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editorial UM MOMENTO DIFERENTE O jornalismo vive, muito provavelmente, um dos momentos mais paradoxais de sua linha evolutiva, iniciada há pelo menos 300 anos: se, de um lado, a tecnologia – em especial a partir da transposição dos jornais para a internet, em 1995 – passou a comprimir cada vez mais as relações espaçotemporais, sob outro ângulo o momento é particularmente rico no que toca à produção de reportagens. De um lado, a tecnologia imprimindo novas formas de se pensar e elaborar jornalismo. De outro, a reportagem recuperando um espaço que, ao final, sempre foi seu. Mais que um contra-senso, quer nos parecer que este fenômeno é passível de compreensão para além dos determinismos, basicamente porque jornalismo e tecnologia sempre andaram de mão dadas, com o perdão da má-figura. Sendo assim, e passados eventuais furores e sentenças, as evidências nos sugerem que o jornalismo enquanto forma específica de conhecimento não apenas respira como passa bem. Esta nova edição do Unicom, a terceira do ano de 2007, comprova a afirmação. O que você encontrará aqui são 16 páginas permeadas por um esforço jornalístico dos alunos das disciplinas de Técnicas de Reportagem, Jornalismo Especializado e Impresso II no sentido de dar corpo ao que há de mais caro à profissão: a elaboração de matérias de fôlego, cujo norte esteja centrado no que é diferente; não no que é usual. Mas não são apenas alunos de jornalismo os responsáveis: o pessoal da Publicidade e Propaganda – e o das turmas de Fotografia – uma vez mais se fizeram presentes em nosso propósito coletivo no sentido de não apenas se utilizarem do suporte jornal para desenvolver suas habilidades. Sua participação, seja por meio de idéias, inserção de anúncios, ilustrações ou fotografias foi fundamental para o resultado que agora você recebe em suas mãos. A isso chamamos interdisciplinaridade, mas também parceria e vontade de crescermos juntos, objetivos de todos nós. Dito isso, resta-nos desejar-lhe, como de hábito, uma boa leitura, e o convite para que, da forma que for possível, você esteja junto de nós nesta jornada e nas que estão por vir.
Promoção: medo a R$ 1,99 o quilo! HELOÍSA POLL Não gosto muito de ir ao supermercado. Nem sei por que decidi ir naquele sábado. Talvez pela minha mãe. Coitada! Nunca tem alguém para acompanhá-la nas compras. Márcio, meu namorado, foi junto. No estabelecimento, cada um pegou seu carrinho e seguiu para os curtos corredores entulhados de produtos e gente. A estratégia deu certo. Em menos de trinta minutos, a maratona chegava ao fim, ou melhor, quase. Por sorte, havia um ponto de atendimento livre. Comecei a retirar as compras das pequenas gaiolas com rodinhas. Quando me abaixei para pegar mais um monte de pães, chocolates, sabonetes e não sei mais o que, senti que alguém segurava meu braço: - Heloísa, isso é um assalto. Olhei para o lado e vi que minha mãe deixara sua bolsa cair no chão. Levantei a cabeça mais um pouco e avistei a porta. Nesse momento, vi uma cena crucial: havia um homem, um animal, uma arma e o medo. Meu corpo gelou, minhas pernas começaram a tremer e minha garganta secou. Sem que eu pudesse evitar, as lágrimas começaram a escorrer. Avistei meu namorado que estava mais afastado do caixa e vi seu olhar desesperado. Lembrei das pessoas que havia visitado horas antes. Lembrei, também, que fiquei sem abraçar meu pai e meu irmão durante toda a semana. Meu coração, num grande exagero, se contraiu. Minha mãe dizia para que eu não olhasse para a porta. Encarar o criminoso era a pior coisa a se fazer naquele momento. A sensação era terrível.
De repente, olhei para as centenas de pessoas ao meu redor. Suas cestas estavam cheias de medo e incerteza. Em seus olhos dava para ver que, assim como eu, procuravam paz nas prateleiras. Vi que elas começavam a recuar para o fundo do prédio. Essa reação me fez pensar que os criminosos - soube que eram dois! - estavam atacando todas as pessoas paradas nos caixas. Chorei ainda mais. Não vi nada. Minutos depois, ouvi algo (um pouco) relaxante: - Pegou o malote? Pegou o malote? Então vamo embora, vamo embora! Aquela frase soou como se fosse uma nova versão do grito da independência. Mesmo com a fuga dos delinqüentes, empacotadores, caixas, fiscais e clientes permaneceram imóveis. Ouviam-se apenas os corações batendo forte e pensamentos atordoados: - Isso foi um sonho? Após a angústia, tive que esperar pelo atendimento. A moça havia sumido. Será que foi seqüestrada? Não. Ficou apavorada com a situação e saiu às escondidas. Após um longo tempo de espera - naquela situação, quaisquer cinco minutos pareciam uma eternidade - voltou ao ofício que naquele dia podia ter lhe custado a vida. Finalmente, os preços foram computados, o cheque foi preenchido e as sacolas, com a frase “orgulho de ser santa-cruzense” estampada, foram cheias. Restou apenas, no supermercado, um pedaço da segurança que eu ainda sentia, quando saía às ruas. Foi um sábado em que não enchi as sacolas de Coca-cola e, sim, de lágrimas e medo.
expediente UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - RS CEP: 96815-900 Curso de Comunicação Social - Jornalismo. Bloco 15 - sala 1506. Fone: 3717-7383 Coordenadora do curso: Mônica Pons.
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Capa Lázaro Paz Fanfa Logotipo Samuel Heidemann Impressão Graphoset 500 exemplares Revisão Carina Weber Lucas Nobre
Repórteres Carina Weber Daniela Azeredo Débora Nunes Letícia Mendes Pacheco Márcia Müller Mariane Selli Marisa Lorenzoni Poliana Pasa Rodrigo Nascimento Sancler Ebert
Ilustrações Gelson Santos Pereira Lázaro Paz Fanfa Giuseppe Fontanari Diagramação Gelson Santos Pereira Poliana Pasa Produção Mariane Selli
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Editor-chefe Demétrio de Azeredo Soster Este jornal foi produzido de forma interdisciplinar. O conteúdo editorial ficou a cargo das turmas de Jornalismo Especializado (professor Demétrio de Azeredo Soster), Técnicas de Reportagem e Jornalis-
mo Impresso II (professor Hélio Etges). As fotografias foram feitas pela turma de Fotojornalismo II (professor Alexandre Borges). Os anúncios da edição foram criados pelas turmas de Redação em Publicidade e Propaganda II (professor Fábio Hansen) e Direção de Arte I (professor Rudinei Kopp).
Veterinário descobre carrapato diferente CARINA WEBER Poderia ser mais uma simples coleta de material para fins científicos em um animal silvestre na clínica do doutor Edson Salomão! Mas não foi isso o que ocorreu. E se a pesquisa é constante na vida do veterinário, os chamados para atender animais silvestres maltratados e machucados também são. Acostumado a receber animais silvestres conduzidos pela Patrulha Ambiental, bombeiros, cidadãos e moradores, o médico veterinário Edson Salomão, ou apenas Salomão, como é mais conhecido, atende estes animais sem cobrar pelo serviço. “Não cobro quando o animal não tem dono. Depois de medicá-los, eu os reintroduzo na natureza junto com a Patrulha Ambiental”, explica. São poucos os veterinários que trabalham com animais silvestres. “Aqui na região, o único veterinário que trabalha com silvestres, há muitos anos, sou eu”, relata. Em um dos chamados da Patrulha Ambiental, a vítima era um bugio. O animal, que estava machucado, havia sido encontrado no campo por um morador, que o prendeu e chamou a Patrulha Ambiental. E como já é de praxe, o bugio foi conduzido até a clínica do doutor Salomão.
Durante um processo cirúrgico no bugio (Alouatta guariba), o veterinário constatou que o animal estava com um problema na mão, uma míase, espécie de bicheira. Apresentava um corte e os ossos chegavam a aparecer. “Tive de amputar o braço dele porque estava todo infeccionado. Ao fazer a tricotomia (retirada e raspagem dos pêlos para a cirurgia), encontrei um carrapato grudado nele”, relembra. Depois de encontrado, o carrapato foi enviado para o Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor, aos cuidados do doutor João Martins, uma das maiores autoridades sobre carrapatos no Brasil. “Ao saber do meu trabalho com animais silvestres, o doutor João Martins entrou em contato comigo para pedir que eu remetesse a ele todos os parasitas que encontrasse”. Alguns dias depois de enviar o carrapato, Salomão recebeu uma ligação do doutor João Martins. E uma surpresa: aquele carrapato, encontrado no bugio, era um achado, uma coisa muito rara e que, inclusive, o doutor João não havia conseguido classificar. E lá se foi o carrapato novamente. Desta vez, o encaminharam ao Instituto Butantan, em São Paulo, que o fotografou
Uma descoberta surpreendente E as raridades não param por aqui. Ao salvar um veado dos dentes de três cães, Salomão descobriu uma nova raridade: o carrapato (Haemaphysalis juxtakochi), que estava considerado extinto há 34 anos (data de seu último registro). “Eles achavam que esta espécie nem existia mais. E eu encontrei esta espécie de carrapato no veado bororó do sul (Mazama nana)”, explica. O veado foi encontrado por funcionários da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) e conduzido até a clínica do doutor Salomão. O veterinário o medicou e notou que havia muitos parasitas na pele do animal. O material foi remetido ao doutor João Martins. A equipe dele ficou durante uma semana a classificar e pesquisar. Foram encontrados piolhos, uma espécie de mosca e carrapatos. É a primeira vez que esta espécie de carrapato parasita a espécie de veado (bororó do sul). Havia registros desta espécie de carrapato, mas em outras espécies de veado. A última aparição foi em um veado campeiro. O artigo, já aprovado, só está na espera da publicação.
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e classificou a espécie como Amblyomma aureolatum. E assim deu-se o primeiro registro do caso de um carrapato parasitando um bugio no Brasil. “O doutor João Martins acredita que seja também o primeiro relato no mundo, mas como o trabalho foi publicado no Brasil fica como primeiro caso de registro de um carrapato parasitando um primata não-humano (bugio) no país”, afirma. O artigo foi publicado em português e inglês: o resumo em português e o trabalho todo em inglês na Revista Brasileira de Parasitologia Veterinária, na última edição de 2006. Participaram do trabalho João Martins, Edson Salomão e Rovaina Doyle, além de Mariana Teixeira, Valeria Onofrio e Darci Barros-Battesti. Quando Salomão encontra carrapatos em animais silvestres também os fotografa. Inclusive, a foto do carrapato no braço do macaco foi feita na clínica dele e publicada. Além do diferencial de tratar animais silvestres, Salomão também investe na pesquisa. E, enquanto a maioria, ao encontrar um animal silvestre morto, simplesmente o descarta, ele envia as fezes destes animais para o Laboratório de Parasitologia Veterinária da UFSM (Universidade CARINA WEBER
Ectoparasita encontrado em um bugio originou primeiro registro deste tipo de caso no Brasil Federal de Santa Maria). O trabalho de pesquisa desenvolvido por ele conta com a parceria de outros pesquisadores, que formam uma espécie de equipe, na qual cada um desempenha uma parte do processo. O veterinário já enviou carrapatos encontrados em outros animais, tais como graxaim e tamanduá, em vários outros animais silvestres, e até em pessoas. Em razão de saber que os animais silvestres possuem muitos ectoparasitas (carrapatos, piolhos), tudo o que encontra em sua clínica é remetido ao doutor João Martins. Quando já existe algum registro - quando não é uma raridade - os carrapatos são destinados à coleção científica. Em função de trabalhar com carrapatos e de existirem várias espécies, o doutor João Martins utiliza o recurso da coleção científica. Os carrapatos são colocados em vidros com álcool acompanhados de uma ficha de identificação completa. “Quanto mais amostras de diferentes lugares, melhor. E quanto maior o número de carrapatos, mais valor ela tem”, diz Salomão.
A espécie que parasitou o bugio é mais comum em animais silvestres. Já foram registrados casos em outros animais silvestres, mas em um bugio jamais havia sido encontrado algum tipo de carrapato. Ectoparasitas (parasitas que vivem no pêlo e pele dos animais) são bastante conhecidos nas espécies domésticas. Tratando-se de animais silvestres, são pouco conhecidos. Quanto aos parasitas há uma diferença: enquanto os ectoparasitas vivem na pele (ecto = externo), os endoparasitas vivem dentro do intestino (endo = interno). Para a comunidade científica, este relato é um achado. Todos os trabalhos que se referirem a algum achado na área de carrapatos em primatas vão se referir ao do doutor Salomão e de sua equipe. As pesquisas sobre animais silvestres e carrapatos ainda são poucas. “Nós, aqui em Cachoeira, estamos descobrindo coisas, colaborando com pesquisas importantes. Os veterinários e biólogos devem se conscientizar de que todo o material de animais silvestres é importante para a pesquisa”, reflete Salomão.
Prevenir é o melhor remédio
Doutor Salomão: Descobridor de muitas raridades
Antigamente, as doenças transmitidas por carrapatos levavam à morte sempre. Hoje, com o tratamento mais moderno, isso mudou um pouco. Mesmo assim, o que dificulta é o diagnóstico. Os que forem lidar com animais silvestres devem ter cuidado ao manipulá-los, mesmo que estejam mortos. O animal morto pode estar infestado por um ectoparasita. Este pode picar a pessoa, que estará sujeita a contrair uma doença. “Uma pessoa leiga é melhor nem mexer”, alerta Salomão.
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De Orestes a Orlando: reciclagem vira missão
Pioneirismo se reverte em resultados para a comunidade de Cachoeira do Sul. Um trabalho de mais de três décadas com a reciclagem de lixo gera empregos, renda e obras
CARINA WEBER Chovia em Cachoeira do Sul. Na tarde do dia 20 de dezembro de 2001, lá estava Orlando Anony, no Hospital de Caridade e Beneficência. O motivo era a visita cotidiana ao monsenhor Orestes Paulo Trevisan, com quem conviveu e trabalhou durante 34 anos e seis meses à frente da reciclagem. Mas aquela visita foi diferente. Ocorreu dez dias antes do amigo, o monsenhor Orestes, vir a falecer. Orlando lembra das palavras sussurradas que ouvira naquela ocasião: “Eu não posso mais. Vê se vou deixar um fiel aqui na terra para seguir o meu trabalho”. Num sobressalto, Orlando respondeu: “O mundo dá voltas, quem sabe eu vou seguir”. E, de fato, a promessa se cumpriu. Após a morte do monsenhor, em 30 de dezembro de 2001, Orlando chegou a traçar outros planos. Pensou em trabalhar como motorista de ônibus e dirigir caminhão de carga pesada. Porém, as palavras ditas pelo companheiro de tantas batalhas fizeram-no tentar. “A palavra dele me deu força. Até hoje não caí”, orgulha-se Orlando. A primeira atitude que tomou foi ajudar o amigo Leandro Löbler em um depósito de reciclagem – Comércio de Recicláveis Löbler Ltda. –, com a missão de cumprir o último desejo daquele que fez com que, há 41 anos, ele escolhesse a reciclagem como profissão. O processo continua o mesmo: os materiais recicláveis são buscados em diversos locais e depois vendidos. Existe apenas uma diferença: hoje os materiais são comprados. “Naquela época eram doados”, lembra Orlando, ao dizer que, para ele, o significado da reciclagem é o mesmo, porque teve um seguimento. “Faz de conta que estou lá na paróquia ainda”, brinca. No entanto, a reciclagem, na vida de Orlando e dos cachoeirenses, não teve início em tempos atuais. O padre Orestes Paulo Trevisan chegou à cidade em 1959 e foi nomeado pároco da Paróquia São José em 3 de abril, em substituição ao padre José Eduardo Bini. A primeira sede da paróquia localizavase na rua Aparício Borges, esquina com a rua Ivo Becker. Apesar de ter conseguido um terreno doado pelo Estado, onde funcionava o campo de futebol do Daer (Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem), o
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padre José Eduardo Bini não conseguiu colocar em prática os seus planos de construção de uma nova igreja.
O jipe e o reboque A missão ficou a cargo do padre Orestes Trevisan. O primeiro recurso utilizado: um jipe com um reboque. O trabalho se resumia em recolher ferro velho, vidros e outros materiais. A primeira conquista da reciclagem foi um prédio (o Salão de Cinema), utilizado como templo até a inauguração da igreja oficial. Além de recolher sucatas e materiais recicláveis nas casas, Orestes também comprava papel em uma gráfica de Santa Maria. Este papel era trazido até a paróquia para ser reclassificado e enfardado; depois, vendido em Porto Alegre. Como a paróquia não tinha um caminhão próprio, pagava-se frete. Orestes era conhecido por ser exímio na classificação dos papéis, o que o deixava com as mãos rachadas e as pontas dos dedos cortadas, mas não o impedia de realizar o trabalho. “Quando ele descarregava o papel na Três Portos S/A Indústria de Papel não havia triagem. Eles sabiam que o material era coisa boa”, relembra Eloi Sanmartin, primeiro presidente do Conselho Paroquial da Igreja São José, e um de seus melhores amigos. Odino Cerentini, que dirigiu por alguns anos a famosa Brasília verde do padre Orestes nas viagens a Santa Maria, lembra que, em sua oficina, “uma vez a cada seis meses ou um ano, o padre encostava um caminhãozinho e levantava até 500 quilos”. O ferro era doado. A reciclagem, que começou em 1960, dava os seus primeiros passos, na cidade e na Paróquia São José. As pessoas ajudavam da sua maneira. “Eu e um amigo saíamos com o carrinho emprestado de uma vizinha para arrecadar garrafas. Devia ter uns 12 anos”, lembra o advogado Oliberto Sanmartin, que conviveu durante muito tempo com Orestes. O padre Orestes, aos poucos, tornava-se conhecido. Uma coisa ele nunca deixou de usar: a batina. Entretanto, durante as coletas com o jipe e nas viagens, ele abria mão da batina preta e, em troca, vestia um tapapó cinza.
Orlando Anony: a continuação de uma missão com muitas conquistas pelo trabalho desenvolvido
Parte dos resultados da reciclagem Confira algumas construções que, com o trabalho da reciclagem, passaram a fazer parte do patrimônio da Paróquia São José*: Igreja provisória (Salão de Cinema) - área construída de 757m2 - R$ 300 mil
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Igreja atual - área construída de 1.205m2 - R$ 700 mil Casa Paroquial - área construída de 360m2 - R$ 200 mil *Obras construídas. Valores referentes até dezembro de 2007. Avaliação realizada pelo técnico em transações imobiliárias Paulo Gonçalves Machado, delegado do Creci-RS (Conselho Regional de Corretores de Imóveis do Rio Grande do Sul).
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O homem das 24 horas
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Eu não posso mais. Vê se vou deixar um fiel aqui na terra para seguir o meu trabalho.
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Depois de alguns anos a dirigir o jipe no recolhimento de materiais nas casas e coordenar a reciclagem, Orestes sentiu a necessidade de uma ajuda. Ela chegou em 1967. Secretário geral, motorista, diretor de propaganda, responsável por serviços diversos: “praticamente um homem 24 horas”. Assim se define Orlando Anony. Tudo começou com um convite do padre Orestes para que ele fosse motorista da paróquia e arrecadasse sucatas. Na época, passou a ser o motorista e ficou durante um ano sem carteira assinada. Foi tempo suficiente para que decidisse aceitar o convite. E, então, tornou-se funcionário da Paróquia São José. O trabalho de recolher os materiais agora era desempenhado por ele. As campanhas do Orestes eram mais ou menos assim: A senhora que tem na sua casa fios velhos, guarde, doe para a igreja. E lá se ia Orlando com o ajudante. Os fios eram trazidos até a igreja, queimados para se tirar o miolo de lucro, enrolados e colocados no caminhão. O destino: Porto Alegre, onde se vendia o material. Quando Orlando chegou à paróquia, a prensa ainda era de madeira. Depois de uns cinco anos, a prensa manual passou a ser hidráulica elétrica. Ele trabalhou por cerca de oito anos com o jipe. E foi aí que, com a venda do jipe, comprou-se o primeiro caminhão. “O vermelhinho”, como ele classifica: o 608, com capacidade para 4,5 mil quilos. Foram dez anos e três meses na direção daquele caminhão. Com o 608 se fazia as viagens e se recolhia materiais nas casas por toda a cidade. O frete agora não existia mais. Em 1977, Orestes ganhou uma Brasília (a famosa Brasília verde) do irmão Inácio Trevisan. Com ela, fez muitas viagens a Santa Maria – ele na Brasília e Orlando no caminhão. Depois de alguns anos, o 608 foi vendido e surgiu a idéia de comprar dois caminhões: o Mercedes Benz 1516, com capacidade para dez mil quilos, destinado às viagens, o qual Orlando dirigiu por 15 anos; e o Agrale, ano 85-86, com capacidade para no máximo 1,6 mil quilos.
Comerciante ou padre A missão tomava o seu rumo. As conquistas da reciclagem aumentavam. Mas, por que escolher a reciclagem? Uma pergunta sem respostas concretas. Na época em que Orestes pensou em reciclar já se falava em reciclagem no estado. No final da década de 30, Henrique Roessler iniciou as atividades em favor do meio ambiente na região do Vale do Rio dos Sinos. Como pioneiro ecologista tornou-se patrono da Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental). Em Cachoeira do Sul, o padre Orestes, como pioneiro da reciclagem, enfrentou opiniões das mais diversas, inclusive pressões da própria igreja. Ao ser contrário a alguns pensamentos, um deles ser contra o funcionamento do dízimo, a sua filosofia estava adaptada ao trabalho. Para ele, as coisas que as pessoas davam à igreja eram transformadas e se fazia dinheiro. O objetivo não era só o dinheiro, mas a conscientização.
Na boléia do caminhão O trabalho da reciclagem era levado a sério. E muito. Três funcionários tinham carteira assinada, e mais quatro trabalhavam como contratados nas viagens a Santa Maria. E, inclusive, foi registrada uma firma no nome de Mitra Diocesana de Santa Maria. A força motriz tinha origem na produção. “Ele queria que, se num dia tu fizesses sete fardos, no outro deverias fazer dez”, conta Orlando. As viagens a Santa Maria aconteciam com freqüência. E lá se ia Orlando a dirigir o caminhão (e dois funcionários) e Orestes na Brasília verde (e quatro contratados) para comprar o papel na gráfica Pallotti, que depois era reclassificado e vendido. Um dos lugares onde se vendia o papel: a Três Portos. Outra indústria com a qual o padre costumava negociar muito papel foi a RioPel, durante nove anos.
Homem à frente do seu tempo; um padre comerciante; administrador; homem de fé; operário. Opiniões diferentes sobre o padre Orestes Paulo Trevisan: admirado por uns; nem tão benquisto assim por outros. Apesar do me ame ou odeie o povo ajudava, participava da reciclagem e das promoções. Todo o material era ganho. Os objetos valiosos encontrados, vendidos. O único lugar onde comprava: na gráfica Pallotti, em Santa Maria. Com o dinheiro da reciclagem, obtinham-se brindes: 200 faqueiros, dois carros, 40 geladeiras, 40 fogões, e assim por diante. Tudo ficava exposto na própria igreja. Eram as famosas rifas. A lista, de tamanho ofício, tinha dois lados, dada a quantidade de prêmios. Além das rifas, existiam outros mecanismos que Orestes utilizou para construir todo o patrimônio da Paróquia São José: as novenas de 12 a 13 dias acompanhadas de quermesses. Nas festas havia, também, brincadeiras que rendiam prêmios aos ganhadores como roda da sorte, aviãozinho e porquinho-da-índia. Em 6 de março de 1993, o padre Orestes Trevisan foi nomeado monsenhor. A diabete, que o acompanhava, estava cada vez mais forte. Ele já não podia mais dirigir. Por cerca de cinco anos, Odino Cerentini dirigiu a Brasília verde nas viagens a Santa Maria. Logo depois dele, no período de um ano, Rubi Baumhardt ocupou este lugar. Orestes acompanhava as viagens: agora, apenas na carona da Brasília. As propostas da nova diretoria da Paróquia São José fizeram com que a reciclagem perdesse força. “Tiraram aquilo que ele sempre teve vontade de fazer: arrumar o dinheiro da comunidade e fazer comunidade. A reciclagem fornecia muito dinheiro”, reflete Orlando Anony. Com o falecimento de Orestes, a reciclagem parou em 2001. Três funcionários foram indenizados. Como conseqüência da missão confiada a Orestes, os resultados da reciclagem foram as construções da Igreja provisória (Salão de Cinema), do Salão Paroquial, da atual Igreja Matriz São José, da Casa Paroquial, da torre da Igreja Matriz São José e de várias capelas. Orlando lembra das palavras ditas pelo amigo: “Vamos seguir o nosso trabalho. Trabalhar no nosso lixo para vencermos mais uma batalha”. A missão seguiu. E reciclar virou febre. Agora na cidade, e não mais na Paróquia São José. Hoje, existem nove depósitos de lixo espalhados na zona urbana de Cachoeira do Sul. Na maioria, os tipos de materiais mais recolhidos são papelão, ferro velho, plásticos e materiais diversos. Um destes depósitos ganha até R$ 14 mil por mês com a venda de papelão, ferro velho e plásticos, em que se destacam as garrafas pet. Certa vez, rumaram para Uruguaiana. Lá, ganharam 10,5 mil quilos de papel arquivo da Exatoria Estadual. Mas a carga mais pesada foi para Gravataí. No dia em que se levou o papel (11,8 mil quilos) chovia muito e os fardos ficaram molhados. Ao chegar à indústria RioPel a surpresa: 12,6 mil quilos. A chuva tornou o papel mais pesado.
SULFOTO DIGITAL
Padre Orestes Trevisan: o pioneiro e uma missão
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Um problema e uma solução, não fosse um entrave legal
Diariamente vários quilos de comida, que poderiam alimentar pessoas carentes, são jogados aos porcos
MARISA LORENZONI Fome. Segundo o dicionário da língua portuguesa Houaiss, a fome é um substantivo feminino que quer dizer “sensação causada pela necessidade de comer; carência alimentar; miséria”. Ora, isso qualquer pessoa sabe. É uma das primeiras coisas que se aprende. Os nenês já nascem com ela. Não é preciso recorrer ao dicionário para saber seu significado. O que se sabe também é que a fome, para muitos, é um problema. A fome no sentido da miséria, de não ter o que comer. Não aquela fome em que a barriga ronca e logo se corre para a cozinha e tudo está resolvido. Santa Cruz do Sul tem hoje 114 mil habitantes, conforme resultados preliminares da última contagem da população realizada pelo IBGE. Segundo a nutricionista Thaís Pereira, que trabalha na Secretaria Municipal do Desenvolvimento Social, não há dados que determinem a quantidade exata de pessoas que vivem em situação de insegurança alimentar, mas a prefeitura
desenvolve programas que tentam minimizar o problema da fome. O maior projeto é o “Prato Forte”, que distribui mil refeições diárias, de segunda a sexta-feira, para crianças de até 12 anos. Tudo com recursos públicos. Isso também todo mundo sabe o que é: dinheiro do contribuinte. Esse número de mil refeições diárias poderia ser bem maior. Bastaria que os restaurantes da cidade doassem sobras das suas cozinhas às entidades necessitadas. E isso, com certeza, alimentaria muitos. Conforme Paulo César Rutkowski, coordenador de Departamento de Vigilância e Ações em Saúde, existem cerca de 90 restaurantes em Santa Cruz do Sul. O número não é preciso porque, segundo ele, apenas 70 dos estabelecimentos estão cadastrados no departamento de Vigilância Sanitária. Estes possuem alvará para o funcionamento e são supervisionados pela vigilância. Independente de estarem legalizados ou não, é um número expressivo para a cidade.
Porcos sem fome Felizes e satisfeitos ficam os porcos da região. Segundo Rony Pedro Beckenkamp, um dos sócios do Restaurante e Churrascaria Centenário, toda comida que sobra, salvo algumas que podem ser reaproveitadas, viram comida para suínos, a popular lavagem. Ele lamenta, mas alega que também não pode correr o risco de “ter um processo nas costas”. E é esse destino que a maioria dos restaurantes procurados dá às sobras. Os porcos, bem alimentados, agradecem. A luta contra fome não é recente. Os governantes mudam, os programas sociais trocam de nome, mas o problema persiste. Que país é esse que desperdiça tanta comida? O que sentem essas pessoas que tem fome quando vêem aquilo que poderia alimentá-los virar lavagem para porcos? Porcos que certamente, depois da engorda, irão para a mesa do consumidor que não tem fome ou, quem sabe, de volta para o restaurante. MARISA LORENZONI
O suinocultor Alcindo José Assmann recolhe as sobras nos restaurantes e alimenta sua criação de porcos
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Lei inibe donos de restaurantes Procurei alguns restaurantes da cidade, vinte ao todo, para saber se as sobras diárias de comida eram doadas. A resposta foi a mesma em todos: “Não”. Alguns alegaram que tinham uma base de consumo e que pouco sobrava, sendo boa parte dessa sobra reaproveitada. Mas foram poucos. A maioria revelou seu receio de ter problemas judiciais. Como alguém, que em pleno exercício de solidariedade, poderia ter problemas dessa ordem? A resposta é que é possível mesmo. Se alguma pessoa receber alimento e, por ventura, vier a se intoxicar, a própria vítima, seus familiares ou até mesmo a entidade à qual essa pessoa pertença, poderão ingressar em juízo alegando a responsabilidade civil do restaurante. O artigo 186 do Código Civil diz que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Ato ilícito é aquilo que é proibido, vedado por lei. Já o artigo 927 diz que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Esse artigo embasa a responsabilidade civil, ou seja, quando alguém for ajuizar uma ação nesse sentido, irá utilizá-lo como fundamento legal. Ainda com base nesse artigo, o restaurante estará obrigado a reparar o dano indenizando a vítima. Quem correria esse risco? Vanderléia Grieger, proprietária do Restaurante Mafalda, alega que, mesmo que a comida saia em bom estado do restaurante, não há como acompanhar a maneira como ela será armazenada e aproveitada na entidade que for beneficiada.
A saga das três Marias
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SANCLER EBERT Uma é Cardoso de Oliveira Schlemmer, tem três filhos, é casada e vive bem com seus 44 anos. A outra é Lurdes Xavier, 21 anos, solteira, mora na casa dos pais. Há ainda a que é Salete da Silva, mora sozinha, solteira, 46 anos e sonha em ter uma floricultura só sua, porque é do que gosta. Em comum, o primeiro nome: Maria. Durante alguns meses do ano, sete ou oito, depende, elas possuem mais um fato em comum: o trabalho. Não que elas sejam colegas, talvez nem se conheçam. No entanto, todas trabalham por um período nas indústrias do fumo de Santa Cruz do Sul. Em agosto, mais uma vez elas tornam a ter algo em comum: o término do contrato com o fim da safra. Junto delas, mais seis mil pessoas encontram no mês a incerteza, é quando os safristas têm seu contrato rescindido. Depois da safra, cada Maria segue o seu caminho. Maria Lurdes (3) vê toda cidade a caminho de casa, no bairro Belvedere, enquanto retorna de mais uma tentativa de emprego. Há quatro anos ela trabalha na safra, há quatro anos que se vê desempregada no segundo semestre do ano e há quatro anos que tenta encontrar outro emprego para a entressafra. Às vezes faz um bico aqui, outro ali, mas emprego mesmo, só no fumo. Com ou sem emprego, as contas vão se acumulando e precisam ser pagas. No caso de Maria Lurdes, quem acaba assumindo as suas é seu pai. Durante a entressafra, a família vive apenas com a renda da aposentadoria dele, cerca de R$500,00, valor que sozinha a filha ganha por mês na safra, somando o salário com o valor do ticket alimenta-
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ção. Em 2007, aproximadamente 11.500 pessoas devem ter trabalhado nas indústrias de fumo da cidade, estima o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Fumo e Alimentação (STIFA). Desses, de acordo com o sindicato, mais da metade vive a realidade de Maria Lurdes. Se a Maria que é Lurdes, confessa não gostar muito de trabalhar na safra, o mesmo não pode se dizer da Maria que é Cardoso (1). Não só gosta, como também se prepara para sua vigésima terceira safra, dezoito delas como operadora de máquina de empilhamento. Moradora do Corredor Goerck, Maria Cardoso tem compartilhado o mesmo emprego com a filha de 21 anos. Juntas, recebem em torno de mil reais por mês da empresa de fumo, valor que faz grande diferença na renda familiar. O marido de dona Maria é pedreiro e pintor. Quando tem trabalho, chega a receber mil reais ao mês, mas quando não tem, passa o mês sem nenhum centavo e é com a renda dele que a família se sustenta na entressafra. Enquanto a filha busca emprego e não consegue, Maria Cardoso faz da faxina sua forma de renda. Troca sua potente empilhadeira de fumo por uma vassoura e um pano de chão. Trabalha em seis, sete casas e cobra R$5,00 a hora da limpeza. Para receber a mesma quantia do salário que recebe na safra, teria de trabalhar seis horas por dia, durante a semana inteira. No entanto, a tarefa não é tão simples para quem tem 44 anos. Por isso que ela também revende cosméticos, como forma de aumentar a renda da casa. Neste ano, a safra acabou antes do esperado
para Maria. Como conseqüência, as prestações das roupas compradas para a família ficaram todas para pagar. Já a Maria que é Salete (2), não pára nunca. Sai da empresa de fumo e vai para a de metalurgia e tem sido assim nos últimos anos. Da destala das folhas de tabaco para a produção de cadeiras de praia e tábuas de passar roupa. Todavia, a vida de Maria nem sempre fora assim. Durante dez anos, foi funcionária efetiva de uma empresa de fumo. Na época, não precisava se preocupar em renovação de contrato, ou em qual mês ia sair e ter de correr atrás de outro emprego. De repente, de um dia para o outro, vivia uma nova realidade. Não agüentou e ficou deprimida. Não sabia o que iria acontecer daquele momento em diante. No seu primeiro ano como safrista, enfrentou o desemprego com o fim da safra, só no ano seguinte conseguiu combinar as duas safras. Maria, que mora no Arroio Grande, acredita que ninguém gosta de ficar parado em casa. Até porque tem as contas para pagar, lembra ela. Maria Salete representa um grande número de pessoas que sai de uma safra para outra. Trabalham de janeiro a agosto nas empresas de fumo e depois vão para safras de cinco empresas nos setores de sementes, brinquedos, materiais escolares e metalurgia, cujas safras coincidem com o fim da de fumo (ver infográfico). Esses trabalhadores assumem o “safrismo” como sua profissão, garantindo renda para todo o ano. De safra em safra é que muitos santa-cruzenses seguem a vida, assim como na saga dessas três Marias.
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SANCLER EBERT
Angústia e depressão no corredor do hospital
“Começou com uma dor no peito, que passou para o braço”. Conheça a história de Vitória, nome fictício de um drama real: a imprecisão médica
ALINE SILVA
RODRIGO NASCIMENTO Doloroso para uns, delicado para outros, inclusive para a reportagem, que encontrou dificuldade em conseguir pessoas dispostas a contar como é viver após a possibilidade de morrer. Existem ainda os que não querem se comprometer. Tanto que, para preservar a vítima e sua família, os nomes foram trocados. É o caso de Vitória de 48 anos, dos quais 13 dedicados a cuidar de pessoas doentes. Uma ironia da vida e do destino na profissão de técnica em enfermagem. A saúde pessoal ficou muitas vezes em segundo plano. Ela sofreu dois infartos na mesma semana. O primeiro que a sabedoria popular chama de ameaça, por ser mais fraco aconteceu no dia 20 de março de 2007. Menos de 24 horas depois veio o segundo, mais forte, que levou Vitória, desacordada, ao hospital. O diagnóstico era difícil. O médico não sabia ao certo o que estava acontecendo com a paciente. E pediu um exame mais detalhado. Então, no fim de semana sai a decisão. Para ter certeza da natureza da doença, Vitória teria que ser submetida a um procedimento mais complicado chamado cateterismo. Trata-se de um fio de aço introduzido na corrente sangüínea do paciente que vasculha possíveis obstruções nas principais veias e artérias que irrigam o coração. Esse fio mede a saturação do oxigênio e as pressões intracardíacas, que indicam, nesse caso, se os vasos estão obstruídos ou não. Após perfurar a veia aorta da paciente, ao introduzir o fio em sua virilha – um procedimento comum, mas que pode causar hemorragia quando a colocação não é precisa – o médico constatou o que ainda era uma suspeita: não havia obstruções nos principais vasos dela. Apressado, finalizou o procedimento e saiu.
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“Eu senti um pouco de dor, mas ele disse que era normal”, relata Vitória, que desde o início dessa conversa mostrou-se muito corajosa. Característica comum de quem convive com a dor, o sofrimento humano, e a própria morte, quando distantes da sua realidade. Para Vitória, o que a separou do diagnóstico e procedimento adequados foram 15 minutos. O tempo a mais que o médico deveria ter permanecido com ela para a conclusão do cateterismo, ou seja, pressionar a veia para que a abertura feita pelo cateter pudesse ser fechada. Essa etapa fundamental do atendimento que não foi acompanhado por ele, foi o início da agonia de Vitória. “Todos fazem isso, fecham o paciente e saem”, - comenta desolada. Como estava com pressa, o médico ordenou à enfermeira auxiliar que o fizesse. Erro grave: imprudência. Experiente no auxílio de procedimentos como o cateterismo, Vitória diz que sentiu uma dor muito forte que não passava. Pelo contrário. Cada vez mais forte, a dor fez com que a enfermeira acabasse comprimindo sua virilha. Além disso, Vitória também estranhou a duração da dor. 30 infindáveis minutos. O dobro do habitual para essas situações. Ela sabia que alguma coisa não estava correta. Ao lembrar daquela segundafeira, 26 de março de 2007, suspira, olha para o teto da casa aconchegante, rodeada de fotos das filhas e do casal. Reclama que não deram atenção a ela: “Eu dizia que estava doendo muito, mas ninguém me dava ouvidos”. A enfermeira que a acompanhou só viu que algo não estava bem quando Vitória passou a mostrar sinais de pressão baixa, comum em quem está com hemorragia. O relato da dor de receber o sangue dentro do abdômen e o tem-
Depois do erro durante um exame, que causou hemorragia em Vitória, ela nunca mais viu o médico que a atendeu
po incomum do procedimento não foram suficientes para convencê-los de que algo estava errado. “Eu comecei a bocejar de sono, aí é que eles perceberam”. A noite não teve fim, nem para ela nem para o médico, que àquela altura precisou cancelar sua viagem. “As luzes estavam acesas, alguma coisa estava errada”, lembra. Enquanto tinha consciência, recorda ter escutado a frase que disparou o alarme: “Chamem o médico dela”. Quando acordou, depois do caos, com a hemorragia quase controlada, o abdômen inchado, com mais de dois litros de sangue comprimindo seus órgãos internos, um pensamento único lhe veio à mente. Queria ver o marido, dizer a ele que estava tudo bem, conforme ela supunha.
No entanto, os médicos, nada informavam. E o doutor, responsável, não foi mais visto por ela, até hoje. Esperança (também nome fictício), marido e companheiro de Vitória há 29 anos, fez plantão na porta do Centro de Terapia Intensiva (CTI). “Enquanto não vi que ela estava fora de perigo não fui embora”, lembra. O amor de Esperança e Vitória foi fator fundamental para a recuperação dela. Esperança desabafa: “Ninguém comia, ninguém dormia, emagreci oito quilos nesses dias”. As filhas faziam vigília. Iam trabalhar e estudar. Quando deviam retornar para casa, voltavam ao hospital. Mas lá não havia ninguém da equipe médica. “Ninguém falava nada”, reclama Esperança.
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Mesmo sem informações, Vitória sabia intuitivamente que algo de muito grave tinha acontecido. Mas a lei do silêncio imperava e ninguém dizia nada, além da promessa de que, logo que melhorasse, iria para um quarto comum, dispensando cuidados especiais. Assim, sabendo que alguma coisa estava errada, restava à Vitória apenas acreditar que algo maior agia em sua recuperação. “Acredito em Deus”, salienta ela. Os familiares rezavam. Católica, Vitória, que crê em Deus, não rezou. “Nem rezei, apenas acreditei”. Conta e diz que, antes da entrevista, acabara de voltar para casa, após cumprir o pagamento de uma das muitas promessas feitas pelos amigos e pela família.
Entenda como se caracteriza o erro médico Para que um procedimento seja classificado como erro médico, de acordo com o professor Pedro Lúcio de Souza, devem ser observadas algumas situações: Imperícia – ocorre quando o médico não tem a especialização necessária para realizar o atendimento. Um exemplo de imperícia pode ser compreendido quando o profissional clínico geral realiza uma cirurgia plástica, prometendo a melhoria da aparência do paciente e o que acontece, neste caso, é o oposto. Imprudência* – quando o doutor não cumpre todas as etapas previstas na prática e na literatura para realizar o atendimento. Com isso, o doente pode morrer ou ficar com algum problema físico ou de saúde. Negligência – é o erro mais freqüente. Ocorre quando o médico tem consciência de que não pode realizar o procedimento porque não tem certeza absoluta do diagnóstico ou não pode prever os resultados. Também ocorre quando ele não tem a instrumentação necessária (equipamentos).
Para o médico-cirurgião Pedro Lúcio de Souza, a possibilidade do erro sempre persegue o profissional
Na verdade, Vitória não sabia a real dimensão de seu problema. “Em nenhum momento tive medo. Não pensei que fosse morrer. Pensava na minha família, que não podia estar ali”, diz, agora sorridente, com os olhos marejados, mas sem derrubar uma lágrima. Hoje, em casa, e ao lado da família em seu humilde lar como classifica a filha mais velha -, Vitória percebe que a vida é frágil e que também ela necessita de repouso. Depois do susto, a parada. “Agora não trabalho mais tanto, passei a cuidar mais de mim. Geralmente isso acontece em situações extremas, quando passamos a observar que não somos de ferro, somos de carne e de osso”, completa. Como suas veias não estavam entupidas, a doença de Vitória, difícil de ser detectada, foi associada ao modo de vida que levava. Sem mágoas, ela fala do médico: “Até hoje não vi mais ele”. Mesmo assim, Vitória não tem raiva. Entende que o erro faz parte do ser humano e episódios como esse só certificam que os semi-deuses não passam de seres humanos. A família faz de conta que entende para não contrariála. Mas, Esperança é direto: “Se acontecesse o pior, não sei o que eu faria com ele”, dizendo que não quer encontrar quem, por alguns momentos, quase lhe tomou a crença.
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Ao contrário do marido, Vitória faz questão de lembrá-lo que ela deixou o hospital um pouco antes da Páscoa, uma data que celebra, na religião Católica, o renascimento de Cristo. Vitória voltou para casa na SextaFeira Santa. Hoje, ela tem duas datas de aniversário para comemorar: 21 de abril de 1959 e 6 de abril de 2007. E, mais do que uma questão de fé, cuidar da saúde das pessoas representa ter responsabilidade com a vida.
Profissão de angústia “Todo médico é um pouco estóico”, alguém que gosta de sofrer. A afirmação é do médicocirurgião, professor e coordenador do Curso de Medicina da Universidade de Santa Cruz do Sul, Pedro Lúcio de Souza. O médico conta que a vida de quem trata da saúde dos outros é uma constante experiência. De dor, de sofrimento, quase um sacerdócio. “Sacerdote sim, Deus não”, enfatiza. Para exercer a medicina, recorda ele, o primeiro requisito é gostar de pessoas, isto é, ser humano. A humanização fica distante quando os recursos são poucos e a demanda é muita. Correr na ânsia de salvar vidas, correr na ânsia de ter mais dinheiro. Cor-
rer. Especialmente se o médico quiser manter o que o professor chama de status. Acelerar o ritmo significa atender mal, não prestar atenção no que o paciente tem. “Qual seu nome? O que o senhor sente?” Segundo Souza, essas são perguntas esquecidas no dia-a-dia. Alguns médicos transformam os pacientes em números, siglas ou doenças. A possibilidade de erro persegue o profissional sempre. “Às vezes, a gente não tem tempo de diagnosticar com precisão”, diz. Nessas circunstâncias, o médico é tomado de uma angústia sem medida. “O bem maior da pessoa, seus segredos, sua honra está em nossas mãos”. A falha, quando acontece, causa frustração, depressão, relata Pedro, olhando para o alto, procurando, quem sabe, por Deus, já que também acredita na existência divina. Por zelar por algo tão caro como a vida, o médico passa a ser, aos olhos da sociedade, um representante de Deus na terra. E essa talvez seja a tarefa mais difícil de administrar: lidar com a limitação humana, a possibilidade de morte e de perda, um desafio que instiga o médico a lutar contra a fatalidade. É como viver sob uma linha muito estreita. De um lado o médico ser humano, que erra. Do outro, o médico sacerdote, de quem não se espera o erro.
* No caso de Vitória, seu cateterismo pode ser considerado erro de imprudência do médico porque não realizou por completo seu atendimento. Em conseqüência disso, quase causou a morte da paciente, que não quis se identificar para preservar sua família da especulação. A legislação brasileira não obriga que para a prática da medicina o médico tenha alguma especialização. Basta ter diploma em medicina para exercer a prática de cuidar da saúde das pessoas. Essa falta de controle, por parte da lei, facilita que aconteçam erros de imperícia, o que hoje é mais freqüente no Brasil.
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No campo dos sonhos vale de tudo, até jogar bola
Os torcedores lotam o Estádio Olímpico. O dia é decisivo para Internacional e Grêmio. Mas no campo há 42 jogadores desconhecidos pela torcida
LETÍCIA MENDES PACHECO Domingo, quinze de setembro de 2007. O clima é de mistério. Nuvens escuras anunciam chuva, mas pequenos raios de sol insinuam um dia ensolarado. O destino é incerto. São três horas da tarde. Dentro do vestiário o clima é de tensão. Uma sensação estranha. Uma mistura de euforia, medo, alegria. Coração batendo acelerado. As mãos suam. As pernas tremem levemente. A garganta engasga. O coração acelera ainda mais. É chegada a hora. A equipe entra no corredor escuro. O grito de guerra está cada vez mais forte. O som da torcida aumenta. E finalmente a luz . O tão esperado gramado. É hoje o dia da estréia. Os torcedores gritam. Estádio Olímpico lotado. Azul e vermelho dividem o cenário. Uma equipe de 42 jogadores entra em campo. Eles têm um diferencial. O salário milionário nunca entrou em suas contas. Os repórteres não divulgam cada passo dado. Os times não disputam seus passes. Não havia torcedores gritando seus nomes. Esses atletas estão ali, apenas, por um sonho. Eles desembarcaram em Porto Alegre dividindo a mesma expectativa: entrar no Estádio vestindo a camiseta do time que representam durante todo o ano, organizando excursões para assistir aos jogos. Hoje eles rea-
LETÍCIA MENDES PACHECO
lizaram o sonho de atravessar o cercado. Sem precisar invadir o gramado, porque são torcedores conscientes. Todos estréiam em uma única partida. É o jogo de cônsules no Estádio Olímpico.
A escalação Um de nossos jogadores tem 31 anos, porte não atlético, sua especialidade é o chute de esquerda. Nas horas de trabalho, chama-se Cleber Air Mota Silveira, advogado. Hoje ele é Clebinho, centroavante do time. A euforia pode ser inimiga. Cleber mora em Rio Pardo, mas não perde um jogo no Olímpico. O nosso personagem não faz parte do consulado, chegou aqui driblando um e outro obstáculo. Paulo Roberto Rodenbusch dos Santos é cônsul de Rio Pardo e convidou o amigo para jogar em seu lugar. A expectativa foi tanta que os amigos apenas esqueceram de fazer a inscrição de Cleber e nosso atacante quase ficou de fora. Ainda assim, sem a certeza da escalação, o jogador, confiando na sorte, seguiu para Porto Alegre no domingo pela manhã, com a esperança da baixa de algum outro jogador. Com ginga, raça e persistência, Cleber con-
Cleber: após o jogo, o registro de um dia inesquecível e a comemoração da vitória
venceu o consulado a deixá-lo participar do jogo. Às três horas e quinze minutos da tarde o jogo se inicia. Assim, aos 25 minutos do primeiro tempo, o lateral esquerdo próximo à bandeira de escanteio lan-
ça a bola para o bico da grande área. Ali o centroavante (Cleber) domina com a perna direita e bate forte com a perna esquerda, no ângulo esquerdo do goleiro. O coração bate mais forte. A torcida grita, mesmo sem saber seu nome. É gol! Mas o placar não pára por aí. Aos 36 minutos do segundo tempo o lateral direito dribla o zagueiro esquerdo e, parte para cima do goleiro, que também é driblado pelo lateral, e lança a bola para a pequena área, onde o atacante mais uma vez domina e amplia o placar. O jogo segue. Placar final: 6 para a equipe branca e 4 para a equipe tricolor. Total de gols marcados: dez. Total de gritos de euforia: incontáveis. Valor pago para jogar: R$ 200,00. Valor recebido em dinheiro: R$ 0,00. Valor da emoção: impossível quantificar.
Assim como Cleber, Valente, Gilmar, Marco, Daniel, Roseli, João, Paulo, Cristian vieram de Santa Catarina, Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Canoas, Rio Grande, São Paulo e Estados Unidos, entre outros lugares, apenas para realizar esse sonho. E as horas de viagem não acabaram com a disposição do mineiro Adilson Martins, que promete voltar. Todos os jogadores, antes anônimos, puderam voltar para casa com a medalha de participação e o gosto da vitória por um a zero em cima do Internacional. Mas para alguns, como o nosso desacreditado atacante, o sabor de marcar dois gols dentro do Estádio Olímpico foi inesquecível. “Quando eu era garoto, era apaixonado por futebol, mas nunca imaginei assistir a um jogo dentro do Olímpico, ainda mais jogar aqui com o Estádio lotado.”
Quem são eles Os cônsules são os representantes dos times em diversas cidades do Rio Grande do Sul, e algumas do Brasil, como o consulado do Grêmio de Formosa, Goiás. Durante o ano, os cônsules organizam os sócios nas excursões para assistir aos jogos. É nesse dia, do jogo de cônsules, que os dirigentes do time esclarecem ao consulado quais e o porquê das medidas administrativas tomadas durante o ano. Além disso, os cônsules têm a oportunidade de expressar sua opinião sobre o que deve ser modificado no clube.
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A Casa das Artes ganha um novo brilho
Obras de revitalização marcam o início de uma nova etapa para a Casa de Artes R egina Simonis, Regina mantida pela Associação P róPróCultura de Santa Cruz do Sul
MARIANE SELLI O prédio é um símbolo de imponência. Não há como negar a grandiosidade da Casa das Artes Regina Simonis. No entanto, durante certo período, ela esteve em silêncio, vazia. Pela grande porta via-se apenas uma sala ampla e escura. Rachaduras na parede sem vida e um forte cheiro de mofo roubavam o brilho do ambiente. Mas isso tudo deve mudar. Na verdade, a mudança já começou. Um dos principais pontos turísticos e a mais importante referência de cultura de Santa Cruz do Sul volta a ter a atenção merecida. A Associação Pró-Cultura da cidade, mantenedora da casa, quer tornar o prédio visível e atraente. Quer movimento. Para isso, foram iniciadas as revitalizações de diversos espaços e uma nova identidade visual está em processo final de criação. O prédio, que data de 1922, não possui nenhum problema de estrutura, está apenas desgastado pelo tempo e pela falta de manutenção. Por isso, o primeiro passo na revitalização foi a lavagem da parte externa e a restauração de esculturas do alto do prédio. Pequenas ações que, aos poucos, rejuvenesceram e renovaram a fachada do local. Uma verba mensal de mil reais mantém a Pró-Cultura. Parte daí a justificativa de se fazer uma revitalização ao invés de uma restauração. Restaurar o prédio significaria mais de 15 anos de obras e gastos não inferiores a 2 milhões de reais. “Toda a nossa verba vem da comunidade. Nós temos 500 associados, mas, destes, somente cem são ativos e pagam a mensalidade de dez reais”, explica Lú Kurtz Gonçalvez, presidente da Associação. Principal espaço para exposições da casa, a Sala Gilberto Dassow também recebeu cuidados. “Essa é sala que todo mundo freqüenta, precisava ser melhorada. Estamos fazendo, na verdade, uma limpeza. Nós reti-
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ramos os painéis antigos e colocamos um revestimento novo de MDF (placa de fibra de madeira). Mudamos também a iluminação. Vamos deixar a sala com um ar mais bonito, mais jovial”, conta Lú. E as mudanças não param por aí. No segundo piso do prédio – ainda desconhecido por muitos – fica o acervo permanente da Regina Simonis. O espaço é aberto para visitação e pertence à Associação Pró-Ensino de Santa Cruz do Sul, Apesc, e foi por ela reformado. Da mesma forma, a Unisc se encarregou das reformas de outras salas do prédio, ocupadas pelos alunos do projeto Uniarte em diversas oficinas. É o segundo andar o responsável por uma das vistas mais privilegiadas da cidade. Da sacada do prédio, enxerga-se a rua principal e toda a movimentação do centro santa-cruzense. Com o final da revitalização da Sala Gilberto Dassow, a Casa das Artes reabriu na noite de 26 de setembro. Agora, a Associação quer trazer, de fato, a comunidade para dentro da casa. Para isso, a equipe voluntária que compõe a Pró-Cultura já pensou em alternativas. A primeira, segundo Lú, é “prostituir a casa. É expor, colocar a casa na rua. Não faz sentido tu fazeres qualquer coisa se não tem gente para prestigiar. É isso que a gente precisa mostrar para as pessoas: estamos trabalhando e temos capacidade de tornar a casa um ambiente melhor”. Outra possibilidade é o prédio permanecer aberto ao meio-dia e oferecer, além de exposições, opções de música e promoção de eventos especiais. “Mas vamos fazer uma coisa de cada vez, senão perdemos o foco. Quando terminarmos tudo vamos estudar a melhor forma de mostrar para as pessoas que a Casa tem muito mais a oferecer”, determina a presidente da Associação Pró-Cultura.
CAMILA BORGES CORRÊA
Prédio embeleza uma das esquinas mais movimentadas da cidade, entre as ruas Marechal Floriano e Júlio de Castilhos
Um prédio cheio de história A construção é de 1922. Já foi sede do Banco Pelotense, filial do Banco do Estado do Rio Grande do Sul, e já foi ocupado pela Secretaria da Fazenda. Hoje, é palco cultural da Associação Pró-Cultura de Santa Cruz do Sul. Lú Kurtz Gonçalvez é taxativa ao dizer que a Casa das Artes é o prédio mais nobre de toda a região. Ele foi cedido para a Associação Pró-Cultura pela Secretaria da Fazenda do Estado, em 1994. Em 2000, com o apoio da Universidade de Santa Cruz do Sul e por meio de recursos captados pela Lei de Incentivo à Cultura do Governo do Estado, iniciam-se as obras de restauro. No final de 2001, após a liberação de valores de um convênio com a Unisc e de doações de empresas, são feitas obras no telhado e no acervo de Regina. Outubro de 2002 representa mais um período marcante: obras da artista plástica são doadas pelo empresário Geraldo Koehler à Associação Pró-Ensino de Santa Cruz do Sul. A Apesc recebe 15 telas, 20 estudos em crayon, um exemplar original do Jornal Folha da Manhã – no qual está registrada a primeira exposição dos alunos do Instituto de Belas Artes – e o diploma do curso de Regina Simonis. Em 2005 é inaugurada a exposição permanente destes trabalhos. Nascida em 1900, a artista foi uma das primeiras mulheres a ingressar no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul.
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Lú: trazer as pessoas para dentro da Casa das Artes
O que os olhos vêem, o corpo sente
O fetiche ganha as ruas e sugere uma moda cada vez mais arrojada, que mescla estilo e ousadia. Essa tendência visa valorizar generosamente o corpo.
DANIELA AZEREDO A ousadia está nas ruas. As mulheres expõem, cada vez mais, seu lado sensual através de roupas que salientam o corpo. E os homens? Onde está a sensualidade masculina de se vestir? As mulheres expressam sua preferência nos figurinos masculinos mais ousados. Afinal, mesmo em meio à correria do dia-a-dia, com vitrines chamativas das lojas, preocupações domiciliares e profissionais, não é difícil uma mulher olhar, nem que seja com o canto dos olhos, homens interessantes na rua, seja pela beleza facial ou física. Muitas têm preferência por roupas diferentes, que alimentam um certo desejo. Pois bem, isso tem um nome: chama-se fetiche. Pecado?Fantasia?Loucura? Não, isso não é nenhuma anormalidade. Pelo contrário, todas essas preferências servem para despertar atenção, interesse. A moda aproveitou o gancho e resolveu criar uma sintonia fina com o fetiche. Ousou, e buscou misturar as peças dos mais variados figurinos para compor um estilo mais audacioso, que mescla um pouco do atrevimento e do moderno. Para entender o fetichismo e analisar o que de fato o conecta à moda, resolvemos buscar uma razão para tal questão. Para isso, basta percorrer os lugares “ocultos” da noite em São Leopoldo e perceber o que atrai as mulheres. Não precisa procurar muito, pois logo se enxerga o lugar preferido por elas, afinal, a longa fila já explica o fenômeno. Por trás das cortinas, armadas sobre um palco, é possível notar o que está mexendo com a cabeça feminina. Não se precipite em dizer que é somente a figura masculina que atrai as atenções delas. Pelo contrário, o imaginário se centra nas roupas usadas pelos dançarinos. Roupas? Isso mesmo, nas roupas. Noivo, terrorista, cafajeste, bombeiro, motoqueiro, são alguns dos estilos usados nas apresentações. Aliás, alguma vez, você já se perguntou o porquê dos dançarinos usarem esses figurinos para atrair as atenções das mulheres? Isso tem uma explicação, como conta Patrick*, 26 anos, dançarino da casa de shows. “A minha roupa é de cafajeste e está inspirada nos modelos de filmes hollywoodianos, onde os homens agem de forma infame, tanto no sentido profissional, como amoroso. As mulheres gostam e se
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divertem com esse figurino”, argumenta. Já Monrat*, de 27 anos, também dançarino, acredita que hoje não precisa mais ser vulgar para chamar a atenção. “Nós não buscamos somente atrair a mulher pelo nu, mas sim pelas roupas. Elas gritam mais quando entramos com o figurino, do que quando saímos pelados”, afirma. As luzes se apagam. Cria-se uma expectativa para cerca de duzentas pessoas que se encontram no lugar. Ouve-se um som de música latina. Surge uma sombra negra no palco. É ele, o Zorro. Vestido com uma capa preta, um gorro, cinto de couro largo e máscara, ele entra com toda ginga de um excelente dançarino. Logo se escutam os primeiros gritos. “Nossa!” “Loucura!” Os rostos das mulheres presentes se fixam num ponto só. Elas fazem uma análise ocular de cima a baixo. É possível notar os sussurros entre elas. Usando de uma faceta mais maliciosa, o dançarino utiliza todas as artimanhas possíveis para atrair a atenção delas. No fim do show, é nota-se um silêncio no clube. Chega a vez do cafajeste. Com estilo mais despojado, ele encara os presentes com um ar mais sutil. A roupa, um terno sem gravata, chama a atenção. Óculos escuros para compor o ar de homem romântico. Ouvem-se gritos. “Dança!” “Rebola!” Com uma dança mais romântica, ele puxa algumas mulheres e ensaia uma dança mais sensual. Alguém lá do fundo berra “que roupa sexy”. Após o show, ouvem-se conversas paralelas, em que as mulheres começam a elencar o figurino que mais gostaram. Sandra*, 35 anos, casada e freqüentadora assídua do local, é uma das mulheres que mais se exalta e conversa durante os shows. Ela acredita que o perfil sensualidade não está mais restrito aos dançarinos de boates. Para ela, os estilistas estão apostando na delineação do corpo e a inspiração vem das próprias fantasias sexuais. “Acho maravilhosa essa composição usada por eles (dançarinos). Isso mexe com o imaginário. Já dei alguns toques para o meu marido e ele até passou a usar roupas mais despojadas, como calças mais justas, por exemplo. Estamos numa nova era, onde não é mais ridículo um homem sair na rua de calça justa”.
Com estilo e sem pudor Não é difícil entender porque as novelas influenciam diretamente a moda. Afinal, a ousadia está cada vez mais evidente nas transparências e justíssimas peças a que as atrizes estão aderindo. Isso é notável com o sucesso da personagem Bebel, de Camila Pitanga, em Paraíso Tropical. A sensualidade marca a composição da personagem, que abusa e consolida o estilo “mulher fatal”. Talvez seja por isso que as saias justas estão tão em voga. No caso dos homens, a moda já começa a sinalizar algumas mudanças. O uso de roupas masculinas transparentes no verão 2008, já demonstra que as mulheres terão muito que apreciar nas ruas. No caso delas, a moda fetiche continua, com o uso de espartilhos em vestidos e blusas, botas de cano alto, o couro e a renda. Segundo especialistas, a apropriação do fetichismo está em alta na moda e tem crescimento gradativo, conforme as mudanças em relação à expressão sexual e ao entendimento dos estilos eróticos diversos. *Os nomes são fictícios.
A moda subiu à cabeça
Bichos à solta Se antigamente era vergonha usar tigrado, zebrado ou estilo oncinha, porque era considerado vulgar, agora esse paradigma mudou. Cada vez mais, a moda está se apropriando desse estilo. Hoje em dia, as coleções estão apostando nessa moda, que ao que tudo indica, veio para ficar. Seja como sobreleg, vestidos, legging, biquínis ou até mesmo nas sandálias e bolsas, o estilo está sendo usado por muitas mulheres que buscam um estilo alternativo do comum. Os mais renomados estilistas vibram com essa quebra de estereótipo, que recebe uma força incessante das novelas – a maior propaganda da moda.
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Outra moda que está ganhando muitos adeptos são os chapéus e as boinas. Criado em 4.000 a.C, no antigo Egito, o acessório promete subir a cabeça de muitas mulheres e homens. Antigamente o acessório buscava compor um estilo mais elegante, porém, agora, é usado para dar um ar mais exótico e fashion ao figurino. Não importa a cor, nem o formato, pois de acordo com estilistas, o chapéu denota a personalidade da pessoa que o usa. Mas, cuidado! O uso do acessório deve estar em conexão com a roupa, pois eles agem de forma a complementar o estilo dando um ar mais harmônico ao visual. Outra dica: evite-o em lugares fechados!
Você já cuidou dos seus pés hoje?
Pés saudáveis não são sinônimo de unhas bonitas e bem feitas. E o salto também é um grande vilão: d ois centímetros de altura é o máximo para não prejudicar os pés
DÉBORA NUNES MORALES O simples fato de botar o pé para fora da cama e caminhar é tão natural como respirar ou falar. Caminhar, aliás, é uma das funções mais complexas do corpo humano. De acordo com o traumatologista João Franke Neto, são necessários 650 músculos e cerca de 80% dos ossos de todo o esqueleto para que isso seja possível. Por isso, deve-se cuidar dos pés. Não adianta usar um salto alto para ficar bonita e prejudicá-los. Calçados bonitos e confortáveis estão cada vez mais à disposição no mercado.
No calçado, o pé deve ficar firme, mas mantendo uma total liberdade de movimento. Doutor Franke explica que existem três tipos de pé: o pé normal, o pé chato e o pé cavo. Todo o peso recai sobre o pé, esse peso se distribui entre o calcanhar e a parte dianteira do pé. 90% do peso fica no calcanhar e 10% na parte dianteira explica o médico. Há quem ande de salto alto para ficar bonita, as mulheres, que fazem de tudo para ficar de moral alta. Existe quem ande de salto o dia todo. Greis Daniela
Campos, crediarista de uma loja de calçados, não quer nem saber, anda de salto o dia todo só para se sentir bem, sem saber dos riscos que está correndo. O que ela não sabe é que sapatos inadequados são responsáveis por 90% das doenças dos pés. Ter em mente este fato na hora da compra significa prevenir o incômodo de pisar sentindo dor. Mas não são apenas as mulheres que precisam se preocupar com os pés, os homens também. Sapatos adequados para os homens que ficam muito tempo em
Cuidados Quando for comprar um calçado você deve optar mais pelo conforto do que pela beleza. Os calçados muito apertados comprimem os vasos sanguíneos e podem causar problemas circulatórios. Já os muito folgados podem causar bolhas. Os calçados que não possuem espaço para os dedos se movimentarem ao caminhar, também pode ser um agravante. Eles impedem o movimento adequado dos dedos e deformam os ossos. As solas duras ou muito flexíveis, podem ocasionar torções nos pés. Por isso, antes de comprar sapatos, tenha bastante cuidado.
pé são bastante procurados hoje, explica a consultora de moda Cassiana Marlusi. “Eles têm uma palmilha de gel para manter o conforto do pé e não doer”, diz. Cliente da loja onde Cassiana trabalha, João Gabriel Vicentini compra seguidamente calçados que fazem bem para os pés. “Esses calçados com palmilha gel custam mais caro, mas não me importo, acho que devemos pensar um pouco na saúde também”, conta entusiasmado por ter mais uma opção de mercado. O doutor Franke explica que o pé já era motivo de preocupação para os nossos antepassados. Na Europa do século XIV, os sapatos tinham bico tão fino e longo, que para caminhar era preciso amarrá-lo à cintura ou à coxa. As francesas elegantes da corte do rei Henrique IV, para poder calçar os sapatos estreitos, ficavam pelo menos uma hora com os pés mergulhados em água gelada. Na China, as mulheres usavam sapatos medindo no máximo 15 centímetros, para que
A cura que nasce por meio das agulhas
coubessem nos sapatos. Os pés eram amassados e enfaixados desde que nasciam. A parte genética pode ajudar, explica o doutor Franke. “Se você ficar muito tempo em pé no salto ajuda a prejudicar o formato do pé. O peso proporcional também faz parte, não adianta ser gorda e querer usar um saltão. O pé esborracha, pois o peso é muito. Quem tem o pé deformado pelo tempo, a solução é manter o peso corporal e evitar usar salto”, conclui o especialista. Para o profissional que arruma sapatos, Daniel Ferreira da Silva, as mulheres estão mais preocupadas com a saúde dos pés. Ele explica que tem aumentado a procura pelas mulheres para cortar o salto dos sapatos. Em reportagem publicada no Correio do Povo em março deste ano, pesquisas científicas garantem que calçados altos podem ser um mal à saúde. Estudos europeus garantem ainda que 80% da população terá problemas nos pés em algum momento da vida.
Tratamento milenar milenar,, a acupuntura tem sido bastante utilizada pela medicina moderna. O método nao causa dor pode ser a cura para muitos males
MÁRCIA MÜLLER
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eficiência, fundamentos, teorias e os mecanismos da acupuntura”, explica Müller. Foi por meio de um diagnóstico de acupuntura que a obstetra Teresinha de Almida, especializada em medicina chinesa, pôde levar adiante a quarta gravidez de uma paciente, prestes a abortar mais uma vez, sem que a medicina tradicional tivesse explicação para o caso. “Havia uma deficiência nos canais que sustentam a gestação. Apliquei o tratamento usado nas orelhas, pequenas agulhas de aço. Depois de 30 dias, ela saiu do repouso e ficou bem até o fim da gestação”, conta a médica. Outro caso bem-sucedido de acupuntura é da administradora de empresas Andréia Mendonça. “Cheguei à acupunturista dois meses antes de ser operada de um tumor na mama direita, com uma reação inflamatória. Fiz
aplicações no corpo e na orelha. Quando a cirurgia aconteceu, a inflamação havia desaparecido e o tumor diminuído. Hoje, três anos depois, estou curada e continuo levando agulhadas.” O acupunturista, Pedro, esclarece que a eficácia de um tratamento depende do paciente. “Já fui procurado muitas vezes por pessoas que não tiveram êxito nos tratamentos de outros profissionais da saúde e, na maioria dos casos, obtivemos sucesso. Muitas vezes, para pessoas que não seguem recomendações médicas, o resultado não será satisfatório e o paciente procurará outra alternativa: a acupuntura”. Pedro diz que não existe poder nas agulhas: “o poder está no corpo do paciente. A acupuntura, no corpo e na orelha, é responsável por acionar o poder curativo de cada um”. Luciane, satisfeita com a técnica, aconselha o
uso: “Vale muito a pena pois não se toma remédio”. A acupuntura dói? “Sim e não, na maioria das vezes a sensação de dor é mínima e não prolongada”, afirma Müller. “Não, até pelo contrário, o meu corpo relaxa”, justifica Luciane. DANIELE HORTA
A medicina, muitas vezes, volta ao passado para resolver doenças atuais. A acupuntura, bom exemplo dessa teoria, é um dos tratamentos mais antigos e teve sua origem na China, há cerca de 5 mil anos. A acupuntura é um método natural, porém alguns médicos recorrem às alopatias, medicamentos vendidos sob prescrição médica, para auxiliar a técnica. O acupunturista Pedro Müller Júnior conta que aplica somente terapias naturais. A dona-de-casa, Luciane Fehn, é adepta da terapia desde maio e já percebe efeitos positivos, “principalmente no meu joelho e na coluna”. A acupuntura está sendo usada para tratar algumas doenças, ajudando a medicina tradicional. “A medicina aceita a acupuntura, inclusive pela Organização Mundial da Saúde, mas alguns médicos ainda colocam em dúvida a
Acupuntura promete cura sem dor
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O que é acupuntura? Segundo o Dicionário Médico Blakiston, acupuntura é a puntura de órgãos ou tecidos com agulhas finas e longas. É uma técnica de inserção de agulhas para melhorar a qualidade de vida e curar disfunções orgânicas e psicológicas. Usa somente métodos naturais como nutrição, iridologia, quiropraxia, hidroterapia e geoterapia. Os primeiros acupunturistas utilizavam agulhas feitas com pedras e ossos, posteriormente começaram a criar agulhas de metais, como bronze, ouro e prata. No Brasil, esta técnica milenar chegou na década de 50.
“A gente não sabe falar direito” Uma herança de quase 160 anos de colonização alemã pairava entre a família Klein e eu. Isso porque sou “brasileira”, como eles dizem, e não falo alemão. Devido a essa barreira da língua, havia mais um fator para que eu pudesse conversar com dona Nadir e seu João: a filha deles. Liadete trabalha na cidade e já aprendeu a falar melhor o português. Foi ela quem traduziu para mim tudo o que a mãe disse, pois eu não entendia quase nada. O pai é mais seguro quanto ao português, mas, envergonhado, admite: “A gente não sabe falar direito”. Eu e a família Klein vivemos na mesma cidade do Brasil – eles há muito mais tempo. A diferença é que eu aprendi a falar a língua portuguesa e eles não. Os Klein falam outro idioma, herdado dos pais, imigrantes alemães. Em Santa Cruz do Sul, a língua é uma tradição que sobreviveu até a leis que a proibiram. É um costume que enfraquece com o tempo, pois os netos deles já não falam alemão. Mesmo assim, prestes a presenciar mais uma reforma ortográfica da língua portuguesa, os Klein continuam à margem da sociedade brasileira.
POLIANA PASA A língua portuguesa está prestes a mudar. Em dezembro do ano passado, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) decidiu alterar diversas regras ortográficas, para que a língua siga um padrão nas oito nações (ver box) que a utilizam. São itens como a trema, o acento circunflexo e até o número de letras do alfabeto que, a partir do ano que vem, começam a ser trocados no registro escrito. O Ministério da Educação quer que até 2009 os livros didáticos já estejam reformulados. Os autores do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa admitem que a adaptação às novas regras não será tão fácil, mas acreditam que a sociedade vai se acostumar. Para seu João Alberto Klein, no entanto, a mudança não vai fazer a mínima diferença. Isso porque ele mal sabe falar o português – e muito menos escrever. Ele e a esposa, dona Nadir, fazem parte de um grupo de habitantes da região de Santa Cruz do Sul cuja língua mãe ainda é o alemão. O casal vive numa pro-
priedade de cerca de 20 hectares, em Linha Antão, a mais ou menos 20 quilômetros do centro da cidade. Segundo eles, toda a vizinhança tem dificuldades para falar português. Lá, o alemão é praticamente a língua oficial. Essa cultura tão arraigada do idioma germânico data de 1849. Nesse ano, chegaram os primeiros imigrantes alemães à Colônia de Santa Cruz. Depois deles, viriam mais - e quase somente alemães: era a primeira colônia planejada pelo governo da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul para ser colonizada só por alemães. De acordo com a pesquisadora Maria H. Kipper, uma das principais preocupações dos imigrantes, passados os primeiros obstáculos da colonização, foi a educação dos filhos. Uma lei provincial previa a instalação de escolas nas colônias, mas a norma não era cumprida. Por isso, como conta a pesquisadora, os próprios colonos criaram escolas. Eram escolas comunitárias católicas e evangélicas. Com aulas em alemão.
Os professores eram escolhidos entre os imigrantes e quase nenhum deles sabia falar português. Porém, o ensino do alemão foi bastante eficiente. Maria H. Kipper aponta que já em 1890, Santa Cruz do Sul tinha 54% da população alfabetizada, o segundo maior índice do estado na época. A escritora Lissi B. Azambuja reforça: em 1930 a taxa de analfabetismo nas regiões de colonização germânica era quase zero, enquanto a média nacional estava acima dos 80%. Só que essa alfabetização era toda em alemão, pelo menos até a quarta ou quinta série. Os pais do seu João Alberto e da dona Nadir, que vieram numa das levas de imigrantes, viveram essa realidade. Foram educados em alemão e essa era a única língua que dominavam. João conta que o pai até sabia algumas palavras em português, mas a mãe não conseguia falar nada. Entretanto, a educação santa-cruzense só pôde manter os traços germânicos até o final da década de 30, quando Getúlio
Dona Nadir e seu João Klein moram em Linha Antão, um lugar da cidade onde o alemão ainda parece ser a língua oficial
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Vargas instituiu a Campanha de Nacionalização. A partir daí, o português era obrigatório em todas as escolas e era proibido o ensino de idioma estrangeiro a todos os menores de 14 anos. Quando chegou a hora de seu João e dona Nadir irem para o colégio, levaram um choque. Não podiam falar alemão na escola, mas só haviam aprendido essa língua em casa.
POLIANA PASA
Língua resistiu à proibição Seu João lembra que passou por alguns sufocos. Conta que os professores até batiam em quem falasse alemão na escola. A repressão era tanta que a mãe dele mal saía de casa para não ser flagrada pela polícia. Segundo a pesquisa de Maria Hoppe Kipper, os anos de 1942 e 1943 foram os mais difíceis para a população germânica. O medo do nazismo era tanto que a língua alemã foi reprimida por completo, tanto em locais públicos quanto privados. A vigilância policial ficava à escuta inclusive nas casas dos colonos. Mas a paranóia do governo não era inteiramente sem fundamento. Em todo o Rio Grande do Sul havia núcleos de apoio ao III Reich. Em Santa Cruz do Sul, uma sede do Partido Nacionalsocialista dos Trabalhadores Alemães foi fundada em 1937. Apesar dos focos de ameaça nazista, Kipper considera exagerada a ação do Estado Novo. Ela acredita que se a aplicação da Campanha de Nacionalização tivesse sido mais lenta, os resultados seriam melhores e menos traumáticos à população. Aconteceu que a cultura germânica foi reprimida, mas não silenciada. Em família, seu João e dona Nadir continuaram falando só alemão, já que seus pais não sabiam falar português. Nem mesmo no comércio a repressão foi suficiente. Os lojistas continuaram atendendo clientes em alemão. Em alguns estabelecimentos havia até uma sala especial
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Seu João teve dificuldades no colégio
para esses atendimentos, longe da fiscalização. Até hoje, quando vai para o centro da cidade, dona Nadir entra nas lojas em que sabe que é falado o alemão. Para Lissi Bender Azambuja, a repressão representa uma perda em termos de cultura. Segundo ela, o Estado Novo semeou um sentimento de vergonha e menosprezo em relação ao idioma alemão. Com a diminuição da fala e a abolição do ensino, ela acredita que a língua perdeu um pouco de representatividade na região. Seu João concorda com o que diz respeito à vergonha. Conta que conhece muita gente que sabe falar, mas não fala. Na família dele, porém, todos os oito filhos aprenderam o alemão e, junto da família, é só o que falam. Uma das filhas do casal, Liadete Klein, diz que até prefere falar alemão do que português. O que não é o caso de dois dos seus irmãos, que, segundo ela, “casaram com brasileiros” e desaprenderam a língua. Passado de geração em geração, o alemão tem sobrevivido em Santa Cruz do Sul. Mas tudo indica que essa tradição pára na prole de seu João e dona Nadir. Isso porque dos 12 netos, nenhum aprendeu o alemão. E seu João já sabe de quem é a culpa: da televisão. O professor Elenor Schneider concorda com essa posição. De acordo com ele, as famílias de origem alemã são
atropeladas por alguns fatores irreversíveis, como a televisão. Ele aponta que, por mais arraigada que seja uma cultura, a televisão acaba se infiltrando e os distancia do alemão. Dona Nadir gosta de assistir a novelas, pois ela entende mais o português do que sabe falar. Para aprender as novas regras da língua portuguesa, então, ela acha que teria de voltar para a escola, porque não sabe escrever.
Outro nível de analfabetos Dona Nadir e seu João estão num limbo. Falam bem o alemão, arranham no português, mas não sabem escrever nenhuma das línguas. Seu João conta que seus pais tinham 12 filhos e muito trabalho a fazer. Por isso, não tiveram tempo de ensinar a escrita aos pequenos. Na escola, o português era muito difícil, pois fora de lá eles não usavam a língua. O professor Elenor Schneider classifica o casal como analfabetos. “Muitas vezes procuramos analfabetos nas classes pobres, quando na verdade temos outro nível de analfabetos”, diz ele. Elenor acredita que as autoridades nunca souberam lidar com a questão do bilingüismo. Hoje, segundo ele, os profissionais da área das Letras já sabem como ensinar uma segunda língua. Por falta de orientação, co-
lonos como seu João, dona Nadir e seus pais misturaram as línguas, para encontrar uma forma de se fazer entender. É isso que estuda a escritora Lissi Bender Azambuja. Ela investiga o Santa-cruzense Deutsch, uma espécie de nova língua, com vários traços do alemão padrão. Como o alemão foi transmitido somente de forma oral, Lissi afirma que houve muita perda vocabular. Privados de aspectos lingüísticos importantes, como a renovação e a ampliação do idioma, os imigrantes encontraram alguns vazios na hora de se comunicar. Para preenchê-los, Lissi conta que eles emprestaram diversos termos do português e criaram novos verbetes. Um exemplo é a palavra namorieren, que significa namorar no dialeto santa-cruzense. A pesquisa da escritora serve para preservar essa forma de linguagem, pois ela sabe que há um grupo cada vez menor a falar o Santa-cruzense Deutsch. Elenor Schneider, inclusive, não tem dúvida de que esses teuto-brasileiros estão em extinção. Mas aponta que o fenômeno do idioma dos imigrantes tem sido muito valorizado pela chamada sociolingüística, que é o estudo das línguas usadas na sociedade. Ele lembra ainda que hoje as variedades lingüísticas são consideradas riquezas. E manda um recado ao seu João e à dona Nadir: ninguém fala errado. Todos falam simplesmente do jeito que aprendem.
Oito línguas portuguesas República de Angola – África 13,9 milhões de habitantes. A língua oficial é o português, mas também são falados idiomas como Umbundo, Quimbundo, Quicongo e Tchokwe.
República da Guiné-Bissau – África 1,5 milhão de habitantes. Utiliza-se o crioulo, o mandjaco e a mandinga, entre outros
República de Moçambique – África 19,4 milhões de habitantes. Há várias línguas nacionais, como o Lomué, Makondé, Shona, Tsonga e Chicheua.
República Democrática de São Tomé e Príncipe – África 162 mil habitantes. Também se fala crioulo.
República Portuguesa – Europa 10,5 milhões de habitantes
República de Cabo Verde – África 511 mil habitantes. Além do português, fala-se o crioulo.
República Democrática de Timor-Leste – Ásia 924 mil habitantes. As línguas oficiais são o português e o tétum
República Federativa do Brasil 186,7 milhões de habitantes
As mudanças ortográficas Dona Nadir acha que a mudança do português é coisa de quem não tinha mais o que inventar. Há uma grande polêmica em torno do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Mas o professor Elenor Schneider concorda com a dona Nadir. Ele acredita que é impossível unificar a diversidade cultural de tantos países. A alteração significa desatualizar todos os livros. Portanto, todas as bibliotecas terão que ser completamente renovadas e correm o risco de não reencontrar diversos exemplares, pois muitos livros já nem têm editora. De qualquer forma, o Ministério da Educação brasileiro apóia o acordo e quer implantá-lo. Então, é melhor você se preparar. Veja abaixo as principais mudanças na língua portuguesa: w O alfabeto passa a ter 26 letras, pois k, w, e y serão incorporados ao português; w A trema deixa de existir, a não ser em nomes próprios e seus derivados; w O hífen não será mais usado quando o segundo elemento começa com “s” ou “r”, e aí a consoante deve ser duplicada (antirreligioso, contrarregra). Também não será utilizado o hífen quando o prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa com uma vogal diferente (extraescolar, aeroespacial); w O acento diferencial não será mais usado, por exemplo, para diferenciar o verbo “pára” da preposição “para”; w O acento circunflexo desaparece da terceira pessoa do plural, como é usado em “têm” e “lêem”. Nas palavras terminadas em hiato “oo”, como vôo, o acento também será eliminado; w E o acento agudo deixa de existir nos ditongos abertos “ei” e “oi”, a exemplo de “assembléia” e “jibóia”. Sai também de paroxítonas com “i” e “u” tônicos precedidos de ditongo, como “feiúra”. O acento desaparece ainda das formas verbais que têm o acento tônico na raiz, com “u” tônico precedido de “g” ou “q” e seguido de “e” ou “i”. É o exemplo de “averigúem” e “apazigúem”. Dona Nadir: mudança é coisa de quem não tinha mais o que inventar
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Os bastidores de Ana Amélia Lemos
O dia-a-dia da jornalista multimídia que, há 28 anos, enfrenta uma rotina ativa na sucursal da RBS TV de Brasília
DANIELA AZEREDO Segunda-feira, 10 de setembro de 2007. São 5h25min. Um táxi prata pára em frente a sucursal da RBS em Brasília. É Messias, há oitos anos o taxista–motorista da jornalista. De dentro sai uma mulher dinâmica, falante, perspicaz. É Ana Amélia Lemos, vestida num terno rosa, pronta para iniciar suas atividades às 5h30 da manhã. O primeiro jornal em mãos é o Correio Braziliense, trazido pelo porteiro do prédio. O primeiro olhar é para a coluna do Cláudio Humberto. Uma rápida lida nas demais notícias e já toca o telefone. Chegou a vez de entrar ao vivo na Rádio Rural. Depois da rádio, uma parada para a maquiagem. De dentro da bolsa, Ana Amélia puxa uma nécessaire marrom e aproveita para fazer alguns retoques. Afinal, em televisão a imagem é importante e personaliza a pessoa. Depois se inicia uma peregrinação nos principais veículos de comunicação do grupo RBS. CBN de Santa Catarina, Canal Rural, Bom dia Santa Catarina, Bom Dia Rio Grande. Hora de dar uma pausa. Pausa para tomar água. Em cima da mesa do estúdio da rádio Gaúcha, uma garrafa pet de três litros de água, para confortar a sede, provocada pela seca que castiga a capital federal. São 7h30min, quando entra a manicure da jornalista no estúdio da rádio. Entre uma unha e outra, Ana Amélia entra no ar, para dar seu comentário do dia no Gaúcha Hoje. Mesmo com as mãos ocupadas, ela não se intimida em dar suas notícias ao vivo para os ouvintes assíduos da manhã. Afinal, a vaidade é outra companheira da rotina da colunista. A manicure é rápida: 30 minutos são suficientes para dar conta do recado. O valor do serviço, R$ 20,00. Mais uma rápida lida nos principais jornais nacionais, desta vez, trazidos pela recepcionista do grupo. São 7h50min, os âncoras começam a produzir e a gravar as entrevistas que serão transmitidas no Gaúcha Atualidade. Passados 20 minutos de produção, inicia-se o programa, que entra no ar às 8h10min. O bom dia inicial dos apresentadores André Machado, Rosane de Oliveira e Ana Amélia Lemos. Enquanto
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DANIELA AZEREDO
Mais de Ana Amélia Lemos w Nasceu em Lagoa Vermelha, no Rio Grande do Sul; w Tanto no Ensino Médio quanto na faculdade, Ana Amélia dependeu de bolsas para concluir os estudos; w Formou-se no curso de Jornalismo da PUCRS no ano de 1970. A turma dela foi a primeira a se formar na Faculdade dos Meios de Comunicação da PUCRS; w Trabalhou como produtora na Rádio Guaíba, como repórter no Jornal do Comércio, na TV Difusora e no jornal Correio da Manhã. Foi também correspondente da revista Visão. Hoje ela faz parte do grupo RBS; A profissional faz sua própria maquiagem antes de entrar ao vivo nos programas da RBS TV
André Machado dá uma notícia de interesse regional, a colunista aproveita para ir ao toalete. Como algumas entrevistas são gravadas, resta um tempo para dar mais uma lida nos jornais, assistir ao noticiário na televisão e fazer uma refeição rápida da manhã. Frutas. Às 8h50min, a produtora Kely, nos bastidores, avisa Ana Amélia que a primeira sugestão de entrevistado ao vivo “caiu”. A fonte não foi encontrada. A jornalista sugere outro entrevistado. Também não teve êxito. Mais um, sem sucesso. Outro nome também não foi encontrado. Somente na quinta indicação obtém sucesso. Foram quase dez minutos, numa busca por possíveis entrevistados. O nome: Luiz Antonio Fleury Filho – ex-deputado federal, autor da proposta de emenda constitucional, em 2001, que extinguia o voto secreto em decisões importantes no Congresso, como cassações. A entrevista segue até o fim do programa. Às 9h30min, os apresentadores finalizam os trabalhos. 1h20min de programa. Mais uma pausa para água e para o toalete.
A partir de agora até às 12h15min são leituras e respostas de e-mails. Em meio às dezenas de correspondências eletrônicas, a jornalista faz a triagem do que poderá ser pauta na coluna de Zero Hora. Em meio a tantas ligações, profissionais e pessoais, Ana Amélia aproveita para ligar para uma conceituada floricultura de Porto Alegre e encomenda um presente. Quem vai receber será um casal gaúcho que lhe deu carona até o aeroporto Salgado Filho. Aproveita e liga para sua enteada, que mora na capital gaúcha, e comunica que lhe comprou uma passagem aérea para estar na quarta, dia 12, em Brasília para uma festa surpresa de aniversário que vai realizar para Otávio, seu marido. Com a coluna de Zero Hora fechada às 12h10min, Ana Amélia retoca novamente a maquiagem e se prepara para entrar ao vivo no Jornal do Almoço. Após dois minutos no ar, encerra sua participação. Uma pausa para o almoço. Como estávamos no primeiro dia de acompanhamento de seu trabalho, Ana Amélia nos convidou
para uma atividade atípica a sua rotina: almoçar no restaurante Carpen Dien, no shopping Pátio Brasil. Afinal, ela está acostumada a levar uma marmita diária para a RBS, invariavelmente massa estilo japonês. No restaurante, ela se mostra espontânea. Cumprimenta inúmeros jornalistas e nos deixa à vontade para falar sobre a hospitalidade de Brasília e os serviços oferecidos na capital. Aproveita e conta sobre sua trajetória profissional. Na hora de servir, mostra os melhores pratos do restaurante. Arrisco-me a experimentar a batata sotê com bacon. Parecia picante, mas, ao provála, pude sentir o gosto de um tempero, que até então não havia provado. Até hoje me pergunto qual era o tempero. A jornalista, em sua perspicácia, pergunta-me que tipo de batata era aquela. Logo me pronuncio: “É sotê”. Ela olha para mim, pede um “com licença” e ataca com as mãos a batata que estava no meu prato. A pessoa que eu conhecia por meio da televisão não era a mesma que encontrei em Brasília: aqui ela parece mais humana.
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w Estreou na RBS em 1977, como repórter de economia. Também produzia e apresentava o programa “Panorama Econômico”. Considera-se a primeira coluna de economia da televisão do sul do país; w Mudou-se para Brasília no final da década de 70, pois seu marido havia sido transferido para lá. Em 1982, assumiu a diretoria da sucursal da RBS na capital brasileira.
Às 13h25min estamos de volta à sucursal. Ana Amélia se prepara para entrar ao vivo no Canal Rural, programa Mercado e Cia. Escova os dentes, penteia o cabelo e retoca a maquiagem. Às 13h40min entra ao vivo. Às 14 horas, encerra a participação. Para finalizar a rotina, dá mais uma olhada no e-mail e encerra as atividades do dia às 14h30min. A próxima parada é a academia. Ana Amélia se despede e chama Messias, seu motorista. Amanhã, a rotina será a mesma, porém com fatos novos ou exclusivos. Essa correria já dura 28 anos. Parar? Não está em seus planos.