exibidos pelas ruas abordam temas exaustivamente explorados pelos jornais – tais como pedidos de maiores investimentos em educação e saúde, redução de impostos e passagens, execução da reforma política, derrubada da Pec 37, combate à violência urbana, denúncia dos elevados gastos com eventos esportivos e a defesa da saída de Renan Calheiros da Presidência do Senado Federal e de Marcos Feliciano (PSCSP) do comando da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Mas parece haver uma discordância clara sobre o posicionamento adotado pelos veículos em relação a essas pautas e o que pensa boa parte da população sobre os mesmos assuntos. A imprensa, ao que tudo indica, ainda não percebeu já ter sido quebrada sua hegemonia sobre a opinião pública. “O mundo mudou. Os meios de comunicação foram diluídos pela força da internet, tendo as redes sociais online como força motriz. Os cidadãos estão sendo alçados à categoria de pró-cidadãos. A passividade vem dando lugar ao pró-ativismo. Obviamente, é muito mais ‘cômodo’ ficar postando, curtindo e compartilhando no Facebook. Mas a realidade é que o comodismo não tem dado nenhum resultado. Nenhum ganho concreto. O que os internautas perceberam com a Primavera Árabe e outras manifestações mundo afora foi que as redes sociais online são importantes para trocar idéias e buscar novos integrantes para as causas. Porém, também acordaram para uma função importante em um momento de insatisfação: agregar simpatizantes para as causas, agendar eventos e cobri-los, com posts, tweets,

textos, fotos, vídeos, áudios, transmissões ao vivo, em tempo real, retroalimentando todo o processo. A nova geração de brasileiros percebeu, enfim, o poder que a revindicação das massas tem. A política do ‘pão e circo’ está com os dias contados”, aposta Pedro Cordier. Formado em Administração com habilitação em Marketing, especialista em Marketing Online e pós-graduado em Jornalismo Digital, Pedro é um apaixonado pelas redes sociais. Foi eleito em 2010 e 2011 o melhor profissional de Comunicação no Twitter em votação promovida pelo site especializado, Midiatismo. No ano passado, foi escolhido um dos 100 ‘Top Marketing Professors on Twitter ’, pela conceituada Social Media Marketing Magazine. É com esse currículo que analisa o atual papel das mídias sociais nas manifestações populares que tomaram conta do Brasil. E a relação crítica de boa parte desses manifestantes com a imprensa. “Se, antes, a sociedade dizia ‘amém’ para tudo o que dizia a Rede Globo – alvo-mor das manifestações antimídia-monopolista – hoje temos multimeios para nos informar e, o que é melhor, para nos manifestar e fiscalizar o que é dito pela mídia tradicional. Não adianta a mídia ‘tachar’ manifestantes de baderneiros se, nas redes, vemos vídeos de nossos amigos mostrando a Polícia jogando spray de pimenta em mulheres, batendo em jovens sentados, distribuindo bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo para todos os lados, além de outras coisas do gênero. Lógico que no meio de tanta gente, existem os mal-intencionados. A cada mil brasileiros, existe a probabilidade de termos um bandido, um baderneiro, um vândalo, um infiltrado, um fascista... É assim aqui e no mundo todo. A questão é a cobertura midiática com foco no espetáculo, e não nos fatos. Isso até entretém. Afinal, há gosto para tudo... Pode até colar, se você está de fora. Mas, se você está participando e sabe que as coisas não

MARCELOCAMARGO/ABR

SÃO PAULO

LIBERDADE DE IMPRENSA


foram bem daquele jeito, fica enfurecido e dá sua opinião, posta suas fotos e vídeos, trazendo a verdade à tona”. Para Pedro, professor da disciplina Inovação e Criatividade em cursos de MBA em Gestão de Mídias Sociais, o público pode perceber facilmente, durante as manifestações realizadas em junho, como a internet e seus canais influenciaram a cobertura de jornalões e emissoras de tv. “A mídia iniciou chamando tudo aquilo de ‘vandalismo’. À medida que a pressão nas redes aumentava, foi ‘baixando o tom’ e passou a chamar os atos de manifestações pacíficas, com uma minoria de vândalos infiltrados. Não dá mais para tapar o sol com a peneira! Estamos diante de uma situação em que a transparência vem buscando seu espaço, nem que seja por causa da fiscalização dos milhares de smartphones e tablets com câmeras espalhados por aí. Como dizia Sartre, hoje ‘o inferno são os outros’”, teoriza. Com a internet, a imprensa precisa se reinventar

Pedro Cordier faz uma comparação entre as duas históricas mobilizações populares citadas no início desta matéria – Diretas Já e Fora Collor – com as marchas de 2013. “As primeiras foram organizadas na base do boca-a-boca, dos panfletos e telefonemas. As Diretas aconteceram no final da ditadura militar. Iniciaram-se com um movimento em favor das eleições, proposto pelo então Senador Teotônio Vilela, no programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, em 1983. O Fora Collor, por sua vez, originou-se da insatisfação popular com a corrupção, com o congelamento da poupança e, assim como na época das Diretas, com a inflação alta. O próprio irmão do Presidente, Pedro Collor, denunciou o esquema numa entrevista à Veja. A juventude, organizada pelas entidades estudantis, foi às ruas, com as ‘caras pintadas’. O fenômeno deste ano foi discutido e organizado de forma online, iniciado em torno da questão das tarifas dos transportes públicos. E cresceu em visibilidade e número de reivindicações à medida que os primeiros resultados apareceram e foram divulgados pela mídia tradicional e nas próprias redes. Até que veio a vitória, com a redução do preço das passagens em quase todo o País”. Segundo o especialista, a falta da figura de um líder, bem como de uma pauta clara de reivindicações, é sintoma da diversidade do perfil do público que participa desses atos. “A internet é parte integrante da nossa vida – e ponto final. Há quem torça o nariz, esbraveje... Mas essa é a nossa realidade. A sociedade está cada vez mais conectada. A internet ainda é lenta e alcança apenas 80 milhões de brasileiros. No entanto, essa ferramenta já revolucionou a forma de pensarmos e agirmos, de nos comunicar, nos organizar… Revolucionou a forma como nos relacionamos! Por outro lado, a política envelheceu. Os partidos envelheceram e os políticos, então, são verdadeiros dinossauros. Vi inúmeros deles dizendo que ‘não entendiam a pauta das manifestações’. Como não? Quer

pauta mais clara do que o estado terminal da saúde no Brasil? Quer pauta mais definida do que o salário dos professores? Quer pauta mais fechada do que um mensalão não dar em nada? Como não entender que realizar uma Copa de R$ 33 bilhões – mais que o custo das três últimas Copas, somadas – é tirar sarro com a cara de quem não tem transporte público decente e paga uma das maiores cargas tributárias do mundo?”, questiona Corider. “As redes sociais online não podem ser tachadas de ‘reacionárias’ ou ‘revolucionárias’. As redes não ‘são’. Têm características fluidas e, como tal, apenas refletem e reverberam o sentimento e a percepção de uma sociedade, de um povo. Apesar disso, os atuais políticos ainda enxergam a comunicação como via de mão única e focada no que se tem a dizer, quando o País já há um bom tempo navega na era da conectividade. A questão primordial é que os políticos se arvoram na impunidade e estão pouco se lixando para dar satisfações. Ou, pelo menos, assim estavam até o início dessa primeira onda de manifestações... Nesse aspecto, de tomada de consciência de que a comunicação não é mais uma via de mão única ou dupla, e sim múltipla, os próprios meios de comunicação têm muito o que aprender”, afirma Pedro Cordier, que é radicado em Salvador/BA. “A mídia tradicional deveria não só ‘monitorar’ a sua própria imagem, como também rever sua programação, seus conceitos... Se o diálogo sempre foi um dos melhores caminhos para se avançar, em todos os sentidos, porque não ouvir o seu público? Público este que, inclusive, não é mais ‘alvo’. Não está mais sentadinho, esperando o próximo comando. As pessoas agora, além de público, também são ‘mídias’ e potenciais criadoras e disseminadoras de conteúdo. A preocupação por parte dos veículos começa a existir, sim, mas de uma maneira equivocada. O objetivo não deveria ser ‘domar o fenômeno’, e sim aprender com ele e se

transformar em algo diferente. Atingir o público-alvo é uma expressão que não reflete mais a realidade. Hoje, o objetivo deve ser interagir com os pro-cidadãos. Para as famílias tradicionais, detentoras dos meios de comunicação neste País, é difícil aceitar a realidade. Mas, o fato é que esse controle absoluto acabou! O que os veículos precisam, nesse momento, é estar presentes nos meios digitais para minimizar as críticas e maximizar os elogios.” “Os jornais impressos, apesar de diminuírem suas tiragens mundo afora, ano após ano, ainda gozam de prestígio, principalmente, entre os maiores de 40 anos. Porém, assim como os políticos, não se modernizaram. Não entenderam que o negócio deles não era ‘imprimir notícias em papel’. O desafio real é informar, ajudar a desenvolver o senso crítico, trazer credibilidade à informação, através do jornalismo investigativo. “E ‘informar ’, hoje, pode ser via tweet, papel, sinais de fumaça, whatever... Falta integração com os meios digitais. E isso não é ‘privilégio’ dos jornais, não... O mesmo acontece com o rádio, com as televisões, as revistas...”, diz Pedro Cordier, que considera que os meios digitais estão mudando muita coisa ao seu redor. Profissões, por exemplo, aos poucos, deixam de existir. Os intermediários, aqueles que viviam da desinformação do outro, como os agentes de viagem, estão com os dias contados... No Jornalismo, explica, já houve uma mudança profunda que, a bem da verdade, segue em curso. Escrever online transcende o uso de texto. É possível utilizar links, vídeos, áudio, fotos... Fora isso, é preciso se preocupar com as ‘palavras-chave’ corretas para que toda essa produção seja ‘buscável’ pelo Google. É companheiro; a vida não está fácil pra ninguém... A concorrência é ampla, quase desleal. Sinais dos novos tempos. “Com essas mudanças, um cidadão ‘anônimo’ pode escrever um texto, postar um vídeo, e virar um best-seller online em

questão de dias. É óbvio que, se um excelente jornalista souber tirar proveito das ferramentas digitais, o alcance poderá ser ainda maior. Mas faço aqui uma provocação: será que os profissionais da imprensa têm saco, vocação ou humildade para desaprender o que sabem e aprender a aprender as novas formas de se expressar?” Mais do que impressa aqui, fica no ar a pergunta...

ABI, OAB e Arquidiocese do Rio defendem os protestos A ABI, a Ordem dos Advogados do BrasilSeção RJ e a Arquidiocese do Rio de Janeiro, em nota conjunta, defenderam as manifestações promovidas em todo o País e repudiaram os atos de violência registrados em grande parte dos protestos.O texto divulgado pelas três instituições tem o seguinte teor: “A Ordem dos Advogados do BrasilSeção do Rio de Janeiro (OAB/RJ), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Arquidiocese do Rio de Janeiro vêm a público reafirmar os valores do Estado Democrático de Direito, defendendo a livre manifestação pacífica, as instituições e os patrimônios público e privado do Rio de Janeiro e do País. As entidades destacam o modo pacífico como transcorreram diversas manifestações populares e repudiam as formas de violência que infelizmente também ocorreram. Lembram a importância de incansavelmente se buscar o bem comum, a justiça social e a paz, através do diálogo. Ao mesmo tempo, pedem serenidade neste momento de ânimos exaltados, na certeza de que nosso maior bem político é a democracia. (a) Felipe Santa Cruz, Presidente da OAB/RJ; Maurício Azêdo, Presidente da ABI; Dom Orani João Tempesta, Arcebispo do Rio de Janeiro.”

JORNAL DA ABI 391 • JUNHO/JULHO DE 2013

19

FABIORODRIGUESPOZZEBOM/ABR

BRASÍLIA


REPRODUÇÃO/GLOBONEWS

LIBERDADE DE IMPRENSA

Levantamento da Abraji revela: 52 jornalistas vítimas de violências Em levantamento que abrange o período de 11 a 26 de junho, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo-Abraji listou os casos de 52 jornalistas vítimas da repressão policial em nove Estados e em Brasília, em ações contrárias à democracia. Precedida de uma apresentação, diz o levantamento da Abraji: Desde o início dos protestos contra o aumento do preço das passagens de ônibus, mais de 50 profissionais da imprensa foram agredidos, hostilizados ou presos no Brasil. Levantamento realizado pela Abraji com informações de sindicatos, Redações e da ong Repórteres Sem Fronteiras indica pelo menos 53 casos de violação contra 52 jornalistas. Das 53 ocorrências levantadas, 34 se referem a agressão, hostilidade ou ameaça por parte da Polícia. Outros seis casos são de prisão (por períodos que variam de poucos minutos até três dias – caso do repórter do Portal Aprendiz, Pedro Ribeiro Nogueira, indiciado por formação de quadrilha). Outras 12 ocorrências foram protagonizadas por manifestantes, e em um dos casos não foi possível identificar o que causou o ferimento a um profissional. O levantamento realizado pela Abraji é parcial: há casos que podem não ter sido computados por diversas razões, inclusive quando veículos ou jornalistas preferem não ter suas estatísticas divulgadas. Foram registrados episódios de agressão em 11 cidades brasileiras. São Paulo foi o local onde houve mais casos – 25, quase a metade do total. Fortaleza vem logo em seguida, com seis casos. O Rio de Janeiro teve cinco. O jornal Folha de S.Paulo foi o veículo com mais vítimas: sete profissionais, entre repórteres e fotógrafos. O trabalho dos repórteres de todos os meios que estão nas ruas cumprindo com o dever de manter a sociedade bem informada deve ser respeitado, independentemente de suas preferências políticas e dos meios em que informam. Repórteres cobrem hoje as manifestações com o mesmo profissionalismo e destemor com que cobriram as grandes passeatas contra a ditadura, a campanha das Diretas Já, a campanha pelo impeachment de Fernando Collor. A Abraji repudia a violência da Polícia contra manifestantes pacíficos e jornalistas e repudia igualmente a hostilidade de alguns manifestantes contra os trabalhadores dos meios de comunicação, como repórteres, fotógrafos, cinegrafistas e motoristas. Impedir ou dificultar o trabalho da imprensa é agir contra a democracia. 20

JORNAL DA ABI 391 • JUNHO/JULHO DE 2013

O repórter Pedro Vêdova levou um tiro de borracha na testa e fez um relato da agressão em vídeo à GloboNews.

AGRESSÕES A JORNALISTAS NO BRASIL de 11 a 26 de junho

NOME

AGRESSÃO

VEÍCULO

DIA

Marcos Henrique Michelin

Ferido na perna esquerda

Estado de Minas

26

Shirley Barroso

Agredido por policiais com bomba de gás lacrimogêneo

TV Record

26

Tahiane Stochero

Agredido por manifestantes com pedrada

G1

26

Vinicius Segalla

Agredido por manifestantes com chutes; teve o rádio tomado por suspeita de que falava com polícia

UOL

18

Ari Filgueira

Agredido por policiais com spray de pimenta

TV Globo

26

Jorge Luiz dos Reis Brum

Ameaçado por policiais com uma arma

EBC

20

Marcelo Parreira

Agredido por policiais com spray de pimenta

TV Globo

26

Agredido ou hostilizado por manifestantes

CBN

20

Alex Mineiro

Agredido por policiais com spray de pimenta

Rádio Tribuna Band News

19

Deivyson Teixeira

Ameaçado por policial, que apontou a arma para ele

O Povo

19

Gabriela Alves

Agredido por policiais com bombas de efeito moral e spray de pimenta

G1

20

Gioras Xerez de Paiva

Agredido por policiais com bombas de efeito moral e spray de pimenta

G1

20

Luiz Paulo Montes

Agredido por policiais

UOL

19

Pedro Rocha

Agredido por policiais com bala de borracha

Comitê Popular da Copa

19

Agredido ou hostilizado por manifestantes

Portal D24AM

20

Agredido por seguranças

EBC

19

Agredido ou hostilizado por manifestantes

Rádio Bandeirantes

20

Richard

Agredido ou hostilizado por manifestantes

Rádio Globo AM

20

Tancredo Furtado

Agredido ou hostilizado por manifestantes

Rádio Rondonotícias

20

Ernesto Carriço

Agredido por manifestantes

O Dia

17

Marcelo Piu

Agredido por policiais com bala de borracha

O Globo

20

Mônica Puga

Atacada por manifestantes com lixeira

Band

20

Murilo Azevedo

Agredido por policiais com bomba de gás lacrimogêneo

EBC

19

Pedro Vedova

Agredido por policiais com bala de borracha

Globo News

20

Almiro Lopes

Agredido por policiais

Correio

22

Evilásio Júnior

Agredido por policiais com spray de pimenta

Bahia Notícias

22

Francis Juliano

Preso ao questionar policiais sobre o motivo de espancarem um fotógrafo

Bahia Notícias

22

Tiago di Araújo

Hostilizado por policiais que o forçaram a apagar fotos

Ibahia

22

Ana Krepp

Agredida por policiais

Folha de S.Paulo

13

André Américo

Agredido por policiais com balas de borracha

Metro

13

Bruno Ribeiro

Agredido por policiais com bomba de gás lacrimogêneo

O Estado de S.Paulo

13

Caco Barcellos

Hostilizado por manifestantes

TV Globo

17

Fabio Braga

Agredido por policiais

Folha de S.Paulo

13

Fabio Pannunzio

Atacado por manifestantes - microfone destruído

Band

18

Félix Lima

Agredido por policiais

Folha de S.Paulo

13

Fernando Borges

Preso por 40 minutos com as mãos nas costas

Terra

13

Fernando Mellis

Agredido por policiais com cassetete

R7

11

Filipe Araújo

Agredido por policiais; atropelado por viatura

O Estado de S.Paulo

13

Gisele Brito

Agredida por policiais com golpes no rosto

Rede Brasil Atual

13

Giuliana Vallone

Agredida por policiais com bala de borracha no rosto

Folha de S.Paulo

13

Glauco Araujo

Agredido por policiais com bala de borracha

G1

13

Henrique Beirangê

Agredido por policiais com spray de pimenta

Metro

13

Leandro Machado

Preso e levado à delegacia

Folha de S.Paulo

11

Leandro Machado

Agredido por policiais

Folha de S.Paulo

13

Leandro Morais

Preso e levado à delegacia

UOL

11

Marlene Bergamo

Agredido por policiais

Folha de S.Paulo

13

Pedro Ribeiro Nogueira

Preso por quatro dias; acusado de formação de quadrilha

Portal Aprendiz

11

Piero Locatelli

Preso por carregar um frasco de vinagre

Carta Capital

13

Renato Vieira

Agredido por policiais com bomba de gás lacrimogêneo

O Estado de S.Paulo

13

Rita Lisauskas

Atacada por manifestantes com vinagre

Band

18

Rodrigo Machado

Agredido por policiais

Folha de S.Paulo

13

Sérgio Silva

Agredido por policiais com bala de borracha no rosto

Futura Press

13

Vagner Magalhães

Agredido por policiais

Portal Terra

13

BELO HORIZONTE (MG)

BRASÍLIA (DF)

CAMPINAS (SP) Flávio Botelho FORTALEZA (CE)

MANAUS (AM) Camila Pereira NITERÓI (RJ) Vladimir Platonow PORTO ALEGRE (RS) Marina Pagno PORTO VELHO (RO)

RIO DE JANEIRO (RJ)

SALVADOR (BA)

SÃO PAULO (SP)


FERNANDO FRAZÃO/ABR

CONVULSÃO

Sem script, sem cronograma POR ALBERTO DINES Quando começaram os protestos na Paulicéia, em 6 de junho, jornalões e revistões já haviam assumido publicamente que estavam em crise, cortavam páginas, cadernos, empregos. Quando o Governador e o Prefeito juntos, em Paris, denunciaram os primeiros distúrbios como vandalismo, os editorialistas e opinionistas ganharam um assunto e a polícia um pretexto para baixar o cacete. Se o movimento pode ser intitulado como “Revolta Contra o Script e o Cronograma”, a mídia tem uma parcela de culpa: aceitou o jogo sem reclamar, foi na onda, submeteu-se ao ditado determinista das forças políticas majoritárias fixadas no calendário eleitoral. Cobria eventos sem detectar a impaciência que latejava ao lado. Não enxergava desdobramentos e impasses forjados pelo próprio noticiário. Contentava-se em mostrar a inflação com enquetes em supermercados. Dobrou-se aos custos exorbitantes das arenas esportivas porque o futebol não enriquece apenas os cartolas, também costuma carrear bons lucros para os cofres das empresas jornalísticas. Distraída pelas próprias aflições, nossa imprensa não detectou os sinais irradiados pela rebelião turca, não prestou atenção nos indícios de que os pavios estavam novamente curtos e os barris de pólvora cada vez mais cheios. Inexperiência ou irresponsabilidade?

A pandemia de protestos em 1968 não foi a única, ondas de revoltas são cíclicas, houve grandes sacolejos em 1979. As redes sociais não são as únicas detonadoras de insatisfações, mas graças a elas desde 2008 tornaram-se contínuas. A perplexidade na noite da segundafeira, 17 de junho, foi ampla e irrestrita: não desnorteou apenas governantes e políticos, também surpreendeu estrategistas, consultores, mídia e a formidável legião de acadêmicos. Aferrada às suas convicções, profundas teorias e interesses imediatos, a grande maioria desses observadores recusa-se ainda a olhar em outras direções. Doravante terão que admitir que são falíveis. Quando o Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto de Carvalho, responsabiliza diretamente a imprensa por insuflar o povo com um “moralismo despolitizado”, fica nítido o grau de atonia e aturdimento que domina a instância máxima do Executivo (Estado de S.Paulo, 22/6, pág. A-8; Folha de S.Paulo, idem, pág. C-3). Mas quando um jornal com o prestígio e recursos da Folha publica em plena

crise, numa edição dominical, uma manchete baseada em sondagem de rua com apenas 606 entrevistados e com ela tenta montar uma tendência dominante, então se percebe o esvaziamento das nossas Redações ou, o pior, seu grau de inexperiência ou irresponsabilidade (“A maioria dos paulistanos defende mais atos nas ruas”, domingo, 23/6, pág.1). Exuberância de recursos, vazio de sentidos

Um dos maiores movimentos políticos da nossa História foi acompanhado por uma televisão altamente equipada em matéria de tecnologia. Mas o suporte informativo, sobretudo nos estúdios e bancadas, apresentou enormes falhas. Também nas ilhas de edição e nas mesas de comando. Atropelos e equívocos eram tão evidentes que nem se pedia desculpas aos telespectadores ou “assinantes”. Apresentadores viciados no uso do teleprompter (TP), quando obrigados a fazer relatos de improviso, deram seguidos vexames, muitos até mostravam desconhecer suas próprias cidades e ignorar fatos históricos relevantes. Âncoras de rádio, sentindo-se na obrigação de opinar sobre a transcendência do momento, cometeram incríveis barbaridades. A depredação do Palácio do Itamaraty – valioso museu de arte e um dos melhores projetos de Oscar Niemeyer em Brasília – não conseguiu emocionar nenhum dos narradores. Só no dia seguinte, e nos jornais. É válido o recurso de convocar acadêmicos para contextualizar nos estúdios os acontecimentos exibidos nas telas, porém mantidos durante muito tempo longe dos acontecimentos das ruas, tornam-se repetitivos. Não merecem. Para proteger suas equipes contra eventuais violências, a Rede Globo pode dar-se ao luxo de cobrir ao vivo, a partir de helicópteros, manifestações simultâneas em diversas capitais e durante longos períodos. Mas o material quente, de rua, teve que ser mostrado no dia seguinte. E misturado aos eventos correntes. Confusão total. Reconheça-se: não temos experiência em coberturas tão tensas, intensas e traumáticas. E os profissionais mais habilitados, vividos, estão sendo despachados para suas casas. A garotada que os substitui não tem rodagem nem bagagem. Convém prepará-la – se não para repetições, pelo menos para valorizar o conteúdo do meio televisivo, o mais rico da comunicação contemporânea. Texto publicado originalmente no Observatório da Imprensa em 25 de junho, na edição 752.

RIO DE JANEIRO

O DIA EM QUE A ORDEM DA PM ERA ATIRAR E BATER Um relato de quem viveu o furor da truculência policial no Rio de Janeiro. P OR D ANIEL M AZOLA

Certamente mais de 1 milhão de pessoas foram às ruas do Rio de Janeiro no dia 20 de junho. Venho participando de todas as manifestações. Na primeira havia no máximo 100 pessoas e pouca repressão das forças policiais. Já no dia 20, quando centenas de milhares caminharam da Candelária ao prédio da Prefeitura, os policiais estavam mirando e atirando aleatoriamente em qualquer pessoa, houve pânico generalizado. Alguns poucos manifestantes mais revoltados praticaram atos de violência isolados, mas a Polícia jamais poderia praticar os mesmos atos, e de forma ainda mais intensa e totalmente irresponsável. Helicópteros davam vôos rasantes e ajudavam os militares a se posicionar e cercar os manifestantes. Após muita violência na porta da Prefeitura, milhares de pessoas se dispersaram e muitos foram para a Lapa, onde o Batalhão de Choque promoveu um verdadeiro massacre. Por muito pouco a covardia, o despreparo e a truculência da tropa não causaram uma tragédia de grandes proporções. PMs, tropa de choque, Guarda Municipal, Caveirão, Bope, etc, lançaram bombas de efeito moral contra tudo e todos, inclusive no Hospital Souza Aguiar, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais-Ifcs, em sindicatos, na Escola Nacional de Música, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e no Colégio Pedro II, locais onde diversos manifestantes ficaram encurralados e acuados. Eu e minha esposa ficamos acuados no Bar Ernesto, na Lapa, onde pude ver muita coisa, tanto na ida quanto na saída do bar em direção à minha casa. Tudo o que ocorreu por ordem das autoridades são fatos característicos de um regime ditatorial e que não aconteciam há décadas por aqui. Puro terrorismo estatal.

Mesmo assim o saldo foi extremamente positivo: os manifestantes ocupavam toda a Avenida Presidente Vargas, numa passeata pacífica, com a presença de estudantes do ensino médio e de universidades, trabalhadores, idosos e crianças. Muitos levavam flores. Apesar da perseguição desumana e covarde, o sentimento geral é que o próximo protesto precisa ser ainda maior do que este. A versão dominante nos grandes jornais fala apenas dos vândalos e baderneiros, mas a população está desmistificando essa versão no boca-a-boca, nas conversas do dia-a-dia, pois foi vítima da covardia desmedida contra aqueles que estavam pacífica e ordeiramente se manifestando. Como sempre faço, participei e observei tudo. Desde 1992, no Fora Collor e o Impeachment, não vi tamanha indignação e revolta nas ruas do Rio. O problema não é apenas o aumento da tarifa de um serviço que deveria ser muito barato ou de graça, em um país riquíssimo como o nosso; os protestos são contra a realidade que lhes é apresentada neste País, onde há séculos se faz uma grotesca experiência políticoadministrativa-econômica onde miséria absoluta e riqueza total convivem descaradamente. O que está ocorrendo não vai parar com a revogação dos 20 centavos do aumento da tarifa, é uma legítima revolta popular, um levante nacional, com eixo na juventude, com adesão de milhares de trabalhadores e trabalhadoras jovens e dos setores médios contra todo tipo de Governo e por reivindicações no geral justas: contra o aumento das tarifas, contra gastos da Copa, fora Feliciano, saúde, educação, corrupção, democratização da mídia e os temas relativos a isso. Muitos perceberam que só nas ruas vamos conquistar nossos direitos; após séculos de descaso com a população, as demandas são muitas!

JORNAL DA ABI 391 • JUNHO/JULHO DE 2013

21


CONVULSÃO

A PEC DA IMPUNIDADE JÁ ERA A mobilização de promotores e procuradores, com o apoio de instituições da sociedade civil, entre as quais a ABI, incorporou a derrubada da PEC 37 ao elenco de reivindicações das manifestações de rua e levou a Câmara dos Deputados a rejeitar a proposta.

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JORNAL DA ABI 391 • JUNHO/JULHO DE 2013

ALCYR CAVALCANTI

Sob a pressão formada pelos protestos que tomaram as ruas do Brasil nas últimas semanas, a Câmara dos Deputados arquivou a PEC 37/2011, também chamada de PEC da Impunidade, em votação na noite de 25 de junho. A proposta de emenda constitucional pretendia excluir o poder de investigação de outros órgãos que não a Polícia, como o Ministério Público, as Comissões Parlamentares de Inquérito e a Controladoria-Geral da União. O projeto foi rejeitado por 430 votos a 9, e duas abstenções. Já na madrugada de 26 de junho outros itens mencionados nas manifestações também passaram por votação acelerada. Os deputados aprovaram também o projeto que destina 75% dos recursos da exploração do petróleo (royalties) à área de educação e 25% para a saúde, texto que ainda precisa ser aprovado pelo Senado. A PEC 37 era uma das matérias em tramitação mais atacadas pelos recentes protestos nas ruas do País. Desde que o projeto começou a ser objeto de lobby junto ao Congresso Nacional pelos delegados de polícia, em 2011, a ABI sempre manteve um posicionamento contrário à proposta, que poderia contribuir significativamente para o aumento da impunidade. A posição da instituição foi reiterada no dia 13 de junho, quando a Casa do Jornalista recebeu a visita do Procurador-Chefe do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ), Guilherme Raposo, e dos Procuradores Cláudio Gheventer e Thiago Miller. Na ocasião, os representantes do MP expuseram uma série de inconvenientes, como o alto grau de corporativismo da proposição. Ainda durante o encontro, o Presidente Maurício Azêdo reafirmou a solidariedade da ABI ao movimento contra a PEC 37. Após a visita, no dia 18 de junho, a Casa do Jornalista enviou e-mail às lideranças de partido no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, pedindo-lhes que votassem pela rejeição da proposta. A votação foi realizada com as galerias da Câmara tomadas por procuradores e promotores. O Presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), recorreu a uma manobra regimental para garantir que a PEC 37 fosse apreciada – e derrubada. Ao final da sessão ordinária que debatia o projeto que destina os royalties do petróleo para a educação, Henrique Alves interrompeu a discussão e convocou uma sessão extraordinária para discutir exclusivamente a PEC 37. Assim ele evitou o risco de a votação dos royalties avançar madrugada adentro e a votação da PEC ser prejudicada por falta de quórum. Para tentar um acordo no texto da PEC 37, foi constituído um grupo de trabalho

Projeto de Lei 5820/13, que regulamenta a investigação criminal no Brasil, em especial a atuação conjunta da Polícia Judiciária e do Ministério Público. “O objetivo é estabelecer um regramento nacional, uma unificação do procedimento de investigação para promotores e delegados. [O projeto] não retira nem restringe o poder de investigação do Ministério Público. Apenas estabelece regras”, disse. Royalties do petróleo

A pressão dos manifestantes contra a Pec 37 fez com que parlamentares decidissem pela sua rejeição.

coordenado pelo Ministério da Justiça, com a participação de deputados, delegados e procuradores, mas não houve consenso. “O povo brasileiro, que quer cada vez mais o combate à corrupção e à impunidade, gostaria de ver o MP e os delegados unidos”, declarou o Presidente da Câmara. “Demos um prazo até segunda-feira, 24 de junho, para que na noite de hoje não houvesse nem vencedores nem vencidos.” Alves reafirmou ainda, depois da rejeição da PEC 37, o compromisso da Casa de votar o fim do voto secreto para cassação de mandatos (PEC 196/12). “É um compromisso que nós temos e vamos pautar até o final deste período legislativo”, disse. Durante a votação, gritos e aplausos, normalmente proibidos, foram liberados. Todos os partidos orientaram os deputados a rejeitar a PEC 37, que foi derrubada por 430 votos. Na comemoração, o Hino Nacional foi cantado por estudantes, procuradores e parlamentares. Somente os Deputados Abelardo Lupion (DEM-PR), Mendonça Prado (DEMSE), Bernardo Santana de Vasconcellos (PR-MG), Valdemar Costa Neto (PR-SP), Eliene Lima (PSD-MT), João Lyra (PSDAL), João Campos (PSDB-GO), Sérgio Guerra (PSDB-PE) e Lourival Mendes (PTdoB-MA) foram a favor do projeto. Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) e Paulo Cesar Quartiero (DEM-RR) se abstiveram. Mais tarde, o Deputado alagoano João Lyra afirmou que houve um engano em seu voto. A assessoria de imprensa do Deputado informou que ele corrigiu o voto e estava esperando o taquígrafo para encaminhar uma nota oficial à impren-

sa. Ainda de acordo com a assessoria, ele fez o uso do microfone na Câmara dos Deputados para se pronunciar sobre o equívoco. Questionado por diversos seguidores em seu Twitter, Lyra respondeu que ocorreu um “engano” e que “o correto seria votar de acordo com o que foi decidido pela bancada do PSD”. Já parlamentares que votaram a favor admitiram que a pressão nas ruas foi fundamental para derrubar a PEC. “Isso não aconteceria sem as ruas”, avaliou Walter Feldman (PSDB-SP), para quem, sem a voz das ruas, ao menos 70% dos deputados apoiariam o projeto. O autor da PEC 37, Deputado Lourival Mendes (PT do B-MA), foi vaiado pelos manifestantes nas galerias ao subir à tribuna para defender o projeto. “Não é a PEC da impunidade”, afirmou o maranhense. “Lamentavelmente a PEC foi rotulada de algo que nada tem a ver com o seu objetivo.” Regulação das atividades do MP

A aprovação tornou-se possível graças a um acordo entre os partidos para votar, mais adiante, projetos que regulamentam os procedimentos de investigação do MP. O líder do PMDB, Deputado Eduardo Cunha (RJ), lembrou que haverá outra discussão para regulamentar a investigação criminal no Brasil. “O tema não termina [com a rejeição da PEC]. Vamos ter que buscar uma proposta em que todos ganhem, a sociedade seja vitoriosa no combate à criminalidade de toda natureza.” O líder do PSDB, Deputado Carlos Sampaio (SP), protocolou nesse dia 25 o

Por volta das 2h, o plenário aprovou por aclamação o projeto que vincula os royalties do petróleo para educação e saúde. A decisão foi apontada como uma derrota para o Planalto, que originalmente desejava carimbar o dinheiro apenas para a educação e só incluía os contratos futuros e de rendimentos do Fundo Social, criado no marco regulatório do pré-sal. O líder do Governo, Arlindo Chinaglia (PT-SP), afirmou que não há compromisso de se sancionar o projeto da forma como foi aprovado. O relator do projeto, André Figueiredo (PDT-CE), estima que a proposta original do Governo destinaria R$ 25,8 bi para a educação em 10 anos, enquanto o texto aprovado pode destinar R$ 280 bilhões para educação e saúde no mesmo período. A proposta ainda será analisada pelo Senado. O aumento bilionário foi feito porque foi decidido alterar em contratos já assinados em áreas nas quais ainda não começou a exploração comercial até 3 de dezembro de 2012 e de metade dos recursos que serão destinados ao Fundo Social. A proposta do Governo era só para novos contratos e envolvia apenas o rendimento de aplicações feitas com o Fundo. A vinculação para a saúde foi fixada em 25% sobre os royalties dos contratos, não incluindo os recursos do Fundo Social. O texto final prevê que União, Estados e Municípios terão obrigatoriamente de investir esse percentual na saúde, impedindo que a Presidente Dilma cumpra sua promessa de destinar tudo para a educação. O Governo considera que da forma como o texto foi aprovado poderá haver questionamento judicial por se interferir em contratos já firmados. Propostas no Senado

O Senado também resolveu direcionar a pauta de votações aos pedidos feitos nas ruas. O Presidente Renan Calheiros (PMDB-AL) apresentou um projeto que prevê passe livre para estudantes matriculados e que tenham freqüência comprovada. O dinheiro para financiar a proposta viria dos royalties do petróleo.


HISTÓRIA

Cinema brasileiro: É preciso preservar o que já foi feito A Mostra de Cinema de Ouro Preto se autodenomina “o único evento do Brasil a enfocar a preservação, a história e a educação audiovisual”. O Jornal da ABI foi conferir de perto. LEO LARA/UNIVERSO PRODUÇÃO

P OR C ELSO S ABADIN

A cidade de Ouro Preto foi tomada por diversas atrações da Mostra de Cinema, incluindo um grande cinema ao ar livre erguido na Praça Tiradentes. Abaixo, o homenageado da 8ª CineOP, o cineasta Walter Lima Jr., chega para a abertura oficial da Mostra, que aconteceu no histórico Cine Vila Rica. FRANCISCO UCHA

Normalmente, o que se espera de um festival de cinema é acompanhar as mais recentes tendências e novidades da produção audiovisual. Normalmente. Mas este definitivamente não é o foco da CineOP, Mostra de Cinema de Ouro Preto, evento que caminha exatamente na contramão dessa proposta. Inspirada pelo casario, pelas igrejas e monumentos que há três séculos teimam em se manter de pé neste País de pouca memória, a Mostra de Cinema de Ouro Preto busca o passado da nossa produção audiovisual, focando suas exibições, debates e seminários na sempre tão difícil preservação da nossa memória cinematográfica. A oitava edição do evento, realizada de 12 a 17 de junho, foi ainda mais além. Não apenas se inspirou no belíssimo barroco preservado para debater políticas de restauração cinematográfica, como também bebeu da fonte dos Inconfidentes que se insurgiram contra os desmandos da Coroa Portuguesa para abrir, especificamente neste ano, uma outra vertente de discussões: os 50 anos do golpe militar que serão completados em 2014. A temática histórica da Mostra deste ano trouxe o tema 1964-1969: O Cinema Brasileiro entre o Golpe e o AI-5 antecipando as reflexões sobre o meio século do golpe de 1964. Neste segmento, foram exibidos seis filmes emblemáticos do período: Terra em Transe, de Glauber Rocha (1967); Trilogia do Terror, de Ozualdo Candeias, Luiz Sérgio Person e José Mojica Marins (1968); Anuska, Manequim e Mulher, de Francisco Ramalho Jr. (1968); Bebel, Garota Propaganda, de Maurice Capovilla (1968); El Justiceiro, de Nelson Pereira dos Santos (1968); e Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr. (1968). “É interessante perceber nesses filmes a importância dos intelectuais como personagens, politizados ou não, mas sempre impotentes e fracassados em suas missões, bem como a importância da alegoria e as menções ao regime, diretas ou indiretas”, afirma Cléber Eduardo, curador da Temática Histórica da CineOP. Enquanto a temática histórica se centraliza no sombrio período entre 1964 e 1969, a curadoria de preservação da 8ª CineOP propôs pensar a preservação audiovisual em tempos de redes sociais. “A cultura do século 21 é a cultura do compartilhamento, do cruzamento e da transformação de informações das mais variadas naturezas, onde o audiovisual assumiu caráter central. O estímulo à vida do cida-

dão, que é um dever básico do Estado, passa cada vez mais pela ação conjunta da chamada preservação audiovisual”, afirma Hernani Heffner, curador da Temática Preservação. Desta forma, a CineOP trouxe para o Brasil, nesta sua oitava edição, renomados profissionais internacionais que debateram a multiplicidade de olhares sobre essas questões e proporcionaram o intercâmbio de idéias e experiências com os quase 100 brasileiros que se reuniram no 8º En-

contro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais Brasileiros. A palestra inaugural do Encontro, Balanço de um Campo: A Arquivística Audiovisual, foi proferida pelo australiano Ray Edmondson, segundo o qual cada instituição tem uma visão diferente da obra. No caso dos arquivos e acervos, o filme é, ao mesmo tempo, arte e arquivo. Lembrando a definição de preservação da Onu, ele afirmou que “não faz sentido preservação sem acesso”: “A preservação

é fundamental para dar acesso, é o acesso que justifica a existência de uma obra e justifica os gastos públicos para preservá-la”. Ele destacou ainda a importância da conexão entre passado e presente, fazendo a imaginação atuar num trabalho aparentemente mecânico. Uma das principais autoridades mundiais do setor, Edmondson é membro do programa Memória do Mundo, da Unesco, e teve agora sua publicação Audiovisual Archiving: Philosophyand Principles, uma referência no meio, publicada em português, em tradução de Carlos Roberto de Souza, numa iniciativa da CineOP e da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual-ABPA. Além desta publicação, também foram lançados no evento os livros Cinematographo em Nictheroy: História das Salas de Cinema de Niterói, de Rafael de Luna Freire; Humberto Mauro, Cinema, História, de Eduardo Morettin; Subversivos - O Desenvolvimento do Cinema de Animação em Minas Gerais, de Sávio Leite; A Família Vai ao Cinema, de Inês Teixeira e Miguel Lopes, e Leve Seus Alunos ao Cinema, de Myrna Silveira Brandão. Olhar para o passado do cinema brasileiro não significa que o evento só reserve preocupações para questões de abordagens históricas. Existe também dentro da CineOP uma curadoria especialmente direcionada para filmes inéditos. Contudo, dentro do espírito do festival, são es-

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HISTÓRIA CINEMA BRASILEIRO: É PRECISO PRESERVAR O QUE JÁ FOI FEITO

Experiências criativas

Finalizando o tripé que compõe a programação da 8a CineOP, a Temática Educação agregou os integrantes da chamada Rede Kino, a Rede Latino-Americana de 24

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FRANCISCO UCHA

colhidos apenas trabalhos que valorizem a preservação da nossa memória através da adequada utilização de imagens de arquivo. Nesta versão 2013, a Mostra levou para Ouro Preto cinco longas, quatro médias e 30 curta-metragens, todos ainda inéditos no circuito brasileiro. “Esta seleção contemporânea privilegia filmes que usam as imagens de arquivo de maneira a fazer dialogar o cinema contemporâneo com as imagens feitas em outras circunstâncias históricas e estéticas. De documentários a ficções, as maneiras de diálogos entre imagens de hoje e imagens de ontem são plurais e pretendemos colocar em foco diálogos inovadores e originais”, informa Pedro Maciel Guimarães, responsável pela curadoria da Mostra Contemporânea juntamente com os críticos de cinema Cássio Starling Carlos e Francis Vogner dos Reis. Neste segmento do festival foram apresentados longas que, cada um à sua maneira, resgatam diferentes aspectos históricos da nossa produção audiovisual. O documentário A Primeira Vez do Cinema Brasileiro, por exemplo, revela como foram os bastidores de Coisas Eróticas, o primeiro filme brasileiro de sexo explícito a estrear em cinemas comerciais. Dirigido a seis mãos por Bruno Graziano, Denise Godinho e Hugo Moura, A Primeira Vez do Cinema Brasileiro joga luz sobre este tema-tabu, ao mesmo tempo que registra como este subgênero se tornou um gigantesco fenômeno comercial. Outros três documentários de longa metragem enfocaram três importantes personalidades do nosso cinema: Mazzaropi, do colaborador do Jornal da ABI Celso Sabadin; Ozualdo Candeias e o Cinema, de Eugênio Puppo; e Sinais de Cinza, a Peleja de Olney contra o Dragão da Maldade, de Henrique Dantas. Os três juntos formam um amplo painel da história recente do audiovisual brasileiro ao documentar o grande sucesso caipira Amácio Mazzaropi, o mestre da chamada “Boca do Lixo” Ozualdo Candeias, e o documentarista baiano Olney São Paulo, cuja carreira foi interrompida pela ditadura militar. O único não-documentário desta seção foi Cine Holliúdy, do cearense Halder Gomes, que aborda o tema da preservação sob a forma de comédia. O roteiro critica com muito bom humor a chegada em massa da televisão no interior do Ceará, na década de 1970, colocando em risco a popularidade das salas de cinema da região. Detalhe: como o filme, segundo seu próprio diretor, é falado em dialeto “cearencês”, ele foi exibido com legendas em português. O destaque desta exibição de filmes contemporâneos é que toda ela é realizada a céu aberto, na belíssima Praça da Liberdade, que invariavelmente lota os seus 500 provisórios lugares para ver e aplaudir filmes brasileiros. Sob as vistas de uma impassível estátua de Joaquim José da Silva Xavier e todos os sentimentos de liberdade (ainda que tardia) que ela evoca.

A Abertura da 8ª CineOP aconteceu no elegante Cine Vila Rica.

Educação, Cinema e Audiovisual. “Neste ano, o Fórum da Rede Kino apresentou diversas experiências criativas com cinema de formação e produção audiovisual com cineastas, professores e estudantes. Foi discutido o papel das universidades, escolas, ongs e festivais como pontos de encontro e promoção de novos saberes e práticas. Destacou-se a urgência de estabelecer um diálogo direto entre o MinC e o Mec para definir políticas públicas que contemplem a alteridade e a criação como gestos próprios da cultura e da educação”, afirmou a professora Adriana Fresquet, colaboradora da Temática Educação. Neste segmento do festival, a professora argentina Débora Nakache coordenou a mesa Cinema e Educação: Experiências Criativas, apresentando iniciativas diversas com foco na formação de professores, em produções realizadas por crianças e adolescentes na educação básica e o papel dos festivais como ponto de encontro e difusão. Licenciada em Psicopedagogia, Débora coordena desde 2001 o programa Médios em la Escuela (Mídias na Escola) do Ministério de Educação do Governo da cidade de Buenos Aires. Organiza também o Hacelo Corto (Faça Curta), festival de curtas metragens produzidos por crianças e jovens. Já a mesa Experiências Latino-Americanas de Cinema com Crianças, discutiu vivências de cinema com crianças de segmentos marginalizados, como o ensino de cinema nos subúrbios das grandes capitais e nas aldeias indígenas. Os debates contaram com as participações especiais do chileno Ignacio Agüero e da argentina Mónica Acosta. Professor de documentário na Universidade do Chile, Ignacio vem realizando diversos filmes independentes desde 1984, vários deles internacionalmente premiados. E Mónica Acosta, licenciada em Letras pela Universidade de Buenos Aires, é roteirista, produtora e professora titular do Mestrado Periodismo Documental da Universidad Nacional de Tres de Febrero. Da teoria para a prática, o evento ainda exibiu sua Mostra Cine-Escola, dirigida aos alunos e educadores de Ouro Preto, atingindo cerca 3.500 alunos participan-

tes do programa Cine-Expressão – A Escola vai ao Cinema, que, além das sessões, oferece também oficina de capacitação para educadores e Cine-debate. A Mostrinha de Cinema exibiu longas, médias e curtas para crianças e adolescentes. Monopólio e crise

Terminadas as conferências, painéis, palestras e os mais variados tipos de debates, chega, ao final de todo evento, a hora das reivindicações. Na CineOP não foi diferente. A Associação Brasileira de Preservação Audiovisual-ABPA, por exemplo, encerrou o festival propondo maior aproximação entre a entidade e o Ministério da Cultura “para atuarem de forma conjunta na construção de políticas públicas para a preservação audiovisual no País, visando desenvolver uma agenda de trabalho e ações concretas voltadas para a salvaguarda dos acervos audiovisuais brasileiros, a valorização dos profissionais de preservação audiovisual e a implementação de um Plano Nacional de Preservação Audiovisual”. Foi proposto também um edital destinado à modernização de infraestrutura de conservação de acervos audiovisuais brasileiros, bem como a inclusão da disciplina de preservação audiovisual na grade curricular dos cursos universitários de cinema do País. A ABPA também se mostrou contrária ao atual monopólio sobre a preservação de acervos que detém a Cinemateca Brasileira, e solicitou, em carta reivindicatória, “o credenciamento de novas instituições de preservação audiovisual como repositórios nacionais de depósito legal de obras audiovisuais além da Cinemateca”. “Há anos não temos esse nível de transparência e colaboração, seja da parte da Secretaria do Audiovisual ou da Cinemateca Brasileira”, afirmou Hernani Heffner, Presidente da ABPA, que não tem poucas reclamações a fazer sobre a Cinemateca. Algumas delas vieram à tona no tão esperado encontro que a 8ª CineOP promoveu entre a Associação e o Presidente do Conselho da Cinemateca, Ismail Xavier. O encontro permitiu melhor compreensão dos funcionamentos internos da Cinema-

teca Brasileira e órgãos adjacentes, como seu Conselho e a Sociedade Amigos da Cinemateca-SAC. Também foram discutidos a origem e os desdobramentos da atual crise pela qual a instituição está passando. Xavier lembrou que a Cinemateca foi criada como instituição privada na década de 1940, vinculada ao Museu de Arte Moderna de São Paulo, até sua integração à Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, após passar pelo Ministério da Educação e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-Iphan. “O Conselho da Cinemateca existe desde que ela era privada e é composto atualmente por 22 membros, sendo 15 eleitos entre figuras de notório saber na área da cultura, além de cadeiras cativas destinadas a representantes do Ministério da Cultura, da Secretaria do Audiovisual, da Ancine, das Secretarias Estadual e Municipal de Cultura e dos funcionários da Cinemateca”, explicou Xavier. “O afastamento do então Diretor-Executivo da Cinemateca Brasileira, Carlos Magalhães, se deu sem consulta prévia a esse Conselho. Tivemos que aceitar a demissão como fato consumado, restando buscar diálogo com o Governo e uma solução para frente. Porém, só foi possível ter uma reunião com a Ministra Marta Suplicy dois meses depois, quando ela foi a São Paulo”, relatou. Enquanto as investigações sobre repasses de verbas estiverem em andamento, todo o envio de recursos à Cinemateca está congelado, e o problema não parece estar próximo de ser resolvido. Num rápido balanço, a CineOP ofereceu uma programação gratuita com mais de 50 filmes divididos em 33 sessões em três espaços da cidade: o Centro de Artes e Convenções, a Praça Tiradentes e o Cine Vila Rica. Com orgulho a Mostra se autodenomina como “o único evento do Brasil a enfocar a preservação, a história e a educação audiovisual”. E não sem motivos. O próprio Cine Vila Rica, onde filmes preservados são exibidos em sessões noturnas, já é por si só histórico: foi criado em 1957 e ainda hoje é referência entre as salas de exibição que resistiram ao tempo no interior de Minas Gerais.


FOTOS FRANCISCO UCHA

A censura continua viva Diretores presentes ao debate Memória e Consciência denunciam uma nova forma de repressão e afirmam que o cinema deve formar resistência. P OR F RANCISCO U CHA

O palco do debate Memória e Consciência, que reuniu quatro dos mais importantes diretores de cinema do País no dia 14, durante a 8ª CineOP, não podia ser mais adequado. Afinal, a outrora Vila Rica foi o berço da luta dos Inconfidentes contra a opressão da Coroa portuguesa. Caminhando pelas ruas sinuosas de Ouro Preto, ainda hoje sentimos no ar os ideais de liberdade sonhados por Joaquim José da Silva Xavier. São os mesmo ideais que mobilizaram cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Francisco Ramalho Jr, Maurice Capovilla e o homenageado da Mostra, Walter Lima Jr, realizadores de muitos filmes censurados durante a ditadura militar. E foi com o objetivo de relembrar essa luta contra os censores que eles se reuniram numa das mais aguardadas mesas de debates do evento, acompanhados da pesquisadora Leonor Souza Pinto, tendo como mediador o professor e crítico de cinema Daniel Caetano. Leonor, que é a Coordenadora do projeto Memória da Censura no Cinema Brasileiro/1964-1968 (memoria cinebr.com.br), abriu o debate lembrando que a censura militar existiu desde o início do golpe de 1964 e que o AI-5 apenas municiou o regime com um maior poder de repressão. Apresentando um contexto histórico das ações da censura na produção cinematográfica brasileira nesse período, Leonor foi categórica ao afirmar que o que salvou o cinema brasileiro é que a mutilação da censura aconteceu nas cópias de distribuição dos filmes, e não nos negativos. “Com isso, salvaramse os negativos originais, o que permitiu a remontagem dos filmes sem censura. Mas sempre há exceções, como no caso de El Justicero, de Nelson Pereira dos Santos – exibido na programação da CineOP –, cujos negativos foram confiscados e nunca mais foram encontrados. O filme só existe hoje graças a uma cópia 16mm que estava em uma cinemateca italiana”, revela Leonor. Com muito bom humor, Nelson Pereira dos Santos, falou a seguir, relatando diversas histórias de sua complicada relação com a censura da época e divertiu o público lembrando alguns pareceres dos censo-

Leonor Souza Pinto – que sentou ao lado do homenageado da 8ª CineOP, Walter Lima Júnior –, abriu o debate lembrando que a censura do regime militar teve início em 1964, juntamente com o golpe. Em seguida, os cineastas relataram suas lutas contra os censores. Nelson Pereira dos Santos (acima, ao lado de Francisco Ramalho Jr) divertiu a platéia lendo uma das peças da censura. Maurice Capovilla (à esquerda) lembrou a Caravana Farkas.

O parecer da censura ao filme El Justicero, lido por Nelson Pereira dos Santos durante a palestra proíbe a exibição do filme porque sua temática aborda “problemas sociais e políticos, com severas críticas aos seus responsáveis, o que evidentemente não cabe ao governo atual, que procura resolvê-lo da melhor maneira possível...”

res, muitos deles com português sofrível. “Entre os argumentos para proibir El Justicero, um afirmava que o filme abordava críticas sociais que claramente não se aplicavam ao Governo atual”. Nelson também lembrou de Rio 40 Graus, que foi censurado nos anos 1950 com o argumento de que tal temperatura nunca havia sido registrada naquela cidade. Assim, o diretor aproveitou para ampliar a questão para além do período inicial da ditadura militar: “A questão da censura não tem data, ela existe desde que o Brasil nasceu como nação e continua até hoje, de maneira mais sutil”. Já Maurice Capovilla lembrou dos primeiros passos como cineasta, quando participou da Caravana Farkas, que, segundo ele, criou um padrão de qualidade para os documentários a partir de então no cinema brasileiro. E concordou com Nelson Pereira dos Santos ao afirmar que a censura sempre existiu no Brasil. Na mesma sintonia, o cineasta Francisco Ramalho Jr. afirmou que hoje há uma retração do movimento libertário e a censura atua de forma mais sutil. “Se fizermos um filme com conteúdo muito erótico, ele não será exibido, não terá espaço. E há a cen-

sura econômica. Dependendo da temática de seu filme, você não irá conseguir patrocínio para realizá-lo”. Walter Lima Jr. seguiu na mesma linha. “Hoje ainda existe censura! Os órgãos públicos de cinema têm idéias e exigências tão arbitrárias sobre o que deve ser o cinema brasileiro quanto a ditadura. Um ‘pitching’ é um verdadeiro pelotão de fuzilamento, que censura idéias como se censuravam filmes na década de 1960”, acusou o diretor. “Os fragmentos que são eliminados já na apresentação do projeto para captação de recursos correspondem aos cortes da tesoura durante a censura militar”. Homenageado da 8ª CineOP, Walter Lima Jr – que teve seu primeiro filme, Brasil Ano 2000, exibido na abertura oficial da Mostra –, contou um diálogo surreal que teve com um militar quando estava preso no Doi-Codi na semana de estréia de seu filme em alguns cinemas: – Você é o diretor desse filme que está nos cinemas, ‘Brasil 2001’? – Sou. Mas o nome do filme é Brasil Ano 2000! – Cara... tu tá fodido! Ao que Lima Jr, ingenuamente, retrucou: – Em que circuito ele foi lançado? Poeticamente, Walter Lima Jr. disse que os filmes têm alma e foram feitos para formar resistências. Mesmo com censura. Mesmo contra todas as dificuldades de captação de recursos.

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PROJETO

“Cães e Homens” vai levar à tela os horrores da ditadura no Nordeste Casando documentário e ficção, obra do escritor Agassiz Almeida põe em relevo os heróis e os bufões do sinistro período na região.

Aplaudida como uma das obras mais contundentes sobre o militarismo na América Latina e o regime repressor de 1964 no Brasil, o livro A Ditadura dos Generais (2007), do escritor, professor e ex-Deputado federal Agassiz Almeida, será transportado para as telas do cinema na produção Cães e Homens, com direção do jornalista e documentarista paraibano Elinaldo Rodrigues, autor de Zé Ramalho – O Herdeiro de Avôhai, vencedor do Prêmio da Academia Paraibana de Cinema na categoria documentário de longa metragem (2009), e Sanhauá, primeiro colocado no concurso DocTV IV(2008). Cães e Homens pretende apresentar, no formato docudrama, um painel audiovisual sobre a resistência à ditadura militar 1964-1985, o contexto sociopolítico e cultural do período, as lacunas da História oficial, a trajetória do povo nordestino contra as injustiças sociais e o conluio entre o coronelismo, as oligarquias e as forças militares e policiais no Nordeste, marcas de uma das fases mais ultrajantes da História do Brasil. A memória da luta contra o regime opressor será registrada através de depoimentos dos protagonistas desta história e das imagens dos locais onde alguns dos principais presos políticos nordestinos foram desterrados, como a Ilha de Fernando de Noronha e o Forte das Cinco Pontas, no Recife, conforme é narrado em A Ditadura dos Generais. Sábato, o inspirador

Agassiz de Almeida conta que a idéia de escrever este livro surgiu em outubro de 1984, após ter concluído a leitura de Nunca Mais, de Ernesto Sábato, obra que investiga o nazimilitarismo na Argentina. “Vamos construir destinos”, disse Sábato em apoio ao projeto de preservação e difusão da História política contemporânea através de um livro revelador das atrocidades do regime militar no Brasil, incluindo os depoimentos das vítimas, as atividades dos agentes de repressão, as ações da militância política, com destaque para as lutas deflagradas na Região Nordeste, como as Ligas Camponesas e o Movimento de Cultura Popular(MCP), e seus ícones, entre os quais Miguel Arraes, Francisco Julião, Gregório Bezerra, Dom Hélder Câmara, João Pedro Teixeira, Elizabeth Teixeira e Pedro Inácio de Araújo, o Pedro Fazendeiro. “Naquela época, aquele que olhasse para o País querendo mudanças na estrutura agrária, no Exército e na educação 26

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era considerado subversivo”, recorda Agassiz, que nasceu em 25 de setembro de 1938, em Campina Grande/PB e se formou em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Paraíba em 1958, ano em que foi eleito vereador por sua cidade natal, pelo Partido Socialista Brasileiro. Três anos depois, dando prosseguimento à luta em defesa da democracia, Agassiz fundou a Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Paraíba; no ano seguinte, 1962, participou da criação das Ligas Camponesas e se elegeu deputado estadual. Em 1964, teve o mandato cassado pelo regime militar, foi demitido dos cargos de promotor de Justiça e professor universitário e mandado para a prisão em Fernando de Noronha. Beneficiado pela Lei da Anistia em 1979, Agassiz retomou às funções de promotor, professor e deputado. Na Assembléia Nacional Constituinte de 1988 foi festejado como um dos mais atuantes parlamentares.

A OPRESSÃO NO NORDESTE Autor dos livros A Nação do Impeachment, O País dos Banqueiros, 500 Anos do Povo Brasileiro, A República das Elites, Agassiz concedeu entrevista ao Jornal da ABI, na qual analisa o significado do filme Cães e Homens para a memória nacional. Jornal da ABI – Como surgiu a idéia do filme Cães e Homens? Agassiz – No Nordeste, região de contrastes naturais e desafiadoras desigualdades sociais, o homem se impõe como um resistente, um criador de idéias, enfrentando, sobretudo, um carcomido sistema de poder, em que “coronéis” de votos, de terras e de privilégios comandam e manipulam o Estado. Desse cenário geopolítico controlado por um opróbrioso regime militar que asfixiou o País por 21 anos, e particularmente o Nordeste, surgiu a idéia do filme Cães e Homens. Fatos e personagens que condicionaram a estruturação do filme, no qual o tipo humano que se degrada como torturador é, antes de tudo, um cão raivoso a grunhir nos porões dos quartéis. Egresso dessa moldagem histórica na qual o nordestino se faz um permanente desafiador das injustiças sociais, o filme foca especificamente os tipos que deflagraram o golpe militar de 1964, alguns catalisadores dessa comunhão macabra, o trágico e o folclórico, através do qual o torturador covarde se traveste em um “coronel Papa-Rabo” (personagem de José Lins do Rego) e aí resvala no ridículo

DIVULGAÇÃO

P OR C LÁUDIA S OUZA

Agassiz: O filme será um registro dos mártires e sobreviventes dos porões da ditadura militar.

diálogo entre Agassiz Almeida e o General Justino Alves Bastos, no livro A Ditadura dos Generais. Este filme-documentário se propõe a registrar o papel dos resistentes, dos mártires e sobreviventes dos porões da ditadura militar, e para tanto traz a lume os personagens do regime fardado nos seus mais amplos aspectos históricos, políticos, culturais, econômicos e, destacadamente, o conluio existente entre as forças militares do Nordeste, as forças policiais e as Forças Armadas, com o que existia de mais opressivo e atrasado: o coronelismo, o latifúndio e as oligarquias políticas. Nesta peça cinematográfica que ora focamos, mergulha-se num universo de surpreendentes dados e elementos psicológicos, revelando, destarte, a dramaticidade e os interesses que pululavam nas antes-salas da “casa-grande” das oligarquias econômicas e políticas, notadamente nas várzeas férteis do Nordeste, com destaque para o seu braço armado. O livro A Ditadura dos Generais retrata todo este cenário. Jornal da ABI – Em relação aos depoimentos, haverá participação de vítimas da ditadura? Agassiz – Alguns vultos que viveram aquele período sombrio da nossa História estarão presentes no desenrolar des-

ta peça cinematográfica. Somos testemunhas vivas daquele momento da nossa História, e, por isso, nos predispomos a oferecer uma contribuição para esta montagem cênica. Por exemplo, no livro A Ditadura dos Generais faço um minucioso relato de minha prisão, inclusive descrevo o diálogo mantido com meus algozes. O objetivo a se alcançar é produzir as informações, pormenores, relatos que possam conduzir a um painel audiovisual sobre a participação dos resistentes à ditadura militar de 1964, adicionado por outras fontes indispensáveis à estruturação da memória viva de uma das mais infortunadas fases da História contemporânea brasileira. O filme vai evidenciar as personalidades que vivenciaram aquele trágico período, e, ao mesmo tempo, mergulhar no universo psicológico no qual pululou a densidade dramática das relações humanas entre os revolucionários vencidos e os torturadores. A montagem do filme direciona para conduzir um painel audiovisual sobre a heróica resistência daqueles vultos atingidos pelos grilhões da ditadura, principalmente durante a prisão deles na Ilha de Fernando de Noronha, na Fortaleza das Cinco Pontas, na 2ª Companhia de Guardas, no Recife, nas quais figuram personalidades como Miguel Arraes, Gregório Bezerra, Francisco Julião, Paulo Cavalcante, Pedro Fazendeiro, entre outros. Jornal da ABI – O roteiro do filme será fiel ao livro A Ditadura dos Generais? Agassiz – Até onde pude acompanhar a montagem do roteiro do filme, o projeto visa, destacadamente, marcar a memória dos protagonistas e vultos que foram vítimas da ditadura militar e resistiram a esse regime, pontuando, dessa forma, referências a fenômenos como as Ligas Camponesas, o Movimento de Cultura Popular, a União Nacional dos Estudantes, abordando também a participação do segmento religioso catalisado na personalidade de Dom Hélder Câmara, cuja atuação em defesa dos direitos humanos teve repercussão internacional. A mim não me faltou o apoio de Dom Hélder quando fui prisioneiro nas masmorras da ditadura militar. O filme acentuará a contribuição para o registro e difusão do patrimônio histórico e arquitetônico, a partir de locações na Fortaleza de Cinco Pontas, onde estive preso com Gregório Bezerra, e na 2ª Companhia de Guardas, na Rua do Hospício, onde estive preso juntamente com Miguel Arraes, Francisco Julião, Paulo Cavalcante, ressaltando também que as


CARTAS DOS LEITORES filmagens se estenderam ao presídio da Ilha de Fernando Noronha. Outro aspecto a destacar do projeto do filme é o processo criativo da fusão entre o documental e o ficcional. Assim, estrutura-se um “docudrama”, intercalando-se seqüências encenadas baseadas em fatos vividos pelos personagens, aos registros documentais com depoimentos, locução e vasto material de arquivo. Este filme será direcionado, em grande parte, por trechos do livro A Ditadura dos Generais, cujo teor analítico ou descritivo será constituído numa forma de representação da voz do autor, que é também personagem central. A idéia é que a verbalização do texto represente a voz do autor na atualidade e seja interpretada por um ator que favoreça a riqueza da tonalidade que o texto requer. Paralelo a esta narração, serão extraídos do livro fatos e diálogos para encenação (passagens ficcionais) com o propósito de despertar o espectador.

OS HERÓIS E OS BUFÕES Jornal da ABI – Que aspectos do livro terão maior destaque no argumento? Agassiz – A abordagem do filme baseiase inicialmente na importância que a Região Nordeste detinha então no contexto histórico da luta contra a opressão social do latifúndio, sobretudo o processo espoliativo que sofria vasto segmento da massa humana com mais de 10 milhões de camponeses, desamparados de quaisquer direitos, condenados à miserável condição de párias da sociedade. Já na segunda fase, o filme nos remete às vésperas do golpe militar de 1964, quando o País vivenciava uma série de avanços sociopolíticos e culturais no Governo João Goulart. O que nos despertou para uma nova perspectiva histórica foi, decerto, a Revo-

cações e documentos históricos, principalmente aqueles referentes ao conluio existente entre os vastos e opressivos latifúndios do Nordeste e os comandos militares aquartelados nessa região. Vale destacar estas obras: O Caso eu Conto Como o Caso Foi, de Paulo Cavalcanti, Tempos de Arraes, de Antônio Callado, e Memórias, de Gregório Bezerra.

Jornal da ABI – A Ditadura dos Generais é aplaudida como uma das obras mais importantes sobre a História do Brasil. Em sua opinião, qual será o grande legado de Cães e Homens? Agassiz – Dedicamos quase quatro anos à elaboração do livro A Ditadura dos Generais. Estivemos in loco nos principais centros e locais de onde mais fortemente se irradiaram os fatos e decisões nefastas que fizeram desencadear o fenômeno do nazimilitarismo na América Latina. Um caldeirão cultural e político estava em efervescência, desde os finais do século XIX, contra o qual se mancomunaram os oligarcas do café e do açúcar no Brasil, os do trigo e da criação “ALÉM DE SUA IMPORTÂNCIA bovina na Argentina, os do cobre no Chile, os da pesca no Peru e ouHISTÓRICA, CÃES E HOMENS ABRIRÁ, tros de menor força, com um miNO CAMPO DA CINEMATOGRAFIA litarismo cuja formação se plasmou no prussianismo alemão e, PARAIBANA, UMA NOVA PERSPECTIVA posteriormente, no nazifascismo. PARA O ESTADO, AO INCENTIVAR E O que esse sistema representava? Um dos mais devastadores e PROJETAR NOVOS TALENTOS LOCAIS.” excrescentes fenômenos políticos e militares da História da Hulução Cubana de 1959, que possibilitou às manidade. Fato único nos anais da histónovas gerações e às forças vivas da sociria: o próprio Estado institucionalizou a edade uma forte e revolucionária visão do tortura, a morte e o desaparecimento dos mundo. Tudo isso despertou na juventucorpos dos inimigos mortos. Nem o nade e nos mais variados movimentos socizismo nem o stalinismo cometeram taais no mundo, e particularmente na Amémanha monstruosidade. O filme Cães e rica Latina, a aspiração por mudanças. Homens leva para o palco da arte cênica Aqui, no Brasil desfechavam-se atos e este quadro de horror. O livro A Ditadudecisões governamentais que acarretara dos Generais mergulhou fundo nas raram, nas elites privilegiadas e no estamenízes do fenômeno do militarismo, daí a to militar conservador, polêmicas e desimportância desta obra para o País. cabidas reações, sobretudo contra as propostas de reformas estruturais no País, Jornal da ABI – Em relação ao viés podestacadamente as Reformas Agrária, lítico, o filme vai destacar aspectos poubancária e universitária. Ressalte-se, adeco explorados sobre a ditadura no Brasil? mais, que o roteiro do filme Cães e Homens Agassiz – O filme vai apresentar a ounão ficará restrito ao livro A Ditadura dos tra face do militarismo, que à sombra do Generais, mas se estenderá a outras publiEstado praticava crimes de lesa-humani-

dade. Decerto, foram as suas ações e reações quixotescas, como caricaturamos nas figuras de certos generais, uma das quais é relatada nesse episódio. Quando, por ocasião de minha prisão, o General Justino Alves Bastos, um tipo baixo e carregado de estrelas e medalhas, gritava aos berros: “O meu Exército venceu Cuba, China. Diga onde estão as armas vindas de Moscou, ou você e toda aquela canalha que está em Fernando de Noronha serão fuzilados”. Quando esse General, então comandante do IV Exército, chegava à sede do Comando, em Recife, situada nas proximidades do Parque 13 de Maio, quinze clarins em sons estridentes disparavam acompanhados por tiros de canhão anunciando a sua presença. Essa megalomania ridícula com ares chaplinianos dos donos do poder se esparramou por quase toda a América Latina. O filme Cães e Homens retrata este quadro bufônico, em meio às mais abomináveis torturas e crimes de lesa-humanidade. Há outro fato semelhante relatado no livro A Ditadura dos Generais: Numa sessão de tortura, no Doi-Codi, na Rua Tutóia, em São Paulo, sob o comando de um tal Coronel Ustra, certo capitão de nome Albanez, com trejeitos excêntricos, gritava: “Eu torturo este comunista, por ti, meu coronel.” Jornal da ABI – O roteiro prevê a abordagem diferenciada de algum tema? Agassiz – O lado bufônico dos militares que comandavam as ditaduras será caricaturado, aspecto este ainda não focado criticamente por órgãos de divulgação ou trazido à baila em forma literária ou artística, destacadamente numa projeção cinematográfica como a que propõe abarcar o filme Cães e Homens. O torturador detentor de comandos e palácios se inebriava com os gritos dos torturados, e aí ele se travestia num boçal ridículo. Olhando as ações desses tipos humanos à frente do poder absoluto em que se investiram, podemos encontrar, em alguns momentos, o melancólico e bufônico cenário que eles vivenciaram. Entre os subtemas, o filme projeta as Ligas Camponesas como um dos expressivos movimentos de força político-social que ocorreram na América Latina, desde a sua criação por Francisco Julião, na década de 1950, e com quem eu participei diretamente, valendo destacar também a atuação do Padre Alípio de Freitas, Clodomir Morais, João Pedro Teixeira, Pedro Fazendeiro, Gregório Bezerra, Paulo Cavalcante, Antônio Dantas e Nego Fubá.

PERSPECTIVA PARAIBANA Jornal da ABI – O Senhor vai participar das etapas de produção do filme? Agassiz – Ficará a critério da direção do filme me solicitar alguma colaboração. De minha parte, disponho-me a prestar qualquer orientação ou dar alguma idéia que possa contribuir para o bom andamento da filmagem. Cães e Homens, além de sua importância histórica, abrirá no campo da cinematografia paraibana uma nova perspectiva para o Estado, ao incentivar e projetar novos talentos locais.

CUMPRIMENTOS

Senhor Editor, “Receba os mais sinceros cumprimentos de minha mãe Maria Prestes, meus também, pela sua posse na Presidência da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Entendemos que a reeleição de sua diretoria é a demonstração de que a gestão da ABI nos últimos anos foi marcada pela competência e honestidade. Temos longa trajetória de lutas. Desde as mobilizações democráticas contra o fascismo, que se apoderou do Brasil após o golpe civil-militar de 1964; a campanha pela anistia dos presos e exilados políticos; a participação ativa nas eleições livres; e o resgate da memória dos desaparecidos, torturados e assassinados políticos. Nesta difícil caminhada sempre estivemos juntos. Aproveito este momento para reafirmar que continuamos juntos! Vemos sua presença na Presidência da ABI como um fator fundamental para avanços das lutas sociais no Brasil. Receba o mais fraterno abraço! LUIZ CARLOS PRESTES FILHO

Senhor Presidente, Agradecemos o envio do exemplar Jornal da ABI – nº 389 – Abril de 2013. Felicitamos o Senhor e a todos que contribuíram para o resultado final dessa elevada publicação. Importante veículo de informação das atividades da Associação Brasileira de Imprensa. Nesta oportunidade, enviamos nossos respeitosos cumprimentos. CONSELHEIRO WANDERLEY ÁVILA

APLAUSOS

• Objetiva o presente encaminhar moção apresentada a esta Casa de Leis em reunião ordinária realizada no dia 18 de abril do corrente ano pelo Vereador Luciano Lucio Natalino PSDB com o seguinte teor: Sinto-me honrado em encaminhar, Moção de Aplausos ao Jornal da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), pela coerência contida em suas matérias, assim como pela importância histórica desse veículo de comunicação. É gratificante poder ler um jornal com tamanha força, alcance e transparência como vem a ser o da ABI. Como cidadão, historiador e legislador sinto-me honrado em poder encaminhar esta singela honraria. Não tenho dúvidas do mérito contido nesta proposição. “A imprensa, entre os povos livres, não é só instrumento de vista, não é unicamente o aparelho do ver. Participa nesses organismos coletivos, de quase todas as funções vitais. É, sobretudo, mediante a publicidade que os povos respiram”. (Rui Barbosa) ALAIR DE SOUZA BANDÃO PRESIDENTE

LUCIANO LUCIO NATALINO VEREADOR – PSDB, AUTOR DA MOÇÃO.

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EVOLUÇÃO

A informação, desde o tambor à internet P OR G ONÇALO J UNIOR

O livro A Informação – Uma História, Uma Teoria, Uma Enxurrada, do jornalista americano James Gleick, é uma daquelas obras que você não pára de processar, mesmo depois de chegar à última página. E não o tira da cabeça por um tempo, pelo nó que dá na mente do leitor. Seu conteúdo fica martelando e acaba por mudar, de certo modo, a visão que se tem do mundo, das relações e do que está acontecendo à volta. Para jornalistas, em especial, é uma leitura indispensável pelo seu caráter reflexivo. Bem distante da chatice quase impenetrável das disciplinas de teoria da comunicação que se vê na faculdade de Jornalismo, o autor parte, num texto acessível, de uma pergunta aparentemente simples, mas difícil de responder: o que é a informação? Notícia? Conhecimento? Sabedoria? No esquema que montou para se fazer entender, Gleick dissecou quatro formas de comunicação humana. Partiu de uma das mais primitivas até chegar à era digital: o tambor, o alfabeto, o telégrafo e a internet. A partir desses tópicos – marcos iniciais do surgimento de novas formas de comunicação, com múltiplos desdobramentos – ele passeia pela História humana com o ambicioso desafio de revelar um tema que se mostra fascinante, pela sua indissociável relação com o desenvolvimento tecnológico e humano. É um fenômeno que passou pela criação dos alfabetos e dos dicionários, por invenções como a imprensa, o telégrafo, o telefone, o código Morse, o rádio, o cinema, a televisão, o telex, os primeiros computadores, o fax, o celular, a internet, o holograma, o 3D. Temas que foram tratados na chamada Teoria da Informação e em estudos recentes até de genética. Além de esclarecer idéias, teorias, tendências e escolas, Gleick destaca pessoas que ele acredita que estiveram na linha de frente dessa revolução científica, algumas pouco conhecidas de todos, como Claude Shannon, Alan Turing e Kurt Gödel. Ou notórios impensáveis como Bertrand Russell e Richard Dawkins, que criou o conceito de meme, apropriado pelas novas gerações. Natural de Nova York, nascido em 1954, Gleick é jornalista e biógrafo. Entre outras obras, escreveu o ensaio Caos: A Criação de Uma Nova Ciência; Isaac Newton: Uma Biografia e Feynman: A Natureza do Gênio, todos finalistas do Prêmio Pulitzer, o mais cobiçado da indústria editorial americana. Foram traduzidos para mais de vinte idiomas. A Informação venceu o PEN/E. O. Wilson Literary Science Writing Award. Em quinze capítulos, o jornalista fez um trabalho impressionante de pesquisa e reflexão, quase 28

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Jornalista norte-americano mostra como a Humanidade continua a sobreviver ao longo da História — dentro da lógica do “quem não se comunica se trumbica”— desafios de mudanças sem fim. filosófico, que se revela oportuno, além de revelador. “A informação é aquilo que alimenta o funcionamento do nosso mundo: o sangue, o combustível, o princípio vital”, diz ele, na introdução. É apenas um convite para se entender, de fato, a complexidade de algo dito de forma tão sucinta, sempre, e, aparentemente, clara. Gleick forma uma engenhosa teia de aranha da História tanto como arqueólogo quanto pensador, e compõe um quebra-cabeça, ao colar notas e dados espaços lançados ao longo de milênios para mostrar como a Humanidade chegou aos tempos da revolução digital. “Faça seus pés voltarem”

O modo sedutor e poético como ele introduz a esse fascinante universo da linguagem pega o leitor irremediavelmente, ao explicar por que resolveu partir de uma forma tão rústica de comunicação e troca de informação: “Ninguém falava de maneira simples e direta através dos tambores. Os percussionistas não diziam “Volte para casa”, e sim: “Faça seus pés voltarem pelo caminho que vieram/ faça suas pernas voltarem pelo caminho que vieram/ plante seus pés e suas pernas logo abaixo/ na vila que nos pertence.” E não diziam apenas “cadáver”, preferiam elaborar: “que jaz de costas sobre montes de terra”. Em vez de “Não tenha medo”, diziam: “Faça o coração descer da boca, tire o coração da boca, obrigue-o a descer daí”. Os tambores geravam jorros de oratória. Isso não parecia ser muito eficiente. Seria um caso de grandiloqüência descontrolada? Ou outra coisa?” Segundo ele, durante muito tempo os europeus presentes na África subsaariana não souberam a resposta. Na verdade, eles nem sequer sabiam que os tambores transmitiam informações. Em suas próprias culturas, explica Gleick, em certos casos, um tambor podia funcionar como um poderoso instrumento de sinalização. Do mesmo modo que o clarim e o sino, usados para transmitir um pequeno conjunto de mensagens por séculos pelas civilizações ocidentais ditas civilizadas: atacar; recuar; ir à igreja. “Mas os europeus jamais poderiam imaginar que os tambores falassem.” O jornalista conta que em 1730 o aventureiro Francis Moore navegou rumo ao Leste pelo Rio Gâmbia. Fazia reconhecimento de terreno para traficantes de escravos ingleses em reinos habitados por, aos olhos dele, diferentes raças de povos de cor escura. Ao se deparar com

homens e mulheres que carregavam tambores, feitos de madeira entalhada e chegando a quase um metro de comprimento, cuja largura se estreitava de cima para baixo, destacou que as mulheres dançavam agitadas ao som de sua música, e às vezes os tambores eram “tocados ao ser detectada a aproximação de um inimigo”, e por fim que, “em certas ocasiões muito extraordinárias”, os tambores invocavam a ajuda de cidades próximas. Gleick, então, volta 30 mil anos atrás para mostrar os esforços do homem para se comunicar ou difundir informação, desde os desenhos dos tempos das cavernas às fogueiras e sinais de fumaças dos índios americanos. “Os sistemas de transmissão de mensagens transportadas a pé por via terrestre sempre produziram resultados decepcionantes.” Seus exércitos os ultrapassavam. Júlio César, por exemplo, cita ele, “com freqüência chegava antes do mensageiro enviado para anunciar a sua vinda”, como relatou Suetônio no século I. “Mas os antigos não eram desprovidos de recursos. Os gregos usaram faróis de fogo na época da Guerra de Tróia, no século XII a.C., de acordo com todos os relatos — ou seja, os de Homero, Virgílio e Ésquilo.” Uma fogueira armada no cume de uma montanha podia ser vista por postos de sentinelas a uma distância de mais de trinta quilômetros, ou até mais longe em casos específicos. Mensageiros divinos

Ocasiões menos extraordinárias exigiam ainda mais capacidade, segundo o autor. “As pessoas tentaram bandeiras, cornetas, sinais de fumaça e trocas de reflexos entre espelhos. Elas conjuraram espíritos e anjos para atender aos propósitos da comunicação — e os anjos são, por definição, mensageiros divinos.” Segundo Gleick, a descoberta do magnetismo parecia ser especialmente promissora. “Num mundo já repleto de magia, os ímãs encarnavam poderes ocultos. A magnetita atrai o ferro. Esse poder de atração se estende, invisível, pelo ar. E tal poder não é limitado pela água e nem mesmo por corpos sólidos. Um pedaço de magnetita segurado de um lado de uma

parede pode movimentar um pedaço de ferro do outro lado. O mais intrigante é que o poder magnético parece capaz de coordenar objetos separados por imensas distâncias, em todo o planeta Terra: mais especificamente, as agulhas das bússolas.” E se uma agulha fosse capaz de controlar outra? Essa idéia se disseminou – um “conceito”, escreveu Thomas Browne na década de 1640. A História prossegue por mais dois séculos e passa pelas invenções do telégrafo, do telefone, do rádio, do cinema , do telex etc. Até que deságua no mês de maio de 1948, quando cientistas do Bell Labs — centro de pesquisas da empresa de telefonia americana AT&T – inventaram um componente minúsculo e barato para substituir as enormes válvulas que, à época, controlavam o fluxo de energia em eletrônicos. Batizaram a peça de transistor. Com ela, surgia um pequeno interruptor e ampliador de sinais elétricos. Foi algo tão fantástico que a engenhoca deu a seus autores o Nobel de Física oito anos depois. Por causa do transistor, foi possível reduzir um computador que ocupava um prédio de três andares a uma máquina possível de ser carregada numa das mãos nas décadas seguintes – leia-se laptop. No mesmo ano, alguns meses depois, a Humanidade deu outro passo importante para mudar sua História quando o matemático Claude Shannon (1916-2001), de 32 anos, com experiência em criptografia de guerra, publicou um artigo na revista técnica do Bell Labs com o título Uma Teoria Matemática da Comunicação, em que sugeriu um método para mensurar a informação, grandeza conhecida de todos, mas que ninguém conseguira definir até então. Shannon explicou que medir o volume de informação transmitido em uma linha telefônica seria tão possível quanto calcular distâncias, massas e tempo. À unidade básica dessa grandeza deu o nome de “bit”, simplificação para dígito binário, “BInary digiT” em inglês, denominação para a menor unidade de informação que pode ser armazenada ou transmitida. Um bit pode assumir somente dois valores, por exemplo: 0 ou 1, verdadeiro ou falso. Depois essa combinação seria usada na Computação e na Teoria da Informação. Shannon realizava em seu campo algo tão extraordinário quanto fizera Newton com a física séculos antes. Ou seja, dar consistência científica e metodológica a décadas de teorias e especulações. Graças a ele, o mundo deu no que deu.


HISTÓRIA

Todos contra a Última Hora Livro analisa a polêmica relação entre o jornal de Samuel Wainer e o Governo Vargas, que acirrou os ânimos da imprensa na década de 1950. ACERVO PESSOAL FAMÍLIA SAMUEL WAINER/UH

P OR P AULO C HICO

As manifestações populares que, em meio a reivindicações legítimas e episódios de violência, tomaram conta do País em junho reforçaram a tese do quanto é controversa a imagem de alguns dos principais veículos de comunicação junto à população. Houve abusos, é certo, como nos casos em que vândalos atearam fogo a carros de emissoras de tv – SBT e Record foram algumas das vítimas – e impediram o trabalho de repórteres, em especial da TV Globo. Crimes e censura à liberdade, não restam dúvidas. Mas, no terreno democrático, choveram críticas ao trabalho da chamada grande imprensa – quase sempre acusada de ‘vendida’ aos governos e grupos econômicos, e de executora de uma cobertura parcial e tendenciosa sobre as passeatas. Saibam que acusações desse tipo pesam sobre a imprensa brasileira faz tempo. Na década de 1950 – quando a televisão ainda engatinhava no Brasil – um tradicional jornal esteve no centro de um embate político. Lançado no dia 14 de maio, na ABI, o livro O Caso Última Hora e o Cerco da Imprensa ao Governo Vargas, com prefácio da historiadora Maria Aparecida de Aquino e orelha escrita pelo jornalista Alberto Dines, joga luzes sobre o período turbulento da História do País que culminou na crise institucional do governo e no suicídio de Getúlio, no dia 24 de agosto de 1954. Autor da obra, Aloysio Castelo de Carvalho falou com o Jornal da ABI. “A idéia de escrever este livro surgiu quando eu coordenava o setor de Informação da CBN do Sistema Globo de Rádio. Com o objetivo de responder a uma solicitação para escrever a história da Rádio Globo, realizei pesquisas no jornal O Globo e observei que o tema da política desempenhou um papel fundamental na consolidação da emissora, sobretudo durante o Governo Vargas, quando a Rádio Globo foi colocada à disposição de Carlos Lacerda – proprietário da Tribuna da Imprensa – para atacar Vargas pelo apoio dado à criação da Última Hora, de Samuel Wainer. Percebi ali um dos conflitos mais importantes no campo da imprensa, que merecia ser estudado da perspectiva dos jornais liberais envolvidos na campanha contra a UH, ou seja, a Tribuna da Imprensa, de Lacerda, O Globo, de Roberto Marinho, e O Jornal, de Assis Chateaubriand”, contou o autor, doutor em História pela Universidade de São Paulo. Em quase 300 páginas, o livro editado pela Nitpress discute as diferentes concepções de opinião pública divulgadas

Samuel Wainer defende-se durante a CPI da Última Hora, criada em 1953 na Câmara dos Deputados.

pelos jornais da época. A pesquisa se orienta a partir da hipótese de que os debates em torno do tema ‘opinião pública’ e, conseqüentemente, sobre a liberdade de imprensa, ocorreram lado a lado com o questionamento da legitimidade do Governo Vargas, bem como da prática da representação política, envolvendo os partidos e os sindicatos. A CPI de 1953

Instaurada em abril de 1953 na Câmara dos Deputados, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Última Hora nasceu do pressuposto de que o financiamento concedido por um órgão público ao jornal afastara-se das condutas legalmente adotadas. Perguntava-se, nas páginas dos diários e nas rodas de conversa, quais critérios haviam norteado a liberação de financiamentos públicos para o jornal de Samuel Wainer. A Última Hora preenchia as exigências administrativas para pleitear ajuda oficial? Um dos paradoxos desse caso consiste no fato de que denúncias em torno de um único jornal

acabaram por colocar em debate as relações do Governo com o conjunto da imprensa. Alimentando a polêmica, lá estavam a Tribuna da Imprensa, O Globo e O Jornal. Um leitor que acompanhasse os principais jornais cariocas entre abril e novembro daquele ano observaria um fato inédito: a própria imprensa ocupando lugar de destaque nos noticiários. A oposição a Getúlio, que ganhava voz nas páginas das três publicações, condenava a atitude do Governo de usar dinheiro público em favor de um veículo partidário. “A reação dos representantes da imprensa liberal ao novo momento experimentado no governo Vargas se manifestou num discurso ambíguo, permeado pela desconfiança com relação aos políticos e à representação política. Colocaram em dúvida a possibilidade de Vargas contribuir para o aperfeiçoamento dos valores e instituições do regime representativo, difundindo a noção de que o Governo carecia de legitimidade. Os jornais não só questionaram a legitimidade como também construíram uma ima-

gem negativa das instituições representativas, estimulando uma cultura antipartido, promovendo a descrença no movimento sindical, pregando sua despolitização e desmobilização”. Qualquer semelhança com o perfil ‘apolítico’ dos movimentos que neste mês tomaram as ruas do Brasil não deve ser mera coincidência... “Tribuna da Imprensa, O Globo e O Jornal também valorizaram uma visão publicista em que a imprensa é o lugar privilegiado de manifestação da opinião pública. Enfatizaram a posição central da imprensa no sentido de que ela estava autorizada a falar ‘em nome’ da população. Uma vez que era vista como o canal privilegiado de representação da sociedade e, por conseguinte, de manifestação da opinião pública, a imprensa convertia-se no fórum principal de aferição dos atos do Governo, mas, sobretudo, na instituição mais adequada para as elites articularem seus interesses”, observa Aloysio. O discurso unificado dos três jornais, que fez da imprensa de natureza privada o espaço principal para a defesa de uma sociedade na qual as elites devem ter o papel preponderante na definição das questões públicas, também reagiu à permanência da Última Hora no mercado: um projeto que via no apoio ao Governo trabalhista de Vargas um caminho para expandir o desenvolvimento em bases nacionais e fortalecer os princípios democráticos no País. “Ao tentar excluir a Última Hora do debate político, os representantes da imprensa liberal negaram a proposição central daquele periódico: a conquista dos direitos de cidadania das massas populares numa democracia substantiva pressupõe sua participação e representação nos centros decisórios, mas também resulta da ação de um Estado responsável, comprometido com políticas que promovam justiça social, de modo a conter as desigualdades criadas pela ordem social capitalista”, explica o autor. O ideário do jornal de Wainer, desde Diretrizes

Mas, afinal, qual era a relação entre o dono da Última Hora e o Presidente? “Wainer tinha acesso ao Getúlio, mas não há evidências, como atestou a CPI, que comprovem sua interferência para a liberação de apoio financeiro ao jornal, que foi fundamental para que este se viabilizasse. Entre os financiadores privados estão o banqueiro Walter Moreira Salles, o empresário Ricardo Jafet e o industrial Euvaldo Lodi. O Banco do Brasil foi o principal financiador na área pública”. Ponto um esclarecido, vamos à questão seguinte. Em

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HISTÓRIA TODOS CONTRA A ÚLTIMA HORA

que medida esses supostos ‘favores’ prestados pelo Governo Vargas influenciaram a linha editorial de UH? “Os jornais liberais denunciavam que a Última Hora formava uma opinião favorável ao Governo em troca do apoio financeiro recebido. Explicar a linha editorial de um jornal pelas fontes de recursos públicos ou privados é reduzir um problema complexo ao fator econômico, que tem a sua importância. É preciso observar que Wainer lançou em 1938, portanto, bem antes da Última Hora, a revista Diretrizes, que se transformou num jornal semanal a partir de 1941. Apesar de se colocar na oposição ao regime autoritário de Vargas, Diretrizes defendia ideais nacionalistas, assim como medidas de cunho social e popular. Diretrizes pode ser definido como um jornal de caráter popular, orientado por um espírito liberal que era compartilhado pelos seus leitores, oriundos das emergentes camadas médias. Guardadas as devidas diferenças, a UH é um desdobramento da linha editorial do semanal Diretrizes, num contexto democrático”, analisa Aloysio. Para ele, que é professor da Faculdade de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Políticas da Universidade Federal Fluminense, a Última Hora pretendia, de fato, representar um canal de aproximação entre o Presidente Vargas e os setores populares, mais especificamente as camadas médias e os operários. Adotava uma mensagem de apoio às reivindicações sociais, estimulando os que visavam ampliar a participação política no País. Divulgadora do trabalhismo e vendo no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) uma agremiação com finalidades democráticas, UH encontrou na criação da Petrobras uma das suas mais importantes bandeiras, quando colocou em debate a proposta nacionalista de desenvolvimento com ênfase na atuação do Estado. Veículo preocupado com a melhoria das condições de vida das populações trabalhadoras, o jornal ressaltava a necessidade de estimular o progresso econômico combinado a medidas no campo da justiça social. “Houve, portanto, afinidades no campo político-ideológico entre uma linha editorial praticada por Wainer, adotada explicitamente com a criação de Última Hora, e o programa do governo Vargas, eleito democraticamente. A correspondência de interesses explica a aproximação entre Wainer e Vargas. No âmbito da imprensa, Wainer tinha ambições jornalísticas e Vargas precisava romper o cerco da imprensa”, defende Aloysio. Um breve paralelo com a imprensa atual

Será possível pensar numa situação semelhante tendo como personagens centrais a imprensa e os governos de hoje? Com base nas pesquisas de Aloysio para a produção do livro será possível determinar até que ponto a dependência das verbas publicitárias oficiais tutelam a linha editorial dos principais veículos do País – aqueles mesmos que seguem sendo alvo de críticas de boa parcela da população? “É verdade que as verbas 30

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Carlos Lacerda era uma das principais vítimas das charges políticas da Última Hora.

publicitárias têm forte influência sobre as linhas editoriais. Mas não podemos reduzir a explicação ao fator econômico. É preciso observar que os jornais da chamada ‘grande imprensa’ vêm adotando posições semelhantes em vários momentos históricos. São concepções enraizadas, compartilhadas pelas elites liberais e conservadoras a respeito da organização do Estado e da sociedade no Brasil. Veja, por exemplo, a reação dos representantes da grande imprensa quando surge um governo de caráter popular, como foram Vargas, entre 1951 e 1954, João Goulart, entre 1961 e 1964, e Lula, entre 2003 e 2010. Diversos representantes da imprensa formaram um tipo de associação editorial com fins políticos, em função da desconfiança desses governos. Os liberais tendem a ver os governos populares como governos com vocações despóticas”, aponta. Para Aloysio, esses veículos compartilham a visão que enfatiza os perigos da influência das grandes maiorias em uma moderna democracia, caracterizada pelos conflitos em torno dos ideais de igualdade e justiça social. Nesse contexto, o pensamento liberal alerta para a necessidade de se criar contrapoderes não só ao nível da organização estatal, mas também na esfera da sociedade através da edificação de associações civis e associações com fins políticos. O que, então, caracterizaria uma associação com fins políticos no campo da comunicação jornalística? “Trata-se de uma articulação formal ou informal entre empresas jornalísticas que passam a compartilhar uma mesma linha editorial com o propósito de desestabilizar governos de caráter popular e criar as condições políticas para a sua remoção da direção do poder de Estado”, sentencia ele, que faz um retrospecto desse fenômeno na história recente do País. “Duas formas de associação editorial com fins políticos são percebidas na imprensa identificada com o modelo liberal. O cerco montado em 1953 contra o jornal Última Hora e o Governo Vargas, um movimento liderado pela Tribuna da Imprensa, O Globo e Rádio Globo, O Jornal e TV Tupi, é um exemplo de uma associação editorial informal. Assim também são compreendidas as atuações de diversos representantes da imprensa voltados

para desestabilizar o Governo Lula (20032010) e conter a candidatura Dilma nas eleições presidenciais de 2010. Já a Rede da Democracia, criada em 1963 para pedir a intervenção militar no Governo Goulart, é um exemplo de associação editorial formal constituída por centenas de emissoras do País, sobretudo pelas Rádios Tupi, Globo e Jornal do Brasil, além dos jornais O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil”. A seguir, Aloysio Castelo se propõe a mexer num vespeiro. “Já existe um debate público sobre a atuação da imprensa, que se desenvolve em diversos setores do Governo e da sociedade, inclusive nos próprios veículos. Nessa questão compartilho as opiniões do ex-Ministro da Secretaria de Comunicação do Governo Lula, o jornalista Franklin Martins. É preciso democratizar a mídia, o que pressupõe sua regulação. Regulação não significa censura. Regulação significa ‘democratizar a oferta de informação, garantir a expressão da diversidade de opiniões, impedir a concentração de propriedade, garantir a existência de uma comunicação pública e comunitária de qualidade, promover a cultura nacional e regional com o estabelecimento de quotas claras, estimular a produção independente’. Segundo o ex-Ministro, a ‘Constituição pode ser o terreno comum para o debate do marco regulatório da comunicação no Brasil’. E eu concordo com isso.” Os leitores têm acesso a notícias das mesmas fontes

Também procurada pelo Jornal da ABI, Maria Aparecida de Aquino faz um comparativo entre o passado e o presente da imprensa. “Contemporaneamente, a imprensa teve papel muito significativo em episódios como o das Diretas Já! e o impeachment de Collor. Muito atualmente, é de se notar a importância da internet, com as redes sociais, neste caso das mobilizações de rua relativas ao aumento do preço das passagens. A imprensa tem seu público cativo, que continua procurando as análises dos articulistas, a informação e formação escritas. Tem as suas limitações, hoje acentuadas pela rapidez do computador e das informações que a internet veicula. Mas para os leitores convictos de modo geral o jornal ainda

é importante”, destacou a pesquisadora, que falou ainda sobre o fenômeno da concentração da mídia no Brasil. “Com o fim da experiência alternativa dos anos 1960 e 1970, houve uma tendência ao predomínio dos conglomerados dos grandes grupos – Folha e Organizações Globo, por exemplo. Um dos problemas desse predomínio reside no fato de que todos eles compram muitas notícias de outras agências e incidem sobre as mesmas questões, com enfoques semelhantes – atualmente, extremamente conservadores. Deste modo, temos a impressão de estar lendo o mesmo meio de comunicação sempre. No cenário nacional, a exceção é Carta Capital”, afirma. Impressiona no livro o evidente peso político dos jornais da época, com seu poder de gerar debates e até mesmo interferir nos rumos da nação... Neste sentido, a imprensa atual teria perdido parte de seu ‘fôlego’? Ela, hoje, seria menos ‘quarto poder ’ do que já foi? “A imprensa continua tendo um enorme poder de fogo, mas não pode mais ser definida como ‘quarto poder ’. Como observou o professor Venício Lima, o conceito de jornalismo como ‘quarto poder ’ surgiu no contexto das revoluções liberais, quando foi definido para imprensa o papel de ‘contrapoder ’ em relação aos três poderes concebidos por Montesquieu – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Ocorre que o desenvolvimento tecnológico e as mudanças no sistema capitalista transformaram a imprensa em conglomerados multimídia que constituem, eles próprios, poderosos atores, tanto econômicos quanto políticos. Por isso mesmo, nesse sentido, a proposta de regulação da mídia é fundamental para resgatar a liberdade de expressão e expandir a democracia no País”, contextualiza Aloysio. O papel de Última Hora no desfecho da crise de Vargas

Maria Aparecida de Aquino não tem dúvidas dos laços que uniam UH a Vargas. Nem sobre como a atuação política do jornal levou ao agravamento da crise do Governo. “A relação com Getúlio foi vital para a viabilização do jornal. Samuel Wainer descreve isso com detalhes no livro autobiográfico Minha Razão de Viver. De fato, UH teve sua importância no desfecho trágico da morte de Getúlio. Entretanto, muitos outros fatores foram significativos. Por exemplo, a campanha difamatória pela televisão e no próprio Congresso, levada a efeito pelo grupo golpista, capitaneado por Carlos Lacerda.” Segundo o autor, o caso de Última Hora, nas pregações de Carlos Lacerda, era a “matriz de outros escândalos” e o “próprio centro da corrupção”, uma vez que o apoio financeiro ao jornal pressupunha a formação de opinião favorável ao Governo e à figura de Vargas, considerado pela Tribuna da Imprensa “o usurpador dos poderes da República, o totalizador das vontades, em suma, o totalitário”. Dessa forma, os problemas nacionais foram deslocados para o plano moral, ficando a política submetida aos conceitos de ‘mal’


No fundo, uma disputa pela hegemonia no mercado

O esvaziamento do debate político, quando subordinado aos critérios maniqueístas e acompanhado de campanhas moralistas que fazem dos personagens os principais responsáveis pelos acontecimentos, sempre corresponde à intenção de se encobrir e manter relações de dominação na sociedade. Assim deve ser compreendida a reação deflagrada pela Tribuna da Imprensa, O Globo e O Jornal contra a Última Hora, que tomou a forma de uma campanha pela liberdade de imprensa. As primeiras iniciativas desse movimento midiático para manter a hegemonia sobre a informação jornalística partiram mesmo de Carlos Lacerda, dono da Tribuna da Imprensa. A campanha ampliou-se durante as investigações da CPI, quando Assis Chateaubriand e, em seguida, Roberto Marinho, cederam espaço para Lacerda discursar na Rádio Globo e na TV Tupi, diversificando os meios de expressão da opinião pública. “Num ambiente de conflito entre uma concepção de opinião pública elitista e outra que pretendia incorporar ampla gama de instituições e setores sociais, com a participação das massas trabalhadoras, emergiu a campanha contra Última Hora. Veiculando acusações de dumping e favoritismo oficial, os adversários de Vargas transformaram UH e o tema da corrupção numa questão política em torno da qual articularam a oposição ao Governo. A credibilidade do jornal foi colocada em dúvida, de modo a obstruir sua influência e afetar a imagem daquele que era apontado como o responsável pelo seu surgimento: o Presidente da República. Mais do que uma competição pelo domínio do mercado, esse caso refletiu uma disputa entre projetos políticos. É verdade que a exacerbação do clima moralista em torno das denúncias de corrupção do Governo atribuídas a Vargas pavimentou o caminho para destituí-lo ilegalmente do poder. Todavia, a reação popular diante da morte de Getúlio adiou por dez anos a atualização do que Florestan Fernandes chama ‘modelo autocrático burguês de transformação capitalista’ presente no País”, conclui Aloysio Castelo de Carvalho.

OS CONCORRENTES DE UH TAMBÉM USARAM DINHEIROS PÚBLICOS Ao denunciar a ligação entre Wainer e Getúlio, Carlos Lacerda, da Tribuna da Imprensa, assumiu o posto de oposição ao Governo e defensor da ordem moral. Mas, de fato, seria a Tribuna assim tão independente, ou apenas atendia a outros interesses? Aloysio Castelo de Carvalho nos conta: “Durante os trabalhos da CPI, a Última Hora procurou levar ao conhecimento do público as dívidas e as ligações políticas daqueles a quem chamava ora de jornais oposicionistas, ora de imprensa conservadora. Era o caso da Tribuna da Imprensa, que foi acusada de dever ao Estado e de mudar de opinião de acordo com os contratos de publicidade que estabelecia. UH tomou como exemplo o fato de que o jornal de propriedade de Carlos Lacerda vinha movendo tenaz campanha de descrédito das atividades do Sesi, instituição de assistência social mantida pelos industriais. A assinatura de um contrato de publicidade entre a Tribuna da Imprensa e o Sesi, ‘orçado em dezenas de milhares de cruzeiros por mês’, seria o motivo da mudança de enfoque do jornal, que passou a reconhecer o ‘alto sentido humano e social da instituição’. Embora visse na Tribuna da Imprensa um jornal com modestos limites de tiragem, UH reconhecia sua ‘influência no pequeno círculo mais reacionário da UDN’, de forte peso político.” Poucos dias antes do golpe contra o Governo Vargas, a Última Hora publicou relatório da CPI contendo as transações financeiras dos grupos Chateaubriand e Marinho com o Banco do Brasil. Trata-se de extensa matéria de página inteira, revelando documento oficial com detalhes de todas as operações de empréstimos efetuadas pelos dois grupos jornalísticos com a instituição oficial de crédito. O texto do jornal destacava que “mais de 150 milhões de cruzeiros” foram destinados “para os jornais do senhor Assis Chateaubriand” e “cerca de 70 milhões para o grupo Roberto Marinho”. Os ataques de UH à cadeia de jornais dos Diários Associados procuraram focalizar as dívidas desse grupo com o Estado, bem como suas ligações com o capital estrangeiro, ressaltando a ameaça que representa para a democracia a formação de um monopólio privado da informação. A concorrência entre os principais jornais, na década de 1950, era extremamente acirrada, agressiva. A cada edição, páginas e mais páginas traziam acusações mútuas, numa batalha em praça pública que, mais do que confiança ou desconfiança, por vezes alimentava a torcida dos leitores. Será que isso faz falta no atual

JORNAL DO COMMERCIO RJ

e de ‘bem’ absolutos. A nacionalidade de Wainer apareceu em diversas reportagens como sendo um judeu da Bessarábia, um estrangeiro que sequer teria o direito pela Constituição de ser proprietário de uma empresa jornalística em terras brasileiras. Embora defendesse que os comunistas continuassem fora do jogo político institucional, a UH foi acusada de difundir a ideologia comunista, transformando-se no maior símbolo da corrupção praticada no governo trabalhista de Vargas.

O favorecimento do Governo Vargas à Última Hora causou uma guerra na imprensa brasileira.

cenário dos jornais brasileiros, considerados mornos ou até mesmo frios por muitos analistas da imprensa? Falta um posicionamento político mais claro aos veículos de hoje? “Não vejo falta de um posicionamento político. Falta, sim, um jornal de esquerda que possa se contrapor ao cerco dos representantes liberais da imprensa, que continuam a ser maioria na atualidade e têm um claro posicionamento político, embora permaneçam com o discurso mistificador da imparcialidade e da objetividade jornalística. Se fizermos uma avaliação das forças em luta pela direção do Estado no Governo Vargas, veremos que havia relativo equilíbrio. De um lado, as forças liberais conservadoras lideradas pela UDN. Contavam com a maioria da imprensa e com o apoio de setores do empresariado, da classe média e dos militares. Eram postos marcados por posições anticomunistas, antinacionalistas e, sobretudo, contra a permanência do trabalhismo varguista na vida política nacional. De outro lado, havia as forças trabalhistas favoráveis a um programa nacional-desenvolvimentista. Elas exerciam domínio sobre o Executivo e mobilizavam politicamente as massas urbanas a partir da estrutura sindical. Tinham também influência sobre diversos segmentos da opinião pública e contavam, sobretudo, com a Última Hora como

meio fundamental para difundir no debate público as propostas voltadas aos interesses populares”, entende Aloysio. Mas por qual razão, então, tantos dos jornais citados nesta reportagem ficaram pelo caminho? E por que diversos outros, atualmente, estão em crise, ameaçados do ponto de vista empresarial? “Na nossa História temos exemplos de jornais que assumiram abertamente posicionamento político e entraram em crise e outros que se expandiram. Os jornais que tenho pesquisado, como O Globo, O Jornal, Jornal do Brasil e Última Hora, sempre assumiram abertamente posicionamento político e suas histórias diferem, como sabemos. O posicionamento político da Última Hora em favor de Vargas e Goulart teve um custo econômico alto para o jornal. O posicionamento político de O Globo contra Vargas, Goulart e em favor do regime autoritário até seus últimos momentos rendeu enormes dividendos econômicos para o jornal e para as Organizações Globo. Todavia, não é possível explicar o sucesso ou a crise de um grande jornal apenas pelo fator da linha editorial, ainda mais num país como o Brasil, que sofre rápidas mudanças sociais, econômicas e de público, além de transformações violentas na organização do Estado – como as que ocorreram entre 1930 e 1985, período no qual esses grandes jornais tiveram atuação expressiva”.

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PERFIL ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO

Com o exagero que dava às suas imagens, Nelson Rodrigues assim definiu o profissional que fez a mais famosa fotografia política da primeira metade dos anos 1940, a da libertação de Luiz Carlos Prestes em 19 de abril de 1945, após nove anos de cativeiro. P OR C LÁUDIA S OUZA

C

om apenas 26 anos, mas já calejado no exercício da profissão, o amazonense Indayassu Leite fez em 19 de abril de 1945 a mais famosa fotografia política da primeira metade dos anos 1940: a do líder revolucionário Luiz Carlos Prestes saindo da Casa de Detenção, na Rua Frei Caneca, no bairro do Estácio, após nove anos de cativeiro como inimigo da ditadura do Estado Novo, chefiada por Getúlio Vargas. A proeza não foi casual nem acidental. Repórter policial de O Globo, no qual ingressara em 1º de agosto de 1935, Indayassu era respeitado e admirado por investigadores, detetives, comissários e delegados, um dos quais o alertou: Prestes sairia da prisão pela porta dos fundos do presídio, e não pela porta principal. Indayassu dividiu a informação com o irmão, o também fotógrafo Nestor Leite, que trabalhava para o jornal A Noite, de propriedade de Geraldo Rocha e concorrente de O Globo. Eles combinaram então que aquele que primeiro conseguisse registrar a imagem de Prestes cederia a fotografia ao outro. Indayassu foi mais feliz: enquanto os demais repórteres e fotógrafos se acotovelavam na porta principal, ele pôde clicar sozinho a célebre cena da libertação de Prestes. A façanha lhe valeu cumprimento especial de Roberto Marinho, enquanto Nestor Leite recebeu um prêmio de 500 mil réis de A Noite. Quando Indayassu morreu, em 28 de fevereiro de 1959, Nelson Rodrigues fez largo elogio póstumo ao antigo colega, descrevendo-o como “um Homero da fotografia de esporte e um Homero plástico, que cantava, pela imagem, as batalhas imortais do futebol”.

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No Rio, o primeiro emprego

Indayassu Motta Leite nasceu em Manaus, filho de Jorge Benedicto da Motta Leite e Francisca Peixoto Leite. O comerciante José Antonio Leite, seu avô paterno, foi um dos pioneiros na navegação entre Manaus e Belém do Pará, no período da extração da borracha. Indayassu cresceu na casa de número 45 da Rua Lima Bacuri e concluiu os primeiros estudos no Grupo Escolar José Paranaguá. Com a morte do avô e do pai, resumido a parcos recursos, mudou-se para o Rio de Janeiro e encontrou no comércio a fonte do primeiro emprego. Aos 20 anos, época em que prestou o serviço militar, revelou interesse pela fotografia e, mais adiante, pela cena jornalística. A trajetória na imprensa teve início na revista Fon-Fon e, em seguida, no vespertino O Globo, a convite de Roberto Marinho. Indayassu foi recebido na Redação do Globo juntamente com os jornalistas Mário Hora, Alves Pinheiro, que depois ocuparia a Chefia de Reportagem, e Lucílio de Castro, que foi Secretário de Redação. O chamado “batismo de fogo” no jornal aconteceu em novembro de 1935, na cobertura da Insurreição Comunista. Entrincheirado com as tropas legalistas na Praia Vermelha, portando apenas sua câmera fotográfica Speed Graphic, Indayassu registrou fortes imagens do confronto. Na época, sem o recurso da teleobjetiva, precisou se aproximar da cena para conseguir focar o objeto, o que aumentava os riscos da profissão. Três anos depois, em 1938, a revista Diretrizes, lançada por Samuel Wainer, reuniu Indayassu e um time de jovens jornalistas, entre os quais Azevedo Amaral, Jus-

tino Martins, Joel Silveira, Augusto Rodrigues e Nahum Sirotsky, com o qual ele estabeleceu laços de profunda amizade. Nesse mesmo ano Indayassu se casou com Munira Raed Leite, com quem teve um único filho, Carlos Alberto Leite, nascido em 2 de fevereiro de 1939. Na ocasião do nascimento, Indayassu participava da cobertura histórica sobre a descoberta do primeiro poço de petróleo no Brasil, localizado no bairro de Lobato, em Salvador, Bahia. Pioneiro em tecnologia

No início dos anos 1940, Indayassu começou a dedicar-se à imprensa esportiva com a mesma intensidade revelada nas reportagens sobre o Brasil e suas belezas e mazelas, veiculadas na revista O Cruzeiro e na Folha Carioca, entre outras publicações. Atento aos avanços tecnológicos, foi um dos pioneiros na utilização do flash de lâmpada, e, em 1943, o primeiro fotógrafo brasileiro a utilizar a câmera fotográfica que permitia o registro de imagens em seqüência. Este novo equipamento foi testado com sucesso no encontro que reuniu os Presidentes Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt, dos Estados Unidos, na cidade de Natal, RN.

Ainda em 1945, Indayassu cobriu o retorno dos pracinhas brasileiros que lutaram na Segunda Guerra Mundial. O fotógrafo e demais profissionais de imprensa embarcaram em uma lancha e foram os primeiros a conversar com os heróis nacionais. “Devagar, o navio dos combatentes caminhava sobre o Atlântico brasileiro. Da lancha americana que conduziu os jornalistas, os primeiros a conversar com os pracinhas, o repórter fotográfico de O Globo, Indayassu Leite, conta que reconheceu o cabo Darci, maroto morador do Grajaú. –Seu Leite, como vão as morenas? – Lá no bairro, esperando por você – foi a resposta. E estavam mesmo. Eram as “Lili Marlene” nacionais. A imprensa foi recebida com entusiasmo pelos componentes do 1º Escalão”, informa o texto do jornalista José Leal, publicado em O Globo em 18 de julho de 1945. Com Moses

Dois anos depois, por ocasião da Conferência Interamericana para a Manutenção da Paz e Segurança no Continente, realizada em Petrópolis, região serrana do Rio, a ABI e seu então Presidente Herbert Moses foram homenageados pelos fotógrafos que participavam da cobertura. Moses


Graças a informações exclusivas que obteve, Indayassu Leite pôde acompanhar a saída de Luiz Carlos Prestes da prisão em 19 de abril de 1945. Era um furo sensacional que ele dividiu com o irmão Nestor, também repórter fotográfico. Outro flagrante obtido por Indayassu foi no celebre comício do Anhangabaú, que nesse mesmo ano reuniu os antigos inimigos. Ele documentou também a visita do Presidente Franklin Roosevelt à ABI, em 1945, a qual atraiu um batalhão de fotógrafos. Herbert Moses, Presidente da ABI, está à direita, agachado. Abaixo, Indayassu (à esquerda) com Getúlio, em sua fazenda de Itu.

tinha especial afeição por Indayassu, sócio da ABI, matrícula número 1225 e que exerceu o cargo de tesoureiro da entidade. As coberturas internacionais intensificaram-se nos anos 1940 e 1950 a partir dos importantes movimentos políticos que emergiam nos países da América do Sul, com destaque para a Argentina, onde Indayassu foi condecorado pelo então Presidente Juan Perón por sua atuação na imprensa. Ele recebeu também uma medalha no Reino Unido. As pautas esportivas, como a Copa do Mundo de 1954, 1958, 1962 e 1966, e Jogos Olímpicos, integraram a agenda de trabalho de Indayassu. Na excursão do Flamengo à Europa, em 1951, ele utilizou pela primeira vez os serviços de telefoto. Destacado para a cobertura de vários eventos relacionados à Presidência da República, como a visita ao Brasil de Dwight Eisenhower, Presidente dos Estados Unidos, em fevereiro de 1960, Indayassu se tornou amigo de Getúlio Vargas. Atendendo a um pedido pessoal dele, Getúlio doou uma sala do Edifício 13 de Maio, no Centro do Rio, para sediar a Associação dos Repórteres Fotográficos do Rio de Janeiro, da qual Indayassu foi fundador.

Um perfeccionista

Além da rotina das ruas como fotógrafo e repórter, Indayassu ocupou cargos de chefia nos departamentos de esporte e fotografia. À convite de O Globo, visitou Redações de diversos jornais do Reino Unido para aplicar no Brasil as mais avançadas técnicas. Perfeccionista, dedicava horas de trabalho selecionando as melhores fotos para a paginação, fazendo recortes e ensinando técnicas de revelação. Torcedor apaixonado pelo Clube de Regatas do Flamengo, costumava unir o amor ao time e à fotografia e acompanhava as partidas de futebol juntamente com o “foca” Ibrahim Sued. Entre os companheiros de batalha estavam ainda Oduvaldo Cozzi, José Maria Scassa, Ricardo Serran, Geraldo Romualdo da Silva, Arides Visconti, Mário Júlio Rodrigues, Vasco Rocha, Otelo Caçador, Jorge Leal, Deni Menezes, Augusto Rodrigues, Mário Filho e Valdir Amaral. Ao longo da vida, Indayassu acompanhou a delegação do time rubro-negro em inúmeras viagens. Em 1968, por exemplo, um jogo do Flamengo em Manaus ensejou o seu retorno à sua cidade natal. Na

ocasião foi saudado pelo jornal A Crítica, de Manaus, que publicou matéria destacando o seu reconhecido talento. Indayassu morreu de septicemia. Foi homenageado pelo Governador Chagas Freitas e pela cidade do Rio de Janeiro, onde construiu a vida e a carreira, com o nome de uma rua do bairro de Inhaúma. Dezenas

de reportagens e artigos foram publicados em sua memória, como aquele em que Nelson Rodrigues exaltou seu talento. O nome Indayassu, de origem indígena, significa palmeira grande, explicou o escritor José Lins do Rego, amigo de um homem de imprensa que dignificou o jornalismo brasileiro. JORNAL DA ABI 391 • JUNHO/JULHO DE 2013

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MEMÓRIA

O inventor de revistas Roberto Civita mudou a história da imprensa no Brasil ao transformar uma pequena editora de gibis e fotonovelas no maior grupo editorial da América Latina.

A história virou lenda. Ou piada, para alguns, por ele não ter noção das dimensões reduzidas da editora de sua família, a Abril, fundada em dezembro de 1949. Ao voltar dos Estados Unidos, em setembro de 1958, depois de se formar em Jornalismo e Administração na Universidade da Pensilvânia, Roberto Civita, então com 22 anos, propôs ao pai Victor Civita (1907-1990) fazer em português por sua editora grandes sucessos do jornalismo em revista nos Estados Unidos, como Fortune, Playboy e até, mais pretensiosamente ainda, a semanal de notícias Time. Victor, que até então só publicava revistas em quadrinhos e de fotonovelas – seu título mais famoso era O Pato Donald –, considerou as idéias caras e, portanto, distantes da realidade econômica da Abril – como Roberto disse depois, tão longe quanto o Sol da Terra. Para não frustrar o filho, Victor prometeu que fariam sim tudo aquilo. Mas num outro momento. Antes, precisava esperar a empresa crescer, o que tinha conseguido em oito anos de atividades. As perspectivas eram boas, pois conseguira montar sua própria gráfica e distribuidora. Dessa primeira conversa nasceriam anos depois os projetos Veja (1968), Exame (1971) e Playboy (1975). Até lá, porém, o caminho seria longo. E Roberto não quis esperar. Pôs-se a enfiar idéias teimosas na cabeça do pai. Ele tinha feito estágio na editora Time Inc, que controlava as revistas Time, Life e Sports Illustrated – famosa por trazer garotas de biquíni. Durante um ano e meio, familiarizou-se com todos os setores da empresa americana, da Redação à Contabilidade. A ambição que o jovem herdou do pai o fez convencer-se a colocar em prática imediatamente meios para fazer a editora crescer. Primeiro, desenvolver prioritariamente a venda de espaço para publicidade, missão de que ele mesmo se encarregaria, enquanto planejava uma campanha de cobertura de agências de publicidade e de seus clientes. Num primeiro momento, modificou toda a área comercial, deu ênfase à publicidade e começou a reestruturação editorial da Abril. Para Cláudio de Souza (1926-2012), um dos primeiro funcionários da editora e braço-direito de Victor por duas décadas, a chegada de Roberto Civita à Abril representou o começo e a consolidação do segundo ciclo de vida da empresa. Até então, Victor Civita, com a “inestimável” ajuda de seu sócio, o ex-gerente de banco Gordiano Rossi, na administração do negócio – por ser americano, o fundador da editora não podia aparecer como dono de um veículo de comunicação e colocou Rossi como seu testa-de-ferro, até se naturalizar em 1960 –, havia lançado 34

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CLAUDIO BELLI/VALOR

P OR G ONÇALO J ÚNIOR

os alicerces destinados a suportar a estrutura de uma grande empresa editorial, mas evoluíra pouco na parte editorial. Fez isso quando montou gráfica e distribuidora próprias. Roberto encontrou uma editora que vendia bem, porém com poucos títulos consolidados em dois gêneros muito populares, mas sem qualquer expressividade ou atratividade para anunciantes: fotonovelas (Capricho e Noturno) e histórias em quadrinhos (O Pato Donald e Mickey). Para cobrir os custos de expansão, Victor aproveitava a ociosidade de suas máquinas e prestava serviços gráficos para terceiros – principalmente pequenas editoras paulistas, como a La Selva. A publicidade quase nada contribuía para o faturamento no fim do mês – apesar de Capricho ter iniciado uma mudança nessa relação, com alguns anunciantes de produtos femininos de higiene, beleza e roupa íntima. Roberto falava português com visível dificuldade. A ponto de trocar sempre o masculino pelo feminino na hora de formular uma simples frase – do tipo “o carro é bonita” – por toda a vida, carregaria um sotaque de estrangeiro quando falava português. Filho de descendentes de italianos, chegara ao Brasil com a mãe e o irmão Richard em fevereiro de 1950, durante o Carnaval carioca, vindos dos Estados Unidos. A família deveria se juntar a Victor, que estava em São Paulo e acabara de fundar uma editora, em dezembro anterior. O garoto tinha apenas 13 anos e se surpreendeu ao perceber que boa parte dos paulistanos vinha de imigrantes italianos como ele e teve facilitada a sua adaptação. Ficou apenas três anos em São Paulo e foi enviado de volta a Nova York para estudar Administração. O sonho do pai era prepará-lo como sucessor no comando daquela que, na sua cabeça, seria a maior editora de revistas do Brasil. Por ser o filho mais velho, Roberto sabia que seu futuro fora previamente traçado e ele parecia gostar disso, como se viu na volta. Consumidor compulsivo de revistas, começou a sonhar alto: investir no segmento de grandes revistas de sucessos internacionais, bem ousadas gráfica e editorialmente. Como não havia dinheiro para tanto, insistiu em que era possível fazer no curto prazo produtos mais modestos, dentro desse formato maior e para públicos segmentados, cujos resultados ajudariam a modernizar a editora anos depois, segundo os moldes das grandes editoras americanas. Faltava, no entanto, mão-de-obra especializada para suprir a demanda que pretendia criar. Jornalismo ainda não fazia parte da linha editorial da Abril. E nem das poucas pequenas editoras de São Paulo, quase todas dedicadas exclusivamente a publicar


histórias em quadrinhos. Os jornalistas que Roberto conheceu no Brasil, ao voltar, tinham até cinco empregos, em jornais ou serviços públicos, uma vez que o mercado paulistano pagava mal. Então, ele e seu irmão, Richard, começaram a contratar seus amigos – “gente da nossa idade”, como contou depois –, para escrever nas revistas que pretendia lançar. Assim, o filho de Victor Civita começou a dar à editora a cara que a empresa teria ao chegar à década de 1980. Um personagem o ajudaria nessas primeiras mudanças, o jovem jornalista Luís Carta (1936-1994), que tinha a mesma idade sua e acabara de ser convidado por Civita pai para trabalhar na editora. Italiano de Gênova, Carta mudou-se para o Brasil em 1959 para atuar na matriz da carioca Manchete, fundada por Adolpho Bloch. Aos 23 anos em 1959, Luís acumulava seis anos de profissão como repórter da agência italiana Ansa e como correspondente da Manchete, em Roma. Roberto se aliou a ele para começar uma nova história na Abril, com títulos de maior alcance de público. A primeira delas saiu em julho de 1959: a feminina Manequim, especializada em moda. Em sua fase inicial, a revista reproduzia fotos com modelos e roupas importadas da Europa e trazia moldes para que as leitoras copiassem no Brasil. Valia tudo, até sugestão de casaco de pele para um País de clima tropical, como lembrou Roberto. Uma Kombi na estrada

O retorno das leitoras em forma de cartas enviadas à Redação dos primeiros números estimulou o dono da editora a sugerir que Roberto criasse uma publicação destinada exclusivamente aos homens, como o jovem tanto queria. Mas que não trouxesse garotas seminuas como Playboy ou Sport Illustrated, porque não queria problemas com a Polícia e a censura. Nascia Quatro Rodas, lançada em 1960 e cuja gênese guardaria uma história que mostrava a disposição de Roberto para fazer as coisas darem certo. Por uma semana, ele e Mino Carta – irmão de Luís Carta e com quem fundaria Veja, em 1968 – seguiram numa Kombi com a marca da árvore da Abril em velocidade reduzida, sem pressa de chegar, pela Rodovia Presidente Dutra, conhecida como Via Dutra, que faz a ligação entre as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Partiram da capital paulista e, com um caderninho de anotações na mão de cada um e muitas paradas em postos, restaurantes e hotéis, os dois percorreram pacientemente quilômetro por quilômetro a rodovia. Com quase nenhuma sinalização ao longo dos 231 quilômetros do trecho do Estado de São Paulo e dos 171 do Rio, onde avistassem alguém Roberto e Mino pediam informações diversas. Queriam saber tudo sobre a estrada e as pessoas que ali moravam, ganhavam a vida ou a usavam regularmente. Entrevistavam, perguntavam sobre distâncias, pontos de parada,

qualidade da pista, onde paravam para comer, abastecer etc. Anotavam ainda a distância entre cada posto de gasolina ou parada de ônibus, tudo o que ficava à esquerda e à direita da pista, inclusive bares e restaurantes. Até mesmo a clientela de cada borracheiro era questionada. O resultado disso seria um trabalho pioneiro no jornalismo brasileiro, aproveitado na nova revista, voltada para o público masculino fã de carros: um mapa rodoviário cheio de informações preciosas para os usuários da estrada – e que seria adotado pelos funcionários do Departamento Nacional de Estradas e Rodagens-DNER. A idéia de Quatro Rodas foi dada pelo próprio Victor Civita a partir da paixão por carros na juventude e numa das primeiras profissões que teve ao lado do pai, em sua oficina mecânica de automóveis. Roberto se empolgou com a sugestão e viu ali uma oportunidade de bons negócios: a revista seria uma aposta de que a indústria automobilística brasileira, que estava sendo criada pelo Presidente Juscelino Kubistchek, daria certo e renderia publicidade suficiente para manter a publicação. Em sua opinião, faltava ao mercado uma publicação para destacar a novidade que eram os carros nacionais – o segmento era dominado por importadoras. Para fazê-la, Luís Carta chamou Mino. O primeiro número, lançado em agosto de 1960, chegou às bancas como uma ousadia editorial além do poder econômico da Abril, e pretensiosa por ser especializada em carros e dar ao tema um tratamento jornalístico leve e informativo, sem a chatice dos velhos manuais técnicos para consertar motor. Mino, Roberto e Luís apostaram quase exclusivamente em reportagens vinculadas ao automobilismo e ao turismo. Enquanto isso, em paralelo às campanhas de divulgação das novas revistas, nos anos seguintes Roberto Civita organizou e treinou uma grande equipe de vendedores de espaço para publicidade que cobria o Brasil inteiro. Desse modo, a Abril passou a lançar uma sucessão infindável de revistas de sucesso – como Cláudia, em outubro de 1961. Neste ano, ele criou o então desconhecido cargo de “Publisher”, focado no gerenciamento de Redação, que trouxe dos Estados Unidos. A função não era propriamente a mesma de um editor, tal como se conheceria na década de 2000. O Publisher dos primeiros tempos possuía atribuições de um coordenador editorial: coordenar a contratação de pessoal, definição de salários, administração e, eventualmente, demissões. “O editor era um cara independente do Publisher e ligado diretamente à direção editorial da empresa”, explicou Cláudio de Souza, primeiro a ocupar o posto na Abril. Pelo esquema, ele

e Roberto deveriam trabalhar juntos e assim aconteceu por bom tempo. Inaugurava-se a função que se tornou a avó dos atuais Diretores de Grupo da empresa. A busca de Roberto Civita por novos mercados e tiragens maiores não significava falta de prestígio na linha de quadrinhos e fotonovelas. Ao contrário. Gibis e histórias de amor para mulheres vendiam muito bem, apesar da crescente popularização da televisão. E a Abril continuou a fazer novos lançamentos, como Zé Carioca e Diversões Escolares. Veio dele a idéia de fazer InTerValo, inspirada no grande sucesso da americana TV Guide. A revista pretendia ocupar um espaço que Civita acreditava ter muito potencial, já que a venda de aparelhos de tv começava a deslanchar no Brasil. Não seria, claro, o primeiro título exclusivamente do gênero com circulação nacional. Existia em São Paulo uma revista de alcance regional, a semanal Sete Dias na TV e, no Rio, dois títulos fortes, Revista do Rádio e da TV e Radiolândia. Todas as iniciativas que Roberto Civita tomou para fazer decolar a Abril se completariam com uma idéia do seu pai que se tornou o pulo-do-gato da empresa e permitiria a seu herdeiro lançar as revistas que tanto queria. Desde 1961, o fundador da Abril decidira fazer fascículos. A primeira medida no sentido de viabilizá-los foi enviar Cláudio de Souza – por sugestão de Roberto – para um estágio de uma semana na editora Codex, em Buenos Aires, que trouxera o formato da Itália. O primeiro título da editora argentina fora Conocer (“Conoscere”, em italiano), que deveria ser também o primeiro a sair no Brasil, com o nome de Conhecer. “Posso dizer que não fiz um mau trabalho de observação e de assimilação editorial. Ao voltar a São Paulo, preparei, um a um, os ‘bonecos’ de toda a coleção. Foi um trabalho enorme, mas que me deixou satisfeito”, recordou Souza. A associação entre a Abril e a Codex, contudo, não se concretizou e a edição brasileira de Conhecer foi adiada temporariamente. O entusiasmo dos Civita não diminuiu por causa disso. Nos quatro anos seguintes, a editora cuidou de se estruturar ainda mais para dar início à empreitada. Em 1963, a gráfica ganhou sua primeira máquina a quatro cores, que começou a funcionar no ano seguinte, dentro do seu projeto mais ambicioso. Na avaliação de Roberto Civita, os fascículos mudaram o tamanho da Abril. “Vendemos dezenas de milhões de exemplares. Fizemos uma revolução cultural no Brasil. Não se pode saber a importância disso se não se era adulto ou adolescente naquela época. Durante dez anos, os fascículos fizeram uma enorme diferença.” O sucesso dos fascículos semanais na segunda metade da dé-

cada de 1960 – que começou com o lançamento de A Bíblia Mais Bela do Mundo, obra que teve 200 mil compradores ao longo de 150 semanas –, permitiu à Abril, principalmente, bancar o lançamento da revista mensal Realidade, em 1966; e a estimulá-la a criar a semanal Veja, em 1968. Realidade chegou às bancas no mês de abril, com circulação mensal e a proposta de inaugurar um novo padrão de jornalismo que mergulhasse fundo nos temas e com a seriedade que faltava às reportagens fraudulentas de O Cruzeiro e sensacionalistas de Manchete. Roberto – que chefiou a primeira equipe da revista, montada pelo editor Paulo Patarra – só não esperava que teria de enfrentar a ira da censura moral e política, o que acabou por desestabilizar a Redação, que se demitiu em conjunto no final de 1968. Mesmo assim, Realidade ficou conhecida pelas memoráveis reportagens que fez sobre cultura, política e religião. Mas foi a temática sexual que mais colocou a publicação na mira da censura, com apreensões pela polícia de tiragens inteiras. A experiência de uma revista mensal de informação serviu para Roberto desengavetar seu projeto pessoal mais ambicioso e que se revelaria o maior de todos: fazer uma revista semanal de notícias, moderna e influente. Idealizada por Mino Carta, Veja pretendia vencer as concorrentes Manchete e O Cruzeiro com um jornalismo de excelência e de credibilidade, o que ele conseguiu nos dez anos em que esteve no seu comando, mesmo com a pressão da ditadura militar. Foi o melhor momento de crédito da publicação junto à opinião pública. Mino montou a equipe inicial a partir de um concurso que escolheu 50 jornalistas entre 1.800 candidatos inscritos de todo o País. A Redação de Veja foi instalada no sétimo andar do recém-inaugurado edifício sede da Abril, na Marginal do Rio Tietê, para onde a editora se mudara no ano anterior – depois de 16 anos no velho prédio da Rua João Adolfo, no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo. Carta preparou nada menos que treze edições experimentais “número zero” antes de mandar a edição de estréia para as bancas, em setembro de 1968. A tiragem inicial de Veja foi de 700 mil exemplares e havia uma expectativa de venda de 500 mil, a partir daquela que seria, até então, a maior campanha de lançamento de um produto editorial de todos os tempos no Brasil. O número 1, no entanto, vendeu “apenas” cerca de 30% da tiragem: perto de 210 mil exemplares. Pouquíssimo para as ambições dos Civita. “Claro que foi decepcionante para todos nós, para dizer o mínimo. Mas, na época, ninguém se lembrou de considerar que 210 mil cópias eram mais que a soma das vendas de O Cruzeiro e Manchete, que, àquela altura, não tinham mais o vigor de antes”, observou Cláudio de Souza. Ele acreditava que o projeto fora superestimado, dada a sua característica editorial e elevadíssimo investimento em promoção de marketing. Por isso, desde o início, a revista deu um prejuízo crescente à Abril.

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MEMÓRIA O INVENTOR DE REVISTAS

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ELEIÇÃO DIVULGAÇÃO

A virada só viria algum tempo depois, após Roberto insistir no projeto, com o apoio do pai. Agora Diretor-Geral da Abril, ele contrariou a maioria dos membros da Diretoria da empresa, que considerava inviável esperar o lento crescimento das vendas em banca e queria cancelar o título imediatamente. Como saída, o herdeiro de Civita apostou na implantação de um sistema de vendas de assinaturas – o que seria um processo bastante lento, mas que daria certo. A idéia veio da lembrança dos tempos de seu estágio no grupo Time-Life, uma década antes. Ele voltara impressionado dos Estados Unidos com o sistema de entrega da revista americana na casa do leitor, mediante o pagamento antecipado de um lote de edições. O assinante, claro, recebia o produto em casa, com toda comodidade dos Correios. Essa fórmula, aliás, não era uma novidade no Brasil, pois desde a década de 1940 ajudou a consolidar Seleções do Reader’s Digest. “Eu acreditava que a combinação de uma grande revista com um sistema rápido e confiável de entrega não poderia dar errado”, recordou Roberto. E não deu. Um ano depois, já eram 50 mil assinantes. Trinta e três anos mais tarde, em 2001, a tiragem semanal de Veja chegaria ao total de 1.200.000 exemplares – cerca de 90% desse volume eram para assinantes – e a revista se manteria como líder isolada em seu segmento nos primeiros anos do século 21, mesmo com uma polêmica postura editorial. Tudo isso, no entanto, teve um custo elevado. Costumou-se afirmar em perfis da Abril e nas breves biografias de Victor Civita que só foi possível suportar o rombo crescente de Veja graças ao aporte que vinha de todas as demais publicações do grupo, inclusive dos fascículos e das revistas em quadrinhos. Não foi só por isso. Também recorreu a empréstimos de bancos americanos, como Victor Civita contou em depoimento à Gazeta Mercantil. A última grande revista que Roberto Civita lançou foi a Playboy, em agosto de 1975, a qual nasceu com o nome de Homem – A Revista do Playboy, por imposição da censura. Somente em junho de 1978, na edição 28, com o afrouxamento da repressão, assumiu o título da famosa publicação americana. Ao morrer, no ano em que a Abril completou 63 anos de idade, ainda com seu primeiro gibi em circulação, O Pato Donald, o mais velho dos Civita comandou a Abril tendo alcançado seus objetivos de fazer dela a maior empresa publicadora de revistas da América Latina. Um exemplo de homem bem sucedido. Em meio à turbulência de um mercado em crise, ele fechou um ciclo do desvio de rota que promoveu na história da imprensa brasileira, ao fazer o mercado de revistas migrar do Rio de Janeiro para São Paulo na década de 1970, com suas modernas publicações. Todas as grandes revistas que criou continuavam a circular em junho de 2013 – Manequim, Quatro Rodas, Cláudia, Veja, Nova e Playboy. E uma nova história começou e, como tal, com um fim imprevisível, mas que, espera-se, demore a acontecer.

LIVROS

No meio do caminho havia um cronista Os Dias Lindos, de Carlos Drummond de Andrade, é relançado pela Companhia das Letras. P OR R ITA B RAGA

Nada mais difícil do que apresentar um autor que dispensa apresentações. Anunciar o lançamento de um livro de Carlos Drummond de Andrade pode despertar aquela alegria trivial em quem o conhece, mas não sei se isso é suficiente para convidar o leitor. Talvez um caminho seja apontar que outras faces o homem atrás dos óculos mostra no livro Os Dias Lindos. O gênero crônica, especialmente nessa edição recém-lançada pela Companhia das Letras, assume mais do que tudo um caráter de experimentação. O mesmo texto foi publicado pela primeira vez em 1977 pela José Olympio editora, mas a edição tomada como base foi a de 1987 (4ª edição, Editora Record). No conjunto, chama a atenção a diversidade não somente de temas, como é comum ao gênero, mas, sobretudo, de formatos e usos da linguagem. O livro está dividido em seis partes, cujos títulos já dão uma mostra das soluções inusitadas para os mais diversos motes: Quatro histórias; Seis historinhas; O homem e a lingua-

gem; Passagem do ano; Ah, como a vida é burocrática! e Matutações. Alguns dos fragmentos expostos no quadro abaixo reafirmam a irreverência, atualidade e delicadeza do mineiro de Itabira, com seu olhar arguto sobre os episódios urbanos contrastantes na grande cidade. A nova edição conta ainda com o posfácio de Beatriz Rezende – apresentando singularidades e reflexões sobre o cronista Drummond dentro de seu tempo e diante de seus pares. Vale dizer que tal posfácio, por si, já vale a viagem literária pela clareza e densidade acerca do assunto. Como convite e apresentação da “justa medida” e da liberdade drummoniana, fica o comentário do próprio autor-narrador em um dos textos, simulando uma resposta à carta de uma leitora acerca da duração da crônica: “Não, d. Irineia, não é novela, não tem patrocinador nem nada. Simples relato de coisas acontecidas dentro e fora de meu amigo João Brandão, que aquiesceu em divulgá-las como ‘rocambole metafísico’. Acaba daqui a pouco, se Deus quiser. Sem moral de fábula.” (Corrente da sorte, p. 27)

Fragmentos de irreverência e delicadeza • CONFRONTO DE CORPOS “[...]Elevador é aquele aparelho de confronto de corpos em que a proximidade excessiva obriga ao recuo das mentes, de sorte que estamos e não estamos juntos, acabando por instalar-se um grande deserto, que, felizmente, não dura mais de um minuto ou dois. [...]” (Corrente da sorte, p.19.)

• CONVERSA MOLE “[...] Os três N e ele desenvolviam esse tipo de conversa mole que ajuda a passar o tempo do percurso e tanto conduz à aproximação cordial como ao esquecimento recíproco.” (Corrente da sorte, p.22)

• COM A CARTEIRA DA ABI “Li, reli, multili as nove recomendações da polícia ao cidadão pacato para evitar que seja assaltado; se for assaltado, roubado; roubado ou não, assassinado. Depois da leitura múltipla, mandei plastificar o nonálogo, que portarei tanto na rua como em viagem; no banho, no quarto de dormir, na praia, no teatro, na igreja, ao lado dos cartões de identidade do IFP, do CPF, do INPS, da ABI e do MAM, para o que der e vier. Será meu escudo e minha arma, valendo como proteção policial contra qualquer espécie de agressão ou atentado, e desempenhando assim aquela função outrora confiada aos

agentes da lei, recrutados, treinados e pagos para o policiamento ostensivo ou repressivo dos lugares públicos.” (Como prevenir assaltos, p.178.)

• NÃO! “Não pode. Não apoiado. Não me diga. Não dá. Essa não. Não me toques. Não me deixes. Não te esqueças de mim. Não tem de quê. Não vá com tanta sede ao pote. Não admito. Não estou aqui para botar azeitona na empada de ninguém. Hoje não. Nem preguei o olho. Não sei do que se trata. Não li e não gostei. Não vou com a cara dele. Nada tenho a declarar. Não há verba. Não ficará pedra sobre pedra. Não entendi patavina. Não sei onde estou que não lhe quebro a cara. [...]” (O homem e suas negativas, p.103.)

• QUESTÕES Que horas são? Mas quem é você? Sabe com quem está falando? E daí? Por quem os sinos dobram? Que é a verdade? Há uma sinceridade nisso? Com quantos paus se faz uma canoa? Mas você não se emenda? Está pensando o quê? Aceita mais uma xícara? Por que não me disse antes? Sabe da última? Quem ganhou? [...]” (O Homem, animal que pergunta?, p.99)

FHC, o novo imortal P OR I GOR W ALTZ

O sociólogo e ex-Presidente da República Fernando Henrique Cardoso foi eleito no dia 25 de junho para ocupar a cadeira de número 36 da Academia Brasileira de Letras – ABL. Fernando Henrique confirmou seu favoritismo ao receber 34 dos 39 votos possíveis para suceder ao jornalista e escritor paulista João de Scantimburgo, falecido em março aos 97 anos. FHC deve assumir o posto em setembro. A eleição, que aconteceu na sede da ABL, no Centro do Rio, contou com o voto presencial de 24 acadêmicos, 14 votos por carta e apenas uma abstenção. FHC é o terceiro Presidente a ingressar na Casa de Machado de Assis, depois de Getúlio Vargas, eleito em 1941 para a cadeira 37, e José Sarney, em 1980, para a cadeira 38. O convite para a candidatura do exPresidente foi feito pela escritora Nélida Piñon e pelo Senador José Sarney, ambos membros da ABL, logo após a morte de Scantimburgo. Disputaram com FHC Felisbelo da Silva, J.R. Guedes de Oliveira, Gildasio Santos Bezerra, Jeff Thomas, Carlos Magno de Melo, Eloi Ghio, Diego Mendes Souza, Alvaro Corrêa de Oliveira, José William Vavruk e Arlindo Vicentine. Doutor em Sociologia e Professor Emérito da Universidade de São PauloUsp, Fernando Henrique produziu dezenas de obras sobre o desenvolvimento social e econômico e sobre relações internacionais durante sua profícua carreira acadêmica. É autor e co-autor de 23 livros, entre eles O Presidente e o Sociólogo (1998), A Arte da Política (2006), The Accidental President of Brazil (2006), Cartas a um Jovem Político (2008) e A Soma e o Resto: Um Olhar sobre a Vida aos 80 anos (2011). Nascido no Rio de Janeiro, em 18 de junho de 1931, FHC mudou-se para São Paulo aos oito anos. Após o golpe militar de 1964, exilou-se no Chile e voltou para a França, onde acompanhou de perto o movimento de Maio de 1968. Voltou ao Brasil naquele mesmo ano, quando se tornou professor de Ciências Políticas da Usp. FHC entrou para a política no fim da década de 1970 e elegeu-se Presidente da República para dois mandatos consecutivos, de 1995 a 2002. Casou-se com a antropóloga Ruth Cardoso em 1952, com quem teve três filhos (Paulo Henrique, Luciana e Beatriz). Ruth faleceu em 2008, em decorrência de problemas cardíacos.


HISTÓRIA

Uma viagem que mudou a imprensa no Brasil Há 80 anos, uma promoção do Governo dos Estados Unidos e do Touring Club do Brasil levou personalidades brasileiras à Feira de Chicago. Documento descoberto recentemente revela detalhes da importância histórica desse evento esquecido que trouxe os suplementos para imprensa brasileira. P OR G ONÇALO J UNIOR

Era para ser uma viagem com a pretensão de mudar a história das relações culturais e comerciais entre Estados Unidos e Brasil, naquele distante agosto de 1933, quando o navio zarpou do porto do Rio de Janeiro. Nada menos que 150 personalidades da economia, da política e da vida cultural brasileira deveriam embarcar no “confortável” vapor American Legion, que os levaria à Exposição Internacional de Chicago, realizada entre 17 de agosto e 13 de outubro. Tudo seria bancado aparentemente por clubes de turismo americanos, em parceria com o Touring Club do Brasil, no que ficou conhecido como “Uma viagem cultural à América do Norte”. A importância desse evento, porém, jamais foi mensurada. Tudo não passava do início da estratégia geopolítica dos Estados Unidos de se aproximar da América Latina, numa ação que ficou conhecida como Política de Boa Vizinhança, que seria intensificada durante a Segunda Guerra Mundial. O evento chegou a ser filmado e exibido nos cinemas brasileiros, mas se perderia na História. Nem o Touring preservaria qualquer fotograma do filme ou mesmo algum documento a respeito. Sua história seria recuperada em 2004, com a publicação do livro A Guerra dos Gibis – A Formação do Mercado Editorial Brasileiro e a Censura aos Quadrinhos, 1933-64, escrito por mim e lançado pela Companhia das Letras. A obra relatava como o assessor de imprensa do Touring, o imigrante russo radicado no Brasil Adolfo Aizen (1907-1991), encantou-se pela imprensa americana durante a viagem e trouxe de lá os suplementos diários dos jornais – que lançou em A Nação, em março de 1934 – e as modernas histórias em quadrinhos de aventura, que sairiam no Suplemento Juvenil, lançado por ele. Aizen despertou a cobiça de Roberto Marinho (1904-2003), que havia se recusado a lançar a novidade com ele meses antes e publicou em junho de 1937 o tablóide O Globo Juvenil, seguido, dois anos depois, pelo Gibi, com circulação três vezes por semana e cujo título virou sinônimo de revistas em quadrinhos. E os dois se tornaram os maiores editores desse gênero entre as décadas de 1930 e 1940, ao lado de Assis Chateaubriand (1892-1968) e Victor Civita (1907-1990). Agora, um catálogo encontrado no acervo do artista plástico, fotógrafo e gráfico Loris Foggiatto – que trabalhou no jornal Folha de S. Paulo entre 1934 e 1969

Uma pose para a posteridade em Nova York durante a viagem de 1933. Abaixo, a capa do catálogo da Exposição de Chicago.

REPRODUÇÃO

e morreu em 2009, aos 96 anos – joga luzes sobre aquele passeio de “descoberta da América”. Trata-se de uma revista feita exclusivamente para a promoção do evento, cujo exemplar inclui até a ficha de inscrição e uma carta dirigida aos sócios do Touring. A publicação funcionava como um guia turístico com fotos de todas as atrações que os passageiros encontrariam no destino, em forma de cartões postais. Havia também um cronograma dos pontos que seriam visitados na América. “Cabedal precioso”

Naquele ano de 1933, Chicago comemorava cem anos do início de sua indus-

trialização. “A América do Norte é vista, hoje, no Mundo, como um país padrão. É a terra onde as conquistas do gênio encontram, talvez, expressões mais vigorosas. Para ela, convergem, de todos os cantos do Globo, Inteligências da elite, ávidas de se aperfeiçoarem nesse laboratório incomparável”, escreveu Octavio Guinle, Presidente do Touring. Para ele, a ida dos brasileiros à América seria um evento quase desbravador. “Com o programa que oferecemos, dentro dos Estados Unidos, e com o prestimonioso concurso das principais instituições norte-americanas – os médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, professores e indus-

triais em geral que dela participem, trarão para o Brasil, ao seu regresso, um cabedal precioso de ensinamentos de toda a natureza, que muito contribuirá para acelerar a marcha do progresso nacional”. Fundado em 1922, o Touring Club funcionava como uma espécie de entidade nacional não oficial de promoção do turismo. Aizen tomou conhecimento da viagem na Redação de O Globo. Queria muito ir para conhecer a América e passar uns dias com os dois irmãos, Lídia e David, que moravam nos Estados Unidos desde a década anterior. Como era apenas colaborador do jornal, sem carteira assinada, sabia que tinha poucas chances de ser escolhido por Roberto Marinho para representá-lo. Lembrou-se, então, que conhecia o jornalista Berilo Neves, coordenador de imprensa da entidade. Boêmio e intelectual, Neves alcançara grande popularidade nas décadas de 1920 e 1930 como autor de uma série de livros com frases de efeito. Ele recebeu Aizen com entusiasmo: “Adolfo, esse será um evento histórico. Vamos ajudar o Brasil a descobrir um novo mundo!” Ao amigo Neves explicou que toda a viagem seria bancada pelos clubes de turismo americanos envolvidos no programa para recuperação econômica do país. O intercâmbio era estimulado pelo Governo como parte da política de aproximação com as nações vizinhas do Continente. Isso seria feito principalmente a partir de es-

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HISTÓRIA UMA VIAGEM QUE MUDOU A IMPRENSA NO BRASIL

forços juntos àqueles que formavam a opinião pública dos países latinoamericanos – jornalistas, intelectuais, empresários e políticos – no sentido de impressioná-los com sua política de expansão comercial, de modo que a divulgassem ao retornarem a seus países. Não havia qualquer exagero nas observações do Presidente do Touring. O Brasil praticamente engatinhava em suas relações de aproximação política e econômica com os Estados Unidos. O capital americano só começou a penetrar timidamente no País em 1921, quando seu Governo fez um empréstimo de 50 milhões de dólares. São Paulo, então em ritmo acelerado de industrialização, já havia atraído as primeiras empresas americanas, como Firestone, Burroughs, Pan-American e American Foreign Power – esta, juntamente com a canadense Light & Power, passaria a deter o monopólio da eletricidade nas duas maiores cidades do País – São Paulo e Rio. Notícias sobre o progresso dos Estados Unidos chegavam aos brasileiros de modo fragmentado, por meio do cinema e das modernas revistas de variedades que surgiram e copiavam os formatos americano e francês desse tipo de publicação. Entre essas, destacavam-se O Cruzeiro, Paratodos, Revista da Semana, Pelo Mundo, Eu Sei Tudo e A Scena Muda. A maioria apresentava o glamour de galãs e divas de Hollywood e as oportunidades de consumo do modelo de vida da América. Esse interesse crescente a partir da segunda metade dos anos de 1920 sinalizava uma clara transição cultural. Dizia-se que naquele momento o Brasil se vestia ainda à francesa, mas passava a agir como americano. Diante da crescente “ameaça” comunista irradiada da União Soviética, começou a ser difundida a idéia de que os Estados Unidos eram a terra da liberdade de pensamento, das grandes oportunidades individuais e do desenvolvimento econômico, do progresso tecnológico que nem a recessão que ora vivia conseguiria abalar. Mesmo assim, os americanos estavam longe de despertar o interesse da elite brasileira ou daqueles que viajavam para o exterior. Tradicionalmente, os caminhos dos turistas eram Paris e Londres, nessa ordem. Não por acaso, a primeira marcou fortemente o surgimento do movimento modernista iniciado em 1922. E veio a viagem

Pela revista do Touring é possível reconstituir tudo com detalhes. O embarque de quem partiria de São Paulo foi realizado em Santos, de onde saiu o American Legion, para uma travessia de “apenas” 14 dias. No dia seguinte, quinta-feira, apanharia no Rio os cariocas e mineiros. 38

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O roteiro até a América do Norte incluía breves paradas nas principais capitais do Nordeste e navegação por afluentes do Rio Amazonas. Seriam feitas escalas em Trinidad e Bermudas. Em Nova York, a comitiva ficaria hospedada no “moderníssimo” Hotel Taft. Permaneceria na cidade por três dias e seguiria para Filadélfia de trem. Após dois dias, Washington. Durante dias, os preparativos da viagem e a expectativa dos convidados alimentaram as colunas sociais. O embarque aconteceu na noite da quinta-feira, 17 de agosto, e se tornou um dos acontecimentos sociais do ano no Rio. Tanto que foi a manchete principal do Diário de Notícias no dia seguinte. O porto ficou apinhado de parentes, amigos, jornalistas, fotógrafos e curiosos que foram se despedir dos eleitos. “Desde às 15 horas já se tornava intenso o trânsito nas imediações. Centenas de famílias da nossa melhor sociedade ali estavam, no concorrido botafora. Em todos os pontos havia a graça das toaletes femininas em profusão. Somavase em milhares de presentes”, escreveu o jornal. O mesmo Diário de Notícias destacou: “Excursão representa um elo forte unindo as nações irmãs. E o Brasil vai bem representado na grande data ‘um século de progresso’ de Chicago”. Por fim, em 8 de setembro, os brasileiros cruzariam parte da América de trem, rumo a Chicago, para estada de duas semanas de intensas atividades. De volta a Nova York, a comitiva teve seis dias livres, entre 23 e 29 de setembro. Foi nessa semana que Aizen aproveitou para visitar as Redações dos jornais e se encantar com os heróis dos quadrinhos, então inéditos no Brasil, além dos suplementos diários – feminino, policial, literário, infantil e esportivo – que ele achava que poderia lançar no País, como acabaria fazendo. Adolfo Aizen convenceu Berilo Neves a levá-lo como uma espécie de assistente dos passageiros e assessor de im-

prensa do Touring. Pelo telégrafo, em cada parada, enviaria reportagens que seriam reproduzidas pelo Diário de Notícias, Correio da Manhã, A Noite, Diário Carioca, O Malho e Revista da Semana. Afinal, todos queriam saber detalhes da comentada aventura de milionários. O jornalista se sentia um privilegiado por viajar na luxuosa embarcação. Deslocado no ambiente, o rapaz magro e franzino era de uma timidez indisfarçável. Chamava a atenção apenas pelos olhos, de um azul-celeste um tanto incomum. Os Estados Unidos encantaram Aizen. Nova York passou ao jornalista a impressão de que o mundo parecia pequeno diante das ambições americanas. Ao mesmo tempo em que a cidade recebia imigrantes do mundo inteiro, que se amontoavam nos guetos do East Side de Manhattan, a ousadia de muitos aventureiros america-

Um ano depois da viagem aos Estados Unidos, Adolfo Aizen lançaria o Suplemento Juvenil. Essa história seria contada em quadrinhos num álbum de 1943: A Grande Aventura. Abaixo, folheto do Touring Club sobre a “futurista” exposição de Chicago.

nos em busca de fortuna ultrapassava as fronteiras da nação e chegava às exóticas selvas da África. Isso atiçava a imaginação dos produtores de Hollywood e dos editores de histórias em quadrinhos. Seus mirabolantes heróis de aventuras nessas regiões distantes começavam a aparecer nas páginas dos jornais, em relatos inacreditáveis, e nas telas de cinema. Nos Estados Unidos, a comitiva brasileira foi dividida em dois grupos. Aizen teve de fazer malabarismos de modo que cada um tivesse cobertura. Todas as semanas, abastecia a seção de turismo do Diário de Notícias com informações sobre a “grande caravana turística de recreio e estudos”. Na edição de 30 de setembro, por exemplo, deu detalhes sobre o passeio do grupo às cataratas do Niágara. Nesse dia, o superintendente do Touring, J. B. de Cerqueira Lima, anunciou a volta de parte da comitiva – o restante ficaria até 10 de outubro. Em Washington, os turistas foram homenageados com um chá no Hotel Mayflower oferecido pelo Embaixador brasileiro Rinaldo de Lima e Silva. Ao fim da viagem, Aizen decidiu não voltar ao Rio com a comitiva do Touring e aceitou o convite da irmã, Lídia, para passar uma temporada em Nova Bedford, Estado de Massachusetts. Lídia se mudara para os Estados Unidos alguns anos antes, depois de se casar com Phillip Rothberg, imigrante russo cuja família fora vizinha dos Aizen em Salvador. A estada do jornalista durou cinco meses. Enquanto melhorava seu inglês, ele continuou a mandar reportagens para o Brasil. Para O Globo, fez uma entrevista exclusiva com o líder comunista Maksim Litvinov, então comissário dos Negócios Estrangeiros da União Soviética, de passagem por Nova York.


Um dos passatempos do jornalista era bisbilhotar os pontos-de-venda de jornais e revistas. Encantava-se com o mercado editorial americano, então impulsionado pelas modernas tecnologias de impressão, que possibilitavam tiragens cada vez maiores em menor tempo. As múltiplas possibilidades gráficas, incluindo o uso da cor nos suplementos dominicais, e o acabamento perfeito das edições permitiram o surgimento dos suplementos semanais temáticos, encartados gratuitamente nos jornais – eram bancados por anunciantes. Em determinado dia da semana, circulava, por exemplo, o caderno feminino, com dicas de educação para o lar, moda, culinária e orientações de como ser boa mãe e esposa. Havia também os suplementos literários, os de contos policiais, os de esporte e os infanto-juvenis. O brasileiro descobriu, em conversas com colegas americanos, que aqueles suplementos aumentavam substancialmente as vendas dos diários, uma vez que muitos leitores compravam o jornal apenas para lê-los. Notou ainda que nenhum caderno fazia mais sucesso que o infanto-juvenil, que trazia curiosidades, passatempos e muitas histórias em quadrinhos – chamadas comics pelos americanos porque os primeiros artistas exploraram o gênero para fazer graça com o universo miserável dos cortiços das grandes cidades americanas no final do século 19. Impressionouse com aquele tipo de leitura por ser uma obsessão nacional consumida avidamente em praças e metrôs. Todos os grandes jornais tinham suas séries de quadrinhos, principalmente com heróis de aventuras. Todas as manhãs, Aizen comprava os jornais para ler a seqüência de seus personagens preferidos – gostava em especial de Buck Rogers no Século 25, de Philip Francis Nowlan, publicado desde 1928. Aizen se espantou ao ver que as continuações das histórias de Buck Rogers e Tarzan eram acompanhadas com ansiedade por uma legião de fãs, como se fossem folhetins. O mais curioso: os comics exerciam fascínio sobre o público de todas as idades, ao contrário do que acontecia no Brasil, onde os raros quadrinhos publicados em revistas como O Tico-Tico eram dirigidos às crianças. Aquelas histórias em tiras ou páginas seriadas que ele lia nos Estados Unidos eram desconhecidas no Brasil. Muitas haviam sido criadas fazia pouco tempo e não tinham despertado o interesse dos editores brasileiros. A decepção com Roberto Marinho

Ao embarcar de volta ao Brasil, no final de janeiro de 1934, Aizen estava decidido a dar uma guinada em sua vida. Levaria para o País algumas daquelas novidades. E concluiu que apenas uma pessoa no Rio de Janeiro poderia ajudá-lo a concretizar seu projeto de lançar no País os suplementos setorizados como encarte de jornal. Essa pessoa se chamava Roberto Marinho. Esperava convencer o dono de O Globo de que os cadernos seriam um passo na evolução do jornalismo nacional. Se aceitasse, Aizen se tornaria seu sócio na empreitada.

Duas preciosidades históricas bem preservadas: o release do Touring Club do Brasil sobre a Feira de Chicago, na qual seria apresentado “tudo o que as sciencias, as artes e as industrias conseguiram de melhor em um seculo de progresso”. Acima, o formulário de inscrição à excursão cultural aos Estados Unidos.

Quando foi conversar com Marinho, Aizen acreditava que os suplementos realmente mudariam seu destino. Marinho o saudou com entusiasmo, parabenizouo pelas matérias que mandara. Em seguida, seu colaborador lhe mostrou vários exemplares dos suplementos que trouxera, além de dezenas de páginas e tiras de heróis de quadrinhos que, ressaltou ele, eram uma mania nos Estados Unidos: “Acredite, Roberto, você não só aumentará a tiragem diária, como despertará o interesse de segmentos que não têm o hábito de ler jornal. Isso será ótimo para a ampliação do alcance e da tiragem.” Marinho respondeu: “A idéia é bastante interessante, Adolfo, mas creio que seja economicamente inviável. Não vejo como tornar isso viável.” Por mais que mostrasse entusiasmo, Aizen não empolgou o chefe. Falou com ênfase principalmente do papel dos patrocinadores na empreitada. Mas Marinho não quis arriscar. Alegou que não tinha como bancar o projeto e que não acreditava que conseguiria convencer anunciantes a bancá-lo. Aizen deixou a Redação do jornal bastante abatido. A decepção fez com que prometesse para si mesmo que jamais retornaria àquele lugar. Saiu repetindo que Marinho se arrependeria amargamente de sua falta de coragem em arriscar em algo que prometia repetir o mesmo sucesso dos Estados Unidos. Aizen não se deu por vencido. Foi direto à Redação de O Malho para rever os colegas. De lá, foram jantar num restaurante onde um animado Aizen repetiu sua idéia para alguns colegas e logo percebeu que falava a uma platéia mais interessada. Participaram da conversa o desenhista Monteiro Filho e os jornalistas Osvaldo da Silveira, Roberto Macedo e Luís Peixoto. Artista de múltiplos talentos – escritor, repórter, caricaturista –, além de cunhado e parceiro musical de Ary Barroso, Peixoto foi o que mais se empolgou com o projeto. Ele sugeriu a Aizen que procurasse um amigo dele, o Capitão João Alberto Lins de Barros, o polêmico Chefe de Polícia de Getúlio Vargas e diretor do jornal A Nação. Peixoto trabalhara com ele um ano antes, como auxiliar de Gabinete e acreditava que seu ex-patrão pode-

ria ajudar o amigo a bancar os suplementos. Apesar de conhecer a fama pouco lisonjeira do militar, Aizen decidiu procurá-lo. Pediu a Peixoto para apresentá-los. João Alberto, para surpresa de Aizen, aceitou imediatamente a idéia de fazer cinco suplementos, um para cada dia da semana. Autorizou o jornalista a tornar o projeto viável o mais rápido possível. Político habilidoso, João Alberto viu na proposta uma forma de fortalecer o jornal e amenizar a imagem de panfleto partidário. A pequena equipe que produziria os tablóides foi formada inicialmente por alguns colegas de O Malho, como Monteiro Filho, Osvaldo da Silveira, Luiz Peixoto e Roberto Macedo. Silveira era um escritor paulista que depois ficaria conhecido como autor do romance Bartyra, escrito em português arcaico e cuja primeira edição seria lançada por Aizen, em 1942. Macedo era professor de História do Brasil do Colégio Pedro II e do Instituto de Educação. Pouco depois, juntou-se ao grupo Maria Lopes Monteiro, esposa de Monteiro Filho. A estréia dos suplementos

O espaço de tempo entre a aprovação de João Alberto e o início da produção dos suplementos foi tão curto que em menos de um mês A Nação lançaria o primeiro deles. O grupo trabalhou a toque de caixa para preparar o número de estréia de cada tablóide. Aizen procurou ser fiel ao formato dominical americano, o que não seria nada fácil, uma vez que as máquinas de A Nação estavam longe de assegurar alguma qualidade gráfica. Os cadernos foram planejados e desenhados numa pequena sala, no ritmo diário do jornal. Como estratégia contra a concorrência, somente dois dias antes da estréia os leitores do jornal foram informados da novidade. Na edição de domingo, 11 de março, a manchete da primeira página deixou de lado a tradicional chamada política para anunciar: “Programação de A Nação para a próxima semana: um suplemento por dia”. Logo abaixo, um quadro explicou quais seriam os nomes dos cadernos de doze páginas cada, por ordem de lançamento: “Humorístico”, “Infantil”, “Policial”, “Feminino” e “Esportivo”. Como o diário não circulava às segundas, a partir da

terça, dia 13, teve início a série. Como Aizen queria, mesmo com os suplementos A Nação continuou a custar duzentos réis – “mais barato que um café ou uma caixa de fósforos”, como anunciou o diário. Na quinta, dia 15, o jornal organizou um almoço de confraternização para celebrar os lançamentos. O evento reuniu representantes das distribuidoras e vendedores de jornais no salão da Associação dos Auxiliares da Imprensa. A concorrência ficou boquiaberta diante de tamanha ousadia da investida de João Alberto, a quem couberam os méritos iniciais. A repercussão entre os leitores foi a melhor possível. Jornaleiros de toda a cidade corriam ao jornal durante o dia para pegar mais exemplares. Os cadernos de A Nação se tornaram acontecimento importante na História da imprensa brasileira porque introduziram o formato nos jornais. Iniciativa, aliás, nunca lembrada por pesquisadores, talvez por causa da curta existência do diário de João Alberto, que deixaria de circular dois anos depois. Alimentar cinco edições por semana com notícias, variedades culturais e esportivas se tornou uma tarefa árdua para Aizen. Parte da dificuldade foi resolvida com a compra de textos e desenhos americanos, vendidos por representantes no Brasil de agências conhecidas nos Estados Unidos como “syndicates”, distribuidoras de “features” (ilustrações, artigos e reportagens). Para temperar o suplemento policial com um pouco de brasilidade, Aizen contou com colaborações dos próprios repórteres e redatores de A Nação. Convidou escritores amigos seus, de pouca projeção, para participar, em especial, da produção de contos policiais e infantis. Quanto ao suplemento esportivo, a própria Redação do jornal ficou encarregada de preenchê-lo com noticiário do fim de semana. Os suplementos se tornaram um sucesso, principalmente o Suplemento Infantil, com quadrinhos. Este, logo se tornou independente de A Nação, e trocou de nome para Suplemento Juvenil. Graças à ajuda de João Alberto, Aizen montou uma editora que chamou de Grande Consórcio de Suplementos Nacionais, para produzir suplementos que seriam vendidos em bancas e distribuídos como encarte em jornais de todo o País. Por oito anos, o negócio espalhou pelo Brasil a novidade e plantou uma semente que seria copiada pelos maiores jornais do País naquela década. E tudo isso começou com a viagem de Chicago em 1933. A certeza desse documento é a de que não é possível estudar a História das relações entre Estados Unidos e Brasil durante a Guerra Fria – denominação que só seria adotada em 1947 – sem considerar esse curioso passeio cultural que até então tinha rendido observações apenas sobre as maravilhosas histórias em quadrinhos americanas de Flash Gordon, Fantasma e companhia.

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FOTO: ANDRÉ RUSCHI/ARQUIVO DA FAMÍLIA.

AMBIENTE

RUSCHI FORA DE RISCO Reconhecimento da importância do acervo de Augusto Ruschi possibilitará a preservação de sua trajetória e suas pesquisas científicas, que denunciaram problemas ambientais numa época em que esse assunto ainda não era moda na mídia. P OR P AULO C HICO E J OSÉ D UAYER F OTOS L OURDES V ALLE

Acostumados a notícias que geralmente dão conta da rápida degradação do planeta, os defensores das causas ambientais têm algo a comemorar. O valioso acervo de Augusto Ruschi, considerado patrono nacional da Ecologia, enfim contará com as devidas condições de preservação histórica. Avaliado pelo Professor Taiguara Villela, especialista em Arquivologia da Universidade Federal do Espírito Santo-Ufes, o material foi apresentado ao Conselho Nacional de Arquivos-Conarq, autarquia federal ligada ao Ministério da Justiça. Após análise em sua sede – a Estação de Biologia Marinha Augusto Ruschi, localizada no distrito de Santa Cruz, em Aracruz/ES –, os representantes oficiais do Conselho apresentaram seu parecer em 6 de dezembro de 2012. Como resultado, o projeto de preservação foi aprovado por unanimidade na categoria de Acervo de Interesse Público e Social de caráter privado. Após os trâmites burocráticos será feita uma diplomação oficial de chancela especial do Conarq e assinatura do decreto-lei pela Presidente Dilma Rousseff, o que tornará o acervo indissolúvel e de preservação permanente, além de facilitar processos de obtenção de incentivos. “Por ser uma atividade de alta especialização, a organização e manutenção do arquivo depende de sofisticados equipamentos, cumprimento de normas, formação de arquivos, formas de acesso público, sendo objeto de consultoria especializada do Professor Taiguara, grande incentivador da realização desta etapa fundamental para a preservação destes acervos. Este status oficial também facilitará o acesso público às informações. Várias obras inéditas e imagens serão publicadas, à medida que forem obtidos os recursos necessários. É um novo momento, que vem consagrar e referendar todo o esforço de manutenção deste acer40

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vo e do projeto Arca de Noé, o primeiro a implantar a educação ambiental no ensino formal brasileiro”, conta o biólogo André Ruschi, filho de Augusto. Ruschi, o pai, nasceu em Santa Teresa, Município do Espírito Santo, em 12 de dezembro de 1915. Faleceu aos 70 anos, em Vitória, em 3 de junho de 1986. Em sete décadas de vida, firmou-se como referência nacional e internacional quando a pauta trata da defesa – apaixonada, sim, mas sobretudo técnica – do meio ambiente. “Ele foi o precursor, o primeiro cientista a descrever o aquecimento global de maneira científica. E o criador da principal ciência, no seu modo de ver, a Agroecologia – como maneira de evitar o aquecimento ou diminuir seus efeitos. Foi um cientista visionário, inspirado, muito à frente de seu tempo, apaixonado pelo seu trabalho e desapegado de bens materiais, riqueza e fama, o que lhe valeu o título de louco algumas vezes. Foi um gênio com muita disciplina de quem atualmente só se ouve falar em histórias antigas. Daquele tipo de homem que não existe mais e cuja mensagem e obra não podem ser esquecidas nunca”, diz o biólogo André, que, aos 57 anos, se define ainda como ecólogo, educador ambiental, pesquisador, fotógrafo, escritor, jardineiro e raizeiro – ou melhor, fitoterapeuta. A mídia e o meio ambiente

No final de 2015, deverá ser comemorado o centenário de nascimento de Augusto – festividade que já começa a preocupar seu único filho. “Já estamos pensando num cronograma de atividades, mas esbarrando nas dificuldades de custeio. Falta-nos um profissional de eventos e promoções, que pudesse se dedicar integralmente a esse projeto, para tentarmos minimizar, pelo menos, o desinteres-

Augusto Ruschi: precursor ecológico, foi o primeiro cientista a descrever o aquecimento global de maneira científica. “Um homem muito à frente de seu tempo”, como define seu filho, André

se que temos no País por questões culturais. Precisamos de ajuda”. Como se vê, o ideal de preservar a memória do patrono da Ecologia esbarra em alguns entraves. Se a atenção do Estado para com o acervo de Ruschi é alvo de merecidas congratulações, ainda causa apreensão o debate, no Brasil, sobre o futuro do planeta. Ou seria, na verdade, a falta dele? A pedido do Jornal da ABI, André faz uma análise do desempenho da mídia nacional diante do desafio de pautar e denunciar crimes ambientais experimentados em praticamente todo o território nacional. “A imprensa brasileira tem muita dificuldade para discutir as grandes questões de maneira organizada e objetiva como, por exemplo, a poluição da siderúrgica na periferia do Rio de Janeiro, afetando a saúde da população, o efeito do cloro usado no tratamento da água na saúde das pessoas, ou mesmo o desastre muito maior para o aquecimento global que é a poluição do nosso

litoral. Sem falar na destruição dos manguezais. A imprensa mal está informada sobre a real significância dos manguezais para o sistema da vida terrestre;” Ainda segundo André Ruschi, há alguma dose de ficção na abordagem da imprensa. “Observo a tendência maniqueísta algumas vezes oportunamente aproveitada por movimentos sociais de origem duvidosa. Ela parece sobrepor-se hierarquicamente às informações reais, descaracterizando a ciência, instituições de pesquisa e ensino, e tornando as informações objeto de manipulação e confusão. Seria importante que se criassem fóruns de imprensa especializada para debater essas questões, periodicamente. A cada três meses, este fórum se reuniria em alguma parte do País discutindo aspectos relevantes – e poderia gerar informações com fundamentos. É preciso compreender a evolução das sociedades humanas, da ciência e cultura. O jornalismo não é


mais a simples habilidade de escrever um texto para o público ler.” Neste contexto, o filho de Augusto Ruschi destaca a atuação isolada, corajosa e quase solitária de jornalistas como Lúcio Flavio Pinto, do Jornal Pessoal, do Pará, que conseguem desenvolver um trabalho questionador. “Eles são idealistas que fazem o melhor de sua arte, se dedicam e por isso conseguem ir além do que as simples matérias do cotidiano retratam. O jornalismo especializado é mais conseqüente e responsável. Só vejo méritos na obra do Lúcio, assim como na ação de todos os que vêm realmente estudando e analisando questões específicas. Informar também depende de especialização e é parte do processo da cultura. Processo fundamental e essencial. Se for mal feito, o resultado pode ser desastroso. Bem feito, pode dar nova dimensão à situação.” Mas por qual razão será tão difícil aprofundar o debate ambiental na mídia brasileira? Teria isso alguma relação com a histórica concentração fundiária do País? Com a palavra, André Ruschi: “A concentração fundiária, reflexo ainda da época colonial, tem raízes históricas, permitidas atualmente pela ausência de cultura e educação, ou políticas de incentivo apropriadas para superar os déficits culturais e econômicos da população rural. No entanto, a demanda rural vem se tornando prioridade mais presente. Vejo as próximas três décadas como altamente promissoras para a área rural brasileira, com expansão histórica e cultural sem precedentes. No entanto, a discussão sobre os grandes projetos capitalistas tende a se estagnar neste período. Muitos debates não prosseguem, porque a população urbana é alienada em relação à área rural e suas demandas, criando assim um ponto cego.” Ruschi também chama a atenção para pautas que, apesar de tão visíveis, poucas vezes ganham o devido espaço nas páginas dos jornais. “Por exemplo: ninguém fala dos riscos das usinas nucleares de Angra, das grandes hidroelétricas e seus impactos diretos, riscos e impactos de grandes indústrias, das grandes rodovias sem medidas de controle ambiental, dos resultantes diretos do lixo, dos esgotos no mar. Somente estas questões enumeradas envolvem investimentos que superam 1 trilhão de dólares nos últimos 30 anos – gerando milhares de mortes por doenças ou riscos potenciais que afetam milhões. E praticamente nada disso é abordado pelos jornalistas.” A superficialidade na imprensa espírito-santense

São notórios os graves problemas enfrentados pelo Espírito Santo e sua população no que diz respeito aos impactos diretos e indiretos das atividades de grandes empresas no Estado (ver entrevista especial com André Ruschi na página 42). Apesar disso, a atuação da mídia do Estado não difere muito do que é verificado no restante do País. “Nossa imprensa local é limitada pelas superficialidades das informações, que em geral são divulgadas pela mídia paga, por falta de aprofundamento e pela inexistência de um jornalismo

investigativo. As matérias são deficitárias. Quando se aprofundam um pouco mais, não têm público leitor suficiente que justifique o investimento. Acho que há pobreza de jornalismo e uma alienação em relação à realidade dos fatos, por estarem acostumados a este status quo dominante. Eles próprios se renderam a uma mesmice ou a um condicionamento cultural que os desestimula a avançar em direção diferente”, lamenta ele, que vê com otimismo o crescimento de um canal alternativo de difusão da informação. “O crescimento das redes sociais é um novo momento que permite furar os bloqueios da mídia tradicional, financiada pelos grandes grupos. A internet é uma revolução na troca de informações. Embora tenha desvios, como divulgação de boatos e falsas verdades, existem grandes resultados positivos inegáveis. Acredito que Gutemberg jamais conseguiria imaginar algo do gênero – e isso é uma nova era da civilização humana. O mundo no futuro será conhecido como antes e depois dessa fase de comunicação eletrônica. O debate sobre o novo Código Florestal Brasileiro e os embates em torno deste projeto são exemplos importantes. Em outros tempos já teríamos perdido totalmente a possibilidade de reação.”

e arqueológico, onde a caça é proibida; e áreas de visitação pública. Ruschi, então, apresentou a tese de que era necessário preservar os habitats das espécies agrícolas e medicinais e que, sem a preservação da espécie com sua genética original, as plantas cultivadas iriam perder a variabilidade genética, ficando sem capacidade de se adaptar às transformações do ambiente. Bem como sem defesas naturais contra as doenças e pragas agrícolas. “Conseqüentemente, em poucas gerações de plantio, a maioria dessas plantas seria extinta e a humanidade iria morrer de fome. Como o desmatamento era considerado um fator de desenvolvimento, de progresso, as florestas naturais estavam sendo dizimadas para ampliar fronteiras agrícolas e urbanas. A tendência em duas décadas seria não existirem mais florestas naturais. Portanto, a estratégia defendida por meu pai era preservar os habitats naturais como primeira ação, isto é, a manutenção do banco genético. A segunda preocupação era a manutenção dos mananciais hídricos. E a terceira, a preservação do clima, evitando assim o aquecimento e a desertificação. Essa foi a primeira proposta científica em nível mundial para evitar o aquecimento global, do qual ele foi praticamente o pioneiro na sua descrição”, festeja André, que destaca

as Unidades de Conservação mais bemsucedidas do País. E faz uma denúncia. “O Parque Nacional do Iguaçu no Paraná, o Parque Nacional de Abrolhos, no litoral da Bahia, a Reserva Biológica de Sooretama, no Espírito Santo, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, no Amazonas. E ainda a Reserva Biológica Augusto Ruschi, em Santa Teresa, aqui no Espírito Santo, que já está sofrendo invasão, ataques de caçadores, biopirataria e comércio de espécies raras. Há várias categorias de unidades previstas pela legislação brasileira, e que variam no grau de restrição. Desde a menos restrita – a reserva extrativista – até a mais restrita, que é a ecológica. A reserva biológica é um pouco menos restrita que a ecológica. E todos esses modelos atendem à idéia do velho Ruschi. O problema é que o meio ambiente ainda está longe de ser prioridade nas políticas de investimentos governamentais no Brasil, faltando infraestrutura, fiscalização e incentivos.” Educação: o Projeto Arca de Noé

De forma diversificada, Augusto Ruschi fez valer suas idéias no campo educacional. “A metodologia do Projeto Arca de Noé foi desenvolvida como o primeiro método voltado para as questões ambientais – adaptado para o ensino escolar médio e fundamental. Tinha metodologias para os professores

Uma revolução: a reserva ecológica

Uma das primeiras revoluções propostas por Augusto Ruschi foi a definição do que deveria ser uma reserva ecológica. Em 1872, os Estados Unidos criaram o Parque Nacional de Yellowstone. No início do século 20, o Brasil criou as primeiras Unidades de Conservação: a Reserva Florestal do Acre (1911) e o Parque Nacional de Itatiaia (1937). Mas quais inovações apresentava o conceito de reserva ecológica defendido por Augusto Ruschi em Roma, em 1951, durante o Congresso Florestal da Onu? “Quando meu pai criou a reserva de Nova Lombardia, em 1948, em Santa Teresa/ES, não existia esse conceito de reserva ecológica que temos hoje”, esclarece André. A Convenção de 1933 para Preservação da Flora e Fauna realizada em Londres previa três características para os parques nacionais: áreas controladas pelo poder público; áreas para a preservação da fauna e flora, objetos de interesses estético, geológico

O Projeto Arca de Noé foi o primeiro método voltado para as questões ecológicas e foi adaptado para o ensino médio e fundamental com o objetivo de desenvolver a consciência ambiental dos alunos.

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desenvolverem o tema com seus alunos. Após a Constituinte de 1988, como não havia nada no gênero, criamos técnicas para auxiliar a implantação daquilo que preconizava a lei e suprir esse déficit. A maior dificuldade é a barreira cultural para esses novos métodos de ensino, para os quais os cursos de formação de professores não se ocupam muito, pois envolvem aulas de campo, ensino extraclasse e desenvolvimento de consciência ambiental. As pessoas temem reações contrárias, pois lhes falta habilidade para conduzir, administrar e harmonizar partes conflitantes. Outra grande dificuldade é a falta de recursos para fazer publicações, divulgações, filmes e treinamento de pessoal especializado. Nos últimos 25 anos já treinei mais de seis mil educadores ambientais – todos às minhas próprias custas”, revela André, que já deu contribuições para a legislação ambiental no Brasil. Uma das suas ações mais relevantes foi a redação de quase 100% do texto do capítulo de meio ambiente da Constituição Federal de 1988, artigo 225. Outro fato emblemático de sua carreira foi seu engajamento e combate pela preservação do Lameirão, em Vitória, considerado o maior manguezal urbano do mundo. Ações que buscam se reproduzir no Arca de Noé, que desde 1989 já atingiu cerca de 280 mil estudantes, em mais de 1.800 excursões realizadas nas seguintes áreas de visitação: Estação Biologia Marinha Ruschi, Casa Augusto Ruschi e Parque Florestal Augusto Ruschi, todos localizados em Santa Teresa/ES, além da Chapada Diamantina, em Mucugê, na Bahia. A proposta é desenvolver nas crianças e jovens o conceito de harmonia na relação entre o homem e a natureza, estimulando o melhor aproveitamento do processo tecnológico visando à manutenção dos processos vitais do meio ambiente. A maior parte do acervo científico de Ruschi, além de seus trabalhos publicados em boletins, é constituída de cerca de 50 mil slides – que registram as suas expedições e incursões em florestas. Tudo isso está com André. “Estou organizando um projeto para a manutenção e a conservação ideais do mesmo, inclusive sua digitalização. Uma parte dessa história já está exposta ao público na Casa Augusto Ruschi. As fotos estão separadas por temas, mas ainda não estão totalmente catalogadas. Uma grande parte de seus manuscritos também está neste acervo. Quase tudo publicado e digitalizado – ainda resta publicar 11 livros inéditos. Estou também organizando para o futuro – o mais breve possível – uma nova forma de acesso via internet. Já temos algo no site augustoruschi.com. br. No momento, a maior dificuldade é a falta de recursos financeiros para organizar a obra de dimensões enciclopédicas, para o que estamos solicitando, gentilmente, parceiros amigáveis.” Fica, então, a torcida para que a chancela especial do Conarq viabilize, de fato, os projetos de preservação do acervo de Augusto Ruschi. Uma atitude merecida, justa. E, por fim, sustentável. 42

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No quadro caótico do Espírito Santo, um retrato do Brasil Jornal da ABI – Na década de 1950, Augusto Ruschi iniciou a discussão sobre o uso de agrotóxicos e seus efeitos sobre ecossistemas. O Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo liberou, em março de 2012, o uso de mais 16 agrotóxicos, atingindo 1.010 tipos usados no Estado. Ao mesmo tempo, a Anvisa destacou que a produção capixaba contém altos teores de resíduos, encontrados em 27,4% dos alimentos produzidos no Estado. As denúncias de Augusto sobre o uso indiscriminado de agrotóxicos foram em vão?

André Ruschi – Não, não foram em vão, pois a partir dessa descoberta científica – o uso abusivo de agrotóxicos na lavoura – feita por ele, ainda em 1947, a comunidade científica começou a visualizar vários problemas que levaram a uma transformação mundial e progressiva dessas práticas. No entanto, o setor carece de pesquisas para soluções alternativas que tornariam os agrotóxicos como prática superada. Quando integrei o Conselho Estadual de Saúde do Espírito Santo, entre 1999 e 2005, propus resolução tornando obrigatório que cada Município realizasse um estudo epidemiológico da saúde do trabalhador e que apresentasse os resultados à Secretaria de Saúde. Após esse prazo, os Municípios só passariam a receber verbas da Secretaria estadual depois de apresentarem plano de intervenção e tratamento dos problemas detectados. Como delegado na 12ª Plenária Nacional de Saúde, em 2003, consegui a aprovação dessa resolução como diretriz nacional do Ministério da Saúde. Mas ela não foi implantada até a presente data. André Ruschi: O manguezal é mais importante que a floresta amazônica.

Jornal da ABI – Seu pai apoiou a causa da proteção à Amazônia, contra seu desmatamento e ocupação irregular, contrariando os interesses da ditadura militar e de grandes grupos econômicos. A sociedade brasileira está despreparada politicamente para discutir as grandes questões ambientais?

André Ruschi – Nós vivemos numa civilização eminentemente urbana e industrial. Nos centros urbanos vivem praticamente 80% da população mundial. Os 20% fora deste contexto industrial e urbano são extremamente pobres e vivem numa cultura medieval. A maioria dominante não conhece e nem vivencia a cultura florestal. Para a maioria dos brasileiros a Amazônia é um lugar de turismo e de algumas histórias e lendas. Coisas que soam de maneira distante, como uma erva medicinal milagrosa, um peixe raro e colorido, uma árvore gigante, uma mina de ouro escondida no meio da selva, uma grande caverna com vestígios de antigas civilizações. Os condicionamentos culturais do povo brasileiro, na sua grande mai-

oria, não estão direcionados para a situação ambiental. Por exemplo, sem manguezal não existe possibilidade de vida no planeta Terra tal e qual a conhecemos hoje. O manguezal é mais importante que a floresta amazônica. Cerca de 80% do oxigênio da atmosfera se originam das algas diatomáceas, que nascem e iniciam seu ciclo de vida no manguezal. Sem elas não existiria atmosfera do jeito que a conhecemos. O manguezal é que faz a retenção dos nutrientes trazidos pela erosão dos continentes, de maneira que os mesmos não sejam perdidos para os abismos profundos e sem luz dos oceanos. Pela cadeia alimentar esses nutrientes retornam ao continente, mantendo-o fértil e não deixando o ambiente terrestre transformar-se em areia estéril. A outra função do mangue, que é a mais conhecida e menos importante dos que as anteriores, é servir de berçário de espécies marinhas, especialmente de peixes de superfície. O mangue é o solo sagrado do

planeta Terra. A lama vermelha bíblica do Gênesis é a terra dos mangues. Um juiz ou um prefeito só autoriza ou planeja expansões urbanas e ocupações humanas em manguezais porque desconhece isso, embora existam leis de proteção destes locais. Jornal da ABI – O senhor poderia aprofundar a questão ambiental que envolve os manguezais?

André Ruschi – Veja o exemplo aqui de Vitória, capital do Espírito Santo. Temos um manguezal que corresponde a 5% da área de manguezais do País, mas que realiza um processo ecológico que atinge área aproximada de mais de 1,5 milhão de quilômetros quadrados. Se considerarmos também os manguezais de Nova Almeida e Santa Cruz, cidades a 50 quilômetros ao Norte de Vitória, esses processos atingem cerca de dez milhões de quilômetros quadrados, tanto no oceano quanto no continente. Pois em frente ao litoral


ocorrem fenômenos de correntes que formam criadouros e bancos de algas, em boa parte subordinados aos processos ecológicos interdependentes destes ecossistemas de manguezais, e que atuam como produtores de oxigênio, fixadores de CO2, fornecedores de umidade e barreiras climáticas. É como se fosse Amazônia no mar. É das mais importantes e significativas áreas marinhas do planeta. Apesar dessa relevância, parte do desenvolvimento urbano, industrial e portuário da região está baseada na ocupação de um terço dos manguezais. Mesmo com reservas ambientais demarcadas, ainda hoje é comum vermos candidatos à eleição fazerem, em seus programas eleitorais, alusão ao progresso prometendo transformar manguezais capixabas em áreas aterradas e urbanizadas. Obviamente, isto é uma imbecilidade. Jornal da ABI – Os grandes projetos industriais que se instalaram no Espírito Santo – tais como Vale, a siderúrgica de Tubarão, Samarco Mineração, Aracruz Celulose e Petrobrás – causaram estragos ambientais. Capitalismo e ecologia são necessariamente conflitantes?

André Ruschi – Atualmente 50% dos bens que existem no mundo pertencem às 300 famílias mais ricas, sendo que apenas 17 dessas famílias (as mais ricas das ricas) são donas de 20% dos bens, ou seja, aproximadamente 200 pessoas são donas de um quinto de todos os recursos do planeta. Se todas as pessoas do mundo fossem iguais às pessoas dessas 17 famílias, no mundo inteiro só caberiam dez mil pessoas. Então, é óbvio que o planeta não foi feito para acumular riquezas dessa maneira, pois esse modelo inviabiliza a interação desses muito ricos com pessoas normais, tornando-os alienados por sua própria realidade de ricos. Isso é uma doença mental não curável por métodos normais. O capitalismo ponderado é ferramenta extremamente prática, capaz de equacionar transformações positivas e aliadas da ecologia. Hoje, problemas ambientais em curso só serão solucionados através de projetos auto-sustentáveis com financiamento próprio, o que é uma gestão capitalista. O erro do capitalismo está no excesso e no conflito pelo poder. No momento em que o capital abandona a ciência, o bom senso e a moral, se tornam armas de alto poder destrutivo. E este é o problema. Todas estas empresas tiveram grandes problemas em sua implantação e ainda terão nas suas operações atuais. Porém algumas delas foram capazes de equacionar, de maneira inteligente e produtiva economicamente, seus impactos ambientais. Por meio dessa gestão mais ecológica, até aumentaram sua lucratividade. Jornal da ABI – Augusto Ruschi denunciou na década de 1970 a criação do Porto de Tubarão – exportador do minério de ferro explorado pela Vale em Minas Gerais – em local totalmente inadequado. Como equacionar o problema da poluição do ar, carregado de partículas de minério de ferro, que atingem em cheio a capital capixaba?

O engajamento de André Ruschi pela preservação do Lameirão, considerado o maior manguezal urbano do mundo, já atingiu cerca de 280 mil alunos.

André Ruschi – Quando integrei o Conselho Estadual do Meio Ambiente do Espírito Santo e o Conselho Municipal do Meio Ambiente de Vitória revisei as licenças da Vale e da Companhia Siderúrgica de Tubarão-CST, criando condicionantes para o funcionamento das mesmas. Boa parte foi aprovada e implementada por aquelas empresas, mas outras que representavam maior custo não foram aprovadas, sendo eu, voto vencido, em função da manipulação e influência dos conselheiros representantes dessas empresas dentro desses Conselhos. Entre as principais questões envolvidas está a contenção do material particulado oriundo dos estoques em pátios abertos, mas que deveriam ser estocados em galpões fechados para escaparem da ação contínua dos ventos. Outro ponto seria o pedido de que as esteiras de transportes deveriam estar

todas cobertas ou em tubos para evitar esse carreamento atmosférico de material particulado. Mas a principal questão, não abordada a não ser por mim e sempre negligenciada pelo Ministério Público em suas ações, é que a poluição mais ofensiva para a população não é a visível provocada pelo material particulado – o pó preto. É a poluição invisível de gases liberados na atmosfera, principalmente o SO2 (dióxido de enxofre). Este, em contato com a umidade, se transforma em ácido sulfúrico, substância que é altamente corrosiva e degenerativa do sistema respiratório. Além deste, a operação siderúrgica da CST, principalmente, libera mais de 230 tipos de hidrocarbonetos sob a forma gasosa, todos eles de efeito deleté-

rio à saúde humana, inclusive alguns cancerígenos. Da mesma forma, o pó de carvão é reconhecidamente uma das substâncias de maior poder cancerígeno existente. A longo prazo, em algum momento, 100% da população local serão afetados com algum sintoma provocado diretamente por tais substâncias. Jornal da ABI – E a questão dos lixões?

André Ruschi – Os lixões e aterros sanitários são coisas inventadas para disfarçar as falhas da civilização moderna. Os aterros sanitários apareceram como salvação e pretensa solução para os lixões. Porém, são a face legalizada da imprudência. Um aterro sanitário após o esgotamento de sua capacidade fica fechado, mas o seu efeito deletério sobre o meio ambiente se fará perceber após quatro ou cinco décadas e até cinco séculos depois do seu fechamento. O aterro sanitário continuará liberando diversas substâncias tóxicas após a decomposição de matérias como o plástico, que virão a contaminar o solo e os lençóis freáticos de vasta região no seu entorno, funcionando como verdadeiras bombas químicas de efeito retardado e que ninguém se lembrará de monitorar daqui a 100 anos. É a mesma coisa que jogar o lixo debaixo do tapete. Jornal da ABI – Segundo a Companhia Estadual de Saneamento do Estado do Espírito Santo-Cesan, Vitória é a primeira capital brasileira a ter 100% de esgoto coletado e tratado. O que significa isso para os moradores da cidade?

André Ruschi – Esse tratamento integral, sendo de fato real, será a única boa notícia nos últimos 500 anos para os manguezais da ilha de Vitória. No entanto, é bom prestar atenção que vultosos desvios de verbas para estas obras já foram detectados nos Governos anteriores, objetos de várias CPIs. O Ministério Público precisa manter vigilância constante para que isso não se torne mera propaganda que caracterize falsidade ideológica. Pelo que sabemos, até agora nem 10% dos estabelecimentos estão conectados à rede de esgoto.

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EDUARDO KNAPP/FOLHAPRESS

VIDAS

Gorender e a coerência necessária Autor do clássico Combate nas Trevas, sobre a luta armada na ditadura, historiador marxista morreu em junho aos 90 anos e deixa como legado um exemplo de paixão em tudo o que fazia. P OR G ONÇALO J ÚNIOR Há seis anos, em entrevista ao jornal Margem Esquerda, o soteropolitano Jacob Gorender comentou sua idade e a expectativa de vida. Estava com 84 anos e se dizia com boa saúde. “Meu pai viveu 90 anos e minha mãe, 85 anos, ou seja, ainda não cheguei à idade deles e tenho mais recursos médicos”, disse ele, bem humorado. Se tivesse tempo, inspiração e força, acrescentou o historiador, pretendia escrever um livro sobre o ex-ditador cubano Fidel Castro. Pretendia compará-lo ao líder (e ditador) russo Joseph Stalin (1878-1953), dois governantes que se destacaram inspirados pelo marxismo. “Admiro o heroísmo de Fidel, de ter feito de Cuba um baluarte do projeto de socialismo, apesar de ser um país pobre e vizinho dos Estados Unidos. Mas preferiria que em Cuba houvesse uma democracia socialista. Como seria, não sei. É um ideal. Algum dia será realidade.” Gorender morreu em São Paulo, no dia 11 de junho, com a mesma idade do pai e sem lançar o livro que planejava. Seria mais um, certamente, dentre os muitos conceituados títulos que fizeram dele respeitado como um dos mais importantes historiadores marxistas brasileiros. Foi como estudioso que seu nome se impôs nos últimos trinta anos, em obras fundamentais para se compreender a História e a vida política nacional, com livros como A Burguesia Brasileira (1981) e Combates nas Trevas (1987). Virou referência também sua tese O Escravismo Colonial, de 1978, definida por historiadores como um trabalho de perfil revolucionário, na medida em que supera o debate sobre o caráter do passado do Brasil – feudalismo e capitalismo. Em seu estudo, apresentou uma teoria para a compreensão da História colonial e imperial brasileira a partir da apresentação do modo de produção definido como historicamente novo – o escravismo colonial. O professor da Usp e jornalista Eugênio Bucci o descreveu em seu obituário como militante comunista, historiador e intelectual que tinha “a voz aguda, contida, quase delicada”, que não denunciava “a fortaleza moral e o texto destemido que marcaram seu caráter”. Lembrou que Gorender jamais se dobrou a nada em sua vida exemplar: ao dinheiro, à pobreza, às chantagens psicológicas dos camaradas patrulheiros e à força bruta. “É desses que deixam por biografia uma linha reta e austera. Seguiu seu próprio pensamento, seu próprio juízo, e nos legou uma obra essencial”, acres-

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centou. No final da década de 1980, quando foi editor da revista Teoria & Debate, Bucci teve a honra de se aproximar desse que chamou de grande homem. “A primeira lembrança que guardo dele é o espírito crítico. Naquele tempo, quando a ortodoxia fanática ainda ditava – por inacreditável que possa parecer – a postura da militância de esquerda, com uma descabida reverência em relação a nomes de criminosos como Joseph Stalin, Gorender ensinava a autonomia intelectual e a razão livre, atributos que carregava pelo menos desde os anos de 1950 e que lhe cobraram um preço demasiadamente alto.” O ex-militante veio à luz em Salvador, Bahia, em 20 de janeiro de 1923, como filho mais velho de imigrantes judeus russos que desembarcaram na capital baiana em fuga da fome e da miséria. Por muitos anos, a família viveu com recursos limitados. Ao Margem Esquerda Gorender recordou que eram cinco irmãos, todos homens – um deles, José Gorender, tornar-se-ia um dos mais respeitados críticos de cinema da Bahia. “A minha família era paupérrima, por diversas circunstâncias. Cheguei a passar fome, tive alimentação deficiente, que influenciou minha saúde, pois fiquei enfraquecido.” Quando seu pai se casou pela segunda vez com aquela que seria sua mãe, tinha cinquenta anos e sem o vigor necessário para executar o trabalho que os judeus faziam de mascates, de ir às periferias vender utensílios domésticos, além de bolsas, sapatos, cortes de fazenda etc. “Um judeu ia à frente, com uma caderneta, e um negro ia atrás, com um baú. Lembro-me de que eles anotavam tudo na caderneta e os negros, pardos e mulatos, seus clientes, eram de uma honestidade absoluta”. Para reforçar o orçamento, conseguiu um emprego, por meio da comunidade judaica – entregar pães pela manhã. A comunidade judaica em Salvador, ao contrário do que poderia parecer numa cidade de maioria negra, era grande e articulada. Gorender e os irmãos estudaram na escola israelita Jacob Dinenson. Depois, fez o ginasial clássico, de quatro anos, no Colégio da Bahia, instituição estadual das mais conceituadas daquela capital. “Lembro que tive um tênis que furou e precisei tapar com papelão para continuar calçando.” Como era bom aluno, poderia passar no vestibular da faculdade de Direito, mas a família não tinha dinheiro nem para pagar a taxa de inscrição. Assim, perdeu um ano. Quem o socorreu foi o amigo Ariston Andrade, que trabalhava na Infraero e lhe arranjou emprego em O Im-

parcial, que pertencia à família do Coronel Franklin Albuquerque, que comprou o jornal para defender seu monopólio da produção da cera de ouricuri, usada na época para fazer discos de vinil. Era um emprego de arquivista, setor, segundo ele, “com um pó tremendo”, implacável para quem sofria de rinite, como era seu caso. Mas logo o secretário de Redação Edgard Curvelo, um típico coordenador de jornal, daqueles que gritavam com todo mundo, percebeu suas potencialidades e o colocou na seção Internacional. “Recebíamos o noticiário via rádio da Associated Press e eu editava.” Em seguida, transferiu-se para o tradicional Estado da Bahia, dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Aprovado no vestibular, Gorender não chegou a concluir a faculdade de Direito porque decidiu se alistar como voluntário da Força Expedicionária Brasileira-Feb, criada para lutar ao lado dos países aliados contra o exército italiano na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Como pracinha e judeu, combateu bravamente o antissemitismo que tomou conta da Europa. Antes de embarcar, o comunismo entrou em sua vida. Foi recrutado por Mário Alves, que conhecera na militância estudantil e a quem dedicou o livro Combate nas Trevas. Com o fim do conflito e a volta vitoriosa dos pracinhas, os dirigentes nacionais do PCB, cuja sede ficava no Rio de Janeiro, convocaram-no para trabalhar em A Classe Operária, jornal semanal do partido. “Eu aceitei mudar de Salvador para o Rio, embora sou-

besse que isso ia magoar meus pais.” A partida aconteceu no final de 1946. Além do semanário, Gorender colaborou com o diário Tribuna Popular, que seria fechado quando veio a ilegalidade do Partido. ”Como eu não havia participado de nenhuma ação direta, vivia legalmente.” Nessa época, ajudou a fundar a Associação dos Ex-Combatentes, que se reunia em um edifício de uma entidade chamada Liga de Defesa Nacional. Ele permaneceu no Rio por sete anos e se mudou para São Paulo em 1953. Lá, conheceu Carlos Marighela, primeiro-secretário do PC em São Paulo. Ocupou o posto de segundo-secretário de propaganda. “Eu lia muito, tinha muita curiosidade. Stálin e Lênin, todos éramos obrigados a ler. Depois do Estado Novo, a literatura marxista tornou-se mais disponível. Recebíamos as obras basicamente em castelhano, algumas em francês.” No PCB, Gorender exerceu cargos importantes em sua estrutura e chegou a passar uma temporada de aprendizado em Moscou. Até ser expulso da entidade e ajudar a fundar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), para lutar contra a ditadura militar. E foi às últimas conseqüências, fato que o levaria para a prisão em 1970, onde foi torturado e condenado a dois anos de detençãocomo subversivo. Ao Margem Esquerda ele contou: “Fizemos uma reunião de militantes divergentes em Niterói e ali surgiu a idéia de fundarmos um outro partido. Marighela não foi, pois já estava atuando por conta própria, com o que viria a se tornar a Ação Libertadora


Nacional (ALN). Mas nós queríamos ter um partido, então mantivemos a sigla e agregamos o R – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. O PCB, com Giocondo (Dias) e (Luis Carlos) Prestes, já não nos interessava, e dele fomos expulsos em 1967.” Segundo ele, o PCBR chegou a fazer algumas ações armadas no Rio e em Recife. “Eu era o responsável pelo PCBR em São Paulo e aqui não permiti nenhuma ação armada. Era um núcleo não muito grande e procurávamos influir por meio da imprensa, da publicação de folhetos, entre outras atividades.” Mesmo assim, acabou preso no dia do seu aniversário, em 20 de janeiro de 1970, e levado para o Presídio Tiradentes. Processado e julgado pela Justiça Militar, foi condenado a dois anos de reclusão, uma vez que não tinha cometido assaltos. Foi acusado apenas por atividades subversivas. Antes disso, foi torturado. “Não tanto quanto Mário Alves”. Ao sair da cadeia, abandonou a militância partidária. “A primeira coisa que fiz para ganhar a vida foi tradução, do espanhol e inglês principalmente, para a Editora Ática. Trabalho penoso, nem sempre tradu-

zia o que gostava.” Decidiu focar num outro caminho, a partir do veio intelectual, ancorado em base sólida, adquirida como professor em cursos do PCB e jornalista de várias publicações comunistas, além de formulador teórico do partido. Dedicou-se, então, a obras sobre a História do Brasil, inicialmente todos publicados pela Editora Ática, de São Paulo. Na década de1980, Jacob Gorender resolveu escrever sobre a ditadura militar. “Era necessário contar o que houve para fazer a autocrítica da esquerda”, justificou. O País vivia a redemocratização e o assunto da hora era a Constituinte de 1986, que produziria a Constituição de 1988. Queria contar o que foi a “violência pavorosa” da ditadura, com os órgãos de tortura como Doi-Codi e Operação Bandeirante, que assassinaram presos políticos. Não ficaria de fora o lado da esquerda, dos assaltos a banco, dos seqüestros de embaixadores e os justiçamentos. Com a ajuda de amigos, pôde se dedicar à pesquisa e à escrita de Combate nas Trevas. A obra foi ovacionada e, depois ampliada. “Consegui outras entrevistas que antes, por receio, não eram dadas”.

Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: Das Ilusões Perdidas a Luta Armada foi lançado em 1987 e levou oito anos para ficar pronto. Gorender começou suas pesquisas em 1979, após a decretação da Lei da Anistia. No texto, combinava um imenso e pioneiro trabalho de pesquisa com testemunho pessoal sobre os fatos ocorridos entre os grupos da esquerda brasileira, desde a época pré-1964 até o começo dos anos de 1970, quando a guerrilha urbana foi dizimada pela repressão do Estado. Tornou-se um dos livros que narra de maneira mais detalhada os violentos embates ocorridos entre grupos guerrilheiros como a ALN (Ação Libertadora Nacional) e VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e as forças militares e policiais da repressão política durante os Anos de Chumbo, com vários depoimentos de participantes dos fatos ocorridos. Ao fazer uma reflexão de sua vida, há alguns anos, disse que sua vida dedicada à política e ao idealismo de lutar por um mundo mais justo poderia ser diferente. “Muitas coisas que acontecem levam a tal ou qual caminho na vida, mas seria difícil que fosse diferente”, observou. Lembrou que

veio de uma família muito pobre, o que o empurrava à esquerda, movida pelo ódio ao capitalismo. Tornou-se um materialista, antes de conhecer o marxismo, através de Charles Darwin e sua teoria sobre o evolucionismo. Suas convicções socialistas anticapitalistas se formaram solidamente nesse período e duraram até o fim da vida. “É claro que tantas coisas aconteceram, veio o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, as revelações do Kruschev, a dissolução da União Soviética, depois voltei em 1991 a São Petersburgo, Hungria e Polônia, onde pude conversar com muitos adeptos dos partidos comunistas daquela época.” Gorender viu pela televisão, em Varsóvia, o último discurso do Gorbatchev, que já não governava mais, no momento em que baixaram a bandeira de União Soviética e hastearam a da Rússia. “E a Rússia se tornou um país entrosado no capitalismo, à sua moda, com grande presença do Estado, sem dúvida, mas capitalista.” Nada disso, porém, arrefeceu o idealismo que o fez viver ao menos tanto quanto seu pai. E será para sempre um exemplo de integridade a ser copiado.

MONIQUE CABRAL/AGÊNCIA O GLOBO

Na inteligência de Scarlet Moon, o brilho da própria luz P OR P AULO C HICO Sobre ela, o baiano Caetano Veloso escreveu na canção Língua, de 1984. “Adoro nomes, nomes de nomes, como Scarlet Moon de Chevalier”. Pois, mais que dona de um nome singular, Scarlet foi uma mulher plural. Jornalista, atriz, escritora e agitadora cultural, esta carioca deixou a marca de sua inteligência no País. Vítima da Síndrome de Shy-Drager, uma doença degenerativa, ela sofreu parada cardio-respiratória em casa, onde faleceu, aos 62 anos, no dia 5 de junho. Como jornalista, trabalhou em diversas emissoras de televisão, e se destacou no Fantástico e Jornal Hoje, da TV Globo, na década de 1970. Ao lado de Nelson Motta, comandou o programa Noites Cariocas, nos anos 1980, na TV Record. Ainda desenvolveu carreira no cinema e no teatro. Nos anos 1990, lançou dois livros: Areias Escaldantes e Dr Roni e Mr. Quito: a Vida do Amado e Temido Boêmio de Ipanema, biografia sobre o irmão Roniquito. Desde 1996, assinava a coluna Abalo, no caderno Zona Sul de O Globo. Scarlet foi casada por 28 anos com o cantor Lulu Santos, de quem se separou em 2006. “Perdemos Scarlet, todos nós, e isto é devastador em alguma medida pra cada um. Para mim é imensurável”, escreveu ele em seu perfil no twitter. Numa seqüência de posts, o artista reproduziu um trecho da música Tão bem: “Ela me encontrou, eu estava por aí num estado emocional tão ruim, me sentindo muito mal, sozinho, perdido, andando de bar em bar...”. Logo em seguida, numa série de mensagens, Lulu escreveu: “Nos separamos, mas nossa história, como se diz, marcou. Os últimos

anos foram uma batalha morro acima contra uma devastadora doença degenerativa que lhe roubou a vida em vida, e isto, em mim, sempre doeu a mais não caber. Perdemos Miss Moon para uma moléstia cruel, mas não em nossas memórias. A beleza incomum, a inteligência aguda, a gargalhada fácil, o desvelo com os seus são seu legado para nós. Viva Scarlet Moon de Chevalier!!! A pessoa, o nome e a lenda, e, sem esquecer, as canções que fiz pra você, Sinhá!” Além de Lulu e Caetano, a jornalista foi musa da roqueira Rita Lee, que batizou uma de suas canções com seu nome. “Escarlete, lua serenata. Colombina, ela só combina com a prata, com a luz do sol. É minguante, num quarto crescente, debaixo do lençol. Lua nova, blue moon, vira rosa. E fica toda cheia”, enaltece a letra. “Moça bonita como você não deveria morrer”, queixou-se Rita nas redes sociais. “A Scarlet era uma mulher à frente do seu tempo, sempre abrenhada com tudo. A impressão que eu tenho é que há um tempo ela me pegou pela mão e disse: vem aqui comigo! Tinha sempre um livro pra sugerir, sempre algo que havia descoberto. Era uma pessoa generosa, amiga amada, com quem tive o privilégio de dividir a cena. Dirigi espetáculos dela, que foi uma das primeiras a fazer talk-show no Brasil em casas de show. Ela fez o Entrevistando a Audiência na antiga boate Torre de Babel”, lembrou o ator Luís Salém. “Essa é uma doença muito cruel e devastadora. O que eu acho mais bacana é que ela tinha uma vontade de viver muito grande. O que ela já havia derrubado de previsão médica não está no gibi. Quando surgia a

Scarlet Moon: musa de Caetano Veloso e Rita Lee.

dificuldade, achávamos que ela ia enfraquecer. Mas ela dava a volta por cima. Ela saiu vitoriosa. Nessa luta, ela foi forte”, descreveu um dos três filhos da jornalista, Christovam de Chevalier. “Ela sofria dessa doença há anos. Nos últimos três piorou e nos últimos meses ela estava muito mal. Passava uma semana no hospital e outra em casa. A vida dela era o hospital. A guerreira foi descansar. As lembranças que guardo da minha mãe são o bom humor e o jeito como encarava a vida. Foi um prazer inenarrável ser filha dela”, emocionou-se Theodora, a caçula. A Síndrome de Shy-Drager causa danos progressivos ao sistema nervoso autônomo, provocando sintomas como tremores musculares, rigidez, movimentos len-

tos e perdas neurológicas generalizadas. Por fim, dentro os diversos artistas que manifestaram pesar pela morte de Scarlet, um dos depoimentos mais emocionantes partiu do escritor Paulo Coelho. “Nem lembro quando e onde a conheci, mas éramos jovens, em um tempo que as pessoas simplesmente se encontravam. Estávamos abertos para os encontros. Ela sempre me impressionou pela firmeza das opiniões. A única coisa que lembro do nosso primeiro encontro foi uma discussão acirradíssima que tivemos, nem recordo o motivo. Nós dois defendíamos até a morte nossos pontos de vista. Na hora, lembro de ter pensado: ‘Essa garota vai me odiar depois disso’. Mas achei uma pena, porque era uma pessoa legal. Dois dias depois, ela me encontrou e pediu: ‘Não me odeia, Paulo, porque eu gosto de você’. Disse que tinha pensado a mesma coisa. Não viramos amigos íntimos depois, mas ela sempre me trazia coisas boas. Admirava a sua generosidade. Ela vai fazer muita falta.” O corpo da jornalista foi velado na Capela 5 do Cemitério São João Batista, em Botafogo, na Zona Sul, tendo sido cremado no Cemitério do Caju, Zona Portuária, no dia 6 de junho.

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O cinema perde o fecundo Miguel Borges Precursor do Cinema Novo, ele foi também um destacado jornalista no Rio de Janeiro. FERNANDO RODRIGUES/AGÊNCIA O GLOBO

P OR C LÁUDIA S OUZA Um dos mais fecundos cineastas brasileiros, Miguel Borges, 76 anos, morreu no dia 17 de junho em São Lourenço, Minas Gerais, onde residia e editava a revista 2016, da Sociedade Brasileira de Eubiose. Segundo Maria Elisa Garcia, mulher do cineasta há 29 anos, Miguel estava em casa quando passou mal, com problemas respiratórios. O sepultamento ocorreu no dia seguinte em São Lourenço. Ele deixou um filho. Nascido no Piauí e criado no Maranhão, Miguel Borges se estabeleceu no Rio de Janeiro a partir de 1955. Antes de começar a fazer cinema, trabalhou nas Redações dos jornais O Metropolitano, Tribuna da Imprensa, Última Hora e Jornal do Commercio. Miguel tornou-se um dos precursores do Cinema Novo ao dirigir um dos episódios, Zé da Cachorra, do filme coletivo Cinco Vezes Favela (1962), um marco da estética do Cinema Novo, produzido pelo Centro Popular da Cultura da Une. No ano seguinte, atuou como ator em Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Ao longo da carreira, ele dirigiu os longas Canalha em Crise (1965), Perpétuo Contra o Esquadrão da Morte (1967), Maria Bonita – Rainha do Cangaço (1968), As Escandalosas (1970), O Barão Otelo no Barato dos Bilhões (1971), O Último Malandro (1974), O Caso Cláudia (1979), Consórcio de Intrigas (1980). E ainda os curtas A Festa da Maldição (1970), Radar Cativo (1970), Zona Oeste (1971), O Jovem e o Mar (1972), Projeto Cabo Frio (1972), A Lavagem do Cristo (1973), O Balé do Beija-flor (1974) co-dirigido por Rubem Braga; O Nadador do Infinito (1985), Os Sapatos (1985).

Em 1974 ele fundou a Miguel Borges Produções Cinematográficas, para a qual dirigiu e produziu O Último Malandro (1974) e produziu A Cartomante (1974), Fogo Morto (1976), ambos com direção de Marcos Farias, e Tensão no Rio (1982), de Gustavo Dahl. Ele atuou também como roteirista de Tati, A Garota (1973), de Bruno Barreto; A Noiva da Cidade (1978), de Alex Vianny; A Batalha dos Guararapes (1978), de Paulo Thiago; As Tranças de Maria (2003), de

Pedro Carlos Rovai. Na década de 1970, montou Emboscada (1971) e Fogo Morto (1976). Entre 1979 e 1980, foi Presidente do Conselho Nacional de Cinema-Concine. No Governo Collor ocupou o cargo de Secretário-Adjunto de Cultura da Presidência da República. O titular da pasta era Ipojuca Pontes. Em 1997, mudou-se para São Lourenço. Sua biografia integra a Coleção Aplauso – Cinema, sob o título Miguel Borges – Um

Lobisomem Sai da Sombra (2008), de Antonio Leão da Silva Neto. Lembranças O jornalista Pinheiro Júnior, Conselheiro da ABI, homenageou o amigo Miguel Borges com um texto, que tem o seguinte teor: “Minhas lembranças de Miguel Ex-Presidente do Conselho Nacional de Cinema-Concine, Miguel Borges foi um sensível cineasta brasileiro. Fez O Caso Cláudia e dirigiu um dos episódios de Cinco Vezes Favela (Zé da Cachorra), entre longas, curtas e médias-metragem e produções. Miguel foi a primeira pessoa que me falou de Vivaldi. Estávamos diante de um chope no Bar Luiz, na Rua da Carioca, no Rio e era o ano de 1956: – Você já ouviu Vivaldi? – me perguntou a propósito de João Sebastião Bach. Eu não conhecia Vivaldi. Fora dos círculos europeus iniciados poucos então tinham conhecimento do veneziano Antonio Lucio Vivaldi, talvez o maior dos renascentistas e barroquista sem par. Tratei de conhecê-lo. Conhecer Vivaldi era saber um pouco mais dos sentimentos e da arte de Miguel Borges. Pouco tempo depois ouvi o Concerto para Dois Bandolins. Nunca mais parei de ouvir Vivaldi. Na Rádio MEC, em meu programa Música de Sempre, toda vez que botava Vivaldi no éter me lembrava de Miguel Borges. Miguel Borges era também jornalista. Dirigiu a Redação do meteórico diário carioca A República na década de 1960. Com quem só não trabalhei… porque o jornal acabou depressa. Que Bach e Vivaldi o recebam em sua glória eterna.”

P OR C ESAR S ILVA Importante escritor e roteirista norteamericano, Richard Burton Matheson nasceu em Allendale, Nova Jérsei, no dia 20 de fevereiro de 1926, em uma família de imigrantes noruegueses. Formou-se em 1943 no Brooklyn Technical School e serviu na infantaria do Exército durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1949, formou-se em Jornalismo na Universidade do Missouri, mudando-se para a Califórnia em 1951, quando já estava publicando seus primeiros textos. Sua estréia editorial foi com o conto “Born of Man and Woman”, publicado em 1950 no Magazine of Fantasy and Science Fiction. Apesar de muito identificado com a ficção científica, Matheson tem trabalhos importantes em diversos outros gêneros, especialmente fantasia, horror e dramas épicos de guerra e faroeste. Sua produção reúne 25 romances e cerca de uma centena de contos. Seus trabalhos mais conhecidos são as novelas O Incrível Homem que Encolheu (The

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Shrinking Man, 1956) e Eu Sou a Lenda (I am Legend, 1964), ambos adaptados com muito sucesso para o cinema, o segundo três vezes, com Vincent Price, Charlton Heston e Will Smith revezando no papel do protagonista Robert Neville, o último ser humano vivo em uma Terra devastada por uma praga de vampiros. Matheson dedicou-se ao trabalho de roteirista e tornou-se um profissional respeitado e muito requisitado. Há histórias suas em seriados importantes como Além da Imaginação (Twilight Zone), Galeria do Terror (Night Gallery) e Jornada nas Estrelas (Star Trek). Também é dele o episódio-piloto de Kolchak e os Demônios da Noite (Kolchak: The Night Stalker), além de muitas adaptações das histórias de Edgar Allan Poe para produções de Roger Corman. Matheson também é autor do romance de fantasia Em Algum Lugar do Passado (Bid Time Return, 1975), levado aos cinemas em 1980 com Christopher Reeve no papel principal, e de Amor Além da Vida (What Dreams May Come,

1978), filmado em 1988 estrelando Robin Williams. Outro texto importante do autor é Encurralado (Duel, 1971) que chegou ao cinema no mesmo ano, na estréia do então desconhecido diretor Steven Spielberg. Matheson era um autor de opiniões controvertidas e, sempre que podia, não se furtava em criticar a falta de criatividade na tv e no cinema americanos. Sua ficção envolve principalmente os dilemas morais frente a situações limite, abordando de forma perturbadora questões psicológicas e sociológicas espinhosas, às vezes de forma dramática, noutras, satírica, que lhe valeu o respeito de seus pares, sendo citado como referência por autores como Ray Bradbury, Stephen King e Anne Rice. Essa característica está presente, por exemplo, no seu famoso conto “O Teste” (“The Test”, 1954), no qual um senhor idoso de uma sociedade futura tem que se submeter a um exame do governo para receber autorização para continuar vivendo. No Brasil, o autor foi bem publicado, muito devido ao seu envolvimento com o

REPRODUÇÃO

Richard Matheson, a lenda

cinema – um atrativo irresistível para os editores brasileiros – e alguns de seus títulos ainda estão em catálogo. Entre os muitos prêmios que recebeu, estão o World Fantasy Award (1984), o Bram Stoker Award (1991) e a inclusão de seu nome no The Science Fiction Hall of Fame, em 2010. Seu romance mais recente é Other Kingdoms, publicado em 2011 e ainda sem tradução no País. Matheson morreu aos 87 anos, em sua casa, em Calabasas, Califórnia, no último dia 23 de junho.


P OR C ESAR S ILVA No último dia 15 de abril, a literatura brasileira perdeu uma de suas mais expressivas personalidades, a tradutora, roteirista e escritora Tatiana Belinky, cujo trabalho nos livros, teatro e televisão entreteve e educou várias gerações de brasileiros. Tatiana nasceu em 18 de março de 1919, na histórica cidade de Petrogrado, hoje chamada São Petesburgo, na Rússia. Lá aprendeu, além do russo, o alemão e o inglês. Chegou ao Brasil aos dez anos de idade, em 1929, fugindo com a família da perseguição aos judeus que grassava em toda a Europa. Estudou no Mackenzie e começou a vida profissional trabalhando como secretária bilíngüe. Em 1939, matriculou-se no curso de Filosofia da Faculdade São Francisco, que abandonou para se casar, em 1940, com o médico e educador Júlio Gouveia (1914-1988), com quem manteve uma produtiva parceria, criando roteiros para as peças infantis que ele dirigia. Em 1952, depois de realizar o bemsucedido teleteatro Os Três Ursos para a TV Tupi, o casal foi convidado para fazer um programa fixo na emissora, que foi chamado de Fábulas Animadas. Também foi na Tupi que Tatiana fez os roteiros para a primeira adaptação das histórias de O Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato, autor que ela conheceu pessoalmente. O programa foi produzido ao longo de onze anos e é referência na produção audiovisual infantil brasileira. Paralelamente, Tatiana manteve uma respeitada e premiada atividade como tradutora de livros, especialmente de origem russa, de autores como Dostoiévski, Tólstoi, Górki, Gogol, além de clássicos alemães e ingleses. Em 1965, fundou e editou a revista Teatro da Juventude, e em 1972 passou a escrever crônicas e críticas literárias para os jornais Folha de S.Paulo, Jornal da Tarde e O Estado de S.Paulo. No mesmo ano, foi contratada pela TV Cultura, onde desenvolveu diversos projetos. Tatiana só começou a escrever seus próprios livros em 1985, aos 66 anos, mas o fez de forma tão fértil e constante que sua bibliografia conta com mais de 200 títulos, a maior parte dirigida para crianças, dentre os quais se destacam Limeriques (1987), O Grande Rabanete (1991) e Coral dos Bichos (2000), entre outros. O valor de sua obra foi reconhecido em 1989 pela Câmara Brasileira do Livro com o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária. Tatiana morreu aos 94 anos, em São Paulo, depois de um período de onze dias de internação no Hospital Alvorada.

Robert Appy, um pioneiro na área de economia Um dos pioneiros do jornalismo econômico no Brasil, ao qual dedicou 60 dos 87 anos que viveu, o economista e editorialista Robert Eugène Appy morreu no dia 7 de junho no Hospital Sírio Libanês, de falência múltipla dos órgãos. Nascido na França, Appy vivia há seis décadas no Brasil, para onde veio a convite de Julio de Mesquita Filho para escrever sobre economia no jornal O Estado de S. Paulo. Ao lado de Alberto Tamer e Frederico Heller, foi responsável pela composição do núcleo da editoria econômica do Estadão na década de 1960, uma das primeiras da imprensa nacional. Casado duas vezes, deixou quatro filhos, entre eles o ex-SecretárioExecutivo do Ministério da Fazenda, Bernard Appy. Ele foi indicado pelo jornalista Gilles Lapouge, hoje correspondente em Paris, para substituí-lo após decidir voltar para a França, depois de três anos de trabalho na Redação do jornal. A entrevista para o emprego foi feita pelo historiador francês Fernand Braudel, que mais tarde deu nome ao instituto que Appy ajudou a fundar. O primeiro texto, poucos dias depois, foi uma análise da economia soviética sob Gheorghi Malenkov, dividida em dois artigos, publicados em 15 e 18 de novembro de 1953. Antes que o ano terminasse, Appy já havia escrito comentários sobre assuntos tão diversos quanto o Congo Belga e os capitais estrangeiros, o entesouramento de ouro no mundo, a crise econômica da companhia cinematográfica brasileira Vera Cruz e a ofensiva japonesa nos mercados internacionais. Não foram poucos os ministros da Fazenda do Brasil que procuraram conhecer sua opinião a respeito dos mais delicados problemas econômicos do País. Appy também era um interlocutor freqüente dos diretores-gerentes do Fundo Monetário Internacional (FMI), a tal ponto que se tornou um dos primeiros jornalistas a antecipar que a reunião de Toronto, Canadá, em 1982, mudaria de maneira irreversível a relação entre os países industrializados e os emergentes. Robert Appy nasceu no dia 1º de junho de 1926 em Cavaillon, cidade do departamento de Vaucluse, na França, que guarda vestígios das invasões romanas. Fez o curso de Letras na Faculdade de Grenoble. Era também formado em Filosofia Escolástica pela Faculdade Católica de Lyon e em Economia pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). Começou sua carreira no jornal Combat, da capital francesa. Inicialmente, era redator especializado em questões universitárias. Foi depois promovido a Secretário de Redação. A seriedade que dedicava a cada matéria permitia que suas opiniões fossem baseadas numa idéia muito realista das questões e em dados precisos, que recolhia no seu arquivo pessoal, cuidadosamente organizado. Sua atuação tornou-se ainda mais efetiva com a criação pelo Estado, em 1957, da seção Atualidade Econômica, a primeira editoria de Eco-

MILTON MICHIDA/ESTADAO

A versátil Tatiana Belinky

nomia da imprensa brasileira, dirigida pelo jornalista austríaco Frederico Heller. Apesar de ter-se integrado muito rapidamente ao Estado e ao Brasil, Appy manteve colaborações nas revistas francesas Esprit e Revue des Sciences Politiques. Foi ainda correspondente dos jornais franceses Le Monde e L’Information Économique e Financière. Exerceu, durante anos, o cargo de conselheiro econômico do Banco Francês e Italiano para a América do Sul. Trabalhou ainda na revista Visão e foi conselheiro do banco Sudameris. Recebeu uma série de comendas e condecorações internacionais e brasileiras. Entre outras estão a Legião de Honra, concedida pelo Governo francês, a Ordem Nacional do Mérito da França, o Premio Presaenza d’Italia in Brasile, do Circolo Italiano, o Prêmio Abamec e o Prêmio BNP Paribas de Cidadania. Na juventude, Appy participou da resistência à ocupação alemã da França. No Brasil, ajudou amigos presos durante a ditadura militar. Em 1987, lançou, pela Editora José Olympio, o livro Capital Estrangeiro & Brasil: um Dossiê, cuja apresentação começava com uma frase polêmica: “Este livro é a favor do capital estrangeiro, ou melhor… do Brasil.” E, ao longo da obra, explicava a aparente contradição: no sistema capitalista, o capital não tem pátria e sua função é contribuir para o de-

senvolvimento da economia, independentemente da localização geográfica. Appy manteve amizade próxima com autoridades que conheceu ao longo da carreira, como o ex-Presidente francês Giscard d’Estaing, o ex-Presidente da Comissão Européia Jacques Delors e os ex-diretores do FMI Michel Camdessus e Jacques de la Rosière. Embora já escrevesse no jornal desde 1953, Appy ingressou oficialmente no Estado em outubro de 1957, como tradutor. Em maio de 1964, passou a redator da Editoria de Economia, de que se tornou editor da seção em dezembro de 1974. Depois assumiu a função de editorialista. Aposentado em fevereiro de 1996, foi recontratado no dia seguinte, no mesmo cargo. Mesmo com dificuldades de locomoção, comparecia diariamente à sede do jornal para a reunião dos editorialistas com Ruy Mesquita, que faleceu no dia 21 de maio. Manteve essa rotina até um dia antes de ser internado. Chegou a enviar vários editoriais do hospital e de casa. Com atuante participação em diversas entidades, era membro dos Conselhos da Associação Comercial de São Paulo, da Fecomércio, do Liceu Pasteur e colaborava com a organização não governamental Projeto Quixote, que cuida de crianças em situação de risco. Apesar de reservado, não abria mão do bom humor.

JORNAL DA ABI 391 • JUNHO/JULHO DE 2013

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