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394 O UTUBRO 2013

ÓRGÃO OFICIAL DA A SSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

FRANCISCO UCHA


EDITORIAL

DESTAQUES

O FIM DE UMA ERA FRANCISCO UCHA

MAS MINHA AMIZADE com Maurício Azêdo não começou há tão pouco tempo. Foi em 1976 que o conheci. Ele havia chegado ao Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, juntamente com uma equipe de craques da imprensa, com a missão de renovar o diário que se encontrava decadente. Junto com ele, chegaram Aziz Ahmed, Antônio Calegari, Carlos Jurandir, entre outros. E eu, que tinha sido contratado havia poucos meses, depois de um período de estágio, fui contemplado com a maior das sortes: trabalhar (e aprender) com esses grandes nomes da imprensa. Eu era um dos diagramadores. Com Calegari, aprendi o refinamento e a precisão dessa profissão. Com Maurício, aprendi a editar e a ficar encantado na presença de um bom texto. Foi um privilégio ter mestres como eles. E eu ainda nem havia terminado a faculdade. Não importava: quem tinha companheiros desse naipe não precisava de tantos professores. Aprendia, sobretudo, na Redação. 2

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MUITO TEMPO DEPOIS soube que no ano em que nos conhecemos, Maurício Azêdo havia sido preso no Doi-Codi e barbaramente torturado pelos monstros que hoje se escondem atrás de uma questionável Lei da Anistia. Afinal, torturadores podem ser anistiados? Há coisas que só acontecem no Brasil! Mas, como ele mesmo dizia, fora salvo pelo então Presidente da ABI, Prudente de Moraes, neto, que não mediu esforços para livrá-lo das garras de seus algozes. Certa vez ouvi Maurício confidenciar que devia sua vida à ABI – fato que ajuda a entender sua opção por se dedicar por inteiro à Casa dos Jornalistas. Mesmo com tantas decepções, continuou sua luta para renovar a instituição. Sempre foi avesso ao culto da personalidade. Não admitia se promover usando a publicação que editava. Por isso, tive que manter segredo total quando a equipe do Jornal da ABI decidiu publicar matéria sobre ele na edição especial comemorativa do centenário da ABI. Afinal, seria injusto falar de todos os principais Presidentes e não falar daquele que organizou a grandiosa festa dos 100 anos. Maurício só tomou conhecimento daquela reportagem, publicada no número 336, de setembro de 2009, depois de o jornal impresso. E a primeira coisa que fez ao ler o próprio perfil foi... fazer a revisão! PAULO SILVA/TRIBUNA DA IMPRENSA

COMO ESCREVER NESTE espaço, ocupado com maestria nos últimos anos pelo imenso talento de um dos textos mais elaborados da imprensa brasileira? Como descrever a solidão da perda de um companheiro de trabalho absolutamente apaixonado pelo ofício de reportar notícias? É verdade: fizemos uma boa dupla desde que comecei a produzir o Jornal da ABI, em abril de 2005, na edição de número 299. Foram mais de oito anos trabalhando incessantemente, muitas das vezes – nas semanas de fechamento – entrando pela madrugada. Era assim mesmo: Maurício não reclamava, simplesmente porque esta publicação era a sua paixão. É a minha também. Acho que, por isso, a química funcionou tão bem. Não havia discussão, o trabalho sempre fluía perfeitamente. Em todos esses anos, ele nunca fez qualquer tipo de imposição de suas idéias, desmentindo todos aqueles que o classificavam como turrão. Não, ele era doce, de fino trato. Sempre houve um respeito profissional mútuo. E isso refletiu na qualidade do jornal, elogiada por grandes nomes de nossa imprensa.

ESTE NÚMERO DO Jornal da ABI ainda teve a sua participação. Pautas como a da Biblioteca da ABI (publicada na página 10) e da campanha O Petróleo é Nosso (página 12) foram, como de costume, entusiasticamente sugeridas por ele. No Caderno Especial em sua homenagem republicamos o desenho de Rogério Soud na capa e um artigo de seu grande amigo, Sérgio Cabral, na última página. Foi um prazer trabalhar ao seu lado por todos esses anos – e profundamente triste fazer esta edição. Perdi um mestre, um amigo, um companheiro de ofício. A solidão, que se fez tão presente neste fechamento, é claro, não estava na pauta. E ela determina não só o início de um novo e doloroso esquema de produção. Marca, em definitivo, o fim de uma era.

D.QUIXOTE, UMA RARIDADE NA BIBLIOTECA DA ABI, PÁGINA 10

03 DEPOIMENTO - O calvário de Álvaro ○

08 P RÊMIO - A bandeira do bom jornalismo ○

09 HOMENAGEM - A Memória e o Silêncio por Rodolfo Konder ○

10 R ARIDADES - Um tesouro nem tão escondido assim ○

12 CAMPANHA - O petróleo como combustível nacional ○

17 O PINIÃO - Ley de Medios, um exemplo a seguir ○

18 H ISTÓRIA - A Carta da Liberdade, 25 anos depois ○

20 DEPOIMENTO - “Meus filhos foram criados por meus inimigos” ○

22 R EFORMA - Impasse lusitano ○

24 I NTERNET - Abril abre espaço para o digital ○

25 L ANÇAMENTO - Revirando o velho baú de Pessoa ○

26 C ENTENÁRIO - Os sabores de Moraes ○

28 P ERFIL - Mário? Que Mário? ○

29 MANIFESTAÇÕES - Black Blocs: simples modismo ou real ameaça? ○

SEÇÕES 140L IB ERDADE DE I M P REN SA Conferência aponta entraves ao jornalismo investigativo ○

15 Jornalistas agredidos, coberturas ameaçadas ○

16 D IREITOS H UMANOS Páginas de um luta comovente, que novamente fazem história ○

V IDAS 30 Canini, O desenhista do Brasil nos quadrinhos ○

31 Norma Bengell A estrela salta das telas para as páginas ○

CACTUS KID, SÁTIRA CRIADA POR CANINI. PÁGINA 30


DEPOIMENTO JOSÉ DUAYER

Membro da Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro e autor do livro Tirando o Capuz, o jornalista Álvaro Caldas remexe em suas memórias e fala da batalha pública pelo esclarecimento dos crimes cometidos na Ditadura Militar.

A

pós alguma insistência, a entrevista foi marcada, confirmada. O endereço, por mais contraditório que pareça, fica num quarteirão tranquilo, próximo à Rua Tonelero, em plena Copacabana. É começo da noite, quinta-feira e Álvaro Caldas me aguarda. O início da conversa já é quente. Prisão. Tortura. Assassinatos. Arbitrariedades cometidas pelo regime militar, enfim. Como era de esperar de quem passou por tudo o que já viveu, ele parece um pouco desconfiado, reticente. Nos momentos mais tensos, fala baixo. Quase sussurra. Mas, a bem da verdade, jamais desconversa. Nada esconde. Foi assim que transcorreram as quase duas horas de papo com o jornalista Álvaro Caldas, que dedicou boa parte de sua vida a duas grandes paixões. A primeira delas, o Jornalismo – este mesmo, com letra maiúscula – que exerceu em grandes veículos e como colaborador em publicações alternativas como Opinião, Movimento, Pasquim e Em Tempo. A segunda, a militância política nos pesados anos de chumbo, lhe custou duas passagens aterrorizantes pelo Doi-Codi, no Rio de Janeiro. O mesmo prédio que visitou em setembro deste ano, agora em missão de reconhecimento, como membro da Comissão da Verdade do estado. Está tudo aqui, nas próximas páginas. Uma entrevista que reconstitui uma viagem para além de fantástica. Desconcertante, reveladora. POR PAULO C HICO

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Jornal da ABI – Você, de fato, havia participado da ação? Álvaro Caldas – Não, eu não participei, mas o meu carro particular foi usado em uma parte da operação de assalto ao banco. O carro utilizado na ação normalmente era quase sempre roubado, tinha placa fria e, após a ação, os militantes iam trocando de carro para despistar os policiais. Um policial percebeu essa troca, houve uma troca de tiros, uma pessoa foi presa e o meu carro apreendido. Tanto tempo faz isso... E veja você, eu já morava aqui, neste apartamento... Jornal da ABI – Assim, você acabou preso pela primeira vez... Álvaro Caldas – Nesta mesma noite eu acabei preso e, no Doi-Codi, passei por torturas sistemáticas: choques elétricos, pau-de-arara, nudez... A tortura sempre começa pela nudez... Jornal da ABI – Que é para fragilizar ao máximo a vítima... Álvaro Caldas – Fiquei ali mais de dois meses. Foi quando eu tive a

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Álvaro Caldas, cercado por parlamentares e jornalistas, durante a visita da Comissão da Verdade à antiga sede do Doi-Codi, na Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro. Abaixo, numa foto logo após sair da prisão, em 1973.

oportunidade de identificar o prédio onde estava. Eles ainda não tinham iniciado a prática de encapuzar os prisioneiros, então eu sei onde fui torturado, a sala, o corredor. E nesta visita do dia 23 eu pude identificar perfeitamente onde tudo aconteceu. Era um prédio utilizado para o PIC, o Pelotão de investigações Criminais, que era um órgão de repressão interna, que é uma das tarefas do Batalhão da Polícia do Exército (PE), onde está o Doi-Codi. O prédio continua lá. Ele não está exatamente a mesma coisa, mas continua a ser uma construção de dois andares, que reconheci imediatamente. Engraçado é que eu fui guia do grupo que entrou, da Comissão da Verdade. Comigo estavam nomes como o Wadih Damous, Presidente da Comissão, a Jandira Feghali, o Randolfe Rodrigues e a Luiza Erundina. Como a única pessoa que tinha estado ali, eu fui o guia. E eu tinha sempre muito medo de passar por aquela área. Jornal da ABI – Como foi a sensação de guiar os parlamentares pelas dependências de um prédio onde você foi torturado? Álvaro Caldas – Eu senti uma emoção muito forte, um tremor ao voltar ali, por que eu tinha uma idéia da entrada, das salas de comando do Doi-Codi, do corredor, onde tinham quatro celas, que eram salas, por que não tinham grades. A última delas, que nós identificamos como sala roxa, era a sala da tortura. Um grupo de oficiais do Exército nos acompanhou durante a visita. O comandante do Batalhão da PE, dois oficiais do Estado Maior e três oficiais do Comando Militar do Leste, todos generais.

E eu descrevendo o que tinha acontecido naquelas salas. Jornal da ABI – E qual a reação deles? Álvaro Caldas – Houve um silêncio total. Jornal da ABI – Mas um silêncio que denotava o quê? Constrangimento? Álvaro Caldas – Um misto de vergonha e respeito. Até por que estes oficiais, pela idade que aparentavam, cerca de 50 anos, não tiveram nada a ver com aqueles fatos. Para eles foi uma revelação estupenda, de um ex-preso político. E o pessoal da Comissão perguntando o que acontecia naquelas salas. E na época em que eu estive preso o Doi-Codi estava lotado. Eu fui preso junto com o Renê de Carvalho, que é filho do Apolônio de Carvalho, que já tinha passado por lá. E, nesta sala de espera onde eu fiquei com ele, nós ouvíamos gritos, chutes. Levaram primeiro ele para a sala de tortura, já que ele pertencia ao comitê central do partido, tinha uma patente maior do que a minha na organização. Eu fui em seguida e o vi arrastado, ferido, sendo colocado para fora e fiquei imaginando o que seria feito comigo. Tudo isso me veio à memória ali e eu narrei isso para os parlamentares. Tive que parar algumas vezes. Jornal da ABI – Quase que um guia turístico do terror. Você chorou? Álvaro Caldas – Não cheguei a chorar, mas a minha emoção foi muito forte. Um dos oficiais me ofereceu água inclusive, por que percebeu o quanto eu estava tocado por aquele momento. Desta primeira vez, fiquei ali 70 dias. O processo era

neralizar e dizer que não sei quem resistiu calado por ideologia é uma tolice... Porra nenhuma! Cada um sofre à sua maneira. Jornal da ABI – E nestes setenta dias em que você ficou preso, o que você viu de pior dentro do DoiCodi? Álvaro Caldas – Passada a fase inicial, eu fiquei em uma cela individual, num corredor longo, onde ficavam os presos ainda ‘disponíveis’ para a tortura. E aí de repente vinha alguém, falava de mim e eu era levado para um local onde, deitado, eu via o corredor, quem chegava e saía. Você fica ali duas noites, dois dias, perde a noção de tempo e o cara diz que vai te buscar em três horas para você ser novamente interrogado. Então, você imagina o terror psicológico desta situação. Depois que eles esgotavam estas possibilidades, nós subíamos onde tinha uma cela muito grande, onde ficavam as pessoas que já haviam passado por aquilo. E lá era um local de alegria, de confraternização, onde você encontrava pessoas conhecidas, que te ofereciam uma escova de dentes. Você tinha uma sensação de alegria. Lá eu encontrei companheiros como o Marcão, o Alcir, o próprio Fernando Gabeira passou por lá, muita gente da minha organização. Nesta cela grande eu fiquei quarenta dias. De vez em quando me chamavam para perguntar algo mas a tortura, por si só, cessou ali. Havia porrada, empurrões, ameaças, mas a tortura em si como método institucionalizado cessou após a minha transferência para esta cela maior, cerca de um mês depois que eu cheguei ao prédio. O que vi de pior foram o ambiente, a opressão que você sente e a total falta de direitos e garantias, como se você estivesse em um Estado totalitário. Você não tinha direito a advogado, nem visitas, nem comunicação com os amigos. Era um Estado ditatorial, arbitrário, com plenos poderes sobre você e a sua família. ACERVO PESSOAL

Jornal da ABI – E essa primeira prisão foi em que ano? Álvaro Caldas – Isso foi em fevereiro de 1970. Fui identificado por um companheiro que havia sido preso, passei a ser procurado e, de uma hora para outra, precisei largar tudo para viver na clandestinidade. Minha esposa, a Sueli Caldas, que é jornalista e era militante também, estava grávida na época da minha filha Claudia. E, num dia, eu fui pego na rua e preso sob a acusação de ser militante do PCBR e levado ao Doi-Codi. Havia uma acusação de envolvimento em um assalto a banco feito pelo PCBR...

TÂNIA RÊGO/ABR

Jornal da ABI – Gostaria de começar pelo fato mais recente. No dia 23 de setembro, você participou da visita da Comissão da Verdade à antiga sede do DoiCodi, hoje Batalhão da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Você estava acompanhado de parlamentares. Imagino que esse reconhecimento deve ter te marcado bastante, já que você por duas vezes esteve preso no local durante a ditadura militar. Qual foi a sensação de voltar àquele lugar? Álvaro Caldas – Eu passei por lá a primeira vez quando eu fui preso como militante pelo PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário). Muita gente acha que eu fui preso como jornalista, mas na verdade eu fui preso como militante. Na época, eu já trabalhava no Jornal do Brasil, era repórter especial da publicação, já tinha uma carreira consagrada, um certo nome após ter passado também pelo O Globo. Na época eu tinha essas duas paixões, a política revolucionária e o jornalismo em si.

você entrar e ser torturado para fornecer informação imediata. Então, passada esta fase, você fica analisando todas as possibilidades que podem te ocorrer, sem ter muita noção do tempo em que está ali. Se perguntando, às vezes, o que pode ou não pode dizer durante os interrogatórios. Se bem que isso é, quase sempre, uma decisão muito subjetiva. Jornal da ABI – Você chegou a delatar alguém da sua organização neste período? Álvaro Caldas – Genericamente. Aquilo ali era um jogo cujo preço é a dor, a humilhação, você tem que mediar a sua resistência. Na verdade, ninguém quer sair dali como herói. Quer, tão somente, preservar o mínimo de sua dignidade. Até por que você sabe que naquele processo vai acabar falando alguma coisa, mas tenta não ultrapassar um limite oral, ético. Mas, não é um julgamento político-ideológico, não. Ge-

Jornal da ABI – E como é que decidiram te soltar? Álvaro Caldas – Eu já tinha deposto no inquérito e eles precisavam daquele espaço para renovar as entradas. Eu cheguei a pegar o início de uma reforma, eles melhoraram as instalações. As celas começaram a ser mais adaptadas à situação que o Doi-Codi exigia. Por que antes aquilo era para soldado. Então eles construíram celas fechadas, com cadeado. Então, eu e um grupo, uns dez presos, fomos tirados da


Jornal da ABI – Você não retornou pra casa no horário esperado e ela permaneceu lá, te esperando... Álvaro Caldas – Isso! Ela estava presa no Dops, mas não passou pelo Doi-Codi, já que os militares tiveram a preocupação de preservá-la. Ela tinha acabado de dar à luz à nossa filha e sabiam que o envolvimento dela na organização era muito pequeno. Jornal da ABI – Voltando a falar da recente visita que teve você como guia, como viu o episódio do Deputado Jair Bolsonaro, militar reformado, empurrando o Senador Randolfe Rodrigues, membro da Comissão da Verdade? Álvaro Caldas – Aquilo foi uma provocação. Ele anda armado, né? E causou um impacto muito grande e deu à visita uma dimensão que talvez não tivesse – não fosse aquele fato. Por que a mídia tem coberto a Comissão da Verdade com pouco entusiasmo, inclusive. Jornal da ABI – O que explica isso? Álvaro Caldas – Atualmente nós estamos reduzidos a três grandes empresas de comunicação, familiares, todas elas envolvidas com a ditadura – Globo, Folha e Estado. Todas elas de formas diferentes, mas sendo que O Globo foi quem mais se envolveu com a ditadura. Já houve até um processo de reconhecimento público de que eles apoiaram o

JOSÉ DUAYER

cela maior e transferidos para estas menores. Naquele local eu fiquei poucas horas. Assim que entrei me senti muito mal, pois eu tenho claustrofobia. Eu comecei a entrar em desespero e, para minha sorte, logo que eu fui para esse local entrou o Cabo Gil, que era muito famoso por lá e mandou eu juntar o que tenho para sair e ir para o Dops. Ali eu fiquei pouco tempo, uma semana, dez dias. O Dops, que ficava na Rua da Relação, era o oposto do DoiCodi, nesta época. Ali era um local de prisão, mas não havia tortura. Foi um momento de alegria por que encontrei outros presos conhecidos e havia possibilidade de visita, do advogado conversar contigo e não havia tortura. O delegado inclusive era muito humano. Lá eu encontrei minha esposa e, inclusive, um dos motivos de eu ter sido mais torturado foi o fato de que, embora eu tivesse combinado com ela um horário para voltar para casa, quando eu fui preso, em Irajá, eu tinha avisado a ela que se não retornasse até determinado horário, ela deveria sair do local e ir para a casa da mãe. Eu já vivia clandestino, numa pensão na Lapa. Eu segurei a barra e não disse onde eu morava realmente para não chegarem até ela. E eles vão investigando e acabam descobrindo. E, por infelicidade ou não, eu acabei encontrando ela no Dops. Ou seja, ela não cumpriu o combinado...

Álvaro Caldas – Na militância, não. Dilma era casada com Carlos Araújo – e eu o conhecia de nome. Como eu estive na dissidência durante muitos anos, eu o conhecia de nome, mas nunca havia estabelecido contato com eles. Nós tínhamos um código de segurança de não manter contato pessoal com militantes de outras organizações, por que por vezes este contato levava a repressão até nós. Depois que eu saí da prisão, fiz uma viagem com a minha esposa e com uma amiga. Nós fomos ao Uruguai de carro e passamos por Porto Alegre. Aí fizemos contato com o Araújo e com a Dilma, que eram militantes da VARPalmares e nos receberam em casa. Jornal da ABI – E que tal este contato? Que impressão deixou? Álvaro Caldas – Olha, não foi um contato muito profundo, mas eles foram muito simpáticos. Existia uma solidariedade muito grande entre ex-presos políticos. Nós estávamos, todos nós, em um processo de auto-crítica de nossos erros. Eu comecei a refletir sobre isso ainda na cadeia.

regime. Mas a presença do Bolsonaro foi exatamente isso. Um soldado nos disse que, pelo fato de ele ser parlamentar, não poderia impedi-lo de entrar ali. Mas nós dissemos que conosco ele não entraria, por que nada tinha a ver com a Comissão. Nossos nomes foram apresentados ao Exército para aquela visita, de forma prévia. Jornal da ABI – O Bolsonaro ainda causa certa ressonância em segmentos da sociedade? Álvaro Caldas – Acho que sim, naquele segmento que apoiou o golpe, que acha que só os militares podem resolver a questão que enfrentamos atualmente. Jornal da ABI – Além disso há a questão das crenças históricas distorcidas... Tem gente que acha que durante a ditadura no Brasil nunca houve tortura! Que nunca existiram os campos de concentração na Segunda Guerra... Álvaro Caldas – É por isso que é saudável o que estamos fazendo, identificar os locais de tortura, os agentes do Estado que torturavam, pedir o tombamento destes locais para a construção de Centros de Memória. Durante muitos anos se falava em tortura no Brasil e as pessoas se lixavam. Agora eu acho que estamos conseguindo reverter isso. Jornal da ABI – Existe uma comissão sendo formada também pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio. A nossa classe foi real-

mente uma das mais atingidas pela repressão? Álvaro Caldas – Não necessariamente. Mas os sindicatos nos estados estão seguindo uma recomendação da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e criando suas próprias Comissões da Verdade. Eu não sei como anda isso. Eles estão iniciando este processo, que visa apurar crimes contra jornalistas, censura, além do comportamento da mídia na época. Elas não têm apenas como objetivo verificar os torturados e locais de tortura, mas também as práticas de violações de direitos humanos, de cassação de direitos políticos. Eu acho que os militantes em geral eram parte jornalistas, economistas, historiadores, sociólogos, profissionais e estudantes destas áreas. Gente de Psicologia. Os jornalistas, em sua maioria, não foram presos por censura ou por escreverem artigos contra o regime, mas por envolvimento na luta bélica. Jornal da ABI – Como era a sua militância no PCBR? Era bem diferente do JB? Álvaro Caldas – Não existia essa segmentação. No JB nós tínhamos uma equipe maravilhosa, com o Alberto Dines no comando do jornalismo, Carlos Lemos na direção de Redação, José Silveira como redator chefe – era a fase de ouro do JB. Era o jornal que todo jovem que se pretendia jornalista desejava trabalhar. Era o mais respeitado, conhecido e o melhor jornal. A minha militância era planejar ações, panfletagem, dis-

“Aquilo ali era um jogo cujo preço é a dor, a humilhação, você tem que mediar a sua resistência. Na verdade, ninguém quer sair dali como herói. Quer, tão somente, preservar o mínimo de sua dignidade.” cussão política e foi um momento em que o partido estava assumindo um viés de luta armada mais definido. Havia uma disputa entre as organizações muito grande para cooptar os jovens e disputas ideológicas. Os grupos se dividiam e rachavam. Nós rompemos com o Partidão. Parte do meu grupo foi para o PCBR e parte para o PCdoB. Outros foram para a União das Organizações Armadas. Uma das discussões que nós tínhamos era se a etapa que se seguiria à revolução que nós queríamos fazer seria socialista ou não. Estatizar tudo ou não. E o PCBR defendia uma etapa transitória, com um governo popular revolucionário que abarcaria setores da burguesia progressista. Isso causou uma divisão incrível. Jornal da ABI – Você chegou a conhecer a presidenta Dilma Rousseff na militância?

Jornal da ABI – Quais foram os erros da militância? Álvaro Caldas – Nós não admitíamos questionamentos, como se a revolução fosse algo pautado para acontecer. E, além disso, era um processo apaixonante. No mundo em que vivíamos, Cuba vivia uma revolução. Era uma coisa mística fazer a revolução aqui no Brasil e nós achávamos que ela era inevitável. E havia esse clima de transformação, de luta. E tanto a Dilma quanto o Araújo compartilhavam da mesma sensação. De lá nós fomos para Montevidéu, deixamos até o carro com eles e na volta passamos mais rapidamente para pegá-lo. Jornal da ABI – Também recentemente, você apareceu no Jornal Nacional, da TV Globo, em uma matéria sobre a Comissão, em que aparecia o depoimento do militar Dulene Aleixo Garcez, que se negou a falar. Como é reencontrar aquela pessoa e chegar a esse ponto de ele comparecer para não falar nada? Isso não é frustrante, não? Álvaro Caldas – É frustrante. Por que, na época, ele tinha superpoderes, sobre-humanos, sobre a minha vida. Eu sobrevivi, mas muitos militantes não sobreviveram. Inclusive o Mário Alves, que morreu lá no Doi-Codi, nas mãos do Garcez, um pouco antes de eu chegar. Ele era secretário-geral do PCBR. A sessão dele foi presenciada pelos presos que estavam lá. Ele foi identificado como secretário-geral do partido e acabou. Não precisou falar mais nada. Garcez foi muito presente na minha tortura. No Doi-Codi havia uma permanência de torturadores e de-

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ALCYR CAVALCANTI

pois trocava. No meu livro – Tirando o Capuz – eu conto tudo isso, dou os nomes desses caras. E olha que fiz esse livro ainda numa época quente, no início dos anos 1980... Jornal da ABI – E o Garcez teve papel de destaque... Álvaro Caldas – Ele foi o cara mais abjeto, mais asqueroso, mais provocador, mais destruidor em minhas sessões de tortura. Sentia prazer naquilo, era indisfarçável. Eles tinham ódio de comunistas, terroristas. Mas numa sessão dessas que passa na televisão, mesmo em que ele não fale nada, rende a identificação pública do torturador perante a sociedade. Vai ver que o filho dele não sabe da história do próprio pai. Por que ele é um oficial do Exército. Vou te contar uma história. Eu tive um contato inusitado com ele por que o meu carro foi levado ao Doi-Codi na época. Era um fusquinha, chamado de ‘Gigante da Colina’, em homenagem ao Vasco, que é o meu time. Eu ainda estava pagando por ele. Então, eu fui levado ao pátio do quartel e o Garcez, que era comandante do Doi-Codi, se dirige a mim e diz: “Além de subversivo é trambiqueiro”. Eu perguntei o que houve. Ele falou que eu não havia pago o carro e eu respondi que não podia fazê-lo, pois estava preso. Desta forma, emitiram um mandado de busca e apreensão para levar o carro de volta. E quem assinou este documento em nome do Departamento foi o próprio tenente Garcez. E eu perdi o carro! Jornal da ABI – Essa história não foi resgatada no dia do depoimento à Comissão? Álvaro Caldas – No dia da sessão, o Wadih perguntou se ele reconhecia a assinatura e a resposta foi a mesma dada a todas as outras perguntas: “nada a declarar”. Mas foi uma grande vitória ter feito ele sair de casa e se expor, até por que na primeira convocação ele não foi. Já havia faltado um convocado, o major Jacarandá, do Corpo de Bombeiros, que era um agente com menor influência na ditadura. Mas este major esteve na tortura e eu o reconheci. Aí nós utilizamos a Polícia Federal para intimá-los sob pena de serem presos. E eles tentaram evitar que a imprensa tivesse acesso à sessão, mas não conseguiram, apesar da imprensa ter feito poucas imagens. A sessão é pública! E eu o confrontei, assim como já havia feito com o major Jacarandá. Jornal da ABI – Perante a Lei estes agentes são, de fato, inimputáveis? Álvaro Caldas – Eles estão anistiados. O Brasil criou esta lei, que anistiou tanto os militantes quanto os torturadores. E o Supremo Tribunal Federal ratificou esta anistia recentemente. Para mudar teria que haver uma pressão da sociedade, con-

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Álvaro Caldas depõe na Comissão Estadual da Verdade, na Alerj, sobre o caso Mário Alves.

trária a esta lei. Então, o que podemos fazer de concreto é revelar esta verdade – e depois poderão ocorrer ações individuais. Um procurador federal já abriu um processo, para fugir da anistia, acusando os torturadores de ocultação do cadáver, que é um crime que não prescreve na legislação brasileira. Esse foi o caso do Mário Alves, cujo corpo desapareceu. Jornal da ABI – Há quanto tempo você está na Comissão da Verdade do estado do Rio de Janeiro e que balanço faz dos trabalhos até agora? Álvaro Caldas – Eu estou desde o início da Comissão, em março deste ano, e faço um balanço muito positivo. Nós temos um grupo muito homogêneo, traçando um paralelo com a Comissão Nacional, onde dois membros já saíram. Aqui nós temos o Wadih Damous, Presidente da Comissão, o advogado Marcelo Cerqueira, Nadine Borges, advogada, Geraldo Cândido, que é um ex-líder sindical e foi senador no lugar da Benedita da Silva, o João Dornelles, pesquisador da PUC-Rio e a Eny Moreira, advogada e Presidente e fundadora do Comitê Brasileiro pela Anistia, que está afastada por questões de saúde. Nós distribuímos tarefas de acordo com o perfil de cada um. Temos uma reunião semanal, mas eu estou lá todos os dias, pois recebemos muitas solicitações desde que a criação da Comissão foi divulgada. Estas pessoas se sentiam intimidadas, tinham medo de aparecer e agora se sentiram dispostas a isso. Foram encorajadas a falar. Estão falando, relatam desaparecimentos de conjugues, filhos, sobrinhos, em número surpreendente. Isso tomou o meu universo, estes fantasmas todos voltaram a me ocorrer. Jornal da ABI – E como você lida com isso? Por exemplo, com o fato de eu estar aqui, agora, dentro de sua casa, fazendo per-

guntas tão íntimas sobre aquele período? Álvaro Caldas – Isso é muito pessoal. Muitas das pessoas que passaram por tortura procuram esquecer. Muita gente ficou abalada mental e fisicamente. Alguns saem do prumo, têm problemas no trabalho e acabam marginalizados. Um deles eu chamei para depor por que havia depoimentos de torturadores e testemunhas. E essa pessoa disse que ficou destruída pela tortura e se achou discriminada por nós, por que teria sido acusada de ter falado mais do que devia. Uma pessoa dessas expiar isso tudo é muito saudável. Eu sofri isso quando escrevi meu livro, em 1984. Fiz minha análise ali e as coisas estavam muito frescas na minha cabeça. Eu aluguei uma casa em Arraial do Cabo nas férias do jornal, nesta época eu estava na Folha de S.Paulo, e mandei brasa. Passei minhas férias nisso. Botei o grosso para fora neste tempo. Não foi difícil de escrever por que estava tudo muito fresco – e eu sei escrever. A dificuldade maior foi em relação ao capítulo que abre o livro. Relativo à minha segunda prisão quando eu fui sequestrado, em 1973, tal a brutalidade que isso aconteceu. E eu não consegui narrar em primeira pessoa. Fiz várias tentativas e não saiu. Depois eu descobri que deveria narrar em terceira pessoa. Por que tem um tom surrealista que dá início ao que eu chamo de ‘uma fantástica viagem’. Jornal da ABI – Como foi essa segunda prisão? Álvaro Caldas – Eu fui sequestrado em casa, aqui mesmo neste apartamento que, para eles, na verdade, era um ‘aparelho’. Depois que saí da prisão – após minha primeira incursão pelo Doi-Codi e da rápida passagem pelo Dops, fui transferido e fiquei dois anos e meio detido na Vila Militar, transformada em carceragem. Aquele era um local de aguardar o julgamento na Justiça Militar. Fui preso em mar-

ço de 1970 e saí no final de 1972. Bom, de lá eu saí completamente queimado para as Redações e os jornais tinham um certo temor de me contratar. Eu trabalhava no Jornal dos Sports na época, já que quando eu saí da prisão pela primeira vez, fui muito bem recebido no JB, onde era um repórter consagrado, mas não me ofereceram emprego lá. Aí o José Trajano, da ESPN, que tinha trabalhado comigo no JB e editava o JS, me abrigou. Eu gosto de esportes e não tinha problema com isso. Um dia ligam em casa e quando eu vou atender desligam. Meu filho Leonardo tinha sete anos, abre a porta e dá de cara com um grupo armado, é empurrado para dentro e quando eu vejo sou sequestrado por um grupo ditatorial. Tudo montado. Minha esposa reage, pergunta em nome de quem eles estão me prendendo! Eles respondem que não estão prendendo em nome de nin-

“Meu filho Leonardo tinha sete anos, abre a porta e dá de cara com um grupo armado, é empurrado para dentro e quando eu vejo sou sequestrado por um grupo ditatorial. Tudo montado. Minha esposa reage, pergunta em nome de quem eles estão me prendendo! Eles respondem que não estão prendendo em nome de ninguém e que iriam me levar.”

guém e que iriam me levar. E me levaram de bermudas e chinelo, exatamente como estava vestido no momento da invasão. E aí eu dou início a essa viagem fantástica. Levo muita porrada no caminho para lá, agachado que estava sob o piso do banco traseiro do carro, sendo pisado, sufocado. Com os olhos vendados. E eles perguntando para onde eu tinha viajado. Aí paramos em uma praia, próximo a São Conrado, e eles iniciam uma sessão de pancadaria – com chutes, pontapés, cassetetes. Tanto que eu saí destruído – existe até uma imagem que um fotógrafo do JS conseguiu fazer do meu rosto machucado. Uma coisa é você ser preso como militante, ou seja, você sabe o que está fazendo, que poderia ser preso. Naquela situação eu não sabia por qual razão estava sendo preso. Foi claramente um artifício utilizado pelo Estado para combater quem estava contra eles, mesmo eu não estando mais na militância. Depois desta sessão de tapas eu fui levado para o DoiCodi – três anos depois de ter passado por lá. Era abril de 1973. Sou colocado em uma sala que eu imagino ter sido a mesma das primeiras torturas, só que modernizada, com novos equipamentos. Eles queriam que eu revelasse alguma coisa sobre a organização, mas eu não sabia de mais nada, estava trabalhando, quieto. Queriam saber de uma suposta viagem que eu teria feito, da qual eu não tinha a menor idéia. Jornal da ABI – E você descobriu que viagem, afinal, teria sido essa? Álvaro Caldas – No livro que eu escrevi há detalhes disto. Eles me acusaram de ter participado de uma ação fora do Rio. Eu argumentei que na época eu cobria o Botafogo para o JS e solicitei que eles confirmassem dentro do clube. Eles foram até o Botafogo, e você acredita que eles prenderam o Leônidas da Silva para averiguar a história, e o liberaram logo em seguida? Eu fiquei uma semana lá na cela podendo somente ir ao banheiro e, mesmo assim, de forma limitada. Meu carcereiro uma vez me disse, quando eu pedi para ir ao banheiro: faça tudo o que o senhor tiver que fazer por que isso aqui não é um hotel. Como estava desaparecido, todos os meus familiares ficaram muito preocupados. O pessoal do jornal também. Aí eu faço outra viagem, de táxi, adaptado por eles, que me deixa no 3º Comar, ao lado do Aeroporto Santos Dumont. E eu já tinha tido contato com o oficial que estava encarregado do meu caso. Ele estava lá e disse que íamos fazer uma viagem para o Sul. Eu perguntei o que iria acontecer e ele me disse que eu seria identificado. Entramos em um jatinho da FAB e descemos no aeroporto, um carro esperando, entro em uma cela, um local sujo. Come-


JOSÉ DUAYER

çaram a me bater e me deixaram num sala escura. Eu estava me preparando para a tortura, mas ela não veio. Daqui a pouco me resgatam e me levam para uma sala com uma janela na frente. É quando a minha ficha cai. Eu estava ali para ser reconhecido... E aí eu perguntei qual seria o resultado daquilo, caso a minha irreal participação no episódio investigado por eles se confirmasse. Não obtive resposta. Jornal da ABI – E para qual cidade você foi? Conseguiu identificar? Álvaro Caldas – Recife. O ‘Sul’ era no Recife (risos). Eles suspeitavam de que eu havia participado de uma ação, fora do Rio. E eu tentava me lembrar de tudo o que tinha feito no período da tal ação, que nem sabia qual era... Chegaram a raspar o meu cavanhaque, e a pessoa que apontava a minha participação dizia: “é ele sim, que deixou crescer o cavanhaque para tentar se disfarçar!”. E tem outra história. Quando eu fui a Recife trinta e seis anos depois disso, também para identificar o local e colocar estas impressões no meu próximo livro. Eu tinha certeza que a cidade era Recife, quando cheguei lá vi onde eu fui preso. Esta história estará mais detalhada no livro que eu vou lançar em breve. Jornal da ABI – O livro deve sair quando? Álvaro Caldas – Ele já está pronto praticamente. Foi feito primeiro para participar de uma seleção para o Programa Nacional de Biblioteca Escolar. Eu tenho um amigo que é editor que vende livros dentro deste programa. O programa seleciona o livro e imprime cinquenta mil exemplares... Jornal da ABI – E como termina a história de Recife? Álvaro Caldas – Bom, eu ainda durmo lá à noite e este oficial me traz de volta, me deixa na Base Aérea, me coloca no avião, no carro deles, dá um giro e me manda para o Rio. Digo que estou ‘duro’ e ele me dá um dinheiro para eu ir para casa. Cheguei em casa e causei uma imensa surpresa, já que todos achavam que eu estava morto, corpo desaparecido, o que provavelmente aconteceria se eu tivesse sido reconhecido em Recife – o que felizmente não ocorreu, comprovando a verdade. No livro eu descrevo como era e como é hoje a sede do Doi-Codi em Recife, onde eu fiquei preso. Hoje eles transformaram parte do quartel em um hospital militar, o que mudou muito as instalações. Quando eu fui lá recentemente nós entramos na cara de pau e vimos a sala da tortura. Um dos integrantes da turma que foi lá comigo conhecia um coronel, que era diretor do hospital, e assim nós conseguimos passe livre. E ele abriu o jogo, disse que nós tínhamos

sido presos ali e queríamos visitar o local. O coronel veio com aquele discurso de que tudo era passado, não adiantava relembrar o que tinha acontecido, mas também afirmou que não poderia proibir a visita. E assim nós entramos sem nenhum tipo de guia até chegar a esse ponto da sala, que foi um momento de grande emoção. Foi uma investigação própria, muito linda. Eu fiz a minha própria Comissão da Verdade. Jornal da ABI – Mas, afinal, qual ação foi essa da qual desconfiaram da sua participação? Álvaro Caldas – Já tinha indícios de que a ação que gerou a minha prisão tinha sido realizada lá, mas por outro grupo político, o Partido Comunista Revolucionário (PCR). Foi uma ação de roubo de armas em um quartel da Aeronáutica. E não tiveram nenhum preso. Neste momento acharam que o PCBR, o meu grupo, era o autor. E, por incrível coincidência, havia um cara no grupo da ação que tinha o meu tipo físico. Nós fechamos este quebra-cabeça quando nos reunimos à noite, após a visita ao quartel. Em 1973, o DoiCodi já não estava mais matando e torturando a torto e a direito, já que alguns segmentos da sociedade estavam marcando em cima. E a partir daí, foram criadas as tais

Casas da Morte, como a de Petrópolis, na Região Serrana do Rio. Ou seja, o que se fazia anteriormente no Doi-Codi, em dependências oficiais, militares, passou a ser feito nessas Casas da Morte, e em aparelhos clandestinos. Jornal da ABI – Me fale um pouco da sua atividade profissional atual. Álvaro Caldas – Hoje eu sou professor da PUC-Rio, escrevo para jornais de vez em quando – e me separei da Suely Caldas, que é articulista no Estado de S.Paulo. Minha última passagem por jornal foi pela Tribuna da Imprensa. Eu fiz um giro ao contrário, comecei pelo O Globo e lá eu tive problemas devido aos meus conceitos ideológicos. O Globo era um jornal muito fechado e inclusive eu fui mandado embora. Fui para o JB, e estive em grandes jornais – Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, Última Hora e TV Globo, onde eu era editor de pauta mas também eu tive uma falta de compatibilidade e fui para a Tribuna. Jornal da ABI – Como professor, qual a principal dificuldade na formação de novos jornalistas? Álvaro Caldas – Eu nunca me imaginei dando aulas, mas acabei seguindo este caminho. Hoje a meninada não dispõe de um grande mer-

cado e não tem o atrativo do jornal impresso, que é a grande plataforma para quem escreve. Eu sempre adorei a rua, apesar de editar. E a meninada hoje não quer saber disso. A revolução tecnológica mudou todo o processo e a própria linha dos jornais que estão aí tem um viés mascarado politicamente, com posturas muito parecidas. Eu me irrito muito com os jornais hoje em dia por conta disso. Mas eu não quero passar essa irritação para os meus alunos. (risos) Então, propus um curso sobre Literatura em Jornalismo para os meus alunos, por exemplo. Mas agora eu estou de licença, até por que entrou a Comissão da Verdade e eu tenho outras coisas para fazer. E eu quero escrever. Por isso eu acho que não retorno desta licença, não. Jornal da ABI – Você acha que o ato de escrever e a plataforma digital são incompatíveis? Álvaro Caldas – Não. Eu poderia escrever em outras plataformas, mas não corro atrás de escrever em blogs, internet. Não é o meu estilo. Jornal a ABI – Nós falamos sobre tortura e eu acho que toda esta mobilização que tem sido feita serve para que fatos como aqueles da época do regime militar não voltem a acontecer. Mas, in-

felizmente, eles seguem na pauta do dia, como é o caso do Amarildo, morador da Rocinha, torturado, morto e desaparecido após uma abordagem da PM. Há dezenas, centenas de casos como esse, em comunidades de todo o País. O que é preciso fazer para conter os homens de farda deste País para que o Estado brasileiro pare de assassinar? Álvaro Caldas – É uma coisa complicada. Eu até acho que, neste sentido, a mídia tem colaborado, pois tem dado destaque a essa violência, além da própria movimentação da sociedade. Isso foi um espetáculo por parte da população – essas manifestações de rua e coisa e tal. Mas nós precisamos construir uma grande reforma política e aí entra a nossa parte, de denunciar essa tortura, não só de preso político, mas principalmente da população mais pobre. Eu acho que nós vivemos um momento positivo nesta vertente, da denúncia, da insatisfação social. Mas é necessário ter mais mobilização. Que estes movimentos cresçam, e que haja uma pressão política grande em cima deste Congresso, que foi eleito de uma forma atrasada. Precisamos que haja uma pressão também em cima da polícia. Uma das lutas da Comissão da Verdade é aumentar os níveis da formação militar. Se você visitar uma escola militar, verá que eles omitem o que aconteceu e ainda transformam o ‘golpe militar ’ de 1964 em uma ‘revolução democrática’. E nós temos que lutar para que estes novos militares saibam a verdade. Durante a visita ao DoiCodi, aqui no Rio, o comandante da Polícia do Exército fez uma dissertação sobre o Batalhão – e simplesmente pulou a época do golpe. Acredita que ele fez isso? Ignorou as décadas de 1960 e 1970? Aí a Deputada federal Luiza Erundina, que estava presente, o questionou. Ele disse que não queria ‘politizar’ a nossa visita, sendo que nós estávamos ali simplesmente por causa disso. Para resgatar a história. Jornal da ABI – Fazer jornalismo é, sobretudo, fazer política? Álvaro Caldas – Também. Mas o principal é trazer a verdade à tona. Nós trabalhamos com isso. A minha primeira fase no JB foi excelente por que o jornal era combativo ao buscar a verdade, o que era diferente em relação ao O Globo. Isso era muito estimulante. Tive fases boas também no Estadão e na Folha. É claro que a empresa tem os seus interesses e estabelece limites. Mas dá para trabalhar com decência... E eu acho que valeu muito passar por estes grandes jornais, valeu muito a pena. Eu acho que você tem que ter a emoção de escrever a matéria. Essa paixão eu sempre tive enquanto jornalista. E também na militância política.

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PRÊMIO

A bandeira do bom jornalismo Biografia não autorizada e livro de reportagem foram alguns dos destaques. P OR M ARCOS S TEFANO Em meio ao acirrado debate sobre a produção de biografias no País e à falta de espaço e investimento para matérias de fôlego em revistas e jornais modernos, o bom jornalismo encontrou abrigo e se tornou o grande vencedor do Jabuti, o mais importante e tradicional prêmio do mercado editorial do Brasil. Em sua 55ª edição, a premiação prestou uma oportuna – e muito justa – homenagem a obras que tratam da análise da notícia e da mídia, história da imprensa, grandes reportagens regionais, nacionais e até do exterior, e reveladoras biografias de algumas das mais polêmicas personagens da trajetória brasileira. Afirmar que se trata de uma resposta à crise ou de uma manifestação clara e inequívoca contra a censura ou coisa parecida seria leviandade. Primeiro, por causa da lisura do prêmio. Depois porque os debates sobre a questão, que ganharam mais notoriedade nos últimos dias, são antigos. Porém, algumas das escolhas feitas entre os mais de dois mil trabalhos inscritos fizeram barulho. Isso não dá para negar. A Câmara Brasileira do Livro-CBL anunciou os vencedores do Jabuti em outubro. Em novembro, o prêmio foi entregue aos três primeiros colocados das 27 categorias em disputa. Em Comunicação, o primeiro lugar ficou com o professor José Marques de Melo, por História do Jornalismo – Itinerário Crítico, Mosaico e Contextual (Paulus). Depois vieram Oscar Pilagallo, com seu História da Imprensa Paulista: Jornalismo e Poder de D. Pedro I a Dilma (Três Estrelas), e Renato Modernell, autor de A Notícia como Fábula: Realidade e Ficção se Confundem na Mídia (Mackenzie e Summus Editorial). Já na categoria Biografia, a jornalista Mary Del Priore ficou com o segundo lugar com A Carne e o Sangue (Editora Rocco), obra que retrata o triângulo amoroso vivido por D.

Jornal da ABI ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Editores: Maurício Azêdo (in memoriam) e Francisco Ucha presidencia@abi.org.br / franciscoucha@gmail.com

Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo (in memoriam) Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva. Diretor Responsável: Maurício Azêdo (in memoriam)

Pedro I, a Imperatriz Leopoldina e Domitila de Castro, a Marquesa de Santos. O terceiro lugar foi de Lira Neto com o primeiro volume da trilogia biográfica sobre Getúlio Vargas – Getúlio: Dos Anos de Formação à Conquista do Poder (1882-1930), publicado pela Companhia das Letras. Ambos ficaram atrás de Marighella: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo (também da Companhia das Letras), de Mário Magalhães, o grande vencedor. Para reconstituir a vida do líder comunista, político, poeta e guerrilheiro que se tornou o “inimigo número um do regime militar”, Magalhães trabalhou por nove anos, dos quais quase seis em dedicação exclusiva. Tempo em que entrevistou 256 pessoas em mais de mil horas, pesquisou cerca de 70 mil páginas de documentos em 32 arquivos públicos e privados na Rússia, República Tcheca, Estados Unidos, Paraguai e Brasil. Além da bibliografia que reúne 500 títulos. O resultado é uma obra cheia de ritmo e ação, tal qual foi a vida do próprio Marighella, e um herói bem real, com todos os seus vícios e fraquezas. Retrato que, segundo o autor, pode ser traçado justamente porque se tratou de uma biografia não autorizada. “Para escrevê-la, não pedi autorização aos herdeiros de Carlos Marighella nem lhes submeti os originais. A legislação obscurantista, contudo, lhes permite proibir a circulação da obra. Isso não ocorreu devido ao espírito público que pauta o advogado Carlos Augusto Marighella, filho do meu biografado, e dona Clara Charf, viúva. Sou grato a eles, que compartilharam comigo suas memórias mais caras e documentos esquecidos. Confiaram em mim e foram entusiastas do meu trabalho. Sem pedir para ler uma linha do que eu havia escrito. Eles sabem que a história de Marighella não é propriedade privada, mas patrimônio público da memória. Tanto que sua trajetória me permitiu reconstruir quatro décadas trepidantes do século 20, entre 1930 e 1960, e revisitar perso-

nagens marcantes, fossem aliados, fossem oponentes”, explica Magalhães. O inferno da Síria e o do Brasil Tão emblemática quanto a escolha de uma biografia não autorizada como a melhor do ano foi a de três livros de grandes reportagens, gênero que no dia a dia da imprensa perde mais e mais espaço. Na categoria Reportagem, Mãos que fazem História (Editora Verdes Mares) ficou com o terceiro lugar. O livro foi escrito a partir de uma série de matérias das repórteres Cristina Pioner e Germana Cabral para o Diário do Nordeste e mostra a vida e obra das artesãs no Ceará. Em segundo lugar ficou Dias de Inferno na Síria (Benvirá), do jornalista Klester Cavalcanti. Em maio de 2012, Cavalcanti viajou pela revista Isto É para a cidade de Homs, então epicentro do conflito entre as forças do ditador Bashar al-Assad e os rebeldes do Exército Livre, para cobrir a guerra que devastava a Síria. Chegando lá, porém, nada saiu como o esperado. Preso injustamente, o brasileiro foi torturado e encarcerado em uma pequena cela, que dividia com mais de 20 detentos. As incertezas daqueles tempos se transformaram em um relato vibrante e humano da guerra civil, não somente por conta do que o brasileiro viveu, mas pela experiência daqueles que ele entrevistou por lá. “Foi algo novo para mim. Eles me chamavam de sahafi, que significa ‘jornalista’ e me contaram histórias fascinantes. Já tinha escrito outros livros que tratavam de temas ligados aos direitos humanos, como Viúvas da Terra e O Nome da Morte, que inclusive receberam o Jabuti. Mas o Dias de Inferno na Síria foi uma experiência muito pessoal. Não imaginava que

DIRETORIA – MANDATO 2013-2016 Presidente: Maurício Azêdo (in memoriam) Presidente interino: Fichel Davit Chargel Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Fichel Davit Chargel Diretor Econômico-Financeiro: Sérgio Caldieri Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretor de Arte e Cultura: Henrique Miranda Sá Neto Diretor de Jornalismo: Alcyr Cavalcanti CONSELHO CONSULTIVO 2013-2016 Ancelmo Gois, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Miro Teixeira, Nilson Lage, Teixeira Heizer, Villas-Bôas Corrêa. CONSELHO FISCAL 2013-2014 Adail José de Paula, Dulce Tupy Caldas, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2013-2014 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: José Pereira da Silva Segundo Secretário: Moacyr Lacerda

Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo (in memoriam), Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira

Conselheiros Efetivos 2013-2016 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Dulce Tupy Caldas, Fernando Foch, Germando de Oliveira Gonçalves, João Máximo, Marcelo Tognozzi, Milton Temer, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Sérgio Cabral, Sérgio Caldieri e Zilmar Borges Basílio

Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP

Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, Francisco

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fosse ganhar, pois é um tema distante do Brasil. Só que sua discussão é fundamental. Há muito interesse no assunto por aqui, já que a comunidade sírio-libanesa é grande em nosso País. Infelizmente, a cobertura da grande imprensa do Brasil é medíocre, restringindo-se a números e a informações de agências internacionais”, aponta Cavalcanti. O relato de outros dias de inferno, mas desta vez no Brasil, mereceu o primeiro lugar na categoria Reportagem. As Duas Guerras de Vlado Herzog (Civilização Brasileira), de Audálio Dantas, usa como fio condutor a vida do jornalista Vladimir Herzog, desde sua perseguição pelos nazistas na Europa até sua morte por tortura nos porões da ditadura militar no Brasil, para reconstituir a história recente do País, na qual, após a denúncia do assassinato pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, a sociedade volta a se mobilizar contra o regime. A obra preenche uma lacuna histórica, mostrando de maneira clara e definitiva a mobilização popular na segunda metade da década de 1970 e trazendo novas informações sobre acontecimentos do período, ainda que fazer revelações não fosse a intenção de Audálio Dantas, também agraciado com o Troféu Juca Pato e escolhido o Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores (UBE): “O caso Herzog é emblemático daquele momento. Temos muitos materiais sobre a época, mas muita coisa superficial ou com imprecisão, o que do ponto de vista jornalístico é imperdoável. O livro foi escrito para mostrar o que houve naqueles dias, estabelecer o papel dos jornalistas em todos os acontecimentos. Por outro lado, a premiação mostra que ainda existe espaço para a grande reportagem no jornalismo moderno. Nesse novo cenário, o livro é a sua plataforma por excelência, já que a imprensa periódica parece preferir apenas reproduzir informações e analisar. Talvez a qualidade dessas reportagens premiadas sirva para novamente levantar a bandeira do bom jornalismo que os leitores querem e tanto é necessário à sociedade.”

Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e Wilson Fadul Filho. Conselheiros Suplentes 2013-2016 Antônio Calegari, Aluízio Maranhão, Carlos de Sá Bezerra, Daniel Mazola, Gilson Monteiro, Ilma Martins da Silva, José Cristino Costa, Luiz Carlos Azêdo, Manoel Pacheco, Marceu Vieira, Miro Lopes, Moacyr Lacerda, Paulo Gomes Netto, Vilson Romero e Yacy Nunes. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Alberto Marques Rodrigues, José Pereira da Silva, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Marcus Antônio Mendes de Miranda e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Daniel Mazola; Alcyr Cavalcanti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Carlos de Sá Bezerra, Carlos João Di Paola, Ernesto Vianna,Geraldo Pereira dos Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Milton Temer, Miro Lopes, Modesto da Silveira, Vilson Romero, Vitor Iório e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. Assistente: Rosani Abou Adal REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor), Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

JORNAL DA ABI • OUTUBRO DE NÃO 2013 ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008. O 394 JORNAL DA ABI


HOMENAGEM

ARQUIVO PESSOAL RODOLFO KONDER

A Memória e o Silêncio POR RODOLFO KONDER

A

meaçado pela ditadura militar, aceitei o convite do jornalista Milton Coelho da Graça e me mudei do Rio para São Paulo, onde passei a trabalhar na revista Realidade, como redator, ao lado de Jorge Andrade, Luis Lobo, José Hamilton Ribeiro, Roberto Muller – e o incansável Maurício Azêdo. Ali, conheci Maurício e logo nos tornamos amigos. Pouca gente escrevia tão bem como ele. E sua militância transcendia os limites do jornalismo, porque sua formação ética o tornara um homem solidário e generoso. Em pouco tempo, abriu para mim as portas de sua casa. Lá eu comia, conversávamos muito, trocávamos inclusive nossas memórias como ex-prisioneiros políticos que haviam sobrevivido à devastadora chaga da tortura. Suas experiências de vida, sempre marcantes, o transformaram num exemplo de honestidade, de

ética, de liderança e generosidade. Colaborou com diversos jornais e revistas de resistência à ditadura. Foi vereador e conselheiro do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro até 2004, quando se aposentou por limite de idade. Naquele mesmo ano, elegeram-no Presidente da Associação Brasileira de Imprensa. Casado com Marilka Lannes, Maurício se foi, dias atrás, mas deixou conosco um exemplo raro de dignidade e grandeza, que estará sempre em nossa memória, no dolorido lado esquerdo da nossa memória. Neste momento de crise, empurrados pelas águas barrentas de um rio que nos leva para o abismo, nossos sonhos bateram em retirada, junto com a ética. A ausência de homens como Maurício Azêdo acentua a sensação de que “o presente está em declínio”, como dizia Jorge Luis Borges. “O presente está só”. RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.

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RARIDADES

Um tesouro nem tão escondido assim Acervo de periódicos raros da Biblioteca da ABI, que ajuda a entender o Brasil do final do século 19 e das primeiras décadas do 20, pode ser consultado livremente. P OR M ÁRIO M OREIRA

Uma vasta, importante e hoje pouco lembrada parte da história da imprensa brasileira está acessível a qualquer pessoa na Biblioteca Bastos Tigre, mais conhecida como Biblioteca da ABI, alojada no 12º andar da sede da instituição, no centro do Rio. Trata-se de um verdadeiro tesouro para jornalistas, historiadores e qualquer pessoa que deseje aprender mais sobre o Brasil das décadas finais do século 19 e das primeiras do século 20. São periódicos dos mais diversos tipos, entre jornais e revis-

tas, que traçam um amplo panorama dos primórdios do jornalismo no País. O acervo inclui raridades como a Revista Illustrada, semanário abolicionista e republicano publicado a partir de 1876 pelo cartunista italiano, radicado no Brasil, Angelo Agostini – o exemplar mais antigo disponível na biblioteca é do ano seguinte. A veia satírica era a marca da publicação. A capa trazia sempre uma charge abordando fatos da época, com o traço refinado de Agostini. Nas páginas internas, notas, comentários, críticas (especialmente aos políticos), sempre em tom irônico e

bem-humorado, davam o tom. Havia também seções de provérbios e poemas. Mais ou menos da mesma época é o jornal Cidade do Rio, fundado em 1887 por José do Patrocínio. Com apenas quatro páginas, a publicação tinha um inflamado viés abolicionista. Na edição de 21 de novembro daquele ano, por exemplo, sob o título “A Regência Ensanguentada”, em letras garrafais, o jornal publicava um telegrama enviado da cidade fluminense de Campos: “Conferencia abolicionista frustrada. Força embalada espaldeirou o povo e este apedrejou a força. Três cidadãos feA Biblioteca Bastos Tigre, da ABI, mantém um precioso acervo de publicações que marcaram a história da imprensa brasileira, como os jornais Cidade do Rio, de 1887, fundado por José do Patrocínio, O Paiz (acima, a edição de 1º de outubro de 1937) e A Noite Illustrada, do jornal A Noite; além de revistas como a Revista Illustrada, com edições a partir de 1877, A Bruxa, de 1896, D.Quixote, do começo do século 20, Revista da Semana e O Malho (na página seguinte, edições de novembro de 1903 e de maio de 1929, respectivamente).

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ridos à arma de fogo e outros levemente. (…) Ha receios de novos conflictos”. Isso há 126 anos... A última edição do jornal, de 31 de dezembro de 1900, trazia um longo editorial de despedida com pesadas críticas ao então Presidente Campos Salles e aos congressistas brasileiros: “Que esperar de um seculo que vae começar para um povo, encontrando o Congresso humilhado na sua soberania e no respeito da sua equipolencia constitucional ao poder executivo?”. Humor em alta

Importantes periódicos da virada do século 19 para o 20 podem ser encontrados na Biblioteca da ABI. Um deles é A Bruxa, revista semanal fundada em 1896, com direção editorial do poeta Olavo Bilac e do ilustrador português Julião Machado. A publicação durou apenas até o ano seguinte, mas marcou época com suas crônicas bem-humoradas, charges, poemas, piadas e críticas aos governantes. Outro é O Malho, revista humorística criada em 1902 e que teve, entre seus ilustradores, Calixto, J. Carlos e Angelo Agostini. Da


mesma época, e também presentes na biblioteca, são as fundamentais revistas FonFon e Careta, ambas recheadas de charges, crônicas e notas de humor. A coleção da primeira abrange o período de 1908 a 1911; a da segunda inclui os anos de 1910 e 1911. Já de 1918 é a revista D. Quixote, “semanário de graça... por 200 réis”. Fundada e dirigida pelo jornalista e publicitário Manuel Bastos Tigre, que dá nome à biblioteca da ABI, também tinha o humor como marca registrada. A capa da edição de 30 de janeiro trazia uma charge com o título “Carnaval? Porque não?” (sic), ironizando a idéia de suspender os festejos carnavalescos daquele ano em razão das mortes ocorridas na Primeira Guerra Mundial. Outra publicação disponível na biblioteca é a Revista da Semana, semanário de variedades que durou de 1900 a 1962 e cobria de política a moda feminina. Pioneira no gênero, a revista Eu Sei Tudo pode ser considerada ancestral direta de títulos como Galileu e Superinteressante. Circulou de 1917 a 1958 e trazia reportagens sobre curiosidades em geral, com forte viés científico. A edição inaugural, por exemplo, abordava temas tão díspares como o sono dos peixes, a catedral de Milão, minas submarinas e hipóteses sobre o fim do mundo. Reportagens sobre o incêndio do navio L´Atlantique, ocorrido no porto do Havre (França), em 4 de janeiro de 1933, estão presentes em duas edições seguidas da revista semanal A Noite Ilustrada, do jornal A Noite. A primeira, número 145, do dia 11, traz a matéria “O Impressionante Sinistro do l‘Atlantique”, chamado de “o maior e mais luxuoso transatlantico até hoje construido, maravilha produzida pelo espirito emprehendedor do povo francez”, com fotos (externas e internas) do navio e do comandante

Schoofs, o último a abandoná-lo. A segunda, do dia 18, dá capa para o incêndio, com mais fotos e detalhes do naufrágio. Fundada em 1936, a revista Carioca também está presente no acervo da biblioteca. A edição número 49, de 19 de setembro de 1936, traz ampla reportagem sobre a inauguração da Rádio Nacional, com fotos de artistas que se apresentaram no evento, como a cantora lírica Bidu Sayão e os populares Orlando Silva e Aracy de Almeida. A edição 51, de 10 de outubro daquele mesmo ano, reproduz um revelador depoimento do compositor Noel Rosa, que morreria dali a menos de sete meses, para a matéria “Vale a Pena Ser Popular?”: “Um dia, talvez eu pretenda ser advogado. Isso é novidade, mas é o meu grande desejo. Ahi a minha grande popularidade vae-me atrapalhar seriamente: eu sei que compor e cantar sambas não recomenda ninguém. O meu verdadeiro nome é Noel de Almeida Rosa e eu devia tel-o trocado logo ao iniciar a minha carreira artística por um outro: João de Almeida Rodrigues, por exemplo. Agora talvez eu tenha de fazer o contrario, o que me dará sem-

Da criação à grande reforma Hoje com cerca de 30 mil volumes, a Biblioteca da ABI começou a ser organizada em 1911, três anos após a fundação da entidade, por seu primeiro diretor, o bibliotecário Victor da Veiga Cabral. Só em 1958 a unidade receberia o nome do jornalista e publicitário Bastos Tigre, criador do famoso slogan “Se é Bayer, é bom”, que morrera no ano anterior. Durante muito tempo a biblioteca ocupou o 8º andar do edifício Herbert Moses, sede da ABI, construído no final dos anos 1930 na rua Araújo Porto Alegre, 71. Na década de 1960, em dificuldades financeiras, a ABI a transferiu desse pavimento para alugálo, passando o acervo para o 9º andar. Em 1974, parte dos livros, a maioria sobre imprensa, foi perdida ou danificada num incêndio. No ano seguinte, a biblioteca foi transferida novamente, agora para o 12º pavimento, que abrigava um restaurante. Já neste século, foi totalmente reformada, incluin-

do a troca do teto e do piso de tacos, que estavam infestados de cupim. A reabertura se deu em 2007. Atualmente, a biblioteca fica aberta ao público de segunda a sexta-feira, das 9 às 17 horas. Apenas sócios da ABI, porém, podem retirar livros. A chefe da seção, Vilma Santos de Oliveira, de 64 anos, trabalha no setor desde 1975, quando entrou como auxiliar, e divide o serviço com duas outras funcionárias. De acordo com ela, em razão da internet, a procura caiu muito nos últimos anos. “Antigamente vinham grupos inteiros para estudar e tirar cópias”, lembra Vilma, que certa vez impediu um furto de edições de revistas antigas como Fon-Fon e A Bruxa por parte de dois rapazes. “Desconfiei e pedi que abrissem a mochila. Estava tudo lá”, conta ela, que preferiu nem chamar a polícia. “Fiquei aliviada de ter conseguido salvar aqueles números. Afinal, cuidar deles é o meu trabalho.”

pre a impressão de estar vivendo as avéssas...”. Curiosamente, o autor de “Último Desejo” se chamava na verdade Noel de Medeiros Rosa, e não “de Almeida Rosa”. Provavelmente o autor da reportagem se confundiu ao transcrever o depoimento. Outra interessante peça do acervo é a coleção do jornal O Paiz, dos anos de 1937 e 1938. O diário, que circulara de 1884 a 1934, voltou às bancas em 8 de setembro de 1937. A edição de 3 de outubro traz o decreto do Presidente Getúlio Vargas, promulgando o estado de guerra, que preparou o terreno para a instituição do Estado Novo, no mês seguinte. A última edição da coleção, de 1º de maio de 1938, noticia a repercussão do acordo militar franco-britânico, uma visita de Adolf Hitler a Benito Mussolini e a viagem da seleção brasileira, de navio, para disputar a Copa do Mundo na França. Lacerda na capa

Mais recente, mas não menos importante, é a coleção de O Mundo Ilustrado, semanário de atualidades que marcou época no País na década de 1950. A edição de 11 de agosto de 1953 destaca o jornalista e político Carlos Lacerda, um dos principais oposicionistas do governo Getúlio Vargas, e apresentado na capa como “O Homem da Raça”. Em editorial assinado na página 3, o Presidente da O Mundo Gráfica e Editora, Geraldo Rocha, exalta as qualidades do dono da Tribuna da Imprensa, “grande justiceiro” e “o homem designado pela providência para nos salvar da hecatombe que represen-

ta a obra nefasta do apátrida Samuel Wainer”, este também jornalista e proprietário da Última Hora, que apoiava Getúlio. Entre as raridades da biblioteca há ainda os três números zero da revista Placar, lançada pela Editora Abril em março de 1970. O primeiro deles traz como furo de reportagem uma entrevista em que o então jogador e atual comentarista Tostão garantia que jogaria a Copa do Mundo daquele ano, apesar da cirurgia a que fora submetido poucos meses antes para corrigir um descolamento de retina. Evidentemente, além de todas essas preciosidades, a biblioteca da ABI possui vastíssimo material com as coleções (nem todas completas) de publicações fundamentais da história da imprensa brasileira na segunda metade do século 20, como O Cruzeiro, Manchete, Pasquim, Veja e IstoÉ, entre muitas outras. Livros raros

À parte os periódicos, a Bastos Tigre oferece um vasto acervo de livros, com cerca de 22 mil títulos, entre obras sobre jornalismo e comunicação, política, direito, sociologia, antropologia, religião e outros temas, além de romances. A seção de obras raras, instalada no fundo da biblioteca, oferece títulos das primeiras décadas do século 20, do século 19 e até mesmo do 18, como o Traité des Prescriptions, de l´Aliénation de Biens de l´Église et des Dixmes (Tratado das Prescrições, da Alienação de Bens da Igreja e dos Dízimos). O livro foi editado na França em 1786, “avec approbation et privilège du Roi” (com aprovação e privilégio do rei – no caso, Luís 16, que viria a ser guilhotinado pela Revolução Francesa). Também franceses são o Dictionnaire de Biographie et d´Histoire (Dicionário de Biografia e História), de 1883, em dois grossos volumes; e o Dictionnaire Universel des Contemporaines (Dicionário Universal dos Contemporâneos), com inacreditáveis 1.888 páginas, publicado pela editora Hachette, em 1870. Há ainda Histoire de l´Internationale, de 1872, de Edmond Villetard, sobre a Internacional Socialista (a primeira). Em espanhol, a Biblioteca da ABI possui uma edição mexicana de 1852 de Viaje Pintoresco al Rededor del Mundo (Viagem Pitoresca ao Redor do Mundo), do botânico e explorador francês Jules Dumont d´Urville, e Las Actas de Independencia de America, editada em 1955 nos Estados Unidos, com reproduções dos documentos de independência de 21 países do continente americano, incluindo o Brasil. Quem se interessa pela realeza britânica pode consultar os cinco volumes de The Life of His Royal Highness – The Prince Consort (A Vida de Sua Alteza Real – O Príncipe Consorte), de 1879, biografia do príncipe Alberto, marido da rainha Vitória. Finalmente, as obras em português incluem Historia da Litteratura Brazileira, de Sylvio Romero, livro editado em 1888 em dois volumes, e Historia Financeira e Orçamentaria do Império do Brazil Desde a Sua Fundação, de Liberato de Castro Carreira, de 1889. Prato cheio para pesquisadores dos mais diversos assuntos.

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CAMPANHA ACERVO ABI

Em 1º de agosto de 1948, centenas de pessoas lotaram o auditório da ABI numa manifestação em defesa do monopólio estatal do petróleo. O ato foi presidido por Barbosa Lima Sobrinho. Abaixo, um dos inúmeros comícios que se espalharam pelo País. Este aconteceu em Belo Horizonte em 4 de julho.

O petróleo como combustível nacional Depois de 65 anos, é importante lembrar a intensa participação da ABI na campanha O Petróleo é Nosso, que culminou com a criação da Petrobras cinco anos depois. JOSÉ VIEIRA TROVÃO-BANCO DE IMAGENS PETROBRAS

P OR P AULO C HICO

Publicado entre 1948 e 1953, o folheto ‘O que todos devem saber sobre o Petróleo’ foi editado pelo Centro de Estudos e Defesa do Petróleo com o intuito de fazer esclarecimentos sobre o Estatuto do Petróleo – visto pelo grupo como grave ameaça à soberania nacional. Em tom de mobilização, posicionava-se contrariamente às propostas de entrega da exploração do chamado ‘ouro negro’ a grandes grupos internacionais. Passados 65 anos do lançamento da campanha O Petróleo é Nosso, o noticiário sobre o recurso natural segue firme nas primeiras páginas dos jornais brasileiros. Com enfoque econômico, é claro, mas sem deixar de tangenciar o contexto político. “A liga antifascista da Tijuca fez um ato na ABI no dia 4 de abril de 1948 onde lançou a idéia do Centro de Petróleo. No dia 21 de abril, em um grande ato no Automóvel Clube tivemos a alegria de ver lançado o Centro Nacional de Estudo e Defesa do Petróleo, que um anos depois, por proposta do General Raimundo Sampaio, passaria a se chamar Centro de Es12

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tudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional (Cedpen) – para ser mais abrangente, tratando de Amazônia, minérios e outras riquezas nacionais. Parecia que esse movimento tinha fermento. Se multiplicava, com a criação de centros espalhados pelos estados”, recorda Maria Augusta Tibiriçá, ela própria uma das fundadoras do Cedpen, que teve como presidentes honoríficos o ex-Presidente Artur

Bernardes e os generais Horta Barbosa e José Pessoa. Lançado no auditório Oscar Guanabarino da ABI pelo professor Henrique Miranda, o Centro Nacional de Estudos e Defesa do Petróleo assumiu a coordenação nacional da campanha a favor da estatização do ouro negro, visando destronar o Estatuto do Petróleo, proposta regulatória de exploração enviada ao Congres-

so pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra que, defendida pelo General Juarez Távora, certamente faria a alegria dos grandes trustes internacionais. O projeto do governo considerava a estatização inviável, devido a fatores como a escassez de verbas e a falta de técnicos especializados. Evidentemente, causou a ira dos nacionalistas. Em artigo histórico, o professor Henrique Miranda falou sobre o papel da ABI na constituição do movimento em defesa do petróleo. “A Associação era presidida por Herbert Moses, que se manteve à frente da Casa, proficuamente, durante 33 anos (de 1931 a 1964). Consenso incontestável, ele era convicto democrata, ativo, sempre em defesa da Liberdade de Imprensa, e de jornalistas vítimas dos atropelos do Poder, o que se verificou, especialmente, no período do Estado Novo (1937-1945). Em relação, porém, ao problema do petróleo, lamentavelmente, não era ele adepto da Tese Horta Barbosa, a Tese do Monopólio Estatal. Como explicar, assim, a presença e o apoio da ABI, valiosos, sempre, no movimento O Petróleo é Nosso?”, perguntou o professor, que respondia à questão logo no parágrafo seguinte. “Basta recordar: Moses era assessorado e recebia a decisiva influência de eminentes jornalistas da ABI de então. Com saudade, recordemos alguns deles: Heitor Beltrão (1º Vice-Presidente), Pedro Mota Lima, João Etcheverry, Aristeu Aquiles, Jocelyn Santos, João Antônio Mesplé. E ainda Gentil Noronha e Fernando Segismundo. Coincidência providencial – todos eles partidários entusiastas da Tese Horta Barbosa e, em graus diversos, membros do Centro do Petróleo”, escreveu. Henrique Miranda foi professor e jornalista, oficial da Marinha punido com expulsão por sua participação muito jovem nos movimentos sociais dos anos 1930. Dedicou sua vida à defesa do Brasil. Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi vereador na antiga Câmara de Vereadores do Distrito Federal, na Legislatura 1951-1955, diretor do periódico Emancipação, órgão de divulgação e combate dessas campanhas nacionalistas, e diretor da ABI nas gestões de Barbosa Lima Sobrinho e Fernando Segismundo. Faleceu em 6 de abril de 2005. Pelas ruas, o Cedpen e sua campanha mobilizaram entusiasmados participantes de Norte a Sul do País, que começam a se articular regionalmente a fim de promover manifestações e eventos. Com apoio do Partido Comunista do Brasil, os diretórios do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul são os primeiros na promoção de atos públicos, que mobilizam de intelectuais e estudantes, além de profissionais liberais. Figuras de destaque na vida política e cultural brasileira, como o artista Emiliano Di Cavalcanti e o arquiteto Oscar Niemeyer, manifestam seu apoio ao movimento em defesa da estatização do setor.


JOSÉ VIEIRA TROVÃO-BANCO DE IMAGENS PETROBRAS

As raízes históricas da Petrobras Como era de se esperar, o Estatuto do Petróleo proposto por Dutra teve uma tramitação truncada na Câmara, e acabou sendo arquivado. Na prática, o Presidente desistira dele ainda em 1948, ao pedir ao Congresso recursos para a construção das refinarias estatais de Mataripe (BA) e de Cubatão (SP), do oleoduto Santos-São Paulo e para a aquisição de uma frota nacional de petroleiros. Foi esse o quadro encontrado por Getúlio Vargas em janeiro de 1951. Para superar o impasse, em dezembro, enviou ao Congresso projeto de lei propondo a criação da “Petróleo Brasileiro S.A.” (Petrobras), empresa de economia mista com controle majoritário da União. Curiosamente, não estabelecia o monopólio estatal, uma das principais teses nacionalistas, permitindo, teoricamente, que até 1/10 das ações da empresa holding ficassem em mãos de estrangeiros. Mas a essa altura já se encontrava em discussão outro projeto, apresentado pelo deputado Eusébio Rocha, que mantinha a fórmula de empresa mista, mas estabelecia o rígido monopólio estatal, vedando a participação estrangeira. Em maio, a União Democrática Nacional (UDN) assumiu a defesa do monopólio estatal, combatendo politicamente o projeto da Petrobras. No mês seguinte, o deputado Bilac Pinto, Presidente do partido, apresentou novo substitutivo propondo a criação da Empresa Nacional do Petróleo (Enape). Enquanto isso, nas ruas, a União Nacional dos Estudantes (Une) e o Cedpen relançavam com toda a força a palavra de ordem “O Petróleo é Nosso”. Diante da situação, Vargas optou finalmente pelo monopólio estatal, autorizando a abertura das negociações no Congresso. Aprovado na Câmara em setembro de 1952, o projeto da Petrobras foi remetido ao Senado, onde alguns senadores se identificavam abertamente com os interesses privados, nacionais e estrangeiros. Em junho de 1953, a proposta retornou à Câmara com 32 emendas – inclusive permitindo o completo controle pelo capital privado –, mas foram quase todas derrubadas na Câmara. Apenas duas concessões foram feitas: a que confirmava as autorizações de funcionamento das refinarias privadas já existentes; e a que permitia a participação de empresas particulares, inclusive estrangeiras, na distribuição dos derivados de petróleo. Em 3 de outubro de 1953, depois de intensa mobilização popular, Vargas sancionou a Lei nº 2.004, criando a Petróleo Brasileiro S. A. – Petrobras, empresa de propriedade e controle totalmente nacionais, com participação majoritária da União, encarregada de explorar, em caráter monopolista, diretamente ou por subsidiárias, todas as etapas da indústria petrolífera, menos a distribuição. Em mensagem ao povo brasileiro, Getúlio destacou a importância da medida: “Constituída com capital, técnica e trabalho exclusivamente brasileiros, a Petrobras (...)

Cerimônia da instalação de torre simbólica de petróleo na Cinelândia, no Rio de Janeiro. O ato foi uma iniciativa do Movimento Nacionalista Brasileiro e da Une.

constitui novo marco da nossa independência econômica”. Passadasmaisdeseisdécadasdafundação do Cedpen e dos primeiros passos da campanha O Petróleo é Nosso, a soberania brasileira no setor de exploração do recurso mineral ainda é alvo de ataques. Tanto que, em 22 de maio deste ano, foi lançada a Frente Parlamentar em Defesa da Petrobras e do Pré-Sal, composta por 235 deputados e senadores, sendo apoiada por diversas entidades, tais como CUT e Une, além de sindicatos filiados. A articulação é presidida pelo Deputado Federal Luiz Alberto (PT-BA) e trabalhará em parceria com a Frente Parlamentar em Defesa do Fundo Social do Pré-Sal, coordenada pela Deputada Federal Benedita da Silva (PT/RJ), com a proposta de garantir a destinação dos royalties do petróleo para investimentos na área social. “Queremos demonstrar à parcela da oposição ao nosso governo e a setores da mídia, que tentam criar um clima fictício de crise na Petrobras, que ao contrário do que alguns veículos de comunicação falam, a estatal não está em crise. Ela cresceu muito, numa perspectiva de até 2017 dobrar de tamanho”, afirmou Luiz Alberto. Para o parlamentar petista, o grande ataque à empresa nacional se refere ao fato de ela ser a única operadora do présal, devido ao Marco Regulatório aprovado no governo Lula, o qual confere à estatal a prerrogativa de ter no mínimo 30% de participação em todos os contratos.

O líder do PT na Câmara, Deputado José Guimarães (CE), ressaltou a importância da Criação da Frente Parlamentar em Defesa da Petrobras. Para ele, a iniciativa é estratégica, num momento em que setores entreguistas, ligados ao capital estrangeiro e avessos aos interesses nacionais, promovem campanha contra a empresa, distorcendo números e informações. “Na falta de projeto e de propostas para o País, os mesmos que queriam mudar o nome de Petrobras para Petrobrax durante o governo FHC (1995-2002) agora patrocinam uma campanha contra

Associação Brasileira de Imprensa

Edital de Convocação Assembléia-Geral Extraordinária Nos termos do artigo 19, letra b, do Estatuto da Associação Brasileira de Imprensa-ABI, são convocados os associados quites com suas obrigações estatutárias a se reunirem em Assembléia-Geral Extraordinária, na sua sede na Rua Araújo Porto Alegre, 71, Centro, Rio de Janeiro, no dia 03 de dezembro do corrente ano, às 10 horas, para deliberar, nos termos dos artigos 21, III e 41, I, ambos do Estatuto da Associação Brasileira de Imprensa-ABI, acerca do preenchimento do cargo de Diretor-Presidente, em razão de sua vacância, pelo falecimento do Diretor-Presidente Maurício Azêdo. Rio de Janeiro, 31 de outubro de 2013 PERY DE ARAÚJO COTTA Presidente do Conselho Deliberativo Ata da reunião extraordinária do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), realizada dia 29 de outubro de 2013, para discussão e deliberação acerca do preenchimento do cargo de diretorpresidente, vago com o falecimento do presidente Maurício Azêdo.

a estatal, que foi erguida à custa de sangue e suor do povo brasileiro e hoje é um instrumento importante de desenvolvimento econômico e social. A política de conteúdo local da Petrobras valorizou nossa indústria e gera empregos no Brasil e não no exterior. Os avanços tecnológicos garantem produção na camada do pré-sal em tempo recorde. O fortalecimento da Petrobras desfaz os dogmas neoliberais dos que tentaram entregar 100% da empresa a estrangeiros. A Petrobras de hoje é motivo de orgulho nacional”, disse Guimarães.

A mesa dos trabalhos foi presidida pelo presidente do Conselho, Pery Cotta, tendo ao lado o primeiro e segundo secretários, respectivamente, José Pereira da Silva (Pereirinha) e Moacyr Lacerda. Após leitura do Estatuto da ABI e do parecer jurídico da advogada Maria Arueira Chaves, do Escritório Siqueira Castro Advogados, o presidente declarou a vacância do cargo de diretor-presidente e, de acordo com o artigo 29, inciso VII, do Estatuto da ABI, propôs ao Conselho a indicação do nome do Conselheiro do diretoradministrativo, Fichel Davit Chargel para responder interinamente pela presidência até a realização da Assembléia Geral Extraordinária. Diante da aceitação do cargo por Fichel Davit Chargel, o mesmo passa, a partir desta data, a exercer, de forma interina, o cargo de Diretor-Presidente. Em seguida, o presidente do Conselho, nos termos do artigo 20 do Estatuto da ABI, convocou a Assembléia Geral Extraordinária para o dia 03 de dezembro, às 10h, no Auditório da ABI. PERY COTTA Presidente JOSÉ PEREIRA DA SILVA Primeiro Secretário MOACYR LACERDA Segundo Secretário

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LIBERDADE DE IMPRENSA

A falta de esclarecimento de crimes contra jornalistas é hoje uma das maiores ameaças aos Direitos Humanos. É o que aponta o relator especial para Liberdade de Opinião e Expressão da Organização das Nações Unidas – ONU, Frank La Rue. Durante a abertura da 8ª Conferência Global de Jornalismo Investigativo, no dia 12 de outubro, no Rio de Janeiro, o guatemalteco afirmou que os repetidos casos de violência contra jornalistas – além de processos judiciais, censura prévia e espionagem de agências governamentais – são alguns dos principais obstáculos ao exercício da profissão. “Não há razão para que informações relacionadas à violação de direitos humanos sejam escondidas da opinião pública. Cada ato de violência contra a imprensa que não é investigado pelo Estado é um convite para que aconteçam muitos outros. As autoridades especulam, e ainda insistem que os atos de violência não estão relacionados ao trabalho de jornalista”, criticou La Rue.

O relator disse ainda que as ações penais contra jornalistas por difamação, calúnia e injúria são mecanismos ainda muito utilizados por agentes públicos para impedir a apuração e publicação de denúncias. “Na América Latina, eliminamos o desacato. Agora é muito importante a revisão do conceito e da penalização da difamação, calúnia e injúria”, disse. Ele citou ainda a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos e conglomerados. “Se o Estado quer censurar uma notícia, tem de assumir a responsabilidade.” A plenária “Liberdade de expressão em crise” contou ainda com a presença da relatora para Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos – OEA, Catalina Botero. Segundo ela, mesmo em países democráticos, há obstáculos para o acesso a informações públicas, como processos com multas milionárias e agências de inteligência colocadas por governos a serviço da espionagem de repórteres. “Alguns países têm agências de

informações com práticas que afetam a liberdade de expressão. Outros utilizam agências de investigação para espionarem jornalistas, solapar suas atividades, saber quais são suas fontes, rastrear contas de forma clandestina”, disse. A relatora estimulou jornalistas a procurarem os organismos de direito internacional para denunciarem abusos e perseguições. “Estamos voltando a ver pessoas processadas por fazerem seu trabalho de jornalismo investigativo e submetidas a multas de até US$ 7 milhões”, disse. Também participou da plenária a diretora da Divisão de Comunicação Estratégica do Departamento de Informações Públicas da ONU, Deborah Seward. “A profissão em que trabalhamos hoje é mais perigosa e mais difícil do que minha geração poderia imaginar. Conhecer o Estado de Direito é essencial, mas a responsabilidade de fornecer informações precisas e verdadeiras é a melhor forma de se defender. Liberdade de expressão é nossa obrigação.”

AIR debate ameaças e elege novo presidente P OR C LÁUDIA S OUZA

Representantes de emissoras de rádio e televisão das três Américas estiveram reunidos para a 43ª Assembléia Geral da Associação Internacional de Radiodifusão (AIR), que teve início no dia 13 de outubro, e foi realizado até o dia 17, no Windsor Barra Hotel, no Rio de Janeiro. A AIR reúne 17 mil canais de TV e rádio das três Américas e da Europa. O Presidente da Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert), Daniel Slaviero, apresentou o “Relatório de Liberdade de Imprensa”, com casos de violação verificados nos últimos 12 meses no Brasil. O documento dedica um capítulo especial às ocorrências registradas durante as recentes manifestações no País. O estudo mostra que entre outubro de 2012 a setembro de 2013, foram registrados 136 casos de ameaças, atentados, agressões, censura judicial e assassinatos contra jornalistas no exercício da profissão. Este número representa aumento de 172% em relação aos 50 casos verificados entre outubro de 2011 a setembro de 2012. O relatório de 2013 contabiliza cinco mortes no exercício da profissão desde o início do anos, contra os seis registros de assassinato ocorridos ao longo de 2012. De acordo com a Abert, os casos de hostilidade, agressões e intimidações registrados contra a imprensa a partir de junho de 2013, durante os protestos nas 14

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ruas em diversas cidades brasileiras, contribuíram para elevar as estatísticas. O estudo afirma que das 136 ocorrências registradas em 2013, cerca de 90 estão atreladas às manifestações. Durante os protestos do Dia da Independência do Brasil, comemorado em 7 de Setembro, foram contabilizados 20 ataques a jornalistas de 14 veículos. Dos 20 casos de violência, 18 foram praticados pela polícia. O relatório mostra ainda que Brasília foi a cidade mais violenta para repórteres e fotógrafos no feriado da Independência, totalizando 12 profissionais feridos, todos por policiais militares. “Infelizmente, o ano de 2013 ficará marcado como um ponto negro em razão do aumento explosivo das ocorrências. Quando um profissional de imprensa é impedido de fazer seu trabalho, a sociedade é a maior prejudicada”, afirma o Presidente da Abert, Daniel Slaviero, vice-Presidente do Comitê Permanente de Liberdade de Expressão da AIR. Para ele, o aumento de episódios contra a liberdade de imprensa no Brasil representa “um importante alerta global”: “A situação demonstra que é preciso haver vigilância permanente, pois os casos podem ocorrer mesmo nas democracias. Apesar de ser um valor enraizado na sociedade, a liberdade de expressão e de imprensa é um processo carente de consolidação e de vigilância para impedir retrocessos”.

Slaviero chamou a atenção também para os quatro casos de censura prévia assegurados por decisões judiciais. “É uma fonte grave de preocupação, uma censura proveniente da Justiça, um dos poderes que mais deveriam zelar pelo exercício da profissão. É a fonte de decisões que proíbe os veículos de tratar de determinados assuntos”. Além da divulgação do relatório, durante o encontro foram debatidos temas relacionados à liberdade de expressão e à convergência tecnológica. Posse A programação do evento incluiu ainda a escolha dos novos dirigentes da AIR para o período 2013/2015. Advogado e vice-Presidente do Grupo RBS, Alexandre Jobim, é o primeiro brasileiro a assumir a presidência da AIR em 22 anos. A cerimônia de posse do novo presidente aconteceu no dia 16 de outubro, durante a 43ª Assembléia. Para Alexandre, que é filho do ex-Ministro Nelson Jobim, o setor de radiodifusão concentrará esforços na proteção da liberdade de expressão nos próximos anos. “O grande desafio será a defesa da liberdade de expressão frente aos novos movimentos, mais sofisticados, que tentam cercear essa liberdade. Precisamos também nos modernizar para acompanhar o movimento de convergência digital”, afirmou o substituto do chileno Luis Pardo Sainz. Também foram eleitos os novos diretores da organização.

REPRODUÇÃO

Conferência aponta entraves ao jornalismo investigativo

Jornalista é vítima de censura em Pernambuco P OR M ÁRIO A UGUSTO J AKOBSKIND

A Comissão da ABI de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos solidariza-se com o jornalista pernambucano Ricardo Antunes, que está sendo vítima de cerceamento à liberdade de expressão. Ele foi censurado em seu blog, preso e acusado de chantagear quem ele denunciou, ou seja, o empresário e marqueteiro José Antônio Guimarães Lavareda Filho. A acusação foi bancada pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco, que o proibiu de escrever qualquer coisa sobre o empresário e quatro empresas de sua propriedade, inclusive impedindoo de se defender das acusações. E no caso de que não cumpra a determinação pagará uma multa de cinco mil reais por cada inserção jornalística, seja em seu blog Leitura Crítica ou em outro sítio de informação, ou seja, página de internet, e ainda na mídia escrita. Esse é mais um caso de ‘judicialização’ contra jornalistas que deve merecer o nosso maior repúdio. Se o jornalista eventualmente cometeu algum ilícito deve sofrer as penalidades previstas no código civil. Cercear o seu direito de expressão de pensamento e livre manifestação só mostra o quanto tornou-se perigoso exercer a profissão de jornalista em nosso País. E demonstra cabalmente o quanto os ‘poderosos’ temem uma imprensa livre e independente. É um fato grave que merece toda nossa indignação e um retrocesso institucional que temos certeza será reparado junto aos tribunais de Brasília. Não existe censura prévia no Brasil. A Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos exorta a Justiça pernambucana a suspender imediatamente qualquer tipo de restrição ao jornalista que, na prática, está impedido de exercer a profissão. Rio de Janeiro, 30 de outubro de 2013 Mário Augusto Jakobskind é Presidente da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI.


P OR I GOR W ALTZ

Pelo menos 96 jornalistas brasileiros foram agredidos desde junho, quando teve início a onda de protestos no País, segundo levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – Abraji. Desses casos, 71 (74%) foram resultados diretos da ação de policiais militares. Um dos casos mais recentes aconteceu na tarde de 21 de outubro, quando quatro jornalistas foram agredidos no Rio de Janeiro durante a cobertura de protesto contra o leilão do campo petrolífero de Libra. Houve confronto entre manifestantes e agentes da Força Nacional na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, próximo ao hotel onde o pregão foi realizado. Em nota, a Abraji condenou todos os atos de violência contra jornalistas, sejam eles praticados por manifestantes ou por policiais. “A Abraji cobra mais preparo das autoridades para agir de maneira a garantir o direito de a imprensa trabalhar – e não o contrário, como parecem vir fazendo. É inaceitável que o Brasil tenha quase 100 episódios de agressão, hostilidade ou prisão de jornalistas em pouco mais de quatro meses. Esse índice não é compatível com a democracia e fere o direito de toda a sociedade à informação”, disse o comunicado. Para organizações de direitos humanos e entidades de classe, apesar de as manifestações terem elevado os números parciais deste 2013, a violência contra profissionais de comunicação tem crescido nos últimos anos. Os assassinatos, por exemplo, passaram de dois, em 2005, para seis, em 2011, de acordo com a Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj. O Presidente da Fenaj, Celso Schröder, cita alguns fatores que explicam essa curva ascendente de violência contra jornalistas, entre eles a impunidade. “As agressões ocorrem principalmente na cobertura de política, há um senso comum de que é permitido fazer. É na imprensa que se dá o confronto direto entre os interesses privados, que sejam ilegais, com o interesse público, e isso produz reações”, declarou em seminário internacional sobre violência contra jornalistas e o cerceamento do direito da sociedade à informação. O encontro é promovido pela comissão organizadora do Prêmio Vladimir Herzog, na capital paulista. As entidades sindicais defendem a adoção de políticas públicas para combater esse aumento das agressões, como a formação de um observatório nacional que monitore as denúncias. “É uma questão que tem nos preocupado. Desde o ano passado, um grupo de trabalho da Secretaria Nacional de

Direitos Humanos, com organizações da sociedade civil, discute medidas como a federalização desses crimes”, disse Bruno Renato Teixeira, ouvidor nacional de Direitos Humanos da Secretaria. Ele informou que a criação do observatório deve ser anunciada ainda este ano. Schröder propõe a adoção de um protocolo pelas empresas de comunicação que garanta aos profissionais, entre outras questões, seguro de vida, equipamentos, autonomia do repórter para a escolha da pauta e a criação de uma comissão que avalie os enfoques dados às reportagens. “Boa parte das empresas não dá aos seus jornalistas ferramentas para a proteção”, disse. Ele rejeita a idéia de que o risco é inerente ao jornalismo. “Não é verdade isso. Uma cobertura jornalística precisa ser avaliada desse ponto de vista para que possamos minimizar os riscos quando eles ocorrem”, defendeu. O Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo – SJSP, José Augusto Camargo, avalia que esse tipo de violência não se resolve apenas com ações individuais. “É um problema pessoal, porque envolve o direito ao exercício da profissão, mas também é uma questão coletiva, porque cala a voz da sociedade”. Para ele, a escalada de violência percebida no último mês de junho tem paralelo com o período da ditadura militar. “Não se via isso desde então”. Os casos No dia 21 de outubro, a repórter Aline Pacheco, da TV Record, foi agredida por manifestantes com um soco nas costas enquanto cobria o Leilão de Libra. O

FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

Jornalistas agredidos, coberturas ameaçadas

Jornalistas são agredidos por policiais e manifestantes durante os protestos que acontecem desde junho.

fotógrafo Gustavo Oliveira, da agência britânica Demotix, foi atingido por uma pedrada. O também fotógrafo Pablo Jacob, de O Globo, e o cinegrafista Marco Mota, da TV Brasil, foram atingidos por balas de borracha disparadas por agentes da Força Nacional. Um veículo da TV Record foi virado por manifestantes. Nas manifestações do Dia do Professor, festejado em 15 de outubro, o repórter fotográfico Pablo Jacob foi agredido por policiais com golpes de cassetetes. Na sexta-feira, 18 de outubro, Pablo voltou a ser agredido – desta vez por manifestantes – quando cobria a soltura de pessoas detidas nas manifestações do dia 15. Além dele, os também fotógrafos Carlos Wrede, do jornal O Dia, e Luiz Roberto Lima, do Jornal do Brasil, também foram agredidos por manifestantes. O clima hostil persistiu no sábado, quando novos alvarás de soltura foram expedidos. Em São Paulo, o fim de semana também foi violento para a imprensa. A repórter do jornal O Globo Tatiana Farah foi alvo de dois disparos de bala de borracha

durante protestos no sábado. Tatiana cobria, em São Roque, interior de São Paulo, a manifestação contra o uso de animais (especialmente cães da raça beagle) em testes farmacológicos. Segundo a repórter, embora ela gritasse ser da imprensa e estivesse com as mãos para o alto, um policial do choque mirou seu rosto e disparou uma bala de borracha, que passou de raspão por seu couro cabeludo. Outro disparo feriu-a na região das costelas. Nesse mesmo protesto, manifestantes atearam fogo a dois veículos da TV Tem, afiliada da rede Globo que cobre a região. Ainda em São Paulo, nas manifestações do Dia do Professor, 15 de outubro, o repórter fotográfico Yan Boechat foi espancado por um grupo de policiais militares que tentava impedir que ele registrasse imagens da agressão a um manifestante, segundo o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (SJSP). Levantamento da entidade contabilizou 23 casos de agressão e cinco detenções de profissionais de comunicação durante o mês de junho.

Em Rondônia, execução dentro do estúdio P OR I GOR W ALTZ

Um homem armado invadiu a rádio Meridional FM, da cidade de Jaru, a 290 km de Porto Velho, Rondônia, e assassinou o diretor da emissora, Cláudio Moulero de Souza, na tarde de 12 de outubro. O locutor Alberto Dutra Duran também foi baleado, mas foi socorrido pelo Corpo de Bombeiros ao Hospital Municipal de Jaru – e não corre risco de morte. Segundo informações, o radialista Duran estava no interior do estúdio da rádio Meridional apresentando o programa “Toca aí”, quando por volta das 15h Moulero entrou

correndo pedindo por socorro, pois já detectara a presença do criminoso. Duran ainda tentou fechar a porta, mas foi ferido no ombro com um tiro. O agressor entrou no estúdio e fez novos disparos contra a vítima que, atingida no peito, veio a óbito no local. “Escutei barulhos do lado de fora do estúdio e o Cláudio já empurrou a porta pedindo ajuda. Um homem armado tinha invadido a emissora e disparou contra nós. Fui atingido no braço direito. Quando vi que o sujeito tinha tirado a vida dele pedi, pelo amor de Deus, para não ser morto também”, contou o locutor. Ainda não se sabe o que motivou o crime. Nenhum objeto das

vítimas foi levado. Por isso a Polícia Civil acredita que o caso se trata de um atentado contra o diretor da rádio. O delegado responsável pelo caso, Renato Batistela Cavalheiro, afirma que não tem informações sobre a autoria e as motivações do crime. “As impressões digitais das maçanetas da porta foram recolhidas e vamos continuar com as investigações”. Para Duran, o diretor estava dando sinais de que alguma coisa estava errada. “Ele morava em um anexo, no próprio prédio da emissora. De uns tempos para cá, estava sempre com a porta trancada, deixou de sair, só ficava na igreja”.

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DIREITOS HUMANOS

Páginas de uma luta comovente, que novamente fazem história DIVULGAÇÃO

P OR M ARCOS S TEFANO

Brasília, começo do ano de 1980. Em uma modesta sala comercial, localizada bem próxima ao Superior Tribunal Militar, as três máquinas de ‘xerox’ não paravam. Os funcionários estavam sempre ocupados produzindo cópias de processos que os advogados traziam do Tribunal e os ‘negócios’ iam muito bem. Seria mais um entre tantos pequenos empreendimentos iniciados na promissora Capital Federal não fosse por um detalhe: a copiadora não fora aberta para ganhar dinheiro e, sim, para salvar a memória e resgatar a justiça em toda uma nação. Esse detalhe passou desapercebido pelas autoridades que, há quase duas décadas, mantinham o País debaixo de uma rígida ditadura. Afinal, ninguém poderia imaginar que, justamente ali, ousadia das ousadias, estivesse surgindo um dos mais audaciosos projetos de denúncia contra os crimes e violações de direitos humanos praticados pelo regime, iniciativa que se tornaria conhecida nos anos seguintes como Brasil: Nunca Mais. Ao reproduzir milhares de páginas de centenas de processos, esse projeto escancarou um lado até então pouco conhecido da recente trajetória nacional, formado por prisões arbitrárias, violência, tortura e assassinatos de opositores do regime. Agora, passadas três décadas, todo o material finalmente chega à internet, com a promessa de liberdade para a consulta integral dos documentos. E a confiança de que mais um grande passo foi dado para que esta história nunca mais se repita. Chamada de Brasil: Nunca Mais Digit@l, a iniciativa disponibiliza mais de 900 mil páginas digitalizadas de 710 processos. Todo esse material deixa o papel e os rolos de microfilme para entrar no mundo virtual, com a garantia de fácil e irrestrito acesso. Entre os documentos é possível encontrar a certidão de óbito do guerrilheiro e ex-Deputado Carlos Marighella, morto em uma emboscada armada por agentes da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), em 1969, em São Paulo; páginas do processo movido contra a Presidente Dilma Rousseff, por sua militância em organizações de combate ao regime militar nos anos 1970; e textos, matérias de jornais e revistas, além de fotos que mostram o funcionamento das principais entidades de esquerda, chamadas tantas vezes nos processos de “subversivas” ou “terroristas”. Tudo com a possibilidade de realizar pesquisas com o uso de programas sofisticados de busca indexada que permitem ao internauta procurar pelo objeto de sua busca, por estado da Federação ou por organização política. Essa tecnologia, conhecida como DOCPRO, cria bibliotecas inteligentes e é a mesma usada pela 16

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Paulo Abrão, Luiza Erundina, Rosa Maria Cardoso da Cunha, Aurélio Veiga Rios, Aloysio Nunes Ferreira durante o lançamento da BNM Digit@l.

Biblioteca Nacional, por exemplo, em sua hemeroteca digital, formada por mais de 10 milhões de páginas de jornais. Antes de sair o resultado, no entanto, uma janela se abre na tela do computador e aparece uma advertência que deixa evidente a natureza do material que a pessoa está prestes a ler: “Parcela expressiva dos depoimentos de presos políticos e das demais informações inseridas nos processos judiciais foi obtida com uso de tortura e outros meios ilícitos, e não pode ser considerada como absoluta expressão da verdade”. O processo de reunião de todo esse acervo, digitalização, verificação de danos e correção dos arquivos, tratamento digital e criação do site, envolveu mais de 100 profissionais e estudantes, muitos deles voluntários, durante pouco mais de dois anos. A empreitada foi concebida pelo Armazém Memória e pelo Ministério Público Federal em parceria com o Arquivo Público do Estado de São Paulo. Desde o início, somaram-se a essas entidades o Instituto de Políticas Relacionais, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Rio de Janeiro, o Arquivo Nacional e o Center for Research Libraries / Latin American Microform Project, de Chicago, nos Estados Unidos. Ao longo do tempo, outras entraram no grupo, como a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o Arquivo Edgard Leuenroth da Universidade de Campinas (Unicamp), o escritório de advocacia de Rubens Navaes, Santos Junior e Hesketh, a Comissão Nacional da Verdade e a Universidade Metodista de São Paulo. “A presença de todas essas instituições mostra a importância do Brasil: Nunca Mais Digit@l. A digitalização e disponibilização na internet assegura que esse material seja preservado e mais facilmente acessado. Há relatos terríveis, marcantes. Como o caso de crianças de um ou dois anos torturadas na frente dos pais, presos

políticos, para obter confissões”, disse o Procurador da República Marlon Alberto Weichert, representante do Ministério Público Federal, e um dos idealizadores do projeto, no lançamento do site, que ocorreu em agosto, em São Paulo. Aposta arriscada

Um dos livros nacionais de maior sucesso em todos os tempos é o Brasil: Nunca Mais (Editora Vozes). Lançada em 15 de julho de 1985, quatro meses após a retomada do regime civil, a obra ganhou enorme destaque dentro e fora do País, passando a freqüentar por quase dois anos a lista dos mais vendidos e se tornando, em pouco tempo, o título de não-ficção brasileiro mais comprado de todos os tempos. Até hoje é uma referência quando o assunto é a época da ditadura militar e já se encontra em sua 40ª edição. Apesar de tamanho destaque e importância, o livro-denúncia, escrito pelos jornalistas Ricardo Kotscho e Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, coordenados por Paulo de Tarso Vannuchi, e com prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns, é apenas um resumo do resumo de tudo o que houve. Para entender a trajetória que culminou em sua publicação é necessário voltar a 1979. Na época, o País ainda vivia debaixo dos coturnos militares, mas já sob o impacto da anistia e na expectativa da redemocratização. Esse clima levou um grupo de religiosos e advogados a uma aposta arriscada: obter junto ao Superior Tribunal Militar informações de violações dos direitos humanos praticadas por agentes da repressão e compilar esse material na forma de um livro. Apesar das dificuldades, a ação era vista como a única alternativa para evitar que os processos não fossem destruídos com o fim da ditadura, tal como já havia acontecido com o término do Estado Novo, de Getúlio Vargas. Ao consultar alguns processos que envolviam a defesa de presos políticos, os

advogados, liderados por Eny Raimundo Moreira, perceberam que vários deles haviam denunciado e detalhado as práticas de violência física e moral que tinham sofrido ou presenciado. Também descobriram que os processos poderiam ser reproduzidos, aproveitando o prazo de 24 horas facultado pelo Tribunal para a custódia provisória dos autos. A idéia foi levada ao pastor presbiteriano Jaime Wright e ao cardeal católico Dom Paulo Evaristo Arns, que passaram a comandar a empreitada a partir de São Paulo. Com o auxílio do também pastor Charles Roy Harper, foram conseguidos recursos junto ao Conselho Mundial de Igrejas e, em 1980, alugada uma sala comercial em Brasília, onde passou a funcionar a pequena copiadora. O passo seguinte foi agregar à operação os advogados que se dirigiriam ao Tribunal para retirar os autos. À medida que eram feitas, as cópias eram remetidas para a capital paulista. Primeiro em ônibus noturnos, depois, em aviões de carreira, como carga desacompanhada, ou por carro. A preocupação quase onipresente era de uma possível apreensão. De fato, durante os trabalhos, em três ocasiões, as forças policiais e militares estiveram próximas de encontrar e invadir os lugares de análise e guarda dos documentos, o que obrigava a constantes trocas de esconderijo. Diante do temor e dos recursos tecnológicos de então, todas as páginas foram microfilmadas e remetidas à sede do CMI, em Genebra, na Suíça. Foram seis anos de muito trabalho e tensão. Mas, enfim, foi possível reunir a cópia de 710 processos em mais de 900 mil páginas e 543 rolos de microfilme. Além disso, também foram copiados diversos materiais anexos aos processos, como panfletos, periódicos e textos de discussão teórica, que renderam outras 10 mil páginas. Com base nessa documentação foi produzido o chamado Projeto A, com análise e documentação das informações que constavam nos processos judiciais, identificando quantos presos passaram pelos tribunais militares, quantos foram formalmente acusados, presos, quantos declararam ter sido torturados, quantos despareceram, quais eram as torturas mais praticadas, quais eram os centros de detenção e quem eram os médicos plantonistas dos “porões” e alguns funcionários identificados pelos presos políticos. Material que rendeu 6.891 páginas divididas em 12 volumes. Foi a dificuldade em manusear esses volumes que levou à produção de um material 95% menor, o Projeto B, que se transformou no livro Brasil: Nunca Mais. Enquanto o livro-denúncia era publicado, foram feitas 25 cópias do Projeto A. Estas foram encadernadas e enviadas para


universidades, bibliotecas e centros de documentação de entidades dedicadas à defesa dos direitos humanos no Brasil e no exterior. Já as cópias originais ficaram sob a guarda da Unicamp que, após recusa da PUC-SP e da USP, comprometeu-se a guardar e disponibilizar o acervo para consulta. Inclusive, reprodução. Protestos

Nos meses de junho e julho deste ano, milhões de brasileiros saíram às ruas das principais cidades brasileiras para protestar. A causa primeira era o aumento das tarifas dos transportes públicos. Mas a ela se somaram as mais diversas reivindicações: saúde, educação, fim da corrupção e melhores condições de vida. Tão variados quanto as bandeiras eram seus participantes, a imensa maioria constituída de jovens, que comemoram a tomada das vias como uma vitória da cidadania. Um movimento surpreendente, mesmo para a polícia que, sem preparo, reagiu às manifestações pacíficas com atos de violência. São justamente esses momentos, com bombas lançadas e tiros disparados contra os populares, que não saem da mente do jornalista Marcelo Richard Zelic. Vice-Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais em São Paulo e coordenador do Projeto Armazém da Memória, portal formado por uma rede de colaboração para disponibilização de conteúdos históricos de resistência popular na internet, Zelic costuma debater a importância do resgate da memória no País. Nessas oportunidades, é inevitável a constatação de que o “nunca mais” ainda está distante dos brasileiros: “Quando ouvimos alguém perguntar ‘onde está Amarildo?’, não dá para deixar de lembrar que o mesmo questionamento foi feito há quatro décadas pelos familiares de desaparecidos a Dom Paulo. Quando um policial militar deixa de cumprir suas funções, determinadas pela Constituição de 1988, que são garantir o direito de manifestação e expressão, pelo contrário, entra disfarçado na manifestação e joga coquetel molotov em seus próprios colegas de trabalho para criar pretexto para a repressão, em que sua prática se difere daquela dos manuais para infiltrados nos tempos da ditadura? Quando surgem denúncias do uso de taser, a arma do eletrochoque, e gás de pimenta em delegacias, para torturar pessoas, vemos que o Estado muda a tecnologia, mas perpetua a conduta. Em vez da manivela, entra em cena o taser.” Sem informação e educação não é possível mudar esse quadro, por isso, desde 2001, o Armazém Memória colocou como seu grande objetivo digitalizar a íntegra do Brasil: Nunca Mais. O primeiro passo foi a digitalização e disponibilização do Projeto A. Com ele, desenvolvido em parceria com o Ministério Público e outras instituições, o objetivo foi se tornando cada vez mais real. Ou melhor, virtual. Mas ainda havia problemas. Após checar o acervo que está na Unicamp, os pesquisadores constataram a ausência de muitas páginas dos processos, provavelmente, extraviadas ao longo dos anos.

Foi aí que começou a procura pelos microfilmes de segurança, que continham a cópia mais fiel e íntegra do material. Após dois anos, eles tiveram acesso ao material do CMI e a mais uma cópia, depositada pela entidade no Latin American Microform Project (LAMP), do Center Research Libraries, um consórcio internacional de universidades, faculdades e bibliotecas independentes, sediado em Chicago, nos Estados Unidos, e que preserva coleções de microfilmes latino-americanos raros e de relevância histórica. Trazidas para o Brasil em 2011, todas as cópias foram somadas e, junto com o Projeto A e materiais da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, passaram a formar o acervo do Brasil: Nunca Mais Digit@l. No ar desde o dia 9 de agosto, somente na primeira semana, quase 300 mil páginas do site foram acessadas e 36 mil pesquisas foram feitas. Números que tendem a aumentar, já que o Ministério Público está fazendo um sumário dos processos que ajudará os interessados a localizar informações a partir do conteúdo dos processos, acessando também mais de 13 mil fotografias. Não somente isso. Mesmo após rigoroso tratamento digital, estimase que cerca de 108 mil páginas ainda estejam em condições precárias de leitura e outras 35 mil – contando apenas as bastante relevantes – faltando. Elas deverão ser substituídas pelas originais, que estão no Superior Tribunal Militar. A digitalização será feita pelo Arquivo Nacional e começará após a descontaminação e limpeza do material. “O Brasil: Nunca Mais é considerado a maior iniciativa da sociedade civil em nossa nação em prol dos direitos à memória, verdade e justiça. Graças a ele, pudemos jogar, nesses últimos anos, luzes na turbulenta e conturbada história nacional. A digitalização desse acervo facilita o acesso a essa história. Serve como ponte para o cumprimento de sua finalidade inicial, que é a educação. Com sua chegada à internet, abrimos as portas para alcançar as novas gerações, aquelas que estão aprendendo a usar as redes sociais como instrumento de mobilização e cidadania”, afirma Marcelo Zelic, um dos diretores executivos do BNM Digit@l. Há quem aposte nisso para que essas páginas sejam finalmente viradas na história do País. Pelo menos por enquanto isso parece improvável. Ainda mais quando se sabe que o Brasil ainda não cumpriu a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado pelos crimes cometidos na Guerrilha do Araguaia, e ainda não desobstruiu na Justiça os caminhos para que ocorram as devidas responsabilizações e reparações. Seja no caso do militante Guilherme Gomes Lund, do PCdoB, fuzilado pelas Forças Armadas em 1975, ou em quaisquer outros. Ou mesmo diante dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que ainda patinam. Espera-se, enfim, que o BNM Digit@l seja mais um impulso para o sucesso das tantas investigações e ações que aguardam sua vez na Justiça Transicional.

Ley de Medios, um exemplo a seguir POR MILTON TEMER O primeiro grande argumento de defesa da Ley de Medios, cuja constitucionalidade foi garantida pelo Supremo Tribunal de Justiça da Argentina, está na indicação de quem contra ela se mobiliza em uma guerra total – a Sociedad Interamericana de Prensa e os grandes grupos mediáticos que a controlam, principalmente o grupo Clarin. Porque é esse grupo o principal beneficiado por acordos e concessões firmadas durante o período trágico da ditadura militar que conseguiu se destacar, em crueldade e vileza, em meio às suas demais parceiras do continente. Acordos e concessões que, em grande parte, perdem validade com esse avanço substancial do processo de democratização dos meios de comunicação na Argentina, e que certamente vai ter desdobramentos internacionais, como exemplo a seguir. Mas, vamos ao grão. Do que trata a Ley de Medios? Promulgada na Argentina, em 2009, ainda não foi implementada por rasteiras manobras judiciárias de quem possui poderosos instrumentos econômicos e políticos para a defesa de seus privilégios históricos. E por razões óbvias. Pois o que tal lei representa é exatamente o banimento da legislação anterior, promulgada pela ditadura militar assassina em 1980, e dentro da qual se locupletaram e se locupletam os que hoje se colocam contra qualquer regulamentação. Legislação diante da qual, por sinal, a SIP nunca mobilizou nenhuma campanha. O que pretende a legislação renovadora? Produto de amplo debate, não só parlamentar, mas também social, visto que contando com a participação de mais de 300 organizações da Sociedade Civil, não só do campo do trabalho como também do empresarial. Pretende por acaso ofender a propriedade privada ou estabelecer a censura, como alardeiam os arautos da manutenção do status quo reacionário ora em vigor? Certamente que não. De pronto, porque a Ley de Medios não se estende a jornais, revistas ou a qualquer outro segmento do setor privado. Como está definido em seu próprio título original – Ley de Servicios de Comunicacion Audiovisual –, destina-se especificamente a regulamentar o setor que opera por concessão de direito público. E atendendo, antes de tudo, para além do previsto na Constituição argentina, ao que se estabelece na Declaração de Princípios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Seu item 12 é explícito: “Os monopólios ou oligopólios na propriedade e controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis anti-monopólio, uma vez que conspiram contra a democracia ao restringirem a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito dos cidadãos à informação. Em nenhum caso essas leis devem ser exclusivas para os meios de comunicação. As concessões de rádio e televisão devem considerar critérios democráticos que garantam uma igualdade de oportunidades de acesso a todos os indivíduos”. Seguindo tal preceito, os canais de rádio e TV argentinos passam a ser distribuídos em partes equânimes, entre sociedade civil organizada, poder público e o setor privado, com o número de canais limitado, de molde a impedir o vetado pela CIDH. Simples assim. O resto é o velho cantochão da direita antidemocrática. A íntegra da lei, em espanhol, está em infoleg.gov.ar/infolegInternet/anexos/155000-159999/ 158649/norma.htm

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HISTÓRIA ARQUIVO AGENCIA BRASIL

Bernardo Cabral, Fernando Henrique Cardoso e Ulysses Guimarães durante a promulgação da Constituição cidadã. Ao lado, Ulysses e a Constituição de 1988.

A Carta da Liberdade, 25 anos depois Relator da Assembléia que resultou na Constituição de 1988, Bernardo Cabral faz uma análise do documento que ajudou a formatar. Festeja acertos da Lei, lamenta alguns erros ao longo do processo político. E fala do País que o Brasil poderia ser. FRANCISCO UCHA

P AULO C HICO

Poucas são as pessoas que efetivamente resistem bem ao passar do tempo. O mesmo vale para documentos. Pois Bernardo Cabral dá prova de vitalidade, aos 81 anos, como consultor da Presidência da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), entidade localizada na Avenida General Justo, no Centro do Rio de Janeiro. É com lucidez estimulante que o político – cuja trajetória inclui os cargos de Deputado Federal, Senador e Ministro da Justiça – analisa, a pedido do Jornal da ABI, uma de suas principais realizações no campo Legislativo. Cabral ajudou a redescobrir o Brasil, ao atuar como relator da Assembléia Constituinte de 1987 – aquela que resultou na Constituição de 1988, que recolocou em definitivo o País na rota da democracia. Carta Magna e fundamental que, neste 2013, completa 25 anos. Desde sua elaboração e promulgação, em 5 de outubro de 1988, a Constituição brasileira vigente é apontada como uma das mais modernas do mundo. Mas, passado um quarto de século, será que ela continua a merecer essa classificação? “Sem dúvida. Basta uma simples leitura dos artigos e incisos do art. 5º, do Capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e Co18

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Bernardo Cabral: A Constituição garantiu o restabelecimento da democracia, além de firmar a expressa consagração do respeito aos Direitos Humanos como princípio fundamental.

letivos. E fora dele, o Capítulo que trata do Meio Ambiente, pioneiro em consagrar mundialmente o tema a nível constitucional, e que hoje serve de exemplo para o resto do mundo”, aponta o ex-Senador. Fundador do extinto MDB, Bernardo teve seu mandato de Deputado cassado

pelo AI-5, editado em 13 de dezembro de 1968. Em 10 de fevereiro de 1969 teve suspensos seus direitos políticos por dez anos e interrompida a sua carreira de professor universitário. Por isso mesmo, o parlamentar destaca o papel vital desempenhado pela Constituição na fase de

transição do sombrio regime militar para a primeira eleição direta para Presidente da República em pouco mais de duas décadas – e que se realizou logo no ano seguinte à sua promulgação, isto é, em 1989. “A Constituição não só garantiu o restabelecimento e a manutenção da democracia como teve o grande mérito de soterrar a época do obscurantismo, além de firmar a expressa consagração do respeito aos Direitos Humanos como princípio fundamental; o alargamento das garantias fundamentais, com ênfase para o “habeas data”; o mandato de injunção; a garantia do devido processo legal; os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, conferidos às Comissões Parlamentares de Inquérito; o capítulo inovador e exemplar da ciência e tecnologia; o combate sem trégua à corrupção, através do fortalecimento do Ministério Público; a liberdade de expressão e de comunicação; o acesso à informação; o sigilo da fonte; e o fim da censura”. Cabral recorda-se do contexto político daquela época. “Não havia nenhum esboço previamente preparado do texto, apesar de existir a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, composta por notáveis, sob a presidência de Afonso Arinos, no Rio de Janeiro. Ali, já se apostava num modelo parlamentarista de governo. A proposta foi enviada ao José Sarney, Presidente da época, que sempre foi presidencialista e não a mandou para a Assembléia Constituinte como um ante-projeto. Ou seja, não valeu de nada”. Coube ao grupo encabeçado por Bernardo transformar mais de 40 mil emendas no texto final, que seria promulgado em 5 de outubro de 1988. “Como Ulysses Guimarães definiu, tínhamos enfim a Constituição Cidadã. Historicamente, as constituições do Brasil começavam pelo Estado, nasciam a partir de suas demandas – e ao cidadão era reservada a parte final dos artigos. Nesta, de 1988, o texto abre com os direitos indi-


ARQUIVO AGENCIA BRASIL

ARQUIVO AGENCIA BRASIL

Parlamentares comemoram e cantam o Hino Nacional depois de promulgada a Constituição.

viduais. O homem é a própria substância do texto constitucional”. Apesar dos acertos, o relator lamenta a retirada do texto de alguns tópicos que faziam parte do esboço inicial, como a implantação do Instituto de Desapropriação para o Fim de Reforma Agrária. Ao detalhar o processo de elaboração da nova Carta, que substituiria a que vigorava desde 1967, Cabral destaca a preocupação e a responsabilidade do grupo envolvido nos trabalhos. “Tratava-se de reordenar democraticamente o País após a ruptura da ordem constitucional. E a importância, para a sociedade brasileira, de uma Constituição democraticamente votada era evidente para todos. Sem ela os valores fundamentais em que se deve basear a sociedade estão permanentemente ameaçados. Uma Constituição deve espelhar o estado atual das relações sociais, mas, ao mesmo tempo, servir de instrumento para o progresso social”, disse. Se ainda apresenta-se em boa forma, a Constituição de 1988 não deve qualquer agradecimento às dezenas de emendas editadas seguidamente pelos Presidentes desde sua promulgação. “Esse processo aviltou e muito a sua essência. Aliás, a derrota do parlamentarismo foi o grande erro cometido na votação do plenário que derrubou esse sistema de governo, erro esse que ocorreu pela ambição e vaidade de uns, falta de perspectiva de outros e incompreensão de muitos. E que se tornou irreparável porque, apesar de ter desaguado na Revisão Constitucional de 1993 e das minhas advertências, os presidencialistas mantiveram o instituto da Medida Provisória que, a meu ver, só pode coexistir com o parlamentarismo. E o resultado funesto foi a transformação do Presidente da República no papel de usurpador das funções do Congresso Nacional.” Para Bernardo Cabral, as MPs fazem da figura do Presidente da República o maior ditador de todos os tempos – tornando-o

um “autêntico assassino do poder legislativo”. Todos os presidentes que sucederam 1988 utilizaram as MPs, uns de maneira vergonhosa, na avaliação do relator. A mesma proliferação desenfreada ocorreu com as emendas. Nestes 25 anos, a Constituição de 1988 sofreu 80 delas – número considerado elevado, e que resultou, em média, numa pequena mexida a cada quatro meses. Apenas como comparação, em seus 224 anos de existência, a Lei Máxima norte-americana sofreu apenas 27 emendas. “Medidas provisórias não podem ser usadas no sistema presidencialista. No parlamentarismo, o primeiro ministro apresenta ao congresso o seu plano de governo. Ele precisa cumpri-lo, para manter-se no poder. O presidente, por sua vez, tem mandato conhecido. Toma posse e esquece de suas promessas de campanha. A maior falha é dar a uma só pessoa a chefia do Governo e a chefia do Estado. No parlamentarismo, o chefe do Estado é um, o chefe do Governo é outro. Veja bem se o presidencialismo de coalizão funciona no Brasil? Muito melhor estaria este País se fosse parlamentarista. Se criou o termo ‘mensalão’ – que nada mais foi do que a prática da Presidência da República de comprar votos para que fossem aprovados determinados projetos. No sistema parlamentarista isso não acontece, pois tudo se dá por meio de negociação entre partidos. Acontece que, hoje, temos legendas de aluguel, que fazem trocas de favores, não bem conceituados... Nós nunca teremos partidos fortes no Brasil enquanto estivermos no sistema presidencialista”, lamenta. Isso ajuda a entender porque ainda existe tanta distância entre o que preveem os termos da Constituição e o quadro real da sociedade brasileira. Entre o ‘ordena-se’ e o ‘cumpra-se’. “Essa distância se deve ao que eu defino de ‘como realizar a Constituição’, tarefa superior pela qual são responsáveis os agentes políticos dos

três Poderes da República; os congressistas, porque lhes cabe o dever, até aqui indiferente, de complementar e integrar o texto da Constituição; os magistrados nacionais, especialmente alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, porque há dispositivos constitucionais que o Judiciário não lhes explorou as virtualidades; e, finalmente, o titular da Presidência da República que, lamentavelmente, vem mantendo o vezo eventual da hegemonia do Executivo, dando-lhe ares de presidencialismo imperial, quando mais salutar seria realizar integralmente o programa normativo da Constituição”. Formado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas, seu estado natal, Bernardo Cabral é defensor radical da reforma política. “Ela é a mais importante, pois dela todas as demais são consequências... As pessoas procuram seus financiadores de campanha e amanhã ficam vinculadas a retribuírem o favor recebido – é uma desmoralização por antecipação! A maioria dos escândalos de corrupção, na esfera dos governos, ocorre por conta das nomeações feitas com base nas negociações políticas, para ter apoio no Congresso. As relações políticas, no Brasil, quase sempre padecem de um vício de origem. Qualquer Presidente da República, em seu primeiro ano de governo, goza de simpatia e apoio – e esta é a hora certa de fazer a reforma política. Pena que a Dilma Rousseff, assim como seus antecessores, tenha perdido esta oportunidade”. O que desagrada em cheio ao ex-Senador, cuja história em detalhes pode ser conhecida no livro Bernardo Cabral – Um estadista da República, escrito pelo advogado Júlio Antonio Lopes, são as frequentes iniciativas de convocação de uma Constituinte, a fim de promover reformas profundas na Carta Magna. Proposta deste tipo foi feita recentemente pela Presidente da República, ainda sob o efeito do calor das manifestações de rua.

“A Constituição de um país é uma Lei fundamental que mostra as diretrizes que a nação quer seguir... Não dá pra mudar esse texto em função de interesses secundários ou momentâneos. Fazer agora a convocação de uma assembléia para mudar a constituição? Isso é uma burrice! Só se convoca uma constituinte quando há ruptura do poder... Em 1889, com D. Pedro II, foi proclamada a República, as casas de poder até então existentes foram fechadas – e logo foi convocada a assembléia e feita a primeira Constituição republicana, pondo fim à monarquia. A Constituição de 1934 também foi fruto de uma ruptura política, sendo filha direta da Revolução Constitucionalista de 1932. No momento, não temos essa ruptura política. Os poderes Legislativo e Judiciário funcionam, a Presidência também...”, pondera o relator. Mas, o que representam as manifestações populares que tomaram conta das ruas do País desde o primeiro semestre deste ano, quando interpretadas à luz da Constituição de 1988? “Elas devem ser analisadas no contexto em que elas, a princípio, tinham bem definido: a reivindicação de medidas inadiáveis que vinham sendo relegadas ao absoluto descaso pelo poder público, para dizer o mínimo. Essas manifestações tiveram o condão de revelar que o povo estava equidistante, mas não indiferente. Daí terem recebido os aplausos iniciais, os quais acabaram se transformando em reprovação à baderna e ao quebra-quebra generalizado. De qualquer sorte, é preciso dizer que a nossa Lei garante o direito de ir e vir, mas não incentiva e nem garante a destruição de bens públicos ou particulares.” O relator da Constituinte de 1987 confessa que esperava maior destaque às comemorações dos 25 anos da atual Constituição brasileira. E, mais do que isso, algum debate efetivo sobre sua relevância. “Na minha avaliação, o destaque nos jornais e na mídia em geral foi apenas relativo... Eis que não se promoveu um amplo debate nacional sobre a Carta Magna. E, com isso, a esperança que havia entre alguns interessados para que isso ocorresse – pelo menos, para mim – não passou de uma frágil aspiração em trânsito para o desencanto”, resume. É com a experiência de quem teve seus direitos políticos cassados, e enfrentou inclusive episódios extremos de violência, como o caso da Bomba do Riocentro, em 1983, quando ocupava a Presidência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que Bernardo Cabral festeja o papel histórico do documento que ajudou a elaborar. “Parlamento emasculado, vítima de descrédito junto à população, cenário em que vivemos, é uma coisa terrível. Mas é infinitamente melhor do que um parlamento fechado, símbolo máximo da ditadura. Precisamos ter em mente que se não fosse esta nova Constituição – e, na época, os críticos diziam que ela não duraria seis meses – nós não teríamos trilhado em segurança os caminhos que nos levaram novamente a um Estado democrático e de direito”.

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DEPOIMENTO

DIVULGAÇÃO

“Meus filhos foram criados por meus inimigos” Em autobiografia reveladora, o ex-publicitário Carlos H. Knapp narra como trocou a carreira promissora pela luta armada e os dramas que viveu no exílio. P OR G ONÇALO J UNIOR

Talvez o leitor interessado em história política do Brasil nos últimos 50 anos não tenha lido tudo que deveria sobre a luta armada na ditadura militar brasileira e o exílio a que muitos combatentes do regime foram obrigados a se submeter entre 1964 e 1979, ano em que entrou em vigor a Lei da Anistia. Essa é a impressão que dá ao conhecer a autobiografia Minha Vida de Terrorista, do ex-publicitário paulista Carlos H. Knapp, que acaba de ser lançado pela Editora Prumo. De olhar sensível e dramático para a própria trajetória e tudo que o cercava na ditadura, o autor não se limita a contar histórias surpreendentes como, também, a interpretá-las. Assim, ressalta toda a dramaticidade dos dez anos em que foi obrigado a ficar longe dos filhos e de seu País. O protagonista vai da decisão arriscada de resistir ao governo militar à solidão que o isola, deprime e até destrói a vida do exilado. Considerado um dos melhores redatores de São Paulo na segunda metade da década de 1960, Carlos Henrique Knapp era um exemplo de self-made man. Jovem e bem sucedido, ele tinha seu próprio negócio, a agência Oficina de Propaganda. No meio publicitário, chamava atenção pela criatividade em um período importante de profissionalização da propaganda brasileira, mais antenada e influenciada no que se fazia de mais contemporâneo no primeiro mundo, como Estados Unidos e Inglaterra. Assim, a publicidade nacional – feita em grande parte por agências multinacionais que mantinham filiais nas principais capitais do País – assumia novos riscos para se adaptar às mudanças de comportamento dos consumidores, em plena revolução sexual e popularização da TV. Para Knapp, o contexto não podia ser mais cômodo e estimulante. Mas, enquanto isso, o Brasil mergulhava numa repressão sem precedentes em sua história, com prisões, tortura e morte de suspeitos que faziam parte de organizações armadas clandestinas. Quem poderia imaginar, portanto, que o publicitário, no decorrer de dois anos, fez parte da rede de apoio à Ação Libertadora Nacional (ALN), o grupo revolucionário liderado por Carlos Marighella (1911-1969), que atuava como principal opositor ao regime militar? Knapp levava uma vida du20

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pla quase imperceptível até mesmo dos parentes mais próximos. Durante o dia, atendia clientes, criava anúncios na agência e relaxava em partidas de tênis com amigos no clube Sociedade Harmonia, então considerado o mais exclusivo de São Paulo. À noite, porém, fazia contatos revolucionários e mantinha conversas com Marighella. Durante algumas semanas, o inimigo público número 1 dos órgãos de repressão ficou escondido na sua residência, no Jardim Europa, bairro da alta classe média paulistana, a 300 metros da casa do general que comandava o II Exército, José Canavarro Pereira, o quartel-general da tortura em São Paulo. A família só descobriu o segredo quando o filho Eduardo, então com cinco anos, efusiva e inocentemente identificou o pai em um cartaz com fotos de terroristas procurados pela polícia. Ele olhou e disse: “Mamãe, olha o papai!” A resposta foi curta e grossa: “Cale a boca!” Knapp “caiu” em 1969, depois de prestar socorro a um guerrilheiro baleado. Para escapar da prisão e dos centros de tortura, fugiu do Brasil. Deixou a agência, a carreira bem-sucedida e os filhos pequenos, que moravam com a ex-mulher. São essas histórias que ele conta em sua autobiografia, que traz principalmente a tortuosa vida pelo exílio, como ele explica nesta entrevista exclusiva ao Jornal da ABI. Graças às cadernetas com anotações que fez ao longo de dez anos, ele relembra com riqueza de detalhes encontros com famosos como Miguel Arraes, Oscar Niemeyer, Tom Jobim e Chico Buarque, entre outras personalidades. Uma vida marcada pela necessidade constante de disfarces, novas identidades, documentos e variações de empregos. Um dos momentos mais fortes da obra é o drama de ter sido obrigado a se afastar dos filhos, um trauma até hoje não superado por toda a família. Para ele, este foi um golpe mais duro do que ter perdido seus bens para o delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais temidos torturadores e matadores das forças de repressão da ditadura. A seguir, ele fala da experiência de voltar no tempo e rever histórias tão dolorosas.

Carlos Knapp em foto da década de 1970 e alguns dos documentos que ele utilizou como Henrique Rossmann.

Jornal da ABI – O senhor demorou muito tempo para se decidir a escrever um livro de memórias sobre sua experiência como militante político na ditadura militar? Quanto tempo levou até começar a fazê-lo de fato? Carlos Knapp – Ao voltar do exílio, em 1980, comecei a redigir um relatório baseado no meu bloco de notas e numa boa memória. Na verdade, foram muitos blocos de notas em que eu ia anotando observações, indiscriminadamente, no decorrer dos meus dez anos obrigado a viver fora do meu País. A intenção não era a de publicar um livro, e sim de contar o que aconteceu, mostrar que eu não era o bandido que pintavam os militares e as forças de repressão. Por isso, chamei esse relatório de Confissão Sem Tortura e essa epígrafe ficou como subtítulo do primeiro capítulo de Minha Vida de Terrorista. Jornal da ABI – O bloco de notas foi iniciado quando o senhor estava no exílio já pensando em escrever depois uma biografia? Carlos Knapp – Não, era apenas um ainde memoire, digamos assim, já descartado, inclusive. Mas muitas cartas guardo ainda por seu valor afetivo, principalmente. Jornal da ABI – Algum fato em especial o motivou a escrever a autobiografia? Carlos Knapp – Aos amigos e parentes eu costumava contar passagens do meu exílio, uma levando à seguinte, nesse encadeamento vertiginoso dos fatos, como depois narrei no livro. As pessoas ouviam entre perplexas e fascinadas, muitas vezes duvidan-

do que tudo aquilo pudesse ter acontecido na vida de uma única pessoa. Tais demonstrações de interesse me levaram a acreditar que esse meu livro teria público leitor. Entretanto, minha motivação para escrevê-lo foi a vontade de denunciar o esbulho legal que me impediu de criar meus filhos pequenos na Europa, após a morte de sua mãe, em São Paulo. Essa foi a mais pesada das punições das que me foram impostas; meus filhos foram criados por meus inimigos. Jornal da ABI – Conte melhor essa história dos seus filhos. O senhor tinha quantos anos de exílio? Nesse período, tinha conseguido vê-los? Carlos Knapp – Quando me instalei em Londres, no ano de 1972, com work permit e nome na lista telefônica, a comunicação com meus filhos e com Arlette, sua mãe, foi restabelecida por uma correspondência intensa, por meio de telefonemas e remessa de pacotes pelos Correios. Fizemos eu e minha ex-exposa um pacto que pretendíamos cumprir de qualquer jeito, claro: se um dos pais vier a faltar, o outro assume as crianças. E ela partiu quando eu estava exilado. Jornal da ABI – Como sua esposa morreu? Quanto tempo depois chegou a notícia? Carlos Knapp – Em fevereiro de 1974, quando assistia aos desfiles de carnaval no Rio de Janeiro, Arlette teve uma forte crise de asma. No pronto-socorro a que foi levada não havia oxigênio e ela morreu sufocada. Recebi a notícia somente uma semana depois. Jornal da ABI – O senhor tentou levar seus filhos para a Europa? Carlos Knapp – Assim que soube da morte de Arlette, pedi que a família dela me enviasse as crianças. Juntei a autorização paterna para a viagem, documento passado no consulado brasileiro em Londres.


Fiz tudo como exigia a lei. Mas já então a comunicação entre mim e meus filhos tinha sido terminantemente cortada. Logo depois do enterro, entraram em juízo para cassar o meu pátrio poder. Meus filhos passaram a ser criados por meus inimigos. Só pude revê-los na tentativa de seqüestro que fiz, dois anos mais tarde. Jornal da ABI – É um costume seu ler os livros de memória que são publicados sobre a luta armada e a repressão na ditadura? O que o senhor acha deles? Carlos Knapp – Alguns desses livros são de leitura penosa, fazem celebrações de uma guerra sem vitórias. Consultei bastante o volume Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos 1964-1985 como fonte complementar do meu. Quero mencionar duas obras que eu amo. Uma é Crônicas Subversivas de Um Cientista, em que Luiz Hildebrando mostra que é escritor quase tão bom quanto cientista – e ele é um dos poucos pesquisadores de ponta deste País. As crônicas de Luiz Hildebrando relatam a sua militância de comunista desde os tempos de estudante, o seu duplo exílio na França e sua gestão de diretor do Departamento de Biologia Molecular do Instituto Pasteur, ao lado de Jacques Monod, Prêmio Nobel de Medicina – na ocasião, Hildebrando foi processado pela ditadura por trabalhar para um governo estrangeiro sem pedir licença ao general presidente do Brasil. A outra é K, a obra-prima de Bernardo Kucinski, que já tem traduções publicadas na Inglaterra, Espanha e Alemanha. De um dia para o outro, Ana Rosa, irmã de Bernardo, professora de Química da USP, desaparece junto com o marido; seu pai passa a procurar a filha nas delegacias, DOPS, Ministério da Justiça, hospitais, necrotérios e busca apoio do cardeal, do rabino, de organizações de solidariedade internacional. O livro descreve essa via crucis pungente em que o velho K é iludido e desencaminhado pelas pistas falsas que lhe são confidenciadas pelas autoridades. Jornal da ABI – Quais erros mais comuns são cometidos nesses livros sobre a resistência armada à ditadura? Carlos Knapp – Não os estudei para poder fazer esse tipo de análise. Jornal da ABI – Num dos volumes escritos por Elio Gaspari, sobre o governo Geisel, tem-se a impressão de que a base do texto foi o diário de um militar, Heitor Ferreira, que trabalhava no gabinete do Presidente. Mesmo assim, o livro foi ovacionado. Não incomoda essa memória fragmentada e, às vezes, distorcida, porém vendida como verdades absolutas sobre a ditadura? Carlos Knapp – Não podemos afirmar que, com a distância, a história estabeleça as verdades verdadeiras. Ela se baseia nos registros e crônicas da época, nas celebrações, nas vozes dominantes do tempo, no senso comum vigente. O que aprendemos na escola sobre a Guerra do Paraguai nada tem a ver com a verdade. E sem olhar tão longe: sabemos que Fernando Henrique Cardoso é estadista de muito maior signi-

ficado que Lula, mas podemos imaginar que, dentro de cem ou duzentos anos, os livros de história possam dedicar muito mais espaço a Lula por causa de sua carreira mítica e única: de migrante nordestino a líder partidário e Presidente da República. Jornal da ABI – Existe alguma ironia, alguma provocação no título de Minha Vida de Terrorista ou foi só um termo de efeito de um publicitário? Carlos Knapp – O cartaz com minha foto, “Terroristas procurados – Assaltaram – Roubaram – Mataram pais de família”, vai reproduzido na contracapa do livro e justifica a ironia do título. Há muito tempo deixei de ser, felizmente, um publicitário. Jornal da ABI – Ao voltar do exílio, como o senhor retomou sua vida? Por que ‘felizmente’ deixou de ser publicitário, se este era um futuro tão promissor antes do exílio? Carlos Knapp – Quando voltei, as portas das agências estavam fechadas para gente estigmatizada como eu. Fui diretor do Instituto Universal Brasileiro, que vendia anacrônicos cursos por correspondência. A empresa ainda era grande anunciante, mas estava quebrada. Consegui passá-la ao concorrente e formei uma editora de cursos de extensão cultural, também por concorrência. Semana sim, semana não, anúncios de cursos de música, desenho e redação publicados em Veja produziram um número de alunos satisfatório durante alguns anos, até que as greves dos Correios e a reforma monetária de Zélia Cardoso de Mello – ministra da Economia do governo de Fernando Collor – quebrassem a espinha do negócio. Jornal da ABI – O que o senhor destaca de contribuição para a memória daquele período que seu livro traz? Algum episódio desconhecido ou mal explicado foi esclarecido? Carlos Knapp – O livro faz algumas revelações, a mais desconhecida delas deve ser a venda de petróleo da Argélia para o Brasil, nos anos de 1970, que rendeu uma comissão de mais de três milhões de dólares (então uma fortuna) à empresa criada naquele país por Miguel Arraes para operar em comércio exterior e gerar recursos para as atividades do MPL, organização de oposição à ditadura integrada por ilustres jornalistas, intelectuais, políticos e religiosos. Meu livro cita os nomes. O MPL rejeitava a luta armada e seu líder, Arraes, achando que estava na canoa errada, quis desviar o dinheiro para a ALN de Marighella. A organização não concordou e houve uma cisão com a conseqüente briga pelo talão de cheques. O governo argelino interveio e promoveu a partilha, um milhão e meio de dólares para cada lado. Jornal da ABI – Mais de quatro décadas depois, que avaliação o senhor faz de seu envolvimento com a luta armada? O que o levou a correr o risco de interromper sua carreira? Carlos Knapp – O sucesso profissional nessa área sobrevalorizada me dava uma

falsa sensação de poder. Eu era uma pessoa presunçosa e confiante na sorte, nada de ruim poderia ocorrer comigo. Zelo pela carreira eu não tinha porque crescia em mim a noção do papel da publicidade comercial na construção da civilização do consumo, que então já se esboçava. Jornal da ABI – Essa presunção e confiança na sorte fez o senhor não medir os riscos que corria de ser preso, torturado, morto ou parar no exílio? Carlos Knapp – No dia fatídico tive apenas o bom senso de me afastar de São Paulo, fui para o Rio de Janeiro, imaginando que as coisas se acomodariam e eu poderia voltar. Não me ocorreu ir até à agência e apanhar o passaporte na gaveta da minha escrivaninha... Jornal da ABI – O senhor tinha, de fato, consciência dos riscos que corria ou foi levado pelos acontecimentos da época? Carlos Knapp – Eu menosprezava os riscos e nem quando os acontecimentos precipitaram a minha sorte e me vi reduzido a um pacote, como digo no livro, nem assim “caiu a ficha”. Talvez isso explique aquilo que alguns chamam de minha “tenacidade”. Jornal da ABI – Em algum momento, arrependeu-se de ter participado da resistência armada? Carlos Knapp – Tenho hoje plena consciência do equívoco, mas não me arrependo de quase nada. A convivência com pessoas de outras origens, a perda de privilégios, a vida de imigrante, a necessidade de lutar pela vida, enfim, tudo o que sucedeu a partir de 4 de junho de 1969 me transformou em outro homem. Tive essa sorte, a chance de me tornar um cidadão melhor. Eu poderia estar grato aos deuses se estes, enquanto isso, não tivessem me segregado dos meus filhos. Jornal da ABI – No exílio, passou grandes dificuldades a ponto de entrar em desespero? Carlos Knapp – Sim. Houve um momento em que, sozinho no terraço da casa de Miguel Arraes, em Alger, de frente para o horizonte vazio do Mar Mediterrâneo, eu concluí que minha vida chegara ao fim, não havia saída, não havia o que fazer. E não fiz. Em seguida entrei e almocei com toda a família Arraes à mesa. A certeza de que “amanhã não é outro dia” é insuportável. Mesmo assim, nunca pensei em suicídio. Jornal da ABI – Explique essa história de ter perdido bens para o delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais temidos algozes dos opositores do regime militar... Como foi? Carlos Knapp – Não perdi todos os bens para o delegado. Ele só se apossou do meu carro, um Mercedes, e nele conduziu numerosos companheiros para a tortura. Um deles, Geová, me contou isso em Alger. Ele foi um dos 40 prisioneiros que a ditadura despachou para Alger em troca da libertação, no Rio, de um embaixador alemão seqüestrado.

Jornal da ABI – Como foi o seu contato com Miguel Arraes e Oscar Niemeyer no exílio? Carlos Knapp – Eu trabalhei com ambos e os pormenores dessa colaboração estão relatados em Minha Vida de Terrorista. Jornal da ABI – O senhor conviveu com Chico Buarque? Carlos Knapp – Eu tinha certa convivência com Chico Buarque no Brasil e fui reencontrá-lo em Roma, na casa de Araujo Neto. Chico tinha sido vítima de um grande desfalque praticado por uma pessoa, que também trabalhava para mim. Essa pessoa, sabendo que eu estava sendo perseguido pela poliícia, resolveu contar ao Chico que teria emprestado o dinheiro a mim. Imaginou que provavelmente eu seria abatido e assim seu roubo ficaria encoberto para sempre. Mas, nesse encontro com Chico, eu o desmascarei. Jornal da ABI – O senhor diria que o exilado é, acima de tudo, um solitário? Ou é algo mais complexo que isso? Carlos Knapp – Não, eu diria que o exilado é, acima de tudo, um imigrante sem papéis e sem um ofício próprio de imigrantes. Jornal da ABI – Em algum momento o senhor pensou em voltar ao Brasil e se entregar? Carlos Knapp – Pensei e despensei. Isso aconteceu quando estava obcecado pela idéia de recuperar meus filhos a qualquer preço. Mas também fui convidado a me entregar com a garantia de que não tocariam em mim, desde que fosse à televisão declarar que estava arrependido. Jornal da ABI – Que lembrança o senhor guarda de mais marcante ao voltar do exílio? Carlos Knapp – O forte cheiro de gasolina no ar que se respirava em São Paulo. Era o mesmo ar que eu cheirava antes de partir para o exílio, mas voltei mal acostumado. Tive a mesma sensação do “diferente”, como quando cheguei pela primeira vez em Paris. E devo ter pensado que talvez eu já não pertencesse ao meu lugar. Jornal da ABI – Do que você se arrepende de ter feito ou não ter feito naquela época? Carlos Knapp – Sequestrar meus próprios filhos na Disney World, quando eu já estava de posse deles e com seus passaportes no bolso, foi uma violência que eu não quis consumar. Não deveria ter desistido. Jornal da ABI – E do que mais se orgulha de ter feito? Carlos Knapp – Creio que a melhor palavra não é orgulho, mas acho que foi um grande feito ter convencido os cubanos que liberassem minha segunda mulher Eliane (Toscano Zamikhoski) de seu treinamento de guerrilha na ilha e a devolvessem para viver comigo, seu filho e seus pais na Argélia. Sem isso, ela provavelmente teria o destino de tantos outros militantes, abatidos assim que colocavam os pés no Brasil.

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REFORMA

Impasse lusitano Petição com mais de seis mil assinaturas pedindo a saída de Portugal do Acordo Ortográfico reacende debate sobre a reforma da língua. P OR L ARISSA V ELOSO

Quando os estudiosos elaboraram a atual versão do Acordo Ortográfico em 1990 (AO90), na certa não pensavam que o documento continuaria sendo motivo de discórdia 23 anos depois. Em Portugal, mesmo que as novas regras já tenham entrado em vigor desde 2012, mais de seis mil pessoas assinaram uma petição pedindo o desligamento do país do AO90. O documento foi entregue à Assembléia da República de Portugal e em junho deste ano a Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Casa deu o seu aval. A medida tem agora que ser discutida em plenário. Um dos responsáveis pela petição, o pesquisador em Direito da Faculdade de Lisboa, Ivo Miguel Barroso, destaca que o início da adoção do AO90 deixou claras as contradições da nova norma. “Há vários factos novos e há outros problemas que se evidenciam, após a implementação do Acordo Ortográfico. Ficou inequivocamente demonstrado que há grandes dificuldades de ‘aplicação’ das normas do tratado, em virtude das graves lacunas de que o AO padece e dos princípios pseudocientíficos, absolutamente arbitrários e desactualizados no plano da linguagem falada, em relação à qual se pretendem aproximar”, afirmou em entrevista por email, na qual também solicitou que a grafia de suas palavras não fosse alterada. De acordo com Barroso, o início da adoção (ainda em fase de transição) das novas normas gerou um cenário linguístico caótico, já que, ao mesmo tempo em que os órgãos oficiais são obrigados a adotar o AO90, 80% da imprensa, segundo ele, ainda segue o padrão antigo. Para os signatários, a desvinculação do país ao acordo é “a única solução honrosa e condigna para os interesses de Portugal”. Não é a primeira vez que a nova modificação da ortografia da língua portuguesa encontra oposição ferrenha em território lusitano. Em 2008, o “Manifesto em Defesa da Língua Portuguesa Contra o Acordo Ortográfico” reuniu 15 mil assinaturas online. Cerca de duas semanas antes da ratificação definitiva do AO90 em Portugal, as assinaturas foram entregues ao Parlamento português. Mas o pedido só foi analisado um ano depois. Em 2009, quando já havia se iniciado o período de transição em Portugal, o manifesto continuava ativo, e chegou a contar com 109 mil signatários. Um século de tentativas

A petição pela desvinculação de Portugal veio na esteira de outra derrota para os partidários do AO90. No fim de 2012, pou22

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co antes da data marcada para a entrada definitiva em vigor do Acordo no Brasil, o prazo foi adiado para 1º de janeiro de 2016. O governo brasileiro argumentou que a mudança tinha o objetivo de alinhar as datas finais do Brasil e de Portugal, mas essa foi mais uma pedra na centenária fila de percalços que as tentativas oficiais de modificação da língua portuguesa encontram. A primeira vez que um governo inseriu mudanças na ortografia do português foi em 1911. Depois da instauração da República, Portugal decidiu fazer uma profunda reforma na língua, que modificou termos como “architectura”, “estylo”, “grammatica” e “orthographia”, aproximando-os de como são escritos hoje. O Brasil, porém, sequer foi informado das modificações e continuou seguindo a ortografia antiga, o que deixou os dois países com modos diferentes de escrita. Desde então, a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras tentam reaproximar ortograficamente os dois países. Em 1931 foi feita uma primeira tentativa de unificação, mas as versões aprovadas em Portugal em 1940 e no Brasil em 1943 ainda eram discordantes entre si. Alguns anos depois, chegou-se a um consenso, e o Acordo Ortográfico de 1945 tornou-se lei em Portugal. Mas, no Brasil, a norma não caminhou como o esperado.

colônias portuguesas até 1975. Um dos desafios das reformas posteriores a esse período é justamente o de unificar a escrita de oito nações inscritas em quatro continentes diferentes. Mas nem todos acreditam ser possível essa façanha. As normas atuais são fruto de uma reescrita do acordo que não chegou a ser firmado em 1986. Finalizado em 1990, o documento previa que as novas regras começassem a vigorar em 1994, depois de serem ratificadas por todas as nações. Mas apenas Portugal, Brasil e Cabo-Verde haviam assinado o AO90 ao fim do prazo. Procurando uma saída para o impasse, os chefes de Estado da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) se reuniram em 2004 e aprovaram o “2º Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico”, manobra que permitia a entrada em vigor da nova norma com apenas três países signatários. Em 2006, Brasil, Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe haviam ratificado tanto o texto geral quanto o protocolo modificativo, e a nova ortografia já podia, teoricamente, entrar em vigor. Mas foi só depois do aval de Portugal às modificações do acordo, em 2008, que a CPLP se sentiu confortável para implementar as mudanças. Desde então, apenas Moçambique e Angola não aprovaram o texto por inteiro. O Ministro da Educação angolano, Pinda Simão, chegou inclusive a declarar que o acordo precisava de revisão em 20 de suas 21 bases. Dos oito países da comunidade lusófona, apenas Portugal e Brasil colocaram as normas em vigor.

Apesar de aprovada por decreto presidencial, a medida não foi ratificada pelo Congresso Nacional e acabou revogada. Enquanto Portugal modificava sua ortografia para o acordo de 1945, os brasileiros continuaram seguindo as regras acatadas pelo país em 1943, que já eram diferentes das que Portugal pretendia aprovar. No início dos anos 1970, nova tentaDesunificação tiva de aproximação foi feita. Parte dos acenA principal justificativa para o acordo tos gráficos que existiam apenas no portuortográfico de 1990 é a unificação do modo guês escrito em Portugal foram excluídos, de escrita do Brasil e o reduzindo um bom núadotado por Portugal, mero de diferenças. Em “Ficou inequivocamente Angola, Moçambique, 1975 e 1986 novos acordemonstrado que há Cabo Verde, Guiné-Bisdos foram tentados, mas a grandes dificuldades de sau, São Tomé e Príncipossibilidade do fim dos pe e Timor-Leste. Mas, acentos nas palavras pro‘aplicação’ das normas como sabe qualquer um paroxítonas causou furor do tratado, em virtude das que já viajou entre o sul na classe acadêmica e a graves lacunas de que o e o nordeste do Brasil, idéia de unificação foi novamente adiada. AO padece e dos princípios nem em um mesmo país a forma de se falar portuEstes primeiros episópseudo-científicos, guês é a mesma. Se a ordios da epopéia da unifiabsolutamente arbitrários tografia é a expressão da cação lingüística parecem caóticos? Basta lem- e desactualizados no plano pronúncia, como querer que oito países, que já brar que, à época, a discusda linguagem falada, contêm divergências insão incluía apenas Brasil em relação à qual se ternas, escrevam da mese Portugal: dois países em ma maneira? continentes diferentes, pretendem aproximar” Para os peticionários mas com culturas relatide Portugal, um dos principais problemas vamente similares. Isso porque Guinédo acordo acontece justamente nos meBissau, Moçambique, Angola, Cabo Verde, canismos usados para tentar representar Timor-Leste e São Tomé e Príncipe eram


EDUCAÇÃO

as diferentes pronúnci“Não existem argumentos País desenvolve a sua as. No caso das consoancultura. Cada língua e técnicos para justificar a cada variante representa tes mudas (como o “c” em “aspecto”), a nova norma maior parte do que está uma forma de ver o munpermite tanto a existêndo. A diversidade cultuescrito no acordo. A cia como a supressão da ral, dentro da mesma Línmaioria das normas consoante se a palavra gua, é totalmente legítitiver pronúncias diferen- mostra uma insuficiência ma, natural e saudável. A tes em diferentes países. História demonstra que de conhecimento de Por exemplo, os portua tendência natural das quem as redigiu. O gueses pronunciam “faclínguas que têm origem to”, e não “fato”, como os próprio texto do acordo num tronco comum é brasileiros. Nesse caso, as para se afastarem, e não está cheio de erros de duas grafias são permitipara se voltarem a unir. pontuação e de redação” Veja-se o Latim, que deu das. Mas existiam ocasiões nas quais havia apeorigem às línguas românas uma grafia, mas com diferentes pronicas”, destaca Ivo Miguel Barroso, reitenúncias, como no caso de “recepção”, que rando a posição dos peticionários. em terras lusitanas se pronuncia “receção”, mas se escrevia com o “p” mudo. SeO “acordês” gundo a regra do AO90, as duas modaliMas não é só a dificuldade de unificadades passam a ser aceitas, criando uma ção que incomoda sobre o AO90. Desde o nova diferença linguística. início, o Acordo foi fortemente criticado Se os portugueses não se sentem à vonpor especialistas da língua, justamente por tade com as normas do Acordo Ortográfinão fazer sentido ortograficamente. “Não co, os moçambicanos não se sentem nem existem argumentos técnicos para justifide perto contemplados. “Esse acordo nem car a maior parte do que está escrito no sequer tem em conta a realidade específiacordo. A maioria das normas mostra uma ca de Moçambique, é um texto merameninsuficiência de conhecimento de quem as te de cariz económico-financeiro, que não redigiu. Foi uma coisa feita muito às presrespeita as especificidades culturais dos disas, em uma semana só, numa reunião de versos países da CPLP (africanos e Timor20 pessoas, na Academia de Ciências de Leste). Alguém teve em conta que em alPortugal. O próprio texto do acordo está guns destes países a padronização destas líncheio de erros de pontuação e de redação”, guas estava ainda em curso ou, em alguns case indigna o lingüista e professor Ernani sos, não se tinha ainda iniciado?”, indaga Pimentel, autor de livros na área e criador Delmar Gonçalves, Presidente do Círculo da campanha brasileira “Acordar Melhor”, de Escritores Moçambicanos. A ortografia na qual pede a anulação do AO90 e a disdas respostas enviadas pelo escritor tamcussão de um modelo mais lógico de reforbém não foi alterada pelo Jornal da ABI. ma ortográfica. A mudança nas regras pode complicar Desde 2009, Pimentel viaja pelo Braainda mais o ensino num país que possui sil dando palestras, participando de audimais de 10 dialetos e no qual, segundo a ências e publicando artigos nos jornais Unesco, apenas metade dos adultos é alpara escancarar os erros lógicos do AO90. fabetizada. “Muita gente já sentia dificulO próprio Jornal da ABI já publicou, em dades na norma anterior da escrita e da fevereiro de 2010, um texto do pesquisafala e estava ainda num processo de condor, intitulado “Convite à reflexão e à sosolidação. Com o novo AO, todo o trabalução”. Nele, o professor cita nada menos lho feito, que foi muito e significativo, que 25 pontos nos quais as normas do vai por água abaixo. Quem domina a línacordo carecem de lógica. Para citar apegua portuguesa, actualmente, precisa de nas um exemplo, ele questiona porque o formação. Quanto tempo levará até que paradoxo de se escrever “água-de-colônia” o domínio da nova forma seja efectivo?”, com hífen e “água de cheiro” sem o sinal. se preocupa Gonçalves. Mas se as modificações adotadas no Em Angola também há forte oposição Brasil geram confusão, em Portugal o ceao AO90. O próprio ministro da Educanário é de caos linguístico. A tentativa de ção, Pinda Simão, tem reiterado que o país se aplicar normas que em alguns pontos precisa estudar e refletir sobre a entrada no diferem da própria pronúncia, tem criaacordo, uma vez que ainda não há consenso do uma terceira via, que não coincide toentre os angolanos sobre o assunto. Uma talmente com a ortografia anterior, e tamdas críticas que representantes do portupouco segue o novo padrão. O fenômeno guês angolano têm feito é que as modifijá tem até nome. É o “acordês”. “Aquilo cações da língua não podem ser definidas que se tem assistido em Portugal infelizsomente por aqueles que possuem maior mente é à completa desarmonização orpoder. “Uma velha tipografia manual em tográfica: há pessoas que continuam a esGoa pode ser tão preciosa para a Língua Porcrever como escreviam, em Português tuguesa como a mais importante empresa costumeiro; há outras que tentam ‘aplieditorial do Brasil, de Portugal ou de Angocar ’ o AO; outras ainda ora ‘aplicam’ o la”, citou o Jornal de Angola em um de seus ‘acordês’, ora seguem o Português costueditoriais, numa crítica aberta a portuguemeiro. Como facilmente se compreende, ses e brasileiros. há um profundo caos ortográfico instalaMuitos dos que estão envolvidos com do em Portugal”, lamenta Barroso. o movimento anti-AO90 afirmam que A própria petição proposta em Portunão é possível e nem desejável unificar a gal afirma, inclusive, que até os dicionáortografia dos países lusófonos. “Cada rios oficiais discordam entre si. “Uma das

condições do tratado internacional que configura o AO90 era a da elaboração de um Vocabulário Ortográfico Comum. Este, até à data, não existe. Em vez disso, foram produzidos vários vocabulários e dicionários: VOLP (da Academia Brasileira de Letras e coordenado por Evanildo Bechara), VOLP publicado pela Porto Editora e coordenado por Malaca Casteleiro, VOP (do Instituto de Linguística Teórica e Computacional), e ainda o dicionário do grupo LeYa. Estes vocabulários apresentam discrepâncias na grafia dos mesmos vocábulos, em questões em que o AO90 era incongruente”, dizem os peticionários no texto. Em anexo ao documento há um quadro com 68 exemplos de discordâncias entre os vocabulários. Um dos exemplos é do VOP, o Vocabulário Ortográfico do Português, citado acima, que apresenta como brasileiras as grafias de “adoptar” e “adopção”. Uma outra reforma?

Apesar de todos os argumentos contrários, o Acordo Ortográfico de 1990 já está em vigor nos principais países lusófonos e caminha para ser aplicado em boa parte da comunidade africana que fala o português. É possível, neste ponto, voltar atrás? “A rigor, todo erro deve ser consertado. Sim, começou a vigorar, mas não chegou o prazo final ainda”, diz o professor Pimentel. À frente do movimento “Acordar Melhor”, ele é também um dos grandes defensores de uma reforma científica na ortografia da língua portuguesa. “Teríamos o privilégio de ser a primeira nação a adotar uma língua ocidental linguisticamente científica em termos de ortografia”, explica. Para simplificar a forma como escrevemos, grafias que representam o mesmo fonema, como “ch” e o “x”, poderiam ser excluídas. Dessa maneira, o “ch” seria eliminado da ortografia, e ficaríamos apenas com uma única forma de representar o som de “xis”. Enquanto a possibilidade de ter que escrever “xuva”, “xaleira”, “xegar” e “crexe” causa arrepios em alguns profissionais, Pimentel e outros lingüistas afirmam que os ganhos para o sistema de ensino seriam enormes. “Ninguém quer aprender português porque é muito difícil. Mas com a ciência linguística poderíamos torná-la a língua mais fácil de escrever do mundo”, sonha o professor. Enquanto a reforma ortográfica que os escritores, professores, jornalistas, lingüistas e tradutores desejam não vem, os peticionários de Portugal continuam tentando retirar Portugal do AO90. Ainda não há data para a discussão em plenário, mas muitos profissionais da escrita empregam uma silenciosa resistência ao não adotar as novas normas. Sobre essa tática, Ivo Barroso é enfático: “Não cumprir o AO é um acto de patriotismo e uma manifestação de amor à nossa Língua Portuguesa”, diz. *Nota da Redação: em respeito às diferenças existentes entre o português escrito no Brasil, em Portugal e em Moçambique, o Jornal da ABI optou por deixar inalteradas as ortografias das respostas de Ivo Miguel Barroso e Delmar Gonçalves. É bom lembrar também que o Jornal da ABI não segue o AO90.

Publicadas as novas diretrizes para cursos de Jornalismo Foi publicada, no Diário Oficial da União do dia 1º de outubro, a Resolução CNE/CES Nº 1, de 27 de setembro, do Conselho Nacional de Educação – CNE, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Jornalismo, bacharelado. Agora as universidades têm dois anos para se adequar às novas normas. A carga horária dos cursos de Jornalismo aumenta de 2.700 horas para 3 mil horas. As novas diretrizes têm como base o Programa de Qualidade do Ensino de Jornalismo, elaborado pela Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj; Federação Nacional dos Professores de Jornalismo – FNPJ; Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo – SBPJor; e Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – Intercom. Elaborado em 2009, o projeto tramitava no CNE desde o ano de 2010. A proposta foi formulada por uma comissão de especialistas indicada pelo Ministério da Educação, a partir de consulta pública pela internet e três audiências públicas que contaram com a participação da comunidade acadêmica, profissionais, empresas do setor e representantes de entidades da sociedade civil. Valci Zuculoto, 1ª secretária da Fenaj, considera que agora, com a publicação da resolução, os cursos e as entidades do campo do Jornalismo terão mais condições de dialogar mais objetivamente e buscar sanar possíveis dúvidas através de consultas junto ao MEC. “As novas diretrizes avançam no equilíbrio entre teoria e técnica, valorizam a especificidade dos cursos de Jornalismo, agora autônomos, e propiciam maior qualificação da formação acadêmica adequada à função social do Jornalismo de produção de informação voltada ao interesse público”, avalia. Além de não instituir mais a versão impressa como parâmetro ou referência de concepção, apuração, edição, administração de repercussão e estabelecimento de canais de interação com o público, as novas diretrizes estabelecem a maior interdisciplinaridade e integração entre teoria e prática, além de regulamentar o estágio supervisionado.

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INTERNET

Abril abre espaço para o digital Parceria com o site Huffington Post é a próxima aposta do grupo dos Civita, com estréia marcada para dezembro ou, no máximo, janeiro de 2014. P AULO C HICO

Agregador de conteúdo Inicialmente, a Redação será composta por dez pessoas, bastante enxuta, portanto, com mais um profissional na área comercial, apoiado por outros dois – totalizando 13 colaboradores. Além de trabalhar em noticiário próprio, a meta é ser um grande agregador de conteúdo, inclusive remetendo o leitor para o site de origem, mesmo que do concorrente, quando for relevante. A rotina ainda exige, entre os principais trabalhos, a condução de um amplo debate em redes sociais e na própria seção de comentários do Brasil Post. Ricardo Anderáos, de 51 anos, explica em detalhes todas essas estratégias. “Não teremos concorrente no mercado nacional, pois o Huff Post se define como um jornal eletrônico, mas é, na verdade, uma espécie particular de publicação. É um agregador de notícias. É claro que também vamos produzir reportagens 24

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O site The Huffington Post ganhará uma versão no Brasil, cuja Redação será dirigida por Ricardo Anderáos: “É preciso somar ao cotidiano a inteligência e as informações adicionais que o ambiente digital nos traz”.

DIVULGAÇÃO

Não só do fechamento de publicações vive a Abril. Principal editora de revistas do País, a corporação, além de promover ajustes e cortes, abre novas frentes de investimento. O mais recente deles, já prestes a estrear, mira, como era de esperar, no ambiente digital. O site de notícias Huffington Post lançará sua versão para o mercado brasileiro em dezembro, justamente como fruto de parceria fechada com o Grupo Abril de Roberto Civita, morto em 26 de maio deste ano. Com o nome de Brasil Post, o novo veículo deve entrar no ar em 3 de dezembro. Ou, caso o processo sofra algum atraso, em janeiro de 2014, como conta Ricardo Anderáos, que deixou a direção de mídias sociais e transmídia da Abril para assumir a Diretoria de Redação do novo produto. “Estamos na fase final de preparação, com a contratação dos últimos profissionais e a tradução de plataformas. Toda essa história começou quando Arianna Huffington , fundadora do The Huffington Post, esteve no Brasil, há cerca de dois anos, para participar do seminário Info@Trends, promovido pela revista Info. O Civita se mostrou de imediato entusiasmado com a idéia de parceria. Ele era mesmo uma pessoa bastante inquieta, interessada em novas tecnologias. E via neste projeto uma forma excelente de a Abril absorver conhecimento e avançar sobre novos modelos de plataforma de jornalismo digital”, contou Ricardo, em entrevista ao Jornal da ABI.

taforma tecnológica que permite que o jornalista, ainda quando estiver escrevendo, saiba quais termos têm mais relevância em buscas de Google, tornando sua publicação com maior alcance em termos de audiência”, explica ele, que faz um alerta sobre o perfil de atuação que deve nortear os profissionais de mídia nos dias de hoje. “Os jornalistas, de fato, em sua maioria, ainda não incorporaram esse comportamento de monitorar a própria produção... Jogam a matéria no ar e tchau! Não acompanham o desempenho, o interesse da audiência. Em plena era das mídias digitais, boa parte dos jornalistas continua atuando como profissionais do século 20, sem incorporar à sua produção dados do Analytics, por exemplo. Pois bem, na plataforma do Huff ele será responsável por escrever a história, incorporar o que exista de mais relevante, e mandá-la para o twitter e o face... Saber como as publicações estão se comportando... É preciso somar ao cotidiano a inteligência e as informações adicionais que o ambiente digital nos traz. Outro aspecto dessa história são os comentários, sistema que no Huff é bastante importante e sofisticado. É naquele espaço que os debates acontecem, as pautas são desdobradas. Por isso, ele é muito valorizado. E não dá mais para o jornalista apenas publicar a reportagem e ir embora! Ele precisa participar de toda essa conversa!”. Para o Presidente-Executivo do The Huffington Post, Jimmy Maymann, a parceria com o Grupo Abril proporcionará que o jornal já entre fortalecido no mercado brasileiro. “Esta edição não só vai colocar o Huff Post em seu nono país e quinto continente, mas também nos deixar no centro de uma das regiões de maior crescimento atualmente”, disse. Um dos pontos positivos destacados por Maymann, e que ajudou na decisão da parceria, foi o grande acesso à internet no país, já que o Brasil possui mais de 100 milhões de usuários e é a 5ª maior audiência do mundo, com estimativa de 7,6% de crescimento ao ano até 2016. “Não estou autorizado a falar em números, em investimentos, mas não há dúvidas de que essa é uma aposta importante, não é uma operação barata. É, sobretudo, estratégica em termos de mercado, uma vez que estaremos operando em parceria com um dos principais players de notícias do planeta”, conclui Ricardo.

e textos próprios, mas trabalharemos sobretudo com material de agências, poderemos traduzir qualquer conteúdo de outras edições internacionais do Huff. E até mesmo dar destaque a conteúdo de outros veículos nacionais, com especial atenção às redes sociais. Nos Estados Unidos, por exemplo, é comum o Huff dar como manchete uma notícia do site do New York Times, colocando uma chamada com link, em que o leitor clica ali e cai direto lá. Não temos como principal missão manter os internautas dentro do nosso site, e sim ser uma janela, reunindo no mesmo lugar tudo o que há de importante naquele dia. Nosso objetivo é ser um recorte, uma edição apurada, no sentido mais puro da palavra”, define Ricardo. O Huffington Post está presente em outros oito países, entre os quais estão Japão, Itália e França – regiões em que o veículo também foi lançado em parceria com grupos de mídia locais. O site americano contabiliza 47 milhões de visitantes únicos mensais nos Estados Unidos e 77 milhões em todo o mundo. Além de editorias tradicionais – como Política, Economia, Educação e Esporte – tem seções de entretenimento, com destaque para as celebridades, e de comunidades específicas. Ricardo adianta como será o modelo brasileiro. “Vamos tentar tratar de tudo, é claro, mas definimos quatro pila-

res, a partir do agrupamento de editorias. Dentro delas é que a gente terá que distribuir os assuntos. São eles Hard News e Negócios; Entretenimento; Estilos de Vida; Inovação e Tecnologia. E, exatamente como acontece nas versões estrangeiras, o Brasil Post terá acesso livre, apostando, como unidade de negócio, na publicidade. Vamos, inclusive, investir na inovação da publicidade, com formatos nativos, de conteúdo à disposição dos patrocinadores, obviamente identificados”. Novo modelo de jornalistas O engajamento dos leitores do Huff é uma de suas marcas registradas. E, por isso mesmo, demanda a atenção de um novo modelo de jornalistas e produtores de conteúdos. “Já trabalhei em operações digitais em vários grupos, mas sinto que pela primeira vez vou ter todos os instrumentos para realizar coisas que venho aprendendo e intuindo já há bastante tempo. Uma delas é o conceito de que conteúdo em plataforma digital não se resume a texto, foto e vídeo. A própria tecnologia é conteúdo! Realmente, precisamos e vamos ter a tecnologia como visão de conteúdo e definidor da maneira de trabalhar. Engenheiros e jornalistas precisam trabalhar juntos, e não apenas com uns dando suporte aos outros. No nosso caso, tudo o que é produzido é feito dentro de uma pla-


REPRODUÇÃO

LANÇAMENTO

Revirando o velho baú de Pessoa P OR R ITA B RAGA

Como descrever uma colcha de retalhos? Ler Fernando Pessoa é sempre uma experiência que flerta com a aleatoriedade e com a fragmentação. Enquanto os estudiosos continuam pesquisando possíveis cronologias e revisitam o que foi publicado sob tantos heterônimos, como leitores, todos nós continuaremos a revirar suas páginas como quem xereta aquele velho baú. Diga-se de passagem que não há nada de errado nisso e cada um pode e deve degustar esses escritos como bem entender. No texto de apresentação, José Paulo Cavalcanti Filho teve a modéstia de lembrar-nos que essa não é a primeira vez que alguém organiza excertos de Fernando Pessoa em um livro de citações. No entanto, cabe também registrar que isso não diminui em nada o seu cuidadoso trabalho como organizador. Fernando Pessoa: o Livro das Citações (Record, 2013), além de ser um objeto graficamente equilibrado entre beleza e conforto, tanto na capa quanto no miolo, conta com preciosas notas e comentários desse biógrafo que ao longo de quase dez anos escrevendo o premiado Fernando Pessoa, uma Quase Autobiografia, sentiu-se vivendo na carne as alegrias, dúvidas e desalentos do poeta. Cavalcanti Filho recebeu de Millôr Fernandes a sugestão de declarar suas escolhas como feitas a partir de preferências estritamente “pessoais”. Essa ambiguidade bem humorada é perfeita, pois o leitor de alguma maneira percebe as várias vozes do poeta com elegantes intervenções. Mas são comentários bem dosados, como um amigo que parece estar sentado na poltrona ao lado, rememorando detalhes curiosos que mexem com nossas emoções e com a nossa percepção acerca dos poemas. Suas preferências, bebidas, cigarros, insônia, costumes mais cotidianos e até eventos bem particulares são novidades bem vindas e na medida perfeita como nota de rodapé. Há linhas que despertam a dor existencial da qual muitos tentam fugir, mas há aquelas que também trazem sua carga de ternura. É o caso da revelação acerca do “Senhor Trindade” (Júlio Trindade, que era um empregado da confeitaria onde Manuela Nogueira, menina, comprava seus chocolates). É a partir da voz dele que surgiram os famosos versos apontados no verbete metafísica: “Come chocolates, pequena, / Come chocolates! / Olha que não há metafísica

no mundo senão chocolates.”(Álvaro de Campos, p.140). Como em qualquer livro de citações o leitor corre o risco de ficar à deriva, de se perder nas lacunas da falta de repertório. Por isso também nesse tipo de livro o leitor fica ainda mais exposto ao perigo da descontextualização. Mesmo assim, “tudo vale a pena”. Como diz Cavalcanti Filho, “há homens que morrem quando morrem, há homens que morrem aos poucos na lembrança dos amigos, e há os escolhidos pelos deuses. Eternos.” Aliás, fica ao fundo a pergunta: quem é Fernando Pessoa em nosso tempo de internet, perfis múltiplos em redes sociais – em muitos casos, repletos de citações duvidosas. Mais que isso: o que nos revela esse ato de, nesse contexto da Era Digital, tomar nas mãos um livro impresso de pequenas citações? Tratase de mais do que um estímulo a conhecer mais. Ao rever representações que tínhamos sobre determinados versos que, por serem exatamente os mesmos, sempre mudam com o tempo, vemos um pouco do quanto nós mudamos ou não em relação a alguns conceitos. Lemos citações justamente por isso: nos reconhecemos no que há de permanente e sobretudo na busca de identificar as sutilezas de cada mudança. Uma das vantagens desse tipo de organização é que, especialmente no caso desse poeta múltiplo, concepções poéticas, éticas e filosóficas de heterônimos tão diferentes (ou não) entre si são justapostas, como verificamos nos verbetes arte, artista, deus, eleitor, democracia. Esse tipo de aproximação sensibiliza o leitor acerca da pluralidade ‘pessoana’, sem a necessidade de vastas explicações teóricas, estéticas ou mesmo biográficas. Enfim, o que se percebe nessa nova obra do premiado autor é que o velho baú continuará rendendo infinitas citações, conversas, digressões. Como diz carinhosamente o próprio José Paulo Cavalcanti Filho, “este é sobretudo um livro de devoção” e o leitor percebe isso no tom das notas. Para terminar, é irresistível comentar um detalhe mínimo, mas curioso: a convivência com os heterônimos fez com que o organizador também nos pregasse suas peças, mesmo que não propositalmente. Se os biógrafos em geral enfrentam os desafios das datas fictícias de Pessoa, este autor teve a cuidadosa homenagem (ou “divertido descuido”) de datar sua apresentação do livro como em “13 de junho de 2014”. Um presente ao poeta no dia de seus anos.

Palavras pessoais A quem gosta de literatura, publicidade e outros assuntos, a polifonia ‘pessoana’ também pode despertar idéias, dúvidas, perguntas. O verbete automóvel, por exemplo, nos revela em nota um dos pequenos luxos do poeta (gostava de andar de carro) e nos informa sobre suas incursões no mundo da propaganda, tanto na Empresa Nacional de Publicidade – uma agência controlada pela

General Motors e fabricante dos automóveis Chevrolet (p.35) quanto em outros trabalhos como no slogan da CocaCola. A nós brasileiros os versos da citação abaixo fazem ainda ouvir ecos do jovem Drummond, com seu STOP. Os versos inscritos no verbete aniversário revelam em nota a intensidade e tristeza da perda de tantos familiares e amigos em um curto espaço de tempo.

AUTOMÓVEL

paradoxalmente, exprime apenas aquelas suas emoções que são dos outros.” (Antonio Mora, p.34)

“Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?” (Álvaro de Campos, p. 35)

DEMOCRACIA COCA-COLA “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” (Fernando Pessoa, p.50)

ANIVERSÁRIO “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto.” (Álvaro de Campos, p.31)

ARTE “A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, sem os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade.” (Bernardo Soares, p. 32) “Toda arte superior é profundamente triste.” (Fernando Pessoa, p. 33)

“A democracia é o mais estúpido de todos os mitos.” (Álvaro de Campos, p.63) “A democracia é a vizinha do andar de cima (que deixa o lixo para o meu quintal).” (Fernando Pessoa, p.63)

DEUS “Basta uma dor de dentes para fazer descrer na bondade do Criador.” (Bernardo Soares, p.68)

ELEITOR “O eleitor não escolhe o que quer; escolhe entre isto e aquilo o que lhe dão, o que é diferente.” (Álvaro de Campos, p.77)

LIVROS “A arte é essencialmente Erro.” (Antonio Mora, 32) “O valor essencial da arte está em ela ser o indício da passagem do homem no mundo, o resumo de sua experiência emotiva dele.” (Fernando Pessoa, p.34)

ARTISTA “O artista não exprime as suas emoções. Exprime, das suas emoções, aquelas que são comuns aos outros homens. Falando

“Na leitura de todos os livros, devemos seguir o autor e não querer que ele nos siga.” (Antonio Mora, p.128) “Livros são papéis pintados com tinta.” (Fernando Pessoa, p.128) “O que de sonho jaz nas encadernações vetustas. Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros. Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte.” (Álvaro de Campos, p. 128)

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CENTENÁRIO

Os sabores de

P AULO C HICO

O universo dos versos esconde bem mais do que sabe nossa vã poesia. Não há receita prévia para a formação de um grande poeta, é bem verdade. Mas saibam vocês, prezados leitores, que existem, sim, receitas próprias, muito próprias, do grande ‘poetinha’. Acaba de chegar ao mercado o livro Pois Sou um Bom Cozinheiro. Editada pela Cia das Letras, a obra traz detalhes dos sabores da vida de Vinicius de Moraes, e faz parte dos eventos especiais pelos 100 anos de nascimento do também jornalista, compositor e diplomata, comemorados no dia 18 de outubro. Uma nova face do mestre acaba, enfim, por ser desvelada para o grande público. “Acho mesmo que Vinicius estaria bem contente com toda essa movimentação acerca de seu centenário. A obra dele sobreviveu muito bem mesmo mais de 30 anos depois de sua morte. Tenho ido a diversas homenagens e me comove ver crianças de sete, oito anos trabalhando a partir de sua criação e criando coisas novas bebendo dessa fonte. Isso, por fim, é a glória total para um artista. Agora, surge o livro sobre o Vinicius cozinheiro. Essa era uma atividade rara... Mas que, como tudo o que ele fazia, desenvolvia com muito capricho”, recorda a viúva do poeta, a produtora cultural e assessora de imprensa Gilda Mattoso, em entrevista ao Jornal da ABI. O título do livro de receitas, com quase trezentas páginas e fartamente ilustrado por fotografias – capazes de encher de encanto os olhos e de água as mais comedidas das bocas – está longe de ser uma invencionice das autoras. Na verdade, ‘Pois sou um bom cozinheiro’ é um dos versos com que Vinicius de Moraes se define no poema Auto-retrato. A obra apresenta receitas agrupadas por eixos principais: ‘Receitas da Casa’, ‘As saudades do Brasil, quando a gente está longe’, ‘Natal em família’, ‘Vinicius na cozinha’, ‘Receitas de rua’ e ‘Receitas de obra’. Cada um dos pratos foi recriado por um time de chefs especialmente convidados, que inclui nomes como Alex Atala, Flávia Quaresma e Claude Troigros. Junto aos quitutes por eles preparados, são servidas histórias sobre a vida do artista. A obra relembra desde os pratos preferidos de Vinicius quando garoto até as iguarias mais refinadas que ele próprio cozinhava durante suas viagens como diplomata. Foi organizada pela chef Daniela Narciso e pela psicóloga Edith Gonçalves. A idéia de contar a história gastronômica de Vinicius partiu de Luciana de Moraes, filha dele, que buscou reproduzir as lendárias ceias de Natal na casa dos avós paternos. Depois da morte de Luciana, em 2011, Edith, sua companheira por 23 anos, assumiu o projeto ao lado de 26

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MORAES

Livro resgata as receitas da família do poeta, ao mesmo tempo em que recria alguns de seus pratos favoritos, por vezes executados pelo próprio. E não deixa dúvidas: até mesmo na cozinha, Vinicius era um poeta

Daniela. Assim nasceu o livro, que faz parte das comemorações do centenário, como produção da VM Cultural. “Uma boa receita é, também, uma forma de poesia! Em ambas as atividades é preciso ter criatividade, harmonia, ritmo, tempo... Além do mais, boa comida e boa literatura são formas de manifestação artística. Afinal, cozinhar e escrever são coisas que qualquer pessoa pode fazer. Mas poucos as fazem como fazia nosso saudoso poeta”, explica Daniela Narciso, que segue em seu depoimento para o Jor-

nal da ABI. “Como diria a família do poeta: ‘Vinicius é plural, nunca singular!’ Por isso é tão difícil traçar um único perfil para ele, que amava tantas coisas. O mesmo serve para a comida, pois ele tinha prazer em comer tanto um simplório ‘feijão preto com gordura’ quanto uma ‘aveludada e opulenta rabada’, assim como ‘corda di chitarra’, com as caras e raras trufas brancas, ou um belo Gigot D´Agneau do Hotel Plaza Athènée de Paris. Com esse livro, acredito ser possível não só conhecê-lo melhor, mas traçar

sua história. E foi mais ou menos isso que conseguimos fazer ao reunir receitas que contam momentos e fases diferentes da vida do poeta”. Dentre todas as receitas que constam do livro, Daniela aponta aquela pela qual tem apreço especial. “Acho que o pudim de passas e a pasta de castanhas portuguesas usada para preparar o peru de natal. Ambas permanecem na mesa de Natal da família Moraes até os dias de hoje”. Edith, parceira de Luciana de Moraes e organizadora da obra, também falou rapida-


FOTOS VM CULTURAL

mente com o Jornal da ABI. “Ao abrir o livro a pessoa é capturada não só pelo desejo de reproduzir as receitas, mas também pela beleza das fotos, pelas cores e pelo texto. Acredito que a Luciana estaria muito orgulhosa com o resultado do projeto. Ele comprova que, no universo do poeta, a poesia se faz presente em todos os momentos”. Em tempo: a receita que fecha a obra é das mais simples. E, ao mesmo tempo, uma das preferidas do poeta: “uísque com pouca água e muito gelo” dispensa maiores comentários. E presta sutil homenagem à bebida rebatizada por Vinicius de ‘cachorro engarrafado’. Outras homenagens e lançamentos

No ano do centenário, os amantes e estudiosos da literatura, da bossa nova e da música popular brasileira ganharam de presente um novo site com toda produção intelectual do artista em vida. Desde a meianoite do último dia 19 de outubro – no endereço www.viniciusdemoraes.com.br – o público pode acessar fotos, muitas delas inéditas, discografia, prosa, críticas, textos teatrais e canções, tudo organizado numa catalogação minuciosa. O projeto é da VM Cultural, responsável pelos direitos do poeta. Criado pela empresa 6D e coordenado pelo pesquisador Fred Coelho, o site é oficial e melhor referência aos admiradores do artista que, pela primeira vez, terão acesso a detalhes da vida do compositor reunidos em um só lugar. Entre as curiosidades estão, por exemplo, uma fotografia feita em 1915 de Vinicius criança, zangado, sentado numa cadeira de palha, uma carta escrita para seu amigo Manuel Bandeira, a quem ele chamava carinhosamente de ‘Manezinho’, além do manuscrito original da letra de Garota de Ipanema, parceria com Tom Jobim e segunda canção mais executada na história em todo o mundo. “O site, que tem o objetivo de ser um espaço de referência para estudiosos, é o presente da família para o centenário. Para nós é importante manter as obras disponíveis a todos, com o conteúdo inteiramente revisado e uma curadoria familiar permanente. Buscamos os melhores profissionais para cuidar da obra de papai, mantendo sempre o alto nível e garantindo o alcance a quem se interessa pelo legado de Vinicius e não tem condições de ter acesso direto aos livros e aos discos. Queremos que, por exemplo, a professora de uma cidadezinha pequena saiba que pode contar com o site para pesquisar e ministrar uma aula em cima de um conteúdo correto”, afirma Maria de Moraes, filha caçula e uma das sócias da VM Cultural. Ela acrescenta que o desejo de toda a família é que o ano do centenário de Vinicius seja de exaltação ao amor, à generosidade e à verdade com que o poeta viveu e o site certamente irá colaborar com isso. “A boa poesia e a boa letra de música nunca são demais. Vinicius faz muita falta ao mundo como cidadão generoso, terno, bom amigo, companheiro e ético – palavra praticamente fora do vocabu-

Vinicius de paletó, gravata e avental, numa pose na cozinha e, anos mais tarde, com Gilda Mattoso, sua nona esposa: “A boa poesia e a boa letra de música nunca são demais.”

lário do brasileiro”, conta Gilda Mattoso que, enquanto nona esposa do poeta, avalia o peso da arte em suas conquistas. “Obviamente, havia sempre o encantamento pelos versos dele, mas não acho que escrevesse para conquistar as mulheres... Isso foi um facilitador, é claro... Na verdade, o homem era a faceta mais interessante do Vinicius, mais que o poeta, o compositor, o diplomata, o jornalista ou qualquer outra coisa”. A maioria dos textos em prosa de Vinicius tem origem na imprensa carioca dos anos 1940 e 1950. Vinicius manteve estreita relação com as Redações, escre-

vendo não só crônicas, como também críticas de cinema e textos sobre música popular. Passou por jornais e revistas como A Manhã, O Jornal, Diário Carioca, Diretrizes, Vanguarda, Última Hora e Fatos e Fotos. Além desses, escreveu para semanários que marcaram época como o Flan, Senhor e Pasquim. Muitos destes textos foram reunidos em dois livros de crônicas: Para Viver um Grande Amor (1962) e Para uma Menina com uma Flor (1966), publicações em que a prosa e a poesia conviviam nas mesmas páginas. O Instituto Moreira Salles, com sede no Rio de Janeiro, realizou uma série de

encontros sobre o poeta, além de shows. A própria Gilda Mattoso participou da mesa que levou o título de ‘Vinicius homem do mundo’, ao lado de convidados como o cineasta Miguel Faria Jr.. Jornalista e amiga de Vinicius, Maria Lucia Rangel mediou o debate sobre a atuação do artista na esfera musical, que reuniu Carlos Lyra, Miúcha e João Máximo. No Blog do IMS – www.blogdoims.com.br – é possível acessar um texto da jornalista sobre sua amizade com Vinicius e também com Fernando Sabino, escritor que completaria 90 anos em 12 de outubro. Maria Lúcia lembra histórias como a de uma festa em Ouro Preto, Minas Gerais, na qual o poeta, que não era 100% materialista, disse estar certo de que Dolores Duran, morta muitos anos antes, estava no ambiente. A tampa de uma garrafa de uísque pulou e caiu na mão de Vinicius. Foi servida, então, uma dose para a ‘visitante’ e tudo ficou bem. O caso ilustra a imagem esotérica de Vinicius, construída sobretudo a partir da série de afrosambas – composições feitas em parceria com Baden Powell. “Vinicius nem era tão esotérico assim. Mas ele amava e acreditava na Mãe Menininha do Gantois, casa que frequentava e onde levava amigos, inclusive outros artistas. Eu espero que, de alguma forma, ele esteja por aí, vendo tantas homenagens bonitas que têm sido feitas a ele”, conclui Gilda. “Não lembro exatamente quando começaram minhas conversas esotéricas com Vinicius. Aconteciam sempre depois das entrevistas para o Caderno B, do Jornal do Brasil, onde eu trabalhei nos anos 1970. Ele na banheira cheia de espuma e, dependendo da hora, com um copo de uísque numa mão e um cigarro na outra. Eu, sentada num banco baixinho ao lado. Ele dava uma meia pausa e introduzia o assunto: ‘Sabe que o fulano me apareceu?’. Fulano podia ser Antonio Maria ou Sérgio Porto, ambos mortos havia pouco tempo. E por ‘aparecer ’, que fique bem claro, Vinicius sentia uma percepção daquela pessoa através de um copo que caía sozinho, uma luz que se apagava ou algo assim”, escreveu Maria Lucia Rangel, que também falou para esta reportagem do Jornal da ABI. “Eu estou achando ótimas essas lembranças pelo centenário. Mas, gostaria de ver um evento em especial. Foi na casa do arquiteto e artista plástico Carlos Leão, no morro do Cavalão, em Niterói, que Vinicius escreveu o primeiro ato de sua peça Orfeu da Conceição, ainda em 1942, inspirado pela batucada proveniente da vizinhança. Nossa idéia, então, neste ano, era levar a peça para lá, representá-la. Ainda não conseguimos o patrocínio, tentamos na Lei Rouanet, mas o projeto não é barato. O Jayme Alem faria a direção musical... Agora, só me queixo, mesmo, do fato de a cidade do Rio não estar fazendo nada, em matéria de espetáculo, para homenagear o poeta que tanto a exaltou”. Em 2013 já tivemos sete dias de festival de rock. Mas, cadê o dia de Vinicius? Onde foi parar? Com a palavra, a Prefeitura.

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PERFIL

Mário? Que Mário? Muitos foram os talentos de Mário de Andrade. Tantos que, até hoje, há quem lance novas luzes e dúvidas sobre sua personalidade. P OR C ELSO S ABADIN

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REPRODUÇÃO

Quantos Mários de Andrade o Brasil conhece? Tem o Mário de Andrade escritor, poeta e romancista. Existe o musicólogo, historiador e folclorista. O Mário de Andrade agitador cultural, crítico de arte e até fotógrafo. E ainda o que virou Colégio, Biblioteca, e depois nota de 500 mil cruzeiros. Mas, a verdade é que Mário de Andrade não cabe numa matéria. Nem mesmo em várias. Até porque todos os citados aí em cima são um só: o Mário Raul de Morais Andrade, primeiro e único, filho de Carlos Augusto de Moraes Andrade e Maria Luísa Leite Moraes Andrade, nascido há 120 anos em pleno centro da capital paulista, mais precisamente no número 320 da Rua Aurora, em 9 de outubro de 1893, época em que a Rua Aurora ainda não era o que é hoje. Em número de anos, não viveu muito: morreu caprichosamente no dia do aniversário da cidade onde nasceu e que tanto cantou em verso e prosa, alguns meses antes de completar 52 anos. É pouco. Mas como Mário agitou nestes anos! Talvez já alertado por algum anjo torto de que deveria começar cedo, Mário escreveu seu primeiro poema ainda na fase que se chamava antigamente de “curso primário”: aos 10 anos, antes mesmo de entrar no ginásio Nossa Senhora do Carmo, dos Irmãos Maristas, o garoto escreveu o que considerou “um estalo” criativo provocado por um acidente de trem que presenciara durante um piquenique. “Na verdade ninguém se faz escritor. Tenho a certeza de que fui escritor desde que concebido. Ou antes... Meu avô materno foi escritor de ficção. Meu pai também. Tenho uma desconfiança vaga de que refinei a raça”, disse Mário, com sua habitual falsa modéstia, em depoimento para o livro República das Letras, da Editora Civilização Brasileira. Seria lugar-comum afirmar que a partir daí Mário não parou mais. E como é verdade, publique-se o clichê: a partir daí Mário não parou mais. Só os livros publicados somam mais de 30. Desde a estréia literária em Há uma Gota de Sangue em Cada Poema (1917), passando por clássicos como Paulicéia Desvairada (1922), A Escrava que Não É Isaura (1925), Amar Verbo Intransitivo (1927) e, claro, o ímpar Macunaíma (1928) que cunha para o Bra-

ria seu nome garantido na história da intelectualidade paulista em particular e brasileira em geral. Mas sua inquietação artística e cultural jamais lhe permitira tamanha comodidade. Em 1935, ao lado do escritor e arqueólogo Paulo Duarte, organizou o Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, uma espécie de embrião do que atualmente conhecemos como Secretaria Municipal de Cultura. Formou também a Discoteca Municipal, reunindo um vasto acervo de música e folclore não apenas paulista como também brasileiro. Foi um dos fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, além de criador e primeiro presidente da Sociedade de Etnologia e Folclore de São Paulo. Mário continuou empreendendo viagens de pesquisas etnográficas, folclóricas e culturais pelo País até 1938, quando passou a sofrer perseguição política de Getúlio Vargas, a quem havia duramente criticado no ano anterior, em função da instalação do Estado Novo. Muda-se para o Rio de Janeiro, onde dirige o Instituto de Artes da então Universidade do Distrito Federal. Ali organiza o I Congresso da Língua Nacional Cantada, e retorna a São Paulo em 1941, reassumindo o Departamento de Cultura. Sua morte, em 1945, ainda sob a ditadura Vargas, foi solenemente ignorada pelo poder central. Mais de 40 anos depois, em 1989, quando se pensava que tudo sobre Mário de Andrade já havia sido falado, publicado e estudado, o jornalista e escritor carioca Werneck de Castro publica o livro Mário de Andrade – Exílio no Rio, onde aborda questões sobre uma suposta homossexualidade do famoso intelectual paulista. Em 1993, na matéria “Vida do escritor foi um vulcão de complicações”, publicada na Folha de S.Paulo, o professor e intelectual Antônio Cândido apoia a teoria. Era só o que faltava. Depois de tanto tempo, agora querem tirar o Mário do armário.

sil o herói sem nenhum caráter. Isso falando apenas do Mário escritor. Já o Músico era um Mário que não tocava. E por um motivo trágico. Considerado exímio pianista ainda na infância, era aluno do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo desde a adolescência. Porém, em 1913, seu irmão Renato, de 14 anos de idade, morreu ao tomar um forte golpe na cabeça durante uma simples partida de futebol. O episódio chocou Mário que, abalado, abandonou o Conservatório e foi passar uma temporada com a família numa fazenda em Araraquara, interior paulista. Voltando à capital, Mário até retoma as aulas e formase no Conservatório, mas o trauma lhe rendeu um incurável tremor nas mãos que o levou a abandonar o piano. Dedicou-se, porém, aos estudos de teoria musical, tornando-se grande teórico, ensaísta e professor. Entre seus livros estão Ensaios Sobre a Música Brasileira (1928), Compêndio da História da Música (de 1929 e relançado em 1942 como Pequena História da Música Brasileira), Modinhas Imperiais (1930) e Música do Brasil (1941), entre outros. “Grupo dos Cinco”

Mas quando se fala em Mário de Andrade certamente a primeira imagem que vem à mente do imaginário popular é mesmo a de líder do movimento modernista. E não é para menos. Inquieto, efu-

sivo e com uma capacidade produtiva e criativa que parecia inesgotável, se envolvia pessoalmente, de corpo e alma, com toda e qualquer atividade que tivesse alguma relação com as novas idéias européias que repudiavam as antigas escolas clássicas. Rapidamente fez amizade com outros jovens artistas e escritores simpatizantes do Modernismo e, ao lado de Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, compôs o que informalmente se chamou de “Grupo dos Cinco” – o embrião que desencadeou a histórica Semana de Arte Moderna de 1922. Em tempo: a despeito do sobrenome, Mário e Oswald nunca foram parentes. Mário escreveu na Revista de Antropofagia, fundada por Oswald, e publicou vários artigos, críticas e ensaios sobre história, literatura e música brasileiras na imprensa da época. Seus textos eram presença constante nos veículos Revista do Brasil, Terra Roxa e Outras Terras, Verde, Diário Nacional de São Paulo e Folha de S.Paulo. Empreendeu várias viagens ao nordeste brasileiro e à Amazônia, sempre colhendo e catalogando as mais diversas manifestações folclóricas e musicais de cada povo. Vale lembrar que os anos 1920 nem haviam terminado ainda quando Macunaíma foi lançado. Ou seja, se ele tivesse naquele momento decidido “se aposentar” e não fazer mais nada, mesmo assim já te-


MANIFESTAÇÕES

Black Blocs: simples modismo ou real ameaça? FERNANDOFRAZÃO/ABR

P OR P INHEIRO J UNIOR Os Black Blocs são apresentados na mídia mundial como um fenômeno que poderia ser rotulado como neo-anarquista. Neo talvez, mas ainda afeito aos tradicionais coquetéis molotov. E, como manda o figurino histórico, manifestando-se com estardalhaço e renovada simbologia anticapitalista. Daí a preferência por ataques a auto-serviços bancários e a vitrines e fachadas de fast foods e marcas e grifes transnacionais de luxo. Curiosamente, na semana final de setembro, a fotografia de um homem segurando um Big-Mac e uma Coca-Cola sob o vão do Masp, na Avenida Paulista, foi publicada pela Folha de S.Paulo com intrigante legenda que o identificava como “coordenador de manifestantes mascarados”. Também multinacionais, pelo menos na nomenclatura, os Black Blocs são uma novidade no Brasil. Mas são estudados há pelo menos três décadas por atuação semelhante na Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Turquia, Egito, Grécia, Chile e México. Não nessa ordem, porém sempre se apresentando como “estudantes, trabalhadores, desempregados e revoltados”, segundo o “Manifeste du Carré Noir” divulgado no Québec, Canadá, em 2012. E que parece definir a “ideologia” Black Blocs: “Nous sommes colère” – ou “Estamos com raiva”. Para os mais críticos, a ação sem fronteiras dos Black Blocs não passaria de mera imitação de jovens rebeldes em busca de um “modismo extra-rock”. Moda esta desconcertantemente colada a protestos quase sempre autênticos. O que poderia conferir um desesperado idealismo à atuação deles. Ações que perderiam a aura romântica ao serem descobertas como premeditadas. O imbróglio é, assim, sinistro. Mas, há quem veja no surgimento dos Black Blocs, país após país, o patrocínio de organizações apátridas, agências de inteligência e insuspeitadas “reinsurgências de direita”. Seriam “embriões” direcionados a implantar o caos em nações-chave da economia e da política mundial. Se a suspeita for suscetível de comprovação – embora peremptoriamente negada na internet pelos interessados – então os Black Blocs poderiam ser vistos (e tratados) como uma potencial ameaça à democracia. Explicar esses grupos – com anárquicos uniformes de peças negras e máscaras ninja – tem mobilizado articulistas de todos os matizes e de todas as mídias. Com essa característica que lhes agrega um indefinido mistério de improvisada guerrilha urbana, os Black Blocs continuam assim a desafiar editorialistas locais e estrangeiros. A tendência é considerar o vandalismo irrefreável pelas “forças da ordem”, como um “defeito ou acidente de governabilidade”. Ou ainda uma inabilidade inerente à exacerbada democracia. Ou mesmo ingênua redundância que atribui exigências de “mais democracia” como “leitmotiv espiritual” das manifestações. Exigências só possíveis exatamente porque a democracia é plena na garantia dos protestos. Foram importantes jornais americanos e europeus – como New York Times e El País – os pri-

culência inerente ao mister policial. No caso meiros a tratarem em editoriais estes “anseios de mais Democracia” no Brasil, dando-lhes das PMs há notório resquício da bem recente ditadura militar quando a repressão sem limisimilitude à contracultura em Berlim na décates era ordem e rotina. O paradoxo democrada de 1980. Os editoriais e artigos consultados desde cia/repressão teria como pretexto a proteção de áreas públicas com seus aparatos de servijulho último na mídia impressa e em sites do Rio e São Paulo questionam em contrapartiços e monumentos. Todo esse conjunto de dida também o alcance e a autenticidade da soficuldades e obstáculos ativa ainda mais as minorias violentas. Neste momento estratéberania popular em manifestações que não conseguem se desgarrar da violência. Cientisgico é que o embate manifestação-polícia pode tas políticos que se abstraem do vandalismo, ser visto como uma radical competição esportiva proibida. E por isso mesmo mais atraticonsiderando o ato criminoso como casos em separado de polícia, vêem nas manifestações va para “entusiastas militâncias secretas”. Afium sadio exemplo de “liberdade nal, não é este o espírito empol“A internet democrática em ação com gagante dos videogames? E não é rantias constitucionais”. Não aí que mora o potencial maior do e a crescente importa se os manifestantes remodismo juvenil? insatisfação com presentam ou não uma vontaAs últimas manifestações de majoritária. É a liberdade amrelatadas na mídia esclarecem os governos pla e irrestrita rolando nas pasque as depredações e o vandalisimpulsionam seatas, mesmo que elas expresmo não são mesmo conseqüêno movimento sem apenas desejos de cabeças cia do embate fortuito. Tomadas comunitárias, pontas de lança predominantemente por mili[Black Blocs]” classistas e amostragem de grutantes de outro fenômeno reFrancis Depuis-Déri, cientista pos menores. Em comum, todos cente – conhecido por Mídia político da Universidade Quebec à Montreal parecem movidos pelo impulso Ninja (Ninja de “Narrativas Inda mídia (TV principalmente) e pela mobilidependentes, Jornalismo e Ação”) – são imazação político-partidária nos dois extremos do gens e testemunhos que só se fazem possíveis “espectro ideológico”. O que parece um contraporque colhidos heroicamente bem de perto, senso. Embora, energeticamente, os extremos mostrando toda uma evidência de premedise atraiam. E se completem. É exatamente nestação nos quebra-quebras. Evidência que não te exercício tão democrático que as passeatas mais se discute. O que se questiona é “a imacabam por oferecer inapeláveis oportunidapunidade do frenesi predatório”, que dá lugar des para grupos estranhos se infiltrarem. E poe vez ao medo ante a simples necessidade de derem confrontar e destruir. Danificando pritrabalhar, voltar para casa, estudar, divertirmeiro as próprias causas e razões de que se vase, transitar. Nessas horas – sempre as mais lem e movem multidões. Uma delas, possivelcríticas da mobilidade e em áreas vitais da mente a causa mais agredida, é a defesa da mocidade – o cidadão comum queda-se desambilidade urbana. parado. Sua revolta assume então o lugar da Nas ruas “por dever constitucional de gaincompreensão. E a confusão dá oportunidarantir e orientar as manifestações”, a polícia de a que o intuito declarado ou oculto dos preacaba incluindo-se no rol dos vândalos. Condadores mascarados seja alcançado no desperquistam mesmo mais antipatias ao se subtar de sentimentos de necessária proteção por meterem ao arbítrio do despreparo e da truvezes fascistas. Como diz Francis Depuis-

Déri, professor de Ciência Política da Universidade Quebec à Montreal (UQAM) autor do livro (sem tradução para o português) Les Black Blocs (UQAM), ouvido em 7 de setembro de 2013 por Carolina Mendonça, da BBC Brasil: “a internet e a crescente insatisfação com os governos e a economia impulsionam o movimento”. Depois conta que pesquisa o grupo há dez anos. E explica que “a internet se tornou seu [deles] principal canal de comunicação, porque permite que os grupos interajam rapidamente e organizem protestos”. Nada que já não tenha sido mostrado, inclusive pela Mídia Ninja em exclusivos vídeos nervosos colhidos no meio da tormenta predatória. O que induz à conclusão que de certa forma também os repórteres da Mídia Ninja participam, com seus rústicos equipamentos de captura de imagem, dos propalados “videogames de rua”. Porque também os Mídia Ninja, no exercício da liberdade de informar, são hostilizados pela polícia. E não poucas vezes pelos vândalos “profissionais ou de ocasião”. Materializando em livro um pensamento-chave de Jean-Paul Sartre, Nelson Padrella publicou em plena ditadura militar o seu O Fascismo é um Estado de Espírito (Edição do Autor – 1969). Hoje temos o direito sem censura a um bom exercício antifascista: pinçar nos jornais daqui e de fora as análises mais importantes que se publicam a propósito ou paralelamente a esta propalada ânsia brasileira de mais democracia e não de volta à ditadura. Ânsia que foi posta na mesa/ruas principalmente pela imprensa internacional subitamente surpreendida por uma pretensa e tardia primavera brasileira, a exemplo dos climas liberais de flores políticas que cresceram no Leste Europeu, na Turquia e até no curso das malfadadas experiências afogadas em sangue no Norte Africano. Dedo e metralhadoras de agências de inteligência tipo CIA e Mossad estão, é claro, presentes e mais ativos do que nunca notadamente no Oriente

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MANIFESTAÇÕES BLACK BLOCS

VIDAS

“O que sustenta essas normas [democráticas] é a consciência de que miná-las terá consequências prejudiciais para todos” Dani Rodrik, cientista político da Universidade Princeton

José Alves Pinheiro Junior é jornalista e conselheiro da ABI, autor de A Última Hora (como ela era), entre outros livros.

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O desenhista do Brasil nos quadrinhos Canini mostrou a toda uma geração de leitores a importância de valorizar a cultura brasileira nas hqs. P OR C ESAR S ILVA

Um dos mais queridos cartunistas brasileiros, Renato Vinícius Canini faleceu no último dia 30 de outubro, aos 77 anos, vítima de mal súbito decorrente de um problema cardíaco. Criador de inúmeros personagens de sucesso, como Cactus Kid, Dr. Fraud e o indiozinho Tibica, e lembrado como o desenhista que “abrasileirou” o Zé Carioca, personagem de Walt Disney, Canini nasceu em 22 de fevereiro de 1935, na cidade de Paraí, no Rio Grande do Sul. Desde jovem, interessou-se pela arte do traço e, aos 21 anos, já trabalhava como ilustrador na revista infantil Cacique, publicada pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado. Ainda nos anos 1960, participou ativamente da lendária Cetpa – Cooperativa Editora de Trabalho de Porto Alegre, iniciativa que tinha como meta a nacionalização do quadrinho brasileiro e contou com o apoio do então Governador Leonel Brizola. Com roteiros de José Geraldo Barreto, Canini desenhava Zé Candango, um cangaceiro que lutava contra os super-heróis estrangeiros. Canini mudou-se para São Paulo em 1967, para trabalhar na revista infantil BemTe-Vi, publicada pela Igreja Metodista. Dois anos depois foi contratado pelo estúdio de quadrinhos da Editora Abril, para ilustrar a revista Recreio. Logo passou a trabalhar com Zé Carioca, personagem popular criado em 1942 por Walt Disney. Aproveitando-se do controle frouxo que a Disney então mantinha sobre os quadrinhos de sua franquia feitos no País, Canini incorporou diversos aspectos da Cidade Maravilhosa às histórias, bem como trejeitos brasileiros ao personagem. Foram cerca de 135 histórias, produzidas entre 1971 e 1977, amplamente apreciadas pelos leitores brasileiros. Mas esse grande sucesso acabou atraindo a atenção da matriz americana, que desaprovou o trabalho, considerando-o demasiado distante do seu padrão original. Por muito tempo, o trabalho de Canini em Zé Carioca ficou proibido de ser repu-

blicado, situação que só mudou em 2005, quando a própria Editora Abril homenageou o artista com um volume da coleção Mestres Disney, equiparando-o assim aos ilustradores Don Rosa, Cavazzano, Gottfredson e Romano Scarpa, vistos nos outros volumes dessa coleção. Em 1974, Canini criou para a revista Crás a sátira de faroeste “Koka Kid”, rebatizada depois pelo editor como Kactus Kid. Inspirado na fisionomia de Kirk Douglas, Kactus Kid era um agente funerário que, quando necessário, transforma-se num pistoleiro elegante e boapinta, não sem alguma dificuldade, uma vez que tinha que passar pela picada dolorosa de uma agulha para fazer o indefectível furinho no queixo. Outra criação importante de Canini é o psicólogo Dr. Fraud que, nos anos 1970, chegou a aparecer em várias edições da

revista Patota, da Editora Artenova, e publicado em álbum em 1991 pela editora Sagra-DC Luzatto, sempre envolvido com problemas psicológicos dos mais famosos personagens dos quadrinhos. Em 1978, criou o indiozinho Tibica para participar de projeto de tiras da Editora Abril, que não foi adiante. O personagem seria enfim publicado em 2010 no álbum Tibica: O Defensor da Ecologia, pela Editora Formato. Canini também teve trabalhos publicados nos jornais Correio do Povo, Diário de Notícias, Pasquim e nas revistas Mad e Pancada, entre outras publicações. Também são seus os livros infantis Cadê A Graça Que Tava Aqui? (1983, Mercado Aberto), Um Redondo Pode Ser Quadrado? (2007, Formato) e O Cigarro e o Formigo (2010, Formato). Em 2012, publicou seu último trabalho, o álbum Pago Pra Ver (Iel/Corag), reunindo 250 ilustra-

ções sobre o Rio Grande do Sul e os pampas, realizadas ao longo dos últimos trinta anos. Casado com a também desenhista Maria de Lourdes, Canini foi sepultado no Cemitério Ecumênico São Francisco de Paula, em Pelotas/RS, onde morava. REPRODUÇÃO

Médio. A missão sediciosa digital denunciase para demonstrar, por exemplo, que tal e qual governo – populista, islâmico, socialista? – são incompatíveis com a democracia. Portanto, concluem análises espiãs: melhor seria derrubá-los... Óbvio que a imprensa estrangeira vê também nas manifestações que varrem as principais cidades brasileiras, São Paulo e Rio à frente, uma tendência resultante da inexpugnável globalização político-econômica. Talvez mesmo um efeito manada sociopolítica, já que o fenômeno da carneirada dirigida não se restringe mais às finanças especulativas. A “ameaça Black Blocs” insere-se perfeitamente na análise do cientista político Dani Rodrik, professor de Ciências Sociais do Instituto de Estudos Avançados da Universidade Princeton, Nova Jersey. Em tradução de Rachel Warszawski, foi publicada pelo Valor Econômico na página A13, edição de 14 de agosto de 2013. É um texto antológico, não fosse Rodrik autor do badalado The Globalization Paradox: Democracy and the Future of de World Economy (Paperback – 2013). Sobre as armadilhas democráticas que podem levar ao autoritarismo, diz Rodrik: “A democracia repousa num jogo implícito de concessões mútuas entre grupos adversários, segundo o qual cada um concorda em defender os direitos do outro em troca de reconhecimento de seu direito de governar, caso vença uma eleição”. E continua: “As cláusulas constitucionais por si só não podem garantir esse resultado, pois os ocupantes do poder podem facilmente anulá-las. Em vez disso, normas de comportamento político correto precisam ser incorporadas pelas instituições permanentes do Estado – seus partidos políticos, parlamentos e tribunais – a fim de evitar o abuso de poder. O que sustenta essas normas é a consciência de que miná-las terá conseqüências prejudiciais para todos. Se eu não defender os seus direitos quando estiver no poder hoje, você terá poucos motivos para respeitar os meus quando subir ao poder amanhã. Quando uma força externa, como as Forças Armadas, interrompe esse jogo, diretamente ou porque uma das partes pode contar com sua intervenção, a dinâmica do comportamento político muda de forma irreversível. A quebra de continuidade dos partidos políticos, dos trabalhos parlamentares e dos processos judiciais estimula o surgimento de cálculos de curto prazo e alimenta práticas antiliberais. Essa é exatamente a doença das democracias jovens.” (project-syndicate.org). Doenças que estão sendo expostas nas ruas, para o bem – dado às reivindicações autênticas – ou para mal, com o surgimento local dos grupos de ataque à democracia – os Black Blocs.

Numa foto histórica, três jovens desenhistas da Cooperativa Editora de Trabalho de Porto Alegre, criada por Brizola, apresentam suas revistas: Shimamoto, Renato Canini e Flávio Teixeira.


SEBASTIÃO MARINHO / AGÊNCIA O GLOBO

A estrela salta das telas para as páginas Musa do cinema nacional, Norma Bengell saiu de cena, vítima de câncer. Mas deixou pronto um livro de memórias, em que revisita, com olhar revelador, sua vida e obra P AULO C HICO

Grandes artistas costumam reservar surpresas para o público. Normal, portanto, que mesmo após a sua morte, Norma Bengell esteja prestes a estrear num produto inédito. A atriz, cantora e cineasta, morta no dia 9 de outubro, aos 78 anos, poderá ser vista em breve – não nos palcos ou nas telas, mas sim nas livrarias. A musa do cinema deixou pronto um livro de memórias. Atualmente em fase de revisão, ele será lançado pela nVersos Editora em março de 2014. Em tempos de polêmicos debates acerca da natureza das biografias, a atriz optou por contar a própria trajetória e versão dos fatos. Na verdade, uma decisão tomada ainda na década de 1980. Na publicação, ela costura seus diários de anotações feitas ao longo da vida e complementa tais dados com informações marcantes de que recordava. Durante as reuniões com a equipe da editora, frisava que, no livro, estariam todas as verdades sobre sua história e os seus momentos de glória no cinema mundial. “Norma contava que queria revelar a sua versão dos fatos que marcaram sua vida e deixou claro para nós que o nome real de cada personagem deveria estar no livro”, conta o assistente editorial da nVersos, Guilherme Udo, que conversou com o Jornal da ABI. Norma sempre registrou os momentos de sua vida em manuscritos e acalentava o sonho de reuni-los há muitos anos. Assim, a obra revela-se o diário de uma musa, agora ao alcance de todos. “O acervo da Norma sempre foi muito bem conservado. A atriz conseguiu reunir facilmente o material e entregou o livro já organizado para nós. Hoje, o texto só passa pela edição final e, em março, o público poderá se deli-

ciar com a sua linguagem desbocada e ao mesmo tempo amável”, conta ele. Lançada ao estrelato a partir de um polêmico nu frontal, o primeiro do cinema nacional, em Os Cafajestes (filme de 1962, de Ruy Guerra, em que era protagonista ao lado de Jece Valadão), a carioca Norma Aparecida Almeida Pinto Guimarães D´Áurea Bengell conseguiu ir além de sua beleza – e das arrojadas experiências estéticas do Cinema Novo. Durante toda a década de 1960, e mesmo diante do estrelato de concorrentes de peso, como Odete Lara, manteve-se como o rosto mais bonito e enigmático do cinema brasileiro. Ao longo de cinco décadas de carreira, brilhou em filmes tão diversos quanto a chanchada O Homem do Sputinik (1959), o premiado O Pagador de Promessas (de 1962, e pelo qual receberia convites para filmar no exterior), Assim era a Atlântida (1975), e Rio Babilônia (1983). Por Noite Vazia (1964), de Walter Hugo Khouri, foi perseguida pela censura, sequestrada e encorajada a buscar o exílio. Como diretora, assinou Eternamente Pagu (1988) e O Guarani (1996), cuja prestação de contas causou polêmica, com suspeita de mau uso de verbas públicas. No mais popular produto da dramaturgia brasileira, as telenovelas, emprestou seu talento a sucessos como Os Imigrantes (1981), de Benedito Ruy Barbosa, na Ban-

deirantes, e em Partido Alto, da dupla Gloria Perez e Aguinaldo Silva, exibida pela TV Globo em 1984. Entre 2008 e 2009, surpreendeu e, numa prova irrefutável de versatilidade, fez o público rir na série de humor Toma Lá, Dá Cá, da Globo, como Deise Coturno. Dona de um olhar doce e impactante, e de voz aveludada, gravou discos como Ooooooh! Norma (1959) e Norma Canta Mulheres (1977) sem, contanto, estourar nas rádios. Os últimos anos foram de dificuldades. Já não andava, devido a duas quedas sofridas em casa. Por vezes, a artista queixava-se de certo esquecimento por parte dos diretores e da mídia. “Ela sempre dizia que não existe porque guardar mágoas de ninguém. Era uma mulher de temperamento forte, mas muito doce. Passou por dificuldades, mas sempre foi amparada pelos amigos, que colecionou pela vida. Norma foi uma pessoa de amores, era movida pela paixão. Todos os seus relacionamentos e detalhes estarão na obra que chegará às livrarias no ano que vem. Vale lembrar que ela foi casada com o ator Gabriele Tinti”, conta Guilherme Udo, para quem nem sempre a atriz teve seu talento devidamente valorizado. “Acho que Norma foi reconhecida em alguns momentos de sua carreira e, talvez, tenha sido mais exaltada no exterior. O Brasil dá muito valor aos seus artistas, mas

ela não chegou a gozar de um reconhecimento imenso do público. É uma pena, pois era uma diva, assim como são Bibi Ferreira e Fernanda Montenegro”, pontua. Udo conta que Norma analisou e deu palpite em todas as fotos que iriam compor a obra. “Apesar de ser vaidosa, queria se mostrar como era e sempre deu preferência para fotos sem maquiagem pesada e nas quais não estivesse como personagem”, revela. Pouco antes de ser internada no Hospital Rio-Laranjeiras, em Botafogo, Zona Sul do Rio, ainda escolheu a foto que ilustra a capa do livro, que Guilherme classifica como ‘uma revelação’. “Ela foi surpreendente durante toda sua vida. O livro inteiro é neste tom. É só conter a ansiedade por algum tempo que, em breve, todos conhecerão a nudez mais íntima, a da alma da artista, que nunca foi vista antes”, promete. Norma faleceu na companhia de estrelas, na madrugada de uma quarta-feira como outra qualquer, vítima de problemas respiratórios, devido a um câncer no pulmão direito, diagnosticado seis meses antes. Seu corpo foi velado no Cemitério São João Batista, em Botafogo, tendo sido cremado no Cemitério do Caju. Deixou filmes, discos, vídeos, amigos. Personagens marcantes. E, por fim, um livro de memórias que certamente contribuirá para a concretização de seu maior desejo: jamais ser esquecida.

JORNAL DA ABI 394 • OUTUBRO DE 2013

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