Quando as Evidências Não Estão Evidentes Part 1

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Quando as evidências não estão evidentes 26 de dezembro de 2015 Ronaldo Souza Conversando com o clínico

Por Ronaldo Souza Tudo que é ensinado no mundo acadêmico, seja em que nível for, deve estar respaldado por informações que encontrem na ciência a sua comprovação. Este é um princípio elementar do processo ensino-aprendizagem. Assim, não deveriam existir professores que não tenham essa percepção e que por isso desmereçam a importância, validade e necessidade das evidências científicas na sua relação com a sociedade, particularmente com seus alunos. Para ficar somente no Brasil, quantos trabalhos de pesquisa foram feitos pelo professor Holland e sua equipe para que o hidróxido de cálcio fosse aprovado e adotado pela comunidade endodôntica? Inúmeros. Na mesma linha de raciocínio, alguns trabalhos de pesquisa sobre o Endo PTC foram realizados pelos professores Paiva e Antoniazzi antes de o preconizarem. Não se trata de concordar ou discordar do uso dessas substâncias. Não é isso que interessa discutir agora e sim o cumprimento de algumas exigências para que instrumentos, técnicas, substâncias e materiais sejam preconizados e lançados no mundo acadêmico e no mercado odontológico. Esse era o procedimento mais comum. Talvez por reconhecer a importância dessa regra fundamental, até porque não poderia ser de outra maneira, chego a me surpreender com o uso que fazem dela atualmente. Característica do ser humano, não é incomum que em determinados momentos literalmente seguimos as normas e em outras oportunidades tendemos a não ser tão exigentes. Estamos sujeitos a ver de maneiras diferentes coisas iguais. Depende de onde estamos olhando e, por incrível que possa parecer, para quem estamos olhando. Assim, o viés humano deve ser considerado. A necessidade de evidências científicas em Endodontia é cada vez mais forte, tem sido bastante enfatizada e, repito, não deveriam existir discordâncias nesse sentido. Entretanto, talvez algumas considerações devam ser feitas.


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No começo de 2009, mais especificamente em janeiro e fevereiro, foram publicados dois artigos no Journal of Endodontics sobre um novo instrumento, Apexum, cuja proposta era basicamente “instrumentar” a lesão periapical (veja os artigos aqui e aqui).

Foi grande o encantamento e rápida a sua aceitação por alguns professores. Veja o comentário de um deles que li à época: “Deve-se notar que o procedimento com o Apexum é substancialmente diferente da sobreinstrumentação durante o tratamento endodôntico. Este traumatiza o tecido e pode também introduzir antígenos bacterianos no tecido cuja função primordial é combate-los. Quando isso acontece, é provável que ocorra uma reação inflamatória aguda nos tecidos periapicais com o consequente edema. Assim, sintomas de agudização devem ser esperados. Com o Apexum esses eventos não acontecem. Ao contrário, ele deve ter removido o tecido no qual tal resposta poderia ocorrer e permitir o preenchimento do local com um coágulo de sangue fresco, no qual os mecanismos acima não estão presentes. Isso deve explicar o resultado confortável e sem efeito adverso no pós-operatório observado nesse estudo”. Mesmo enxergando pequenos equívocos na proposta e grandes equívocos no texto acima, recebi a ideia com entusiasmo. Achei que, apesar do pouquíssimo tempo destinado à observação dos resultados (3 e 6 meses), a tentativa de mudança de concepção e sua divulgação através das 2 publicações já mereciam atenção. Mas chamou a minha atenção a rápida aceitação do procedimento no Brasil, sem contestações e também sem que existissem as evidências necessárias que suportassem a sua indicação, ainda mais diante dos rigores que já se dava a essa exigência. É natural que algumas reações sejam atribuídas à confiabilidade do grupo que publica o trabalho, seja este em questão ou outro qualquer. Nesse sentido, porém, não vejo como negar que entre nós os grupos internacionais gozam de muito prestígio.


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Quem há de negar o mérito e a seriedade de alguns deles? Ao mesmo tempo, quem duvida de que isso também se deve a fatores culturais que, claro, não cabe discutir aqui? Mas, insisto, não há como negar que isso tem um peso enorme no Brasil. Independente desse aspecto, mesmo a minha simpatia pela ideia não me tira a capacidade de observa-la sob a ótica da isenção. Nessas condições, uma análise mais isenta, talvez determinadas propostas não fossem tão rapidamente aceitas. Por outro lado, talvez outras não fossem tão rapidamente negadas para mais tarde, com novo endereço da sua origem, serem aceitas. O mundo acadêmico sempre estabeleceu virtudes e méritos maiores a determinados tipos de trabalho em detrimento de outros. Assim é que, sem qualquer juízo de valor, na escala de poder das evidências científicas, os estudos experimentais em animais sempre foram uma exigência “incontornável” para que novas concepções fossem aceitas. Como nesse segmento, o das pesquisas em laboratório, já existiam protocolos mais consistentes, de fato os trabalhos possuíam mais rigor e solidez científica do que qualquer outro. Ainda que em Odontologia engatinhássemos nessa direção e tivéssemos muito a aprender, era flagrante a sua robustez diante, por exemplo, do que se concebia da pesquisa clínica, praticamente inexistente e pouco considerada. Atualmente os estudos em animais não mais ocupam os primeiros lugares em termos de validade de resultados. Apesar de não ser exatamente essa a minha visão, a deduzir pela sua força atual na escala de poder das evidências científicas os resultados do trabalho em questão teriam pouco valor, considerando-se que o estudo em cães foi o utilizado. Veja o que dizem os autores: “Nenhum evento clínico adverso ocorreu no grupo convencional ou no Apexum. Nenhum dos cães apresentou edema ou indicações de sofrimento por dor. Pode-se concluir que o protocolo do Apexum parece ser seguro mecânica e clinicamente”. Perceba que diante daqueles primeiros resultados no estudo em cães, os autores já faziam esta afirmativa: “Pode-se concluir que o protocolo do Apexum parece ser seguro…”


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Também deve ser registrado que o acompanhamento não foi histopatológico e sim radiográfico, por 3 e 6 meses. Ressalve-se, entretanto, que foi feita também a avaliação em humanos, um estudo clínico, publicado no segundo artigo. Este, na escala referida acima, ocupa posições mais elevadas. Entretanto, há um detalhe. Veja parte do resumo: “Aos 3 e 6 meses, 87% e 95% das lesões no grupo tratado com o Apexum, respectivamente, apresentaram cura avançada ou completa, enquanto que somente 22% e 39% das lesões no grupo do tratamento convencional apresentaram esse grau de reparo aos 3 e 6 meses, respectivamente. É possível que um estudo clínico com acompanhamento radiográfico de 3 e 6 meses não forneça a base sólida suficiente que se pretende ter para a recomendação de um procedimento clínico como rotina. Ainda que venha de um grupo internacional. Mas assim foi feito. E aceito.


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