Unicom 03-2008

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Jornal experimental do Curso de Comunicação Social - UNISC - Santa Cruz do Sul - Outubro/2008

Faces Morte

As

da


A morte e o jornalismo O jornalismo, e, nele, os jornalistas, nunca conviveram muito bem com a temática da morte. Basicamente porque ela, a morte, sempre ocupou o lugar usualmente destinado às coisas ruins nos jornais, revistas, televisões, rádios, e, mais recentemente, nos sites e blogs de natureza jornalística. Ou seja, quando o assunto é morte, jornalisticamente falando, ou a matéria vai para a editoria de polícia, ou para o espaço destinado aos anúncios fúnebres, ou, ainda, é invariavelmente transmitida de forma pesada, seja em termos de palavras escritas ou pronunciadas. É evidente que não há nenhum absurdo nesta forma por meio da qual os jornalistas (e a sociedade, diga-se de passagem) tratam a morte. Até porque, convenhamos, sua presença sempre anda junto de tristeza, dor e sofrimento. Mas também nos parece claro que esta senhora, tradicionalmente vestida de preto e com um gadanho (aquelas foices grandes) na mão, pode ser vista, quem sabe, com olhares menos pesados. Por quê? Basicamente porque ela integra a nossa vida, e não é, portanto, possível viver sem sua presença, por mais incômoda que possa parecer, e às vezes de fato é. E é por este motivo que o Unicom, nesta terceira edição de 2008, resolveu se debruçar sobre a temática da morte. Não que a moçada ande meio desesperançada, pelo contrário: foi a vontade de exercitar, desde o âmbito escolar, um jornalismo cada vez mais criativo e diferenciado que nos levou a investir neste tema tão polêmico quanto instigante. Isso por entendermos que, mesmo em assuntos considerados “tabu” pela sociedade, e este é o caso da morte, há muita coisa interessante a ser dita. E se há coisas a serem ditas, há jornalismo. E é por isso que as próximas páginas estarão repletas de reportagens ligadas de uma forma ou outra à morte. Se você quiser saber como foi o trajeto; o caminho por meio do qual nossos repórteres alcançaram este resultado, vá até o Blog do Unicom – http://blogdounicom.blogspot.com – e não esqueça de deixar seu recado. Uma boa leitura a todos.

UNISC Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - RS CEP: 96815-900 Curso de Comunicação Social Jornalismo. Bloco 15 - sala 1506. Fone: 3717-7383 Coordenadora do curso: Ângela Felippi

Editor-chefe Demétrio de Azeredo Soster

Editora

Letícia Mendes

Produção

Daiane Balardin Marisa Lorenzoni Utaipã Rodrigues Vanessa Britto Viviane Moura

A morte come pé-de-moleque Ana Flávia HanTt

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u tinha uma tia que dizia que quando morresse, sentiria falta de uma blusa vermelha. Exatamente. Uma blusa. Vermelha. Era uma vestimenta que ela mesma havia confeccionado com suas ágeis agulhas de tricô e que somente era usada em ocasiões muito especiais. Esta tia, aliás, tinha uma opinião muito bem formada sobre a Morte. Assim mesmo, com letra maiúscula e toda a pompa. Tratávamos a Dona Morte como um membro da família. No entanto, ao contrário do que muitos de vocês devem estar pensando, a tia não era uma pessoa mórbida, ou que cultivava tristezas ou colecionava dores. Não. Era uma pessoa que adorava uma boa conversa e que estava sempre sorrindo. A diferença desta mulher, é que ela tinha fé. Uma crença infinita nos seres celestiais e no caminho bom que ela teria depois do último suspiro. Mas voltando aos pensamentos da inusitada senhora, é importante falar sobre os aniversários dela. Ela dizia que a data que marca a passagem dos anos nada mais é do que ciclos em que se brinca de esconde-esconde com a Morte. E que quando a pessoa sopra a velinha e pede a realização de um desejo, na verdade está simplesmente dizendo para a Morte que deseja mais um tempo para realizar esta ou aquela meta. A tia Martina, que cometi a deselegância de ocultar o nome e agora lhes apresento, sempre se preocupava em agradar a todas as visitas que freqüentavam a sua casa. Era

um bolo com coco e leite condensado para mim, um doce para uma amiga, um pudim para uma prima, e um pé-demoleque para a morte. A explicação? “Enquanto a morte se entrete com o pé-de-moleque, não quer saber de uma velha que nem eu”, contava entre uma colherada e outra de sagu de abacaxi, seu preferido. Se a morte chegava a saborear a iguaria destinada a ela, ao menos cosmicamente, nunca fiquei sabendo. Eu, pelo menos, lambuzei-me muitas e muitas vezes com o doce de amendoim. Contudo, em uma virada de ano, quando milhares de foguetes pipocavam no céu, a Tia Martina resolveu cometer a descortesia de falecer. Meio que ironicamente, a morte escolheu o início de um novo ciclo para levá-la. No velório, entre lágrimas divertidas, comentávamos que alguns dos fogos no céu eram da Dona Morte, que finalmente havia conseguido vencer a brincadeira de esconder que as duas travaram por 78 anos. A tia? Foi velada e sepultada vestindo a blusa vermelha. Ainda hoje, quatro anos depois, sonho que vou visitar esta senhora que tanto marcou minha infância e ela está, como não poderia deixar de ser, vestindo a blusa vermelha. Nestes momentos de conversa, nunca falta o meu bolo especial. Mas uma iguaria está faltando sobre a mesa: o pé-de-moleque. Provavelmente, porque a tia não precisa mais entreter a morte.

O sepultamento do luto Josiléri Linke Cidade

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m ano vestindo preto. Sem ir a eventos sociais ou freqüentar locais públicos. Sem assistir tevê ou ouvir rádio. Esse era o comportamento que deveriam ter os familiares mais próximos de um falecido. Enquanto o defunto era preparado, os parentes se encarregavam de encontrar vestes escuras como forma de manifestar a tristeza do momento. Algumas viúvas, especialmente, não voltavam a usar roupas em tons de vermelho e rosa. As regras da sociedade instituíam uma espécie de clausura, não para quem “descansava em paz”, mas para os que ficavam. Em outros tempos, a morte era entendida como uma ferida para os que perdiam alguém e – pior do que isso – com tempo “pré-determinado” para cicatrização. Não se podia nada antes de se completar um ano da morte, depois tudo era permitido. Afinal que respeito era esse? Hoje o comportamento dos parentes é bem diferente. Não que a dor da perda seja menor. É que a morte vem sendo encarada com maior naturalidade. A coisa mudou tanto que, segundo José Luiz de Souza Maranhão, no livro O que é morte (Brasiliense, 1985, p. 19), “a sociedade exige do indivíduo enlutado um autocontrole de suas emoções, a fim de não perturbar as outras pessoas com coisas tão desagradáveis”. A vida acaba apenas para quem morre. Os que ficam precisam seguir em frente e, aos poucos, o luto foi sendo enterrado junto com o “ente querido”. Nem todos respeitavam um ano. Esse período foi sendo abrandado, quanto mais distante

Reportagem

Ana Flávia Hantt Daiane Balardin Guilherme Mazui Heloísa Letícia Pool Josiléri Linke Cidade Letícia Mendes Majô Schwingel Pedro Garcia Rozana Ellwanger Raisa Machado Sancler Ebert Vanessa Kannenberg

o parentesco, menos tempo era necessário. Em uma semana já se podia acompanhar as principais notícias pelo rádio ou na televisão. O preto figurava por um tempo menor: um mês para os filhos; para as crianças já não era necessário. As gerações evoluíram e mudaram certos costumes. Edgar Morin, em O homem e a morte (Imago, 1997, p. 79), bem coloca que “...na verdade, por mais lenta, por mais drasticamente que isto possa acontecer, as coisas mudam, os homens evoluem, se individualizam.” Hoje, as cores das roupas variam de acordo com a vontade de cada um ou com a moda da estação. Os netos não esperam mais o avô esfriar no caixão para curtir àquela balada que toda a galera combinava de ir a dias. Azar do vovô que resolveu bater as botas justo neste dia. Nem mesmo os viúvos perdem tempo. Quando a doença deixa o companheiro acamado por um longo período, o velório pode ter uma mistura de sentimentos entre dor e liberdade. Stephen Kanitz (revista Veja, 21 maio 2008, p. 18) cita o cientista Carl Sagan para lembrar que temos apenas uma vida e que precisamos aproveitá-la ao máximo, pois o que vai ficar de cada um de nós são as características genéticas, que são passadas para as próximas gerações. Para o futuro talvez a morte seja transformada em uma festa, entendida como um processo natural, afinal aceitamos nascer, crescer e viver, mas temos medo de morrer e não aceitamos a morte daqueles que amamos.

expediente

Revisão

Josiléri Linke Cidade Marisa Lorenzoni Rodrigo Nascimento

Diagramação

Débora Vogt Gelson Pereira Vanessa Kannenberg

Direção de arte Gelson Pereira Lázaro Fanfa

Ilustrações

Amanda Mendonça

Fotos

Márcia Melz Marisa Lorenzoni Raisa Machado

Logotipo

Samuel Heidemann

Impressão Graphoset

Tiragem

500 exemplares

O conteúdo editorial ficou a cargo de alunos das turmas de jornalismo impresso, que trabalharam em regime extra-classe e de forma interdisciplinar. Os anúncios da edição foram criados pela Agência A4 de Publicidade e Propaganda (coordenada pelo professor Alexandre Borges).

www.blogdounicom.blogspot.com

A cidade dos mortos Majô Schwingel uando se fala em cemitérios, muitas idéias transitam na imaginação das pessoas. De fato, o local onde enterram os mortos é mais do que simples lápides construídas uma ao lado da outra. Elas podem ser também consideradas obras de arte: a chamada arte tumular expressa em meio à arquitetura cemiterial. Este lugar, o cemitério, pode representar a concretização do ritual de passagem entre os vivos e os mortos. Durante o século XVIII, em vários países, os mortos eram enterrados embaixo do assoalho das igrejas. Quanto mais próximo do altar maior era a importância do falecido para com a igreja, maior era a sua riqueza. Segundo a pesquisadora Cláudia Rodrigues, as pessoas literalmente pisavam, caminhavam, sentavam e oravam sobre as sepulturas (RODRIGUES, 1999). Ao longo do século XIX, esta prática se intensificou, e começou e ser cogitada. E o que era sagrado passou a ser considerado profano. Com os programas de higienização ocorridos no Brasil, os rituais fúnebres se modificaram, ocorrendo o processo de retorno dos mortos aos cemitérios, e assim a valorização deste lugar como solo sagrado. O cemitério passa a ser novamente a face concreta da morte e normalmente ao lado de uma igreja sempre acabavam construindo sepulturas. Com o crescimento urbano, e a questão da saúde pública, estes lugares acabaram se tornando um pouco mais afastados. Alguns historiadores afirmam que os cemitérios são incomparáveis fontes de pesquisa, expressando, por meio de suas construções, características de processos sociais referentes a cada período da história, reproduzindo as diferenças existentes na sociedade. Ou seja, por meio deles se pode saber quem é pobre, rico ou remediado. Para Maura Petruski, o cemitério é um “espaço sagrado que faz parte da vida cotidiana, cujo reflexo dos vivos é transportado para os túmulos, demonstrando representações individuais ou familiares de distintas formas”(RODRIGUES, 1999). Cada cemitério tem a sua lógica de organização. Em

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torno disso, pode-se perceber a divisão social existente no mundo dos vivos, que também é representado nas “cidades dos mortos”, por meio da arquitetura cemiterial. Visitando estes lugares, percebe-se também o quão são parecidos com pequenos meios urbanos, com suas ruas, prédios, janelas, e incontáveis estátuas – anjos, santos que lançam olhares, como se fossem guardiões observando os vivos que transitam e cuidando dos mortos. As pessoas constroem as sepulturas dos seus entes, enriquecendo-as com materiais caríssimos, evidenciando a que grupo social o morto pertencia. Mármore e bronze, não faltam para incrementar os verdadeiros monumentos construídos a céu aberto, que passam a ser verdadeiras galerias de arte. É o caso de cemitérios como o Pére Lanchaise, de Paris, que faz parte dos pontos turísticos da cidade, onde transitam diariamente centenas de pessoas, que visitam os túmulos de famosos – como Jim Morrison, Oscar Wilde, Chopin, entre outros, admirando também sua riqueza arquitetônica (PETRUSKI, 2006). Alguns destes lugares guardam verdadeiras obras de arte. Muitos artistas conhecidos já se inspiraram na morte introduzindo-a na arte fúnebre tumular. No Brasil, isto não seria diferente. Segundo Olívia Ribeiro, em São Paulo foram catalogados, entre três cemitérios, 500 monumentos de valor histórico e artístico (RIBEIRO, 2007). Com todo esse valor, os cemitérios passam a ser muito mais do que lugares a serem visitados no Dia de Finados. Merecem um olhar mais atento sobre este espaço com incontáveis histórias, cheias de símbolos, signos, práticas que ultrapassam a vida e são construídos para lembrar sempre da morte.

Muitos artistas conhecidos já se inspiraram na morte introduzindo-a na arte fúnebre tumular

FONTES:

RODRIGUES, C. A cidade e a morte: a febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres no Rio de Janeiro (1849-50). História, Ciências, Saúde — Manguinhos, VI(1): 53-80, mar.-jun. 1999. PETRUSKI, Maura Regina. A Cidade dos Mortos no Mundo dos Vivos: Os cemitérios. Revista de História Regional 11(2): 93-108, Inverno, 2006. RIBEIRO, Olívia Cristina Ferreira; OSMAN, Samira Adel. Arte, História, Turismo e Lazer nos Cemitérios da Cidade de São Paulo. Licere, Belo Horizonte, v.10, n.1, abr./2007.

Fotos: Már cia Melz

editorial


Você sabe quanto custa morrer? Engana-se quem pensa que tudo acaba quando a vida se vai; para os que ficam, ainda restam “algumas” contas a pagar Heloísa Letícia Poll orrer faz parte da vida. O tio da padaria, a professora da faculdade, a prostituta da Rua 10 e até a figura que aparece todos os dias no seu espelho vão “bater as botas”. Pode-se dizer que essa é a certeza mais cruel – ou mais tranqüilizadora – sobre a vida de qualquer um. Mas, além disso, há outra verdade que assombra muitos viventes. Mais especificamente é aquela que diz: sabia que morrer custa caro? Enquanto o Dia do Juízo Final não chega é melhor se preocupar em criar um Fundo da Morte Própria para suprir todas as despesas quando a “moça” de preto, com um machado na mão, bater à porta. Quando o ser “bate as botas” é preciso providenciar a funerária, o caixão, as flores, o cemitério e os anúncios nas rádios e nos jornais. Em alguns casos, a família precisa contratar ônibus para levar a parentada à despedida eterna. Aos poucos, quando as escolhas começam a ser feitas, o bolso também começa a morrer. Quando a vida de alguém chega ao fim, a certidão e o atestado de óbito precisam ser providenciados. Caso o ser tenha morrido no hospital, o atestado de óbito é emitido na própria instituição, sem nenhum custo. Mas, em certas situações bem específicas, será preciso procurar um profissional para emitir o documento. Se isso acontecer, o preço a ser pago é o valor de uma consulta que pode chegar a R$ 100,00. Já a certidão de óbito, que deve ser solicitada em um cartório de registro civil de pessoas naturais, é gratuita. A segunda via, no entanto, tem um custo de R$ 16,40.

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Depois de providenciar toda a papelada, chega o momento de procurar um lugar para enterrar o corpo. Em Santa Cruz do Sul os integrantes da Associação Beneficente Cemitério São João Batista precisam pagar 4 CUB pelos túmulos (o valor do CUB de setembro era de R$ 1.048,99) e 3 CUB ao adquirir uma gaveta. Além disso, a partir do momento em que o local é ocupado, uma anuidade de R$ 42,00 deve ser paga. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil, por sua vez, não possui “vagas” mortuárias para vender. » Tem lugar ai? Quem sempre sonhou em ser enterrado no cemitério municipal de Santa Cruz do Sul vai ter que mudar os planos. Segundo o administrador do local, Egídio Afonso Thier, a prefeitura não possui mais terrenos nem gavetas para venda. Existem somente algumas sepulturas particulares, ou seja, aquelas que pessoas compraram anos atrás e que agora colocam à venda. Com dois lugares, elas são vendidas pelo preço de R$ 10.000,00. Além das 6.200 “moradias” existentes nos 13 hectares do cemitério há um projeto que prevê a construção de mais gavetas. Enquanto isso não acontece, o mercado imobiliário fúnebre cresce. Os negócios são feitos diretamente com os proprietários. Dos enlutados, a administração recebe apenas uma taxa de sepultamento que custa R$ 6,53. Você leu até aqui e ficou desesperado, pois não faz parte de nenhuma comunidade religiosa e ainda não garantiu um lugar em alguma “casa”

dos mortos? Não se preocupe. Algumas funerárias possuem terrenos e gavetas para comercialização em outros locais. Segundo o proprietário de uma empresa fúnebre de Santa Cruz do Sul, Edson Halmenschlager, no Cemitério Ecumênico da Paz Eterna as gavetas são vendidas pela empresa ao preço de R$ 5.490,00 ou R$ 6.748,00. Nesse valor está inclusa uma fachada de granito que é produzida de forma padronizada. Anualmente uma taxa de manutenção também tem que ser paga. Ela fica em torno de 0,07 CUB por ano. Para abrir e fechar a gaveta é cobrado de 0,17 CUB. O Cemitério também possui gavetas para comercialização aos preços de R$ 3.435,00 a

R$ 6.480,00. Mesmo na hora da morte vale a pena pesquisar. No cemitério Parque Guarda de Deus os valores de uma sepultura ficam em torno de R$ 1.500,00. Depois da documentação e da compra do terreno ou gaveta, chega a vez da Igreja receber o comunicado do falecimento. A boa notícia é que para solicitar a presença do pastor ou do padre no velório não é preciso pagar nada. Se o seu familiar ou você mesmo foi um bom cristão e pagou todas as anuidades em dia, não vai ter problema. Assim como a celebração no dia do enterro, as missas de sétimo, trigésimo dia e um ano também não têm custo, mas algumas igrejas aceitam contribuições espontâneas. Se os representantes de Deus aqui na Terra já foram avisados, o próximo caminho é a funerária. Ali, o responsável pelo falecido pode vir a ser o próximo a entrar para a outra vida, pois corre o risco de levar uma “facada”. O primeiro passo na agência fúnebre é alugar a capela. Conforme Edson Halmenschlager, o preço do aluguel em qualquer uma das mais de cinco capelas disponíveis pela empresa é de R$ 180,00. Já na capela localizada no bairro Santo Antônio, que é mantida pela Prefeitura, não há a cobrança de taxas das famílias, assim como aquelas pertencentes à Igreja Católica Ressurreição, localizadas defronte ao Cemitério Municipal. Nessa última, apenas as funerárias pagam. No Cemitério Ecumênico da Paz Eterna, são cobrados R$ 185,00 para a utilização do necrotério. Como o morto não vai poder sentar com os amigos e muito menos ficar de pé, é preciso providenciar uma urna confortável para que ele comece a descansar. Os preços variam de R$ 550,00 a R$ 10.000,00. O que vai determiná-lo é o tipo

da madeira, a forração, o trabalhado, que pode trazer imagens sacras, e até mesmo as alças. A beleza dos mesmos impressiona. Como diz Halmenschlager, “dá até vontade de morrer”. Dá para vender a televisão de plasma ou o Fusca de estimação da família para pagar o caixão. Já a ornamentação do caixão pode custar de R$ 90,00 a R$ 160,00. A mais barata é feita com flores artificiais. O uso de plantas naturais – geralmente crisântemos ou rosas – encarece o serviço. O véu que cobre o corpo também tem que ser pago. O simples pode custar R$ 20,00 ou R$ 25,00. Já o luxo, feito com tecido e bordado diferentes, custa R$ 50,00. Para colocar arranjos florais na cabeceira do caixão podem ser desembolsados de R$ 40,00 a R$ 90,00. O livro de presenças não é cobrado!

Aqui jaz uma estrela O sonho da adolescência não se realizou e a faxineira de empresa morreu no anonimato. Então, nada melhor do que prestar uma última homenagem do jeitinho que ela sempre quis. Basta ir até a rádio ou até o jornal e pedir para que publiquem uma nota sobre o falecimento da pobre coitada. Geralmente, a própria funerária vai fazer isso, mas quem paga é você. Nos jornais, os anúncios podem custar de R$ 50,00 a R$ 140,00. Nos fins de semana a publicação é mais cara. Nas rádios os valores variam de R$ 20,00 a R$ 50,00. Depois de jogarem um punhado de terra para dentro da sepultura é hora de procurar uma marmoraria. O material usado para revestir o túmulo é o granito, pois sua durabilidade é maior. Conforme o diretor de uma empresa de mármores e granitos de Santa Cruz do Sul, André Luiz Panke, os valores ficam entre R$ 4.000,00 e R$ 10.000, 00. A colocação das fotos e as letras, que podem ser de qualquer tipo e cor, estão inclusas no preço. Há 32 anos, Panke trabalha com a confecção de túmulos. Nesse tempo, algumas novidades como corações, cruzes e estrelas surgiram. Cada um desses adornos pode custar R$ 600,00. Quanto mais detalhes a sepultura tiver, mais cara ela fica.

É preciso estar apresentável Para que o morto esteja bem apresentável no dia em que vai ser o centro das atenções, a primeira providência a ser tomada é garantir que o falecido vista um belo traje. Procurou no guarda-roupa e não encontrou nenhum que ficasse à altura? Não tem problema. As funerárias vendem diversos modelos de ternos, vestidos e xales para momentos de emergência. Alguns saem por R$ 120,00 ou R$ 150,00. Geralmente os femininos são mais baratos. É possível comprar um vestido de cetim por R$ 35,00 e um traje de saia e blusa por R$ 70,00. Além do modelito, a funerária realiza uma preparação do corpo que inclui maquiagem, barba, unhas, curativos e reconstituição da face. Tudo para deixar o corpo mais apresentável para a ocasião. Esse serviço, feito na própria empresa fúnebre, pode levar até duas horas para ficar pronto. O preço co-

brado para executar esses processos, inclusive aqueles que evitam vazamentos e odores durante o velório, varia de R$ 150,00 a R$ 250,00. » Últimas lembranças Para expressar o carinho que sentia pela vovó, que partiu depois de 100 anos, você vai querer enviar uma coroa bem bonita ao velório ou vai desistir no meio do caminho, caso seja um neto mão-de-vaca. Assim, poderá escolher em dar um buquê de R$ 30,00 ou R$ 50,00, ou optar pelos tradicionais vasos de crisântemo que custam de R$ 5,00 a R$10,00. Apesar de não passarem muito dos R$ 190,00, as coroas podem chegar a R$ 350,00. O nome da floricultura, os tipos e a quantidade de flores utilizadas são os principais fatores que determinam o valor de cada uma. Sabe aquele carro que você trabalhou a vida inteira para

conseguir, economizou num monte de coisas para poder comprar e finalmente conseguiu estacioná-lo na sua garagem? Pois é, não vai ser esse que vai te levar para a cova. As funerárias disponibilizam veículos para transportar o corpo e a família. Para transportar um corpo no Centro de Santa Cruz do Sul são cobrados em torno de R$ 70,00. Uma viagem para outros municípios tem seu valor calculado por quilômetro. Nesse momento você parou para pensar e viu que o velório da sua tia reunirá todos os moradores do interior do município onde ela mora? Nesse caso é melhor contratar um ônibus. Para fazer todas as voltas possíveis e impossíveis as empresas podem cobrar de R$ 100,00 a R$ 200,00. Mas atenção! O nome da empresa, o destino, o número de lugares e a quilometragem podem mudar tudo e o valor ficar bem mais elevado.


O classificador de espíritos Para Beto Paixão, a vida do finado determina se ele é um espírito bom ou mau. Se você se comportar bem, pode até receber agrados do coveiro quando morrer Rozana Ellwanger epois da morte, você está fadado a caminhar ao redor do seu túmulo. E esteja preparado, pois nessas andanças pode encontrar algum espírito mau – ou você mesmo pode ser catalogado nessa classe. Tudo depende do que fez em vida. Mas depois que “passar dessa para a melhor” pode contar com horas e horas de descanso diário, porque no além a ação acontece só à meia-noite e ao meio-dia. Pelo menos é nisso que acredita o coveiro mais famoso de Venâncio Aires: Beto Paixão. Roberto José Chaves, coveiro há quase 30 anos em Venâncio Aires, mostra intimidade com os espíritos, apesar de nunca ter visto nenhum no seu cemitério. Para tentar entender um pouco o que se passa no seu ambiente de trabalho buscou explicações em centros espíritas e as lacunas no conhecimento acerca da morte ele preencheu com teorias próprias. Entre elas está a crença de que

Márcia Melz

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os espíritos saem das covas sempre ao meio-dia e à meianoite. Entre as crenças do coveiro está acender velas nos túmulos que acredita serem de pessoas “milagreiras”. Mas merecem este agrado apenas os espíritos bons, pois os maus podem até persegui-lo para fora do cemitério. “Os ‘esprito’ ruim são as pessoas que se enforcam, se matam, e os bandidos. Tem muito bandido aqui. Aquele ali é um. Foi ‘matado’ pela polícia”, explica convicto, apontando para um túmulo semi-coberto por capim. Mas a certeza de vagar entre maus espíritos não incomoda Beto Paixão. Por confiar nas almas que o cercam, Beto faz coisas que, com o perdão do trocadilho, até Deus duvida. Quando a dona Morte faz hora extra, os coveiros fazem também. Por isso, várias vezes Paixão passou dias inteiros no trabalho. O almoço sempre esteve garantido, já que os coveiros plantam

pepinos e tomates no terreno. Ao meio-dia, é só comprar um quilo de carne, recolher alguns galhos no mato ao lado do cemitério e assar o churrasco ali mesmo. “A mesa é um túmulo. Aquele ali, do lado do jazigo de pedra, na sombra”, mostra Beto Paixão. Se a necessidade obriga, por que não dormir no cemitério? Para o coveiro namorador, que já “experimentou” caixões antes de comprar o seu, isso não é problema. Tanto que uma vez, durante 15 dias, o cemitério foi a casa de Beto Paixão. Expulso por uma de suas oito ex-mulheres, ele se instalou no cômodo onde guarda as ferramentas indispensáveis no seu trabalho, como as pás e os espetos para o churrasco. “Ali é bom. É um quartinho grande, fechado, tem banheiro, água, tem tudo”. E assim o senhor Paixão tem uma garantia. Se seu espírito namorador lhe arranjar mais encrenca com a atual esposa, ele já tem uma segunda casa onde se refugiar: o cemitério da Vila Rica (bairro de Venâncio Aires).

Por que Paixão? O apelido Beto Paixão é a marca registrada do coveiro Roberto José Chaves. Mas pouca gente sabe que ele arranjou esse codinome devido ao seu modo galante. “As mulheres davam bola pra mim, aí eu arrastava, né”. Por ser meio Dom Juan, os colegas começaram a lhe chamar de Paixão e o apelido pegou. Hoje, Roberto Chaves é só mais um nome na folha de pagamento da Prefeitura. Mas Beto Paixão é figura lendária, conhecida por todos. Aos 61 anos, ele já se casou oito vezes.

Só mais uma dose E velório que se preze, tem que ter um bêbado para pagar um mico. Ainda mais quando o defunto também gostava de aguardente. Aí, está feito o ajuntamento. É aquele monte de pinguço para rezar pelo morto. Ou, então, para beber mais um trago. O advogado Délcio Pauli, lembra de um velório, mas aqueles antigos em que eram feitos na casa do falecido. Enquanto os familiares choravam em um canto, no outro rolava uma conversa entre os borrachos: “Será que nosso amigo iria se importar se nós tomássemos uma cachaçinha no seu velório?” Já se encaminhando para a cozinha em busca do vicio, outro retruca: “Acho bom nós pedirmos permissão pro morto”. E lá se parou um deles entre as quatro velas e disparou: “Você se importa se nós tomarmos um trago?” Como o defunto não podia responder, ele largou: “Olha aí, vocês estão vendo! Ele não falou nada e, como quem cala consente, eu vou beber”.

Histórias de velórios

Os ritos de passagem dos mortos nem sempre se resumem a lágrimas e dor; muitas vezes eles são até divertidos Daiane Balardin

O sonho do túmulo próprio O sonho de grande parte dos brasileiros é a casa própria. Pois se em vida Beto Paixão pulou de uma casa para outra na mesma velocidade com que trocou de mulher, seu teto depois da morte já está garantido. Ele já construiu o seu túmulo, bem ao lado da entrada do cemitério. “Olha a localização: perto da entrada, não tem mosquito, tem luz e água, se esquecer a chave do portão um dia de noite é só pular o murinho e tem a parada de ônibus ali na frente, pra ir pro baile da terceira idade”, gaba-se. Beto também já pagou a funerária e comprou o caixão (que ele garante ser o mais confortável, já que deitou dentro para experimentar). A roupa para o enterro será uma pilcha de gaúcho completa, com a qual ele já tirou a foto para a lápide. A imagem já está colocada, ao lado do espaço reservado para preencher com a data da morte.

Pouca tábua Realmente essa mostrou com quantos paus se faz uma canoa. Nesse caso, um caixão. É o que conta a dona de casa Carmem Fontoura, que presenciou uma cena um tanto quanto inusitada. Mesmo que durante toda a vida um casal viva entre tapas e beijos, na hora da morte normalmente a coisa muda e a emoção predomina. Mas não foi o que aconteceu. Naquela época, quando se ouvia barulho de tábua sendo arrancada, era porque tinha morrido alguém e era preciso fazer um caixão. E foi o que fez a viúva, quando seu velho partiu para o andar de cima. Eles brigavam muito e o dinheiro não chegava para comprar um caixote. Sendo assim, ela não pensou duas vezes. Arrancou uma tábua do galinheiro, outra da casa e uma da patente e estava pronto o caixão. O problema foi que ela não acertou na medida. Dez pais-nosso depois, o defunto começou a inchar. E o caixão foi ficando cada vez menor. Até que o morto parou sentado. A velha indignada começou a reclamar que mesmo morto ele continuava teimoso e empurrou-o de volta. A situação se repetiu novamente. Na terceira vez a velha se irritou de verdade. E, enquanto todos olhavam assustados, ela pegou uma corda e enrolou o falecido, que foi enterrado parecendo um salame.

A tia do pai Família grande é um problema. É a irmã da mãe, a tia do pai, o primo terceiro, o irmão do avô, o sobrinho da bisavó e por aí vai. Nesses casos só existe uma situação para reunir a família toda: um velório. Lugar para rever e, às vezes até conhecer um parente a mais. Esse foi o caso da professora Ângela da Cunha. Ela conta que quando ainda era uma adolescente, seu pai pediu que ela fosse representá-lo em um velório. A irmã da mãe do pai da moça tinha falecido. Ela, sem conhecer a defunta, teve a seguinte orientação do pai: -“Chegue lá e se apresente dizendo ser minha filha”. E assim fez. Chegando ao velório, viu que perto do caixão havia uma jovem sentada. Aproximou-se achando que seria mais uma prima, filha de outra irmã de seu pai. E não teve dúvidas, chegou dizendo quem era e tascou a pergunta: “Como vai sua mãe?”. O que ela não esperava fosse que a jovem apontasse para o caixão.

O dono do sapato Quando a confusão é grande, pode saber que tem bêbado na jogada. E a história de Maria de Lourdes Pacheco não é diferente. Eram quatro amigos, um mais pinguço que o outro, dois deles estavam sentados em um bar, para variar, quando chegou o terceiro dizendo que o Fantocha tinha morrido atropelado. A tristeza foi grande. Os três logo pegaram a carroça e foram buscar o corpo do amigo. Do local do acidente foram direto para a casa de um deles velar o morto. Quando chegaram lá deram por conta que ele estava descalço e eles jamais admitiriam que um integrante do quarteto fosse enterrado assim. Compraram um par de sapatos e meias novas para ele. Logo começaram a beber em homenagem ao morto. Enquanto isso um deles dizia: “Esse não é Fantocha”. Trago vai e trago vem, lembraram que não tinham avisado a viúva. E lá se foram eles para a casa do amigo. Avisar a esposa e também pegar mais bebida. Ao baterem na porta foram atendidos, por ninguém mais que Fantocha. Um deles assustado disparou: “Fantocha, tu tá morto, o que está fazendo aí?” Ele, mais bêbado ainda, respondeu: “Eu não estou morto”. E começou a prosa: “Mas estão até te velando lá em casa”, ele retrucou: “Bom, se é que estão me velando eu vou lá conferir”. E foi. Quando o Fantocha entrou no velório era gente correndo para tudo que foi lado. Fantocha se aproximou do caixão, olhou bem e disse: “Esse não sou eu, mas o tamanho do pé é bem igualzinho e se compraram o sapato pra mim eu vou levar”.


Zé do Caixão nasceu de um pesadelo Aos 28 anos, o cineasta José Mojica Marins adormeceu sobre a mesa e teve a visão que mudou o restante dos seus dias Guilherme Mazui / Pedro Garcia A morte faz parte do teu Zé do Caixão nasceu trabalho. Como tu encaras a em 1964, já adulto, morte? de barba e unhas crescidas. É fruto de um pesadelo de um cineasta dependente de soníferos. Este cineasta é José Mojica Marins, 72 anos, desde os 10 fascinado pela morte. Procurou tanto por ela que, em 1976, encontrou-a. Encontro curto, mas suficiente para iluminar a visão do tema. Por quatro minutos, Mojica viu o clarão e sentiu a dor da passagem. Por sorte e socorro médico, reDizem que tudo termina tornou. O contato aproximou a na morte. No teu caso, não compreensão da morte, porém terminou. não respondeu todas as dúvidas. Ao menos uma caiu: “O certo é que morrer não é bom”. Zé do Caixão falou ao Unicom.

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Por já ter o contato com a morte, como tu planejas a tua despedida?

Mojica – Sou um pesquisador da morte. Desde os 10 anos estudo e quero chegar a algum ponto, mas não cheguei numa realidade. Tive um problema, em 76, uma parada cardíaca. Fiquei quatro minutos fora do ar, o coração parou de bater, fui dado como morto. Tive visões de coisas muito brancas, um branco que ofuscava os olhos, de repente a terra te engolia. Era dor direta.

Os quatro minutos apagados influenciaram tua obra de 1976 pra cá?

Como surgiu o Zé do Caixão?

Mojica – Não creio que tudo termine na morte, nem acredito que você volte. Acho que a pessoa morre e vai para um local em que a sua energia vai se juntar à outras energias. Um outro espaço, um outro planeta, um mundo paralelo, outra dimensão, sei lá, mas aqui não voltamos. O certo é que morrer não é bom. Mojica – Não quero que meus filhos chorem. Quero que fique todo mundo alegre, como fazem os mexicanos. Tem duas músicas que quero que toquem. A “Valsa do Adeus” e a “História do Mamute”. Depois, todos devem comemorar com champanhe, pois vou estar descansando.

O Zé do Caixão vê a morte com os mesmos olhos do Mojica?

Mojica – Não. Como era um pesquisador da morte, usei isso como ponto-ganho. Eu era estudioso e continuei estudando. Só que me apavorou. A dor daquele segundo é eternidade. Acho que a dor de passar pro outro lado vai ser sempre grande. Mojica – O personagem surgiu de um pesadelo, em 63. Eu, cansado, ia fazer um filme chamado “Geração Maldita”, sobre jovens. De repente, no dia 11 de outubro de 63 eu adormeci sobre a mesa. Quando acordei vi um pai de santo. A família pensou que eu estava com algum encosto, o que eu não acredito, mas achavam que eu tinha. Na verdade eu tive um sonho, em que alguém me levava para um túnel onde tinha uma lápide, que mostrava a data do meu nascimento e da minha morte. Mojica – O Zé do Caixão é diferente de mim. Ele não teme a morte. Ele acha que se morrer, acabou. Então, se ele deixar herdeiros, fica imortal. Por isso ele procura a mulher superior, para engravidar, como nessa fita ele engravida sete (se referindo ao “Encarnação do demônio”). Através dos filhos, dos netos, bisnetos ele se torna eterno.

estavam atrofiando as mãos. A liberdade de ter as mãos para telefone, teclas, é importante. Vou começar aprender a usar o computador. Valeu perder as unhas e não perder os dedos. O sonho do Zé do Caixão mostrou o principal personagem da tua carreira. Quando surgiu a idéia de transformá-lo em filme?

Teu último filme, o terceiro da trilogia do Zé do Caixão, ficou 42 anos na gaveta. Por que tanto tempo?

Mojica – Depois do sonho tomei banho, vim pro Centro de São Paulo e troquei de idéia. Em vez de fazer “Geração Maldita” eu faria “À Meia-noite Levarei Sua Alma”. Fiz duas páginas do argumento, ninguém quis fazer o filme. Tive que vender minha casa. Minha esposa foi pra casa dos pais, vendi os móveis, meu pai e minha mãe me ajudaram com um carro e o dinheiro da poupança. Tive que gravar a fita por dia, porque os artistas cobravam por dia e o dinheiro dava pra três dias. Mojica – Não foi feito no início pela perseguição. Todo mundo tinha medo de fazer e a fita ficar presa como aconteceu com “O despertar de besta”, fita que ficou 20 anos presa devido à censura. As pessoas tinham medo e eu tive que fazer bangbang, aventura e até fita de sexo explícito pra sobreviver. Passei um apuro muito grande. Alguns produtores que tentaram fazer a fita faleceram de doenças.

Quem é José Mojica Marins?

Fotos: Divulgação

Em algum momento o personagem te domina?

As unhas são marcas do Zé do Caixão. Qual o comprimento recorde que tu chegaste a cultivar?

Mojica – Tem uma separação muito grande. Eu fui casado sete vezes, tenho sete filhos, 11 netos. Zé do Caixão não achou uma mulher ainda, não tem netos, não tem filhos. Zé do Caixão só acredita na mente. Eu acredito em Deus. Zé não tem medo da morte, eu tenho. Zé pode dormir com aranhas, cobras, que não dá nada. Eu, se vejo um pernilongo e eu não o mato, não durmo. Mojica – Tive unhas de mais de meio metro. Agora cortei, só deixo grande a do polegar esquerdo. Cortei porque

O único cineasta a produzir filmes de horror no Brasil nasceu em 1936. Paulista, largou a escola na 5ª série decidido a viver do cinema e passou a produzir filmes amadores em um antigo galinheiro. Ainda adolescente, fundou uma companhia cinematográfica e, mais tarde, uma escola de atores. Após uma série de produções fracassadas, teve o pesadelo que o levou a criar o personagem Zé do Caixão. Em 1963, criou o roteiro de “À meia-noite levarei sua alma”. Sem recursos, foi obrigado a pedir empréstimos e a vender sua própria casa. O dinheiro que conseguiu foi suficiente apenas para alugar um estúdio por 18 dias e construir cenários de cartolina. As cenas foram rodadas com um take e sem utilizar som direto – os diálogos foram dublados. O filme foi lançado em 1964. Nos anos seguintes, dirigiu filmes como “O estranho mundo de Zé do Caixão” e “Esta noite encarnarei no teu cadáver”, a continuação da trilogia iniciada em 64. Entretanto, a partir de 1968, o Instituto Nacional de Cinema e a Embrafilme intensificaram a repressão e criaram leis que protegiam uma

Teus filmes possuem cenas pesadas. O objetivo é só chocar?

Mojica – Objetivo é chocar, porque o público gosta. Mas há uma mensagem social, a revolta do Zé. Ele retorna numa era em que as crianças estão sentadas na calçada cheirando cola, que a polícia é corrupta, mata duas crianças. O Zé do Caixão se revolta. Então o filme traz uma mensagem danada. Os policias precisam ganhar mais. Mostro isso e mostro a parte do castigo, tanto do Zé quanto dos serviçais dele, que são presos, mortos.

Na hora de formular as cenas, no que tu te inspiras?

Mojica – Em pesadelos. Sou dependente do lorax (lorazepam, tranqüilizante) para dormir. É um sonífero forte. Desde os 8 anos sou dependente de sonífero e todo sono com sonífero traz pesadelos. Os pesadelos me inspiram. Sempre deixo um caderninho do lado da cama. Conforme acordo, passo no caderno o sonho. Dali eu tiro histórias para quadrinhos, livros de bolso, cinema, televisão.

Cite alguma cena marcante vinda de um pesadelo.

Mojica – O pesadelo do Zé. Ele está aos gritos, então surge uma pessoa de preto, que o arrasta. Aí, faço uma mudança. O Zé vai parar num caixão e acaba no inferno.

minoria de produtores. Mojica teve que apelar para comédias eróticas e pornochanchadas. Nos anos 70 e 80, trabalhou na TV e até candidatou-se a deputado. O reconhecimento no exterior veio na década de 90. Mojica foi convidado para convenções de fãs de terror na Europa e nos EUA. “Coffin Joe”, como é conhecido lá fora, participou de festivais e recebeu homenagens. Tornou-se o cineasta brasileiro mais popular fora do País. Por aqui sua situação só começa a mudar em 2008 com a estréia de “Encarnação do demônio”, a última parte da trilogia. O filme mais caro da carreira de Mojica (R$ 1,8 milhão) já conquistou prêmios e vem chamando a atenção da mídia.

Quem é Zé do Caixão? Josefel Zanatas, o agente funerário que aterroriza a população de um vilarejo no interior de São Paulo com seu comportamento excêntrico. Ele se considera um ser superior e alimenta uma obsessão: encontrar a mulher capaz de gerar o filho perfeito, pois só assim conseguiria eternizar o seu sangue.


fotografia

Onde o suicídio é natural

Lentes que retratam a morte

Uma cidade, aparentemente pacata, que guarda em suas esquinas histórias surpreendentes. Histórias escondidas no silêncio de vidas marcadas pelo mistério e pela dor

Para algumas pessoas, caso do fotógrafo pericial Alexandre Borges, 34, a morte não é sinônimo de medo ou tristeza, mas de trabalho

E

O suicídio não passou pela vida de Joana apenas como um susto. Quatro dias depois, em 6 de dezembro, seu irmão, aos 35 anos, suicidou-se. Ele sofria de depressão. “Sabia que o vício do cigarro iria matá-lo. Os médicos diziam que ele tinha que parar”, relembra a irmã com as lágrimas escondidas pelos óculos escuros.

Histórias como essa, normalmente, deveriam espantar os moradores, mas, em Venâncio Aires, não assustam. O irmão de Joana foi um entre os 22 suicidas do ano de 2007, isso em uma cidade com pouco mais de 60 mil habitantes. Desde 1995, o município é conhecido pelo expressivo número de casos, o que resultou no título de Capital Mundial do Suicídio. Há 13 anos, o tema escandalizou o país, sendo noticiado em diversos jornais e revistas. Após alguns anos, a cidade voltou a sua calmaria e passou novamente a ser chamada de Capital Nacional, dessa vez, graças ao chimarrão. Mas, no ano de 2007, um número maior ainda de casos, 22 suicidas, prova que o dilema, mesmo

esquecido, continua mais vivo do que nunca. E para comprovar isso basta ter ouvidos. » A saída é a morte A cada esquina encontra-se uma vida ligada ao suicídio. E foi numa dessas esquinas que a história de Laís* foi contada. Uma mulher de aparência triste, que também se esconde atrás de óculos escuros e roupas mais escuras ainda, e que só saiu às ruas neste sábado ensolarado para levar sua cachorrinha preta, de olhos imensos, para passear. Há oito anos o suicídio invadiu a vida de Laís, o pai enforcou-se dentro da própria casa. O agricultor, sofria com o alcoolismo, mas a família nunca desconfiou que ele pudesse chegar ao extremo. Mas, ele chegou. Laís tem uma posição clara: “O fumo, os agrotóxicos não têm culpa nenhuma. O problema são as drogas, o álcool”. Para ela existem drogas, violência e pobreza excessivas em Venâncio Aires. “É um horror. Tem mãe que na falta da comida dá cachaça aos filhos. E eles se viciam. E ninguém fala sobre isso”. Para Laís a cidade esconde os verdadeiros motivos para tantos suicídios. E foi também no ano de

2000 que o pai de Fabiana* assassinou a mãe dela e depois se suicidou. Mesmo falando da família, ela não se constrange ao contar a história: “Ele era ciumento. Ela queria ir embora”. Os olhos ainda ficam marejados, mas para ela os demais casos já não causam o mesmo espanto. Desde a morte do pai e da mãe, Fabiana já perdeu as contas de quantos casos presenciou: “A gente não gosta de saber. Uma vida é sempre uma vida, mas já é uma coisa tão comum”. O comerciante Sirenei Pezzini, 47 anos, divide a mesma opinião “Aqui já virou rotina, morre um por semana”. Quem caminha pelas ruas de Venâncio Aires pode admirar as belas árvores no Centro da cidade, onde a Igreja São Sebastião Mártir se destaca como um ponto de beleza. Os bares na tarde de sábado estão lotados, as pessoas parecem felizes e cheias de vida. Quem passa pela cidade e não pára, em pelo menos uma das esquinas, para conhecer as verdadeiras histórias desse lugar, não percebe que caminhou pelas ruas daquela que já foi a Capital Mundial do Suicídio. * Os nomes verdadeiros foram preservados.

Muitas hipóteses, poucas certezas AGROTÓXICOS: Desde 1996, os produtos químicos, utilizados nas lavouras, são apontados como os culpados pelo número excessivo de suicídios. Os organofosforados, presentes nos agrotóxicos, causariam forte depressão que levaria ao suicídio. ETNIA: Segundo a dissertação de mestrado do antropólogo Éverton Lima Nobre, desde o início da imigração alemã para o Vale do Rio Pardo, no século passado, os índices de suicídio foram relativamente altos e, não apenas, a partir do uso intensivo de agrotóxicos. ESPÍRITAS: Romilda Nottar, conselheira espiritual, explica que a cidade tem muitas almas que, segundo ela, não aceitaram suas mortes e vagam pela Terra, sugando as energias e as vidas dos moradores. A presença desses espíritos é atribuída à Batalha do Fão, uma guerrilha que aconteceu em 1932 e deixou um rastro de morte e desgraças na cidade.

Daiane Balardin lgumas pessoas enfrentam a morte como uma passagem. Outras a temem. Há quem a entenda como um ponto final. Para outros, trata-se do início de uma nova vida. De qualquer sorte, a morte é sempre triste. Ainda assim, enquanto alguns fogem dela, assim como o diabo foge da cruz, outras a encaram como profissão. É dia de plantão. Porto Alegre. Sábado. Soa o sinal indicando que chegou um e-mail. Todos ficam alertas. O fotógrafo da vez dá uma olhada na ficha de informação, prepara o material, e vai para o local. A missão é documentar as cenas e situações para investigações policiais e ações judiciais. Assim é um dia de trabalho de um fotógrafo pericial. Alexandre Davi Borges, hoje com 34 anos, já estava envolvido na profissão aos 23 anos. São, portanto, onze anos fotografando mortos. Mas, o primeiro contato com as fotos periciais veio, bem antes, ainda na infância. Os pais também da mesma profissão, costumavam trazer para casa as fotos em preto-e-branco, e deixar ao lado do telefone para anotações. Isso nunca o assustou. Levava até para os colegas de escola verem. Influência dos pais? Não. Amor à fotografia, estabilidade financeira e emprego fixo. Alexandre Borges, que hoje é também publicitário e professor na Universidade de Santa Cruz do Sul, continua vendo a morte de frente. Por meio das lentes, ele retrata as situações mais trágicas na vida do ser humano: incêndios, danos

A

morais, suicídios, homicídios, acidentes. “Criança sempre é o mais difícil. Já fiz casos em que a criança era da idade do meu filho e dessa vez eu chorei. É muito impactante”. A pior morte: “Suicídio. É um ato tão desesperador, pega toda a família de surpresa e tu sente uma carga emocional muito forte”. Em um dia de plantão, normal, o fotógrafo chega a atender de três a quatro casos. Mas já houve noites em que foram atendidas cerca de 14 mortes. “Quando chega a um número grande de mortes, em uma noite, é porque foram quatro mortes em um caso só. Quádruplo homicídio, por exemplo, esses casos são os piores, porque daí tu tens que analisar os quatro corpos”. » Rir pra não chorar Fotografias sem imagens bonitas e coloridas e sem pessoas felizes. Além de lidar constantemente com a morte, seja ela da maneira que for, é preciso presenciar o sofrimento dos familiares. Mas, enquanto para a família é sofrimento, para outros “esses casos viram uma atração. São três horas da manhã, chovendo, e tem gente sentada, nas cadeiras de praia, com filho no colo, chimarrão e durante o tempo que o morto estiver ali, ninguém arreda o pé”. Preocupação, somente com a sua segurança. Um medo, de abrir uma porta e ver uma pessoa conhecida. “A gente nunca fica sabendo quem é a vítima, só quando é um colega nosso, daí eles avisam antes”. Hoje o fotógrafo conta que lida com a morte de uma ma-

neira bem estranha. Talvez até egoísta, em suas palavras. “Como na maioria das vezes é bandido, assaltante, eu penso que é menos um para fazer mal a alguém”. A defesa é: “Eu imagino que o corpo ali é um boneco. Não importa quem for. Mas depois, sim, é mais complicado, pois o caso sempre me remete a alguma coisa, olho e penso que é parecido com algum parente, ou então, que poderia ter sido minha mãe, meu pai, mas é uma coisa rápida”. A câmera não é apenas instrumento de trabalho, mas também um escudo para se proteger da realidade. “Eu sempre digo que a câmera separa a gente e o morto; e é uma maneira de não se envolver com o local. Porque enquanto tu estás

olhando no enquadramento, tu isolas o resto e naquele momento tu és um técnico e tem que fazer teu trabalho. Eu me preocupo em ser extremamente profissional”. Olhar, fotografar e construir uma narrativa, para quem não estava no local olhar e entender. Esse é o objetivo de

Alexandre. Para fugir um pouco do trágico, e não deixar se abalar com o sofrimento dos familiares, o jeito é descontrair. “Eu não gosto de ser o primeiro a tocar no corpo, por causa da energia negativa que a gente sente e acaba nos afetando. Por isso que a gente ri tanto. Na ida e na volta do local a gente vai brincando e rindo da situação”. E é preciso rir para não chorar. Afinal, não é fácil ter que se agarrar nas pernas de um enforcado para conseguir a melhor foto.

Marisa Lorenzoni

Letícia Mendes / Sancler Ebert

ram quase oito horas da manhã, Joana* caminhava rapidamente. O sol estava forte em um típico dia de verão na pequena cidade de Venâncio Aires. Ela virou a esquina com a rua Silveira Martins e o susto quase a fez saltar para trás. O corpo de um homem balançava com os pés a poucos centímetros do chão, os chinelos estavam, logo abaixo, em perfeita colocação. Joana respirou fundo e seguiu em frente.

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Vidas que dependem da morte

Pobre sofre até quando morre

PEDRO GARCIA / VANESSA KANNENBERG vida, às vezes, depenFoi em 1918 que Hugo Marde da morte. A frase tin deu início às atividades, que pode soar estranha, inicialmente basearam-se na mas é verdadeira. Se para a fabricação de solas de tamanco maioria das pessoas a certeza e cadeiras. Anos mais tarde coda finitude causa medo e insta- meçou a produzir caixões simbilidade, para outros lidar com ples que eram vendidos para ela é atividade corriqueira e, funerárias de diversos pontos sobretudo, base para a sobre- do Estado, como Cachoeira do vivência. No caso da família Sul, Pelotas e Encruzilhada do Martin, viver em torno dela é Sul. Logo, tornou-se a primeira uma herança que vem sendo empresa na cidade a oferecer passada de geração em geração atendimento funerário complehá 80 anos. A funerária mais to. Nas décadas seguintes, muiantiga de Santa Cruz do Sul é tas outras surgiram, mas não hoje administrada pelo bisneto se estabilizaram. Apenas nos de seu fundador. últimos 20 anos, com o crescimento do município, é que o número de concorrentes se multiplicou. A administração nunca saiu da família. Hugo dirigiu o negócio até a sua morte, no final dos anos 60. Seu filho Oscar assumiu o comando junto com o neto Raul – os outros dois netos foram cedo morar fora e aca-

Ana Flávia Hantt vida pode ser difícil para os pobres até mesmo na morte. Fábio Souza*, 19 anos, ocupa um dos 140 espaços cedidos para indigentes pela Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Sul no Cemitério Guarda de Deus. O jovem, ex-militar, desmistifica a crença que indigentes são apenas pessoas não-identificadas. No Guarda de Deus, sepulturas também são destinadas àqueles que por motivos financeiros não tem como custear um enterro. Fábio morreu em uma madrugada de verão, há aproximadamente um ano. Antes de fechar a porta de sua casa, localizada próximo ao distrito industrial, avisou à mãe que sairia com os amigos. Naquela noite, não amanheceu. Até hoje a causa de sua morte não ficou esclarecida, sabe-se apenas que foi

» Do pó ao pó Oscar vivia em uma casa ao lado da funerária. Já Raul mora até hoje nos fundos dela – circunstâncias que remetem à família Fischer, do seriado de TV A sete palmos. Para os Martin, viver próximo a um ambiente que lembra a morte nunca foi estranho. Marcelo, filho mais novo de Raul, cresceu brincando de esconde-esconde com os

amigos da rua entre os caixões. “A molecada vinha para cá todos os dias, era uma festa”, conta. Quando Oscar faleceu, em 1991, Marcelo tinha 18 anos e preparava-se para ir estudar em Porto Alegre. O jovem não tinha planos de se envolver com o trabalho e seu pai acabou assumindo-o sozinho. No ano seguinte, um episódio trágico mudou a vida de Raul: a filha mais velha, Márcia, morreu em um acidente de carro. A perda afetou muito o dia-a-dia de trabalho na empresa, pois cada novo cliente fazia surgir as lembranças da filha. Raul entrou em depressão e sua saúde começou a debilitar. Em 1998, a situação da empresa era crítica. Os problemas vividos em anos anteriores, decorrentes da falta de condições psicológicas de Raul, deixaram a funerária cheia de dívidas

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e com pouco movimento de clientes. “A Martin quase não virou o século”, relata Marcelo. Ele havia recém finalizado a faculdade e voltou a Santa Cruz para, junto da mãe Elaine, decidir o futuro do negócio. Chegaram à conclusão de que teriam que vender ou deixar Marcelo no comando. No fim, a segunda opção venceu. O atual diretor foi obrigado a abdicar de seu sonho de atuar como jornalista esportivo, mas hoje se sente realizado. Casouse com a enfermeira Sirlei, que mais tarde foi trabalhar com ele e atualmente é seu braçodireito. Os dois vivem em um quarto em cima da funerária, acostumados com a falta de horários que o emprego impõe. O futuro da empresa é uma incógnita, pois o casal não pretende ter filhos nem cogita vendê-la. Uma coisa, no entanto, Marcelo garante: “Vou morrer aqui”.

Márcia Melz

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baram não se envolvendo. Os herdeiros assumiram sozinhos praticamente todas as instâncias do serviço. Acostumaramse a trabalhar com apenas dois funcionários, um marceneiro e outro responsável pelo acabamento dos caixões. Ainda nessa época, a família enfrentou o desafio de reerguer a empresa após um incêndio no espaço de fabricação. Na ocasião, todo o então moderno maquinário virou pó.

Em Santa Cruz do Sul, quem não tem dinheiro é enterrado na parte do cemitério destinada aos indigentes, mas sem direito a enfeite e por tempo limitado

causada por um tiro. Suicídio? Queima de arquivo? Desavença? Nada de concreto foi apresentado à família. No entanto, seja qual tenha sido a causa da morte, era preciso enterrar o rapaz. O primo de Fábio, Cláudio Souza, ficou sabendo que a Prefeitura Municipal auxiliava famílias menos favorecidas. “Eles fazem um buraco no chão e o espaço é cedido por cinco anos”, explica, sem esconder um certo desprezo pelas condições do sepultamento. Mesmo sabendo que a construção de qualquer edificação ou homenagem nos espaços de sepultamento é ilegal, Cláudio encontrou uma forma de proporcionar ao primo uma morte mais digna. Conseguiu com conhecidos alguns tijolos e ele mesmo foi até o local dar o seu toque de beleza. “Marquei o quadro com os tijolos, fiz uma

cruz onde escrevi o nome dele e a data de falecimento, até para que a família saiba alguma coisa sobre o menino”, conta, ressaltando que a atitude precisou ser tomada porque o mato invadia o local. » Novas sepulturas A prática realizada pela família de Fábio não é exclusiva. Segundo o administrador do cemitério municipal e responsável pelo Guarda de Deus, Egídio Thier. Às vezes ele e os demais funcionários ficam dois ou três dias sem ir até o local, e, quando retornam, novas sepulturas estão presentes. “Isto até nos faz pensar sobre a real necessidade destas famílias, já que alguns túmulos são trabalhados e com ótimo material”, comenta. Egídio explica que, atualmente, das 17 carreiras com 38

sepulturas reservadas para os indigentes, apenas nove são de pessoas não-identificadas. “São poucas as pessoas sem nome, o que temos mais são natimortos e pessoas pobres”, diz. Sobre o espaço cedido por cinco anos, o administrador ressalta que adotou novas regras: apenas realizam a exumação dos corpos depois de um período de sete anos, quando os restos mortais são retirados e levados para um ossário, localizado dentro do cemitério. A sepultura, desocupada, logo servirá de terreno para um próximo indigente. Embora ainda existam sepulturas sobrando no Cemitério Guarda de Deus, Egídio comenta que há uma real necessidade de se conseguir uma nova área, pois o terreno usado não apresenta as condições necessárias, com muitas infiltrações de água. O primo de Fábio

Souza, Cláudio, aponta outra solução: “O ideal seria ter um crematório em Santa Cruz, que é muito melhor do que achar espaço para enterrar todo mundo”, aponta. No entanto, ele mesmo indica a falha desta sugestão. Há dois meses um conhecido seu foi morto em Rio Pardo e, com o passar dos dias, sem aparecer familiares, foi necessário sepultá-lo. “Enterraram ele no sábado e no domingo a família apareceu. Tiveram que desenterrar o menino”, diz. De qualquer forma, o que ambos, administrador e familiar concordam, é da necessidade de haver um lugar para quem nunca existiu ou para quem é excluído pela sociedade. Um lugar digno para que possam realmente descansar em paz. * Os sobrenomes foram alterados para preservar a identidade da família.

Márcia Melz

A família Martin, de Santa Cruz do Sul, trabalha no ramo funerário há 80 anos


A face fashion dos velórios

Claro que as cerimônias fúnebres não são lugar para desfile de moda, mas alguma elegância nessas horas é fundamental Texto e fotos: Raisa Machado A cor a ser usada também é ntão você está em sua casa e o telefone toca, a um fator importante segundo notícia não é boa, aque- estudiosos sobre os significados le seu amigo que não enxergava das cores, pois influencia a nós havia anos acabou de falecer ou e a quem nos vê, “Estados emoo seu parente que já não estava cionais podem ser suavizados bem não resistiu. A morte pode ou ativados com a utilização acontecer de maneira inusitada da cor”, garante o consultor ou aparecer em um dia e agir de Feng Shui, Vimal Agnideva, tempos depois, e realmente é da Escola da Bússola de São um assunto complicado, por es- Paulo. Quando esteve aos pés tar ligado diretamente às emo- de Jesus, morto e crucificado, ções e se revelar de diferentes Maria vestia roxo que simbomaneiras em cada pessoa. Des- liza devoção, espiritualidade, sa forma muitos acabam caindo purificação, transformação e em pecado e cometendo alguns sinceridade. O preto começou a ser usado erros. Você deve estar se perguntando: “Será que eu devo na Idade Média pelas carpideiestar bem-vestido até mesmo ras, moças que vestiam túnicas em um velório?” Não é bem dos pés a cabeça e eram pagas por aí, o importante é compa- para chorar sobre o morto. Mas recer na cerimônia e demons- o uso do preto, como muitos trar respeito à dor dos parentes nem imaginam, não passa de e à memória do falecido, caso uma produção “glamourizada” você não possa, vá na missa dos filmes de Hollywood, que de sétimo dia. Mas, sobretudo acabou ganhando força total faça-o com elegância. ficando conhecido como a cor

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do luto. Mas não se pode deixar de falar que o preto garante a quem o usa segurança. Em outras culturas, como para os chineses, a cor ideal é o branco, pois repele energias negativas e favorece clareza; já para os indianos os tons de azul são os mais adequados, pois além de estimular a razão, é a cor da ponderação e acalma. » Discrição Para a estilista inglesa e inventora da minissaia, Mary Quant, “bom gosto é a morte, vulgaridade é a vida”. Portanto é melhor deixar o seu vestido de paetês para outro dia ou usar aquele decote que você adora no aniversário da sua amiga, afinal você não está indo para uma festa. Atualmente, o look todo preto não é mais usado, mas junto a seus variantes como o cinza ou com seu eterno par, o branco, é uma

boa pedida, pois dá equilíbrio à combinação. Sobretudo, seja você mesma, mas não esqueça: nessas horas, neutralidade é tudo. Segundo Júlio Mattos, maquiador há mais de vinte anos, a maquiagem é dispensável nessa ocasião, para as mais assíduas deve-se ressaltar que assim como na roupa, a maquiagem deve ser discreta, podendo ser feita apenas para correção de olheiras ou fazendo o uso de rímel incolor, batom opaco e pouco blush. O uso de certos acessórios lhe dará privacidade, os óculos escuros são bemvindos , afinal “ninguém precisa ler a sua tristeza”, afirma.

Se você optar pelo uso de boné ou chapéu, é preciso ressaltar que em igrejas não é permitido o uso, portanto, ao entrar, seja educado e retire-o. Antes de ir ao local, procure se informar sobre a religião da família. Para os católicos, é comum e de bom grado o envio de flores; para os espíritas, não tem sentido; os judeus não possuem esse hábito, pois para eles flores significam vida. Também não cumprimentam os parentes no velório, já os budistas cumprimentam primeiro o chefe da família ou quem estiver em seu lugar. Não esquecendo que se você estiver de óculos escuros, ao cumprimentar os parentes,

retire-os. De maneira geral, evite ficar relembrando a morte da pessoa, isso só traz mais sofrimento, ou ainda dizer “isso logo passa” ou até mesmo “não chore”, afinal a dor é inevitável e chorar é natural. Um abraço sincero nesse momento vale muito mais do que qualquer frase pronta. Por fim, seja gentil e ofereça sua companhia. Como já dizia o pintor francês Henri ToulouseLautrec, “existe uma coisa difícil de ser ensinada e que, talvez por isso, esteja cada vez mais rara: a elegância do comportamento(...) é elegante retribuir carinho e solidariedade”.



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