Revista Exceção - 2018

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EDITORIAL

Plural, mas singular

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omo definir a Exceção deste semestre? Difícil. Embora estejamos chegando ao fim, explicar uma revista pode ser um dos grandes desafios do jornalismo. Pois bem: o que sobra para universitários em diferentes tempos da graduação? Um misto de desejos. Um misto de paixões. Um misto de nervosismo, ansiedade e angústia que só aqueles que passam por isso sentem. E é nessa mistura de sentimentos que nos encontramos. A Exceção foi feita por pessoas de personalidades completamente diferentes. De gostos musicais únicos. De várias origens. Com jeitos de se vestir opostos. Exceção. Perguntamos-nos, o que levou os primeiros estudantes de Jornalismo de Revista a escolher um nome tão peculiar, há mais de uma década? Mas podemos imaginar. São os detalhes que nos tornam a exceção. São percepções, histórias e estilos que conseguem transformar e manter essa revista única – ainda que esteja próxima de completar 15 anos. Versátil. Com tantos conteúdos diferentes e um visual clean, poderíamos resumir esta edição em uma expressão tão brasileira quanto nós: um samba do crioulo doido. Mas, calma. Isso não quer dizer que a revista tenha sido feita às pressas, sem organização

EXCEÇÃO | VOLUME 15 | JULHO DE 2018

e carinho. Foi a melhor forma que encontramos, em uma noite de domingo, para descrever a Exceção. Isso porque cada um conseguiu expressar, da sua maneira, a motivação para ser uma pessoa única. E tudo isso virou um verdadeiro carnaval, com direito até a foto de capa sobre o tema. Essa Exceção conseguiu unir, em uma única edição, coisas tão opostas. Ao mesmo tempo que é plural, é singular. Traz um pouquinho de tudo: a instigante história do padre carnavalesco; a “liberdade” daqueles que vivem com uma tornozeleira eletrônica; o alerta sobre as doenças silenciosas; a determinação das mulheres que não se deixam oprimir; entre tantas outras narrativas, construídas com destreza por uma turma seleta. Para o resultado, que está em suas mãos, foram muitos os questionamentos do Demétrio; os apontamentos da Luiza e do Lucas; as sugestões de sinônimos da Taliana e da Taís; a cobrança de imagens em boa resolução do Matheus; a insistência em ser uma revista visualmente atrativa da Gabriela; e a exigência, por parte de cada um, em fazer uma reportagem particular. A equipe da Exceção deste semestre deseja a você uma boa leitura!

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

A Exceção é a revista-laboratório do Curso de Comunicação Social, desenvolvida na disciplina de Jornalismo de Revista, com orientação do professor Demétrio de Azeredo Soster.

Impressão Grafocem Tiragem 500 unidades

Curso de Comunicação Social - Jornalismo Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) Av. Independência, 2293, bairro Universitário Santa Cruz do Sul, RS

Foto da capa Lucas Batista

ACESSE AS MÍDIAS SOCIAIS DA EXCEÇÃO 2

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FOTOS: FÁBIO GOULART

LUIZA GOULART subeditora e repórter

DEMÉTRIO SOSTER professor orientador

MATHEUS PRESTES editor de fotografia e repórter

GABRIELA ETGES editora gráfica

TALIANA HICKMANN revisora e repórter

TAÍS DÖRR FORTES revisora e repórter

ANDRIELE BATISTA repórter

BERNARDO MULLER repórter

BRUNO DE AZEVEDO repórter

GIOVANA BRASIL repórter

LETÍCIA SANTOS repórter

MATHEUS HAETINGER repórter

NAIARA SILVEIRA repórter

PATRICIA HERMES repórter

TAISA FRANCESCHI repórter

A EQUIPE

LUCAS BATISTA editor e repórter

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SUMÁRIO

05. O BICHO-HOMEM Crônica por Letícia Santos

30. AS MUDANÇAS NA VIDA DE STEVE EVERETT Resenha por Fernanda Nunes

33. URUGUAI SOBRE BICICLETA Por Matheus Prestes

37. BATALHA DA VIDA REAL Por Letícia Santos e Patrícia Hermes

42. DE OLHOS FECHADOS PARA A PSICOPATIA Por Taliana Hickmann

06. QUANDO A VIDA PERDE A COR Por Taís Dörr Fortes

09. A PRÁTICA DO PRINCÍPIO 90/10 Por Taisa Franceschi

47. OS LIMITES ENTRE O PRECONCEITO E A INTOLERÂNCIA Por Andriele Batista

50. LIVRE, MAS NEM TANTO Por Lucas Batista

55. EM CADA CICATRIZ, UMA HISTÓRIA Crônica por Patricia Hermes

12. SENSIBILIDADE DE MULHER, FORÇA DE DELEGADA Por Lucas Batista

17. INICIAÇÃO MUSICAL:

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UM CAMINHO PARA A EDUCAÇÃO

56. SÓ CADEIA NÃO RESOLVE

Por Bernardo Muller

Por Matheus Haetinger

21. EM NOME DO PAI,

60. MAIS QUE TERAPIA,

DO FILHO E DO SAMBA

FILOSOFIA DE VIDA

Por Luiza Goulart

Por Giovana Brasil e Naiara Silveira


CRÔNICA

ANDRÉ DITTBERNER

O BICHO-HOMEM POR LETÍCIA SANTOS

A

s melhores crônicas nascem do coração, e essa é uma delas! Principalmente quando vamos adquirindo maturidade e temos milhões de histórias desastradas para contar. No passado, até arrancaram rios de lágrimas, mas hoje despertam risadas e agradecimentos de cada desgraça que aconteceu... Mas, vamos direto ao ponto, ao que interessa: falar do bicho-homem. O bicho-homem é difícil de decifrar. Sei disso, porque na minha vida já passaram quase todos: os apaixonados, os carentes, os safados, os que juravam amor e foram embora, os que não amavam e aprenderam a amar, os solitários em busca de companhia, os loucos, os normais, com graça, sem graça, altos, baixos, loiros, morenos, decididos e indecisos, os que queriam uma noite ou até alguns bons

anos ao meu lado. Havia, também, os festeiros e os caseiros. Os românticos e os brutos. Tudo era demais ou era de menos. E, quando se pensava que ia decolar, o “teco-teco” voltava à garagem. O passeio foi ótimo, mas não foi desta vez! Será que existe esse tal de amor verdadeiro?! Só se for como o da minha mãe! Imperfeito, mas feito sob medida. Mas, cá para nós, eu não acredito mais no bicho-homem! Já convivi e observei de perto todas as espécies mais bizarras da face dessa miserável terra e o tal homem da minha vida até já encontrei, mas somente nos filmes de Hollywood. Se bem que, até pode aparecer a tal figura especial que tanto ouço falar por aí, mas peço que me engane tão bem ao ponto de eu ser uma boba feliz. Porque no fundo, mulheres maduras fingem

que acreditam, mas sabem que príncipes encantados não existem. O que pode acontecer, na mais rara das hipóteses, é um cara cair de paraquedas na sua frente. Ele pode ser super gente boa, muito disposto e a fim de ficar do seu lado, que agarre a vida de mãos dadas contigo e tenha um mega orgulho de você. Mas ainda assim, o bicho-homem é indomável e imprevisível como uma fera, sempre em busca de novos horizontes e aventuras. Essa é a verdadeira face do universo masculino. Faça as pazes com isso e tudo ficará bem. Alguns deles têm muita capacidade de compreender o que a sociedade denominou de amor. Mas, jamais espere que isso seja tão profundo quanto o coração de uma mulher. 5


QUANDO A VIDA PERDE A COR Um dos principais riscos da depressão na terceira idade é a alta taxa de suicídio

POR TAÍS DÖRR FORTES

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le era bem-humorado, estava sempre de bem com a vida e fazia brincadeiras o tempo todo. Era feliz. No entanto, assim como outras pessoas, já havia passado por muitos momentos difíceis. Entretanto, nenhum deles se comparava ao que aconteceu naquele 3 de janeiro de 2001, quando precisou lidar com a morte da sua esposa. Talvez, não foi apenas o sofrimento pela perda da mulher, mas o somatório das dores já vividas até os seus 72 anos, que fizeram seu José*, escolher o dia 29 de junho de 2001 para tirar a vida. Ninguém acredita, ainda, que isso aconteceu. Afinal, ele já havia passado por outras situações difíceis - a perda da sua primeira esposa, a morte de umas das filhas e um acidente que quase lhe tirou a capacidade de ter uma vida normal - e tinha se erguido novamente. Mas, naquele 3 de janeiro, a sua força não foi maior do que a dor de ficar viúvo novamente. “No dia que a mãe morreu, ele disse pra gente que a vida dele tinha acabado”, conta a filha mais nova de José, Adriana*. Depois daquela quarta-feira de 2001, Adriana nunca mais viu o pai ser o mesmo. Foram seis meses e 26 dias vendo José viver em depressão profunda. “Ele e a mãe eram muito apegados um ao outro. Ele chegou a pedir para a médica um remédio mais forte do que aquele que já tomava. Ela disse que não tinha outro”, relembra Adriana. 6

Durante os quase sete meses que viveu sem a esposa, seu José deixou de ser quem era. As suas brincadeiras foram substituídas pela vontade de ficar sozinho. O alto-astral deu lugar a uma tristeza que não tinha fim. O trabalho na roça, que ele tanto gostava, deixou de ser realizado, para que assim sobrasse mais tempo para ficar sentado no escuro, sozinho, dentro da casa em que vivia em Linha Travessa, no interior de Venâncio Aires. Apesar de toda a tristeza em que seu José vivia, a família sempre achou que seria apenas uma fase. “Quase sempre quando se torna viúva, a pessoa fica muito triste. Então, nunca pensamos que ele estava neste grau de depressão. Que ele ia se matar”, compartilha Adriana. Além disso, José sempre estava de bem com a vida e era a última pessoa que a filha achava que entraria em depressão algum dia. “Ele sempre dizia que, quando estivéssemos meio tristes da vida, desanimadas, era para ir dar uma volta no hospital ver as pessoas. Acho que nem uma das filhas imaginou que ele ia fazer isso.” A descrença de que isso aconteceria era tão grande que, um dia antes de tirar a vida, seu José foi até um mercadinho, próximo à sua casa, comprar uma corda com a qual se mataria e ninguém acreditou na história. “Ele foi na venda e disse: ‘Denir, me vende uma corda porque eu vou me matar enforcado.’ Como ele sempre era muito brincalhão, não


levaram a sério. Então, ele disse que se não tivesse coragem de se matar enforcado, ia se matar afogado.” E foi exatamente o que fez em 29 de junho de 2001. Apesar de saber nadar, quando entrou no açude, de propriedade do vizinho, não foi isso que José fez. “Ele e meu tio sempre iam juntos ao barbeiro. Naquele dia ele disse pro meu tio: hoje nós vamos fazer diferente, eu vou primeiro e depois tu vai. Meu tio ficou em casa. Só que meu pai não foi no barbeiro”, recorda Adriana. A corda só não foi usada porque no dia em que se enforcaria, José recebeu a visita de uma irmã que, sem saber, lhe impediu de tirar a vida.

LUTO E SUPERAÇÃO O ano de 2001 nunca mais vai sair da memória de Adriana. Foram duas perdas: primeiro a mãe, em janeiro, depois o pai, em junho. Como ela mesmo diz, em nenhuma delas foi possível dar tchau, pois tudo aconteceu de repente. “No primeiro do ano tudo estava normal. Eu tinha o meu pai e

a minha mãe. Mas aí, no dia 3, eu perdi a mãe e, depois, no dia 29 de junho, o pai. Foi muito difícil. Só superei porque tenho as minhas filhas.” A dor foi ainda maior porque a relação com José ia muito além da paternidade. Era de amizade, de companheirismo, de confidência. Por isso, um fim de semana sim e outro não era dia de visita a casa do pai. “Às vezes ele fazia de conta que tinha entendido errado e vinha duas semanas seguidas buscar a gente”, relembra Adriana. “Ele era meu amigão. Meu companheiro. Quando me trazia para casa ficava tomando chimarrão e conversando comigo”, acrescenta. Junto com a dor do luto, que já era enorme, Adriana ainda conviveu com o sentimento de culpa por não perceber que a situação era tão grave. “Eu senti uma tristeza muito grande. Parece que tu te culpa por não ter percebido que a pessoa estava assim.” Ainda hoje, ela lamenta não ter percebido que o grau de depressão em que ele se encontrava podia levá-lo a tirar a vida. *Os nomes são fictícios em respeito à família entrevistada.

TAÍS DÖRR FORTES

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MITOS A SEREM DESCONSTRUÍDOS Seu José não é o único. De acordo com o médico se mata” e “Na minha família isso não acontece”, são psiquiatra especialista em idosos e coordenador do De- mitos a serem desconstruídos. É preciso estar atento e partamento de Psiquiatria Geriátrica da Associação de buscar ajuda profissional sempre que se desconfiar desta Psiquiatria do Rio Grande do Sul (APRS), Eduardo Hostyn possibilidade”, alerta o psiquiatra. Sabbi, os casos de depressão na terceira idade são tão coNão há uma regra para que a depressão se desenvolva. muns quanto os que ocorrem na fase adulta, embora alguns Ela pode ser decorrente de múltiplos aspectos, como os autores considerem que a depressão nesta faixa etária tem ligados à genética - ter a doença no histórico familiar ausido subdiagnosticada por alguns preconceitos vigentes. menta o risco em 1,5 a 3 vezes - à cultura - pressão social Um deles é que seria “normal” nessa idade a pessoa pela beleza do corpo, por exemplo -, aos traumas vividos, ficar mais triste, mais retraída do meio social e sentir mais à personalidade construída ao longo da vida e à forma dores. “De fato, as queixas somáticas são maiores no velho que se aprendeu a lidar com os problemas a ela inerentes. deprimido e devem ser levadas em Outro fator que é apontado como conta alterações do sono, do apetite, um desencadeador da depressão nesta “‘QUEM FALA NÃO sensibilidade à dor, entre outros fatofaixa etária são os psicossociais. “PerFAZ’, ‘QUEM QUER res. Nem sempre o humor triste serve das em geral, como a de um ente queriSE MATAR, SE MATA’, de parâmetro, podendo ser expressado do, do trabalho, da situação financeira, ‘PESSOA VELHA pela ansiedade ou sensação de vazio”, do ‘poder’ no grupo familiar, de saúde, observa Sabbi. Mas, para além dos préentre outros e até situações físicas NÃO SE MATA’ E ‘NA -julgamentos, é necessário ficar atento como alterações hormonais, insônia MINHA FAMÍLIA ISSO a todas as mudanças, por mais óbvias crônica, efeitos de alguns medicamenNÃO ACONTECE’, que elas sejam. “É muito importante tos ou doenças também são possíveis SÃO MITOS A SEREM que os familiares estejam atentos para motivos para o desenvolvimento da DESCONSTRUÍDOS” a expressão de ideias mais negativas, doença”, avalia o psiquiatra. como a de que não tem mais nada para Os perigos da doença nesta faixa Eduardo Sabbi fazer aqui, de que a vida não vale mais etária são tão grandes como em qualpsiquiatra a pena ou que está apenas esperando quer outra idade. Um deles, se não o Deus vir lhe buscar”, ressalta. maior, está associado ao fato de que, Perder a motivação, se afastar das atividades e ten- não apenas no Brasil, mas em todos os países do mundo, der para os pensamentos negativos podem ser sinais de as altas taxas de suicídio levado a termo pertencerem a alerta de que nem tudo está funcionando como deveria. este grupo. “Assustadoramente, cerca de 70% dos idosos “Abandonar a leitura ou pintura, se recusar a ir naquele que cometeram suicídio, antes, partilharam suas ideações tradicional almoço familiar de domingo, ou nos encontros com pessoas próximas. É muito importante não subestido pessoal da igreja, grupo de amigos e outros que faziam mar estes dados”, destaca Sabbi. Outros riscos da doença parte de sua rotina, são exemplos disso. “Quem fala não é o desperdício do “curtir” a vida e o rompimento dos faz”, “Quem quer se matar, se mata”, “Pessoa velha não vínculos afetivos.

TRATAMENTO EM MATO LEITÃO A psicóloga integrante da equipe do Núcleo de Apoio à Atenção Básica (NAAB) e coordenadora da Saúde Mental de Mato Leitão, Solange Adams Simon, relata que no município há casos de depressão na terceira idade. Entretanto, a equipe não os têm contabilizados. “De forma geral, os casos de depressão são mais comuns em mulheres, em especial, por causa das questões hormonais que estão bastante envolvidas, mas, com certeza, temos casos de homens também”, observa. Em relação ao tratamento, Solange explica que ele ocorre da mesma forma para todas as idades. Ela ainda salienta que Mato Leitão tem 100% de cobertura de Estratégia de Saúde da Família (ESF). A equipe do Núcleo de Apoio à Atenção Básica em Saúde Mental é composta por enfermeira, psicólo8

ga e educador social engajados e responsáveis pelo serviço de saúde mental do município que avalia os casos, encaminha para avaliação clínica, oferece tratamento psicoterápico individual e de grupos, grupos de acolhida e de tratamento da dependência química do tabagismo. No município, a família também recebe suporte. Por isso, são ofertados grupos de acolhida semanalmente, abertos para a participação de toda a comunidade. Além disso, também são realizadas visitas domiciliares, com orientações aos familiares em relação à conduta com seus parentes idosos. “As famílias sempre precisam ser envolvidas, pois, geralmente, esses idosos estão sob a responsabilidade dos filhos ou outros familiares”, pondera a coordenadora.


A PRÁTICA DO PRINCÍPIO 90/10 A forma como interpretamos cada situação transforma nossa maneira de ser e viver. Elas são exemplo disso

POR TAISA FRANCESCHI

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ntre os problemas, um parecia não ter solução. As sapatilhas. Tão lindas e delicadas quanto a menina. Uma sempre durava décadas. A outra, se acabava rapidamente. Comprar apenas um pé em vez de um par parecia absurdo em todas as lojas que ela frequentava. Então, a única maneira era aceitar que uma sempre ficaria guardada para recordação. Há casos, não necessariamente corriqueiros, em que algumas pessoas nascem sem braços ou sem pernas. Este é o começo da história de Daniela Sagaz, uma menina que, mesmo antes de nascer, já era assunto na cidadezinha de Timbó, no interior de Santa Catarina. O boato de que a mãe daria a luz a uma criança desprovida de um

braço e com apenas uma perna circulou pela cidade de maneira rápida e curiosa. No dia 5 de novembro de 1987, o hospital se tornara atrativo aos moradores daquela região, que,

A VONTADE DE VIVER GRITAVA DENTRO DE UM CORPO QUE PODIA OUVI-LA

movidos pela curiosidade, queriam conhecer a menina. O fato é que, ainda um bebê, Daniela recebeu uma chuva de olhares, desde os mais aconchegantes, que queriam levar

conforto e apoio à família, até aqueles que acreditavam que a menina não sobreviveria. Desde o começo da gravidez, quando seu Valdir, o pai de Daniela, ficou sabendo das condições em que a menina nasceria, ele garantiu que por toda sua vida seria o braço e a perna que faltavam nela. E assim foi. O tempo passou. A menina cresceu. A família sempre criou Daniela para o mundo, para as oportunidades, para o sucesso. O pai manteve sua promessa. A filha estudou, teve festa de 15 anos, formatura e foi além. A faculdade começou, os cursos extracurriculares aconteceram, o conhecimento se tornou cada vez maior. A vontade de viver gritava dentro de um corpo que podia ouvi-la. O casamento veio - e foi aqueles 9


ARQUIVO PESSOAL/INSTAGRAM

de princesa, como ela sempre sonhou. A menina seguiu e foi tão além que as pessoas daquela cidadezinha se impressionam com sua história. Acontece que nessa vida nada vem fácil. Alguns têm mais dificuldades. Outros, menos. Mas quem realmente almeja, enfrenta qualquer tipo de obstáculo. O desejo de Daniela a levou à coordenação de uma multinacional, reconhecida como melhor empresa para se trabalhar no Brasil. O querer a levou a um casamento quase perfeito - talvez perfeito, mas não acredito que exista um assim. A vontade de Daniela gerou coragem, a coragem mostrou resultados e os resultados impressionam e servem de exemplo. Exemplo de quem nunca se portou como vítima, exemplo de liderança e coragem.

DANIELA VIVE A VIDA ENCANTADA QUE BATALHOU PARA TER

Quem vê aquele doce olhar não consegue imaginar os problemas e desafios que ela enfrentou na vida, mas ela sabe que, no fundo, todos os dias são uma vitória. A alegria que Daniela traz no coração contagia as pessoas de maneira inevitável. A menina, que pelo olhar de muitos, talvez, tivesse motivos para se acomodar naquela cidadezinha de interior, escolheu se aventurar, e se tornou uma mulher encantadora, que seduz e vive. Talvez essa seja a palavra certa, Daniela vive a vida encantada que batalhou para ter. Assume seus problemas do dia a dia e serve de exemplo e inspiração para muitos, ganhando destaque na vida. Essa batalha não é uma exclusividade de Daniela, existem outras histórias que merecem ser contadas e nos mostram que tudo pode. A Ana Rieck é mais um exemplo de superação, cujo objetivo é ser feliz. 10


ARQUIVO PESSOAL

ÀS VEZES, O SEGREDO É NÃO PENSAR Já era tarde, nós tínhamos conversado por um bom tempo, eu já conhecia sua história, e estava encantada por ela. No final, perguntei se teria algo a mais para acrescentar, não que eu precisasse, mas sim, para que ela se sentisse à vontade em falar o que quisesse. De imediato ela completou, sem mesmo pensar, “Minha meta é ser feliz”. Confesso que a menina de 24 anos, que tem uma rotina corrida entre o trabalho e a faculdade de psicologia, me desconcentrou algumas vezes durante a entrevista, com seus olhos azuis esverdeados, combinando perfeitamente com a suavidade de suas palavras, que me faziam repensar a vida. Ainda na infância, com corpo cheio de energia, em um dia qualquer, brincando na pracinha, a menina quis correr e não conseguiu. Havia vontade, mas faltavam forças nas pernas. Problema que em seguida desapareceu. Tempos depois foram os olhos, durante alguns minutos perturbadores, a visão de Ana se duplicou. Com um longo prazo entre um acontecimento e outro, tanto Ana quanto seus pais se mostravam despreocupados. Até que a situação se repetiu e, desta vez, a menina tinha perdido a força dos braços e das pernas. O que no começo foi identificado como uma simples alergia - e tratado como isto -, depois de muitos exames foi diagnosticado como esclerose múltipla. Com apenas 10 anos, Ana entrava em uma nova etapa de sua vida. Não só ela, mas sua família, que se recuperava do

Acidente Vascular Cerebral (AVC), que resultou na perda de movimentos do lado esquerdo do corpo de seu pai. Segundo dados da Associação Brasileira de Esclerose Múltipla, estima-se que, atualmente, 35 mil brasileiros tenham a mesma doença que Ana. Com as células de defesa do seu organismo atacando o próprio sistema nervoso central e sujeita a lesões cerebrais que resultariam novamente em crises, Ana, ainda criança, começa o tratamento de uma doença que não tem cura, mas que pode ser controla-

A VIDA É 10% O QUE VOCÊ FAZ DELA E 90% A MANEIRA COMO VOCÊ A VÊ

da. No início, eram duas vacinas diárias, mas ela não se adaptou ao tratamento e logo passou a ser uma aplicação diária. Desde então, quando o dia amanhece, antes de começar suas atividades, Ana tem um compromisso com a vida. A menina que tinha medo de agulhas, agora já se acostumou com a seringa. Acorda e escolhe o lugar da vacina e, em seguida, o dia começa. Depois de entender sua história e saber que no início do tratamento o cuidado era redobrado com as informações que lhe passavam sobre sua doença, a

questionei como ela se sentia hoje, entendendo o que é a esclerose múltipla e sabendo que o tratamento nunca poderia parar. Sua resposta foi tão simples e verdadeira, que me deixou ainda mais encantada por ela. “Eu não penso, não gosto de me vitimar”. Percebia entre suas palavras e a maneira de agir, que apesar dos contratempos de todos os dias, Ana era menina leve, de sorriso fácil. Que realmente tocava a vida sem muitas perguntas, sem muito medo, sem desespero. Apenas vivia. Stephen Covey é um dos maiores mestres de liderança e produtividade norte-americano. Ele desenvolveu o princípio 90/10, no qual defende que a vida é 10% o que você faz dela e 90% a maneira como você a vê. Muitas vezes não temos como evitar alguma situação, mas temos como controlar os outros 90%, com nossa reação. A Daniela não escolheu como nascer, nem a Ana escolheu ter crises e depender de uma vacina diária para manter o controle, mas as duas decidiram como dominar a situação, como contornar, viver com ela, e seguir. O poder de escolher nossa reação diante de fatos é algo muito poderoso. Cinco minutos de um dia, que não controlamos de maneira correta, acaba transformando as outras 24 horas em rancor, sofrimento e angústia. Agora, quando se descobre o poder de reação e essa é tomada de maneira certa, conseguimos seguir a vida com a mesma vontade e entusiasmo da Daniela, ou com a mesma tranquilidade e carisma da Ana. 11


LUCAS BATISTA

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SENSIBILIDADE DE MULHER, FORÇA DE DELEGADA Lisandra de Castro de Carvalho conta como a menina que brincava de detetive se tornou investigadora de verdade

POR LUCAS BATISTA

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la sorri, faz brincadeiras, se diverte com os amigos. Mas na atividade profissional, muitas vezes, o sorriso precisa ficar de lado. O papo com a delegada Lisandra de Castro de Carvalho é sério. Ela trabalha com crianças, adolescentes e mulheres. Adora o que faz. Mas quando entra em ação é porque algo de ruim aconteceu. Houve violência doméstica, abuso sexual ou até um homicídio. O fato exige esconder a alegria. Graduada em Direito e à frente da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) e da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), a porto-alegrense, de 41 anos, não se intimida em ocupar um cargo ainda bastante masculinizado. Age com determinação e maturidade de quem hoje é referência no atendimento de casos desta ordem. Enfrenta duros combates hora ou outra. Precisa diferenciar verdades daquilo que é fantasiado pelas vítimas.

Controlar-se ao questionar as crianças e evitar mais danos aos pequenos. E colocar-se no lugar daqueles que passaram por momentos de pânico. Mas o amor pela profissão é o combustível que move Lisandra. Foi na infância que as brincadeiras de polícia e de detetive alimentaram o gosto por atuar na área da segurança pública. Mais tarde, já na faculdade, brotou o apreço pelo inquérito processual penal e a investigação. Foi então que o desenho de sua carreira começava a ganhar mais forma. O foco de Lisandra, inicialmente, era prestar concurso público para ser juíza ou promotora. Mas os caminhos - e principalmente o gosto pela prática investigativa - a levaram a um certame para delegado. Fez a prova e passou. Sua primeira lotação foi em Bagé, numa Delegacia de Pronto Atendimento, que registra ocorrências e faz autuações em flagrante. Mas, dentro dela havia cartó-

rios para atendimento de idosos, crianças e adolescentes. Foi ali o contato primário com o público infantojuvenil durante seu exercício como delegada. Isso porque, enquanto estudava Direito, havia trabalhado como professora de Inglês e, nesta atividade, conhecido melhor os jovens. Mas foi em Santa Cruz do Sul, no ano de 2015, que ela conseguiu concretizar o desejo. Convidada a ser a titular da Delegacia da Mulher e a da Delegacia da Criança e do Adolescente, Lisandra aceitou de imediato. Está aqui até hoje e quer se aposentar na terra da Oktoberfest. Trabalha com determinação, fibra e coragem. Não se curva para preconceitos. Sente orgulho em ser delegada e poder contribuir para a segurança local. Lisandra de Castro de Carvalho conversou com a Revista Exceção. Falou dos desafios profissionais, do relacionamento com as vítimas, com as pessoas. 13


ENTREVISTA

Embora tenha mudado ao longo dos anos, ainda é mais comum ter homens delegados. Como você vê as mulheres atuando nas Polícias? Segurança também é assunto feminino? Eu vejo as mulheres seguras, em espaços antes predominantemente ocupados por homens. E não estamos falando só da mulher agente, mas da delegada e da mulher delegada em cargos de direção. Isso é importante. A policial feminina já vem de longa data presente nas delegacias. Mas as que podem ocupar cargos na instituição, serem delegadas regionais, por exemplo, é que trazem essa ‘competição’. Mas quem sabe investigar? É uma tarefa masculina ou mulher também sabe fazer? Faz e faz tão bem quanto! E isso me deixa com muito entusiasmo.

A sociedade ainda é machista? Existe algum tipo de discriminação por você ser uma delegada mulher? Claro, muito machista. A cultura da violência doméstica se dá pelo machismo. Ainda há a sociedade patriarcal. Quem coloca dinheiro pra dentro de casa, via de regra, é o homem. O preconceito em relação à delegada não é tão tranquilo. Cria-se uma certa barreira numa aproximação de amizade ou até no plano íntimo. “É uma mulher, mas uma delegada. Deve ser furiosa, brava.” As pessoas têm um pré-conceito. Estou inserida em atividades esportivas. Sempre fiz, mas agora é uma prática mais em grupo e escuto as pessoas dizerem: “Poxa, te achava tão séria, tão fechada. Mas você é tão legal. Tu faz piada também, ri com a gente”.

Você é uma mulher de personalidade forte? Sim. Não poderia ser diferente, até pelo rumo que escolhi profissionalmente. Não posso estar sempre abraçada, tirando foto e sorrindo 14

com qualquer um que eu encontre. Quando estava na academia da Polícia, lembro dos professores falarem: “Cuidem com quem vocês vão aparecer publicamente, os registros visuais. Daqui a pouco vocês estarão tomando uma cerveja com um traficante”. Então, quando a gente olha desconfiada ou não abre muito o sorriso é por isso.

“‘O QUE EU ESTOU FAZENDO? O QUE SERÁ QUE EU PODERIA ESTAR FAZENDO AGORA? TEM ALGUMA MEDIDA DE URGÊNCIA QUE EU PODERIA TOMAR NESTE MOMENTO E COM A MINHA OMISSÃO ESTOU PREJUDICANDO ALGUÉM?’ ESSAS PERGUNTAS ME FAÇO TODOS OS DIAS”

“Eu gosto de trabalhar com as questões do feminismo, de proteção à criança e ao adolescente, especialmente no combate ao abuso sexual”. Essa foi uma declaração sua a um suplemento especial de Dia das Mães, produzido por um jornal de circulação regional. O que leva você a gostar desses assuntos e como lida com eles no dia a dia? O que me desafia é proporcionar uma conversa na qual a vítima confie no entrevistador, abra o coração, conte o que aconteceu e que ela se sinta tranquila e acolhida pra fazer isso. Se o crime em si já foi um evento

danoso, pior ainda é relembrar numa oitiva mal conduzida, o que a gente chama de revitimização. Por exemplo, têm profissionais e históricos de conversas de que: “Se ele passou a mão em ti, era porque tu estava usando roupa curta. Então tu deu em cima dele. Foi tu que foi pro colo dele”. E no universo infantil, da mulher, até de homens e de meninos, primeira coisa, a vítima tem que vencer a vergonha, o medo, várias barreiras pra conseguir contar. Ela tem que estabelecer um vínculo de confiança. Tudo isso foge do depoimento tradicional, o que é muito desafiador. É tu estabelecer esse olho a olho e dizer: “Estou aqui pra te ajudar. Confie em mim e fale do jeito que você quiser. Se eu perguntar e você não falar, também vou respeitar”.

Ouvir relatos de mulheres violentadas, de crianças abusadas mexem com seu lado emocional? O que é preciso fazer para se manter firme como profissional? Nossa, mexe demais, revolta demais. Se pudesse, pegava o agressor naquele momento, mas não é por aí que trabalhamos. Essa revolta, essa indignação que surge quando o ser humano está ouvindo um relato triste, me impulsiona para agir com as ferramentas que tenho: representar por uma prisão, coletar mais provas, ir atrás, prender, fazer um bom inquérito, uma boa investigação, para que no futuro haja condenação. E extravasar essa energia no esporte. A gente vai pra casa e a cabeça não para. “O que eu estou fazendo? O que será que eu poderia estar fazendo agora? Tem alguma medida de urgência que eu poderia tomar neste momento e com a minha omissão estou prejudicando alguém?” Essas perguntas me faço todos os dias.


LUCAS BATISTA

Sendo uma delegada mulher, acredita que as vítimas se sintam com mais abertura para relatar o que aconteceu? Acha que elas contam mais detalhes? Uma Delegacia da Mulher, conduzida por uma delegada mulher, com certeza facilita a aproximação. E a maneira como ela se posiciona na mídia também. Confesso que não gosto de toda hora dar entrevista, mas faz parte se mostrar publicamente e dizer: “Olha, quando acontecer contigo eu também vou estar aqui. Sou a pessoa que está investigando o caso, àquela que investiga todos os outros da delegacia”. Tenho que me fazer conhecer. É comum as vítimas fantasiarem ou aumentarem o depoimento com a intenção de prejudicar o companheiro? Sendo mulher, é mais fácil identificar quando a denúncia não é verdadeira? Dá pra perceber [risos]. “Para aí, mas também não é bem assim. Por que não fez isso? Por que não fez aquilo?” É importante que se diga que toda vez que

nos deparamos com casos assim, que comprovadamente são falsos crimes, o inquérito se volta contra essa mulher. Ela é indiciada por denunciação caluniosa, pois movimentou a máquina do Estado. Ouvimos testemunhas, perdemos tempo com um fato que não era criminoso, deixando de atender outra real vítima. É pela experiência ou de que forma você percebe que a vítima está fantasiando o depoimento? Experiência, tanto profissional quanto de vida. Contamos também com o serviço da psicologia. Numa dúvida: “Será que é só uma impressão minha?”, agendamos um encontro com a psicóloga. As inspetoras também têm esse cuidado. Elas trocam uma ideia comigo: “Olha delegada, acho que não é bem assim. Quem sabe a senhora participa do próximo encontro, conversa e forma a sua opinião”. O papel aceita tudo, sempre digo. Quem registra uma ocorrência não está registrando uma verdade absoluta, mas o primeiro passo de uma inves-

tigação, que pode vir a trazer os fatos noticiados ou o inverso.

E quando se confirma aquilo que a mulher está contando, como a situação é tratada? Há algum tipo de acompanhamento psicológico da vítima? Encaminhamos à rede de atenção a mulher do município. Há o escritório de defesa da mulher [no mesmo prédio da Delegacia da Mulher e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social]. Se envolve a criança, também o Conselho Tutelar. Outra questão que você presencia frequentemente são os casos de abusos a crianças e adolescentes. Qual a diferença entre ouvir uma mulher e uma criança abusada? Crianças nós ouvimos numa sala onde tem brinquedo, tapete, sofá, mesinha pra desenhar. O depoimento é filmado e eu acompanho daqui do computador. Quem ouve é uma inspetora e uma psicóloga e a criança fala do chão ou sentada na me15


sinha. Nós é que vamos ao ambiente da criança. Se a gente faz um depoimento tradicional, como o de um adulto, o que esta criança vai pensar? “Eu é que estou em julgamento?” Então, é uma outra técnica de oitiva. O adolescente também precisa de um atendimento diferenciado. [Em outro andar da Delegacia], temos uma sala decorada para crianças e outra, com mais cara de consultório, para adolescentes e mulheres. É dolorido pedir para uma criança ou um adolescente relatar detalhes do acontecido? É. “Me conta como foi?” É bem dolorido. Eles costumam contar logo o que aconteceu ou é necessário que se pergunte? O relato é muito mais provocativo do que espontâneo. Temos que saber como perguntar, de maneira a não constranger. Por exemplo, numa dinâmica de abuso, aquilo que for relatado e já caracterizou um ato de cunho sexual não nos cabe perquirir a outros tantos detalhes. Temos que nos controlar quanto a isso. A curiosidade da compreensão total tem que ter limite, pra não misturar a tua curiosidade e o teu limite. Não expor também, justamente para a criança não precisar relembrar tudo. E cuidar pra não sugerir falsas respostas, porque muitas vezes, pra se livrar das perguntas, uma criança ou um adolescente vai concordar contigo: “Fiz isso aí mesmo, eu não quero que tu me pergunte mais. Estou cansado dessa entrevista”. E aí tu vai ter uma resposta falsa. Teve casos fortes, que chocaram? Vários. Constantemente temos bebês, crianças muito pequenas com Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST’s), ruptura himenal. Cenas que machucam. Mortes, homicídios, criança pequena na mão de gente tão agressiva. A gente se coloca [no lugar]: “Que pavor não passou durante aquelas horas. Que horror foram aqueles momentos”. Porque pra tu entender o caso tem que entrar nele. Fazer as perguntas e ver aquilo é dolorido. E quando estamos investigando os casos mais macabros, até se desintoxicar, sair daquela energia negra, demora. 16

Em março de 2017, um dos assuntos que mais repercutiu foi o assassinato da menina Francine Sins Matias da Silva, de 13 anos. Ali envolvia duas situações: adolescência e mulher. Como foi trabalhar e apurar que a mãe mandou o companheiro matar a própria filha? Esse caso foi uma pressão tão forte. Nos deparamos com incoerência e não se pode fechar os olhos a isso. Me cobravam: “Tem certeza?”, “Como assim?”. Certeza visual tu só vai ter se estava lá na hora do crime, mas tu tem uma série de indícios e provas que te levam a aquela conclusão. Casamos todas as provas, uma confissão que encontra respaldo, que merece credibilidade. Tive contato com essa pessoa [suspeito]. E não é feeling. Eu não me baseio em feeling, sexto sentido, intuição pra dizer se uma pessoa vai ser indiciada. Eu me baseio naquilo que estou vendo também. O acusado confessou e disse

“EU NÃO ME BASEIO EM FEELING, SEXTO SENTIDO, INTUIÇÃO PRA DIZER SE UMA PESSOA VAI SER INDICIADA. EU ME BASEIO NAQUILO QUE ESTOU VENDO TAMBÉM”

que não foi só da cabeça dele e que a outra [a mãe da Francine] botava pilha. Depois, ela veio aqui. O comportamento dela comigo foi totalmente incoerente para uma mãe. Parecia que estava fugindo da situação. “Procura um advogado”. Meu Deus, mas ela é mãe da vítima, nunca vi isso. Estamos naquela inocência, mas o sinal de alerta brilha. E se não vai despertar, que policial sou eu? Se o que está batendo na tua cara e tu não dá corda pra investigação neste viés, que profissional tu é? Vai fechar os ouvidos? Eu tenho que me abster da opinião pública e me ater aos fatos, provas e a coerência das coisas.

O CRIME Foi no dia 15 de março de 2017 que a Polícia Civil de Santa Cruz do Sul encontrou o corpo de Francine, na travessa Bauermann, em Rio Pardinho. A vítima tinha 13 anos e havia saído de casa um dia antes, na companhia do padrasto. Ela foi morta estrangulada com uma espécie de cordão, utilizado como chaveiro de moto. Dias depois, o inquérito realizado pela delegada Lisandra apontou que o padrasto havia cometido o crime a mando da mãe da garota. A mulher daria um valor em dinheiro para ele ‘dar um sumiço’ na menina. O motivo seria um possível relacionamento do companheiro com a filha. Francine, antes de ser morta, ainda foi estuprada. Os exames confirmaram.

Se uma mulher se identificar com a sua história e tiver vontade de ingressar na carreira policial, diria a ela o quê? A Polícia tem um jargão, que é um termo até feio de falar, mas “a polícia é uma cachaça”. E realmente as investigações desafiam. Claro que não é todo dia que tu tem crime bom pra investigar, aquele top, que é homicídio, que tu tem que coletar as pistas. Mas é muito instigante. E fazer a diferença na vida dos outros é muito legal. Há anos estou na mesma área e meus colegas me perguntam: “Bah, Lisandra, tu não vai mudar, vir a Porto Alegre?” Eles me dizem que é preciso oxigenar, trocar de delegacia. Eu não acho! Procuro inovar no meu trabalho e a cada ano trazer uma ideia diferente. A experiência vai contribuindo. Tu vai se aperfeiçoando. E acho que a Polícia é uma instituição apaixonante. Não me vejo fazendo outra coisa. Quando me aposentar, vou parar de trabalhar total. Não vou pra outra área do Direito. Enquanto eu tiver que trabalhar, que seja aqui. Adoro o que eu faço. É cansativo? É. Tem dias que tu pensa: “Onde eu vim parar”. Mas tem outros tão recompensadores. Eu realmente adoro o que eu faço.


INICIAÇÃO MUSICAL: UM CAMINHO PARA A EDUCAÇÃO As escolas Zilah da Gama Mor e João Neves são exemplos de que a música produz transformações

POR BERNARDO MULLER

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á estamos cansados de ver reclamações sobre a educação no Brasil. É quase diariamente que encontramos reportagens que apresentam a real situação do ensino brasileiro. E será que existe uma luz no fim do túnel para reverter esse cenário? Sim. E o caminho já está traçado. Sancionada em 2008, a lei 11.769 determina que a música deve ser conteúdo obrigatório em toda a educação básica. Apesar disso, a conjuntura está longe do ideal. A Educação Musical tem sido incluída e subtraída do currículo escolar brasileiro a cada reforma educacional.Trabalhos com música são realizados em alguns educandários, mas, na maioria dos casos, os próprios alunos têm de arcar com os custos das aulas. Em Cachoeira do Sul, sede da 24ª Coordenadoria Regional de Educação, duas escolas trabalham a iniciativa efetivamente. Com 84 instituições na cidade, o número de musicalidade efetiva é decepcionante. Localizada no interior, a EEEF Zilah da Gama Mor é um exemplo de que a força de vontade supera qualquer falta de recurso e estrutura para apresentar algo diferente aos alunos. Com pouco mais de 100 estudantes, a instituição mantém uma orquestra de flauta, regida pela professora graduada em música Fátima de Castro Santos. O projeto, que atende 30 alunos de 11 e 12 anos, sustenta uma agenda cheia de

apresentações na cidade e região. Além disso, a instituição de ensino oferta aulas de violão, violino e percussão. Mesmo com toda a dificuldade de locomoção, já que a maioria tem de percorrer alguns quilômetros para chegar até a escola, os estudantes/músicos não faltam um ensaio. “Essa força de vontade deles em querer aprender acaba cativando nós professores e o restante dos alunos. Hoje praticamente toda a escola está envolvida nesta iniciativa”, destaca Fátima. Frutos dessa leva de músicos, os alunos Edgar, Bruno, Guilherme e Vitória são exemplos a serem seguidos. Engajados no projeto há mais de dois anos, e tocando mais de um instrumento, os alunos se dizem felizes com a atividade e fazem planos para o futuro. “Ainda é muito cedo, mas pretendo seguir na carreira de músico ou algo parecido”, exclama um deles. Questionados sobre o rendimento escolar após a inserção na prática musical, eles foram precisos. “Melhoramos bastante as nossas notas”, contam os estudantes. Fátima completa que a descoberta de um instrumento potencializa a capacidade do aluno. “A música desenvolve várias habilidades, entre elas a sensibilidade, e quando desenvolvemos essa função, nós atingimos o todo do ser humano. Aquele aluno que consegue parar e tocar tem a facilidade de conviver em grupo”, afirma. 17


FOTOS: BERNARDO MULLER

BERNARDO MULLER

ORQUESTRA, BANDA E CORAL NO JOÃO NEVES O Instituto João Neves da Fontoura acredita muito na musicalização no ambiente escolar. Com quatro anos de atividade, a orquestra popular é sinônimo de orgulho para estudantes e direção. Presente em diversos eventos no município, a orquestra comandada pelo músico e professor Ezequiel da Rosa tem cerca de 25 integrantes, entre alunos e ex-alunos. Além disso, o regente mantém um coral e uma banda rock slow, que ensaiam paralelamente com a orquestra. Os ensaios e as oficinas acontecem no período noturno, três vezes na semana. Em torno de 50 estudantes tocam instrumentos como violão, violino, flauta doce e percussão. O professor Ezequiel salienta que sem o apoio da escola, nada disso estaria acontecendo. “Temos todo o respaldo da direção, tanto motivacional como financeiro, principalmente na manutenção e compra de itens essenciais para preservar os instrumentos”, conta.

A IDEIA DE INSERIR DEFINITIVAMENTE A PRÁTICA MUSICAL NA INSTITUIÇÃO VEIO COM A DOAÇÃO DE INSTRUMENTOS REPASSADOS PELO GOVERNO DO ESTADO

A ideia de inserir definitivamente a prática musical na instituição veio com a doação de instrumentos repassados pelo Governo do Estado. 50 escolas foram contempladas com estes kits. A partir desse momento, as aulas se tornaram rotina na vida dos alunos. No início, os estudantes resolvem participar das oficinas com o foco de entrar para a orquestra, porém, devido à saída dos alunos desta atividade, a renovação acontece anualmente. Mas toda a regra tem a sua exceção. Esse é o caso do ex-aluno, Gabriel Bittencourt, 18 anos, que iniciou em 2014 nas oficinas. Tímido no início, ele começou a se desinibir com o decorrer das aulas e hoje é violonista e vocalista da orquestra, além de um dos líderes da turma de jovens músicos. “Como eu era novo na escola, não tinha quase amigos. Era tímido e ficava sempre na minha. Com a ajuda do Ezequiel e da música comecei a me soltar”, revela. Na visão de Gabriel, a música faz muita diferença em diversos aspectos, tanto que o jovem sonha em ser bacharel em música. 18


A violinista Isadora Assunção, 16 anos, e a percussionista Elen Dias, 15 anos, notaram a mudança até no jeito de encarar a vida. Isadora, por exemplo, sempre mostrou-se exigente com seu rendimento escolar e não se contentava em apenas passar por média, precisava ser nota dez. “Sempre fui muito perfeccionista, não aceitava erros. E a música me fez compreender isso, que nem tudo vai ser perfeito”, salienta ela. Elen venceu a timidez e a mania de não querer escutar a própria voz. “Não gostava de me escutar na hora de cantar e não conversava muito com as pessoas”, lembra a jovem. O filósofo chinês Confúcio disse há muito tempo que

“a música produz um tipo de prazer que o ser humano não consegue viver sem.” Estudos comprovam que a música na escola estimula o bom convívio social, a harmonia, o desenvolvimento da fala, da respiração, da autoestima e do próprio sistema cognitivo da criança e do jovem. Mesmo com tantos benefícios, essa iniciação é pequena nas escolas da região. O trabalho exige muito das instituições de ensino. Alguns alunos não possuem condições e ficam “aguardando” uma iniciativa por parte do educandário. A falta de professores formados e especializados nessa área também acaba influenciando esse baixo índice de musicalidade na educação.

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FÁBIO GOULART

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EM NOME DO PAI, DO FILHO E DO SAMBA Carnavalesco e monge, Dom Irineu Rezende de Guimarรฃes jรก foi Marcelo. Morreu na Franรงa, mas nunca deixou de estar vivo em Rio Pardo

POR LUIZA GOULART

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mente apaixonado e fã da Acadêmicos do Salgueiro, Marcelo havia proposto para a Mocidade um tema completo: com uma carta, sugeriu que abordassem a paz. Não só apaixonado pela divindade, era completamente enlouquecido pela arte carnavalesca. De uma criatividade ímpar, tinha a capacidade de descrever um desfile apenas com a imaginação. Naquele Carnaval, padre Marcelo estava no apartamento de uma amiga de longa data. Naturais do interior do Rio Grande do Sul, eles se conheceram em Rio Pardo. Os pais eram amigos. Tornaram-se ainda mais próximos com a convivência na Escola de Samba Candangos. Completamente apaixonado pela arte desenvolvida na folia, Marcelo já havia passado outros Carnavais com Joice Rocha, no Rio de Janeiro. Amava as escolas de samba e

“NÃO CONHEÇO OUTRA PESSOA QUE TENHA UM DOMÍNIO TÃO GRANDE SOBRE QUALQUER ASSUNTO DE CARNAVAL”

Joice Rocha

amiga de Marcelo

sabia de cor as marchas, nomes de carnavalescos e conseguia puxar a melodia para cantarolar refrões inesquecíveis ou letras que só ele poderia se lembrar. Muito antes de se tornar um religioso, sempre foi um carnavalesco de mão cheia. “Não conheço outra pessoa que tenha um domínio tão grande sobre qualquer assunto de Carnaval”, relembra Joice. Talvez fosse completamente apaixonado por Carnaval por ver na folia algo maior que músicas animadas e roupas extravagantes. Era um entusiasta da arte maior. E a junção de todas elas – o sam-

ba, a dança, o teatro, a costura – estava exatamente naqueles dias quentes de fevereiro, excepcionalmente aguardados no nosso país. Mas ele vivia o Carnaval o ano inteiro. Imaginava, planejava, pesquisava e criava um enredo rico em detalhes. Mergulhava em uma profundidade em que só ele conseguia respirar. Os primeiros Carnavais foram em Porto Alegre, onde morava com os dois irmãos e os pais. Vivia os bailes infantis ao lado da irmã Alayde Guimarães Motta. Viajava para Rio Pardo no verão e assistia aos desfiles. Foi quando se apaixonou perdidamente pela Candangos na metade da década de 70. Naquela ocasião, a escola de samba se organizou para que o desfile fosse tal qual ao que acontece no Rio. Chegaram a entrar em contato com a Sapucaí, e conseguiram alguns itens de presente. E daí surgiram as cores vermelho e branco. O tema “Brasil terra de samba, Carnaval e glórias” contou com uma inovação no estado. Pelo que contam, foi a primeira vez que houve um carro abre-alas por aqui. Rio Pardo era uma miniatura da cidade carioca. E foi dessa forma que Marcelo enlouqueceu. Ficou completamente encantado. Pirou com as referências às tradições brasileiras. Apaixonou-se nos detalhes, como as impressões da Carmen Miranda. E na segunda noite de folia, resolveu homenagear a escola de uma maneira um tanto inusitada. Faltava um bom tempo para o desfile, quando os primeiros começaram a chegar para a concentração em uma casa no alto da rua Andrade Neves, que no Carnaval se torna a Avenida Maria Glória dos Santos, a Gogóia. Perto do Centro Regional de Cultura, membros da escola se reuniam para organizar pequenos detalhes do desfile. Raimundo Panatieri, naquele ano, precisou ir excepcionalmente mais cedo para arrumar o cabelo. Era mestre-sala e tinha que deixar a cabeleira com a cor branca. Um verdadeiro trabalhão.

REPRODUÇÃO

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ouco antes da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel dar partida ao desfile do Carnaval de 2001, no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, a união entre duas grandes paixões fez com que o público desse as mãos e parasse para rezar a oração de São Francisco de Assis. Havia um claro contraste na plateia. Ainda que vestindo fantasias ou usando perucas de fitas metalizadas verde, os foliões prestavam atenção ao que um homem, de óculos grandes e quadrados, dizia. Emissoras de televisão também estavam curiosas ao que estava por vir. Com um microfone, no carro dos cantores, estava ele. Ao seu entorno, repórteres. Todos tentavam entender o que, possivelmente, um padre poderia dizer em um ambiente tão contrário ao que parece pregar o catolicismo. “Vamos ouvir o que está falando o padre”, citou um dos narradores, sem saber o nome da figura. Nenhuma das mãos dele estava livre. Uma segurava o microfone e a outra estava junto à mão de um homem negro, provavelmente algum membro da escola de samba. Os dois vestiam roupas parecidas. As peças eram brancas, cor aliada à pregação naquela noite. Cor aliada ao tema da Mocidade. Cor aliada à oração feita com tanto carinho por Marcelo. “Onde houver erro, que eu leve a verdade. Onde houver desespero, que eu leve a esperança. Onde houver tristeza, que eu leve a alegria. Onde houver trevas, que eu leve a luz.” Tomava para si uma das missões propostas pela Oração de São Francisco. Marcelo Rezende de Guimarães, o padre, travava batalhas pela busca da luz em lugares onde comumente estavam as trevas. Lutava - e me perdoem pela palavra, já que era completamente contra qualquer tipo de agressão - para que nós entendêssemos e agíssemos de acordo com a cultura da paz. Foi a paz que o levou à Sapucaí naquele ano. Ainda que fosse completa-


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Surpreendeu-se ao chegar lá e dar de cara com Marcelo, ainda guri. Já era conhecido do pessoal da escola, mas ele era um pouco mais novo que a grande maioria. Segurava um cartaz e decidiu que iria torcer pela Candangos. Tão forte foi a sua torcida que fez grandes amizades em meio ao Carnaval. A partir daquela noite, tornou-se um membro assíduo de reuniões. E é claro, dos desfiles. O pessoal ficou esperando pelo Marcelo na terceira noite. Ele não apareceu no horário da ocasião anterior. Resolveu ficar um pouco em casa para ouvir uma ópera que passaria na Rádio Universidade. “Eu acabei adorando ópera por causa do Marcelo”, diz Raimundo. Pouco antes de se tornar responsável por criar os enredos da escola, ele preferia somente desfilar. Foi no ano em que a Candangos escolheu homenagear o Senhor do Bonfim, que se tornou realmente próximo de Vera Schultze. Na época, ainda não tinham vivido, juntos, o curso de Arquitetura. Eram conhecidos. Quando crianças, brincavam de jogar bola na rua já que Marcelo tinha uma tia que morava perto de Veroca. Mas nada tão íntimo. Os dois deveriam representar, ao lado de uma terceira foliona, a visão da festa do Senhor do Bonfim através do Candomblé. Para isso, resolveram ir a fundo e pesquisar como aconteciam as homenagens ao Oxalufan. Mas, como os dois eram de famílias católicas, não conheciam absolutamente nada sobre religiões de matriz africana. Marcelo tomou o primeiro passo. Conseguiu, sabe se lá onde, uma gravação de uma sessão em um terreiro. Como não tinha um toca fitas, os dois amigos tiveram que ouvir juntos no quarto de Veroca, que possuía o aparelho. Mas antes de começar a treinar a encenação ou pensar na evolução da ala, foram a um terreiro bem conhecido na cidade naquela época. Discretamente, saíram de casa para que ninguém notasse o

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que iriam aprontar. Chegaram no local e tiraram todas as dúvidas. Voltaram completamente encantados e com uma amizade que perduraria a vida inteira. Aos poucos, as relações com a escola ficaram mais estreitas e Marcelo se tornou um dos personagens mais importantes na construção do desfile de cada ano. Talvez fosse o mais importante. O tamanho da criatividade e da cultura que carregava fazia as pessoas perguntarem da onde tirava as suas ideias. A cada enredo criado, uma novidade. Por trás disso tudo, não estava escondida somente a grande inteligência e a maneira excêntrica de ver o mundo que Marcelo tinha. Ele vivia o Carnaval durante o ano inteiro. Ainda que os parceiros de criação não estivessem lá com tanta vontade de pensar...

PASSADO O NATAL E O ANO NOVO, BATIA NA PORTA DOS AMIGOS PARA COMEÇAR A EXPLOSÃO DE IDEIAS, COMO ELE CHAMAVA O MOMENTO DE CRIAÇÃO DE UM ENREDO. AINDA QUE FOSSE O PRIMEIRO DIA DO ANO, ELE ESTARIA LÁ

Passado o Natal e o Ano Novo, batia na porta dos amigos para começar a explosão de ideias, como ele chamava o momento de criação de um enredo. Ainda que fosse o primeiro dia do ano, ele

estaria lá. E algumas vezes era retrucado com reclamações pelo forte calor. Mas com uma insistência característica, ele conseguia convencer os amigos, Vera e Raimundo, para que entrassem na onda e começassem a pensar no que estava por vir. “Este ano eu pensei em fazer algo sobre arte”, comentava. A partir do primeiro pensamento, esmiuçavam e conseguiam pensar em formas de retratar a ideia inicial em algo menos amplo. Na época, Marcelo não tocava nenhum instrumento. Tinha ajuda na hora de pensar nas letras que iriam entoar o samba. Mas, quando precisava, conseguia montar a melodia com uma caixa de fósforos. Com tantas habilidades, acabou se tornando o centro criativo da escola. E ainda que tivessem todo o suporte para que os desfiles saíssem todos os anos, os Candangos sempre passaram por momentos de dificuldades financeiras. E de pessoas. Aos poucos, os membros foram mudando de cidade e cansando de se envolver, todos os anos, com Carnaval. Marcelo também se desiludiu, ainda que não deixasse de nutrir uma paixão incisiva pela entidade. Ele foi responsável por reacender uma chama que parecia ter se apagado definitivamente. Naquele ano, alguns ensaios aconteceram. Mas poucas pessoas se envolveram efetivamente. Assim, resolveu que iria terminar com a escola de vez. Essa era, provavelmente, a terceira geração candanga que se cansava de tocar a entidade para frente. Ele mexeu com o brio dos Candangos quando resolveu enterrar a associação. Promoveu, literalmente, um velório no prédio da antiga Prefeitura, na esquina da rua da Ladeira. Fez um caixão de papelão. Pintou as partes de fora de preto, e por dentro colocou a cor roxa. Quem chegasse para ver quem estaria sendo enterrado, daria de cara com o próprio rosto. Colocou um espelho dentro do caixão. Afinal, a


FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

morte da escola é a morte dos próprios membros. Conseguiu o que queria: a escola foi para a Avenida naquele ano. Antes de se interessar pela vida religiosa, Marcelo cursava arquitetura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Na capital, ainda mantinha contato com os amigos de Rio Pardo. Principalmente com Veroca, que acabou se formando em arquitetura. Mesmo com a pequena diferença de um semestre, os dois passaram por alguns perrengues na Universidade. Durante os fins de semana, viajavam para Rio Pardo e passavam as madrugadas estudando. Trancavam-se na cozinha para não incomodar o resto da casa com as conversas altas e dividiam chimarrão, pipoca, café e momentos de tensão. Ainda que fosse um verdadeiro artista, Marcelo era uma pessoa completamente desastrada. Uma vez, derrubou um frasco de tinta nanquim inteiro em um trabalho da colega. Rara eram as vezes em que não aprontava alguma coisa. Estranhavam quando não derrubava nada... E quando tomava por si, algo já estava no chão: “Ah, Marcelo! É tu que está aí, então!”, brincava o amigo Raimundo, que também morava em Porto Alegre na mesma época.

DE MARCELO PARA DOM IRINEU Foi quando o pai adoeceu que surgiram os primeiros sinais da vontade de uma conversão. Marcelo foi criado em uma casa um tanto quanto dividida com relação à religião: enquanto João de Alencastro Guimarães era ateu, a mãe, Lêda Rezende Guimarães, muito religiosa. Quando João se viu no leito da morte, resolveu se converter. E isso despertou em Marcelo uma vontade que até então não havia surgido. Foi para o Seminário Maior Nossa Senhora da Imaculada Conceição e ordenou-se padre em 1985. A transição foi gradual e, aos poucos, os amigos foram se acostumando com a mudança. Ainda que houvesse um medo de que a arte de Marcelo pudesse morrer, a mesma pessoa que se tornou padre ainda era um carnavalesco único. Por vezes, requisitado na criação de enredos quando mais ninguém conseguia desenrolar ideias brilhantes para o desfile. Jamais negou ajuda aos Candangos. Assim como não deixou de visitar os amigos ou de se sentar em uma mesa de bar. E perguntavam-se: como é que vai se comportar um padre com a cabeça que o Marcelo

tem? Com tamanha efervescência de criatividade e cultura? Quem assistia de fora - nesse caso, os amigos - notava que a presença de Marcelo dentro do caminho religioso também foi de grandes expectativas para a igreja. Afinal, ele era muito mais do que um simples fiel. Era autêntico. Não vestiu a imagem estereotipada de padre, criada pela sociedade. Ao conversar com Marcelo, não poderíamos esperar um diálogo calmo, de uma beatitude que só os religiosos parecem carregar. Ele se permitiu continuar sendo vibrante, único e apaixonado somente como ele poderia ser. - No Marcelo, eu nunca vi essa coisa do Padre. Da pessoa que tu tens que reverenciar para conversar com ele... Não. Ele era o meu amigo Marcelo, que era padre. Assim como outro amigo meu era médico. Assim como outro era arquiteto. Era uma profissão – relembra Raimundo. O lado artístico que antes era reservado às criações nas vésperas dos carnavais transformou-se. Usou toda a energia possível para criar diferentes missas e envolver fiéis nos sermões

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propostos. Relembradas pela irmã, Alayde, e pela sobrinha, Alyne Guimarães Motta, como missas únicas. Não presenciaram as orações de Marcelo dentro das Igrejas. Mas quando parava para demonstrar aos familiares o que estava por vir, é que mostrava tamanha a dedicação de um completo apaixonado. Poderia casar um número enorme de pessoas. Ainda assim, cada celebração seria diferente. Procurava sempre fazer uma conexão daquilo que estava acontecendo no momento – seja no mundo, na cidade, com as pessoas – com as próprias leituras e com o evangelho. E assim, surgiam momentos de tirar o fôlego. De tamanha profundeza, conseguiu mexer no espiritual de forma profunda. Até pela visão que tinha de mundo, jamais poderia ser algo pequeno. Mas antes de desenvolver o trabalho pela paz que o tornou um religioso conhecido, Marcelo passou por alguns perrengues. Demorou a se encontrar e até pensou em retomar o curso de arquitetura. Assim que se tornou padre, começou a jornada em Santa Cruz do Sul, como Vigário Paroquial da Catedral São João Batista. Em 1988, tornou-se Coordenador Diocesano de Pastoral, na Diocese de Santa Cruz. Foi em 1992 que mudou completamente o rumo de seu caminho e se mudou para Goiânia. Foi em Goiás que começou o seu trajeto no Mosteiro da Anunciação do Senhor. Esteve lá por três anos. Neste período, surgiram os primeiros questionamentos. Foi quando começou a se corresponder com a amiga da terra natal, a colega de arquitetura e parceira de carnavais, Veroca. Costumava ligar para ela em todos os domingos. E aos poucos as ligações se tornavam cada vez mais longas. “Isso já era um comportamento de que ele não estava bem”, comentou. Tentou de

tudo para que o confinamento não se transformasse em algo doloroso. Uma das primeiras opções foi começar a comandar a cozinha – passou a se especializar em pães. Era um dos assuntos que tratava com Vera nas cartas. Afinal, suas criações culinárias eram motivo para faceirice. Chegou a criar um grupo de teatro com a comunidade externa do Mosteiro. Custou para entender que deveria buscar por ajuda. Um dia, resolveu se abrir em um dos telefonemas longos: - Eu não estou legal - comentou Marcelo. - Mas o quê tu tem, Marcelo? – perguntou a amiga. - Eu estou com depressão. Chorei tanto esses dias. - Marcelo, tem que tratar isso! O que está pensando em fazer? - Eu estou pensando em sair daqui. - E fazer o quê, Marcelo? - Eu quero ser arquiteto.

“QUANDO EU SAÍ DE RIO PARDO, LEVEI RIO PARDO JUNTO COMIGO. E NÃO CONSEGUI LARGAR”

Marcelo

Dom Irineu

Por mais que não tivesse seguido a carreira de arquitetura, Marcelo deixou o Mosteiro e voltou para o Rio Grande do Sul. Depois desse momento, começou um trabalho com a Rede Em Busca da Paz, em Santa Cruz do Sul. Cursou Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mesmo lugar

onde defendeu a tese de Doutorado, em 2003, tão bem elaborada que não precisou passar pelo Mestrado. Passada a tormenta, voltou para o Mosteiro em Goiás, em 2005. Dois anos depois, recebeu o nome monástico pelo qual é conhecido atualmente. De Marcelo, tornou-se Dom Irineu. E Dom Irineu pouco gostava que o chamassem pelo nome antigo. Chegava a ficar bravo. Brigava com a família, se fosse o caso. Um motivo que poderia ser um pouco bobo para os demais, mas que, para ele, fazia sentido. Marcelo, nome de batismo, vem de Marte, Deus da Guerra. Já Irineu é o Deus da Paz. Ele realmente levava a sua missão a sério. Mas, é até confuso decidir qual dos nomes chamar o Monge. Ainda que tenha falecido como Dom Irineu, nas lembranças de amigos e conhecidos ele é Marcelo. Dom Irineu descobriu a Esclerose Lateral Amiotrófica três anos depois de mudar o nome, em 2009. Mas foi na provação que ele demonstrou ter uma força e fé maior do que o imaginável. A religião sempre esteve acima de tudo. Preferia entender a doença como um ensinamento. E frente às dificuldades, relembrou à família e amigos que ainda era o mesmo

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festeiro. O mesmo apaixonado por Carnaval. O mesmo artista. Em 2009, passou a morar na França, na Abadia Notre Dame de Tournay, depois do Mosteiro em Goiás fechar. Ainda longe, conviveu com a efervescência dos próprios pensamentos. “Tu acha que eu ia para a França para descansar?” comenta, Alayde. Colocava a ir mã no trabalho. Quando ela chegava ao país, Marcelo já mostrava um cardápio de todas as comidas que gostaria de comer. Ela não só era responsável por pilotar todas as refeições do irmão, mas também deveria organizar o caderno de orações de Dom Irineu. Ainda doente, não deixava de rezar diariamente. Era extremamente organizado, com absolutamente tudo. Nas orações, chegava a nomear amigos, familiares, colegas vivos e mortos. Rezava até pelos casais que uniu. E pasmem, di-

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vidia eles em duas categorias: aqueles que ainda estavam juntos pertenciam a pasta K27. Os que já haviam se separado, ficavam na pasta K23. “Todo o tempo, ele era um padre fora do comum,” revela a irmã. Para os amigos, além da doença ter sido uma gigante demonstração de força, foi ela quem devolveu o Marcelo de antigamente. Com o trabalho que desenvolveu aliado à Paz, chegou a se enclausurar em um mundo só seu. Ele se abriu para os amigos novamente. Na última vez em que esteve em Rio Pardo, no fim do ano de 2010, Dom Irineu chegou em uma cadeira de rodas. Mas, depois de algumas sessões de fisioterapia, voltou usando um andador. Voltou para a França empolgado. Ao mesmo tempo, deixou os amigos com uma pulga na orelha. Afinal, ao se despedir de um amigo, sempre pensamos no próximo

encontro. Sem planejar uma nova visita. Ele rebateu: “Agora são vocês quem tem que ir lá.” Dom Irineu morreu em 10 de outubro de 2015, aos 56 anos. Teve o corpo enterrado na França. Apesar do avanço da ELA, não colocou traqueotomia. Preferia usar máscaras e conseguir se comunicar com a própria voz. Alguns dias antes de morrer, conversou com a família. Ao meio-dia, Alyne foi até a casa dos pais para falar com o tio Pepelo pelo Skype. O encontro era semanal. E esse, em questão, foi especial. Ainda que houvesse uma certa dificuldade na forma de falar, ele foi como sempre foi. Alegre, festeiro, querido. Transmitiu uma felicidade única. As poucas palavras que disse à sobrinha conseguiram resumir tudo isso. Feliz, repetiu um apelido antigo e aumentou a saudade com lembranças pela voz:


FOTOS: LUIZA GOULART

“Lilica, como é que tu tá?!”. Parece que a morte não traz um ponto final para alguém tão marcante. Vale retomar a suspeita de depressão de Marcelo, quando passou pelo Mosteiro em Goiás pela primeira vez. Antes de voltar ao Sul, foi para São Paulo e tratou-se com um psiquiatra. À época, não conseguia descobrir por si só qual o motivo de tamanha tristeza. No fim, a ajuda do especialista revelou algo que ele não suspeitava. Foi em uma tarde, em um dia de semana, que bateu na porta da casa da amiga Vera e revelou: “Quando eu saí de Rio Pardo, levei Rio Pardo junto comigo. E não consegui largar”. Talvez, realmente, a morte não seja um ponto final. Não para ele. Em Rio Pardo, permanece vivo. É na cidade histórica que a sua memória é preservada, lembrado por sua dedicação pela religião e amor por Carnaval.

SAIBA MAIS Durante a carreira religiosa, ele foi autor de diversos livros, tanto sobre educação para a paz quanto teológicos. Há, ainda, um livro escrito em francês que também não foi traduzido para o português. Quanto ao Carnaval, Marcelo será homenageado pela Escola de Samba Candangos em 2019. Se estivesse vivo, estaria completando 60 anos. Ao mesmo tempo, a entidade celebra o aniversário com a mesma idade. Será uma comemoração dupla, com um tema único: Uma Estrela em Busca da Paz. Com toda a certeza, o céu vai estar em festa.

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RESENHA

AS MUDANÇAS NA VIDA DE STEVE EVERETT POR FERNANDA NUNES*

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se Steve Everett existisse na vida real? Como seria a rotina do dia que gerou muitas mudanças em sua vida? O texto abaixo não é uma resenha, nem uma crítica. É um exercício de liberdade estilística baseado no filme “Crime Verdadeiro, de Clint Eastwood”, que conta a história de um repórter que tem a tarefa de entrevistar um condenado à pena de morte. Mais que uma regra, uma exceção. “Pressão arterial: doze por sete”, disse o médico que realizava o exame em Frank Beechum. À meia-noite e um do dia seguinte, ele receberia uma injeção letal, composta por cinco gramas de sódio pentotal, 20 centímetros cúbicos de solução salina, 50 centímetros cúbicos de brometo e 50 centímetros cúbicos de cloreto de potássio. Warden Plunkitt, diretor de San Quentin, a penitenciária da Califórnia, foi até o local da cela de Frank para lhe perguntar, dentre outras coisas, o que ele gostaria de comer na sua última refeição. Depois disso, Plunkitt começou a lhe explicar o procedimento que seria realizado mais tarde. “Você será levado até a sala, vão te colocar o eletrocardiograma e os tubos intravenosos”, disse o diretor. O prisioneiro permaneceu em silêncio enquanto escutava as informações. Quando o diretor perguntou se Frank queria os sedativos, ele 30

os recusou dizendo: “Quando eu ver minha esposa, quero estar com a mente sã”. Steve Everett era um repórter experiente. Acreditava no seu faro jornalístico e viveu altos e baixos em sua carreira. Após mais uma de suas noitadas com mulheres – desta vez com Patrícia, a mulher do editor Bob Findley - Steve chegou na redação do Oakland Tribune e soube que a sua colega jornalista Michelle Ziegler morreu em um acidente de carro, na curva da morte. Ele, que havia bebido drinks com ela na noite anterior, ficou responsável pela matéria de Michelle sobre Frank Beechum. O editor Bob falou ao repórter que a matéria deveria ser de cunho humano, relatando como o prisioneiro se sentia nos últimos dias. Nesse momento, Steve foi informado sobre o caso de Frank, um mecânico negro condenado pelo assassinato da grávida Amy Wilson, que devia 96 dólares a ele referentes a um conserto no carro dela. Esse homicídio ocorreu há seis anos, na Mercearia Pocum’s, na qual Amy trabalhava como caixa. Jane March, colega de Steve, conta sobre o passado do prisioneiro: “Lar destruído, mãe alcoólatra, entrou e saiu da cadeia, agressões, brigas, drogas”. O repórter também soube que, depois de sair da prisão, Frank se casou com uma moça convertida, teve uma filha e mudou de vida. Jane informou que Frank ainda afirma que entrou na


mercearia para comprar molho para a carne e explicou sobre as duas testemunhas brancas do caso: “Uma mulher no estacionamento o viu sair correndo e um coitado, um contador, entrou na loja porque o carro superaqueceu e Beechum estava lá, arma na mão e coberto de sangue”. Steve questionou se o contador Dale Porterhouse escutou tiros antes de entrar na mercearia. “Acha que ele iria entrar na loja após ouvir tiros?”, perguntou a Bob e Jane. Então, ele começou a sua investigação ouvindo as gravações que Michelle realizou na sua apuração. Enquanto isso, na penitenciária, Frank estava fumando um cigarro e recebeu a visita do reverendo Shillerman. Ele queria que o prisioneiro confessasse seu crime e se arrependesse. “Muitas pessoas se sentiriam melhor se ouvissem que você sente remorso pela dor que lhes causou”, disse o reverendo. Frank não quis conversar com Shillerman e pediu que os guardas o tirassem do local, após ele ficar insistindo que o prisioneiro confessasse. Seguindo sua investigação, Steve foi visitar a Mercearia Pocum’s. No local, ele conversou com a senhora que atendia no caixa, observou como era o ambiente e onde estavam localizados os itens da loja. Em uma ligação para a sua mulher Barbara, ela o lembrou de que tinha combinado de levar sua filha Kate ao zoológico. Em casa, enquanto a menina se arrumava para o passeio, Steve viu uma entrevista de Dale Porterhouse na televisão. Ele marcou uma entrevista com o contador para pouco tempo depois e, por isso, fez o passeio no zoológico correndo e Kate se machucou. Quando retor-

naram para casa, Barbara viu a filha com vários curativos e ficou irritada com o marido. Na prisão, Frank recebeu a visita da esposa, Bonnie, e da filha, Gail. “Não fique triste, não vamos ter medo”, falou ele, enquanto a esposa lhe abraçava chorando. Frank pediu a Bonnie que ela não deixasse Gail pensar que o pai cometeu o crime. Após a menina terminar seu desenho, Frank explicou a filha o que aconteceria com ele e mostrou a carta que escreveu para ela. Na entrevista com Dale Porterhouse, Steve perguntou o que ele viu exatamente na cena do crime. O contador afirmou que viu Frank com uma arma na mão e o repórter questionou: “Como você conseguiria enxergar com as batatinhas?”. Quando esteve na Mercearia Pocum’s, Steve notou que existia um saco de batatinhas ao lado do balcão, o qual impediria que Dale enxergasse as mãos de Frank. De volta à redação, Steve foi conversar com o editor-chefe Alan Mann. “Acho que Frank Beechum é inocente”, falou o repórter e explicou a Alan as informações que descobriu sobre o caso. “Então você quer tornar a matéria sobre a execução numa cruzada pela justiça?”, perguntou o editor-chefe. Eles discutiram sobre o problema com bebidas de Steve e o seu faro jornalístico, do qual Alan duvidava. “Mas, se seu faro para matérias já era, meu amigo, você também já era”, disse o editor-chefe. Em seguida, Steve foi à penitenciária realizar a entrevista e viu manifestantes protestando a favor de Amy e contra Frank. Lá dentro, um dos guardas falou que os prisioneiros

REPRODUÇÃO

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mentem e o repórter retrucou: “Todos mentem, meu ami- morreu há três anos. go, eu só coloco no papel”. Na entrevista, Frank explicou Steve estava dirigindo para casa e escutou no rádio que como era estar em uma prisão, sobre o isolamento e o medo Frank confessou o crime para o reverendo Shillerman. Cheque sentia e a respeito de suas crenças religiosas, além de gando em casa, soube que contaram à sua esposa sobre a mostrar ao jornalista o desenho de sua filha. Após ouvir traição e, por isso, ela decidiu se separar dele. Steve explicou esses relatos, Steve falou sobre seu faro para descobrir a que estava se destruindo e a culpa era só dele. Então, Barbara verdade e indagou Frank sobre o que ocorreu naquela loja falou que ele acredita que o seu faro jornalístico vai ajudá-lo no dia do homicídio. Apesar da surpresa pela pergunta, o a se safar de tudo na vida. “Eu não sou uma matéria sua, prisioneiro contou o que aconteceu. O jornalista continuou não posso juntar todos os fatos e achar que você sabe algo questionando cada vez mais, fazendo Frank se exaltar e o sobre mim”, disse ela. guarda resolveu retirar Steve do local. Na penitenciária, depois de se desNa saída da prisão, o diretor Plunkitt pedir da filha e da esposa, Frank foi conversou com Steve a respeito dele e preparado para receber a injeção letal, NA PENITENCIÁRIA, os guardas aparecerem nas matérias enquanto o pastor Williams orava por como os vilões da história. “Nós temos DEPOIS DE SE DESPEDIR ele. O prisioneiro foi levado à antiga que fazer o que o Estado nos manda”, DA FILHA E DA ESPOSA, câmara de gás de San Quentin, amarexplicou o diretor. Plunkitt ainda dis- FRANK FOI PREPARADO rado à cama e teve colocadas agulhas se ao repórter que não adianta tentar e tubos em suas veias para esperar as PARA RECEBER A descobrir quem é bom ou mau no dia doses das substâncias letais. As pessoas INJEÇÃO LETAL, da execução, pois os julgamentos e os que assistiram a execução estavam em ENQUANTO O PASTOR uma sala na frente dessa antiga câmara recursos já foram realizados. “Você não tem certeza, não é?”, questionou Steve, de gás. ORAVA POR ELE quando o diretor estava indo embora e Após sair de casa, Steve foi a um bar Plunkitt não respondeu a pergunta. Em e decidiu voltar a beber. Na televisão seguida, o jornalista falou com Cecilia do bar, o repórter viu uma foto de Amy Nussbaum, a assistente de acusação do caso Beechum, e Wilson usando a mesma medalhinha de ouro que viu no descobriu que, no dia do crime, havia um rapaz comprando pescoço da avó de Warren. Então, ele foi buscar Angela para um refrigerante na máquina em frente a mercearia. que os dois fossem de carro à casa do governador Henry Então, Steve foi à casa de Michelle e lá encontrou uma Lowenstein. Lá, Steve explicou que Frank era inocente e anotação sobre esse garoto, cujo nome era Warren Russel. Lowenstein conseguiu ligar para a penitenciária a tempo de Com essas informações, o jornalista foi à casa de Warren e interromper a execução. falou com avó do garoto, Angela Russel. O repórter explicou Assim, Frank Beechum foi liberado da prisão e pôde que precisava falar com Warren, porque ele estava na cena viver com sua família novamente. Já Steve Everett consedo crime. Enquanto segurava a medalhinha que seu neto guiu escrever sua matéria, que também rendeu um livro e deu para ela, Angela contou que Warren foi esfaqueado e concorreu ao Prêmio Pulitzer, além de tornar-se famoso.

Ficha técnica Filme CRIME VERDADEIRO

Ano 1999

Nome original TRUE CRIME

Duração 127 MINUTOS

Diretor CLINT EASTWOOD

Gênero SUSPENSE; DRAMA; POLICIAL

País de origem ESTADOS UNIDOS

*Estudante da disciplina de Técnicas de Reportagem. 32


URUGUAI SOBRE BICICLETA O país vizinho que convida os ciclistas a vencer seus limites e cativa pela hospitalidade e carinho

POR MATHEUS PRESTES

NICOLAS DE GIACOMETTI

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A

ndar de bicicleta é ótimo para a saúde física. Além de melhorar o condicionamento cardiovascular, reduz a gordura corporal, fortalece os músculos e melhora a circulação sanguínea. Mas e a saúde mental? Segundo a doutora Moira Fairon, médica há mais de 15 anos em Santa Cruz do Sul, os benefícios de uma pedalada vão muito além de um preparo físico. Ela trabalha o equilíbrio mental também. “Andar de bicicleta é uma atividade de baixo impacto articular. Então, é indicada para todas as pessoas e idades. E é você mesmo quem pedala, faz o seu próprio ritmo, respeita e escuta seu corpo. Além de melhorar o humor, alivia a ansiedade e o estresse”, avalia a profissional. Moira também é ciclista e adora pedalar. Para ela, a prática possibilita conhecer pessoas legais, novos lugares e fazer outros amigos. “O ciclismo é muito amplo. A bicicleta é a liberdade, é como se fosse brincadeira de criança, nos faz voltar no tempo e nos transforma em adultos melhores, mais preocupados com mobilidade urbana, sociedade sustentável. Quando se vai devagar, o tempo passa rápido, você vê a vida de outro ângulo e acaba se conhecendo melhor”, explica a médica. A ligação entre o exercício e a melhora da saúde mental não é uma nova descoberta. Muitos estudos ao longo dos anos fizeram a conexão dos dois. À medida que o campo de pesquisa cresce, fica claro que o exercício regular – em especial as atividades físicas ao ar livre - não deve ser usado somente como um método suplementar para melhorar o humor, mas também, como parte fundamental de qualquer estratégia para combater a depressão. Enquanto alguns investem em planos de academia para entrar em forma, há aqueles que andam de bicicleta, não para perder uns quilinhos, mas simplesmente porque se sentem felizes, e a felicidade não é usual nos dias de hoje. Como você se sente em relação a si mesmo, sua vida e o mundo é uma questão tão importante quanto o funcionamento mecânico do seu corpo. De fato, a ciência sugere que a saúde mental pode até ser um preditor mais forte da 34

expectativa de vida do que a saúde física. São diversas as modalidades e variações do ciclismo. Elas vão desde pequenos percursos fixos, como é o caso das BMX’s - um esporte igual ao motocross; as de livres trajetos, que podem ser praticadas em estradas de chão, conhecidas como Mountain-bikes; e bicicletas de asfalto (speed’s), nas quais usa-se a bike com pneus menores para maior aerodinâmica. Mas utilizar a bicicleta para fazer viagens é possível? Sim, e vem se tornando cada vez mais comum no país. O cicloturismo é o ato de andar de bicicleta por dias, semanas, meses ou até mesmo anos enquanto viaja através de cidades inteiras, estados e países com a sua própria força, sem o uso de

NO PRIMEIRO DIA DE SUA JORNADA, NICOLAS ACORDOU CEDO, CARREGOU A BICICLETA DENTRO DO PRÓPRIO CARRO E FOI ATÉ O CHUÍ, CIDADE QUE FAZ DIVISA COM O URUGUAI veículo motor. Tudo há de ser, meticulosamente, pensado com cuidado e tempo. Levar roupa demais, por medo de ficar sem, pode causar uma grande “dor de cabeça” em relação ao peso carregado na bicicleta. Mas há exceções e existem ciclistas que decidem, de uma semana para a outra, fazer uma cicloviagem para fora do Brasil. Para a maioria dos cicloturistas brasileiros, em especial os do Sul, o Uruguai é o primeiro lugar que vem em mente quando se planeja uma viagem. É o país vizinho, totalmente plano, com boa estrutura para refeições e estadia, e ainda barato - tudo que um cicloviajante estreante ou com pouca experiência precisa. Foi o caso do Nicolas de Giacometti, estudante de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), que percorreu aproximadamen-

te 500 quilômetros em sua bicicleta. Há quem faça suas cicloviagens com uma bicicleta mountain-bike por questão de conforto, outros usam speed para ganhar tempo ou ter mais posições para segurar o guidão. Já o Nico, como é chamado pelos amigos, fez o seu desafio em uma bicicleta de pista, ou seja, sem freios e sem marchas. Este é o tipo de bicicleta ideal para uma viagem? Longe disso, ainda mais com bastante peso, o que dificulta na hora de fazer alguma parada. No primeiro dia de sua jornada, Nicolas acordou cedo, carregou a bicicleta dentro do próprio carro e foi até o Chuí, cidade que faz divisa com o Uruguai. Completou seus primeiros 45 quilômetros – ainda viriam muitos 45 quilômetros – sem nenhum problema. Chegando junto ao entardecer, já em terras uruguaias, fez sua primeira escala em Punta Del Diablo. Feita a reserva em um camping local, era hora de montar acampamento e preparar o jantar. Então, surgiu o primeiro perrengue da aventura: Nico, aos 23 anos, nunca havia montado uma barraca. Ainda com a adrenalina lá em cima, acordou logo com o nascer do sol - talvez seja pelo fato de não ter colocado a proteção contra a luz no topo da barraca - e preparou o seu companheiro matinal: um sachê de Nescafé, em seu revolucionário fogão de chão, criado a partir de uma lata de cerveja. Nico cruzou Cabo Polônio, parada tradicional dos turistas, e deu uma esticada até La Paloma, onde havia reservado um pouso no aplicativo Warmshower, totalizando 108 quilômetros. Este foi o dia em que mais pedalou durante a viagem. Como de costume, aproveitou o sol da manhã para seguir rumo à Laguna Garzon, onde passaria a terceira noite. Em direção ao seu destino, havia a Laguna de Rocha, famosa por seus navegadores que ajudam a atravessar ciclistas em troca de alguns pesos (moeda local). No entanto, este não foi o caminho que Nicolas seguiu. Ele percorreu cerca de 15 quilômetros de estrada de chão para evitar gastar dinheiro em transporte, mas usava pneus de corrida em sua bike - inimigo de qualquer desnível em asfalto, quem dirá das estradas de terra.


preparou para chegar ao seu destino final, a grande cidade Montevidéu. Porém, antes disso, fez paradas em todos os pontos de ônibus que haviam em seu caminho, sua única proteção contra o frio e a chuva que pegava no trajeto. Depois de muito pedalar, o ciclista estava em êxtase - uma mistura de felicidade com cansaço físico - e começaram a aparecer perguntas em seus pensamentos que exigiam reflexão. E foi isso que fez Nico perceber o quão bom é sair da zona de conforto e passar os trabalhos que viveu nestes sete dias de pedaladas por lugares que nunca havia conhecido, sequer de carro. “O meu modo

de ver o mundo mudou depois dessa viagem. Passei a entender melhor os outros e as suas diferenças, cada pessoa passa por momentos em suas vidas. Apesar da pressão que todos sofrem diariamente, ninguém é obrigado a produzir 24 horas por dia” declara Nicolas. Sobre as dificuldades físicas, ele afirma que não dá para ficar tanto tempo sem pedalar, para assim como ele, não estar despreparado. “Dessa vida a gente não leva nada. Então, nada melhor do que passar bons momentos por aqui enquanto é possível. Ninguém sabe o dia de amanhã, abrace as pessoas e use protetor solar”, salienta.

NICOLAS DE GIACOMETTI

Mas, por sorte, conseguiu uma carona com pescadores locais que o levaram na caçamba de uma camionete velha, por oito quilômetros. Depois de ter desembarcado da carona que ganhou, ainda restavam sete quilômetros e o sol já estava se pondo, o que o obrigou a acampar em um mato de pinos na beira da estrada. No quarto dia de viagem, era a vez de chegar em uma cidade grande. Começou a sentir cansaços físicos devido a falta de treino, fez um percurso de 40 quilômetros, sempre bem regado de refrigerante de pomelo (fruta típica de lá, prima distante do limão). Chegando em Punta del Este, foi hora de registrar com o celular as diversas obras arquitetônicas da cidade, que encantaram Nicolas. Depois de “turistar” na famosa escultura Mano de Punta del Este – onde é impossível não fotografar outra pessoa posando para outra foto na sua – seu destino era a cidade de Atlântida, ainda no Uruguai. E como você pode saber que ainda está pedalando em terras uruguaias? É só ver se tem muito vento contra, muito mesmo, o pesadelo de todo ciclista. Neste dia, Nico fez 89 quilômetros e sua única paisagem era o pampa e muito gado. Quando estava próximo de fechar uma semana pedalando, Nicolas se

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NA ESTRADA E NA VIDA, QUEM MENOS TEM É QUEM MAIS COMPARTILHA

KLAUS BIGELLI

Klaus Bigelli, investigador da polícia na Secretaria de Segurança Pública, também é cicloturista há mais de 15 anos e relatou a reciprocidade do povo uruguaio em relação ao ciclista vindo de fora. A história começa, no seu terceiro dia de viagem, saindo de Punta Del Diablo. Era início do inverno no Uruguai e o ar seco fazia o horizonte dos pampas parecer infinito e a Ruta 09 toda a frente, interminável. Passando pelos animais que pastavam à beira de uma lagoa em seu trajeto, Bigelli lembra de ter concordado com o que dizem: o frio é psicológico. “Ao reparar que o brilho das águas na verdade era uma crosta de gelo, de imediato passei a bater os dentes de tanto frio,” conta Bigelli. Como estava pedalando sozinho, sua única companhia era o barulho, mantendo o mesmo ritmo e tendo lembranças boas para esquecer do frio. Depois de quase três horas de um replay infinito da mesma paisagem, avistou um pequeno grupo de pessoas. Por estar distante, não sabia de que se tratava de uma carroça e nem quantas eram as pessoas. Por curiosidade, decidiu acelerar o ritmo. 36

Chegando perto, se deparou com um casal, seus três filhos e um vira-lata. O homem e um filho pré-adolescente puxavam as rédeas enquanto a mulher e um casal de crianças os acompanhava em meio às brincadeiras. A curiosidade era mútua. De um lado, um brasileiro viajando de bicicleta, com bolsas amarradas de todo jeito e vestindo capacete. De outro, uma família inteira puxando uma carroça numa felicidade contagiante. Foi quando Bigelli descobriu uma profissão totalmente longe da sua realidade. Eles eram catadores de lenha. Esta família sobrevivia catando madeira, seja de galhos e troncos caídos no caminho, como também de reciclagem como paletes e embalagens de madeiras deixados pelos caminhoneiros ao longo da estrada, em postos de combustível ou onde mais encontrassem -, com a missão de vendê-las para outras famílias, que durante a noite, acenderiam suas lareiras. Não precisou dizer o quão humilde era a família, vestiam roupas velhas e tinham poucos dentes na boca. Logo após o questionário comum que fazem a um cicloturista - de onde vem, para onde vai? etc. -, insistiram em saber se

precisava de alguma coisa. Ofereceram pousada em sua casa que ficava alguns quilômetros do local do encontro, porém Klaus precisou recusar, pois já havia feito reserva em um hostel. Foi aí que ofereceram insistentemente o seu almoço, de tão felizes e orgulhosos que estavam em receber um estrangeiro em sua terra, e este para não os ofender, resolveu aceitar. “Não me arrependi. O homem pegou uma velha garrafa térmica e preparou um mate, que foi feito vagarosamente. Para comer, desembrulhou um pão com salame. Posso dizer que foi o melhor salame que comi na minha vida e segundo a mulher era caseiro, feito por uma amiga. Ofereci o que tinha: bananas e barras de cereal para as crianças”, relata o cicloturista. Após pouco mais de meia hora, se despediram e cada um seguiu o seu destino. No de Bigelli, voltaram os seus devaneios e neles constantemente vinha aquela família que o impressionou e causou um impacto cultural. “A humildade e a alegria em compartilhar o pouco que tinham com um desconhecido me contagiou pelo resto daquela viagem maravilhosa”, relembra. Até hoje, Bigelli lembra daquela família, principalmente nos dias frios. “Será que viram em mim um companheiro de estrada? Será que ainda estão catando lenha? Será que guardaram um pouco para acender sua própria lareira? O que estarão fazendo as crianças? Que Deus abençoe Dario, Alba e as crianças Andres, Daniel e Esteia”, deseja.


BATALHA DA VIDA REAL Considerada um distúrbio mental, a dependência em jogos eletrônicos, muitas vezes, surge dentro de casa, em decorrência de problemas familiares POR LETÍCIA SANTOS e PATRICIA HERMES

PATRICIA HERMES

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oites sem dormir, abandono de compromissos e Situações extremas também ocorreram com Eduardo*, de vivências sociais. Desejo de sentir novamente como descontrole e excesso de tempo com os games. a euforia alcançada pela vitória. Esses são hábi- “Era lançamento do The Sims 3 e fiquei quase 16 horas tos comuns entre alguns jogadores de jogos eletrônicos. jogando”, conta. Em outro momento, ele danificou o Muitas vezes, o que é apenas entretenimento torna-se um próprio computador. “Quando eu era mais novo, ficava vício. “A dependência em games, assim como em outras muito irritado e já cheguei a quebrar um computador por atividades, tem uma explicação, uma reação bioquímica causa disso. Dei um soco na tela do monitor, minha mão dentro do nosso cérebro: ele libera um neurotransmissor chegou a sangrar”, admite o estudante. chamado dopamina, que dá uma sensação de prazer, euApesar da adolescência conturbada, Eduardo buscou foria e recompensa. Quem se vicia, não consegue viver tratamento psicológico, psiquiátrico e acabou superando sem essa descarga de dopamina. Sempre quer mais e joga a má fase. Atualmente, frequenta a universidade, eventos mais”, trecho de uma reportagem sobre vício em jogos, sociais e se relaciona bem com as pessoas. Os games exibida no Jornal Nacional. ainda são parte de sua rotina, mas de modo equilibrado. Muitos conseguem controlar e manter o equilíbrio O estudante de Publicidade aprendeu até a ganhar dinmental diante dessa atividade, jogar normalmente sem heiro com a atividade. “Eu jogo Tibia e, normalmente, causar danos à saúde ou criar problemas familiares e de dependendo da fase e do ciclo do teu personagem, tu relacionamentos. Entretanto, outros indivíduos se tornam pode vender ele a partir de R$ 20”, explica. Ele conta tão compulsivos, que deixam de se relacionar, ter com- ainda que se você já joga há cerca de dois anos, dá pra promissos sociais e realizar tarefas básicas como comer, vender o “char” (avatar do jogo online) entre R$ 300 e ir ao banheiro ou dormir. Encontram nos games uma R$ 400. Esse valor pode variar de acordo com o tempo maneira de fugir da realidade, participar de um mundo que o indivíduo joga e o treinamento que executa com o que os aceita, no qual possam ser vangloriados por suas personagem. habilidades e até mesmo vivenciar, através das telas, a vida Outro relato é de Juliano*. Com 20 anos e jogando que idealizam. desde os sete, atualmente ele não O problema não está totalmente estuda e está desempregado, o que nos jogos, afinal, estes trazem benagrava ainda mais o vínculo com os “TENHO PROBLEMAS DE games. “Eu só não jogo 24 horas efícios, quando utilizados de forma correta. O mal está no uso exagerado. ANSIEDADE, INSÔNIA, porque eu durmo [risos]. Mas acordo A atividade, quando se torna con- DÉFICIT DE ATENÇÃO E e já ligo o videogame”, revela. Na stante, gera prejuízos. Outra matéria a PARA ME RELACIONAR sua vida, os games são intensos. respeito do vício em games, divulgada “Já aconteceu de eu virar dois dias SOCIALMENTE” no site da BBC Brasil, trata de que um jogando, tomei muito café, eu estava indivíduo viciado não possui controle morto”, relembra. Um de seus jogos Fernando* sobre a frequência, duração e intenpreferidos é da categoria RPG, um viciado em games sidade com que joga. O desejo é de gênero que permite modificar o seu praticar cada vez mais, priorizando o personagem virtual de acordo com as game em relação a outras atividades. Com isso, a pessoa características físicas que a pessoa mais gosta, como por acaba ignorando os estudos, deixando de ter uma vida exemplo, torná-lo mais forte. “O play me ajudou bastante, social, de se envolver com familiares, praticar esportes e mas na questão social é mais complexo, às vezes a gente até mesmo trabalhar. Tudo gira em torno do jogo e quando não se comunica com outras pessoas, tu fica mais no teu ocorrem falhas ou alguém o impede de jogar, muitas vezes, canto, em certos momentos se sente um pouco excluído”, isso gera um comportamento agressivo. explica. Juliano já teve diversos aparelhos. Seu primeiro Fernando* é um caso desta mudança de comporta- game foi o clássico Atari, console que deu início a era dos mento. Aos 22 anos, o estudante de fisioterapia relata que videogames. Em seguida, passou pelas versões Playstation quando algo o impedia de jogar, passava por momentos e Xbox, chegando a colecionar uma grande diversidade de de raiva e impaciência. “O único benefício que o jogo me jogos. A tia dele, Carla*, acha que o sobrinho ficou mais oferece são as novas amizades, mas em outros aspectos é distante da família. “Ele está mais concentrado nos jogos, prejudicial. Tenho problemas de ansiedade, insônia, déficit a gente fala e ele não presta atenção”, afirma. de atenção e para me relacionar socialmente”, relata. Também adepto aos games, o estudante de ciência da

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LETÍCIA SANTOS

computação Rafael*, de 19 anos, contou sua experiência. Desde muito cedo, aos sete anos de idade, foi atraído por este universo. Entre seus preferidos, no computador e no console, estão os jogos das categorias FPS, MMO e MOBA. Segundo o site Canaltech, o termo FPS ou First Person Shooter se refere aos games de tiro em primeira pessoa. Para que um jogo se caracterize por esse termo, o jogador deve controlar um personagem e observar o cenário à sua frente, como se estivesse vendo tudo através dos seus olhos. Em sequência, o modo MMO é caracterizado por games em que os jogadores conseguem interagir entre si. Já o MOBA significa, na tradução da sigla para o português, Arena de Batalhas Online para Vários Jogadores. A disputa envolve dois times para ver qual consegue destruir a base dos adversários. Dentro dessa batalha, encontramse obstáculos e objetivos que os jogadores cumprem, após pensarem estratégias em conjunto com sua equipe. Rafael* já passou mais de 24 horas conectado, fazendo pequenos intervalos apenas para comer, ir ao banheiro e descansar. Para ele, o jogo é uma maneira de relaxar e sentir adrenalina, principalmente quando percebe que

suas habilidades foram importantes para uma vitória ou conquista. “No passado, eu preferia o jogo com meus amigos a uma festa, pois me sentia mais feliz assim”, lembra o estudante. Entretanto, atualmente se tornou um jogador muito menos dependente. Através de novos relacionamentos e experiências de vida, deixou de priorizar os games e passou a utilizá-los de uma maneira saudável.

COMO OS GAMES ENTRAM NA VIDA DAS PESSOAS Já na infância identificamos os primeiros contatos. A cena devem saber o que eles estão pesquisando, quais jogos estão é clássica: os pais, após um longo dia de trabalho, estão com praticando e quais os objetivos do mesmo”, aconselha Mêas energias quase acabando e à sua espera estão os filhos, em mora. Esse cuidado é muito importante, uma vez que, alguns busca de atenção. Procura-se o primeiro brinquedo ou atrativo games possuem temáticas violentas e nocivas, que não agregam para entretê-los. Contudo, quando podem fazer com que eles valor ao desenvolvimento da criança e do adolescente, caso fiquem mais tempo brincando, isso não se torna realmente utilizados em excesso. Muitas vezes a classificação indicativa tentador? É tão mais fácil ligar aquele jogo que eles gostam no também não é respeitada. celular, ativar o videogame ou deixá-los Mêmora traz com conveniência a no computador “se divertindo”, não é questão dos pais participarem mais da mesmo? No cansaço do dia ou na inovida dos filhos e de incluírem pequenas cência de alguns pais, acaba-se optando “QUANDO O JOGO EM SI tarefas para que eles possam auxiliar, por alternativas que agradem os filhos. COMEÇA A TER DOMÍNIO inclusive nos afazeres domésticos. É O fato é que, justamente no ambiente S O B R E A P E S S O A , É necessário fazer um esforço e equilibrar familiar, os jogos eletrônicos começam a UM ALERTA QUE SIM, a rotina em prol da saúde dos pequenos. fazer parte da vida da criança, algo que “Os pais precisam exercitar a paciência e ALGO MUITO PERIGOSO a tolerância, pois a criança não vai fazer no futuro pode se agravar. Neste caso, a prevenção e o controle dos pais são ESTÁ ACONTECENDO” tudo igual, né? Ela está em processo de determinantes na saúde e no equilíbrio aprendizagem, mas já pode ajudar a preMêmora Arrial mental dos filhos. A psicóloga Mêmora parar o lanche, passar a manteiga, pegar psicóloga Arrial explica de que forma isso ocorre o leite na geladeira”, afirma. Ela avalia e como a utilização excessiva dos games que muitos pais são superprotetores e pode afetar a vida e a saúde das pessoas, que isso tira a autonomia das crianças e tanto individualmente quanto no ambiente familiar e social. dos adolescentes no desenvolvimento de outras atividades. Se “Os pais chegam com uma sobrecarga de trabalho muito os pais fazem tudo, os filhos acabam não tendo responsabiligrande. Então, dar um celular, um tablet, faz com que a criança dades, ficando acomodados e com mais tempo para os jogos ocupe o seu tempo e os pais possam dar conta dos afazeres eletrônicos. “Muitos pais chegam ao consultório relatando que domésticos, até mesmo preparar o jantar da criança”, esclarece. seus filhos são antissociais. Eles não são antissociais! Apenas Ela orienta os pais para que deem permissão às crianças para se acostumaram com um outro mundo”, explica a psicóloga. ficar um determinado momento com estes aparelhos, usando Orientar os filhos e acompanhá-los é essencial, mas a supera internet, desde que a utilização seja supervisionada. “Os pais proteção pode atrapalhá-los no crescimento. 39


DEPENDÊNCIA Neste ano, entrou em discussão a questão da dependência O neurologista Antonio Manoel de Borba Júnior explica que em games ser considerada um distúrbio mental pela Orga- há muitos trabalhos e estudos, especialmente no Japão, que nização Mundial da Saúde (OMS) e a patologia poderá ser comprovam que os jogos eletrônicos melhoram a coordeincluída no CID-11. Este, de acordo nação e a habilidade de resolver problemas. Contudo, o excesso de games com Mêmora, é um manual psiquiátambém é um problema. “Gera cansaço, trico. “Os psicólogos também terão acesso a este manual e nele irá conter TRABALHOS E ESTUDOS dificuldade de concentração e lesão de COMPROVAM QUE conjuntiva visual (por secar os olhos)”, critérios diagnósticos que vão dizer o que caracteriza uma pessoa viciada afirma. Segundo o médico, os sintomas JOGOS ELETRÔNICOS do vício são semelhantes a drogadição e em jogos”, esclarece. De acordo com MELHORAM A se revelam quando a pessoa deixa seus a profissional, para um indivíduo ter o COORDENAÇÃO afazeres mais básicos para jogar, como distúrbio, precisará preencher alguns E A HABILIDADE por exemplo, não escovar os dentes e o requisitos médicos. “A partir do moDE RESOLVER cabelo ou trocar de roupa, etc. mento que o jogo em si começa a ter um PROBLEMAS. De acordo com Borba Júnior, o determinado domínio sobre a vida da pessoa, é um alerta que sim, algo muito CONTUDO, O EXCESSO tempo ideal para manter-se ativo nos games é aquele que não interfira com perigoso está acontecendo”, declara DE GAMES TAMBÉM É as notas escolares, tempo de exercício Mêmora. Quando o sujeito prefere o UM PROBLEMA e convívio familiar. Especialmente, jogo e substitui outras oportunidades que não comprometa o sono. “Jogar pra ficar conectado, é sinal de que a até tarde pode refletir em um decrésatividade já deixou de ser positiva. E como a neurologia avalia o vício dos games? De que cimo do rendimento diurno. E um acordo de redução forma o cérebro humano reage aos efeitos dessa atividade? de tempo deverá ser procurado”, destaca o profissional.

PATRICIA HERMES

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MICHEL GIROTTO BRUM

OS GAMES EM OUTRA PERSPECTIVA Por outro lado, os jogos são bons aliados no desenvolvimento dos estudantes. Isso é o que diz o professor de robótica e informática Michel Girotto Brum, que há mais de três anos desenvolve atividades com games em uma escola de ensino médio de Santa Cruz do Sul. “Cada professor, em sua turma, escolhe o jogo de acordo com uma finalidade. São utilizados desde jogos online de pintura para auxiliar no desenvolvimento da motricidade fina, nos anos iniciais, até ferramentas como o Karrot, usado para criar atividades/perguntas em formato de quiz, em que o estudante responde questões de múltipla escolha e recebe um feedback imediato. A escola também licenciou o Minecraft Education Edition e ele está sendo adotado em uma disciplina facultativa de ‘Micromundos’ em que os alunos vivenciam situações diversas”, explica. Quanto aos benefícios, o professor afirma: “Nas aulas em que jogos são utilizados como apoio pedagógico (aos conteúdos abordados), observa-se um maior aproveitamento e engajamento dos estudantes nas atividades propostas. No caso da disciplina de Micromundos, vai além dos benefícios do uso pontual. Já que se trata de um ambiente imersivo multiplayer online, os alunos vivenciam situações que exigem a colaboração, o trabalho em grupo, o que desenvolve habilidades interpessoais, a ética e promove também a reflexão sobre como as ações de cada indivíduo impacta no trabalho do grupo”, conta Brum . A multiplicidade é tanta que o game Minecraft deverá ser utilizado em outras disciplinas: “Ele foi escolhido por ser um

jogo de mundo aberto, ou seja, não há objetivos, mas permite que seja usado para inúmeros cenários. Então, definimos as metas de aprendizagem, elaboramos as atividades e desenvolvemos na turma. Em breve o game também será usado em aulas de química e ciências”, revela. Na disciplina de Minecraft os encontros são semanais, porém, nem todo o tempo é de jogo. O professor explica que existem momentos de reunião e planejamento de grupos, normalmente formados por quatro a cinco estudantes, e, após cada momento, os alunos podem utilizar o game. “Ainda é cedo para avaliar os resultados, pois estamos com ele em andamento. O projeto iniciou há pouco mais de um mês, mas já é possível observar melhora nas habilidades interpessoais”, salienta Brum. Com isso, o verdadeiro desafio é equilibrar a atividade sem comprometer a saúde. O vício em games se origina quando o indivíduo já possui problemas na sua vida, no âmbito familiar e social, e encontra nos jogos uma forma de suprir o que falta na realidade. Para que esta dependência seja evitada ou revertida, é muito importante que pais, filhos e profissionais da educação estejam integrados, exercitando o diálogo, e explorando diferentes habilidades e competências. Também é necessário estimular seus filhos e outras potencialidades que eles certamente possuem. Assim, poderão crescer mais felizes e saudáveis, sem deixar que os jogos se tornem vilões. *Nomes dos entrevistados modificados para preservar as identidades. 41


FÁBIO GOULART

DE OLHOS FECHADOS PARA A PSICOPATIA As dúvidas são grandes; as soluções, vagas. O tratamento difícil a quem mais precisa. Como identificar quem tem este distúrbio?

POR TALIANA HICKMANN 42


D

espreza a vida e os direitos das outras pessoas. Desrespeita leis ou convenções sociais. É cruel, manipulador por natureza. Ultrapassa todos os limites sociais quando quer alguma coisa. Este é o psicopata. “Já fui ameaçada por um indivíduo assim. Naquele momento, eu representei um empecilho para ele. Disse-me que sabia quem era o meu filho e que poderia machucá-lo. Então, um amigo, que também o conhecia, conversou sobre isso com ele. Depois de um tempo, o psicopata veio falar comigo e disse que não faria nada com meu filho. Pensei duas vezes antes de denunciar e achei melhor não fazer isso.” Esse relato é de Marlise*, que trabalha no atendimento de pessoas com distúrbios mentais e sociais. Mesmo conhecendo de per to o comportamento dos psicopatas, eis que um portador desse Transtorno de Personalidade Antissocial (TPA) fez com que ela perdesse o controle da situação. Isso acontece porque eles fazem uso de estratégias bem planejadas para dominar as suas vítimas. E o que determina a severidade com que cada psicopata age são os graus de desenvolvimento do transtorno. “Como em todas as manifestações humanas, há quadros leves, com pouca falta de empatia e, outros graves, com muita falta de empatia”, adverte o médico psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC), Daniel Martins de Barros. É por causa da falta de consciência que os psicopatas são capazes de cometer diversas atrocidades. Imagine,

a consciência é o que faz as pessoas ajudarem alguém com as compras, a se colocarem no lugar do outro, a se alegrarem quando veem alguém superando seus obstáculos ou ainda a se comoverem com catástrofes e tragédias. Os indivíduos com esse transtorno dissocial manifestam comportamento diferente. Eles não sentem emoções, apenas reagem a determinadas situações, produzindo sensações como excitação, euforia e dores de menor intensidade que o nor mal. “Esse tipo de sujeito não tem empatia. Se quer a blusa que estou usando, ele

“JÁ FUI AMEAÇADA POR UM INDIVÍDUO ASSIM. NAQUELE MOMENTO, REPRESENTEI UM EMPECILHO PARA ELE”

Marlise*

vítima de um psicopata

vai tirá-la de mim, nem que me mate para isso”, exemplifica a psicóloga e coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Vera Cruz, Iara Ortiz Paz. O psicopata vive em busca de saciar os seus prazeres e vontades. Seja dinheiro, status, uma peça de roupa e até um saco de pão. Pretensões qualquer pessoa pode ter. Mas, se tratando do portador desse distúrbio antissocial, o problema está na maneira como age para alcançar os seus obje-

tivos. Indiferente aos sentimentos e a liberdade dos demais seres humanos, ele se aproxima e lança o anzol. Quem morder a sua isca poderá sofrer danos irreparáveis. “Independentemente do nível de gravidade do psicopata, todos deixam alguma marca de devastação por onde passam”, esclarece a psicóloga Alba Regina Fagundes Zacharias. Assim, aos poucos, ele seduz a vítima e adentra sua vida. Torna-se um amigo, o marido, um colega de trabalho ou um vizinho. E dela pode tirar a vida, os bens e a família, sem manifestar culpa alguma. Um psicopata é ótimo em contar falsas histórias sobre a vida que ele não viveu, uma viagem que nunca fez ou a profissão que jamais exerceu. Representa - e de fato é ator na arte de enganar - uma pessoa extrovertida, empolgante e sedutora quando está em frente a um alvo. Pelos olhos da vítima, que o acolhe em seu convívio social e familiar, vê-se um sujeito repleto de aventuras para contar. Encantador desde a primeira conversa. Alguém para confiar os mais íntimos segredos ou para dividir uma vida a dois. E pronto! Basta aproximar-se de um psicopata que ele começa a tirar vantagens de você e a dominar suas ações e seu psicológico. “Eles possuem um caráter enganoso e manipulador”, frisa Alba. Por isso, não poupam nem os familiares mais próximos. Pelo contrário, para eles os pais ou os avós são como qualquer outro indivíduo. Se representarem um obstáculo, serão eliminados. E se forem importantes para alcançar um objetivo, serão controlados feito marionetes.

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AGINDO NO TRABALHO Os psicopatas não gostam das situações rotineiras. Estão sempre à procura de possíveis vítimas ou de oportunidades para aplicar golpes. A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva afirma que eles buscam circunstâncias que lhe permitam sentir excitação, correr riscos, viver no limite. Esse é um fator que colabora para o envolvimento com questões ilegais, casos judiciais, brigas e desentendimentos familiares, por exemplo. Por isso, o ambiente de trabalho chama a atenção dos psicopatas, pois suscita justamente esta excitação em controlar as pessoas e se revela cheio de possibilidades para tirar vantagens de alguém. “Tive uma colega que sofria de um transtorno antissocial. Era fria e calculista, principalmente quando queria conquistar um cargo: apelava para fraude, alterava nome em documentos. Alteridade também não tinha, mas a pessoa não se reconhecia assim. Certa vez, em uma reunião, ela discordou da opinião de quem coordenava a discussão e, por algum motivo, esse coordenador saiu por instantes. Quando este retornou, ela disse que o grupo na sala estava discutindo o assunto e discordava de tal ideia. No entanto, era só ela que tinha este pensamento, os demais colegas não haviam dito nada e nem sequer conversado sobre isso.”

Qualquer empresa pode representar um ambiente propício para os psicopatas desrespeitarem as outras pessoas, saciando interesses próprios. Grandes companhias, então, são verdadeiros berços para eles. Manipular, abusar e mentir não serão problemas na busca por altos cargos. Assim como fazia a colega de trabalho de Ricardo*, - autor do relato acima tantos outros agem dentro das instituições, sem serem descobertos.

“INDEPENDENTEMENTE DO NÍVEL DE GRAVIDADE DO PSICOPATA, TODOS DEIXAM ALGUMA MARCA DE DEVASTAÇÃO POR ONDE PASSAM”

Alba Zacharias psicóloga

De início, eles se aproximam dos colegas, obser vam seus hobbies, tornam-se seus amigos. Aos poucos, descobrem dados e infor mações secretas sobre as empresas. O que o ‘parceiro’ de trabalho nem imagina é

que representa apenas um fantoche na mão do psicopata. E quando este quer para si o cargo do colega, fará de tudo para caracterizar essa pessoa como mentirosa, fraudadora e incompetente. No livro “Mentes perigosas – O Psicopata Mora ao Lado”, a psiquiatra Ana Beatriz lembra que eles podem extrair informações sigilosas de funcionários das empresas ou convencer pessoas a fazerem o seu trabalho e até colocar a culpa nos outros por atos que cometeram. Quando o psicopata percebe que não há mais possibilidade de manipular e controlar, ele simplesmente vai embora e deixa os estragos pelo caminho. Em casos mais graves, essas marcas significam dívidas gigantescas para as companhias, decorrente de fraudes que eles causaram. O fato é que o poder chama atenção dos psicopatas. Por isso, cargos de alto escalão, como os da política, são fascínios aos olhos destes portadores de distúrbios antissociais. Apesar de a grande maioria não ser marginal ou assassino - visto que a psicopatia pode se desenvolver de forma diferente em cada indivíduo, sendo os níveis leve, moderado e grave -, seus atos prejudicam diretamente a vida de muitas pessoas.

Curiosidades A psiquiatra e autora do livro “Mentes Perigosas – o Psicopata Mora ao Lado”, Ana Beatriz Barbosa Silva afirma que os psicopatas representam cerca de 4% da população mundial, sendo 3% homens e 1% mulheres. Associação de Psiquiatria Americana (DSM-IV-TR) utiliza o termo Transtorno da Personalidade Antissocial para se referir a Psicopatia e a Organização Mundial da Saúde (CID-10) – Classificação Internacional das doenças - prefere Transtorno de Personalidade Dissocial.

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MARCAS DE DESTRUIÇÃO Após a convivência com psicopatas, por fim, restam as vítimas: sozinhas, com contas bancárias vazias, sem autoestima e de corações partidos. Isso quando o psicopata não chega ao nível mais alto de crueldade: o assassinato. “Basicamente, eles têm uma grande indiferença afetiva pelo sofrimento alheio”, garante o psiquiatra Daniel Martins de Barros. Como se nada e ninguém importasse além de si mesmo e de seus próprios interesses. Como consequência, desoladas emocionalmente, as vítimas procuram o acompanhamento psicológico. E a culpa as acompanha. Os pacientes costumam se questionar o que fizeram de errado,

porque o psicopata os faz acreditar que têm responsabilidade pelo ocorrido, pois apela para a compaixão e à solidariedade das pessoas que manipula. Nestes casos, o tratamento existente - sendo o terapêutico de maior aplicabilidade - é mais eficaz na vítima do que no próprio psicopata. Esse fato é curioso, mas não difícil de ser compreendido. O psicopata tem completa ciência dos atos que pratica. Ele não é atingido pela inquietude mental quando aplica um golpe ou destrói uma família. Já a vítima, que procura o atendimento, sofre com o problema e quer superá-lo. Imagine apaixonar-se perdidamente

por alguém encantador, charmoso e inteligente e de um dia para o outro ele fugir com seu dinheiro e os cartões do banco. Você ficaria abandonado e sem nada. Seria arrasador, não? Por isso, o papel dos acompanhamentos psicológicos é essencial para amenizar o sofrimento de alguém que passou por um trauma como este. Sendo assim, enquanto não se encontram maneiras mais eficazes de controlar manifestações antissociais como a psicopatia, segue-se reparando os danos emocionais e físicos causados pelos psicopatas à sociedade e limpando os rastros que eles deixam pelo caminho.

GRANDES DESAFIOS PARA SUPERAR A psicopatia não tem cura. Acaba com sonhos, destrói famílias, desestabiliza vítimas financeira e - de forma ainda mais avassaladora - emocionalmente. O transtorno é mais comum do que se imagina. No CAPS de Vera Cruz, a maior parte dos atendimentos realizados com psicopatas têm origem em casos judiciais, como ocorrências de estupro e brigas familiares. “Dificilmente esse indivíduo é encaminhado para ser assistido através de um familiar, porque as pessoas que convivem com ele não sabem reconhecer o distúrbio”, revela a psicóloga Iara Ortiz Paz. Identificar traços psicopáticos na pessoa é o primeiro passo para buscar o atendimento necessário, antes de o psicopata começar a agir. “Se for adulto, uma das poucas coisas a fazer é ter noção desse quadro para evitar prejuízos maiores. Em crianças e adolescentes é possível tentar evitar o prognóstico pior”, esclarece o psiquiatra Daniel Barros. Por isso, se lendo as características de um psicopata descritas no início desta reportagem, você pensou em um sujeito estranho, isolado do convívio social, que escancara atitudes agressivas e maldosas em qualquer hora e lugar, é bom ficar atento. “Eles [os psicopatas] estão sempre bem apresentáveis, enga-

nam direitinho quem não os conhece. São bons de papo e têm uma ótima lábia para controlar as pessoas”, adverte Iara. Após esta fase de percepção inicial, chegando ao consultório médico ou ao centro de atendimento, esse transtorno antissocial se defende construindo uma barreira: o tratamento não dá conta da sua complexidade. Em alguns casos, a assistência é terapêutica. “É fundamental tratar a psicopatia desde cedo, numa abordagem que inclua terapia individual e de família”, avalia Barros. Já com outros pacientes, busca-se diminuir as formas de manifestação da psicopatia: com a prescrição de remédios para o controle da impulsividade, por exemplo. Entretanto, os profissionais se questionam se é possível tratar alguém que não se aceita como portador de tal distúrbio. Na maioria das vezes, a dificuldade é esta. Para esclarecer melhor este aspecto, a psiquiatra Ana Beatriz descreve em seu livro que as terapias são processos direcionados a pessoas que buscam sanar um desconforto emocional causador de prejuízos. É aí que surge a problematização sobre a eficácia destes métodos em psicopatas. Para estes indivíduos, no seu íntimo, não há nada de errado. Os psicopatas

nascem com essa desordem de personalidade e “convivem” com ela até o dia de sua morte. Como consequência, eles não possuem uma consciência que os faça sentir constrangidos, angustiados ou culpados por algum ato praticado. Assim, como seria possível tratar uma particularidade que não incomoda o paciente? “Os psicopatas não admitem que têm o transtorno, por isso não há um tratamento específico. Muitos só tomam a medicação receitada ou vem buscar atendimento no CAPS quando querem algo em troca, como um laudo técnico”, lamenta Iara.

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TEMA POUCO FALADO Mesmo envolto em tamanha complexidade, este transtorno antissocial é pouco conhecido pela sociedade tanto em suas especificidades como nos perigos que representa. Há debates sobre a psicopatia permeando o meio científico e a área da saúde. Sabe-se um leque considerável sobre o assunto. Há livros a respeito. Todavia, há diversos aspectos ainda abertos à discussão e estudos que têm de avançar sobre esse distúrbio. A sua seriedade gera receio até no meio profissional. Alguns especialistas têm medo de tratar sobre o tema. Já outros, embora cautelosos com as declarações, falam da patologia mais abertamente. A controvérsia no âmbito profissional se deve, entre outras coisas, as incertezas geradas a partir do assunto. Há informações disponíveis, mas estas precisam alcançar mais diretamente o público e permear os debates. A questão, apesar de grave, não é alvo da atenção das estatísticas no Brasil, por exemplo. Dificilmente encontram-se pesquisas que deem conta do número de psicopatas diagnosticados nas cidades ou nos estados brasileiros.

agravantes. Nas escolas, os educadores, psicólogos e orientadores estão preparados para identificar comportamentos psicopáticos e a lidar com essa incidência na infância? Nas seleções de emprego observam-se estas características na contratação de um funcionário, antes que este cause danos irreparáveis à empresa? Onde estão os números palpáveis de indicação de psicopatas em nosso país, estados e cidades? É assim, entre incertezas e soluções, que a psicopatia se assola. É fato que estudos sobre o assunto avançam e que há

A ignorância não pode cegar. A desinformação e a falta de discussões que busquem medidas para o controle da psicopatia são fatores

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FÁBIO GOULART

A DESINFORMAÇÃO E A FALTA DE DISCUSSÕES QUE BUSQUEM MEDIDAS PARA O CONTROLE DA PSICOPATIA SÃO FATORES AGRAVANTES

especialistas com vontade de trabalhar em prol da resolução do problema em suas diversas esferas. No entanto, há muito a se fazer a respeito e a se discutir en quanto sociedade e meio profissional, para então promover o combate desse transtorno de personalidade antissocial.

*Os nomes desta r e por tagem são fictícios para preservar a identidade das vítimas.


OS LIMITES ENTRE O PRECONCEITO E A INTOLERÂNCIA O país que mais acolhe religiões ainda não sabe respeitá-las

POR ANDRIELE BATISTA

A

tualmente, discutimos sobre o fator liberdade em vários aspectos, como a sexual, de pensamento e a autonomia de podermos escolher qual profissão seguir. Entretanto, essa liberdade está contida, muitas vezes, dentro de uma sociedade preconceituosa que dissemina o ódio ao invés de exercer a empatia. Ou seja, neste caso, ela funciona na teoria e não na prática. Assim também acontece no meio religioso. A fé nem sempre é aceita por todos, ainda mais se não segue padrões sociais e foge do senso comum. O Brasil é considerado um dos países que mais acolhe religiões, mas que ao mesmo tempo as discrimina. Segundo levantamento realizado pela Veja, o Disque 100, canal que reúne denúncias, recebeu 1.486 relatos de discriminação religiosa no ano de 2017 de xingamentos a medidas de órgãos públicos que violam a liberdade religiosa. A estudante de psicologia e youtuber Geisse Abel segue a religião cristã e relata que já sofreu preconceitos, na maioria das vezes, indiretos por parte de colegas, amigos e até mesmo na faculdade. Além disso, conta que já ouviu críticas e co-

mentários preconceituosos a respeito dos vídeos que produz para o seu canal. Em um deles, no qual fala sobre o comportamento das mulheres no relacionamento, alguns comentários foram de que ela estaria sendo conservadora. “Em nenhum momento a minha intenção foi ser machista ou ir contra o feminismo, apenas expressei algo que acredito e que são conceitos que eu sigo. Mas, se pararmos para analisar, esse preconceito religioso é tratado como algo engraçado e colocam, principalmente, os evangélicos, todos no mesmo saco, como se fossem homofóbicos e pregassem o ódio, por exemplo”, diz. “Claro que não devemos generalizar. Existem pessoas preconceituosas dentro e fora da igreja, mas não acredito que combater o preconceito com mais preconceito irá mudar as coisas”, acrescenta. Geisse conta que já sofreu com discriminação indireta, quando as pessoas faziam piadas sobre sua religião. “Estava em um lugar onde as pessoas a minha volta debochavam e diziam que quem é cristão é burro e que é manipulado pela igreja ou pelo pastor”, recorda. 47


MAS O QUE É INTOLERÂNCIA RELIGIOSA?

PATRÍCIA HERMES

Segundo a advogada Cristina Maria Boni, intolerância religiosa é um termo que descreve a atitude mental caracterizada pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar diferenças ou crenças religiosas de terceiros. O dia 21 de janeiro é considerado, no Brasil, o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A advogada salienta que ninguém pode ser discriminado em razão de credo religioso, até porque o Brasil é um estado laico, ou seja, possui posição neutra no campo religioso, sendo imparcial, não apoiando nem discriminando nenhuma religião. “A Constituição Federal de 1988 ga-

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rante a liberdade de religião. A legislação brasileira proíbe qualquer tipo de intolerância religiosa e possui normas jurídicas para punir os que violam esta lei”, relata Cristina. Alguns artigos da Constituição alegam que não se pode impedir o acesso de pessoas habilitadas em qualquer lugar devido ao seu credo religioso, bem como negar emprego, ingresso de aluno em uma instituição, atendimento ou acesso a transportes públicos, impedir o casamento e, mais importante, praticar, induzir, ou incitar a discriminação ou preconceito. A Constituição Brasileira também diz que é inviolável a liberdade de consciência e de crença. Segundo o professor de filosofia e ensino religioso Fabrício Corrêa, para entender a intolerância é preciso compreender que no Brasil - dentro do marco ideológico que vivemos, de diferentes grupos dentro de uma mesma sociedade - existe uma multiculturalidade que está sendo abalada por grupos e movimentos internacionais conservadores, como por exemplo, países da Europa fechando o caminho para imigrantes e refugiados de guerra. Isso acaba refletindo no Brasil, porque os temos como referência global e este tipo de preconceito e intolerância se reflete também nas nossas ações. “O filósofo Popper diz que não se pode tolerar o intolerante, se você vê alguém desprezando a religião do outro você não pode tolerar. Ele não induz a nenhuma ação violenta, mas sim a pensarmos sobre isto”, explica Corrêa. O professor conta que, na adolescência, foi ateu e participou dos processos contra culturais daquele momento, lia a bíblia satânica e todo esse processo o levou a uma não crença. Entretanto, após cursar filosofia, abriu mais a sua mente para entender que a religião é sim importante ao desenvolvimento social. “Lembro que quando estava no quartel, havia uma grande pressão por parte dos sargentos que comungavam alguma religião, dizendo que eu estava perdido e que iriam me salvar por ser ateu. Levaram-me em uma tenda de luz, onde aconteceram coisas em um ritual que não me fizeram mudar meu pensamento na época”.


É preciso falar ainda sobre até que ponto a liberdade mentais e serão punidos, isto quer dizer que ao mesmo do outro pode interferir na minha e até que ponto a tempo que a censura fere a liberdade de expressão, ela minha liberdade de expressão pode atingir a vida ou a também deve ser punida. fé de alguém. No Brasil, a liberdade No século XVI, a religião estabelede expressão também tem um limite. ceu suas raízes sem que fosse convidaO direito brasileiro entende que ela da. Os jesuítas vieram com o intuito de “A LEGISLAÇÃO faz parte dos direitos, constando no cristianizar a América e o Brasil sempre BRASILEIRA PROÍBE artigo quinto da Constituição Federal acolheu as religiões. Entretanto, a em vários incisos e parágrafos. intolerância religiosa cresce, a fé é exQUALQUER TIPO Na Constituição Federal diz que plorada, gerando opressão psicológica DE INTOLERÂNCIA logo após garantir a livre expressão e cada vez mais religiões aparecem. RELIGIOSA E POSSUI individual em diversos aspectos, Há uma gama de possibilidades de NORMAS JURÍDICAS que não se pode violar e ferir a incultos, missas e rituais. Mesmo assim, PARA PUNIR OS QUE timidade, a privacidade, a honra e a a preocupação é em criticar a religião imagem que os indivíduos constroem do outro. O que se precisa, na verdade, VIOLAM ESTA LEI” para si e sobre si pela sociedade. Isso é se preocupar em ser pessoas sociais, Cristina Maria Boni explica que dentro da lei, a liberdaque saibam conviver com as diferenças, advogada de de expressão possui um limite sem impor, muitas vezes, uma opinião na dignidade alheia e que não pode prepotente. ser sobreposta pelo desejo de que a Assim, vale muito investir em práexpressão seja plena. ticas que não fomentam o preconceito, mas que ensinam Ainda segundo a lei, discursos de ódio são considerados a conviver e respeitar as diferenças sociais, que também atentado discriminatório aos direitos e liberdades funda- estão presentes nas religiões.

TEMA DE REDAÇÃO DO ENEM Como exemplo desta prática, a redação do Enem 2016 teve como tema “Caminhos para combater a intolerância no Brasil”. Entre muitos textos, surgiram alternativas para combater este preconceito. Confira: A responsabilidade de combater o preconceito também é do cidadão, que deve repudiar a inferiorização as crenças, por meio de debates nas mídias sociais; O Ministério Público deveria promover ações judiciais contra atitudes ofensivas as crenças; Que sejam investigados os casos de impunidade por meio de fiscalizações, disponibilizando mais canais e portais de denúncias; A fomentação do pensamento crítico por parte de instituições de ensino, ao desenvolver projetos, debates e trabalhos contra a intolerância.

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LIVRE, MAS NEM TANTO A rotina de um dos 360 apenados da região de Santa Cruz do Sul que utilizam tornozeleira eletrônica

POR LUCAS BATISTA

S FOTOS E ARTES: LUCAS BATISTA

exta-feira. Tudo era normal na cidadezinha de pouco mais de seis mil habitantes. Um que outro carro cruzava a pacata rua principal. Comércios todos abertos, mas o período de férias escolares era sinônimo de poucas vendas. O movimento era fraco. O que não parava, nem mesmo nos meses em que a maioria estava curtindo o veraneio no litoral, era o comércio ilegal de cigarros. Este sim rendia lucros. Mas a Polícia Federal (PF), de olho, deu um revés no contrabando. Depois de uma investigação silenciosa, chegou sem alarmes e deu o veredito: “Você está preso em flagrante”. Quem ouviu a atordoada frase foi Roberto*, de 32 anos. Dono de bar, entre os produtos vendidos por ele

no estabelecimento estavam os vindos do Paraguai. No dia da investida da PF, o homem chegava de carro, com três caixas de cigarros oriundos do país vizinho. Era ele quem buscava o produto para abastecer o bar, apontou a investigação. Ao todo, 260 pacotes de cigarros contrabandeados e outros 1,6 mil pacotes de cigarro nacional, sem nota fiscal, foram apreendidos. Naquele momento, Roberto iniciava a saga para se livrar da temida prisão. De imediato, não surtiu efeito! Depois de prestar depoimento, o destino era a rua Dona Carlota, s/n, no bairro Faxinal Velho, em Santa Cruz do Sul. Ali fica o Presídio Regional, local de infratores, de pensar na vida, de refletir sobre a família. Também é lugar de dificuldades, de noites mal dormidas,

de angústia. De medo de não acordar no dia seguinte. Roberto passou por esses percalços durante 28 dias. Pagava para levar uma vida mais sossegada, embora a tranquilidade havia ficado trancafiada no passado. Calava-se ao ver o consumo de drogas. Tomava sol com um olhar sempre apreensivo. Mas estava seguro, pelo menos era o que garantiam a ele. “Eu era o rico deles”, lembra, nervoso. As mãos de Roberto tremem ao remoer na memória as quatro semanas dentro do Presídio Regional. Foram dias que não pareciam ter fim. “Um inferno”, diz ele, em tom forte. A saudade da esposa, da filha e da família martelava sua cabeça. Fazia-o pensar em tantas besteiras. Mas o tempo de reclusão também o fez mudar uma 51


opinião de anos. “Eu sempre dizia que quem estava no presídio deveria morrer. Que quem estava lá não prestava. Agora, quando eu entrei lá, percebi que tem muita gente inocente. Conheci pessoas que se entregaram no lugar de outras, que assumiram crimes que não haviam cometido”, revive ele, ainda nervoso. Roberto dividiu cela com presos perigosos. Um havia matado a mulher e tentado assassinar a segunda esposa; o outro tinha um homicídio consumado e um tentado nas costas; o terceiro era assaltante; o quarto havia sido preso por tráfico de drogas; e o quinto era matador de aluguel. Roberto estava lá por contrabando de cigarros. Dos crimes, talvez o menos danoso à vida. Saiu do presídio e hoje vive vigiado. A tornozeleira eletrônica o acompanha 24 horas por dia. A vida nunca mais foi a mesma. O dispositivo exige que ele fique próximo a uma tomada por cerca de três horas, todos os dias. É o tempo de recarregar a bateria. Embora ele se incomode com o comentário da esposa, ela não hesita em dizer. “É como se ficasse à soga nesse tempo”. O rabicho ligado à perna o inquieta. É como se a prisão fosse ainda maior.

Não tem câmeras, mas é vigiado o dia todo. Não tem telespectador, mas policiais monitorando. Não é Big Brother, é vida real.

“EU SEMPRE DIZIA QUE QUEM ESTAVA NO PRESÍDIO DEVERIA MORRER. QUE QUEM ESTAVA LÁ NÃO PRESTAVA. AGORA, QUANDO EU ENTREI LÁ, PERCEBI QUE TEM MUITA GENTE INOCENTE”

apenado do semiaberto Os infratores que usam tornozeleira eletrônica levam uma vida assistida. Encaram um roteiro sem possibilidade de falhas. Roberto, por exemplo, mora numa cidade que não tem cobertura de GPS. Todos os dias, ele precisa sair de casa e encontrar um local com sinal. É igual bater o relógio-ponto em uma empresa. Ele sai de onde mora e ruma a Santa Cruz

do Sul. Não é necessário chegar até a área central. Cerca de 10 quilômetros antes deste ponto, a tornozeleira já começa a piscar a cor verde, indicativo de que está na área de cobertura. Na casa e no bar de Roberto, o dispositivo pisca azul (sem GPS). Mesmo assim, ele precisa levar uma vida regrada, pois o aparelho armazena dados e coordenadas, que podem ser recebidos e acessados posteriormente. “É como se eu não tivesse liberdade”, aumenta o tom. Mas e o que é liberdade? “Pra mim, é poder ir a todos os lugares, a hora que tu quer, sem precisar se esconder de ninguém. Agora, ir só no local marcado é como se estivesse preso. É uma prisão diferente”, desabafa. Apesar da rotina cheia de regras, a vida fora da prisão ainda é melhor, atesta ele. A tornozeleira aperta o calcanhar, traz ao rosto vergonha. “Muitos vêm me perguntar como funciona, têm curiosidade. Eu conto. Mas digo que incomoda, até para caminhar”, diz. Dormir, tomar banho, sentar mais à vontade, tudo precisou de adaptação. *O nome e a idade do entrevistado são fictícios. A cidade também não foi citada, a fim de preservar a identidade do detento.

A TORNOZELEIRA Uma vez encaixada, a tornozeleira só pode ser retirada se rompido o lacre. Quando isso ocorre, segundo a Susepe, que é informada imediatamente da ocorrência de violação, o detento será dado como foragido do sistema, podendo retornar ao regime fechado. Ainda, no caso de estragar o equipamento, responderá por dano ao patrimônio público. Todos os apenados, após o recebimento de deferimento de tornozeleira eletrôni-

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ca, recebem explicações de todas as regras e diretrizes para a permanência em monitoramento. Portanto, ficam cientes do que deve ser seguido. Hoje, o Rio Grande do Sul tem 2.760 presos utilizando dispositivos. São três Institutos Penais de Monitoramento Eletrônico (IPME) responsáveis por supervisionar esses detentos. Um deles tem sede em Santa Cruz do Sul e monitora 360 apenados da 8ª Região Penitenciária. Os outros estão


localizados na região Metropolitana e em Santa Maria. O programa de acompanhamento e controle desses presos é personalizado para cada um e delimita a rota e o tempo necessário para percorrê-la, determinando horários para chegar e sair do trabalho e de casa. Dependendo do tipo de crime que cometeu, haverá áreas de exclusão do trajeto, de onde não poderá se aproximar. As informações de percurso, localização e velocidade são repassadas instantaneamente à Susepe. A Central de Monitoramento recebe alertas para desvio de rota, rompimento ou dano do equipamento e entrada em área de exclusão. “Quando o apenado viola alguma de suas zonas, imediatamente a equipe de plantão entra em contato telefônico para esclarecer qual foi a motivação. Caso não haja motivo justificável, este receberá a primeira advertência formal e, caso isso se

repita, será orientado seu imediato recolhimento para responder processo administrativo disciplinar”, esclarece

a coordenadora do monitoramento eletrônico da 8ª Região Penitenciária, Samantha Longo.

Perfil do sistema prisional No Rio Grande do Sul, 94% dos presos são homens, brancos, solteiros, entre 35 e 45 anos e com ensino fundamental incompleto.

PRESOS NO ESTADO

COM TORNOZELEIRA

2.068 mulheres

94%

13%

6%

37.100

homens

360

87%

na região de Santa Cruz

2.760 no RS Fonte: Departamento de Segurança e Execução Penal (Susepe)

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O EQUIPAMENTO Afixado no tornozelo dos indivíduos, o dispositivo é feito em borracha, com fibra ótica por dentro, mede nove centímetros de largura e tem uma bateria acoplada, com carga de 24 horas de duração. Quando a bateria estiver no fim, a tornozeleira vibrará. O próprio monitorado é que tem a obrigação de recarregá-la. Em caso de falta de energia elétrica, ele deve informar a Susepe da impossibilidade de carregamento. Quem usa o equipamento precisa atentar a todas essas regras. Os descumprimentos são prejudiciais ao detento. A Susepe vê o uso de tornozeleiras como vantajoso, pois, segundo ela, há monitoramento 24 horas; redução de danos ao preso, pois retorna ao convívio social e familiar, se distanciando do ambiente prisional; diminuição da superlotação dos estabelecimentos prisionais; e afasta o aliciamento entre as facções. “E é 100% segura”, garante Samantha.

QUAL PRESO PODE USAR? A dúvida de muitos, até mesmo daqueles que estão recolhidos dentro dos presídios, é: quem pode usar tornozeleira eletrônica? Samantha Longo explica. “O uso se dá através de deferimento do juiz responsável pela execução da pena. Normalmente, os apenados com tornozeleira devem permanecer dentro de sua residência, das 19 às 7 horas, e podem ficar em seu bairro (raio de 150 metros em torno de sua casa) das 7 às 19 horas”, detalha.

Se o juiz autorizou o apenado a exercer atividade laboral autônoma, conforme decisão da Vara de Execuções Criminais (VEC), poderá ter concedido o deslocamento pela área urbana ou rural do município”, acrescenta. Não há um crime mais comum entre os que fazem uso deste dispositivo. Segundo Samantha, normalmente os

apenados recebem o deferimento de tornozeleira eletrônica pela progressão de regime em cumprimento de pena e não pela tipificação do delito. “Ou seja, qualquer tipo de crime poderá cumprir pena com uso de tornozeleira eletrônica quando se der a progressão ao regime semiaberto, se o juiz da VEC entender que seja possível”.

RUA FRANCISCA

“Isso pode variar caso o apenado tenha autorizado pelo juiz a possibilidade de trabalho. Nestes casos, se o trabalho for em local fixo, será feita uma rota de deslocamento e zona de permanência durante o horário da atividade laboral. 54

RUA MARIA

RUA HELENA

coordenadora do monitoramento eletrônico

RUA GLÓRIA

Samantha Longo

RUA JOANA

RUA MARTA

“QUALQUER TIPO DE CRIME PODERÁ CUMPRIR PENA COM USO DE TORNOZELEIRA ELETRÔNICA QUANDO SE DER A PROGRESSÃO AO REGIME SEMIABERTO, SE O JUIZ DA VEC ENTENDER QUE SEJA POSSÍVEL”

Normalmente, os apenados com tornozeleira devem permanecer dentro de sua residência, das 19 às 7 horas, e podem ficar em seu bairro (raio de 150 metros em torno de sua casa) das 7 às 19 horas.


CRÔNICA

EM CADA CICATRIZ, UMA HISTÓRIA POR PATRICIA HERMES

H

oje tirei uns segundos do meu dia para me observar no espelho. Percebi que algumas rugas surgiram na testa e o cansaço é nítido abaixo dos meus olhos. Usei um pouco de maquiagem para disfarçar, mas havia algo difícil de esconder: uma pequena cicatriz no centro do meu rosto, que desperta imensa saudade do período em que a obtive. Era 1969 e eu vivia em um bairro do interior de Ibarama, no Rio Grande do Sul. As ruas eram silenciosas e a vida tão simples que se tornava impossível imaginar um mundo como o de hoje surgindo em tão pouco tempo. Lembro-me que era quase Natal – porque, no café da manhã, comi as bolachas natalinas que minha mãe fazia. Praticamente tudo o que tínhamos de alimentação era produzido no nosso lar ou na vizinhança. Depois de comer, chamei minhas irmãs para colhermos limões, que mais tarde seriam usados para fazermos picolés. Era um momento raro do ano, pois para prepará-los, precisávamos de uma geladeira funcionando, a qual nosso pai ligava somente perto de datas festivas. Todos os outros dias, ao invés de utilizá-la, conservávamos alguns alimentos na banha, enquanto os demais deveriam ser comidos na hora. Isso acontecia, visto que ainda não possuíamos energia elétrica e a geladeira só funcionava com a queima de querosene, que era um óleo custoso e complicado de obter no local em que vivíamos. Posteriormente, naquele mesmo dia, fui a cavalo até o dentista do bairro. Ir a essas consultas era um pesadelo, pois o dentista precisava pedalar para produzir a energia dos equipamentos, sendo pouco cuidadoso com a maneira que os manuseava na boca do paciente. Após extrair um dente e sair com muita dor, encontrei minha mãe no caminho de casa, lavando as roupas no riacho. Tomei um banho e decidimos voltar para a nossa morada, pois estava anoitecendo e, naquelas circunstâncias, o único ponto de luz ao ar livre vinha da lua. Quando chegamos, minha casa estava lotada de vizinhos e familiares. Todos ansiosos e atônitos para ouvir a novela no antigo rádio do meu pai. No meio da sala, um lampião iluminava silhuetas de pessoas que quase não tendo nem o básico, eram mais felizes

do que muitas que hoje têm tudo, mas sempre encontram do que se queixar. Depois da novela, foi o momento da ceia natalina, com carne de porco e muita cuca. O Papai Noel, que mais tarde descobri, era um vizinho, logo chegou, vestindo um casaco enorme, botas e uma máscara confeccionada por ele mesmo. Na sua mão, além de alguns presentes, segurava uma vara de marmelo para assustar as crianças que se comportaram mal durante o ano. Estava desesperançosa achando que não ganharia presente, até que fui surpreendida com ele chamando meu nome. Quando abri o embrulho, vi que se tratava de uma bolacha grande, em formato de boneca. Ela era linda e eu fiquei tão feliz que saí da sala com alguns amigos e fomos nos divertir na penumbra. Não havia celulares, videogames e nem mesmo o mais simples dos brinquedos. Os que existiam foram criados por nós, caso das poucas bonecas e dos carrinhos. Apesar disso, não faltavam opções para o nosso entretenimento. Subíamos em árvores, tomávamos banhos de rio, tínhamos dezenas de animais. E foi numa dessas brincadeiras que entrei em um estábulo para me esconder. Parei atrás de um dos cavalos mais bravos do meu pai, que me deu um coice. Caí no chão e fiquei lá até que meu irmão me encontrou e me levou para casa, com o nariz aberto quase ao meio. A dor era enorme, mas nunca cheguei a ir ao médico para curar o ferimento. A solução para isso, assim como para conservar os alimentos, era passar banha e depois fazer um curativo. E, como muitos machucados que vieram depois, um dia este se tornou cicatriz. Por fim, essa marca estreita que hoje carrego estampada no rosto criou uma ligação com toda a minha infância, na qual até mesmo os momentos mais banais ou de sofrimento se tornaram extraordinários. Atualmente, a vida não tem o mesmo sentido. Temos quase tudo ao nosso alcance, porém damos muita importância para o pouco que não possuímos. Sinto saudade daquele período, mas ainda assim, não deixo de me entusiasmar pelo presente, pois é ele que vai me proporcionar novas pequenas cicatrizes que recordarão momentos bons no dia de amanhã. 55


MATHEUS HAETINGER

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SÓ CADEIA NÃO RESOLVE Além de punir o agressor com detenção, é preciso instruí-lo para o fim da violência doméstica

POR MATHEUS HAETINGER

E

ra para ser uma manhã tranquila a uma família de agricultores da localidade de Rincão das Casas, no interior de Candelária. Naquela segunda-feira, dia 25 de janeiro de 2016, Carlos*, de 61 anos, acordou por volta das 6 horas, como de costume, para tomar o chimarrão de todas as manhãs, antes de pegar a bicicleta e resolver questões pessoais no centro da cidade – cerca de seis quilômetros da residência que dividia com a esposa e os cinco filhos. Perto das 9 horas, quando estava pronto para sair, Carlos e a esposa Maria Antônia*, de 55 anos, iniciaram aquela que se tornaria a mais dura das corriqueiras discussões dos 42 anos de união. Desavenças entre ele e a mulher, segundo Carlos, eram comuns, mas nenhum desentendimento foi tão desmedido como o daquele 25 de janeiro. Aparentemente com remorso, o marido, hoje preso, conta os detalhes da pavorosa cena, que ainda permanece viva na memória. O episódio iniciou com ofensas proferidas pelos dois lados, fato que, conforme o agricultor, teriam iniciado pela esposa que não queria que ele fosse até o centro sem a companhia dela. Ele conta que ia saindo pela porta em direção ao galpão onde estava a bicicleta, e Maria Antônia o agarrou pela gola da camisa. Sem pensar, Carlos a empurrou. Com o impulso, a esposa trancou o calcanhar em um degrau, caiu e bateu a cabeça no piso. Carlos conta que a mulher, no mesmo instante, sentou-se no sofá. Como acreditou que

nada de mais grave havia acontecido, foi até o galpão e pegou a bicicleta. Percebeu, naquele momento, que não tinha acordado com o “pé direito” e, para piorar, o pneu da bicicleta estava furado. Então, decidiu seguir seu trajeto a pé. Por volta das 15 horas, retornou para casa e encontrou a esposa morta em cima do sofá. “Foi o fim de um relacionamento de 42 anos”, lembra, cabisbaixo, o agricultor. Em toda a entrevista, realizada em uma sala do Presídio Estadual de Candelária, Carlos permanece com as mãos unidas e com os olhos lacrimejando. Revela que inúmeras vezes propôs à esposa o rompimento do relacionamento devido às brigas que se arrastavam por mais de três anos. Mas, conforme recorda Carlos, Maria Antônia tinha um temperamento forte, era agressiva e não media as palavras. Ia embora, mas logo retornava com a expectativa de acerto entre o casal. Embora as discussões fossem frequentes, nunca havia chegado às vias de fato. Até porque o casal, que antes do relacionamento era vizinho, construiu uma família com quatro filhas e um filho de forma pacífica e harmoniosa. “Tudo começou por causa das nossas filhas mais velhas que saíam e levavam as menores junto. Elas saíam e não tinham hora pra voltar. Eu não queria isso, mas a minha esposa apoiava. Por isso, começavam as discussões”, afirma Carlos. Após ver a esposa caída sobre o sofá, Carlos resolveu ir até o Presídio e comunicar o acontecido. Ele foi conduzido, 57


então, à Delegacia de Polícia do município para a lavratura da ocorrência. Os policiais acompanharam o agricultor até a residência e, conforme a perícia, a mulher foi encontrada nua e morta em cima do sofá. Carlos foi preso, julgado e condenado a 12 anos e três meses de reclusão por feminicídio. Além do crime, o agricultor possuía antecedentes por lesão corporal à vítima e a uma das filhas. Do tempo total da pena, o agricultor já cumpriu pouco mais de dois anos. Ele espera sua liberdade quando cumprir

três anos, pois tem trabalhado na cozinha do presídio e apresentado bom comportamento. A cada três dias trabalhados, é diminuído um da pena. Assim, não precisará permanecer mais de uma década dentro da cadeia. Sobre o crime, ele confessa que as coisas poderiam ter sido resolvidas de forma diferente. Reconhece que não deveria ter empurrado a esposa, mas não assume sua culpa sozinho. É o caso da maioria dos homens que agridem mulheres: eles negam e quando assumem, a culpa sempre é da vítima.

ACOLHIMENTO DE AGRESSORES É UMA ALTERNATIVA O caso de Maria Antônia não é isolado e retrata um dos psicóloga, que atende os agressores e outros apenados há três maiores problemas da violência doméstica no Brasil: a reinci- anos, é conseguir um espaço no presídio para realizar grupos de dência e continuação da violência mesmo após a denúncia por terapia, a fim de diminuir os casos de reincidência. “Tendo essa parte da vítima. O agressor já havia batido na esposa e na filha e sala, quero focar no coletivo, pois o resultado de outros lugares voltou a cometer o crime, só que desta vez acabou na morte da onde são realizados esse tipo de iniciativa é positivo”, revela. mulher. Indicadores da violência contra a mulher da Secretaria de Nos atendimentos, Denise procura saber um pouco da Segurança Pública do Rio Grande do Sul revelam que, em 2017, história do agressor, o que a companheira agredida significa 37.946 casos de ameaça foram registrados. Destes, 22.960 foram para ele e como ele vê a esposa. Os três apenados por violência às vias de fato com algum tipo de lesão corporal. doméstica, incluindo Carlos, possuem outros antecedentes. O Os números ainda mostram que 1.661 mulheres foram estu- de 27 anos estudou até a segunda série, não conheceu o pai e pradas no Estado e 83 foram vítimas de em 2015 foi condenado por tentativa de feminicídio. Esses são casos registados na feminicídio por desconfiar que a esposa Delegacia de Polícia, mas muitas agresestava lhe traindo. Pegou pena de nove “EU ACREDITO QUE sões nem chegam ao conhecimento dos anos e quatro meses. O outro detento ATRAVÉS DE UMA órgãos de segurança. Em âmbito nacional, tem 36 anos, estudou até a quinta série e SENSIBILIZAÇÃO E os números são ainda mais assustadores. já foi preso cinco vezes. Foi condenado CONSCIENTIZAÇÃO Conforme o Relógio da Violência, a há quatro anos e dois meses por agressão cada dois segundos uma mulher é vítima à ex-mulher, entre outros crimes, como É POSSÍVEL TENTAR de agressão física ou verbal. Segundo o MINIMIZAR OS CASOS” tráfico de drogas. Mapa da Violência, em 49% dos casos de Embora os três apenados sejam de Denise Ritzel atendimento de crimes contra a mulher, classes sociais baixas, a psicóloga afirma psicóloga acontece repetição da violência e são 405 que a violência está em todas elas - em mulheres que procuram ajuda por dia. Por muitos casos pelo uso de drogas. Um isso, profissionais acreditam que a forma ponto positivo desse aumento nos casos é como o sistema tem lidado com o agressor não está sendo efetiva. que as mulheres estão denunciando mais. “Porém, ainda há muita Para a psicóloga do Presídio Estadual de Candelária, Denise resistência pela fantasia de que ele vai mudar e não fazer mais. A Souza Ritzel, o tratamento de agressores é a principal maneira dependência financeira e psicológica também contribui para a de diminuir os casos de reincidência desse crime. “Eu acredito mulher permanecer com o agressor”, revela Denise. que através de uma sensibilização e conscientização é possível A psicóloga lembra que existe um ditado que fala que em tentar minimizar os casos. O homem que agride tem muito aquela briga de marido e mulher não se mete a colher. Segundo ela, é questão de gênero e de poder. E, fisicamente, o homem é mais preciso meter a colher sim. “É importante fazer esse trabalho forte que a mulher. Então, muitas vezes, em função disso, ele de conscientização. Esse mito precisa ser derrubado, pois temos acaba agredindo a companheira. Por isso, é importante fazer esse que fazer algo para que as estatísticas não continuem a subir. trabalho no sentido de conscientização de gênero. Mostrar que Para Denise, é importante o trabalho com as vítimas e com os as coisas não funcionam assim”, afirma a psicóloga. agressores, pois a violência é um problema social que precisa de Atualmente são três detentos que cumprem pena de violência atenção. Hoje, após a denúncia, acontece apenas o rompimento doméstica no Presídio Estadual de Candelária, de um total de de ciclo de violência com a proteção da vítima e em alguns casos 73 apenados. O atendimento desses três presidiários é feito de mais graves a prisão do acusado. Apesar da eficácia, a Lei Maria forma individual por não ter um espaço físico adequado para da Penha, por si só, não resolve, pois é necessário ir além. É realizar em grupos. “Nos casos de violência doméstica é muito preciso tratar o agressor. positivo o trabalho coletivo, a questão do espelho, dele enxergar nos outros o que também fez”, destaca Denise. Mas a ideia da *Os nomes utilizados nesta reportagem são fictícios. 58


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MATHEUS HAETINGER


FÁBIO GOULART

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MAIS QUE TERAPIA, FILOSOFIA DE VIDA Como o reiki muda a experiência de quem o recebe e de quem trabalha com a prática holística

POR GIOVANA BRASIL e NAIARA SILVEIRA

N

ão dá para ver ou ouvir – muito menos tocar. A energia existente no universo é tão misteriosa quanto intrigante, ainda mais quando utilizada para a cura. É o caso do reiki, uma terapia holística que vem ganhando adeptos em todo o mundo (e também em Santa Cruz do Sul). A teoria é muito simples: a energia vital é canalizada por meio dos reikianos e transferida, com imposição de mãos, buscando o equilíbrio físico, mental, emocional e espiritual daqueles que a recebem. Mas, na prática, são muitos outros os elementos envolvidos. Para quem recebe, o sentimento é de paz. Para quem aplica, a prática é uma filosofia. “Reiki é um estilo de vida, porque a gente aprende a viver o presente”, comenta a reikiana Janaina Staub, que atua como terapeuta holística há dois anos. A visão dela não

é muito diferente da radialista Lilian Roland, que teve o primeiro contato com a prática aos 17 anos. “O reiki significava estar ali naquele momento, me ver, saber se meu corpo e minha mente estavam bem, era um momento para mim.” Apesar de não passar por uma sessão de reiki há pelo menos seis anos, Lilian lembra - e muito bem - da sensação que tinha ao praticar a terapia. Ela comenta que as sessões a ajudavam muito em relação à ansiedade. “Era como se fosse um presente que eu me dava, para eu me sentir bem, cuidar da minha mente. Quando saía do reiki, e também durante a sessão, me sentia leve, parecia que tinha saído um peso do meu corpo, como se tivesse deixado os problemas, as preocupações todas ali”, explica. A radialista, de 30 anos, lembra dos

momentos de paz que vivia através do reiki. Ela conta que a sensação era única. Mesmo praticando ioga e meditação, além de passar por massagens relaxantes, o sentimento proporcionado pelo reiki era singular para Lilian. “Com o reiki, realmente, eu sentia algo diferente, [a sensação] era na hora. Eu adorava. Falando sobre, me dá muita vontade de sair daqui e correr para procurar alguém e voltar a fazer reiki”, brinca. Por mais que tentasse, Lilian diversas vezes classificava como inexplicável a sensação de passar por uma sessão de reiki. E ela não foi a única. Não nos bastava, portanto, ouvir esses relatos. Era preciso viver a experiência. Assim, nós, repórteres dessa matéria, marcamos uma sessão. Na cara ou coroa, a Naiara foi escolhida para passar por ela e sentir. 61


A EXPERIÊNCIA A expectativa era grande. Na tarde fria de segunda-feira, cheguei à clínica onde realizaria a sessão e fui abraçada pelo calor da sala. No pequeno espaço reservado para o reiki, o ar-condicionado marcava 26 graus e a música embalava minha ansiedade. Depois de tanto ouvir histórias sobre o tal relaxamento profundo, era daquilo mesmo que eu precisava: paz. O que mais me assustava era a possibilidade de dormir durante a sessão (o que é, inclusive, muito comum). É claro que eu queria observar tudo e prestar atenção aos mínimos detalhes do que acontecia. O primeiro passo, conduzido pela reikiana Janaina, foi uma meditação guiada. Já deitada e de olhos fechados, fui levada pelas palavras dela até um lugar muito bonito. “Veja as árvores ao teu redor e te sinta segura”, ela falava, com a voz mais calma deste mundo. Vi flores, uma bonita e verde grama,

senti os cheiros da natureza e ouvi os animais. Num riacho, me acalmei ainda mais, deixando que minha ansiedade fosse esquecida para dar lugar a calmaria.

A SENSAÇÃO ERA DE QUE UMA REDE ELÉTRICA PASSAVA PELOS MEUS BRAÇOS, ENQUANTO MINHA TESTA RECEBIA O CALOR DAS MÃOS DA REIKIANA E CANALIZAVA TODAS AQUELAS SENSAÇÕES A cada palavra, sentia meu corpo relaxando mais e mais, até estar totalmente concentrada no momento. Sem

dúvidas, esta primeira etapa permitiu que eu me entregasse à sessão de peito aberto, sem mais receios, dúvidas ou qualquer ceticismo. Eu estava ali para sentir e, somente mais tarde, colocar em palavras todas as sensações. O primeiro toque veio em seguida. Meus cachos caiam pelo travesseiro fino quando ela colocou as mãos em minha cabeça. Uma estranha vibração se alojou ali, como se pequenas ondas estivessem fluindo pela área. Depois de longos minutos, as mãos dela foram para a minha testa. Ali, tudo se intensificou. As ondas ficaram mais fortes e a vibração já não estava restrita a área onde Janaina encostava. A energia passou por meus ombros e foi até as mãos, fazendo-as formigar. A sensação era de que uma rede elétrica passava pelos meus braços, enquanto minha testa recebia o calor das mãos da reikiana e canalizava todas aquelas sensações.

GIOVANA BRASIL

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Depois do rosto, os ouvidos, os ombros, a garganta, o peito, dois ou três pontos na barriga, a perna, o joelho e o pé. Em cada lugar que a reikiana pousava as mãos, eu sentia o peso da energia, diferente em cada etapa. Nos ombros, a sensação de relaxamento. Nos pés, uma vibração forte. A todo momento, a certeza de que jamais havia sentido o que o reiki me proporcionou naquela hora. Os tempos em cada ponto do corpo variaram. É questão de intuição, conforme Janaina. Segundo a reikiana, ela simplesmente sente quando precisa parar de transmitir energia para determinado lugar. Ao deitar de bruços, a pedido da terapeuta holística, novamente a sensação de vibração seguiu as mãos dela em minha cabeça. A música embalava minha respiração e permitia uma conexão diferente comigo mesma. O calor da sala possibilitava aconchego e acolhimento. Meu corpo parecia flutuar e voltar à terra. Admito que foi bem difícil lutar contra a vontade de dormir, ainda mais com os sons que tomavam conta do ambiente. A sessão encerrou com aquela vontade de quero mais, porque eu bem poderia ficar ali até esquecer todos os problemas da vida. Aposto que você se sentiria assim também… Mas, vale ressaltar que cada pessoa passa por uma sessão de reiki de uma forma diferente. O que eu senti durante 50 minutos pode não parecer em nada com o que qualquer outra pessoa sentiria. Acredito que isso se deve ao fato de sermos todos diferentes. A sessão, assim, é um íntimo momento de se conhecer melhor, se entender e, é claro, relaxar.

A ORIGEM O surgimento do reiki tem algumas versões um pouco controvérsias, mas a unanimidade em sua história é que seus primeiros registros ocorreram em meados de 1920, quando o mestre Mikao Usui deu origem ao método. Ele nasceu em 15 de agosto de 1865 na vila de Taniai-Mura, distrito de Yamagata, no Japão. Durante sua vida, estudou vários métodos voltados à saúde através de meditação, exercícios de respiração e em movimento. Com base nestes estudos, Usui resolveu realizar um retiro de 21 dias no Monte Kurama. O processo a que teria recorrido chama-se Shyu Gyo, um severo treino espiritual com base na meditação e no jejum. No início do 21º dia teria sentido repentinamente uma grande energia em torno de sua cabeça, assim recebendo o Reiki Ryoho, termo que originalmente significa “remédio antigo” ou “terapia”. Após experimentar o método em si e na sua família com bons resultados, Usui acabou por compartilhar o conhecimento com outras pessoas. Em abril de 1922

mudou-se para a zona de Harajuku, em Tóquio, onde fundou a Gakkai, escola em que passou a ensinar o método, denominado Usui Reiki Ryoho. Mikao Usui teve muitos alunos, entre eles alguns familiares - que seguiram partilhando os seus ensinamentos após sua morte, em 1926. Com o passar dos anos, a prática do reiki se adaptou a diferentes realidades e costumes, criando “tipos” da terapia, como o karuna, xamânico, tibetano e outros. A base de todas as práticas, no entanto, é o Usui Reiki Ryoho. “O reiki karuna, por exemplo, é praticado no Havaí. Antigos havaianos afirmam que a técnica já era praticada, antes mesmo de Usui”, explica o mestre em reiki Fábio Pimentel. Além de Mikao Usui, o reiki contou com outros mestres para sua disseminação. Os mais conhecidos e citados na literatura sobre o tema são a mestre Hawayo Takata, responsável por trazer a terapia para o Ocidente, e o mestre Chujiro Hayashi.

O SUS O reiki vem ganhando cada vez mais espaço, inclusive na medicina tradicional. Com isso, algumas casas de saúde já oferecem o tratamento holístico - outros, implantarão logo logo. Isso só é possível porque a terapia foi agregada como uma Prática Integrativa e Complementar (PIC) no Sistema Único de Saúde (SUS). A portaria do Ministério da Saúde foi publicada no Diário Oficial da União em janeiro deste ano. No Posto de Saúde Central de Vera Cruz, o atendimento é disponibilizado desde o início do ano. A marcação pode ser feita por encaminhamento médico ou espontaneamente, com agendamento

na recepção do posto. Segundo a secretária de saúde de Vera Cruz, Liseana Palma Flores, a terapia foi implantada no município na procura de um cuidado relacionado à transformação para uma vida mais saudável, sem foco na medicalização. “Buscamos saúde para as pessoas através de uma vida mais natural.” Em Santa Cruz do Sul, a prática ainda não é oferecida nas instituições do município. Entretanto, de acordo com a assessoria de comunicação do Hospital Ana Nery, já é realizado o planejamento da disponibilização da terapia, pelo SUS, no local.

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OS MESTRES Se para as pessoas que recebem o reiki a terapia significa paz, os mestres a classificam como uma filosofia de vida. “Reiki significa tudo para mim. Existe uma vida antes e depois. É consciência, tuas opções na vida começam a ser mais objetivas. Reiki é uma caminhada, um processo de repensar a tua vida”, explica o mestre Fábio Pimentel, que conheceu a terapia em 1992. Já o despertar da mestre Adriane Rohde aconteceu em 2014, quando realizou os primeiros cursos da terapia. “Vi que estava encontrando o caminho no qual meu coração batia mais forte. Senti o chamado”, comenta ela. “O reiki mudou a minha vida no sentido de autoconhecimento, de equilíbrio”, complementa. Há pelo menos 20 anos Fábio trabalha com reiki. Ao se tornar mestre, pode começar a passar os conhecimentos da terapia holística para outras pessoas através da iniciação. Este processo ocorre no primeiro curso da terapia, quando são apresentados aos reikianos os símbolos do reiki, seus significados e aplicações. “Os símbolos do reiki são concentradores de energia. São sagrados e devem ser usados com seriedade”, explica o mestre Fábio. A mestre Adriane concorda. Para ela, o problema da exposição dos símbolos é a falta de conhecimento sobre eles, por isso é importante não os exibir e saber para que eles funcionam. Do contrário, ao invés de fazer bem, podem fazer mal. “Esses sete símbolos sagrados acessam a energia”, comenta. Apesar de ainda não ser mestre, a reikiana Janaina entende bem a sensação de despertar para o reiki. Durante nossa conversa, na clínica onde aplica a terapia, lembra da sua realidade antes da prática. “Eu era muito rebelde!” Foi através do mestre Fábio, também professor, que foi iniciada no reiki. “Todos recebem o chamado, mas nem todos atendem. Depende do quanto você está preparado para isso”, relata. Para a reikiana, a prática significa o encontro de paz. “Minha vida faz mais sentido, tenho mais vontade de viver”, conta, 64

com os olhos brilhando. As atitudes do mestre Fábio também foram repensadas depois dos primeiros contatos com o reiki. Ele conta que, desde 1989, não usa mais remédios de farmácia, da medicina tradicional. “Nosso corpo é muito perfeito, mas nossas escolhas de hábitos de vida causam as doenças. Quando tu é um reikiano, as tuas escolhas são fundamentadas em outras crenças, outras bases. E tudo na vida é escolha.” Tanto os mestres Fábio e Adriane quanto a reikiana Janaina têm este ponto em comum: escolheram o reiki

“NOSSO CORPO É MUITO PERFEITO, MAS NOSSAS ESCOLHAS DE HÁBITOS DE VIDA CAUSAM DOENÇAS. QUANDO TU É UM REIKIANO, AS TUAS ESCOLHAS SÃO FUNDAMENTADAS EM OUTRAS CRENÇAS, OUTRAS BASES. E TUDO NA VIDA É ESCOLHA”

Fábio Pimentel mestre reikiano

como um estilo de vida. Mas, os três tiveram que dar o primeiro passo nessa caminhada, que é o módulo I do curso de reiki. Neste curso, os alunos são iniciados (por mestres) na prática da terapia, se tornando reikianos. Já no primeiro módulo, os recém iniciados aprendem os aspectos físicos na aplicação com reiki. É também trabalhado o aspecto pessoal da ligação daquela pessoa com o reiki. “No primeiro nível [do curso] vamos limpar esse canal, se trabalhar”, explica a mestre Adriane. Neste módulo, os reikianos aprendem a bloquear

a absorção de energia do próximo, garantido a possibilidade dos atendimentos. “Somos um canal de energia, não transferimos a nossa energia e nem vamos absorver a energia do outro”, comenta a reikiana Janaina. É neste momento também que os reikianos são apresentados aos símbolos sagrados, que são desenhos. No total, eles são sete, mas apresentados aos iniciados progressivamente, por módulos do curso. Desta forma, os mestres são os únicos com acesso aos sete símbolos. Cada um deles têm um significado dentro do reiki, que variam desde proteção até cura. Já no módulo II, os reikianos “aplicam os símbolos na prática, ampliando o poder de cura”, conforme o mestre Fábio. “A frequência energética do reiki atua sobre emoção, medos, traumas e perturbações emocionais.” Neste nível, por exemplo, os alunos aprendem a realizar uma limpeza energética nos ambientes, como uma espécie de purificação da área. Esta limpeza, inclusive, é realizada nos locais onde a sessão de reiki será aplicada. De acordo com Fábio, entre os níveis I e II, é necessário aguardar o período de seis meses. Já para iniciar o módulo III, é necessário esperar um ano do término do nível anterior. No terceiro e último nível antes do mestrado, os reikianos trabalham a espiritualidade. “São questões mais amplas. No nível III, tem a adição de mais dois símbolos, ampliando ainda mais a potência de cura”, ressalta o mestre. Para aqueles que desejam aprofundar mais intensamente o estudo, o passo seguinte é a realização do mestrado, que possibilita ao reikiano a realização da iniciação de outras pessoas na prática. Todos os módulos podem ser encontrados em Santa Cruz do Sul. O tempo de duração dos níveis I, II e III pode variar, de acordo com o mestre responsável pelo curso. A média, no entanto, é de um fim de semana por módulo.


“O REIKI MUDOU A MINHA VIDA NO SENTIDO DE AUTOCONHECIMENTO, DE EQUILÍBRIO”

Adriane Rohde Mestre reikiana

FOTOS: GIOVANA BRASIL

“REIKI É UMA CAMINHADA, UM PROCESSO DE REPENSAR A TUA VIDA”

Fábio Pimentel Mestre reikiano

“COM O REIKI, REALMENTE, EU SENTIA ALGO DIFERENTE, [A SENSAÇÃO] ERA NA HORA.”

Lilian Roland Radialista

“MINHA VIDA FAZ MAIS SENTIDO, TENHO MAIS VONTADE DE VIVER”

Janaina Staub

Reikiana

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GIOVANA BRASIL

DE MÃE PARA FILHA “Acho que fiz reiki desde que era criança, porque minha mãe e minha avó sempre realizavam essas terapias holísticas”, brincou a fisioterapeuta Daniela Antonio, logo que começamos a conversar. Na sala da clínica da qual ela é proprietária, aguardávamos a mãe de Daniela, Teresinha Imelda da Cas Antonio, enquanto comentávamos sobre as primeiras experiências da fisioterapeuta com a prática. Divertida, ela conta que a mãe a carregava para as sessões de ioga porque não tinha onde deixá-la, aos oito anos de idade. E a dona Teresinha não nega. Em meio aos risos da conversa de mãe e filha, as duas concordam na definição: “O reiki é um relaxamento e uma conexão com o cosmos, uma conexão de energias boas”, diz Teresinha. A filha logo emenda. “A sensação é de que equilibra as energias. Uma percepção 66

do teu próprio corpo e da energia que flui por ele. Parece que a sessão te leva para outra dimensão, como se pequenas coisas deixassem de te incomodar.” Apesar de concordarem em alguns pontos, elas discordam em outros como muitas mães e filhas. Enquanto Daniela realiza uma sessão de reiki a cada semana (considerando-se ansiosa), Teresinha acha mais do que suficiente uma vez por mês. Mas, Teresinha admite, sem pestanejar, a ansiedade pela sessão. “Fico esperando pelo dia de vir!” A mãe também não descarta um futuro estudo do reiki, mas reconhece que este passo demandaria mais dedicação do que ela está disposta a empenhar hoje. “Talvez mais adiante”, comenta, entre risos. Enquanto este momento não chega, as duas mencionam os benefícios que encontram ao receber o reiki. Dormir melhor, saber lidar com

as situações do dia a dia e a diminuição do estresse são alguns citados pela dupla. “É uma questão de serenidade. Tu te conecta contigo mesmo naquele momento”, diz Daniela. “Mesmo tu não sentido, muda percepções da vida, vai tendo atitudes diferentes depois do reiki. É uma introspecção, né?”, complementa a mãe. Tanto Daniela quanto Teresinha acreditam que o reiki é um tratamento que não acontece de uma hora para a outra: necessita de tempo e de evolução. “Tu tem que ir fazendo, para as coisas irem acontecendo. Quanto mais tu faz, mais espiritualizada tu fica, dando mais valor para as coisas que têm valor. Tu sai [da sessão] mais leve, tira as tensões, as preocupações. O reiki tem um poder de transmutação das energias ruins para boas”, conclui Teresinha.


OS CHACRAS Durante uma sessão, o terapeuta holístico irá concentrar a energia em diversos pontos do corpo de quem recebe o reiki. Esses pontos são chamados de chacras. “Os chacras são canais de absorção de energia”, comenta o mestre Fábio. Apesar de existir cerca de 400 chacras no corpo humano, conforme o mestre Fábio, há sete principais - que são mais especialmente tratados no reiki atualmente. No início da prática, no entanto, o mestre Mikao Usui aplicava o reiki em qualquer área do corpo - o que ainda pode ser feito. “Pode-se guiar pela intuição, tratar um ponto de dor ou seguir a aplicação dos chacras.” “Chacra é uma prática da medicina ayurveda, indiana, e Mikao Usui

era japonês. A aplicação do reiki nos chacras foi uma adaptação posterior [à criação]. Entretanto, não se sabe ao certo quando e nem quem incorporou os chacras ao reiki. No entanto, a terapia passou a ser conhecida no Ocidente nos anos 70, quando o pessoal da Federação Internacional do Reiki decidiu universalizar a prática”, explica o mestre Fábio. O primeiro e o sétimo chacra são ímpares; os demais, são trabalhados na parte da frente e de trás do corpo. “Quando aplicado nas costas, o reiki trabalha a tua ação na vida. Na frente, trabalha a tua percepção. Uma coisa é o perceber, outra é fazer”, observa. Cada um deles está ligado a glândulas hormonais do corpo humano.

1. Na região pélvica Relacionado aos testículos e ovários 2. Abaixo do umbigo Trabalha órgãos como pâncreas e intestino 3. No plexo solar Além de funcionar na área dos rins, este chacra está ligado à glândula suprarrenal, responsável pela adrenalina. Assim, trabalha medos e ansiedade 4. Coronário Atua no coração e potencializa o sistema imunológico 5. Garganta Trabalha comunicação e expressão 6. No centro da testa Atua em autoconhecimento e questões mentais 7. Chacra espiritual Trabalha a conexão superior

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