JORNAL EXPERIMENTAL DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UNISC - SANTA CRUZ DO SUL VOLUME 26 nº 1 JUNHO/2015
estradas
Editorial Trajeto de transformação Mais do que uma estrutura pavimentada com asfalto, a estrada pode incitar inúmeros significados. Desta forma a grande pergunta que balizou os primeiros encontros da disciplina foi a que mais desacomodou: o que a estrada significa para você? Aliás, existe uma definição única e tangível para tal termo? Entre as repostas encontradas em aula, ênfase para a estrada como um não lugar, como um lugar de passagem, como um trajeto de transformação. Foi a partir destas reflexões que a equipe de aspirantes a repórteres se desafiou a retratar histórias que envolvem drama, comédia, dor, sucesso, aventura. Elementos que compõem aquilo que chamamos de vida. Impossível se esquecer do skatista viajante, dos roqueiros good trip e daqueles que correm a BR para salvar vidas. Vamos sentir saudades das conversas com as fontes ou mesmo das horas dedicadas à escrita de um texto fiel àquilo que vimos, ouvimos e, então, reportamos. A certeza que fica é que a execução desta edição transcendeu as barreiras do apenas “fazer” um jornal laboratório para alcançar o sentido que cercou as conversas no início deste desafio. Se a estrada transforma quem por ela passa, o Unicom evolui quem nele se debruça. E é com a sensação de dever cumprido, que desejamos uma leitura suave e, sobretudo, inspiradora.
Quem é o leitor de nosso jornal?
Seguindo o caminho dos alunos do semestre passado, decidimos desenvolver uma pesquisa de opinião sobre o Jornal Unicom. Ao total, foram 148 participações. Constatamos que a maioria foi constituída por mulheres. A idade de grande parte dos participantes variou de 18 a 25 anos.
UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 - Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - CEP 96815-900
Curso de Comunicação Social - Jornalismo Bloco 15 Sala 1506 Telefone: (51) 3717-7383 Coordenador do Curso: Hélio Etges
Houve a maciça participação dos alunos do Curso de Comunicação, porém, responderam ao questionário, alunos de vários outros cursos, dentre eles Direito, Administração e Psicologia. Do percentual de 100%, 79% tem o hábito de ler jornais e 51% conhecem o Jornal Uni-
com. Dentre os que leem o jornal, a maioria o faz por meio da edição impressa. Estes resultados nortearam nossa produção. O resultado da pesquisa também está disponível em nosso blog (blogdounicom.blogspot.com. br). Agradecemos todas as participações!
Impressão Grafocem
Blog: blogdounicom.blogspot.com Fanpage: facebook.com/unicom2014
Tiragem 500 exemplares Capa Fábio Goulart
Este Jornal foi produzido na disciplina de Produção em Mídia Impressa, ministrada pelo professor Demétrio de Azeredo Soster. Colaboração dos alunos da disciplina de Jornalismo Impresso II e demais acadêmicos do Curso de Comunicação Social, que escreveram textos opinativos.
Contracapa Fábio Goulart
Volume 26 - n° 1 - Junho/2015 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
Expediente
Quem são os que fazem o Unicom? Confira abaixo as pessoas que, juntas, dão conta do nosso jornal-laboratório. JORNAL UNICOM 03
Amanda Risso
Reporter e editora de multimídia
Felipe Kroth
Repórter e editor de multimídia
Julianne Wagner
Cleonice Goerck
Repórter e produtora
Francieli Graff
Repórter e produtora
Maíra Farinon
Demétrio Soster
Eduardo Finkler
Editor-chefe
Repórter e editor de fotografia
Frederico Silva
Guilherme Graeff
Repórter e editor gráfico
Mateus Souza
Repórter e editor
Natany Borges
Repórter
Repórter e produtora
Repórter e revisor
Repórter e sub-editora
Paola Severo
Roberta Kipper Repórter e produtora
Rodrigo Kampf
Suilan Conrado
Repórter
Repórter e revisor
Repórter
EDUARDO/ DIVULGAÇÃO
Vendas sobre rodas
Regina Hollmann, assim como muitos brasileiros, optou por ter um negócio ambulante: uma boutique móvel CLEONICE GOERCK REPORTAGEM
Em 2011, Regina Hollmann seguia o caminho tranquilo de sua carreira profissional, trabalhando em uma rede de assistência médica em Santa Maria, e como forma de complementar a renda, nas horas vagas, vendia roupas para as amigas, atendendo em suas casas. Assim como numa viagem, o destino parecia traçado. Até o dia em que, ao ler o jornal, se deparou com algo inusitado, mas interessante: uma loja itinerante de sapatos. Regina então pensou: se com sapatos estava dando certo, por que não daria também com roupas? Ela, então, traçava um novo rumo em seu caminho. Decidida a investir neste segmento, pois a venda de roupas de forma ambulante ia bem, Regina contou com a ajuda do marido. Juntos, fizeram pesquisas e descobriram mais detalhes sobre o assunto, procuraram saber das pessoas que antes deles já haviam tido essa ideia, como funcionava e como desenvolveriam o empreendimento. Descobriram então, que São Paulo e Curitiba já contavam com as denominadas Boutiques Móveis. Aí não houve mais dúvidas, o empreendimento seria o novo caminho deles! Escolher a van foi fácil. Encontraram uma espaçosa e que acomodaria tranquila-
mente as roupas e um provador, onde as clientes poderiam ficar em pé, sem desconforto. Aí foi a vez dos móveis. Regina contou com a colaboração de um ex-colega de trabalho, que fazia móveis para ambulâncias, para desenvolver o interior da van e adaptá-lo ao seu estilo e a sua necessidade. Quanto às roupas, os fornecedores também já eram conhecidos, porém muitos não gostaram da ideia de Boutique Móvel e não permitiram que Regina comercializasse sua marca. Com a Boutique pronta, era hora de apresentar para os familiares e amigos. A reação foi unânime: surpresa! Muitos afirmaram ser algo de outro mundo, já as antigas clientes de Regina não titubearam e mantiveram-se fiéis. Pronto! A Boutique Móvel Regina Hollmann já dava seus primeiros passos, ou melhor, já andava seus primeiros quilômetros! Em 2014, Regina percebeu que poderia expandir seu trajeto, que até então ficava restrito a Santa Maria. E devido a divulgação boca-a-boca e nas redes sociais, ela decidiu atender também as cidades de Santa Cruz do Sul e Lajeado, bem como sua cidade natal Teutônia. Regina conta que ficou surpresa com a receptividade que teve em Santa Cruz, onde
muitas pessoas a procuravam depois de cruzar com a Boutique circulando pela cidade. Procura essa que, por exemplo, em Santa Maria não era notada por Regina. Apesar de não poder estacionar sua van em frente a pontos de comércio ou praças, o horário diferenciado e o atendimento exclusivo direto na casa das clientes ainda faziam a diferença. Atender grupos de amigas era comum para Regina. Além de negócio, os encontros também significavam lazer e divertimento. As clientes, além de terem a loja em frente à sua casa, também contavam com as dicas de moda de Regina, que montava looks como sugestão para as clientes, baseando-se em dicas de famosas e celebridades da moda nas redes sociais, bem como em seu conhecimento adquirido em um curso feito alguns anos atrás em Balneário Camboriú. A metade final do ano sempre tinha os maiores índices de venda, com destaque para os meses de novembro e dezembro como os mais movimentados. Em 2015, o caminho de Regina tomou outro rumo. A van segue sua entrada, porém em outras mãos no volante. Já Regina decidiu abrir uma loja física, com endereço fixo, em Santa Cruz do Sul, para conseguir atender mais clientes em um só
dia, assim como aguardar por clientes mais tímidas, que temiam contatá-la antes com a Boutique receosas de que teriam de comprar algo caso a chamassem para suas casas. Assim como as viagens, os negócios costumam ter um rumo certo, até encontrarem um cruzamento pelo caminho.
Como todas as novidades, sempre existe um entrave à rápida aceitação por parte dos clientes e consumidores. Normalmente, iniciar um empreendimento é acreditar no seu negócio. No entanto, é também ter a certeza de que enfrentará resistência ou desconfiança do mercado no qual irá entrar. No mercado de Boutiques itinerantes ou móveis, isso não é diferente. O receio, a desconfiança tanto de clientes como fornecedores, já ficou evidente nos depoimentos de Regina Hollmann que teve esse iniciativa aqui em Santa Cruz do Sul. Contudo, essas “sacadas” no mundo dos negócios podem resultar em grande sucesso. Um exemplo desse merca-
encontramos também os food trucks, que hoje fazem sucesso no mundo. Para ambos os mercados de atuação, os veículos necessitam ser adaptados. Segundo dados do Sebrae-SP, essas adaptações custam entre R$ 12 mil e R$ 200 mil, dependendo do tamanho dos veículos e da complexidade do que necessitam os empreendedores. Mesmo com o aquecimento do mercado itinerante, os empreendedores, assim como Regina, ainda batem de frente com uma legislação que não é nada específica em relação a esse modo de atuação e que muitas vezes dificulta as vendas e a prosperidade do negócio. Na opinião retirada do caderno Encontro do Jornal Uai, o consultor e administrador da página do Facebook “Food Truck Brasil”, Josias Reis, que vivenciou os food trucks quando morava em Nova York e está envolvido no movimento em São Paulo e em Minas, a tendência é o fortalecimento com o interesse de outros empreendedores. “Rio, Curitiba, Brasília e Recife estão se mobilizando também”, diz. Na capital paulista, o movimento para legalizar as vans
e caminhões começou logo depois que os primeiros apareceram nas ruas e em espaços privados. Em Belo Horizonte, o grupo de empreendedores preferiu procurar integrantes do Legislativo, abordando os vereadores na intenção de estrear dentro da lei. Em Santa Cruz do Sul, de acordo com Regina, não existe nenhuma legislação específica. Basta ter posse da nota fiscal de transporte dos produtos para então fazer o atendimento de porta a porta, sem problema algum. O food truck já é uma realidade nos Estados Unidos, na Europa, e não adianta querermos não enxergar o que é visível, é uma tendência mundial. Agora, para esses novos empresários resta trabalhar da maneira que a lei permite hoje e continuar o processo em busca da ampliação da legislação para que cada dia mais seja possível apreciar o crescimento de mais um modo de trabalho que pode suprir as necessidades tanto de quem precisa de uma fonte de renda, como de quem precisa de uma facilidade a mais para encontrar e comprar o que precisa.
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Novidade entre sucesso e a desconfiança
do de sucesso atualmente é a franquia Boutique de Rua, que nasceu da venda porta a porta. Para atender às necessidades das consumidoras, adaptaram uma van para torná-la uma Boutique com provador e todos os equipamentos e conforto de uma loja tradicional. O negócio deu tão certo que os proprietários partiram para a expansão e decidiram entrar no mundo do franchising. Sob o formato de franquia de licenciamento de marca, passaram a auxiliar novos empreendedores com seu conhecimento e dando a oportunidade de iniciarem seu negócio com uma marca já consolida e com uma base para não terem de encarar as mesmas dificuldades que os criadores tiveram no desenvolvimento desse projeto. Além das franquias, criaram em parceria com a CN Auto, a Boutique de Rua Transformações tem como objetivo transformar vans em lojas móveis para qualquer tipo de negócio, não só para o comércio de roupas. Talvez Regina Hollmann não saiba, mas o mercado de que faz parte é ainda maior. Nele, além das lojas móveis,
EDUARDO/ DIVULGAÇÃO
MATEUS SOUZA
O motorista que forma estudantes Felipe Franja faz muito mais do que conduzir um ônibus de uma cidade para outra MATEUS SOUZA REPORTAGEM
A fria madrugada de segunda-feira se aproxima do fim. O silêncio absoluto na casa de Alvair Felipe Alberto é substituído pelo som contínuo do despertador. E depois por um tradicional barulho de soco no celular, interrompendo aquela música irritante. Já são 4h40. O dia começou cedo para Alvair. Que é pouco conhecido pelo seu nome. Seus amigos e parentes simplesmente o chamam de “Franja”, mais um entre tantos outros cidadãos que ganham a vida acordando cedo. Morador da localidade de Ferreira, no interior de Cachoeira do Sul, Franja se
desloca de carro até seu local de trabalho. Por volta das 5h20, ele chega na Viação União Santa Cruz, no centro da cidade. Sua profissão está registrada na carteira de trabalho: ele atua como motorista há 22 anos. Mas sua função é muito mais do que transportar passageiros de um município para outro. Franja também é um ouvinte. Está sempre disposto a ouvir histórias. E também é um conselheiro, um amigo. Dentro de sua profissão, a tarefa mais destacada de Franja é de conduzir um dos ônibus que levam estudantes cachoeirenses para Santa Cruz do Sul, 92 quilômetros distante
do ponto de partida. Aliás, foram alguns dos universitários que lhe deram o famoso apelido. “Isso foi logo quando comecei a trabalhar na empresa. Alguns estudantes não sabem o nome dos motoristas e lhe dão apelidos. E comigo foi assim. Me chamavam de Franja. Mas se perguntar o meu nome para eles, nem vão saber”, brinca. São 5h40. É hora de Franja conduzir um dos ônibus pela cidade. Uma rápida passagem pela Estação Rodoviária, pelos bairros e centro antes de pegar a estrada. No caminho, dezenas de estudantes embarcam. E interagem com ele. Alguns se queixam do
final. Durante o percurso, a maioria prefere dormir. Outros aproveitam o tempo livre para ler e estudar. Há também quem prefere curtir a viagem ouvindo uma boa música. E os que conversam, às vezes até gritando. Franja parece nem se importar. Para ele o que mais importa é levar aqueles estudantes até a universidade, onde cada um estará trilhando o seu caminho no futuro. No meio do caminho, sempre aparece alguém para conversar com Franja, que nunca ignora. Assuntos brotam. Desde o clima, passando pela rodada de final de semana do futebol local. “Nós acabamos criando esse vínculo de amizade graças à essa vivência. Pelo convívio, eu diria que é como se fosse uma família para mim. Eles estão ali para estudar e se preparando para exercer futuramente suas profissões”, analisa o motorista. O rótulo de “amigo dos estudantes” pode ser
considerado justo para quem já transportou pelo menos mil alunos. Mas nem tudo foram flores nessa trajetória. Franja já teve um desentendimento com uma passageira. Mas para tudo, uma boa conversa resolve. “Eu lembro que ela estava sempre irritada. Não se enturmava com ninguém e ainda reclamava da conversa dos outros passageiros. Um dia eu falei que ela precisava se endireitar”, contou. De fato, algum tempo depois, ela parecia outra pessoa. “Não sei se foi por minha causa, mas com certeza ela mudou”, completou. Histórias não faltam para contar. Franja se lembra com muito carinho de um passageiro. Um senhor que fazia e vendia pulseirinhas na Praça Borges de Medeiros, a popular Praça da Caixa D’ Água. Humilde, ele lutou e conseguiu uma bolsa de estudos na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Um grupo de estudantes chegou, inclusive, a doar
roupas para que ele pudesse viajar e estudar. “Infelizmente ele acabou desistindo. Não sei exatamente por que”, lembra Franja. Durante a manhã, enquanto os alunos dedicam-se às suas aulas, Franja conduz o ônibus até a garagem da empresa em Santa Cruz, que fica próximo a Estação Rodoviária. Lá fica até a hora da viagem de volta, quando retorna para buscar os estudantes. “Gosto dessa interação. Sempre tem uma turminha que fica fazendo brincadeiras comigo. Sempre levo na esportiva e também entro no clima da brincadeira. Tem que se adaptar conforme a turma”. Franja não sabe até quando seguirá com essa rotina. Apesar do longo tempo de profissão, ele tem apenas 44 anos. Certamente, seguirá por mais alguns anos nas estradas. E quem sabe transportando mais mil estudantes daqui para frente.
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sono. Outros reclamam de eventuais atrasos do ônibus. E também há quem simplesmente dá o seu “bom dia” para Franja, que educadamente responde. É nessas interações que é possível perceber o tamanho da importância do motorista. Franja ingressou na empresa em 2000. Entre 2008 e 2012, afastou-se da empresa para trabalhar na Prefeitura de Cachoeira do Sul – ele concorreu a vereador nestes dois anos, e terminou como suplente de seu partido na segunda tentativa. Retornou em 2014. E pretende continuar por muito tempo. Nos bancos dos ônibus conduzidos por ele, já passaram muitos estudantes. Alguns hoje já são graduados, pós-graduados. Até mestres. Se bobear, talvez tenham até doutores. A viagem de Cachoeira até Santa Cruz não é longa. No meio do caminho, na pacata cidade de Novo Cabrais, mais estudantes estão à espera do ônibus para o destino
MATEUS SOUZA
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JULIANNE WAGNER
Para além do horizonte Deve haver um lugar para seu Imério sonhar e encontrar a felicidade, com certeza JULIANNE WAGNER REPORTAGEM
Fortaleza dos Valos carrega no nome a luta dos índios para demarcarem as suas terras. A cidade simboliza, ainda, um movimento liderado por um jovem que despiu a batina – antes mesmo de colocá-la – para emancipar o município que antes era um distrito de Cruz Alta. Os mais irônicos, porém, diriam que a escolha da denominação representa uma sina, visto que “valo” significa “buraco”, e esta última palavra pode ser interpretada como “fim de mundo”. “Onde fica Fortaleza?”, você pode questionar. “Lá ‘onde Judas perdeu as botas’” seria uma das respostas possíveis. A passagem dos anos e a evolução dos meios empregados para a divisa das propriedades, no entanto, não mudam o fato de a cidade, localizada no Noroeste do Rio Grande do Sul, ser de difícil acesso. Ônibus de linha não transita no município. Os mais aventureiros devem se deslocar até Cruz Alta e, então, embarcarem no “Expresso Fortaleza”. Outra opção é solicitar ao motorista a parada na fazenda Santo Antônio da Palma. O local está longe de ser uma rodoviária: não possui segurança
e muito menos meios para higiene pessoal, como banheiros. Mas a fazenda pode ser, sim, sinônimo de comodidade, se analisarmos que o viajante vai economizar dinheiro - já que seguir até Cruz Alta encarece a passagem - e ganhar tempo. Ou seja, temos um leque limitado de opções para chegar a Fortaleza dos Valos. Contudo, analisar a cidade apenas como uma extensão territorial, desprovida de valor histórico, é uma afronta aos cerca de 4,6 mil habitantes que, em sua maioria, são descendentes de italianos e se orgulham de pronunciar sobrenomes como Stefanello, Rubin, Cancian, entre tantos outros. Um desrespeito ainda maior com o “quase padre” que hoje já não é jovem, mas mantém o espírito inovador. Aos 75 anos, Imério Rossato já viajou para 19 países. Com um pé na política e outro na agricultura, o senhor de voz grave e gestos calculados vê na cidade um paraíso particular, onde o silêncio predomina nas vastas plantações de soja capazes de tocar o céu. “Sempre quando eu viajo, ao retornar (para casa) eu digo: Fortaleza
dos Valos é um dos melhores lugares do mundo para se viver. Aqui nós temos clima, solo, educação, cultura, topografia”, descreve. Com uma população dividida quase que milimetricamente entre campo e cidade, Fortaleza dos Valos ostenta as ruas largas e limpas, resultado de uma população reduzida e de uma cultura que valoriza a conservação do patrimônio público. O cuidado com a estética pode ser percebido tanto na vestimenta dos fortalezenses quanto na arquitetura das casas, que têm como proprietárias pessoas que não abrem mão do conforto, às vezes até em excesso. Quem é cria do Vale do Rio Pardo se perde na imensidão de Fortaleza dos Valos. Em Candelária, por exemplo, a paisagem tomada por morros dá a impressão de que o mundo não é tão grande quanto parece, e que chegar ao Japão – quem sabe até cavando um buraco no chão, por que não? – é tarefa simples. Em Fortaleza, em contrapartida, o horizonte é intocável, e os significados de perto e longe se confundem. Sem falar nos pensamentos,
nova – a cidade tem 33 anos – e pequena. “Um lugar pequeno, fora de rota. Fortaleza é o fim da linha. A barragem do Passo Real impede a ligação com Espumoso, Júlio de Castilhos, e outros municípios vizinhos”. Embora aposentado, Rossato é sócio de um dos filhos nas plantações de soja, aveia e milho. Também aposta na criação de 80 vacas leiteiras. “Eu visito as propriedades, acompanho (as atividades), dou sugestões. Na colheita de soja, daí sim, eu fico direto na lavoura, eu vou buscar peças, eu levo almoço para os funcionários na lavoura. Às vezes, até acontece de eu substituir um funcionário para ele almoçar”, conta. Os aproximados 650 hectares de lavoura dos quais Rossato é sócio-proprietário, o equivalente a 650 campos de futebol, não são o suficiente para guardar a sua história de vida. Sentado em uma confortável cadeira na varanda de casa, Rossato mostra uma memória invejável, com direito a relembrar fatos ocorridos e falas pronunciadas há, no mínimo, 30 anos. A varanda, espectadora da nossa conversa, é cercada por vidros, que permitem a Rossato ter uma visão privilegiada de parte da cidade. Quando questionado sobre o início de sua relação com Fortaleza dos Valos, o olhar de Rossato contempla o horizonte e, ao longe, parece avistar os genitores desembarcando no município, isso lá em meados de 1938, época em que a cidade pertencia a Cruz Alta. Naturais de Nova Palma, os pais de Rossato deixaram o legado de trazer ao mundo o homem que emancipou Fortaleza dos Valos para, logo após, comandá-la por 10 anos (contando o
primeiro e segundo mandatos). “Quem nasceu depois da emancipação não tem uma clara noção das batalhas travadas pelos moradores mais antigos”, avalia. Tão logo os pais colocaram os pés em Fortaleza, Rossato veio ao mundo, ao seu paraíso particular. O seu destino sempre esteve ligado ao da cidade, que hoje pode ser considerada o sexto filho de Rossato. Religião e agricultura são apenas dois dos outros caminhos que se desenharam na estrada da vida de Rossato, tão longa quanto a estrada que ficou famosa na voz da dupla Milionário e José Rico (in memorian). “A minha história é um pouco engraçada”, diz, antes de sintetizar os momentos eleitos como mais marcantes. “Aos oito anos, em 1948, eu fui para o seminário de Ivorá estudar para padre”, faz uma pausa para explicar que os pais eram extremamente religiosos, tanto que grande parte dos 11 irmãos é padre. “Fiquei quatro anos em Ivorá e, depois, fui para Santa Maria. Lá, no seminário Menor São José, fiquei mais quatro anos. Daí, desisti de ser padre”, conta com um sorriso de canto de boca, ainda envergonhado por ter abandonado a vida escolhida pelos pais. “Desisti e, aos 16 anos, vim para a lavoura, onde permaneço até hoje. Só que o meu pai e minha mãe nunca engoliram o fato de eu desistir de ser padre, pois eles eram pessoas muito religiosas”, lembra. A história relatada a pouco por Rossato (relacionada à religiosidade) também chegou aos ouvidos de Dom Paulo Moretto, bispo da Diocese de Cruz Alta na data do casamento de seu Imério e dona Anira Giuliani Rossato, 71
anos. “Dom Paulo me disse, então, que eu poderia trabalhar como leigo, o que era permitido pela reforma do Concílio Vaticano II. Daí, eu me dediquei muito ao trabalho na paróquia de Fortaleza. Eu fui ministro da eucaristia, catequista, coordenador da pastoral. Eu só não fazia casamento, confissão, crisma e batismo”. Seu Imério interrompe o mergulho em águas do passado para dizer que a história é longa, mas que os feitos orgulham o eterno mandatário. Pai de cinco filhos – dois homens e três mulheres – ele lamenta o período que se ausentou da família para se voltar à política. “Hoje, olhando pra trás, me sinto, sim, tranquilo. Graças a Deus eu acho que fiz uma coisa boa para a minha localidade”. Experiências individuais e coletivas. Compartilhamento de significados. “Marcas individuais que transformam rastros em um texto único que cada sujeito escreve na cidade”, segundo o historiado Michel de Certeau. O texto sobre Imério Rossato e Fortaleza dos Valos não poderia ter um ponto final diferente. Entre lágrimas que tenta conter, ele afirma que já fez um pacto com a morte: ela o levará em sua residência. “Aqui criei todos os meus filhos (cinco, ao todo)”. O texto, entretanto, ainda terá muitos parágrafos, pois seu Imério diz que quer alcançar a marca dos 85. “Os médicos receitam e dizem que a gente não deve morrer no hospital, a gente deveria morrer na cama da gente, na casa da gente”. Sua casa, sua gente e sua família. Todas inseridas na sua cidade. O ponto inicial e final do seu texto.
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que permanecem na atmosfera como uma nuvem de ideias que, a qualquer momento, pode retornar ao solo em forma de pingos de transformação. As sementes plantadas por Rossato entre janeiro de 1983 e dezembro de 1988, por exemplo, hoje são lindas árvores com frutos de sobra para alimentar a nova geração. Foi durante esse período que Rossato assumiu a chefia do executivo de Fortaleza dos Valos: ele foi o primeiro prefeito do município. Antes disso ele encabeçou o movimento de emancipação de Fortaleza dos Valos. “Meu objetivo na época era criar consciência crítica, em função da transformação da realidade”, sintetiza. Os seis anos do primeiro mandato de Rossato animaram os demais integrantes do movimento de emancipação. Ao final do período do seu sucessor, Rossato reassumiu o comando do executivo entre janeiro de 1993 e dezembro de 1996. “A impressão que eu tenho é de que, aqui, todo mundo tem oportunidade, tem chance de progredir, de se desenvolver, de estudar. Porque eu sempre me lembro de quando eu era criança. Hoje, comparado ao que já se viu durante essa caminhada, Fortaleza dos Valos é um céu. Não tem um setor que não tenha melhorado”. Conversar com seu Imério exige um diálogo paralelo com o filósofo alemão Arthur Schopenhauer. No livro O mundo como vontade e representação, Schopenhauer descreve o sujeito como alguém que conhece todo o resto, sem ser ele mesmo conhecido. Seu Imério aprova o pensamento filosófico e explica que Fortaleza dos Valos é pouco conhecida por ser
FREDERICO SILVA
Viajantes de duas rodas
Na estrada, só existem eles e a sua companheira de todas as horas FREDERICO SILVA REPORTAGEM
Pelo chão negro, o objeto desfila com maestria e leveza, se impondo aos carros grandes espaçosos, passando com facilidade por eles. A velocidade impressiona, cada km é percorrido sem que qualquer força seja exigida. A motocicleta parece flutuar tamanha a naturalidade entre os dois elementos, a natureza e a estrada. O pilo-
to, concentrado e com o olhar fixo no caminho parece guiar a moto mentalmente, diante de tal conexão com a máquina, onde ambos parecem ser um só. Não há nenhum indício de preocupação com o tempo, ambos sabem que no momento certo chegarão ao destino. A liberdade quase pode ser tocada com as mãos. Pegar a estra-
da não é somente um hábito ou interesse, é um estilo de vida. Francisco de Paula Bueno Irigon e Adriana Skamvetsakis compartilham esse estilo de vida. Eles se dividem entre o trabalho como médicos e a estrada. Francisco teve seu primeiro contato com uma motocicleta ainda na infância, mas somente ao concluir a faculda-
as nos edifícios abanavam para o grupo e eu vi um senhor em lágrimas olhando para nós. Foi algo emocionante, me marcou muito. Não sei o que ele deve ter pensado na hora”, fala. Nestes anos de estrada, o casal passou por Rio Grande do Sul, Santa Catarina e ainda visitou o Uruguai. Eles apontam que a vista mais bonita foi em solo catarinense, na cidade de São Joaquim. A riqueza de detalhes remonta um cânion de curvas, onde o condutor é somente um detalhe entre a imensidão do asfalto. “É meio que obrigação todo motociclista passar pela Serra do Rio do Rastro, como um rito de passagem para quem anda de moto. Essa é considerada uma das estradas mais bonitas do mundo e realmente é. Pode se ver de longe o veículo descendo pelas curvas”, conta Adriana. Antes de iniciar qualquer viagem, no entanto, o casal se previne. Os equipamentos e acessórios de segurança são inúmeros e exigem cuidado e paciência ao serem colocados no corpo. Qualquer detalhe pode se tornar um incomodo ao pilotar. “A moto exige uma série de cuidados. Então, tu não é completamente livre, afinal, tem macacão, luva, acessório para as demais partes do corpo”, reforça Adriana. Nestes anos todos de motociclismo, Adriana não sofreu nenhum acidente, mas Francisco sim. No último, foram sete fraturas e um grande susto. Ao passar por Encruzilhada do Sul, a falta de sinalização o traiu e, ao ultrapassar o caminhão, encontrou a rótula que divide as BRs. Foram meses de recuperação e uma moto abandonada pelo caminho. Mas Francisco continua. Para ele e Adriana, a felicidade está no percorrer a imensidão do asfalto negro como a noite mais escura. “Ali na estrada ninguém é nada, todo mundo é igual. Todos somos motociclistas. Não conhecemos o outro, mas estamos ali, juntos”, descreve Francisco. “É questão de sangue” Maicon Olbermann é outro amante do motociclismo. Há cinco anos Maicon começou a trilhar esse caminho. Nes-
se período, percorreu já 80 mil quilômetros e teve oito motos diferentes. Questionado sobre o futuro, ele é incisivo e responde a pergunta antes de seu termino: “Sempre vou ter moto”. E explica: “Eu sempre vou ter, sempre. Se eu tiver um filho, vou comprar uma adequada para a família. Talvez compre um carro também, mas não vou ficar sem moto. Quem gosta, não fica sem, não importa qual”, rechaça. Assim como com Francisco, Maicon teve influência do pai, que também era motociclistas. Hoje, os dois andam juntos quando o tempo permite. “Ele trabalha bastante. Às vezes não dá, mas quando a gente consegue, damos algumas voltas”, relata. Além do pai, o melhor amigo também anda sob dois pneus. Foi através da paixão pelo estilo de vida que o conheceu. “O meu melhor amigo é o Emanuel de Costa. Eu nunca tinha visto ele na vida, mas ambos andávamos de moto e um dia encontrei ele em Venâncio Aires. Combinamos de dar uma volta e já viajamos até Punta del Leste juntos”, conta. A moto parece ser o elo que liga diferentes pessoas e gerações, que partilham o mesmo estilo de vida. Quanto maior a afinidade nas estradas, mais amigos se tornam. O laço criado entre as pessoas perdura por conta das vivências sob duas rodas. Memórias, lugares e modelos de moto se tornam referência. Maicon atualmente tem uma CB 600F Hornet, o mesmo modelo que um amigo que hoje deixou para trás o tempo de pilotagem. “A moto que ele tinha eu tenho agora. Aquela moto era a minha inspiração quando eu comecei, eu queria ela. Hoje, existem modelos mais novos, melhores e mais velozes, mas eu comprei aquela”, revela. Assim como foi influenciado, Maicon também se torna referência. Em seu círculo de amigos, poucos não têm uma moto. Mas ele não influencia, evita fazer isso. O amor pelo estilo de vida deve acontecer naturalmente, deve ser uma vontade interior incapaz de qualquer coisa ou outro tipo de locomoção suprimir. “A maioria do círculo dos meus ami-
gos, já tinha moto. E já gostava também. Um amigo meu agora tá pensando em vender o carro dele e comprar uma moto, Mas eu não influencio. A pessoa precisa querer, cada um tem que pensar no que gosta. É normal pararem na rua e perguntarem sobre uma moto grande, mas não influencio nisso. Para mim, no motociclismo, tudo tem seu tempo, sua vez. É como na vida”, reflete. Embora sejam tempos difíceis, com “gasolina cara e estradas ruins”, ele e o seu grupo de amigos continuam perseguindo as estradas do Rio Grande afora. A moto permite isso, pequenas e médias distâncias são vencidas com facilidade e grandes viagens são percorridas com alegria. Ao contrário do automóvel, sob duas rodas tudo se torna mais fácil. “Esses dias tinha um amigo meu e eu falei pra ele: vamo comer um xis lá em Sinimbu?. E ele ficou impressionado: Sinimbu? Tu tá louco?. E eu disse: sim. Tu acha longe?, perguntou. Imagina se eu convido ele pra comer um sonho na Casa da Vovó, lá em Dois Irmãos. É isso a liberdade da moto. Tu perde a noção de tempo, espaço, distância. Tu apenas vai, é tudo muito perto. Para a gente, é normal até 400 quilômetros. É como uma voltinha. Já de carro é diferente, ainda mais essa distância”, compara Maicon. Embora as viagens se repitam, todas se tornam diferentes, únicas. “Toda vez que tu sai de moto, tu volta com uma história para contar”, ele conta. Sobre o seu destino de viagens, ele planeja: “Primeiro quero ver o Brasil. Esse país é enorme, tem muita coisa para ver. Depois pretendo ir para fora. Faz duas semanas que fomos para Nova Roma do Sul. Foi um dos lugares mais legal que eu já vi, me lembrou a Serra do Rio do Rastro, de Santa Catarina”. É questão de sangue. No final de semana em que eu o entrevistei, Maicon iria disputar com Emanuel uma track day, uma corrida entre ele e o melhor amigo no Autódromo de Santa Cruz do Sul. Enquanto falava com ele, sabia que seu pensamento estava na estrada. É algo de sangue.
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de de Medicina comprou a sua primeira moto. Adriana começou mais tarde no motociclismo, há 14 anos. Hoje, os dois tem o mesmo modelo, uma Suzuki GSX-R750, estilo esportiva. O que difere a de um e a de outro, é o adesivo na moto de Adriana, uma referência ao piloto Valentino Rossi. Para Francisco, pilotar não é somente um ato qualquer, é um movimento social que permite a integração entre pessoas que jamais se viram na vida, mas que se unem pelo gosto em comum. “Uma das coisas que faz tu ter a moto é a turma, a galera com que anda. É um movimento social. Andar de moto sozinho é legal, mas é muito melhor andar em grupo”, diz. A solidariedade também é algo presente entre os motociclistas. Como companheiros que dividem a estrada, eles cuidam um dos outros e se ajudam em momentos de dificuldade. Como, por exemplo, quando uma moto está parada no acostamento. Não é raro vermos outros parceiros que param para ajuda-lo, como conta Adriana. “O motociclismo é um dos poucos redutos onde a solidariedade é algo muito presente. Uma vez fomos a um encontro de moto, em Santa Maria, um dos maiores do estado, e quando estávamos no Shopping, com os nossos capacetes na mão, um casal de motociclistas veio conversar com a gente. Sem nunca ter visto a gente na vida, eles ofereceram a sua casa para passarmos a noite”, relata. Mas as motos não são só símbolo de solidariedade. Por onde passam, provocam a admiração das pessoas. “Chegamos aos lugares e as pessoas saem de casa para ver aquela tropa passar”, diz Francisco. Quando perguntado sobre a memória mais emocionante que teve sobre duas rodas, ele não titubeia e responde com convicção. “Alguns anos atrás estávamos participando do Abraçando o Rio Grande, que acontece no 20 de setembro e durante o feriado farroupilha. Lá participam cerca de 300 motos, com a Polícia Federal fazendo escolta, uma coisa incrível e, ao entrarmos em Pelotas, nós víamos pesso-
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A transformação que vem dos livros Livros de viagem instigam os leitores a partir em suas próprias aventuras
BIANCA CARDOSO
PAOLA SEVERO REPORTAGEM
Em sua obra mais célebre, o escritor britânico J.R.R. Tolkien disse que “nem todos que vagam estão perdidos”, e ele não poderia estar mais certo. Apesar de contar aventuras fictícias, em O Senhor dos Anéis e O Hobbit, o autor inspirou toda uma geração de leitores a se aventurar pelo mundo. A prática de sair pelo mundo viajando se torna cada vez mais comum, mas não é nada nova. As facilidades do terceiro milênio com certeza possibilitam esta experiência a mais pessoas, mas se descobre facilmente que nunca se precisou de dinheiro para fazer uma viagem interessante, apenas alguns segundos de coragem insana.
Estes livros ou relatos de viagem inspiram outras pessoas a percorrerem seus caminhos, e estas experiências em primeira ou segunda mão, inevitavelmente causam mudanças. Não é novidade que os livros transformam seus leitores, nem que as viagens costumam mudar os viajantes, então imagine a força transformadora destes dois unidos. Existem certas almas que nascem para vagar, pés que coçam por percorrer paragens distantes, estar onde ninguém esteve, vivenciar o mundo de maneira a sentir realidades estranhas e maravilhosas. A isto se dá o nome de wanderlust, uma vontade quase incontro-
lável de viajar e conhecer novos locais. Durante a história muitas pessoas foram infectadas por esta doença, e fizeram grandes jornadas onde puderam ver pessoas diferentes, e lugares incríveis, e muitos tiveram a oportunidade de relatar suas viagens a outros, ou ter suas histórias contadas por terceiros. O ser humano parece ter a necessidade de ver o mundo, mas sua maior necessidade ainda é a de narrar, contar suas histórias a terceiros. Nem que seja registrar o mero passar do tempo, nem que seja para que ninguém leia, o importante é registrar. As pinturas rupestres são a prova de que quando
Assim como a maioria dos livros de viagem, as histórias contadas por Marco Polo em sua biografia inspiraram centenas de navegadores e viajantes a perder o medo de sair de casa e buscar riquezas em terras distantes. De forma similar a Polo, o árabe muçulmano Ibn Batuta deixou seu lar em Tânger, no Marrocos em 1325 e percorreu 120 mil quilômetros entre a África, Oriente Médio, Pérsia, Índia e China, e contou sua história em livro. Neste contexto, em meados do século XVI, muitos escritores partiam junto com as primeiras expedições marítimas, para relatar em primeira mão a força dos acontecimentos. Assim, figuras como Pero Vaz de Caminha, membro da esquadra de Pedro Álvares Cabral escreveu ao Rei de Portugal, Dom João para contar as riquezas da terra recém descoberta que viria a se tornar o Brasil. Este que veio a se tornar o primeiro escrito considerado brasileiro, é facilmente encontrado em livrarias, e costuma ser leitura obrigatória durante o Ensino Médio. Os diários de bordo contavam as histórias pessoais de seus autores, mas continham pequenas partes da história. Conhecer a descrição de uma terra desconhecida enche a mente do leitor de dúvidas, é impossível não se questionar por que estes homens arriscavam sua vida para fazer comércio e expandir um reino que pouco os dava. No entanto, as expedições marítimas não beneficiaram apenas comerciantes e a realeza, muitos historiadores e antropólogos foram viajantes corajosos um dia. Hans Staden foi um alemão sobrevivente de naufrágio na costa de São Paulo em 1550, que foi capturado pelos índios tupinambás, e ao voltar à Europa publicou suas memórias. Estes exploradores desbravaram o mundo, partiram do conforto de seus lares enfrentando o medo da morte e do desconhecido, as convenções sociais e os mitos de monstros e destinos terríveis. Tais pessoas mostraram que apesar do sofrimento que pode advir do caminho, a jornada vale a pena. Fazer seu caminho, viajar para
onde quiser vale a pena, contar sua história vale a pena. Os livros de viagem então se multiplicam na forma de diários, mantidos pelos viajantes com ou sem vontade de publicá-los, mas que acabam fazendo um enorme sucesso. Estes relatos se modificam com o passar dos anos, e passam a contar histórias de pessoas comuns em jornadas pessoais, que são ainda cheias de perigo e emoção, mas focadas no detalhe, em conhecer realmente o caminho por onde se passa. Relatos de viagem dão origem a algumas das publicações mais célebres dos últimos duzentos anos, como a viagem de Charles Darwin ás ilhas Galápagos, que o inspirou e abalizou sua pesquisa para publicar o livro A Origem das Espécies, onde expôs sua teoria sobre a evolução humana através da seleção natural. As andanças reais passam então a influenciar os escritores, que criam jornadas fictícias baseadas em experiências reais suas ou de outros. Entre as odisseias americanas clássicas escritas no século XX existem vários exemplos de caminhos de superação que foram contados através da literatura. Jon Krakauer fez sua parte no livro Na Natureza Selvagem, onde conta a história do estudante Christopher McCandless , que deixa a família e todas as suas posses em casa e segue a pé para o Alasca, onde pretende vivenciar a força da natureza de forma pura. Denominando a si mesmo de Alexander Supertramp, o jovem entrega seu diploma para os pais, após se formar para agradá-los, e sai caminhando. Se livra de seu carro, dinheiro e documentos. Para onde vai, não precisa de posses, precisa de coragem e do conhecimento que seus autores favoritos lhe deram. Livros de Jack London e Henry David Thoreau moldaram a mente do jovem Chris para não aceitar a convenção social de que o que traz felicidade na vida é consumir, acumular posses, trabalhar e manter uma aparência de civilidade. O jovem prova com seu caminho que a felicidade é viver dos bons momentos que a vida proporciona, e que a sua alegria vem dos momentos
simples, mas que guardam em si um significado. Da mesma maneira, o beatnik Jack Kerouak já havia usado suas próprias experiências na Rota 66 nos Estados Unidos para escrever o romance On The Road – Pé na Estrada, que conta a história de dois andarilhos em uma jornada de autoconhecimento. O autor foi o representante de uma geração de autores movidos a café, benzedrina e jazz e influenciou milhares de jovens desde os anos 1960 ate hoje a sair da zona de conforto e ir atrás da verdadeira liberdade de escolha, de tomar suas decisões e lidar com as adversidades que surgem na estrada. A juventude envolvida com a contracultura apenas acreditava na liberdade verdadeira por exemplos como o que os beatniks provavam ser possível vivenciar. Com a globalização, a abertura de fronteiras e uma geração inteira de millenials confusos e que não sabem que rumo tomar na vida, surgem os nômades digitais. Pessoas que além de viajar pelo mundo com nada mais do que uma mochila nas costas e muita coragem, mantem diários online em sites e blogs para compartilhar com leitores do mundo todas as suas experiências em paragens distantes. Não é mais tão difícil viajar, e com certeza é muito fácil relatar suas jornada, para onde quer que ela seja. As redes sociais já são registros em linha do tempo que servem como partes de um diário digital montado por nos mesmos e que mostra por vezes cada passo dado em um único dia, complementado por check-ins em locais, fotos, vídeos, áudios, músicas e texto. Cada comentário é a parte de uma historia pessoal sendo jogada na rede para que outros tenham acesso. Os livros de viagem são relatos de mudança, pois cada pessoa que viaja passa a ver o mundo de formas diferentes. Da mesma maneira, um leitor nunca lê o mesmo livro duas vezes, pois a primeira leitura o mundo já o mudou quando pela segunda vez o volume lhe chegar às mãos. Este é o poder de transformação que os livros contém.
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os primeiros hominídeos passam a estabelecer residência em cavernas por períodos maiores de tempo, eles já encontravam formas de relatar suas aventuras. As marcas que ainda podem ser encontradas em diversos pontos do mundo, e inclusive no Brasil, contam centenas de histórias: uma caçada, uma fase da lua, um ataque, a história dos primórdios da civilização gravada em pedras seculares. A maior parte das primeiras grandes histórias humanas é o relato de viagens cheias de aventura. Os leitores que no século XXI se debruçam sobre a leitura de livros de viagem modernos pode não fazer ideia da importância deste tipo de literatura, ou de sua origem. Além de todas as grandes histórias fictícias inspiradas por histórias verídicas, existem muitas histórias famosas e reais. Mais do que a isto, a história milenar dos livros é intrinsecamente ligada às histórias humanas de viagens. Cada ser humano em sua terra tem uma jornada pessoal, seus conhecimentos, e muitos não ficam em um único lugar durante a vida. Estes caminhos percorridos são histórias, momentos para guardar, lembrar e contar a outras pessoas. Preciosidades do cotidiano que merecem ser conhecidas, pois não são somente as histórias grandiosas de exploradores que merecem ser lembradas, apesar de ter começado assim. Um dos pioneiros dos livros de viagem, o veneziano Marco Polo foi um dos primeiros europeus a percorrer a Rota da Seda, que levava os comerciantes até a China. Lá ele conheceu o rei mongol Kublai Khan, descendente do conquistador Genghis Khan, e pode observar durante vários anos a pluralidade cultural da região. Mas tarde, na prisão em Gênova, o italiano que nasceu em 1254 narrou sua vida ao escritor Rustichello di Pisa, e suas memórias fizeram grande sucesso na época. Sua historia narra 24 anos de viagens, em que percorreu mais de 25 mil quilômetros e povoou o imaginário de uma geração inteira de europeus encantados pelas maravilhas e riquezas da Ásia.
Quando a estrada é o meio de salvação
O dia a dia de quem optou por arriscar a sua própria vida para salvar a do próximo, na maioria das vezes, desconhecido ROBERTA KIPPER REPORTAGEM
Várias são as profissões que utilizam a estrada como cenário para que tudo aconteça. Ela se torna meio de sobrevivência para muitas famílias e também tem por função transportar produções, pessoas, causar encontros e separações. Porém, ela adquire um papel mais importante quando sua rota é utilizada para salvar vidas. Foi por esse dia a dia sem rotina e em constante movimento que optaram Vander Gomes e Arthur Schneider, ambos motoristas de ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o SAMU. Com uma de suas bases localizada em Venâncio Aires, o serviço tem em sua sede na cidade dois tipos de atendimento. O Suporte Básico (SB) foi o primeiro a ser implantado. Nesta modalidade a ambulância é composta por um condutor e um técnico em enfermagem. Anos após, chegou o Suporte Avançado (SA), onde além do
condutor e técnico, ainda estão na carona um médico e um enfermeiro. Na cidade, o SAMU é composto por quatro equipes de trabalho, divididas em quatro turnos. Todos eles contam com uma ambulância SA e uma SB. Nelas, além de Arthur e Vander, também trabalha a enfermeira Gisele Reis, de 35 anos, que nos explica como as ocorrências chegam até eles. Tudo acontece por meio de um smartphone e funciona da seguinte forma: o solicitante – pessoa que procura a ajuda pelo 192 – é direcionada para uma central. Os atendentes, então, anotam as informações, junto com o acompanhamento de um médico, que define a gravidade do caso e decide se será encaminhada uma SA ou SB. Após, todos os dados, que envolvem desde o tipo de ocorrência, data, hora, médico regulamentador, endereço e ponto de referência, são enviados para a base. Com isso em
mãos, está na hora de partir. O chamado tempo resposta, de aproximadamente cinco minutos, é o momento de se localizar nos mapas que existem na base. O motorista Arthur diz que, para facilitar e, principalmente, agilizar a procura por uma rua que ainda não conhecem, eles numeraram os mapas. “Temos cinco mapas dentro da base, um é só das ruas, para um lado diminui o número, para outro lado sobe. Nas rodovias facilitamos também sinalizando a quilometragem. A 287, por exemplo, ela aumenta de número em direção a Candelária”. Mas e quando a rua não tem nome ou, pior, o atendimento é na zona rural? O que fazer? Gisele explica que nestes casos um ponto de referência é muito importante: “Não adianta nos dizer a cor da casa ou que fica perto da residência do fulano. Não sabemos quem são as pessoas que moram lá ou o
nem sinal de celular em caso de emergências? Você pode até achar que os entrevistados escolheram essa profissão pelo retorno financeiro, ou por ser um trabalho sem rotina, onde não se sabe o que pode acontecer no próximo minuto. Nada disso. Vander fala que muitas pessoas não conseguem trabalhar em uma ambulância. Já outras não se dão muito bem trancadas em um hospital. E revela, deixando transparecer o orgulho e o amor pelo que faz: “Não foi a gente que escolheu o SAMU e, sim, o SAMU que nos escolheu.”
tomóvel cortou sua frente, sem se dar conta da placa de pare que existe no local. Mesmo andando devagar, Tati não conseguiu desviar do carro. Com o impacto, ela foi arremessada cerca de cinco metros adiante, caindo na frente do veículo, que só parou quando estava perto de atropelar a acidentada. Populares tentaram acalma-la até a chegada do SAMU, que levou em torno de dez minutos para chegar ao local. Com ferimentos na perna, braços e uma fratura no pulso, Tatiana foi imobilizada e encaminhada ao hospital com agilidade e efiA ajuda que foi essencial ciência. A motociclista também destaca a atenção que recebeu Para algumas pessoas, o dos seus salvadores. “O SAMU serviço do SAMU não é visto de Venâncio presta um ótimo como algo tão eficaz, por de- serviço. Quando chegaram fopender de verbas do Estado e ram muito atenciosos comigo. Município e por, às vezes, de- Me respondiam o que eu permorar a chegar. Porém, para guntava, pois eu estava preoquem realmente precisou de cupada. Uma pena que nessas ajuda em um momento difícil, horas você não sabe quem eles ele é considerado muito bom, são, pois eu queria agradecer”, como nos conta Tatiane Borg- conta. mam. Moradora de Venâncio Na hora em que precisou, Aires, Tati, como é chamada Tatiane aprovou o atendimento. por amigos e familiares, sofreu Afirmou, ainda, ser um direito um acidente de moto no dia 6 da população, o qual é imposde dezembro de 2012. sível ficar sem, mesmo que às Ela descia a Rua Viscon- vezes, dependendo da situação, de do Rio Branco por volta das não seja tão bom quanto o es18h30 da tarde, quando um au- perado.
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alternativas quando possível, evitando ruas com muitos semáforos ou grande movimento. Além destes cuidados no deslocamento até o ponto de atendimento da ocorrência, é preciso muita cautela da parte dos condutores enquanto os colegas socorrem uma vítima. Principalmente quando se tratam de acidentes em rodovias. Arthur conta que ele não é apenas um simples motorista. Também teve que fazer alguns cursos para, no caso de um atendimento com SB, poder auxiliar se necessário. Outra parte importante de sua função é proteger os colegas, fazendo o possível para que o número de vítimas não aumente. “O condutor é responsável pela segurança da equipe. Em um acidente numa rodovia, eu tenho que posicionar a viatura para que eles possam trabalhar tranquilos e em segurança, para que não ocorram mais acidentes. Tenho que colocar a viatura de maneira que proteja eles”, explica. Mas pode sentir prazer quem coloca, de certa forma, a sua vida em risco todos os dias, andando por estradas movimentadas, às vezes em más condições ou por lugares onde a comunicação com o resto do mundo é muito difícil, sem
ROBERTA KIPPER
que elas fazem”. Ela também fala que, sempre que possível, o mais certo é o solicitante ir ao encontro da ambulância, para facilitar a localização. Um ponto que às vezes consome o tempo resposta para sair da base, segundo Arthur, são os nomes das ruas da cidade. Por ela ser de origem e cultura alemã, os profissionais da central não sabem escrever da maneira correta ou parecida, ficando assim difícil de encontrarem as mesmas nos mapas. Para poder auxiliar no salvamento das vítimas, considerando que o tempo resposta pode ser determinante em alguns casos, foi criado o projeto social Samuzinho. Ele tem por objetivo dar noções de primeiros socorros básicos, de como reagir e o que fazer em casos como paradas cardíacas, engasgos, descargas elétricas, etc. Práticas que, quando realizadas de forma correta, podem manter viva a vítima até a chegada do primeiro atendimento profissional. No ano passado o SAMU capacitou cerca de 400 docentes, entre escolas de educação infantil dos bairros e de ensino fundamental do interior. A intenção é de continuar estas capacitações neste ano, ensinando também os novos profissionais contratados nestas instituições de ensino. Algumas empresas venâncio-airenses também vão até a base do serviço e solicitam estes treinamentos. E quem pensa que, por ser um veículo de socorro e remoção de vítimas, uma ambulância está livre para fazer tudo nas ruas e rodovias, está muito enganado. Perguntado sobre isso, o motorista Vander surpreende na resposta. O SAMU tem a obrigação de seguir as mesmas regras de trânsito que outro condutor, arcando com as consequências quando as mesmas são infringidas, podendo até ser multado. “A gente segue as normas de trânsito como qualquer outro motorista e também levamos multas. Em caso de passar em uma sinaleira fechada, podemos passar, mas não direto. Tem que parar, sinalizar, sem causar danos aos outros ou algum acidente”, afirma. Uma forma de agilizar o deslocamento é optar por rotas
ARQUIVO PESSOAL
O prazer pela estrada
Pé no solo, sonho em Hollywood, a trajetória de um skatista que sonha em ser o primeiro brasileiro premiado no Oscar NATANY BORGES REPORTAGEM
Primeira aula, quarta-feira, 25/02/2015. Começam os trabalhos do último semestre. Tempo em que formatura se apresenta de forma palpável e, junto com ela, surgem as incumbências do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Nesses quatro meses, tudo o que um monografando espera é que as tarefas das demais disciplinas sejam amenas. Expectativa ilusória, é claro, quando a aula inaugural se refere à disciplina de produção em mídia impressa, o nosso tão querido Unicom. Ainda que de início tenha sido apresentado somente o plano de ensino, aliado a uma breve conceituação teórica, a turma tinha a plena a consciência de que a tarefa de concluir dois jornais no semestre seria um desafio. Discussões aqui, sugestões acolá, o tema definido para a primeira publicação não poderia ser mais estimulante: estradas. Não a estrutura pavimentada com asfalto, a qual bem conhecemos quando nos deslocamos de uma cidade para outra. Mas sim a estrada como um não lugar, como um lugar de passagem, como um trajeto de transformação. Temática escolhida, é hora de definir a pauta. Ideias mirabolantes, outras medianas. O medo
de fracassar perante um assunto tão inspirador assola os pensamentos desta acadêmica. Eis que, em meio às pesquisas na tentativa de encontrar uma reportagem ideal, encontro um nome: Marcelo Gervasio da Silva. Carioca da gema, 54 anos, fabricante de prancha de surfe. A julgar pelas características iniciais, fica difícil de imaginar que este senhor com espírito plus jovem renderia tantas estórias. É que ele é apenas o primeiro brasileiro a dar a volta ao mundo a bordo de um skate. Bingo. Fonte perfeita, a não ser pelo fato de que, naquele momento, meu possível entrevistado estava na África, cumprindo a missão de conhecer 90 países sob sua prancha de rodinhas. Mas, se como diz o ditado “Não está morto quem peleia”, pensei: “vou mandar um recado no Facebook, vai que ele responda”. Não deu outra. Horas após o contato, a reposta veio e, junto com ela, algumas características deste entrevistado que não tem papas na língua e vai direto ao ponto. “Ok, mas aqui na África estou com dificuldades de ‘net’, aguarda pela capital de Botswana Gaborone”, respondeu depois de eu enviar um enorme texto explicativo de apresentação.
Quase uma redação, eu diria. É porque precisei dar bons argumentos para convencê-lo a conversar com uma mera estudante de jornalismo. Afinal, Gervasio é acostumado a conversar com repórteres de programas estilo o Globo Esporte, assim como fez em maio de 2010 e março de 2013. Ainda na esperança de que talvez ele pudesse retornar ao Brasil na sequência, já que uma entrevista via Skype seria bem mais interessante do que por e-mail ou face, indaguei quando seria a sua volta. “Retorno ao Brasil em 2016, nas Olímpiadas. Agora a previsão é de estar na Tanzânia em abril, Egito, seguido da Índia em novembro e Cingapura, caso sobre tempo. Quero tentar fazer a parte da Ásia nesta etapa”, comentou como se fosse ir, assim, de Santa Cruz até Porto Alegre. Me dei conta de que a solução seria buscar entender um pouco sobre quem é este tal de Marcelo Gervasio pelo Facebook, mesmo indo contra os ensinamentos que encontrei durante toda a graduação. “Entrevista boa é na rua, é olho no olho, é sentir o cheiro, entender a reação do entrevistado, perceber as sensações a sua volta”, martela-
bótica da Pontífica Universidade Católica (PUC) do Rio. (Que baita ideia, Gervasio). Enquanto desliza sobre as quatro rodinhas, não dispensa o uso do tripé e grava tudo: o barulho do vento, os bichos, as pessoas, as cidades. Obviamente eu fico curiosa para ter acesso a este material. Mas, doce ilusão, acesso proibido. Ele só vai divulgar esse arsenal de cenas quando o seu filme for lançado. “Tenho história, falta acertar o quebra-cabeça. O problema é que me falta apoio, pois sou o melhor da história na minha modalidade”, comenta em tom de indignação. Em pouco tempo de diálogo virtual percebo que o meu novo amigo – decidi chama-lo assim – deixou a humildade em casa. Ele adora ostentar o seu preparo físico. “Corro 90 quilômetros sem parar. Desculpa a falta de modéstia, sou o melhor na minha categoria”. Considera ter o melhor skate para viajar. “Não quebra, sempre atropela as estradas”. E ainda afirma ter os singulares e jamais vistos materiais sobre as estórias que encontra pelo caminho. Tanto que, assegura, são cobiçadas pelos produtores do canal National Geographic. “Penso em ser o primeiro brasileiro a ganhar um Oscar em Hollywood, pois estória, recorde e garra tenho para dar e vender”. Uma espécie de Joe Gould do mundo moderno. A diferença é que, ao invés usufruir das palavras, ele quer retratar a “história oral do nosso tempo” através das imagens. Ah, se Joseph Mitchell estivesse vivo para testemunhar tal façanha. Segue o baile. Gervasio – ou pedal verde, como gosta de ser chamado – tem apreço, igualmente, por expressar a sua inabalável coragem. Medo? Medo de que? O carioca é forte como o ferro. Violência, animais selvagens, nada disso o amedronta. “Acampo em árvores no mato, casa de cachorros, viro a noite perto dos animais. Se eles vêm em minha direção, eu jogo ‘bomba’ e os afasto”, diz. Incrédula, pergunto sobre a origem deste “raio” de bomba a qual ele se refere. Entretanto, não obtenho resposta. Insisto mais uma vez, após a matéria estar praticamente encaminhada, e ele me surpreende com a informação de
que quase fora esfaqueado um dia antes. “Onde eu fui me meter...” Ainda sobre as suas angústias, peço (sou teimosa mesmo) para que me dê exemplos do que o faz perder a “base”. Aquele tipo de situação, em que, até mesmo os ateus apelariam para a reza, suplicando uma benção lá de cima. - Só tenho medo dos castigos de DEUS. (ele escreve Deus em caixa alta sempre) - Quais seriam esses castigos? - pergunto curiosa - O que vier dele -, responde ele, oras bolas. - Um contratempo da natureza, por exemplo? – indago, solicitando explicações mais contundentes. - Não! Uma doença ou a perda de um membro, sei lá, uma incapacidade -, resume. O skatista também tem seus segredos. E ele confirma que, para resistir a essa vida de aventuras, segue a chamada logística do vento. Tal operacionalidade foca em tê-lo sempre a favor. “O problema é que tem vezes que ele muda e enfrento situações dramáticas”, lembra. Opa! Situações dramáticas? Mas não era ele que dizia não ter dificuldades? Aliás, eu ainda quero que ele me revele as suas fraquezas. - Tu não sentes falta de uma família, Marcelo? - Não tenho esposa ou filhos. Tenho minha barraca e se encontrar uma gata pra rodar o mundo seria tudo. É claro que sinto falta. Mas preciso encontrar alguém da minha linhagem aventureira. É hora de pular para o outro assunto. Hiperativo, Gervasio não gosta de bater na mesma tecla. E mesmo que eu insistisse, ele não retomaria o papo. Para sobreviver, o skatista também usufrui do calendário frutícola – ou seja, procura estar sempre perto de áreas onde contenham frutas, as quais correspondem por boa parte de sua alimentação. Aliás, não se pode esquecer que o “melhor da categoria” recebe assistência do profissional especializado em medicina desportiva de alto desempenho, Adilson Camargo, e segue à risca uma dieta pra lá
de saudável. “Acordo cedo, aveia, mel e frutas, 30 minutos, comida no sangue e sangue no olho”, sacramenta. Seu sustento vem dos rendimentos da empresa carioca Dudu Skate Rodas e Rolamentos, onde é sócio, alguns aluguéis, além de uma contribuição que vez e outra solicita no Facebook para seus amigos. Nos meus últimos contatos com ele, inclusive, percebi mais postagens pedindo auxílio financeiro. Mas este é outro assunto que não gosta de tocar. Entretanto,, se reservasse um tempo para tradutor, acredito que Gervásio tiraria uma boa renda extra. Afinal, ele garante que domina alemão, russo, inglês, malgaxe e ainda quer aprender outros dialetos africanos. Mas é no português mesmo que encontrou uma brecha para, digamos assim, me deixar em maus lençóis. Primeiro começou com um convite. “Se quiser um dia me seguir, vou descer o Rio Amazonas da nascente a Foz do Iguaçu, oito mil quilômetros no remo.” Eu dei risada. Depois se mostrou “malandro” através de alguns comentários inesperados em minhas fotos na rede social; adjetivos que me deixaram desconfortável e não agradaram nenhum pouco o meu namorado. Confesso, não gostei. Mas então eu lembro que estou falando de Marcelo Gervasio da Silva. Desapegado, ele só tem um objetivo: aproveitar as vivências que os distintos lugares desse mundão podem oferecer. “Para mim estrada é o que existe depois daquela curva. Aí, o que vem em seguida, é a liberdade sem hora de partir ou chegar”, observa ele, que também incorpora, por vezes, um pensador pra lá de reflexivo. O problema é que meu amigo só tem direito a mais alguns minutinhos na lan house onde está conectado e a nossa breve comunicação por ali se encerra. Daqui sigo acompanhando as suas peripécias pelo asfalto, enquanto encaminho a monografia. De lá, planos, andanças, o vento no rosto e a busca por uma vida sem estórias repetidas. Não esqueço, entretanto, de citar a sua frase mais categórica. A mesma que, acredito, vai ao encontro daquilo que muitos viajantes levam como lema. “A Estrada é puro prazer”.
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va a fala do professor Demétrio Soster – e que, não por acaso, é o editor chefe do Unicom - sobre as considerações de uma boa reportagem. Preferi não arriscar e expus o meu drama à turma. Eis que, para a minha surpresa, ganho carta branca. Poderia conversar com a fonte via mundo virtual. A condição, porém, era mudar o foco e encontrar o meu estilo. Como eu faria este roteiro, ainda não sabia. Afora isso. Challenge Accepted. Desafio aceito. Pé no solo, foco no objetivo Palpável é o pé no solo. Distante é o paradeiro de Marcelo. Concreto é o seu skate. Intangível é o modo de vida. Insólita é a barraca em forma de casa. Invejável é a sua liberdade. Enquanto ainda tento estabelecer uma reportagem perfil para compor as páginas deste jornal, me dou conta que talvez este não seria o caminho. Isso porque muitos são os paradoxos que descrevem as caraterísticas deste aventureiro que me conta ter duas grandes ambições: viajar de skate mundo afora (ok, isso todos me acompanharam até aqui já sabem) e ganhar um Oscar. Ganhar um Oscar? De outro continente, eu não concebia, ou melhor, não entendia qual seria a relação deste homem para com a maior premiação da sétima arte. Logo me convenço, porém, que não é cabível eu esperar atitudes muito regradas de Marcelo. Estou falando de um homem que viaja em uma prancha sobre quatro rodas ao ar livre, ao mesmo tempo em que faz de seu corpo a estrutura contra as intempéries da natureza. Ao longo da conversa, mais detalhes são obtidos e começo a compreender sua afeição pelo prêmio. Além de homenagear seu pai, o diretor de cinema Hélio Silva, falecido há seis anos, Gervasio quer mostrar ao mundo os registros que leva consigo. Esses documentos em forma de fotografia e vídeo, acredita, são únicos. Dignos de uma produção hollywoodiana. Também pudera, meu entrevistado adora ostentar as três câmeras que têm acopladas no capacete e as outras sete que carrega junto na mochila. Como se não bastasse, ainda lembra o painel solar instalado junto ao skate para o caso de a bateria descarregar, tecnologia elaborada por uma equipe de ro-
CAROLINA SCHMIDT
A longa estrada para o rock O mesmo caminho percorrido por bandas clássicas, como AC/DC e Beatles, é a opção de jovens que almejam sucesso na música RODRIGO KAMPF REPORTAGEM
também como amigos”, explica. Essa mudança, como não poderia ser diferente, trouxe diversas dificuldades para o grupo. A principal delas, segundo os integrantes, é encontrar tempo para se dedicar a banda na rotina diária de jovens que trabalham e estudam. “Estamos ensaiando toda a semana, o que é muito positivo. Mas já ficamos até oito meses sem ensaiar por não encontrar tempo na agenda de todos.” Alguns, por outro lado, já estão um pouco mais avançados, vivendo com mais intensidade a estrada do rock. O cenário hoje é bem diferente daquele quando, há quarenta anos, o vocalista Bon Scott, com sua voz estridente, listou as dificuldades do longo caminho até o topo do rock and roll. Na atual situação, cerca de 20 pessoas de camisetas pretas, empunhando garrafas de cervejas e com olhares cansados, se reúnem em um posto de gasolina de Santa Cruz. É sábado, um pouco depois das 21 horas. Enquanto muitas famílias estão em casa fazendo churrasco e jovens se arrumam para mais uma balada, estes rockeiros estão novamente prontos para uma exaustiva noite de música. A reunião no posto tem um objetivo: aguardar o ônibus que os levará a outra cidade, onde duas bandas de Santa Cruz se apresentam nesta quente noite de outono. Além dos músicos, estão ali namoradas, alguns fãs e outras pessoas que, de alguma forma, ajudam nesta rotina quase semanal de certos artistas locais. O destino da noite é próximo: Venâncio Aires. Mas o transporte que os levará até lá está longe de sua lotação. No caminho, o organizador da festa e da excursão que, além disso, é vocalista de uma das bandas, acerta os últimos detalhes da noite e faz uma rápida divulgação nas redes sociais, gravando um vídeo pelo seu celular. Mesmo de última hora, chamar o público sempre é importante. O cara em questão é Rodrigo Jaeger. E, apesar de estar organizando e vivendo a música quase diariamente, ele – enquanto recolhe pagamentos e faz alguns ajustes finais – conta ter decidido tarde que
era disso que gostaria de viver. Mesmo assim, hoje não mede esforços para promover suas bandas e a cena rockeira regional como um todo, pois sabe que ninguém cresce sozinho. “Com quase 18 anos que descobri que tinha certa facilidade com percepção e vocais. Desde lá, tenho este desejo de me expressar e de trabalhar na música. Mas, a decisão de viver somente disto e para isto, demorou alguns longos anos”, relembra o vocalista das bandas Playsound e Lifer, além dos tributos ao Pearl Jam e Audioslave. O que começou como uma brincadeira, cantando enquanto amigos tocavam violão em uma roda, hoje se tornou uma carreira profissional. E, como em qualquer outro mercado, Jaeger lida com dificuldades. “Os principais percalços variam de local, estilo e do que o músico vende. As dificuldades, no geral, são as mesmas que em qualquer outra área. Mas muitas vezes o próprio artista não as enxerga.”. Para Rodrigo, na música – como em qualquer outra profissão – é necessário investimento, estudo e conhecimento de mercado e, eventualmente, o próprio músico não sabe bem o que vende, pelo que trabalha, ou nem mesmo se trabalha com música ou se a tem por hobbie. Portanto, para passar do amador ao profissional, Jaeger precisou mudar sua visão do que é mercado. “No meu caso, vivo de apresentar e vender minha arte. Minha rotina gira em torno da criação disso”, destaca o vocalista. E ele realmente leva isso a sério. Além de ensaiar diariamente com suas bandas, realiza gravações de seus materiais, promove semanalmente uma ou mais festas pelo estado, produz outros músicos de Santa Cruz, organiza excursões e ainda arruma tempo para fazer a divulgação de seus projetos em rádio, TV, jornal e redes sociais. “Acredito que o principal erro de algumas pessoas é enxergar a vida de um artista como um conto de fadas. Esperam que um dia alguém bata na porta e diga ‘você é bom, tá aqui seu contrato’. É difícil perceber que tudo depende de trabalho, investimen-
to, estudo e foco. Vejo grandes talentos, pessoas inteligentes, com sucesso em outras áreas que exercem, deixando de lado a música por esperarem que o mercado corra atrás do produto, sem que ele ao menos exista”, lamenta. E diferente de muitos casos, Rodrigo Jaeger não mudou seu estilo musical para ter sucesso e retorno financeiro. “Sigo no rock por influência dos sons que sempre gostei de ouvir e pelo modo de vida que admiro. Não toco estilos mais rentáveis porque, acima de tudo, faço música por satisfação”, destaca. E sobre a questão financeira, isso não parece mais ser problema. Às seis da manhã, dentro do ônibus, com grande parte dos passageiros dormindo, Rodrigo ainda demonstra otimismo em suas palavras: “É possível, sim, viver de música nos dias de hoje por aqui. Mas não focando só em Santa Cruz. Acredito que muita coisa vem evoluindo no mercado local e, principalmente, acredito que temos uma base forte para novos artistas. Está tudo em nossas mãos para rentabilizar, como trabalho e criação de produtos musicais, mas é preciso levar para fora. Hoje, e posso dizer isso com segurança, é possível viver e produzir rock em Santa Cruz do Sul.” Chegando novamente no posto de gasolina, com ele já deserto e o sol nascendo, o sentimento era de dever cumprido – após bons shows e um público razoável – em mais uma excursão de rock. Mas todos ali sabem e, a cada aventura dessas, têm ainda mais certeza disso: é um longo caminho (se você quer o rock and roll). Dançando a música certa O caso citados nesta reportagem são exemplos de músicos que estão começando uma carreira, com disposição para encarar as pedras ao longo do caminho. Mas, mesmo em Santa Cruz, muitos andaram por essa estrada. Músicos que hoje estão na casa dos 40 anos obtiveram sucesso na sua carreira ou, mesmo atualmente, encontram formas de viver da sua arte. O vocalista e gui-
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A música It’s a Long Way to the Top (If You Wanna Rock ‘n’ Roll) foi lançada em 1975 pelos australianos do AC/DC. A canção aborda, basicamente, as dificuldades de uma banda que está iniciando sua carreira rumo ao tão sonhado sucesso. E a história relatada nestes versos, em específico, inclui situações que envolvem desde roubo até apedrejamento e ossos quebrados. Para eles, no entanto, o objetivo de vida foi atingido: vivem da música e são um dos maiores grupos de rock and roll de todos os tempos. Mas quantos não conseguiram, desistindo antes da fama? E, principalmente, quantos até hoje encaram esta longa estrada para tentar realizar o sonho de viver da arte? Ganhar a vida com a música nunca foi fácil. E a maioria das bandas que são hoje idolatradas no mundo inteiro passou por dificuldades nos primeiros anos de carreira. Os próprios Beatles vivenciaram situações que fariam muitos largarem tudo. O grupo inglês lidou com a exaustão de fazer vários shows por noite, a rejeição de gravadoras, a pressão de empresários e até mesmo a morte de um amigo e ex-integrante. Mas, o caminho, como dizia o AC/DC, é longo, e eles seguiram em frente para se tornarem um marco na história da música. O mesmo aconteceu com Black Sabbath, Rolling Stones e tantas outras lendas do rock. Situação que, nos dias de hoje, não é diferente. Há quase dez anos, em Santa Cruz do Sul, um grupo de amigos do colégio formava a banda Beto Bala. Eles, apesar de já terem quase uma década de história, apenas nos últimos meses decidiram definitivamente pegar a estrada para fazer a engrenagem começar a rodar. Conforme o vocalista Guilherme Lautert, essa decisão foi um marco e, desde que as coisas começaram a acontecer, o sentimento é de um novo começo para o grupo. “Apesar de ter quase 10 anos de banda, parece que tudo está começando agora. Tudo é novo e isso, até pouco tempo, era um desafio. Está valendo a pena, pois não apenas nos fortalecemos como banda, mas
NICOLE RIEGER
tarrista Miguel Beckenkamp é um dos nomes mais conhecidos na cena rock da cidade. Teve um auge dentro do seu estilo: fez uma apresentação no Cavern Club, em Liverpool. Bar onde seus maiores ídolos, os Beatles, começaram. Outro exemplo é do músico Killy Freitas que, apesar de ter anos de estrada, parece agora chegar ao seu auge. Com décadas de experiência tocando guitarra, Killy sempre possuiu grande relevância no cenário local e ano passado lançou um disco com o escritor chileno Antonio Skármeta. Entretanto, um dos principais exemplos de sucesso musical de Santa Cruz do Sul, é o guitarrista Veco Marques, que desde quando comprou sua primeira guitarra, já gravou 18 discos, fez mais de 2 mil shows e até Disco de Ouro ganhou. Segue a entrevista com o dono das guitarras da banda Nenhum de Nós.
Unicom: Como começou teu interesse por música e quando você notou que poderia viver disso? Veco Marques: Começou desde criança, pois me interessava por música e instrumentos. Mas, foi um longo caminho. Sempre gostei de quase todos os gêneros e isso foi muito importante para entender como se faz música, seja de qualidade ou não. Quando dei por conta, já estava participando de festivais e trocando conhecimento com muitos músicos. Aí foi só focar e manter. Unicom: Quais foram suas principais dificuldades no começo da carreira? Veco Marques: Acho que foi ter certeza de que era isso que iria nortear minha vida. Quem pensa que é fácil, vai se dar mal. É um investimento de tempo e dedicação que nunca acaba, pois a indústria da música profissional vai mudando e temos que saber dançar a
música certa. Mas é a melhor coisa do mundo trabalhar com aquilo que amo e, olhando para trás, vejo uma carreira e uma obra inteira registrada nos discos e nas composições. Unicom: Você chegou a tocar em outros estilos por questões financeiras? Veco Marques: Sempre me considerei um músico com ginga, no sentido de não estabelecer um único gênero como definitivo. Gosto de vários estilos e deixei a carreira e as oportunidades me levarem, sem fazer julgamento financeiro ou de me dar melhor aqui ou ali. Por exemplo, comecei a carreira tocando música nativista, que gosto muito até hoje. Viajei o Brasil todo tocando com Renato Borghetti. Unicom: Qual você acredita ser o principal erro dos músicos jovens que não conseguem viver da música ou que desistem no meio do caminho? Veco Marques: Acho que o
principal problema é achar que o sucesso é a meta. Humildade e perseverança devem ser a tônica de uma carreira. A busca pela inovação e tentar criar os próprios caminhos também são pontos importantes. Estudar e ouvir, criar intimidade com seu instrumento e não desistir no primeiro tombo. Unicom: Acredita que quem está começando hoje e sonha em viver de música, deve seguir em frente? Veco Marques: Com certeza deve seguir. Pelo menos tentar. Não é fácil, mas também não é impossível. Isso vale para qualquer atividade profissional. O mercado está aberto para quem se esforça e se dedica, de maneira correta e com amor. Foi o que fiz e não falo isso por autopromoção, mas sim para servir de exemplo para quem quer começar. É só ter coragem de dar o primeiro passo. Adiante!
AMANDA RISSO
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Além do autismo Conviver com uma pessoa com autismo transforma a vida de todos que estão ao redor AMANDA RISSO REPORTAGEM
Brincar com outras crianças, correr, gostar de falar e de fazer sinais é comum no desenvolvimento de crianças, mas não para todas. Quem nunca ouviu a frase: “Meu filho não gosta muito de brincar com outras crianças. Deve ser porque ela ainda não sabe se comunicar direito”. Mas, ao contrário do que muitos pais pensam, não se comunicar e evitar o contato com outras crianças e adultos pode figurar não apenas um pequeno atraso no desenvolvimento. Por isso, é necessário ficar atento, pois é na infância que muitos transtornos podem ser amenizados. Como é o caso do autismo. Hoje cerca de uma em cada 68 crianças sofrem da doença, segundo dados divulgados pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos. Ao ouvir a palavra “autismo” geralmente vem à mente de muitas pessoas a ideia de uma criança mais isolada, que brinca de forma estereotipada, balançando o corpo pra lá e pra cá, diferente ao que ocorre ao seu redor. Porém, quando nós falamos em autismo, estamos nos referindo a pessoas com habilidades diferentes das que estamos acostumadas a conviver, mas que transformam a vida de todos que estão ao seu redor, nos fazendo refletir sobre quem de fato vive alienado. O autismo é um transtorno de desenvolvimento que geralmente aparece nos três primeiros anos de vida e que
compromete as habilidades de comunicação, de comportamento e de interação social. O autismo tem o nome técnico de Transtorno do Espectro Autista. O transtorno não é uma doença, mas sim uma grande dificuldade de desenvolvimento que afeta muito o comportamento. O tratamento é difícil e a ajuda de profissionais multidisciplinares é fundamental, pois o transtorno não tem cura, tendo que ser feito ao longo da vida. O diagnóstico precoce, principalmente até os dois anos, também é importante, pois nessa idade ainda é possível tentar diminuir o grau em que o autista vai se situar. As pessoas que possuem o transtorno do espectro autista muitas vezes têm problemas com habilidades sociais, emocionais, e de comunicação. Segundo dados da ONU, cerca de 70 milhões de pessoas são acometidas pelo transtorno do espectro autista. Porém a cada nova pesquisa, é observado que o número de portadores aumenta. O transtorno é mais comum ainda em meninos, pois o número de diagnóstico é quase cinco vezes maior, quando comparado ao sexo feminino. Por este motivo foi escolhida a cor azul para representar o autismo. Conviver com o autismo é uma tarefa que exige mais cuidado, atenção e tempo para os pais. Graziela Guedes mora em Santa Cruz do Sul. Ela é mãe de Brendon, de 14 anos, que é
portador do transtorno do espectro autista. A mãe sofreu complicações desde a gravidez e por este motivo, seu filho nasceu com apenas sete meses. Até os 10 meses de idade, foi um período complicado para a família. Brendon tinha muitas convulsões e acabou ficando com uma sequela neurológica. A lesão levou a gestora a procurar um neurologista, que diagnosticou Brendon com síndrome de West, uma forma grave de epilepsia em crianças. Depois de iniciado o tratamento, as convulsões acabaram. Com seis anos de idade, ele ainda não falava e não tinha vontade de brincar nem com os pais nem com outras crianças. Foi só a partir daí que o menino foi diagnosticado com autismo. No mesmo ano em que Brendon foi diagnosticado com o transtorno, foi aberta na cidade uma classe especial para autistas. Desde então, esta se tornou a atividade que o menino mais gosta de fazer. “Ele é bem social na escola. Ajuda a professora a organizar a sala, desenha, pinta, colabora com tudo. A alegria dele é ir para lá “, comenta a mãe. Ressalta, ainda, que na instituição de ensino, desempenha várias atividades diferentes, como aula de culinária, informática e desenvolvem a parte pedagógica e caminhada. Apesar dele gostar muito de ir para a escola, a mãe se preocupa com o futuro do menino. Por ser diagnosticado mais tarde que muitas
crianças, Brendon é totalmente dependente dos pais, desde precisar de ajuda para se vestir até ir para a escola. “Eu me preocupo bastante, acho que ele sempre vai ser dependente. E até hoje nunca deixamos ele fazer as coisas. Mas mesmo tendo medo, eu nunca vou desistir dele. Eu espero poder sempre estar ao lado dele”, comenta a mãe. Mesmo com as dificuldades, quem olha para o menino vê a felicidade estampada em seu rosto, principalmente quando está brincando com a bola. O pequeno tem muita habilidade com o objeto na mão e segura a bola como um jogador de basquete. A mãe conta que já tentou estimular o filho jogando com ela, mas a ideia não tem dado muito certo, pois ele não gosta muito de brincar com os pais ou outros adultos. Segundo a fonoaudióloga Berenice Cezar Menezes, quanto mais cedo a criança é diagnosticada e iniciada com tratamento, é mais fácil dela ter chances de desenvolver a linguagem. Depois dos cinco anos de idade, a linguagem acaba sendo mais difícil de ser instalada. Esse talvez seja um dos motivos que Brendon ainda não tenha conseguido falar direito. A ação de vários profissionais é muito importante para o desenvolvimento e um melhor resultado no trabalho realizado pelos profissionais da área da saúde. Assim, diversas atividades tem efeito positivo nas crianças autistas. Uma delas, que é desenvolvida em Santa Cruz do Sul, é a ginástica para autistas. A ideia surgiu há pouco tempo, mas muitas crianças se beneficiam com o esporte, como é o caso de Eduarda Gabrieli Souza. A menina que corre, brinca e sobe em árvores o tempo todo encontra na ginástica um espaço que parece ter sido criado para ela. Ali, ela relaxa e começa a descobrir os próprios limites. Os pais contam que desde pequena, a menina é hiperativa e, além disso, tem paixão por escalar móveis e árvores. Um dos poucos momentos em que ela senta e descansa é na roda de chimarrão. Eduarda foi diagnosticada com autismo aos dois anos de
idade. Os pais contam que foi um período conturbado primeiro porque a filha não fala e depois porque não sabiam com quem conversar ou outras famílias que tivessem filhos autistas, na tentativa de entender melhor o transtorno. Desde pequena, Eduarda iniciou os estudos em uma classe regular. A mãe comenta que a menina precisou ser trocada para a sala de recursos, porque os colegas chegavam em casa chorando, reclamando que tinha uma menina que puxava os cabelos. Autistas que não sabem falar são mais propensos a ter comportamentos disruptivos. Segundo a fonoaudióloga, estes comportamentos são aqueles em que a criança grita, se agride, se joga no chão ou puxa o cabelo. Às vezes, ainda ouvimos que os autistas são “revoltados e agressivos”, mas esse comportamento tem uma resposta. “Muitas crianças autistas sofrem com comportamentos disruptivos. As crianças estão gritando ou se batendo e aí muitas pessoas falam que o autista é violento. Mas o autista não é violento, ele faz isso porque ele quer se comunicar e não consegue. E aí eles podem ter estas atitudes porque sentem dor ou ainda porque alguém tenta por algum limite ou falar que não, e ele não entende porque ele não pode.” explica a fonoaudióloga Berenice. Por este motivo, a introdução da linguagem, seja por fala, por algum sinal ou através de figuras, é muito importante para que ela conseguir se comunicar e adquirir liberdade. Eduarda começou desde cedo a puxar o cabelo. As crises eram constantes. Quando sentia dor, quando precisava voltar da escola ou quando ouvia algum barulho diferente. Os pais contam que a menina já apresenta uma melhora muito grande, principalmente depois que iniciou a ginástica. “Tudo mudou. Antes ela não olhava pra gente, parecia que não entendia nada do que estavamos falando pra ela. Agora ela entende, se a gente fala algo engraçado, ela entende e ri junto. E até está entendendo quando falamos não para ela. Ela brinca junto com a gente. Nos es-
cuta e entende o que ela pode ou não fazer.” comenta a mãe. Além dos benefícios físicos que a ginástica lhe proporciona, como a melhora no equilíbrio, na motricidade fina e na descoberta de novas atividades, o esporte também ajuda na interação social. Através do projeto, hoje Eduarda tem mais amigos, escuta a professora e leva para casa tudo que aprendeu, contribuindo para o seu próprio desenvolvimento. Aos poucos as dificuldades foram amenizadas, principalmente a relação entre os pais e a menina. Durante muito tempo, foi difícil conviver e entender as necessidades que Eduarda precisava. Hoje, através do amor e do cuidado que um tem com o outro, a melhora é perceptível, não somente para a menina, mas também para os pais. Por mais que as dificuldades sejam grandes no tratamento de Eduarda, os pais contam que ela veio para mudar para melhor suas vidas e para mostrar que as diferenças precisam ser aceitas. “Foi preciso mudar muita coisa para aceitarmos Eduarda, mas a gente agradece muito, porque isso nos fez perceber o quanto somos abençoados por hoje ter uma família tão bonita, alegre e unida.”, comenta o pai. Descoberta tarde? Não para Matheus Por meio da ginástica, Matheus Varreira também se descobriu. Mas no seu caso, a ginástica veio junto de transformações maiores em um curto período de tempo. Matheus descobriu que era autista só no ano passado, já com 30 anos de idade, através de uma palestra que ele e os pais foram convidados a assistir. A mãe conta que desde pequeno sabia que o menino tinha algum atraso no desenvolvimento. Ele começou a falar com quase cinco anos de idade, sempre foi quieto e não interagia com ninguém, nem no colégio, onde acabou deixando os estudos de lado. Quando era criança Matheus fazia sempre acompanhamento com psicólogos, onde ele foi identificado com toque, principalmente pela mania de limpeza e de organização. Segundo
a fonoaudióloga Berenice, é comum o autista precisar da organização. “Quando o entorno está desorganizado, o autista fica mais perdido e sem saber onde está. Eles são apegados à rotina e a organização. Por isso, muitas vezes parece toque, mas é porque eles precisam de tudo em ordem para se sentirem mais seguros.”. A ginástica ajudou Matheus principalmente no desenvolvimento. Atividades que antes eram necessárias para sua organização hoje são deixadas um pouco de lado, e as que antes não despertavam interesse, hoje motivam Matheus cada vez mais. “Quando ele começou a ir à ginástica, passou a se interessar por tudo e ainda voltou a ir à escola. E aí ele começou a ir sozinho para as aulas, a caminhar pela cidade e conhecer novos lugares. Foi aí que surgiu a oportunidade de um emprego.”, comenta o pai. A alegria em trabalhar está estampada no rosto de Matheus e principalmente dos pais. Hoje eles contam que Matheus é o orgulho da vida deles e transformou a vida de todos com a sua determinação. O novo emprego, além de motivar a família toda, serve de exemplo para outras famílias a não desistirem de seus filhos. O desenvolvimento é lento, mas seguido com determinação tende a melhorar o diagnóstico. Hoje, além de trabalhar e voltar a estudar, Matheus tem novos sonhos, “Agora eu quero morar sozinho em Santa Cruz do Sul e depois que terminar a escola quero ser professor.”, disse, com alegria por tudo que está conquistando. Assim como Matheus e seus pais, a família de Eduarda também acredita em um futuro promissor, principalmente dentro da ginástica. Por ser o destaque da turma e conseguir ter um bom rendimento, quem sabe o futuro da Eduarda não tem grandes surpresas? Para o pai da menina, Eduarda já é uma vencedora. Ele fala com orgulho que hoje a filha é carinhosa e inteligente. Mas acima disso, ele consegue dizer com o coração cheio de amor: “eu aprendi a amar a Eduarda. Ela é meu grande motivo de viver. Meu orgulho”, sacramenta.
MAÍRA FARINON
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Sempre juntos
Quando há afeto, dificuldades ou transformações podem ser contornadas MAÍRA FARINON REPORTAGEM
Quem caminha pelas ruas do Bairro Bom Jesus e passa em frente à casa branca de paredes encardidas pela ação do tempo, protegida por longas grades azuis, pode enxergar uma mescla de cabelos brancos sentados em bancos dispostos pelo pátio. As generosas árvores crescidas à volta da habitação fazem sombra para o grupo que aproveita o sol mais ameno das tardes de outono. Quem vê a turma talvez não tenha ideia dos múltiplos universos que lá se encontra. Basta cruzar o portão de ferro e caminhar em direção à entrada para se perceber olhares curiosos e sorrisos tímidos. “Será que estão acostumados com pessoas de fora?”. Talvez não seja comum visita em asilos como este. No refeitório da Associação de Auxílio aos Necessitados (ASAN), uma senhora assiste TV tranquilamente acomodada num conjunto de mesa e cadeiras. A postura ereta e as roupas muito bem conservadas destoam do grupo da entrada. Contudo o que mais chama a atenção são as unhas caprichosamente pintadas e as joias, todas douradas; brincos delicados, anéis e uma corrente de elos adornada por um pingente. Quem seria ela? “É a Ana*, mora aqui”, explica uma das cozinheiras. A senhora vaidosa de cabelos alinhados, percorreu um longo caminho até morar no
asilo. Ana nasceu em Venâncio Aires há 73 anos, aos cinco, mudou-se para a Santa Cruz do Sul acompanhada do pai e do irmão mais novo; motivo: a mãe faleceu após uma cirurgia. Na nova cidade, o rígido policial militar casou-se novamente. Engana-se quem pensa que nossa personagem real, enxergava na madrasta uma figura materna; ela era vista com rancor. Diferente, o sentimento cultivado pelo irmão era de afeição e mesmo décadas após o acidente fatal que o vitimou com dezoito anos, a senhora ainda o reverencia com carinho. Marcada pela perda precoce de seus familiares, Ana conheceu um rapaz divorciado com quem viveu por quase quarenta anos. Da longa união nasceu Pedro. “Tivemos um filho e o doutor disse que ele viria com um probleminha de saúde”, contou, enquanto cruzava os dedos sobre a mesa, referindo-se ao fato de Paulo ser portador da Síndrome de Down. Durante a infância, os pais chegaram a pagar uma professora, a qual dava aulas particulares para a criança, pois esta não tinha condições de frequentar uma escola. Ao longo dos anos Ana dividia-se entre os afazeres domésticos e os cuidados com o menino. Após a morte do companheiro, Dona Ana continuou vivendo com o filho, hoje com 37 anos,
na casa da família até ficar doente e ser internada num hospital. O medo de deixar Pedro só e a difícil rotina de cuidados diários que um portador de necessidades especiais precisa, foram decisivos na mudança para o asilo. Hoje Ana divide quarto com duas idosas na ala feminina, enquanto Pedro dorme na masculina. Trocar o conforto da casa própria por um lar onde se partilha espaço com outras dezenas de pessoas pode não parecer uma boa escolha, entretanto, a senhora mostra-se satisfeita. A preocupação que acompanhava suas idas para o mercado ou para o banco, quando o filho ficava sozinho em casa, não existe mais. Hoje ele tem liberdade para caminhar pelo pátio e a mãe tranquilidade, não há perigo. “Para mim é melhor aqui, o Pedro não sabe se uma pessoa é boa ou ruim, não entende que se sair na rua um carro pode pegar. Dia 11 de julho vai fazer dois anos que moramos aqui”. Diante de enredos como este se percebe que independente dos problemas, o que é válido ao final da jornada, são os laços de afeto, apesar das transformações, mãe e filho permanecem juntos. *Os nomes exibidos nesta matéria foram alterados para preservar a identidade das personagens.
FRANCIELI GRAFF
Às vezes é difícil recomeçar
A triste realidade de quem tem que reconstruir sua vida, porém se depara com a indiferença da sociedade FRANCIELI GRAFF REPORTAGEM
Por mais que não pareça, existe um grande problema que as pessoas que um dia cometeram um crime enfrentam ao voltar para o convívio social. Esse problema é a falta de confiança que os demais membros da sociedade têm com esses que um dia foram parar na cadeia por um crime que cometeram, onde todos os olham com diferença e com medo. Siderlei Silveira de Aguiar pode contar como é essa tentativa de voltar a ser visto pelos cidadãos como uma pessoa normal, depois de tudo o que aconteceu em um passado não muito distante. Essa luta travada em tentar provar para todos que mudou, que depois de ter pagado por um crime que cometeu há oito anos, ele pode sim ter uma vida normal, viver como uma pessoa igual a todas as outras. Na teoria, isso talvez até aconteça com facilidade, mas na rotina do dia-a-dia não é assim que as coisas funcionam. Derlei, como é conhecido por todos, conta que cometeu o crime em legitima defesa.
Mas por conta disso cumpriu pena por dois anos e dois meses. Começou com um mês em regime fechado. Depois foi liberado para cumprir o regime semiaberto. Nesse tempo, voltou a trabalhar para o mesmo homem com quem trabalhava antes de ser preso, e onde estava quando cometeu o crime. Como os patrões moravam em Gramado Xavier, ele, por estar em regime semiaberto, tinha que ir todas as noites para o presídio em Santa Cruz do Sul, passando grande parte do tempo na estrada, indo e vindo. Mesmo assim, a família que o acolheu de volta não o dispensou. “Sou grato a eles por tudo, não me colocaram na rua quando eu precisei. Eles foram a família que eu não tive.” falou Siderlei. “Eu dei a ele essa oportunidade porque ele não é uma pessoa ruim, teve o azar de cometer esse crime, mas pagou por ele e tem o direito de refazer a sua vida. Merece ter outra chance” disse Normindo Graff, que era patrão de Siderlei antes dele ser preso, enquanto cumpria a pena, depois que cumpriu a sua conde-
na, e agora, alguns anos depois. Mas com as pessoas que moravam na localidade na época em que isso aconteceu, as coisas não funcionavam dessa maneira. A comunidade não deu a Siderlei a oportunidade e a chance que a família de Normindo lhe deu. Muitos tinham receio de ficar por perto, e a maioria dos que ainda conviviam com ele ficavam sempre vigiando, cuidando os seus passos, tudo o que fazia. “Era estranho saber que pessoas com as quais eu convivi desde sempre, tinham medo de mim e ficavam me vigiando para saber o que eu iria fazer. Era como se eu estivesse dentro da própria prisão, com os policiais o tempo todo me vigiando”, comenta Siderlei. Com 22 anos de idade, Siderlei matou uma pessoa com um tiro na coluna. Foi condenado a sete anos de prisão. Destes sete anos, cumpriu apenas dois anos e dois meses e depois foi solto. E mesmo depois de ter pagado pelo crime que cometeu, a sociedade ainda não o aceta de volta,
cem que até pena sentem da gente. Eles não entendem que o fato de eu ter cometido um crime há oito anos não faz com que eu vá fazer algo do tipo hoje, eu não sou um criminoso. Aquilo aconteceu daquela vez, mas eu nunca mais quero fazer nada novamente”, relata Siderlei. Ele conta que, mesmo na comunidade em que nasceu e cresceu e as pessoas o conhecem, ainda assim ficam afastadas. “Eu acho isso estranho porque eles me conhecem, sabem quem eu sou, o motivo do crime e tudo. Não consigo entender porque agem dessa forma comigo.” A condenação do preso se dá em forma de privação de liberdade, fazendo com que ele leve uma vida muito estressante. Mas não é só isso que a prisão traz para quem um dia cruzou por lá. Ela traz consigo um fardo que ele carregará junto por muito mais tempo que todos imaginam. Até ele mesmo, afinal de contas, nunca mais será o mesmo, carregando consigo as marcas que a prisão deixa, sem contar, que nunca mais chegará aos lugares e será tratado como o cidadão que era antes de ter essa passagem pelo presídio. Siderlei conta que ao ir a um banco, mesmo que o seu crime não tenha nada a ver com assalto ou algo relacionado a dinheiro, é olhado com diferença. “Um dia eu cheguei a um banco e o segurança já começou a fazer um monte de perguntas, querendo saber
tudo quanto era coisa, e só comigo que ele agiu daquele jeito, o resto das pessoas que estavam no banco foram tratadas de forma normal, mas essas outras pessoas não tinham sido presas um dia, e eu tinha e isso muda tudo.” comenta Derlei. Para tentar fazer com que o apenado tenha uma volta para a sociedade mais tranquila e esteja um pouco preparado para trabalhar com o que vai encontrar, a Psicologia tenta amenizar essa situação através de práticas de programas de reabilitação e inclusão social para que se possa evitar a reincidência de crimes, e um convívio com as pessoas da sociedade. O psicólogo entrega projetos que permitem modificar e manter a conduta apropriada às regras do sistema prisional e proporcionam ferramentas que possam ser usadas no momento em que voltarem ao convívio social. Entre elas, existe a orientação psicológica, os grupos de convivência para promover a vida em comunidade, e o atendimento familiar, que tem como objetivo manter o vínculo familiar, pois o apoio da família é muito importante para uma reintegração passível do ex-detento com a sociedade. Mas, no caso de Siderlei, ele conta que a sua família não lhe deu apoio depois que ele foi solto e nem quando estava preso. Pelo contrário, se afastaram. Ele afirma que quando mais precisou, foi quando eles menos lhe ajudaram. “Meus
irmãos não estavam nem aí para mim. Meu pai eu até esperava, mas com eles eu me entendia muito bem, não imaginava que fossem agir dessa forma” conta Derlei. Mesmo com toda a dificuldade que passou na vida, os problemas que enfrentou e as pessoas o tratando com indiferença depois de saber que ele já foi um presidiário, Siderlei não desanima. Acredita que um dia as pessoas vão aceitar que ele mudou, que o fato de ter cometido um crime uma vez não faz com que ele cometa outro novamente. “Sonho com o dia em que as pessoas vão me tratar como me tratavam antes de tudo isso acontecer, com o dia em que vou chegar a uma festa e ninguém vai me olhar torto e ficar com medo do que eu possa vir a fazer. Espero que um dia isso aconteça. Por enquanto, eu vou levando a minha vida, mas não vou desistir de ter essa liberdade novamente, porque só sair da prisão não basta. Eu quero ser aceito pelas pessoas e espero que me tratem como me tratavam antes de tudo isso acontecer.” reforça Siderlei. Ele está sempre de bem com a vida, não se deixa abater pelos empecilhos que aparecem e encara tudo com um sorriso no rosto. Afinal, como ele mesmo diz: “Eu nunca perco a esperança de ter a vida que eu tinha. Se eu pudesse, não teria feito nada disso, mas não dá pra mudar o passado”, finaliza Derlei.
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como a pessoa que ele era antes de tudo ter acontecido. Ele conta que é difícil essa rotina de estar sempre sendo observado e julgado por um crime que já pagou há muito tempo. “É como se eu fosse o pior dos bandidos, parece que nunca vão confiar em mim novamente.” afirma Siderlei. Siderlei conta que sentiu, e sente até hoje que a maioria das pessoas que conheceu no decorrer da vida lhe enxergam com diferença e ficam longe, assim que sabem que ele já foi um presidiário. “Quando eu vou para bailes e festas, as pessoas ficam retiradas, num canto, não chegam perto. E se a polícia aparece por lá então, ficam no pé da gente, fazendo um monte de pergunta, coisas que não fazem com os outros. Mas os outros não foram presos um dia.” diz Siderlei. Ele já morou em muitas cidades depois que cumpriu a sua pena, e conta que as pessoas antes de saberem que ele já tinha sido preso agiam de um jeito, e depois que descobriam mudavam totalmente a forma de conviver com ele, como se tivessem medo e receio dele ser uma pessoa que pudesse colocar em risco a vida dos demais que convivem em um lugar próximo a ele. “Antes de saberem que eu já fui preso, me tratam normal, como tratam todos os outros. Quando descobrem, começam a se afastar, não chegam mais perto e olham com indiferença, como se eu fosse uma pessoa perigosa. Uns pare-
Crônicas Não sei – ou ignoro - o porquê do motivo que, desde 2012, quando penso em estradas, me lembro de ônibus. Tudo bem, talvez seja uma associação óbvia, mas o fato de fazer uma viagem intermunicipal, com duração de meia hora, quatro vezes ao dia, justifica. Ao passar pelas mesmas estradas diariamente coisas interessantes acontecem. É HELOISA CORRÊA inevitável sentar ao lado das mais diversas pessoas, que podem ser falantes, ruivas, cheirosas, doentes, alegres. Num belo dia de chuva ou num péssimo dia de sol é possível ver aquela casinha tão singela que nunca havia sido notada. Dá para pensar quantos mil quilômetros percorreremos durante toda a vida por caminhos que jamais imaginamos hoje. Estradas, muitas vezes, são o início e o fim da vida de pessoas. Ao pensar para es-
crever este texto, me pego pensando quanto significado não literal essa palavra “estrada” carrega. O dicionário alega que é um caminho, mais ou menos, largo, destinado ao trânsito de homens e veículos. Pois bem, todas as estradas que conheço cumprem seu papel. Umas com mais qualidade que outras, mas isso já é assunto para outro texto. Apesar de saber que ainda tenho muito chão pela frente, o que percorri até então já me proporcionou muitas e boas. A 287, por exemplo, me permite correr atrás do meu sonho. Já uniu meu amor e eu inúmeras vezes. Já me fez entender que usar o cinto de segurança é necessário. Em uma dessas idas e vindas, sentei no banco em frente a uma moça. Não vi ela. Só a ouvi. Ela falava ao telefone. Foi então que a minha imaginação deixou a estrada e invadiu as
vias áreas, decolou. Pela sua voz, deduzi que tivesse uns vinte-e-poucos, cabelos castanhos escuros e que eles estavam presos. Também acredito que ela curse algo na área da saúde. Durante a conversa que ela estava tendo com o namorado, sobraram xinga-mentos. Ela, vejam só, não queria ir até ele. Naquele momento, a estrada estava levando-a à sua mãe. Algumas vezes, tentou convencê-lo a seguir o mesmo caminho que estava ela trilhava, mas, por fim, sem êxito, desistiu. De vez. Aos gritos, pediu para que ele não a procurasse nunca mais. A moça desligou o celular, que voltou a tocar, mas não obteve resposta. A estrada do casal acabara ali. E a minha, por hora, também. Chegou minha vez de descer do ônibus e de minha imaginação voltar aos trilhos.
O que deixo para trás na vida, vai passando diante de meus olhos através da janela do ônibus enquanto percorro a longa estrada da vida. Acomodado na primeira poltrona, vejo que o caminho é longo, tortuoso e cheio de altos e baixos. Como passageiro, vou viajando para onde minhas escolhas me levam. Não sei o que vai acontecer quando chegar ao meu destino. Só sei que preciso chegar. CLÉBER NASCIMENTO Algumas coisas nem me importo de deixar no ponto de partida, afinal são mesmo desnecessárias e não vão me fazer falta. Ao me acomodar na poltrona do coletivo, começo a refletir sobre o que valeu ou não a pena. É um bom momento para relaxar e colocar ordem nos pensamentos. Enquanto a vida
passa através dos olhos, mergulho na minha própria existência, com o único objetivo de me preparar para quando chegar a hora do desembarque. Infelizmente algumas dessas coisas que vão ficando pelo caminho deixarão saudades. É que a bagagem que eu arrumei para pegar a estrada já estava pesada demais. Naturalmente não poderia levar tudo. Fazemos uma seleção natural nessa hora. Ficam somente na lembrança, e mesmo que eu quisesse ver não conseguiria, pois a janela do ônibus não me permite. Enxergo até certo ponto que logo vai desaparecendo e se distanciando cada vez mais. Reclino o assento e tento cochilar, mas sinto que paramos em um posto de pedágio. Pois é. A estrada da vida cobra al-
gumas taxas que não achamos barata. Reclamamos, mas sempre temos que pagar. Até porque senão, a viagem não continua. Tudo certo é hora de seguir, ainda há muito chão. Eu faço minhas escolhas. Eu quis viajar nesse ônibus. Eu sou dono do meu destino. Com ganhos, com perdas, enfim, com todas as dificuldades que essa estrada me proporciona. De cabeça erguida sigo firme rumo ao meu destino. E o legal nisso tudo é que, ao chegar, a viagem não acaba. Pelo contrário. É o início de outra, Com novos desafios, novas escolhas, derrotas, vitórias. É a longa estrada da vida nos ensinando como viajar por ela. Mas por enquanto, vou descer para esticar um pouco as pernas.
De dividir caminhos
Pela longa estrada da vida
GUILHERME GRAEFF
Carona high tech JORNAL UNICOM 27
A revolução do velho hábito de viajar de carona a partir da tecnologia GUILHERME GRAEFF REPORTAGEM
Seja uma senhora que anda a mais de 170km/h ou o carro que estraga na beira da estrada, o que acontece não muda. Talvez a forma, mas o processo não. Popular nos anos 80, eternizada nas páginas dos livros, as caronas voltam à tona com a força da tecnologia. A beira da estrada e o polegar deitado apontando pra onde se quer ir, estão sendo trocadas aos poucos pelo toque do teclado ou da tela do smartphone. Quando surgiu a necessidade de ir até Porto Alegre com baixo custo para ver a sua namorada, o advogado de Cachoeira do Sul Pablo Raphael, 24 anos, não pensou duas vezes e criou grupos de caronas solidárias em Cachoeira do Sul e Santa Cruz do Sul. As caronas possibilitariam ver sua namorada e de quebra fazer novas amizades. Na era dos smartphones e dos brasileiros cada vez mais conectados no Facebook e nos aplicativos móveis, os grupos de caronas tem sistemas simples e eficientes. Onde se procura ou se oferece carona e quando há compatibilidade, os usuários combinam os detalhes entre si. Também usuária dos grupos de caronas e aplicativos com o BeepMe, a moradora de Pelotas, Anna Silveira vê as caronas solidárias com bons olhos para quem quer ir a Porto Alegre. “Mas já quem precisa ir ao interior é difícil conseguir de Pelotas a Santa Cruz, que é um dos meus mais procurados caminhos”. Quando o estudante Cris-
topher Mclandess viajou da cidade de Anandale até o Alasca, não existia a facilidade dos aplicativos, grupos e sites. Era necessário parar na beira da estrada e sensibilizar com o dedo quem estivesse passando. Na história contada por Jon Krakauer em 1996 no livro Na Natureza Selvagem e depois adaptada ao cinema por Sean Penn no filme de mesmo nome, conhecemos Mclandess através das histórias que viveu contadas por aqueles que acompanharam a sua trajetória até Stampedtrail. O mundo avança, a tecnologia também, mas andar de carona se mantém da mesma forma. Estrear no mundo das caronas com uma senhora de 68 anos que andava a 170km/h foi com o advogado Pablo. “Avisei ela do perigo que estávamos correndo, mas a pressa de ver o filho era maior. Só me restou rezar e apertar o cinto de segurança”. Quando o carro da carona contatada via redes sociais estraga no meio da estrada, o jeito é parar no acostamento e levantar uma nova carona. Com a ajuda do companheiro de viagem, um estudante de teatro que já havia viajado de carona pelo Rio Grande do Sul, a estudante Anna Silveira conseguiu em pouco tempo outra carona até Porto Alegre, com um senhor que fazia o trecho todas as semanas, pois trabalhava em Pelotas e tinha família em Lages. Com a popularidade dos aplicativos e dos grupos, o governo brasileiro está de olho na prática. Durante a produção dessa reportagem,
ocorreu em cinco cidades do Brasil, um protesto contra o aplicativo Ubber. O protesto, que reuniu cerca de 5 mil taxistas só em São Paulo, visava questionar a legitimidade do Ubber, já que o aplicativo conecta pessoas a procura de carona e motoristas particulares. O Código Brasileiro de Trânsito (Lei 9503/97) pelo artigo 231, proibe o transporte remunerado de pessoas por veículo não-licenciado. Para Pablo, advogado e criador de um grupo de caronas solidárias no Facebook, a prática de carona onde motoristas e caroneiros dividem os custos é legal. Existe já um projeto de lei (PL 8074/14) que visa alterar a constituição brasileira e tornar legal as caronas às vistas da lei brasileira. Pablo vê a necessidade da atualização do Código Brasileiro de Trânsito. “Se você tem a “carona” como fonte de renda, é uma atividade desenvolvida de forma ilegal. Desta forma, vejo como indispensável uma atualização sobre o tema, pois o interesse da maioria deveria se sobrepor da minoria, ou seja, as empresas de transportes”. É importante notar que cada vez mais a modalidade de caronas solidárias no Brasil cresce à medida que parar na beira da estrada diminui, isso mostra que cada vez mais a tecnologia se faz presente em nossas vidas. Muito além de dividir os custos, compartilhar caronas também significa colaborar com o meio ambiente e ajudar a diminuir o número de carros na rua.
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Há vida à margem da BR 471 Bairro de Santa Cruz do Sul passa despercebido por quem cruza a rodovia SUILAN CONRDADO REPORTAGEM
Não tem túnel verde, nem praça bem cuidada, nem catedral católica. O comércio é parco: alguns mercadinhos, uma loja de roupas, nenhuma farmácia. O ponto de ônibus mais próximo fica na BR-471, uma das rodovias mais movimentadas da região do Vale do Rio Pardo. Uma veia que pulsa à margem de um dos bairros mais populosos de Santa Cruz do Sul: o Santa Vitória. Sempre me perguntei como seria morar à beira de uma rodovia barulhenta, num subúrbio distante, visto muitas vezes como um local hostil, violento. Tão longe e ao mesmo tempo tão perto da Santa Cruz verdejante, de ruas bem cuidadas e casas majestosas. Então, no início do outono, em uma manhã de céu azul e sol a pino, fui desbravar as ruelas asfaltadas do Santa Vitória. Antes mesmo de chegar ao bairro, uma dificuldade: atravessar a rodovia. Não há semáforo ou passarela. É preciso esperar. Alguns se arriscam e serpenteiam em meio aos sons de buzinas. Os carros e caminhões que passam em alta velocidade deixam o rastro de uma fumaça cinza no asfalto. O vento morno que sai dos motores é uma falsa carícia na pele: um passo em falso e já da para sentir o cheiro da morte.
Do outro lado, uma placa anuncia: Bairro Santa Vitória. Um cavalo pasta tranquilamente, contrastando com o frenesi do tráfego na BR. Bairro adentro as ruas estão calmas, poucos moradores transitam. Meia dúzia de crianças brincam no meio fio de uma calçada. Nenhuma delas está com celular ou tablet na mão. Os brinquedos são super-heróis de plástico, como costumávamos ver na infância de outrora. Em frente às residências, muitos moradores tomam mate e jogam conversa fora. Em uma pequena mercearia, a dona de casa compra as verduras para o almoço. Todos se cumprimentam. Todos se conhecem. E eu começo a compreender o âmago da palavra comunidade. O mercado era a casa de Deus Seu Danilo Ramos, 67 anos, é dono de um pequeno mercado no bairro desde 1978. Naquela década, o Santa Vitória tinha outro nome e, segundo ele, era um mato só. Tempos difíceis. Ninguém por lá tinha carro e não circulava ônibus. “A gente vivia esquecido nessa colônia; daí eu tive a ideia de abrir o mercadinho, achei que seria um bom negócio pra mim e pros moradores”. O estabelecimento continua no mesmo lugar há
37 anos. E serviu até mesmo de igreja, nos anos 80. Danilo conta que aos domingos, para ir à missa, ele e a esposa tinham que ir a pé até a Catedral São João Batista, no Centro de Santa Cruz. Cansado, ele resolveu ceder o mercadinho para que um padre pudesse rezar a missa no bairro. Assim, em meio a batatas e bananas, todos os moradores poderiam renovar a fé sem peregrinar quilômetros até a área central da cidade. As prateleiras eram afastadas e os fiéis faziam um círculo de orações. Uma cruz, daquele tempo, continua até hoje pendurada na parede, sobre os vinhos. “Ela me abençoou”, observa Danilo. Hoje, a igreja do bairro fica em uma casa alugada, mantida através da Diocese de Santa Cruz e de doações dos próprios moradores. Nós somos classe A Elionar Fernandes, de 68 anos e Areci Fernandes de 66, moram no Santa Vitória há 20 anos. Quando pergunto se gostariam de ir embora dali, a resposta vem rápido: “não, moça! se eu quisesse eu vendia minha casinha e me ia embora com a mulher. Mas o ‘causo’ é que aqui tem muita gente boa, a gente não pode abandonar os vizinhos”.
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Ele fala isso com a cuia na mão. Está de folga essa manhã. Toma um mate no pátio de casa, na companhia da esposa e da vizinha. Apesar da perigosa BR, apesar da violência que tem aumentado no bairro, apesar da distância do centro, eles garantem que é um bom lugar para viver. “Aqui nós temos amigos e essa maravilha aí na esquina”. Seu Elionar se refere à Casa de Saúde Ignês Irene Moraes, conhecida como hospitalzinho. Para ele, é um privilégio contar com um plantão de saúde tão próximo de casa. “O mais importante na vida é a saúde e aqui temos um médico sempre de prontidão”, complementa sorrindo. Eu sinto um aperto no peito ao pensar que, para aquele homem, basta ter um hospitalzinho na esquina para ser feliz. Engulo o mate e o dó. Comento sobre a violência. O casal confirma as estatísticas do 23º Batalhão da Brigada Militar de Santa Cruz. Os homicídios têm crescido. Não negam que se sentem inseguros e que tomam medidas de precaução, como manter a casa trancada ao anoitecer. Além disso, os Fernandes ressaltam que o residencial Bem Viver, um complexo habitacional para mais de mil moradores, que deve ser entregue ainda este ano, preocupa, já que a população no bairro tende a aumentar. “A gente não sabe de onde vai vir toda essa gente”, desabafa Elionar. “Mas quem não deve, não teme.” Eles ainda contam com a guarda do Guga, cão de estimação. “Aqui nós somos classe A, moça. Perigoso é lá pra baixo”. Elionar aponta em direção ao novo complexo de moradias que pinta o horizonte com telhadinhos coloridos. Depois de mais umas cuias, me despeço do casal de aposentados que continuam na labuta. Ela, na safra do fumo, ele, como operário na prefeitura municipal.
procurando trabalho nas indústrias da cidade, ele volta pra casa. Desacorçoado, perambula pelas ruas da localidade e então se dá conta da quantidade de latinhas de refrigerante e cerveja, garrafas pet e outros materiais descartáveis jogados pelo chão. Começa a juntar e a separar os materiais para venda. O negócio dá certo. Luis começa a ganhar dinheiro com a venda do lixo. Hoje ele é um empresário bem sucedido. Emprega diretamente três funcionários e recolhe por mês 120 toneladas de lixo reciclável na região de Santa Cruz. Todo o material é recolhido, separado e vendido para empresas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Apesar da rentabilidade e de ter condições de se mudar, Luis mantém o centro de reciclagem
no bairro Santa Vitória. “Foi aqui que tudo começou, aqui que deu certo”. Ele se orgulha em contribuir com a limpeza da cidade, com o meio ambiente e em dar oportunidade de trabalho aos três amigos do Santa Vitória. “Isso aqui não é só um monte de lixo empilhado. Isso aqui é a nossa vida, nosso ganha pão”, sacramenta.
isso há 15 anos. A freguesia do bairro sempre compra com o Rubem Reis. Ele me oferece um pacote. Custa R$ 3,00. Estou sem dinheiro. Se não, compraria. Não por pena, mas porque parecem deliciosas. É a esposa dele quem as faz. Receita antiga.Nosso diálogo é breve. Quando tento obter mais informações e peço para fazer uma foto, ele se exalta: “quem é você? O que quer? É da fisCorrendo com bolachas calização?” Tento explicar que sou apenas uma estudante de Quando volto à margem da jornalismo atrás de uma boa BR 471, fico parada no acos- história para contar. Tarde detamento contemplando o vai e mais. Ele não me ouve. Ou não vem do trânsito. Tento contar o acredita e sai correndo BR-471 número de veículos que cruzam a fora. Dou um zoom na máa rodovia por minuto. Mas nun- quina e consigo capturar uma ca fui boa com números. Vejo imagem do seu Rubem correnum senhor grisalho, de boné, do com bolachas. Fiscalização? com uma sacola na mão. Ele Eu só queria a receita dos bisestá vendendo bolachas. Faz coitos.
No meio do lixo, uma oportunidade SUILAN CONRADO
Há dez anos, Luis da Silva, 41 anos, morador do bairro Santa Vitória, estava desempregado. Depois de mais um dia
Histórias desviadas
BR-386 e ERS-244 podiam ter dado outro rumo para Venâncio Aires, não fossem decisões de dois governadores do Estado FELIPE KROTH REPORTAGEM
Em Venâncio Aires, quem gosta de política, de história ou (talvez principalmente) de conversas de bar já ouviu dizer que a BR-386 era para ter um traçado diferente do que tem hoje. De acordo com uma lenda corrente na cidade, a rodovia deveria ter passado por Venâncio Aires, mas não passou, por opção do prefeito do município na época, Alfredo Scherer. A rodovia federal, também conhecida como Estrada da Produção, tem 445 quilômetros de extensão e corta o estado entre Iraí, na fronteira com Santa Catarina, e Canoas, na Região Metropolitana. O que se conta em Venâncio Aires — e muitas vezes com veneno nos lábios —, a respeito da definição do traçado da BR386, é que estava tudo certo para que a rodovia passasse pela cidade, mas Scherer — que governou o município entre 1959 e 1963 —, preocupado com a segurança dos moradores e, alguns chegam a dizer, com o trânsito das carroças, abriu mão da via federal. Uns dizem também que algumas máquinas já estavam em Venâncio Aires, para abertura da estrada, e que o então prefeito teria pago as despesas para que elas fossem transportadas para Lajeado, onde o prefeito (é claro) queria a construção da
rodovia. A BR-386, que na época de sua construção foi batizada de Rodovia Presidente Kennedy, desde 2007 tem o nome de Rodovia Governador Leonel de Moura Brizola. Uma outra história sobre a definição do traçado da rodovia dá mais protagonismo justamente a esse personagem, o Governador do Estado do Rio Grande do Sul na época e idealizador da Estrada da Produção. “Ele contava que precisava de uma ligação de Porto Alegre com a Serra e um dia, andando de avião, ele viu esse vale aqui na região de Lajeado e achou que ali seria ideal para passar a rodovia, teria poucos transtornos. Embora já tivesse um caminho por Venâncio, que era usado na época, ele achou que fazendo por ali encurtaria a distância e aí encomendou o projeto de engenharia”, conta Telmo Kist, vereador em Venâncio Aires pelo PDT, que diz ter visto várias vezes Brizola contar essa história, em reuniões estaduais do partido. O atual prefeito de Venâncio Aires, Airton Artus — um pedetista cuja maior influência política é o próprio Leonel Brizola —, também não acredita que Alfredo Scherer tenha aberto mão da rodovia. “Eu acho que foi uma questão emi-
nentemente técnica. O Brizola não era um homem de ceder a pressões políticas. Ele fazia o que ele achava que era melhor pro estado e pro futuro. Então acho que a 386 tem esse traçado por essa opção de viabilidade técnica e de custo”, afirma Artus. “O Seu Alfredo Scherer tinha um estilo muito conservador, muito moderado, e isso pode ter levado a uma interpretação desse tipo”, lembra o prefeito. Airton Artus acredita que o surgimento desta lenda sobre a 386 tenha relação com o jeito pelo qual, historicamente, se faz política na cidade. “A política, aqui, ela sempre foi feita de manifestações tentando denegrir a imagem do adversário”. Antes da Estrada da Produção, uma outra rodovia levava cargas e desenvolvimento morro acima: a ERS-422, até hoje conhecida em Venâncio Aires como Estrada da Serra. Ela liga Venâncio Aires a Barros Cassal, passando pelo distrito venâncio-airense de Vila Deodoro. Se a BR-386 tivesse sido direcionada para Venâncio Aires, provavelmente usaria o trajeto da 422 — que é paralelo ao da atual rodovia federal — o que teria desenvolvido muito a região. O vereador Telmo Kist acredita que, certamente,
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Deodoro, por exemplo, teria se tornado um município. “A partir do momento em que a rodovia [BR-386] surgiu, direcionou o trânsito. A região serrana aqui da cidade empobreceu, porque era uma região que vinha se desenvolvendo muito”, afirma Kist. “Entendo que as estradas estão para um território assim como as veias e artérias estão para o corpo humano”, argumenta o prefeito de Venâncio Aires, “são essenciais pro desenvolvimento, pro crescimento, pra saúde, pra vitalidade”. Não é possível dizer com certeza o que a BR-386 teria trazido para Venâncio Aires, mas, usando a metáfora de Airton Artus, essa artéria do organismo do estado certamente poderia trazer mais vida ao município, como levou a Lajeado e cidades próximas. Junior Haas é diretor de uma madeireira em Linha Brasil, interior de Venâncio Aires. A empresa que ele dirige é líder estadual em paletes e embalagens de madeira, vendendo principalmente para a Região Metropolitana do estado. A madeireira é um empreendimento iniciado pela família Haas no final dos anos 1950 e está localizada à margem da ERS-422. De acordo com Junior Haas, 60% do que é transportado pe-
los 21 caminhões da empresa, atualmente, passa pela BR-386. “A BR-386 é de suma importância para a Haas. A rodovia é o principal meio de ligação com a Região Metropolitana, maior polo consumidor do estado”, afirma. A construção da BR-386 no trajeto da ERS-422 provavelmente teria beneficiado muito a madeireira. “Se tivesse ocorrido, este projeto certamente teria trazido enorme desenvolvimento para Venâncio Aires e regiões seguintes, o que acabou ocorrendo com Lajeado. A Haas Madeiras e muitas outras empresas de Venâncio seriam beneficiadas e, muito mais que isso, as oportunidades iriam trazer empresas que não podemos imaginar”, imagina Junior Haas. Na época da construção da BR-386, um grupo de venâncio-airenses chegou a procurar o então governador Leonel Brizola para discutir o trajeto da rodovia. Brizola teria dito que o trajeto estava definido, passaria por Lajeado, mas que Venâncio receberia, como compensação, uma subestação da Companhia Estadual de Energia Elétrica, a CEEE. Essa subestação permitiria um desenvolvimento industrial do município. “E isso aconteceu”, afirma o prefeito Airton Ar-
tus, “hoje Venâncio tem muitas indústrias por causa da oferta de energia elétrica”. De acordo com Artus, este grupo que na época buscou beneficiar a cidade com o trajeto da BR, era formado por pessoas ligadas ao PTB - justamente o partido do então prefeito Alfredo Scherer e também do governador Brizola. Na ERS-244, decisão teve caráter político Cerca de três décadas depois da construção da BR-386, um outro Governador do Estado também tirou de Venâncio Aires uma via asfaltada para novas possibilidades de desenvolvimento: a ERS-244 — cuja construção chegou a iniciar durante o governo de Alceu Collares, do PDT, no início da década de 1990. A 244 faz a ligação entre os Vales do Rio Pardo e Taquari e as regiões Carbonífera e Metropolitana. Na última década do século XX, um trecho de 16 quilômetros, entre Venâncio Aires e Vale Verde estava prestes a ser asfaltado. No mesmo período, vários municípios surgiam na região, entre eles, Passo do Sobrado, que é vizinho de Venâncio Aires e fica ainda mais próximo de Vale Verde. A primeira administração de Passo
do Sobrado era do PDT, mesmo partido do então governador Collares, e queria que o município tivesse acesso asfáltico. A ERS-405, que faz uma ligação entre a RSC-287 e a ERS-244, surgiu como alternativa e acabou virando prioridade para o governo da época. No trecho da 244 que liga Venâncio a Vale Verde estão, até hoje, três pontes que ligam nada a lugar nenhum e se apresentam apenas como monumentos ao desperdício de dinheiro público. “No caso da 244, talvez um envolvimento político um pouco maior poderia ter sido decisivo”, afirma o prefeito de Venâncio Aires. Airton Artus, no entanto, lembra que, na época, a promessa era pavimentar as duas rodovias. “A ideia que se firmou, e por isso eu participei de uma solenidade lá no Palácio Piratini, era que os dois trajetos fossem feitos. Depois trocou o governo e foi feito só um”. O vereador Telmo Kist, no entanto, diminui o prejuízo a Venâncio Aires, destacando o benefício que o acesso asfáltico — demanda de muitos municípios gaúchos até hoje — trouxe para Passo do Sobrado. “Olhando agora, ele tomou uma atitude correta, de fazer um acesso a um município novo. Nós aqui já tínhamos acesso”, afirma.
ASSIM NASCE
A CAPA
Por Guilherme Graeff Uma das coisas mais marcantes de um jornal, além de seu conteúdo, sem dúvida nenhuma é a capa. Como editor, resolvi fazer a foto com a ajuda do Fábio Goulart. Partimos para a RS-409, em Vera Cruz. Falei que minha ideia era uma capa que mostrasse um caminho. Uma das coisas curiosas que ocorreram durante o processo da foto eram os carros parando e achando que a gente era da polícia. Depois de duas horas de trabalho, chegamos a uma variedade interessante de fotos. Levei para a turma o material de, juntos, chegamos ao resultado. Aqui você confere algumas das fotos que foram produzidas. Por Fábio Goulart “Eu pensei em fazer na rua que dá acesso à Vera Cruz, onde tem aquelas tipuanas, sabe?” Foi assim que começou o pequeno desafio de fotografar a capa do Unicom, proposto pelo aluno Guilherme Graeff. Era uma tarde de muito sol, e lá fomos nós, em uma rua movimentada, usando uma câmera full-frame da Canon com o apoio de uma objetiva (chamada popularmente de lente) 35mm. O diafragma estava fechado ao máximo, em f22, pois tínhamos ali um objetivo e um problema: o de termos uma área grande em foco, e o de conseguir combater a forte luz do sol naquela tarde, que batia direto na lente da câmera. No final de tudo, conseguimos um bom resultado e até mesmo esses pequenos amigos chamados de flares, que são causados pelas luzes do sol (ou qualquer outra fonte de luz) que batem direto nas lentes da objetiva.
FÁBIO GOULART