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Quando as evidências não estão evidentes 2 29 de dezembro de 2015 Ronaldo Souza Conversando com o clínico
Por Ronaldo Souza No artigo anterior sobre o tema em questão, fiz esse comentário: “Mesmo enxergando pequenos equívocos na proposta e grandes equívocos no texto acima, recebi a ideia com entusiasmo”. Vamos então ao que chamei de “pequenos equívocos na proposta”. Talvez depois de vê-los você possa entender mais facilmente porque apontei para “grandes equívocos” nos comentários de um professor ao qual também me reportei acima. Aprendemos que a infecção em Endodontia está confinada no canal, conhecimento consagrado pelo estabelecimento das quatro zonas de Fish. Ou seja, ela não existiria nos tecidos periapicais. Lá, só as suas consequências, que se expressam radiograficamente através da lesão periapical. Há uma citação clássica que diz que um granuloma não seria local de sobrevivência e proliferação microbiana. Ainda que hoje alguns autores não concordem que microrganismos não conseguiriam sobreviver naqueles tecidos, sabe-se que a fonte de infecção está no canal, ou, melhor dizendo, no sistema de canais. Vamos sintetizar? Tendo em vista que a infecção estaria contida no canal, este seria o campo de ação do endodontista. Em outras palavras, segundo a literatura o tratamento endodôntico deveria ser realizado nos limites do canal radicular e não além dele.
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A despeito de intervenções além desses limites já terem sido propostas anteriormente, sobre as quais falaremos em outro momento, o que propõe o Apexum? “O protocolo do Apexum foi feito para levar o conceito de desbridamento um passo adiante, ao forame apical, e além dele, à própria lesão periapical”. Este é um dos pontos abordados no artigo. Vejamos. No artigo o Apexum só é mostrado “trabalhando” no interior da lesão periapical (observe a imagem do próprio artigo logo no começo desse texto), onde o tecido se apresenta sem corpo, sem estrutura física definida. Em nenhum momento da publicação os autores se referem à instrumentação do forame para efeito de controle de infecção. Só o fazem para criar uma passagem para o Apexum chegar aos tecidos periapicais. Confira.
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Assim, a ausência de considerações sobre a instrumentação do canal cementário no artigo não nos permite pensar na possibilidade de seu desbridamento. Lembremos que no canal cementário, que aliás me parece uma expressão mais adequada do que simplesmente forame apical, como utilizada pelos autores, o instrumento irá trabalhar em estruturas mineralizadas, paredes de cemento, ainda que eventualmente partes delas possam estar parcialmente reabsorvidas. O Apexum não é uma lima, não possui um segmento cortante com espiras e/ou lâminas, portanto, não corta nem desgasta.
Com essas características não parece ser o instrumento mais adequado para essa função, corte e/ou desgaste de estruturas mineralizadas. “O Apexum é baseado em uma remoção minimamente invasiva de tecidos periapicais cronicamente inflamados através do acesso ao canal radicular… Esta é outra ponderação feita pelos autores do artigo. Também aqui não consigo acompanha-los.
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Não consigo ver como seria possível remover “tecidos periapicais cronicamente inflamados” ou qualquer outro tecido periapical nas condições propostas pelos autores, ou seja, pelo acesso criado na câmara pulpar. O instrumento penetra pelo cilindro e na região periapical é “liberado” para “varrer” a lesão. Assim deve promover um desarranjo do tecido inflamado. No entanto, remove-lo pelo acesso coronário não parece muito fácil de conceber. Consideremos a manobra proposta e descrita pelos autores.
Ainda que em Endodontia exista o componente químico, a depender da solução que se usa, irrigar é um ato físico. A literatura sempre se reportou a essa etapa do tratamento endodôntico como algo fundamental para se promover fluxo e refluxo, isto é, uma ação que promoveria um arraste do conteúdo do canal. É pela necessidade de criação de fluxo/refluxo que a literatura é rica em recomendações de irrigação vigorosa. Há até quem diga que mais importante do que as características químicas das soluções irrigadoras é a ação física da irrigação. Para fazer a irrigação (lavagem) da suspensão gerada pelo Apexum nos tecidos periapicais, os autores descrevem que “…a solução salina era gentil e vagarosamente injetada para ‘enxaguar’ a suspensão tecidual…” (a tradução de flush como enxaguar é a que mais se aproxima do que é proposto) e em seguida falam em refluxo (backflow).
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Uma vez que durante o preparo do canal usou-se hipoclorito de sódio a 1%, certamente pelas características químicas dessa substância, percebe-se sem dificuldade que no momento específico da irrigação da lesão periapical ela assume um papel eminentemente físico, pois é feita com solução salina. É possível que “gentil e vagarosamente injetada” a sua condição de arraste (limpeza física) não se dê plenamente ou ocorra com potencial de remoção bem menor. Considerando que esse procedimento visa promover refluxo dos tecidos periapicais em suspensão na lesão periapical na direção do acesso criado na câmara pulpar, como demonstram os autores, é possível que o objetivo não seja alcançado tão facilmente como se deseja. Imagina-la assim deve nos fazer crer que a sua eficiência poderá não ser a idealizada. Por outro lado, não há referência a qualquer proposta específica sobre como fazer a aspiração do canal, o que poderia aumentar a capacidade de remoção daquele conteúdo.