JORNAL EXPERIMENTAL DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UNISC - SANTA CRUZ DO SUL VOLUME 33 - N° 1 - MAIO/2017
EDITORIAL
UM OLHAR PARA OS OUTROS Naturalmente cruzamos com muitas pessoas no nosso cotidiano. Alguma vez, no entanto, paramos e disponibilizamos nosso tempo a elas? O comportamento individualista diante da sociedade pode nos limitar no convívio com os demais, e isso, por vezes, passa até despercebido aos nossos olhos. É isso que queremos com esta primeira edição do Unicom em 2017: abordar questionamentos a partir da relação com o OUTRO.
Relatamos, em nosso jornal-laboratório, expectativas de vida; as dificuldades corriqueiras do dia a dia; como é viver em uma casa com outros idosos desconhecidos; perceber e vivenciar histórias carregadas de sentimentos não explorados; enxergar a profissão do outro, mas com outro olhar; a vida após a prisão e a audiodescrição como prática de alteridade, entre outras matérias contando mais histórias. Além disso, essa edição do Unicom é especial porque trabalha de maneira muito forte a interdisciplinaridade. Ou seja, os alunos de Produção em Mídia Impressa, onde o Unicom é realizado, responsáveis pela concepção e elaboração de conteúdo do jornal, uniram-se à turma de Editoração Eletrônica em Jornalismo, responsável pelo planejamento visual, para, juntos, darem conta desta primeira edição.
Com isso, exercitamos, na prática acadêmica, o que há de mais caro não apenas em termos de mercado de trabalho, mas na vida como um todo: a percepção de que, juntos, e considerando, em nosso caminho, o outro, podemos ajudar a transformar o mundo em um lugar melhor para se viver. Uma boa leitura a todos. Os editores. 2
EXPEDIENTE
Demétrio de Azeredo Soster
Gabriel Girardon
Nathiele Droese
Vitória C. Rocho
Francelli Castro
Natália Lau Coimbra
Fabrine Kesseler
Mariana Amorim
Monique Rodrigues
Professor e editor Chefe
Subeditora, editora multimídia e repórter
Produtora e repórter
Editor e repórter
Editora de imagem e repórter
Repórter
Subeditora e repórter
Subeditora multimídia e repórter
Repórter
Letícia Matarazzo
Repórter
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Diagramação Turma de Editoração Eletrônica em Jornalismo (na foto), ministrada pelo professor Willian Fernandes Araújo Chefe de diagramação Thales Augusto Hohl Sub-chefe de diagramação Rosana Wessling
Diagramadores: Antonio Carlos dos Santos Madeira Caelen Correa Vargas Fernanda Pinheiro Souto Oliveira Gabriel Rodrigues da Silva Germano Augusto Seidel Piedade Isadora Beck Schuck
UNISC – Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 – Bairro Universitário Santa Cruz do Sul – CEP 96815-900 Curso de Comunicação Social – Jornalismo Bloco 16 Sala 1612 Telefone: 3717-7383 Coordenador do Curso: Hélio Afonso Etges Impressão ... Tiragem 500 exemplares Ilustração e capa Mônica Cugnier - Fotografia
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Josué Leôncio Posselt Julia Agostine Abich Kelvin Alves Azzi Leonardo de Paula Pereira Lucas Nunes dos Santos Milena Konzen
Nathiele Droese - Conceito Vitória C. Rocho - Conceito/Editoração Diagramação Turma de Editoração Eletrônica em Jornalismo, ministrada pelo professor Willian Fernandes Araújo. Volume 33 – nº 1 - Maio/2017 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA Este jornal foi produzido em parceria entre as disciplinas de Produção em Mídia Impressa e Editoração Eletrônica em Jornalismo. Acompanhe o Unicom nas redes sociais: blogdounicom.blogspot.com facebook.com/unicomjornal
Arte: Raquel Goecks
Gabriel Girardon
Mas o que é mesmo alteridade?
Palavra difícil, com conceitos mais ainda, mas nada que não se revele e descubra importante na vida das pessoas.
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lteridade não é algo fácil de entender. Você até já pode ter ouvido essa palavra, não? No entanto, saber o que significa é outra história. O principal público do Unicom – mulheres solteiras, de 18 a 25 anos, que cursam Comunicação Social – foi questionado sobre isso. Simples: o que é alteridade? Nenhuma delas soube dizer o significado dessa singular expressão. Mas é normal; é complicada de compreender. Só que, quando se descobre, percebe que é algo essencial, praticado, inclusive, por todos, diariamente. O conceito de alteridade é utilizado em diferentes campos. Um deles é o da antropologia, em que o termo pode ser compreendido como "a relação "nós e os outros" que marca a relação com a cultura do "eu" e a cultura do "outro", isto é, o contato com a diversidade cultural que causa espanto e estranhamento”. A definição é dada pela professora
e psicóloga Gabriela Maia. É usado também na filosofia, onde o professor Ubiratan Trindade resume como “o problema do outro, da “existência do próximo”, da realidade e do encontro com os outros”. Uma tradução básica para isso pode ser o processo de relação do homem com o outro. Seja em família ou no trabalho, sejam pessoas de maneira individual ou em grupo. Mesmo que se tenha um mundo cheio de individualismos, onde muitas vezes prevalece o egoísmo, ninguém vive realmente sozinho, pois todos são interdependentes de outras pessoas. Só que, para tal, é preciso considerar que entre os "outros" existem estilos, costumes e tradições diferentes do "eu". Para compreender melhor tais diversidades, é necessário, além de respeitar e aceitar o que é distinto de si, saber se colocar no lugar do outro. Assim, é possível ter outras perspectivas fora a sua própria.
Agora alteridade já não parece algo tão complexo. No fim das contas, os seres humanos se utilizam dela diariamente, quase que sem perceber. Mais do que isso, sem sequer saber que isso constitui a alteridade. A todo instante as pessoas estão interligadas umas às outras. Faz parte do "viver". Aliás, falando em vida, o que seria dela se não fossem as descobertas? Se encaixa na máxima do "vivendo e aprendendo". Enquanto isso existir, tudo fará sentido.
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Foto: Facebook/Clínica Amanhecer
Nathiele Droese
A casa que ninguém vê, mas se faz necessária Instituições de longa permanência são estigmas sociais para quem ainda não as conhece
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e repente eles chegaram lá, diante do portão de ferro da casa dos velhos. A vida inteira espremida numa mala de mão. Deixaram para trás a longa teia de delicadezas, as décadas todas de embate entre o anseio e a possibilidade. A família, os móveis, a vizinhança, as ranhuras das paredes, um copo na pia, o desenho do corpo no colchão.” A descrição, da jornalista e escritora Eliane Brum, em sua reportagem A Casa dos velhos, do livro O olho da rua, descreve uma realidade que pouca gente conhece; e, quando sabe, geralmente tem uma ideia diferente de como as coisas efetivamente são. Você mesmo, já se imaginou vivendo em uma instituição de longa permanência? O Estado do Rio Grande do Sul possui cerca de 10.693.929 habitantes, destes 13,7% são de idosos com 60 anos de idade ou mais, segundo indicativos do IBGE. Em média Santa Cruz do Sul possui uma população com aproximadamente 10.639 idosos sendo sua população total de habitantes 118.374 conforme
a pesquisa realizada pelo site população.net.br. Há também um número significativo de instituições de longa permanência, em torno de vinte e sete casas registradas pela Prefeitura. Uma delas é a Clínica Geriátrica Amanhecer, que tem três polos distribuídos pela cidade. Nela, os idosos recebem atendimento nutricional, médico e ainda atividades extras para o lazer; lá, eles podem ir e vir tendo em vista a autorização de seus familiares e enfermeiros. Os quartos são divididos, seus pertences ficam enquadrados em um armário com suas memórias e itens pessoais. A casa é marcada pela perda e pelo ganho de novos moradores. Muitos chegam por opção própria para obter uma qualidade de vida e deixar seus entes queridos seguirem seu próprio destino sem as preocupações diárias de que possa acontecer algo. Outra parcela de chegadas é por meio de familiares, por sua escolha, ou por falta dela, por não poder cuidar do idoso de forma ampla e necessária como ele precisaria. Claro que se pararmos para pensar,
há suas diferenças entre uma casa de repouso privada e uma pública. Se pesquisarmos no Google: casas de idosos, veremos vários artigos, matérias relatando as dificuldades de ser idoso neste ambiente. Muitas destas casas são vistas como “depósito de idosos” e palco para debates sobre maus tratos.
Muitos chegam por opção própria, outra parcela de chegadas é por meio de familiares
De acordo com o Professor e Coordenador do curso de Enfermagem da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e especializado em Gerontogeriatria Nestor Pedro Roos, de 62 anos, existe uma diversidade nas questões opinativas sobre as
instituições públicas e as privadas. “Como conhecido do funcionamento de ambas e ter participado e representando o COMUNG (Conselho das Universidades Comunitárias do Rio Grande do Sul) dentro do Conselho Estadual do Idoso em Porto Alegre, acompanhando discussões e fiscalizações, afirmo que as instituições locais, todas prestam um atendimento integral, com qualidade ao idoso hospedado”.
Nestor acredita que muitas vezes as opiniões externadas pelo público que não conhece as instituições passam a rotular as casas públicas com menos qualidade, o que não condiz, com a realidade em Santa Cruz do Sul. “Pode ter suas diferenças nas questões físicas e arquitetônicas dos prédios de habitação, situação esta, que não desmerece toda a dedicação que as equipes destas instituições prestam ao idoso", conclui Nestor.
É preciso refletir sobre tais instituições. Essas casas são lugares ricos para se observar a maneira de viver a velhice, onde são encontradas inúmeras histórias sobre o conceito de ser idoso.
“Não tinha a consciência de vir”, conta dona Flora Uhlmann, viúva, aposentada, de 68 anos bem vividos. Teve de se alojar na Instituição Amanhecer por conta da filha que mora longe e também por complicações médicas. Está na instituição há um ano e dois meses. A saudade aperta quando se lembra do seu falecido marido e de sua filha, que sempre vem quando sobra um tempinho. O valor que a casa tem para Flora é a amizade e a companhia diária. Se saísse da casa, não estaria feliz, teria de voltar com uma rotina que não lhe agrada mais, viver à base de remédios controlados. Já, hoje, na instituição, sempre há algo para ver, ouvir e sentir. “Meu maior sentimento aqui é a felicidade”, conclui Flora.
Foto: Nathiele Droese
"Meu maior sentimento aqui é a felicidade."
Dona Flora acostumou-se com a residência nova e com o ritmo dela, não quer mais ficar sozinha
Foto: Nathiele Droese
Júlia vê a casa como uma garantia de vida
Dona Júlia procura aceitar tudo que a vida lhe dá, mas sente muita falta de trabalhar
Aos 95 anos, a alegre Júlia Mendonça dá o valor ao sossego e à companhia diária. Viúva, aposentada, chegou à Instituição Amanhecer sozinha. “Cheguei aqui, entrei ali, e disse para a enfermeira: eu vim só, estou aqui, eu me trouxe”. Júlia vê a casa como uma garantia de vida. Moradora desde dezembro de 2016 procura aceitar tudo que a vida lhe der. Hoje seu lema é ter sua paz e seu tempo, conversar em seu ritmo, pois, quando era jovem, não conseguia ter uma roda de conversa ampla, acostumou-se a ser uma pessoa reservada. Dona Júlia é vaidosa, de aproveitar do seu modo, o clima e a casa.
O ATO DE CUIDAR ALÉM DE UMA INSTITUIÇÃO << A cuidadora Marlise Ivone Hollweg, de 65 anos, trabalhando há 15 anos como cuidadora, acredita que há sempre maneiras diferentes de tratar o paciente. “Sempre tenho que chegar com cuidado, cautelosa, com raciocínio para tratar bem o paciente.” Nunca teve problemas com seus pacientes, Marlise, sempre teve uma boa adaptação, todos a veem como uma confidente. “Eu acredito que cada família tem um problema: por questões financeiras, de saúde, ou até problemas externos." Para Marlise a questão do abandono, muitas vezes não é pela forma física, mas sim pela saudade de épocas que já se passaram e de tempos guardados apenas em suas memórias.
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Foto: Diego Ebert
Letícia Matarazzo
Por onde andei
Às vezes é preciso viajar para descobrir o outro que existe em nós
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omer, rezar, amar” é um livro da escritora Elizabeth Gilbert que mais tarde se tornou um filme. O best seller narra a história da jornalista que troca a segurança de uma vida não muito feliz por uma viagem de redescobrimento. Uma das frases citadas no filme pela coadjuvante Julia Roberts é “melhor viver o seu próprio destino de forma imperfeita do que viver a imitação da vida de outra pessoa com perfeição.” Em 2015, mais de 230 mil brasileiros saíram do país em busca de algo a mais no exterior. Às vezes uma simples viagem para conhecer lugares novos, outras vezes uma busca pessoal. Por mais conveniente que seja a vida que levamos, chega o momento em que somos pegos pela dúvida do “E se? ” Eu mesma no auge dos meus 26 anos já me vejo associada a esse questionamento; “E se? ” Afinidades à parte, eis que surge Roseane Bianca Ferreira; gaúcha, 29 anos, nascida em Santa Maria; porém, foi Santa Cruz do Sul que lhe acolheu como lar. A escolha pelo curso de jornalismo veio na infância, ainda menina, quando
o lápis trilhava pelos dedos e o gosto pela escrita já preenchia os papeis em branco. Formada pela Unisc, trabalhou seis anos na área após concluir o curso. Em seu último trabalho, Rose começou a sentir que estava faltando algo: “Eu já tinha passado pela televisão, pelo jornal, pelo rádio, estava trabalhando na assessoria o que mais eu poderia fazer? Naquele momento, eu só tinha certeza que algo naquele meio não me completava mais. “ Motivada pelo namorado, dono de uma agência de intercâmbio em Santa Cruz do Sul, o primeiro passo estava dado. Na busca desse “algo a mais” ela decidiu que ia dar um giro pelo mundo. Em abril de 2015 o embarque para New York aconteceu, além de turistar pelo país americano, Rose começou a trabalhar como garçonete. Com essa vivência ela passou a enxergar o mundo com um olhar diferente. De volta para sua pátria amada, em outubro de 2015, Rose sentia que ainda faltava uma peça nesse quebra-cabeça. Essa sensação de não se sentir mais tão confortável em sua cidade, acabou
gerando um sentimento de conflito. Mas não por muito tempo: influenciada pela irmã, que trabalhou como comissária de voo por dois anos na Varig, em dezembro de 2015, ela se matriculou nas aulas de comissária na Aerosul.
"Melhor viver o seu próprio destino de forma imperfeita do que viver a imitação da vida de outra pessoa com perfeição." - Elizabeth Gilbert
“Maktub”, estava escrito. Palavra de origem Árabe, consagrada pelo escritor Paulo Coelho, descreve perfeitamente a inserção de Rose neste novo mundo. Depois de passar por uma série de testes,
“Longe de casa/ Há mais de uma semana”. Era a banda Blitz que descrevia a situação de Diego, era o momento de escolher, voltar para o Brasil ou conhecer um outro lugar? Trabalhando não foi difícil de juntar aquela grana para aproveitar, e a escolha de Diego foi ir atrás do plus, no caso Bali, na Indonésia. Por conta disso, ele renovou seu visto por mais três anos na Austrália. E talvez hoje seja incerto que sua estrada se complete. Afinal, como já dizia Nando Reis em sua canção: “Que a vida é mesmo coisa muito frágil/ uma bobagem uma irrelevância/ Diante da eternidade”.
Prestes a decolar no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre
Rose se formou comissária de vôo, pela Avianca
Foto: Diego Ebert
Assim, como Rose, Diego Ebert preferiu o peso da mochila nas costas do que o peso de um sonho não realizado por falta de tentativas. Era outubro de 2015 quando ele tomou a decisão de confrontar a sua zona de conforto. Na época com 28 anos, recém-formado em administração pela Unisc, nunca escondeu de ninguém a sua necessidade de mudança. De estagiário no departamento de RH, foram três meses para chegar a área de Trade Marketing, na mesma empresa, Phillip Morris Brasil. A sensação de monotonia estava instalada: Como uma bomba relógio prestes a explodir, aqueles dois anos e meio sobrecarregavam a rotina de Diego. Apenas mais um estranho no ninho, era o que ele sentia. A estafa de ser um possível genérico comum, como ele mesmo rotulava atingia a sua realidade. Ora bolas se ele se sentia assim, por que continuar pensando dentro desta cúpula? Diante deste frenesi, em outubro de 2015 entrou em contato com uma agência de intercâmbio para fazer um orçamento, Irlanda, Canadá, Austrália? O clima, as belezas naturais e proximidade do Sul da Ásia fizeram com que ele decidisse pela Austrália. Em novembro do mesmo ano, estava pisando em terras australianas, com um visto de estudante de 7 meses; o plano era estudar inglês e trabalhar no que conseguisse. Durante suas primeiras semanas conseguiu emprego em um
Às vezes uma simples viagem para conhecer lugares novos, outras vezes uma busca pessoal.
Foto: Roseane Bianca Ferreira
Além do horizonte
restaurante como “food runner”, atividade semelhante ao de um garçom no Brasil. Falando assim até parece que a história está sendo contada ao contrário: de chefe a subordinado, porém como naquela frase de que “ são nos pequenos frascos que se encontram as mais cheirosas fragrâncias, era na simplicidade que Diego encontrava a satisfação de viver um desafio de verdade.
Foto: Roseane Bianca Ferreira
ela conseguiu ingressar na Avianca. Em maio deste ano, ela completa 10 meses no time da companhia aérea. São mais de 300 dias desde que ela saiu da conservadora Santa Cruz e passou a residir na caótica São Paulo. Uma mudança e tanto no seu cotidiano, antes comandado pelas pautas jornalísticas, hoje guiado pelas asas de um avião. Pé no chão, como em toda profissão, às vezes o fato de acordar muito cedo acaba gerando um certo desconforto, isso sem falar nas saudades da família e do namorado, mas são justamente essas diferenças que tornam esse cenário tão cabível no universo de Rose. E para o futuro, quem sabe a inquieta Rose, não se aventure no âmbito da psicologia, porque no final das contas, já dizia Roberto Carlos “É preciso saber viver”.
Diego em sua viagem por Monkey Forest Ubud, em Bali, na Indonésia
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Foto: Unsplash
Monique Rodrigues
Quando o outro não é bem-vindo
A sociedade nem sempre aceita de volta, ou compreende, quem mudou de vida
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estido com um macacão da Adidas, relógio Rolex e uma Heineken na mão, meu entrevistado não aparentava ter passado uma temporada confinado. Um sorriso no rosto, seguido de trejeitos malandros, demonstrava uma certa familiaridade; nós já nos conhecíamos, porém apenas por sermos da mesma cidade. Nunca havíamos trocado uma palavra. Tudo o que eu sabia sobre aquele homem, eu havia lido no jornal local. Tive medo, insegurança, eu não sabia se aquele sujeito grisalho iria querer falar de um assunto tão delicado, comigo. Uma desconhecida. Apresentei-me, apertei firme a sua mão, ele olhou fundo no meu olho. Uma das poucas vezes em que realmente trocamos olhares. Ele foi de um todo muito simpático, acatou o meu pedido. Em menos de dez minutos eu estava sentada em seu sofá, e ele partilhando sua história comigo. De começo, ele se vangloriava. Contava com muito orgulho seus dias de glória. Infância de classe média, na adolescência já possuía um carro do ano. Em sua fase adulta, trabalhava apenas algumas horas por dia. Enquanto ele
exaltava a vida boa que possuía na época, notava-se pelo semblante uma um certo remorso. Em pouco tempo, já me senti intima ao ponto de não fazer rodeios e tocar logo no assunto que me levou até lá. Ele não quis que seu verdadeiro nome fosse revelado, mas demonstrou um certo encantamento por poder escolher um. Prontamente, pediu para ser chamado de “Rafael Freitas”. Aquela combinação de letras não saiu dos meus pensamentos. Mas ao mesmo tempo eu me questionava – ‘Como deve ser complicado não poder revelar a própria identidade?!’ Seguimos. Cachoeira do Sul, durante os anos 80, não era tão pacata como nos dias atuais. A cocaína dominava aquela cidade as margens do Rio Jacuí. Freitas como um bon vivant da época, era bem íntimo do narcótico. Ainda na infância lhe foi apresentado o álcool, logo uniu esses dois e já não conseguia passar um dia sem a dupla. “Todo dia eu tinha que dar um tequinho!” No decorrer de nossa conversa, Freitas foi ficando inquieto. Às vezes coçava a cabeça, mexia nos pulsos, piscava muito,
mas dificilmente me olhava nos olhos. Logo ficou nítido que a atitude era por constrangimento. Pois até ali todos seus relatos pareciam de um homem com uma vida tranquila, com o apoio dos pais, rodeado de amigos, sem muitas dificuldades. Durante muitas vezes me coloquei no lugar dele e questionei os seus princípios, suas decisões. Mas logo lembrava, que eu não estava ali para aquilo. Como na vida de Freitas as coisas aconteciam muito rápido e de forma muito intensa, não demorou muito até ele começar a traficar e sempre foi um homem conhecido na cidade ajudava nos negócios. Morador da rua principal, possuía uma empresa. Trabalhador da indústria da beleza, em sua casa, que também era comércio sempre foi motivo de entra e sai.
Por muitos anos, Freitas vendia cocaína. “A melhor da região, eu que tinha (risos)”, orgulha-se. Apesar de toda aquela estabilidade pessoal, financeira e profissional, diferente de todos os contos de fada, essa narrativa não vai ter um final feliz. E como já era de se esperar, em fevereiro do ano de 2016 aquele muro construído ao redor de Freitas, caiu. Tijolo, por tijolo. Mãe, esposa e filha viram nosso personagem principal sendo algemado. Que choque para a sossegada Cachoeira do Sul! Não pelo crime, mas sim por quem o cometeu. Com tantas provas, a prisão foi inevitável. A notícia prontamente foi parar nos jornais. Embora, o tamanho cochicho pela cidade já fosse necessário para espalhar aquilo com o vento. “Que vergonha eu senti. Não por mim. Vergonha mesmo, pelo o que minha filha iria escutar no colégio. Minha esposa, sempre foi muito preocupada com a postura de nossa família na frente dos vizinhos. E a minha mãe, essa pensei que teria um ataque! Tudo desabou pra mim.” Na prisão encontrou diversos conhecidos. Logo pensou que iria se enturmar e fazer dali um lar, mesmo que com as
piores condições. Mas não foi bem como Freitas esperava. O empresário foi parar em um cubículo de cela com mais 17 infratores. Ele precisou, durante os
"Uma temporada na prisão não faz bem a ninguém, eu nem tinha tanto cabelo branco."
meses que passou lá, pagar as despesas do “chefe”. Um homem que mandava e desmandava em todos lá. Durante os primeiros dois meses recebia a visita da esposa. Ela não suportava ser encarada com desprezo pelas madames da cidade. Sua mãe, envelheceu dez anos em poucos meses. A filha, com doze anos na época, não se importava com piadas na escola. Escrevia toda semana e só queria o pai de volta. Freitas viu toda sua vida escorrer entre os dedos. Longe da família, com uma privada ao lado da cama, sendo chantageado e com o nome arruinado, o desgosto tomou conta dele. “Uma
temporada na prisão não faz bem a ninguém, eu nem tinha tanto cabelo branco.” Hoje em dia, livre, ele responde processo em liberdade, mas aqueles onze meses talvez sejam os responsáveis pela forma como ele se comportará para o resto da vida. Apesar do riso frouxo e do importado estacionado na garagem, Freitas não parecia feliz. Seria pelo fato de sua companheira ter mudado de estado e levado sua filha? Com toda certeza. Durante anos sua vida foi de farra, drogas e toda estrutura imaginável, agora é de tribunais, vigilâncias e desconfiança. “Desde que eu saí da cadeia, meus amigos não me procuraram. Eu só era bom pra eles antes, pelo jeito. (...) Minha mulher não me quer mais. Mantenho contato com minha filha todos os dias, essa nunca teve vergonha de mim. (...) Ninguém se coloca no meu lugar, ninguém me dá uma segunda chance. Ser ex-detento, mesmo que numa situação privilegiada como a minha, te coloca à margem da sociedade. Eu destruí minha vida e só sinto uma coisa: vergonha.”
Foto: Monique Rodrigues
"Ninguém se coloca no meu lugar, ninguém me dá uma segunda chance."
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Foto: Fabrine Kesseler
Fabrine Kesseler
As pessoas que não vemos
Ao olhar apenas para nós mesmos, esquecemos que o outro existe
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ruzamos diariamente com tantas pessoas, mas nem sempre conseguimos parar para conversar, saber um pouco das suas histórias e ter contato com novas realidades. A cada dia que passa as coisas mudam, os valores são alterados e o cuidado com o próximo se torna mais escasso. Poderíamos conhecer tantas trajetórias de vida, mas nem sempre estamos dispostos a isso, a reconhecer o próximo como alguém importante. O outro que não vemos: você já parou para pensar na quantidade de pessoas legais que estão presentes em nosso cotidiano, mas que a gente finge não ver? Segundo a psicóloga Évellin Tatielle Fröhlich, “vivemos em uma sociedade bastante individualista, em que possuímos certa dificuldade em olhar para o outro como pertencente ao mesmo mundo que o meu. Nosso dia a dia é bastante corrido e cada vez mais novos desafios surgem”; Separei três histórias de pessoas
que estudam, trabalham, sustentam suas famílias. Elas representam outras inúmeras histórias, de indivíduos que estão presentes em nossas vidas, mas que não possuímos conhecimento sobre.
Uma Luana que trabalha e vive um sonho
Gente que limpa. Que sorri. Que perfuma os caminhos. Que sonha e vive da melhor forma possível. Estou falando de gente como a Luana. Casada, mãe de dois meninos, auxiliar de higienização e estudante de pedagogia. Sorriso largo. Olhar tímido. Jeito simples de encarar a vida. Tem vergonha de falar, mas quando começa a contar sua história, deixa qualquer um com um sorriso tão largo e belo quanto o dela. Natural de Santa Cruz do Sul, ela sempre quis cursar pedagogia, mas esse
sonho demorou mais de 15 anos para ser iniciado. Ela que já trabalhou em fumageira e como cobradora de ônibus por nove anos, viu na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), uma oportunidade para retornar à sala de aula. É com a limpeza que ela tira o sustento da família e consegue pagar os estudos. Ao ser questionada sobre alguma história que tenha marcado, Luana não deixa de destacar um episódio especial: chegou na sala de aula no dia do seu aniversário e uma professora havia feito uma bela surpresa, comprou cuca, refrigerante e fez questão de comemorar aquele dia tão importante com a aluna doce e prestativa. “Eu nunca imaginei que uma professora iria pensar assim no aluno, ainda mais eu sendo da limpeza”, diz Luana.
lagrimejaram ainda mais, a voz ficou tremida e pronunciou: “Podia até ser dos cachorros, mas era a única coisa que tinha para comer. Quando chegou em Venâncio Aires com a sua mãe, Débora conseguiu, através de um projeto social, um local para morar, mais precisamente, em uma área verde da prefeitura, onde tinha um
Foto: Fabrine Kesseler
Natural de Santana do Livramento, Débora Neira Dutra, 25 anos, trabalha como catadora desde a adolescência. Hoje, mora em Venâncio Aires. Casada e mãe de duas meninas, 4 e 7 anos, Débora sai diariamente à procura de material reciclável (papelão, latinhas), para manter o sustento da família. Seu marido, que tem problemas no coração, não consegue serviço em nenhuma empresa. Com lágrimas nos olhos, ela desabafa que as pessoas fingem que não enxergam a realidade dos outros. Um dia, quando foi catar material em um bairro nobre da cidade, chegou em frente a uma casa bonita, pegou algumas latinhas que estavam na sacola Após isso, viu que tinha pão e laranja. Com fome, ela resolveu comer os alimentos que encontrou, mas ao aproximar o pão da boca, ouviu um grito saindo da porta da casa: não coma isso moça, é dos cachorros, é nojento. Nesse momento, seus olhos
Foto: Fabrine Kesseler
A catadora que sustenta uma família
Apesar de gostar muito da sua profissão, ele quer voltar a estudar, quer ser enfermeiro. É nesse momento que ele diz que a função de porteiro vai muito além de abrir e fechar portas. “Um dia eu tive que socorrer uma menina que estava praticamente morta, deu algo no coração. Estava na portaria quando o telefone tocou, era um médico do prédio. Ele pediu que eu subisse as pressas para lhe ajudar. Quando cheguei no
cemitério. Ela ficou espantada, mas logo resolveu o problema de espaço, conseguiu uma marreta e tratou de quebrar os túmulos. Com as lápides fez o murro. Com os tijolos e lajes fez o alicerce da casa. Fez do espaço sombrio, a luz para trilhar um novo caminho.
Uma profissão que vai além de abrir portas Ele abre e fecha portas inúmeras vezes ao dia. Porteiro há mais de 12 anos, Anderson Diemis Ferreire de 29 anos, é um moço alegre, prestativo, tem uma energia que contagiou o bate papo que tive com ele em um dos seus ambientes de trabalho. Afinal, Anderson trabalha no prédio da Unimed, em uma escola particular e, também, em um prédio residencial. O tempo que passei observando sua rotina de trabalho foi suficiente para perceber o quanto ele é querido por todos. As pessoas que circularam cumprimentaram com a mesma empolgação e simpatia.
consultório, a menina estava muito mal. Não pensei duas vezes, peguei ela no colo e fui correndo ate o hospital que fica do outro lado da rua. Quando cheguei lá, já havia uma equipe pronta. Fiquei muito aflito, pois aquela menina tinha quase a idade da minha filha”, relatou emocionado. No fim da conversa, descobri que o moço que abre tantas portas e sorrisos por aí, é meu vizinho. Tem gente que não vemos e que pena, não é mesmo?
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Vitรณria C. Rocho
O outro como mestre
"O outro guarda um segredo: o segredo de quem eu sou."
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Foto: Vitรณria C. Rocho
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Foto: Vitória C. Rocho
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casal fundou a Ecovila Karaguatá em 2003, uma comunidade na qual o fluxo de moradores é muito dinâmico e são essas relações que definem o lugar e as pessoas que por ali passam. O espaço físico habitável é constituído por uma casa mãe onde é o espaço de convivência, cozinha e sala. Há dois alojamentos coletivos, cinco quartos e duas casas dormitório. Uma casa antiga a ser restaurada e três galpões. Os quartos não possuem donos, mas abrigam quem o ocupa no momento, suprindo a necessidade dos moradores transitórios. Não há nada para ser consumido, nem trocado dentro da comunidade, o que eles oferecem é a experiência de compartilhar, da permacultura e o viver em comunidade. Em clima de descontração e vivência, os moradores da Ecovila conversaram com o Unicom.
Aqui na comunidade, vocês prezam bastante o pensamento do ser como algo único e ao mesmo tempo esse ser fazendo parte de um todo. Como vocês como comunidade lidam com isso?
Aquiles: Eu penso que a forma como a gente lida com isso é cada um olhar para dentro e encontrar essa totalidade. O que a gente propõe é que a minha relação com o outro me mostra o lugar onde eu estou e também o que existem em mim. Geralmente a gente tem o outro como
o responsável pelo meu sofrimento e tenta intervir em uma realidade externa a mim para achar a solução. Para nós, o outro é o instrumento que mostra o meu sofrimento. Sendo o sofrimento uma condição interna, dentro do mim é o único lugar que eu posso encontrar a solução desse sofrimento e nos outros.
Glória: Nós somos um instrumento do todo e tudo é vibração. Quando você chega aqui, me afeta com a sua vibração e isso vai chegar a mim se eu também estiver nessa sintonia e eu posso achar que você é a culpada por isso ou te agradecer por me ajudar a ver como estou vibrando. Então nesse sentido o outro é o mestre. Em alguns lugares existem os mestres religiosos, mas para nós a pessoa que está na nossa frente é o nosso mestre. Não digo que estes homens santos não sejam o que dizem, mas na prática você está na minha frente e você é meu mestre. Aquiles: No nível físico nos afetamos com o contato físico e é essa lógica que sempre se usa na relação eu e o outro e se acha que tudo se resume nas relações da densidade da matéria. Em um nível sutil não é assim que funciona, somos afetados no nível energético quando a gente entra em ressonância.
E é isso que as pessoas buscam aqui?
Glória: Não (risos). As pessoas buscam um sonho.
Aquiles: As pessoas buscam aquilo que
elas querem. Elas têm ânsia de buscar algo. Cada um estabelece na sua vida um sentido para ela e aí a pessoa vem buscar aquilo que é o sentido da vida dela. O sentido que ela estabeleceu. Glória: Nós viemos por causa da permacultura¹, para estar perto da natureza, enfim. Depois nós fomos percebendo que todo o nosso sofrimento só tem solução quando a gente silencia e olha para dentro. Nos primeiros anos sentávamos em roda e mostrávamos o erro do outro, mas mesmo corrigindo sempre tinha mais. Então, não tem fim a parte de fora. Começamos a ver que não tinha muito sentido nessas conversas, pois a gente sabe que não é mudando ali que vai melhorar. E, também, não é como se a outra pessoa não tenha que ser quem ela é, assim como eu também posso ser quem eu sou. Além disso, não é o brigar com o outro que faz a diferença, é o olhar para dentro de mim. E nesse sentido a presença do outro é imprescindível, porque é na relação com o outro que eu vou ver o que realmente eu sou e onde eu estou.
Eu percebi que há bastante distinção entre a cidade e a comunidade. Como vocês percebem a parte externa dessa relação?
Aquiles: Viver aqui ou viver em qualquer lugar não é relevante, é só uma opção. Não é viver comunidade e se organizar da forma que a gente vive que determina sofrer ou não sofrer, assim como não é viver lá fora em sociedade com aquelas
¹: Sistema de planejamento para a criação de ambientes humanos sustentáveis e produtivos em equilíbrio e harmonia com a natureza.
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A minha relação com o outro me mostra o lugar onde eu estou e mostra também o que existe em mim.
relações. É uma questão interna. Optamos por viver assim porque nos coube isso e tentamos usufruir o máximo desse potencial.
Glória: Buda disse que o que nos faz sofrer é a nossa ignorância de acharmos que somos separados do todo. Há muitas perguntas sem resposta quando a gente vai até o fundo e nesse sentido também achamos que tudo é justo e perfeito. E nessa justiça e perfeição a gente está aqui fazendo o que estamos fazendo, mas nessa realidade também está shopping e as favelas. É complicado para mente compreender porque pensamos que o mundo é injusto.
Algumas pessoas possuem a noção da ecovila como um lugar para vir e descansar, como escapar para a mente. Como vocês lidam com essas pessoas que não compreendem a ideia da comunidade? Aquiles: Quem vem queria que fosse, mas nós não (risos).
Glória: Tem três categorias. A primeira são os parentes, que chegam e vão, são só visitas, assim como amigos que nós convidamos. Outra são pessoas como você, que vêm fazer um trabalho e passam algumas horas conosco. Por último, são aqueles quem vêm e não têm ideia do que é a comunidade, até porque é difícil mesmo, mas entram como uma luva. E nós estamos abertos a todos, mas a partir do momento em que a pessoa
Foto: Arquivo Ecovila
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põe os pés aqui depende muito de como ela consegue acolher a comunidade que existe, porque nós temos uma rotina e muitas pessoas querem impor a sua ecovila da mente aqui dentro, o que não é possível. Aquiles: Basicamente, as pessoas quando chegam não tem clareza, o que é compreensível. Todo mundo que chega está acostumado a se manifestar da forma como se vive na cidade, então ela tende a fazer isso aqui também.
É um processo de desconstrução muito grande.
Aquiles: Sim, mas também muito rápido. Nos primeiros dias, quando a pessoa tem a abertura dentro dela, ela já se acopla ao nosso movimento e então flui. Quando a pessoa não tem abertura, fica no lugar dela e não p articipa, ela tenciona e geralmente vai embora. E não é como se nós fossemos fechado, até porque já mandou tanta coisa aqui com as pessoas, é possível acomodar quando o fluxo se dá.
E as pessoas que não conseguem se encaixar, eles aceitam essa fluidez da comunidade?
Aquiles: Essas pessoas tinham razão naquilo que elas propunham, mas tinha razão no ponto de vista delas. Elas não conseguiam perceber que o nosso ponto de vista era muito diferente dos delas e elas nem consideraram que existiam outro ponto de vista. A pessoa não se dá conta que existe algo que está funciona-
ndo e é muito sério. Ela veio para cá já com o trem andando e que está funcionando muito bem. Se o nosso objetivo é construir dentro da gente um estado de menor sofrimento, nós estamos sendo muito bem-sucedidos, mas como lugar de produção e comercialização nós estamos quebrados (risos). Ninguém aqui é vendedor, nisso somos uma tragédia, mas não é o que queremos.
Buda disse que o que nos faz sofrer é a nossa ignorância de acharmos que somos separados do todo.
Na ideia de sucesso de vocês, vocês são bem sucedidos. Aquiles: Muito bem sucedidos. Eu jamais pensei que poderia ser bem-sucedido nisso, jamais imaginei que nessa vida chegaria aonde eu estou e em tão pouco tempo, eu estou anos luz na frente do que eu imaginava viver na minha vida.
E vocês sempre imaginaram a ecovila como ela é hoje? Aquiles: E é interessante isso, porque a Glória tinha uma visão fantasiosa até ver a realidade, mesmo com as dificuldades e obstáculos ela só lembrava a fantasia, o bom da vida e eu não. Eu olhava para as coisas e pensava que tudo era uma
pedreira, então ela foi quem sustentou da nossa parte esse percurso da comunidade. Faz pouco tempo que eu perdi o medo e agora é vez da Glória enfrentar o medo dela e eu sustentar as coisas. Eu acho que a vida funciona assim, nos complementamos. A relação eu e o outro tem muitos caráteres e nós nos encontramos para viver o que nos cabe viver.
A convivência com o outro traz autoconhecimento, ver o outro como mestre, perceber o que o outro proporciona para cada um de nós é como se fosse uma jornada de autoafirmação. Vocês percebem isso com os membros da comunidade? Ou percebem isso com pessoas de fora?
Aquiles: Eu penso que é de todas as vias, o tempo inteiro, o tempo todo há contribuição independente ser dentro ou fora daqui.
Há o contato com outras comunidades?
Aquiles: Cada comunidade tem sua estrutura e às vezes não tem tantos elementos em comum uma com as outras. O que aqui nós temos em comum com muitas outras são as bioconstruções, a relação com a terra e permacultura. Partimos do princípio que as relações podem ser formadas de outra forma que não como elas se dão dentro do sistema de modo geral, que são relações de troca e geralmente essas trocas são medi-
Foto: Vitória C. Rocho
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adas pelo dinheiro. Então aqui nós não vendemos nada, nós compartilhamos. Quando a pessoa vem, ela traz toda sua bagagem, seu conhecimento, toda sua carga energética e a gente compartilha.
Há uma observação não apenas da própria busca interna, mas também se
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Aquiles: A condição de olhar para dentro é uma construção de todos os dias. O que nós procuramos aqui é observar para saber o que está acontecendo. A diferença é que na sociedade não se propõe tanto isso, há muita distração. E é legítima a forma como as pessoas buscam a saída delas. Cada busca de cada é legítima. É a forma que a pessoa tem condição de buscar, então não está errado em viver lá ou viver aqui. E a busca com o outro se dá olhando para o desejo. Não é anular o meu desejo em prol do outro, nem anular o desejo do outro e impor o meu. É conseguir equacionar. O que eu faço com o meu desejo e com o desejo do outro no momento em que se contradizem é muito difícil, porque se eu negar o meu desejo alguém está sendo negado e seu negar os desejos do outro é a mesma coisa e a saída não é negação, é conseguir a inclusão. O caminho que nós propomos é olhar para o meu desejo e ver até que ponto ele é necessidade, porque desejo nunca é necessidade, então eu posso abrir mão dele. Assim, eu levo em conta o outro.
Vocês acham que todos têm a capacidade de se desprender da realidade existente na sociedade e ter uma vida como a da comunidade?
Aquiles: Eu diria que a necessidade de cada um é o que cada um vive. Não é viver assim como nós que se chega ao estado de cessar o sofrimento, tanto que vivendo aqui e sofremos. O estado em que cessa o sofrimento é uma condição interna e pessoal. Isso é no meu ponto de vista. Mas o ponto de vista hegemônico é o contrário, há quem diga que é preciso arrumar lá fora para arrumar aqui dentro.
Foto: Vitória C. Rocho
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Foto: Francelli Castro
Natália Lau Coimbra
Os olhos de quem não enxerga
A audiodescrição representa uma importante técnica de acesso à informação
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capacidade do ser humano de se colocar no lugar do outro tem sido pauta constante nos dias atuais. A isso denominamos alteridade. Saber compreender, ser gentil e prestativo àqueles que precisam de ajuda é muito mais do que fazer uma boa ação. Trata-se de viver o mundo do outro da maneira que lhe seria justo e cômodo. Dentro da comunicação, sabemos, há limites de alcance dos produtos para pessoas que possuem deficiência visual e auditiva com maior recorrência. Um desses limites é o acesso restrito de quem não enxergam ou enxerga pouco, aos materiais impressos e em vídeo. Diante disso, a jornalista Daiana Stockey Carpes, hoje mestre em Letras pela Unisc, quando ainda graduanda no curso de Comunicação Social, tomou a iniciativa de estudar e tornar real a audiodescrição, que, como o próprio nome sugere, é a descrição em áudio de produtos jornalísticos. Segundo ela, o interesse pelo assunto surgiu em 2011, quando desenvolvia a primeira edição do jornal do curso de Ciências Contábeis da Unisc.
"Naquele semestre havia ingressado um acadêmico cego no curso, e não teria acesso ao conteúdo daquele impresso; para não excluí-lo, pensei, primeiramente, em fazer um jornal em braile”, lembra. Como o aluno estava em fase de adaptação à cegueira, e ainda não sabia usar este sistema de escrita e leitura tátil, surgiu a ideia do jornal em áudio. Atualmente, Daia, como é mais conhecida; leciona a disciplina de inglês para os anos finais do ensino fundamental. Entre os alunos, há uma menina cega. A jornalista, e agora professora, proporciona o recurso da audiodescrição para que ela possa compreender o conteúdo da aula. "Em um evento da escola”, lembra, “havia um palestrante que passaria vídeo aos alunos, esta aluna cega não teria conhecimento do conteúdo imagédico, então, sentei ao lado dela e fui audiodescrevendo todas as cenas do vídeo." Tendo em vista a realidade que as pessoas cegas enfrentam no dia a dia, e, partindo do pressuposto da importância da audiodescrição para que elas tenham o mesmo acesso à informação
que o resto da sociedade, Carpes afirma que a técnica “se insere como um meio de promover e assegurar a inclusão dos cegos na sociedade, ela é primordial para ampliar o entendimento deles”. Pensar em audiodescrição é, além de tratar de técnica, tratar de uma necessidade, que, infelizmente, vai demorar muito tempo se tornar realidade em todos os veículos de comunicação. "Entender que o outro precisa deste recurso para compreender inúmeras situações do seu dia a dia e proporcionar este recurso é sim um sinônimo de alteridade," conclui a entrevistada.
Conforto para quem já viu
Atualmente eles vivem a mesma realidade. Adriano Freitas e Olício Domingues são cegos. Embora com este problema, os dois são pessoas positivas e com uma percepção de mundo admirável. Adriano tem 58 anos. Nasceu cego. Para ele a vida sempre foi assim.
Na visão uma limitação, mas na alma, uma carga energética infinita. Mora sozinho e, sem muitos recursos para conviver com a cegueira, considera levar uma vida normal. Nascido de uma família de classe média, foi criado com muito amor, embora com poucos artifícios para enfrentar sua deficiência. Ouvinte assíduo das rádios locais, se considera um grande consumidor de notícias. Gosta de se manter informado e garante que o costume é seu aliado para sempre ter assunto com os amigos. Ao falarmos da comunicação impressa, ele revela que para si, o fato de nunca ter podido ler um jornal ou uma revista é algo muito mais triste do que não poder ver televisão Olício, com seus 87 anos, nem sempre levou a vida assim. Vítima de um erro médico, foi perdendo a visão gradativamente e há cerca de duas décadas se confrontou com uma realidade desesperadora quando desenvolveu catarata,
que atingiu os dois olhos. Como solução para o problema, surgiu a oportunidade de operar. Lembra, com tristeza, de como a esperança de melhora virou o seu calvário. Durante a vida toda trabalhou no campo, de onde tirou o sustento para os 7 filhos. Sempre foi muito ativo e achava na “lida campeira” o sentido para seguir em frente. Não teve acesso à educação da maneira que deveria, mas compreendia bem a leitura e a escrita básica. Segundo ele, durante longos anos conviveu com a depressão desencadeada pela deficiência. Hoje, convive melhor com o fato de estar cego. A esposa e a sobrinha - que criou como filha; são seus olhos, e é por meio de suas falas descritivas que ele vê o mundo que a irresponsabilidade lhe tirou. Aos dois, apresentei o trabalho da audiodescrição. Adriano ficou encantado e disse conseguir imaginar as cenas exatamente como o áudio está contando.
“É fascinante. Consegui imaginar a cenas se formando na minha cabeça. Consegui absorver as informações e ainda perceber a maneira como elas foram escritas e colocadas nas páginas.” Olício disse sentir muita gratidão por quem procura adaptar o mundo para aqueles que não conseguem enxergar. “Sempre gostei de ler jornal, mesmo não tendo muito estudo. Isso também me faz falta. Tendo uma forma dele chegar até nós que somos cegos, já consegue tapar o vazio que sentimos.” Para ele, é um conforto para quem um dia já viu. Para Adriano, uma inovação para quem nunca pôde ver.
Foto: Arquivo Pessoal
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Foto: Mônica Cugnier
Francelli Castro
Homeless, desgarrados e sem teto
Também há moradores de rua em países de primeiro mundo, como os EUA.
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les se encontram no cais do porto pelas calçadas”. O verso, da música Desgarrados, de Mário Barbará, faz com que muitas coisas passem por nossas mentes. Conta a vida de pessoas que vivem nas ruas, com mínimas condições alimentícias, de higiene e, muitas vezes, entregue às drogas. O motivo delas estarem assim são os mais variados, mas eles não são exclusividade de países como o Brasil. Os chamados homeless – ou, simplesmente, moradores de rua, estão presente em elevado número também em países ricos como os Estados Unidos. E a quantidade de gente que vive assim assusta. Sim, em um país de 1º mundo, cenário de filmes, em que a “vida é perfeita”, ao se andar pelas ruas de Washington DC, Fayetteville - Arkansas, Virginia, São Francisco, a cada esquina, um bater de moedas num copo usado de café, revela que, mesmo em uma potência econômica, alguém está passando frio, fome, com a saúde debilitada. Na cidade de Fayetteville, no estado do Arkansas, Estados Unidos, a professora de letra Flávia Zayas conta que, mesmo
antes de ir morar fora do Brasil, sempre tentou entender quais os motivos que levam as pessoas a irem morar nas ruas. O que ficava muito aparente sempre foi a drogadição dessas pessoas, o que as levava a perder tudo o que tinham na vida, até mesmo vender seus pertences pessoais. Hoje, já nos Estados Unidos, a percepção continua o mesmo. “Muitas vezes, me coloco no lugar da pessoa, tento imaginar como alguém chegou ao ponto de morar na rua”, reflete Flávia. Quando pensamos em segurança, e na onda de violência que tem atingido todo o mundo, não há quem não tenha uma vez ou outra, atravessado a rua ao perceber grupos de moradores de rua. Não pelo fato de estarem vivendo nessa situação, mas por vezes serem pessoas que usam drogas, estão bêbados, principalmente por não saber se aquela pessoa tem ou não más intenções. Flávia, disse que por muitas vezes já teve medo de passar na mesma calçada que elas, por não saber ao certo que pode ou não acontecer, “Os moradores de ruas, ao meu ver, devem ser respeitados, tem muitas histórias, vitórias e fracassos tal como
as pessoas que moram em casas. Não sinto mais medo por serem moradores de rua não.”
"Muitas vezes, me coloco no lugar da pessoa, tento imaginar como alguém chegou ao ponto de morar na rua."
Em visita a cidade de São Francisco, Monica Cugnier, fotógrafa que também vive nos Estados Unidos, no Estado de Virginia, conta que, quando está na rua, nunca teve medo de se aproximar dos moradores de rua dessa cidade. “Sempre fui cuidadosa, mas costumo até conversar; em São Francisco eu sentei com um grupo e bati um papo de mais de uma hora tomando refrigerante, eu queria
entendê-los.” Ela ainda conta que, por se importar com o próximo, sempre buscou compreender o sofrimento dessas pessoas, assim como, ao sair de sua cidade natal, Santa Cecilia em, Santa Catarina, ficou perplexa com o número elevado de moradores de rua nos Estados Unidos. “Quando viajei a São Francisco vi milhares, em cada canto da cidade, e isso me deixou bem mal, muito mais que já em toda minha vida no Brasil”. E se parássemos para pensar se existe alguma coisa a fazer para que mude essa realidade, tanto no Brasil e nos Estados Unidos, se podemos ou não os ajudar? Certamente a resposta é positiva, pois existem em diversas cidades ONGs, e ação das próprias prefeituras, para ajudar esses seres humanos que estão ali “jogados”, levando-os para abrigos e
ações para que pelo menos esses tenham ao menos uma boa refeição diária. Mônica conta que, em Santa Catarina, ela e a mãe participavam de uma ONG, que disponibilizava alimentação e banho para os moradores de rua da cidade. Um caso que a chamou atenção foi do jovem João, que vivia no mesmo bairro que ela. Anos mais tarde o reconheceu nas ruas; a mãe do menino havia falecido, e, a partir desse momento, começou a viver nas ruas. Foi então que ela e a mãe decidiram cuidar ele de alguma forma. “Até hoje ele sempre almoça em nossa casa, comida é o que não falta, mas infelizmente ele ainda é usuário de drogas, precisa de outro tipo de ajuda, a gente faz o pode, dentro dos nossos limites”, emociona-se. Olhando um pouco mais em volta, percebemos que não é só nas
pequenas cidades, nas grandes capitais, os moradores de rua, estão presentes, e como, em cada esquina. Mônica que vive ao lado da capital dos Estados Unidos, Washington DC, conta que é visivelmente espantoso, o quanto existe pedintes, e pessoas que vivem nas ruas, e que fazem de tudo por uns trocados. “A gente vê em frente aos Museus da capital, muitas pessoas com isopores vendendo água por apenas U$1,00 dólar”, conta. E certamente, esses, vivem nas ruas, e ainda sustentam suas famílias vendendo garrafinhas a turistas. Infelizmente João e esses trabalhadores são apenas mais um, dos milhares de que vivem nas ruas, abandonados, sem oportunidades. E aqui encontramos histórias de dois países diferentes, com economia e estilos de vida distintos, mas onde a desigualdade social é muito parecida.
Foto: Mônica Cugnier
O NÚMERO DE MORADORES DE RUA CRESCE CADA VEZ MAIS EM PAÍSES COMO BRASIL E ESTADOS UNIDOS:
ESTADOS UNIDOS (2015) São mais de 321,4 milhões de habitantes nos 50 estados do país, sendo 500 mil pessoas vivendo nas ruas, e um quarto delas, crianças.
BRASIL (2015) Aqui, os números, por menor que sejam, 207,8 milhões de habitantes, 100 mil vivem em situação de vulnerabilidade.
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CRÔNICA
MARCAS QUE RESPONDEM Mariana Amorim
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la não lembra direito qual era a sua idade, mas sabe que era pequena o bastante para não compreender o que estava acontecendo. Lembra tão bem de dois momentos marcantes de sua infância que revive sempre que pensa sobre o assunto. Ela evita essa lembrança, mas de vez em quando procura alguma resposta para seus traumas de agora. Reflete sobre os impactos que aqueles momentos tiveram em sua vida adulta. Em um dia normal de sol, mas não aquele sol quente, aquele sol com vento, que bate no rosto e te deixa leve e preguiçoso. Ela se sentou na janela da casa do seu tio que morava na frente da sua e ficou lá, balançando as perninhas, cantarolando. Esticada naquela janela de madeira, que com certeza precisava de uma pintura nova. O amigo da família, do seu pai, seu tio, sua mãe e de todas as pessoas ao seu redor estava lá naquela tarde. Ele parecia ser alto, mas hoje refletindo, acha que deveria medir 1m e 70cm, gordinho, tinha pele branca, cabelo liso e castanho, um rosto redondo simpático.
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O “amigo” da família viu a menina, sentada na janela. Tinha a pele branca como um algodão, chegava a refletir na luz. Ela vestia uma saia de altura média, blusa branca com os pés descalços. Ele se aproximou pelas costas dela e a envolveu em seus braços segurando-a, colocou as mãos por baixo de sua saia e acariciou sua “intimidade”. Foi rápido, mas foi significativo. O olhar daquela menina para aquele moço já não era mais o mesmo, ela se sentiu estranha, com medo, impotente. Aquele momento foi tão rápido, segundos, mas marcou tanto, que mesmo que tenha se passado tantos anos, os detalhes estão frescos na sua memória. Afinal de contas o que ela fez pra ele? Porque ele fez aquilo? Ele era uma pessoa mal? Ele queria machucar ela? Mesmo criança, ela sabia que era errado. Sabia por que sua mãe sempre falou que ela não devia ficar sem roupa na frente de ninguém que não fosse ela e sempre disse que ninguém podia toca-la. Afinal de contas, sua mãe entendia das coisas, mas ela não. E o pior de tudo é que não foi o único episódio.
Na outra vez a menina tinha seis anos. O primo do seu pai havia vindo morar na cidade, deveria ter uns vinte e poucos anos. Ele era carinhoso com as crianças. Ela lembra que suas primas que moravam perto sempre ganhavam moedas dele para comprarem balas na venda próxima de casa. Ele brincava com as crianças, era alegre e extrovertido. Tinha um olho azul piscina que pareciam bolinhas de jogar clica. Hoje ela acredita que ele só fazia aquilo para ganhar a confiança das crianças, para se aproximar. Com ela não foi diferente. Naquele tempo as crianças brincavam na rua de esconder e de pegar. Se vestiam de pirata e saiam desvendando mistérios pelos terrenos baldios, o que era bem comum naquela época dos anos 90. Não tinha tantos prédios como agora e muito menos muita rigidez na criação das crianças. Elas eram mais livres. Corriam pelas ruas brincando de “arminha de pressão”. No lugar em que morava existiam muitas crianças da mesma faixa etária e os pais se conheciam, não existia muita vigilância, a criançada passava o dia andando de
Foto: Freepik
bicicleta, brincando no barro mesmo. Numa dessas tardes de brincadeira o primo do seu pai convidou a menina para ir até a sua casa pegar balas. A casa dele ficava na mesma quadra da sua com poucos metros de distância. Ela foi sem medo algum, alegre, saltitante até. Não imaginava que ele poderia fazer qualquer maldade com ela, afinal de contas ele era da família e sempre era querido com as crianças. Naquela tarde, ela entrou na casa de dois cômodos. Havia somente um quarto e uma cozinha com sala conjugada. Os móveis eram velhos, a cara era limpa e organizada. O rapaz deitou-se na cama baixando sua bermuda e colocou as balas em cima do seu pênis. Ele pediu que a menina pegasse, mas ela ficou paralisada, como se um sinal de alerta a dissesse que ela precisava sair dali. Mal sabia ela que aquela busca por balas mudaria a sua vida de forma tão profunda. Foi um turbilhão de sentimentos, pânico, envolvido com medo de que algo pior acontecesse. Hoje, ela reflete sobre a tranquilidade no semblante daquele rapaz, como se
fosse algo do seu dia-a-dia. A menina disse que não queria mais balas, o rapaz colocou a mão por cima de sua calcinha e disse que se ela pegasse as balas ela poderia ir embora. Ela pegou. Mesmo com todo medo e pavor, ela pegou, pegou e rezou para que ele realmente abrisse a porta. Ele abriu. Ela saiu correndo, como quem quisesse gritar para todo o mundo o que ele tinha feito. Ela ficou com medo. Medo que seu pai à batesse por ter ido lá, medo que as pessoas olhassem como se ela fosse um ser de outro mundo. E por um bom tempo os dias seguiram com medo. É difícil pensar sobre o que uma criança entende ou sabe sobre abuso sexual, é difícil pensar no que isso pode atingir na sua vida. Depois desse segundo episódio nunca mais aconteceu nada e ela tinha decidido esquecer, porém hoje, ela luta para que o mesmo não aconteça. Ela entende o quanto esses detalhes marcaram ela para sempre, como uma cicatriz em seu corpo. Sua visão sobre o sexo masculino e sobre relacionamentos é de certa forma deturpada e ela não consegue se sentir feliz.
Ela prefere ficar anônima como tantas outras e outros que já tiveram sua vida impactada pelos mais diversos tipos de abuso.
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RESENHA
Foto: Divulgação
Mariana Amorim
H
er ("Ela" no Brasil) foi produzido no ano de 2013, escrito e dirigido por Spike Jonze. Estrelado pelo ator Joaquin Phoenix. Ele conta a história de um escritor solitário, com o coração partido que encontra consolo em um sistema operacional inteligente de computador (OS). Com uma voz feminina e com uma personalidade que se desenvolve conforme suas experiências o OS é capaz de compreender todas as situações de um relacionamento. Uma ficção romântica e dramática, convence por todos os seus elementos. Her consegue ser sutil em alguns aspectos e denso em outros. Texto inteligente, com diálogos simples, porém profundos, com muitos não dizeres, cheios de palavras, que nos enche de questionamentos. Afinal de contas, estamos vivendo algo parecido atualmente? Somos viciados em novas tecnologias, em redes sociais, em conversas realizadas de
HER Poderia apenas ser mais um filme modo virtual? É uma maneira para nos sentirmos menos sozinhos? O rosto sem expressão de Joaquin Phoenix consegue transmitir todos esses sentidos para o público. Os tons em pastel ajudam para navegarmos na depressão do personagem, somos capazes de entender suas frustrações em seu relacionamento com o OS. Estamos vivendo na era das redes interativas, capazes de mudar toda uma cultura e principalmente o caráter da comunicação. Podemos chamar de evolução, aceitar e compreender o relacionamento de um homem com uma voz sensual? Existe uma paixão demonstrada pela máquina, será que é real ou não passa de uma programação avançada? A verdade é que Her vai nos enchendo com questionamentos contemporâneos por que essa pode ser uma realidade a qual talvez vivamos daqui um tempo ou já estejamos vivendo, cada um à sua ma-
neira. Quem sabe, logo atualizaremos o relacionamento com um aplicativo que te compreenda em tudo, o par ideal! Todas essas discussões que o filme causa, sobre o que é real e o que é virtual nesta era digital , são reais e estamos vivendo agora. Afinal de contas estamos nos aproximando das pessoas ou afastando? Sabemos lidar com as novas tecnologias? Sabemos nos comportar na rede virtual? Estamos nos expondo demais? Abra as suas redes sociais, olhe suas publicações, pense nas pessoas que você só conhece através das redes. Encontrou alguma resposta? Certamente não temos todas elas, mas vale a pena fazermos essas perguntas para buscar certa compreensão. O mundo está mudando ou nós estamos mudando o mundo? O modo como nos comunicamos está evoluindo ou decaindo? Assistam Her e questionem-se!
Em 4 de dezembro de 2013, Her foi o melhor filme de 2013, pelo National Board of Review. Em 12 de dezembro de 2013, o filme recebeu três indicações ao Globo de Ouro: Melhor Filme - Musical ou Comédia, Melhor Roteiro e Melhor Ator - Filme Musical ou Comédia, vencendo o de Melhor Roteiro. Também foi nomeado para cinco Oscares, incluindo Melhor Filme e vencendo o de Melhor Roteiro.
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OPINIÃO
Foto: Visualhunt
Ser o outro por um momento E
m tempos de “bandido bom é bandido morto”, será que ainda sabemos o que é alteridade? Ser o outro, se pôr no lugar do próximo. Isso não é uma tarefa fácil, ainda mais quando outrem é escorraçado pela sociedade sem oportunidade de ter uma nova chance. A alteridade significa ouvir, e tentar compreender. Então, antes de parar de ler e me chamar de defensora de bandido, dê uma chance para você mesmo, e entenda esse conceito, que tanto importa na nossa vida. Eu sei, todos nós ficamos indignados e com raiva daqueles que cometem algum crime. Porém, será que condenálos, matá-los, enjaulá-los é a solução? “Bandido bom é bandido morto” é como secar gelo, como diz o ditado. Você pode secar para sempre, mas ele nunca ficará enxuto. Com os infratores é a mesma situação. Mate todos, mas eles não acabarão! A cada grupo marginalizado,
sem escola, sem saúde, sem lazer, sem estrutura, sem autoestima, a cada vez que olharmos tortos para alguém em situação de rua, a cada vez que desviarmos daquele que julgamos suspeito, a cada vez que fecharmos os olhos para as barbáries que ocorrem fora da nossa sala de estar, estaremos contribuindo para o sistema reproduzir mais apenados. Portanto, a culpa é nossa? Sim. A culpa é do sistema, a culpa é de todos. O que custa para nós pensarmos e refletirmos sobre o porquê que essas pessoas que tanto odiamos chegaram naquele ponto? Não fazemos isso, porque fomos ensinados a odiar o que é diferente. A alteridade propõe que sejamos o outro por pelo menos um instante. “Bandido bom é bandido morto” é só um exemplo para explicar esse conceito que está tão distante de nós. Mas se pôr no lugar do próximo é tarefa que deveríamos fazer
Karolaine Pereira
em todos os aspectos da vida. Quando alguém nos pede comida, quando alguém está doente, quando alguém está em depressão, quando alguém simplesmente quer que não sejamos egoístas. Hoje é o dia de você pensar um pouco, e ver que a solução é ser empático, é abrir os olhos fora da sala de estar.
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