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JORNAL EXPERIMENTAL DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UNISC - SANTA CRUZ DO SUL VOLUME 31 Nº 1 MAIO/2016

CONFIRA NESTA EDIÇÃO: “AS MARGENS DA DIFERENÇA”

YASMIN D’AVILA

“É revolucionário amar teu corpo num sistema que, o tempo todo, diz que ele é nojento.” Pág. 22


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qual seu lugar na sociedade?

N

ão vamos falar do processo de produção ou da escolha das fontes. Vamos, sim, falar do tema. Esse que gerou confusão – mas de uma maneira construtiva -, questionamentos e, por fim, reflexões. A escolha por ‘marginais’, não esse que você está pensando ou acostumado a ver na televisão e nas páginas de jornais, foi surgindo aos poucos, mas se fixou de forma rápida e certeira. Era esse o tema, aliás, precisava ser ele. Precisávamos discutir, falar, mostrar e, também, dar voz para todos os marginais que vivem a nossa volta. Mas que marginais são esses? Nós também nos questionamos e a resposta, infelizmente, não veio de forma ágil e concreta. Foi preciso ir fundo, entender todos os significados e, então, tentar compreender o que, de fato, caracteriza um ‘marginal’. Conseguimos. Dessa forma, resolvemos trabalhar com duas definições, essas encontradas no dicionário, e que traduzem

muito bem nossas futuras histórias: 1) à margem da sociedade; 2) que não aceita os valores predominantes de um dado sistema. Sendo assim, o Unicom Marginais vai apresentar diferentes personagens, cada um vivendo a sua margem, com suas características e histórias para contar. Nessas páginas você perceberá que somos todos marginais. Criamos, nascemos ou somos colocados à margem, por diferentes pessoas ou acontecimentos. Assim, quase sempre sem escolha. Te convidamos a analisar sua própria vida e a conhecer a de outras pessoas, mas sem julgamentos, préconceitos ou olhares que acusam e, por fim, se questionar: qual o seu lugar na sociedade?

Sou uma mancha pensante

B

em, por ventura ando meio absorto à rotina. Há de pensar que tal fato seja recorrente, e pensas certo. Sabes quando olhamos ao redor e tudo que vemos é microscópico? Permissão, pretendo demorar-me um pouco: Se bem quiser, pule os três seguintes parágrafos. Mas como a vida que escorre a cada passo que damos. Passos soltos, que não levam a lugar algum, mas juntos fazem certo sentido, nos levam algum destino qualquer… Sendo assim, recomendo que não pule os parágrafos e passeie comigo, um pouco. O tempo me rói a alma e ponho-me a cogitar um mundo de possibilidades, reviravoltas e histórias, tão verdadeiras quanto as brincadeiras de faz de conta. Persegue-me a tal sina dos que pensam demasiadamente. O mundo

abre-se em puro caos e deterioração do momento presente. Construindo narrativas catárticas pesadas e polidas feito aço. Um espelho desconexo, variante entre o que sou e o que pretendia ser. Sou uma mancha abstrata e pensante. Ah, voltemos ao que me incomoda. Onde estava, o que incomoda é a visão que tudo enxerga a miúdo. Que todo som transforma-se em ruído. O bater do coração transforma-se em sentença de amor, se rápido e se devagar, em sentença de despedida. Desprendo-me de mim, sobrevoo o universo inteiro, sem encontrar um espaço que me caiba encaixar-me. Fico eu, refletido na narrativa, ansiosamente pensando nos outros e seus lugares na maestra história que a mim permite-me ser autor desconfiado e louco. Como um estranho que se

olha ao espelho e busca conhecer-se pelo que é por fora, sem saber que por dentro nada é, até que se veja sem ser o que nunca foi. Refletindo-me na narrativa polida, encontro-me como mancha que se desmancha. Aqui, achamo-nos ao que pulou. Então, eu penso tanto. As marteladas do tempo, os tímpanos a estourar. Enfim, deixo-me inquieto, pensando em tudo que não fomos por sermos demais, sou arquiteto de uma história em ruínas, sento-me nos escombros e dou de ombros. Mais uma história que comecei a contar, antes de acontecer.

Frantiesco Bolson frantiesco.bolson@yahoo.com.br


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expediente

Mônica da Cruz

Fernando Uhlmann

Editora e repórter

Sub-editor e repórter

Dóris Konrad

Daniel Heck

Marcel Lovato

Júlia C. Beling

Yuri Vassallo

Thiene Hermes

Chefe de reportagem e repórter

Repórter

Repórter

Repórter

Repórter

Repórter

Stephanie Freitas

Fernanda Junkherr

Editora online e repórter

Repórter

Karine Naue Diagramadora e repórter

Iuri Fardin

Stephanie Severo

Ingrid Jank

Repórter

João Pedro Kist

Repórter

Editora de fotografia e repórter

Diagramador

Paulo Fernando Franco

Nicole Rieger

Paula Cristina Turcatto

Diagramador

Revisora e repórter

Revisora e repórter

UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 - Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - CEP 96815-900

Impressão Grafocem Tiragem 500 exemplares

Curso de Comunicação Social - Jornalismo Bloco 16 Sala 1612 Telefone: 3717-7383 Coordenador do Curso: Hélio Etges

Ilustrações e capa Paulo Fernando Franco / Karine Naue Fábio Goulart / Ingrid Jank

Este jornal foi produzido na disciplina de Produção em Mídia Impressa, ministrada pelo professor Demétrio de Azeredo Soster.

Volume 31 - nº 1 - Maio/2016

Diagramação Karine Naue / Paulo Fernando Franco

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Kethlin Meurer Revisora e repórter

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4 Mulheres enjauladas por tráfico e vidas que se cruzam: a história de mães que vivem à margem em um presídio masculino

MULHERES ENCARCERADAS

O

portão se abriu e eu desci. No caminho, uma chuva de olhos sem vida me acompanhou até as grades da grande gaiola para que eu pudesse contar a história de quatro mulheres presas. Separadas dos 368 detentos, há dois ninhos cedidos para 26 mulheres que vivem marginalizadas. Num ambiente que o cheiro de testosterona predomina senti a fragrância de creme delas penetrar. Pelo corredor desbotado, com aroma de mel, caminhei com passos de gata mansa e entrei no submundo, o mundo das mulheres que estão na beira da caverna de lugar nenhum: a cadeia. Cercadas na mesma amarra: a solidão dos filhos, da família, de ser mulher liberta.

De olhos quase sem brilho e sobrancelhas negras bem definidas, conheci uma Filha do Céu*. Seu nome tem esse significado, não sei se ela sabe disso, mas espero que, se um dia ela ler essa reportagem, ela descubra. Encontrei essa mulher pela portinhola da cela A, enquanto meia dúzia de olhos mortos vivos me espreitavam de dentro daquela porta; E o cadeado foi aberto, Céu e mais três mulheres se abriram para mim, para escrita, para a sociedade. A voz rouca começou a se soltar aos poucos, a Filha do Céu também é mãe de duas estrelas, uma menina de 16 anos e um menino de nove anos. Ela logo revela que,dentro de grades, também se sonha, se ama e se

é amado. A mulher de olhar amarelado já ‘puxou’ quatro anos e quatros meses de cadeia e confessa: “Eu aprendi que o meu mundo tem que ser aqui, enquanto eu tô aqui”, mas sabe que na rua o preconceito é latente, “uma amiga de cadeia passou três meses dentro do presídio e os vizinhos fizeram um abaixo­ assinado para expulsá­ la do prédio”, relembra. Mesmo assim, parece não ter medo, somente a coragem de uma loba para esperar o novembro primaveril chegar e ela voar solta na rua, como um passarinho. Bela* tem 32 anos e olhos mortos. Foi mãe aos 14, idade essa em que trabalhava como doméstica e ganhava sete reais por faxina para ajudar a criar a criança. EstuJúlia Vargas

dou até a 5a série, e hoje ainda tem vontade de estudar, só não sabe o quê: “eu sou burra pra essas coisas”, diz convicta. É a segunda vez que ela retorna ao presídio, pelo mesmo motivo: o tráfico. “Tem muitas coisas que a gente acaba fazendo por não ter serviço”, Bella não podia deixar de dar comida para seus filhos. É mãe de cinco meninos e confessa que, se for preciso se prostituir por suas crianças, ela o fará por eles, não por si própria.

Eu aprendi que o meu mundo tem que ser aqui, enquanto eu tô aqui.

“Na rua eu sou vista com outros olhos”, conta em uma infeliz expressão de amargura. Apesar de estar atrás das grades, os problemas não ficam aqui fora. Como mãe, como mulher, Bela se desespera com a sua atual situação financeira: “Ou tu morre de fome ou tu veste as crianças”, preocupa­se e me questiona repetidas vezes: “Eu vou viver do quê?”. Eu não sei qual resposta lhe dar. Para viver com condições antes de entrar na prisão, já trabalhou de carteira assinada em uma firma. Não tinha vergonha de dizer que ia para o cabaré, quando o dinheiro não chegava. Po-


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rém, foi quando seu tio, usuário de drogas, colocou fogo em sua casa que ela entrou no mundo do tráfico: “Daí nós perdemos tudo”, lembra. Cinco filhos para criar, nenhum dos pais pagando pensão, trabalhando com prostituta e ganhando um salário mínimo na firma, sem dinheiro suficiente para sustentar sua família, até que uma prima lhe ofereceu drogas para vender: “Quando começou a entrar dinheiro, eu vestia e dava de comer pros meus filhos, do bom e do melhor”. O bom e do melhor para ela era um pote de iogurte e um tênis de luzinha. Para suportar os dias ali, me diz com os olhos saltados que “vive dopada de remédio”. Ainda não caiu a ficha para ela. “É a única maneira para se

esquecer dos problemas”. Bela foge do caminho que ela própria caminhou e me diz: “Eu nunca fui feliz”, ela não precisava me dizer isso, eu vi. No dia em que conheci Roma* pelo buraco quadrado da sua cela, ela derramava uma lágrima. A pele seca, preta e manchada, era opaca. Com 38 anos, mãe de quatro filhos, já cumpriu sua pena e ganhou liberdade provisória. Lembra de sentir o cheiro da rua entrando pelas narinas, o vento batendo na pele escura no momento que saiu da prisão. Por dois meses ficou em casa. Seus poros abriram­se pela memória daquele dia. Sentada em minha frente, as mãos algemadas dedilharam pelos anos de cadeia. Quando caiu, chorou, adoeceu, se drogou, fez “coisa que

eu nunca tinha feito antes”. “Com ou sem tornozeleira eu estou presa igual”, afirma Roma que depois de solta, devido a um temporal e queda de luz, perdeu o sinal do aparelho celular: “Eu só não atendi o telefone no momento em que eles me ligaram”, e foi assim, na terça­ feira seguinte, enquanto ela veio assinar o livro de manutenção, que acabou descobrindo que teria de retornar para a cela B. Roma afirma: “Eu jamais seria capaz de cortar minha tornozeleira pra voltar a viver aqui dentro”. Ela voltou sem precisar cortar. “Me trancaram só por eu não ter atendido um telefonema”, engole seco, indignada por saber que ainda vai viver ali por mais um ou dois meses. Na primeira vez que

Roma saiu da gaiola ela fez um ritual: acordou cedo, se arrumou e se pintou. Um dia antes até fez as unhas. Lembra­se nostálgica: “eu fui direto abraçar minha mãe”, e os pelos de seus braços se arrepiam de emoção. “Eu sinto falta dos meus filhos”, e logo ela começou a soluçar, um choro engolido, um choro doido pelo arrependimento por ter colocados os filhos no abrigo. Como mãe, clama aos seus meninos “nunca coloquem droga na boca”. Ela não quer que eles passem por aquele corredor com cheiro de mel. * Os nomes foram trocados para presevar a identidade das fontes.

Paula Cristina Turcatto paulacristina@mx2.unisc.br

Aura, a mãe do Gabriel Na sala nada engraçada, de paredes brancas e rosas apagadas, ela desatou em palavra o que a matava por dentro. Em minha frente, uma mulher algemada de mãos trêmulas e lábios marrons. Seus olhos pareciam vazios e ela toda estava presa por um fio invisível chamado Gabriel. Aura* tem 32 anos, e quando entrou em uma cela se viu: “encurralada, sem forças”, recorda. “Não tinha o que fazer, nem como sair, nem como voltar atrás no tempo”, sentencia em três frases o que viveu e ainda viverá até o fim deste ano. Portadora de HIV, ela contraiu a

doença do ex-marido, quando estava grávida do filho. Foi proibida de fazer o tratamento “eu não podia ir ao médico, ele tinha vergonha que alguém descobrisse”, justifica. Apanhou antes, durante e depois da gravidez: “O Gabriel presenciava muitas cenas”. No aniversário do menino, com o pouco dinheiro que ele ganhou comprou frutas para a mãe. Aura lembra que o pequeno foi à venda e retornou dizendo: “Mãe, olha o que eu trouxe: frutinhas pra ti melhorar”. No pensamento daquela criança, frutas aliviariam o abatimento da mãe: “Ele é o anjo que Deus me deu”.

“Ele está sendo mais forte que eu”, mas Aura, mesmo quebrada, vai se colando. Juntando os cacos por um alguém com nome de anjo. “Eu me levantar aqui de manhã é por causa dele”, afirma em lágrimas que não caíram. A mulher sem cor se arrepende muito, “talvez se eu não tivesse aceitado tantas coisas seria diferente”. Ela planejou se entregar às grades pelo mesmo motivo que sete em cada dez mulheres está presa: o tráfico. Roma deixou o filho na escola, arrumou suas coisas e foi se apresentar. Sem palavras, afirma, com a cabeça, que, desde esse dia, ela não voltou para buscá-lo.


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A luta pela humanização do nascimento e o repúdio a violência obstétrica

reação em cadeia contra o lado negro da obstetrícia

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humanização do parto tem sido luta diária cada vez mais presente na vida das mulheres, mas ainda não é prática de rotina na medicina obstétrica atual. Quando a bolsa de líquido amniótico rompeu, duas semanas antes do previsto, Layla* entrou em desespero. Não tanto pelo fato de que seu bebê logo nasceria, mas sim porque estava sozinha. Seu marido, Marcos*, trabalhava em outra cidade, só chegaria à noite e os demais familiares residiam em um município que ficava a duas horas dali. Dores cada vez mais fortes iam e voltavam até que a aproximação entre uma dor e outra anunciava: Miguel* estava chegando. Eram dez horas da manhã e Layla foi de táxi para a maternidade. Ela ri quando se lembra da expressão de pânico do taxista quando disse: moço, meu bebê vai nascer, corre pra maternidade. Mas o riso é abafado por uma onda de tristeza ao se lembrar dos momentos seguintes. Layla, assim como muitas brasileiras, foi vítima de violência obstétrica em um hospital conveniado ao Sistema Único de Saúde (SUS). Ela conta que o seu pesadelo começou quando ouviu uma enfermeira comentar com a outra “essa daí é

daquelas que o pai da criança não tá nem aí. Bom, vai saber se a criança tem pai”. Layla nada disse, estava abalada e se sentindo acuada. Dentre os traumas maiores das agressões verbais está o famoso “na hora de fazer não gritou” que, na situação da Layla, estava fantasiado de “se você não queria sentir dor, pra que fez filho? Não grita. Vai assustar as outras gestantes”. Até Marcos chegar, Miguel* já havia nascido. E havia nascido como em um espetáculo: residentes em medicina obstétrica foram chamados para assistir ao parto sem o consentimento de Layla. Enquanto ela, sozinha, se concentrava para fazer força e dar à luz a Miguel, uma verdadeira plateia ouvia o médico explicar o procedimento como se a parturiente (a mulher no momento do parto) fosse um grande livro aberto e não um ser humano. Da crueldade ao trauma: Layla não quer mais ter filhos. Com lágrimas nos olhos, ela explica que dá pânico pensar em passar por tudo aquilo de novo. A violência obstétrica é caracterizada por uma série de itens que ofendam a gestante e/ou a mulher no momento ou após o parto, dentre os quais: mau aten-

dimento, agressões verbais, intervenções médicas sem o consentimento da mulher no trabalho de parto. Humanidade é o legado de uma nova era de mulheres bem informadas e a violência durante a concepção é uma das principais causas da luta de muitas pelo parto humanizado. Respeito ao parto e a barreira do preconceito O parto humano, desde os tempos mais remotos, deve ser instintivo e natural. Contudo, há algumas décadas o processo sofre a tentativa de mecanização pela sociedade que passou a criar várias interpretações para o termo “humanização”, dentre elas, a característica de “humano” com a moral dócil, que procura ajudar o próximo. A partir disso, poupar a mulher do sofrimento das dores do parto, por intermédio de manobras técnicas e cirúrgicas, se tornou uma aristocrática tarefa da medicina obstétrica contemporânea. Completamente diferente do parto de Layla, Daiane Caroline Bazzo, 23 anos, conta que o seu parto foi o melhor possível. Em companhia da doula (mulher que presta suporte emocional e físico a gestante) Marília Graziola,

Daiane viveu a experiência do parto humanizado. Ela relata que, apesar de demorado (o trabalho de parto durou cerca de 22 horas, desde a primeira contração) a concepção procedeu da maneira que ela havia planejado. Sem nenhuma intervenção médica, Davi nasceu saudável, de 41 semanas e dois dias, pesando 3,580 kg. A principal motivação pela procura de um parto humanizado foi o medo de sofrer algum abuso durante o trabalho de parto. Sobretudo, o respeito pelo momento, nas palavras de Daiane, foi fundamental para que ela procurasse, inclusive, uma médica obstetra que trabalhasse com a humanização do parto. A doula Marília foi essencial para o suporte emocional, de acordo com Daiane. Além do estímulo à vocalização (gritos na hora de fazer força para o bebê nascer), diferentemente do que ocorre em grande parte das maternidades, a equipe a auxiliava com exercícios e massagens.

A humanização prioriza, primeiramente, os desejos da gestante sobre o seu parto.

Marília acredita que o trabalho de humanização


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Vozes que se fizeram ser ouvidas e ecoam na saúde brasileira Com apelo por um parto mais humano cada vez maior, englobando um grande número de mulheres que aderiram ao movimento, a saúde tem investido na questão através de programas de incentivo aos hospitais. Em São Paulo, por exemplo, um Hospital SUS na zona sul se tornou referência em parto humanizado. Com o objetivo de haver o mínimo possível de intervenções médicas como episiotomia (corte no períneo) e ocitocina sintética

(soro para induzir o parto), as gestantes ficam em uma ala especial que lhes proporciona estímulo como atividades físicas, banhos de banheira e orientações das enfermeiras para o acompanhante da gestante. O investimento por uma sala pré-parto mais humanizada tende a aumentar nos hospitais brasileiros, uma vez que o Ministério da Saúde, em 2014, publicou uma portaria que garante auxílio financeiro aos hospitais que cumprirem uma lista de práticas de parto humanizado. Contudo, nas palavras da doula Marília, é preciso avaliar com cuidado a questão, uma vez que os médicos que atuarão nessas salas precisam ter uma atividade humanizada. Oferecer um espaço e não oferecer serviço, de acordo com Marília, não contribui para a humanização do parto, porque o que faz o procedimento ser humanitário não é o ambiente, mas sim o tratamento com a mulher que deve ter muito respeito. As luta pelos direitos continua avançando e exigindo espaço tanto na saúde pública brasileira quanto no setor privado.

Stephanie Freitas st1938@hotmail.com

Carolina Leipnitz

do nascimento ainda é envolto por preconceitos. Sobretudo, a falta de informação cria teorias errôneas em torno desse procedimento. A falsa ideia de o parto humanizado ser desassistido ou, ainda, que a doula faça o parto é um dos mitos que constam no prejulgamento do procedimento. É importante salientar que a humanização do parto não proíbe as intervenções médicas. “Se a mulher solicitar uma anestesia, por exemplo, e constar no seu plano de parto, a vontade dela será feita. A humanização prioriza, primeiramente, os desejos da gestante sobre o seu parto”, explica Marília.


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A jornada de quem largou tudo para dar uma volta ao mundo

Viajando sozinho: uma busca por si próprio

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e todos os sonhos e desejos a longo prazo que temos, viajar pelo mundo conhecendo pessoas e encarando culturas incríveis é, certamente, a vontade de muitos. Mas parece difícil, não é mesmo? Algumas pessoas nos mostram que colocar a ideia na cabeça e ter determinação o suficiente para conseguir, já basta. Elas podem ser uma fonte de inspiração para quem procura se aventurar por aí, e mais: nos mostram que a

experiência que fica é única. Um exemplo de quem largou tudo para vivenciar uma mudança de ares é o jornalista natural de Minas Gerais, de 30 anos, Fellipe Faria. Em 2011, ele trabalhava há dois anos, sem férias, em uma empresa de construção civil. O trabalho era uma rotina estressante e desmotivadora, e Fellipe não estava feliz com o que fazia. Deixar o emprego e viajar era uma ideia que tinha em mente e que poderia melhorar a situação, pois Acervo Pessoal

tinha certeza de que voltaria uma pessoa diferente. Logo, começou a pesquisar na internet em busca de dicas e relatos de quem conseguiu concretizar seus sonhos. Fazer um mochilão de um mês pela Europa era sua ideia inicial. Uma viagem padrão que muitos costumam escolher. No entanto, em suas pesquisas pela web, Fellipe encontrou a Round The World Ticket, uma passagem de volta ao mundo que contava com dez voos e custava R$7 mil. Naquele tempo o dólar estava baixíssimo, em torno de $1,70. Fazendo as contas, ele percebeu que essa opção era bem mais barata do que a Eurotrip, mesmo contando com passagens de avião e de trem. Comparando as duas, a ideia de uma volta ao mundo o animou, o mochilão parecia algo comum demais e a viagem de cinco meses tinha o pioneirismo envolvido. A família e amigos não gostaram da decisão. Deixar um trabalho seguro com uma ótima remuneração parecia loucura. Felipe morava fora da casa de seus pais desde os 14 anos, quando saiu para estudar. Sempre foi

muito independente, deixar família e amigos não foi um obstáculo. “Então eu decidi encarar a aposta e enfrentar o risco, e foi a melhor decisão que eu tomei.”

Você vai conhecer pessoas, vai ter uma maior concepção daquele estereótipo e vai se surpreender.

A automotivação foi seu ponto de partida. O jornalista resolveu vender o carro e tirar a ideia do papel. Como trabalha com planejamento, não foi difícil para ele organizar a viagem. “Não sou a pessoa mais organizada do mundo mas gosto de planejar”, conta. Criou planilhas e pastas e começou a reservar roteiros, agendas, documentos e tudo que precisava. Tudo foi organizado com apenas um mês de antecedência. Ficou cinco meses viajando, cento e cinquenta dias voando de país a país. Sua escolha foi fazer a volta ao mundo apenas com sua própria companhia, pois acredita que uma viagem solitária é muito diferente de uma com


amigos ou com um parceiro. Ele dá a dica: “acho que existem momentos pra cada uma delas, ao viajar cinco meses com uma outra pessoa, você deve estar preparado para casar com ela, porque é muito difícil a convivência”. AUTOCONHECIMENTO Em sua jornada pelo mundo, Fellipe pôde ter uma prova do que é se aventurar sozinho. O maior aprendizado de todos e o mais importante - que ele mantém até hoje foi o processo de autoconhecimento causado pela solidão. Ele explica que, como na maior parte do tempo a sua companhia era ele mesmo, pôde assim, pensar profundamente sobre grandes dilemas e tabus da sua vida. Chegou a conclusões que nunca chegaria se não tivesse aquele tempo para pensar sobre si mesmo, aprendeu a dar valor para as coisas simples, como comida, conforto e relacionamentos. Começou a pensar mais sobre as coisas que achava que eram importantes, que na realidade não se mostraram ter tanta diferença assim.

A viagem não só proporcionou conhecer os mais belos pontos turísticos, como mudou seus padrões de uma boa cama para dormir, uma boa comida para se alimentar, uma boa pessoa para conhecer, para fazer festa. Todos eles foram confrontados com a dura realidade. “Você vai conhecer pessoas e vai ter uma maior concepção daquele estereótipo, vai se surpreender. Vai comer comidas que achava que eram terríveis e vai se surpreender mais ainda. E depois, quando voltar, vai querer comer aquilo pro resto da sua vida.” Ele ainda destaca que não há comida melhor no mundo do que a brasileira, e que o querido arroz com feijão faz muita falta. O benefício de viajar sozinho é ser obrigado a socializar. Fellipe conheceu inúmeras personalidades, passou o Natal na Itália, em Torino e o Ano Novo em Londres, com pessoas que acabara de conhecer. Para ele, ter autonomia e poder traçar seu próprio roteiro foi libertador. Poder conhecer pessoas do mundo todo em bares, hostels, festas e fazer amizades

Acervo Pessoal

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Nas Ruínas de São Pedro, em Macau

foi impressionante. Tudo ocorria de maneira muito natural. Especialmente porque há pessoas nesses lugares que também estão sozinhas e à procura de socialização. Sozinho, ele observava mais

as pessoas, olhando ao redor, conversando e sempre melhorando seu conhecimento da língua inglesa.

Ingrid Jank ingridjank@hotmail.com

Sobre o Blog O Mochilão Sendo jornalista e tendo gosto pela escrita, Fellipe aproveitou para montar um blog chamado O Mochilão, a fim de compartilhar a sua jornada para seus amigos e também para ajudar pessoas que, por ventura, estavam procurando os mesmos lugares e gostariam de receber dicas de como chegar lá. Portanto, o blog funcionou tanto como ferramenta de comunicação naquela época, quanto para ajudar outros a fazer viagens como a dele.

O mais interessante de tudo é que o O Mochilão acabou tendo uma proporção maior do que ele imaginava. Os leitores acabavam encontrando-o em hostels e lugares onde ia, e o reconheciam pelo escritor do blog. Uma experiência e tanto. Naquele momento, o blog foi sua prioridade, ele estava fazendo algo em que acreditava. Depois que parou de escrever, foi para o Peru, para o Uruguai e para a Califórnia. Desde que voltou ao Brasil, mora em Porto Alegre. Hoje o

blog não é mais atualizado porque sua prioridade passou a ser outra: um emprego que o faz feliz de verdade. Quais as consequências de ter seguido seu instinto? Antes, ele reclamava de inúmeras coisas relacionadas ao conforto pessoal e relacionamentos. Hoje, isto dificilmente ocorre. Fellipe Faria se tornou alguém melhor para si mesmo. Seus valores, conhecimentos e padrões foram mudados. Agora ele segue sua carreira como um homem realizado.


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Preta ou colorida, visível ou não, a tatuagem ainda é tema de debate

O preconceito risca quem se risca

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lores, nomes, letras de música, símbolos de proteção, tribais ou o retrato de quem se ama. Na hora de tatuar o corpo quem decide é o dono da pele, mas quem julga se é adequado ou não nem sempre é ele. A sociedade aos poucos muda sua visão e abre novos horizontes para quem faz do corpo sua própria tela. Controversas, as tatuagens conquistam a cada dia novos admiradores e adeptos. Se já foram vistas com olhos de preconceito e discriminação, hoje a tinta na pele quebra barreiras e é encarada inclusive como forma de arte. Mais do que um simples desenho, para muitas pessoas, a tatuagem é a pura expressão da personalidade, das ideologias de vida ou mesmo do gosto por determinado tema. Algumas pessoas, como o ator Johnny Depp, usam o corpo como o próprio diário e eternizam na pele sua história e suas experiências. Depp possui 36 tatuagens relacionadas a seus ancestrais, seus filhos e sua história no cinema, além de símbolos de sorte e proteção. Seguindo essa linha encontramos o publicitário Maikel Linhares, de 28 anos. Com mais de 20 desenhos, ele encontrou nas tatuagens a forma de mos-

trar ao mundo sua paixão por super-heróis, HQs e cultura pop. Uma das preocupações que mais rondam a cabeça de quem pensa em se tatuar é o mercado de trabalho. Ainda tratado como tabu, o tema é polêmico e divide opiniões de candidatos e recrutadores. Muito menos restritivas, as empresas acabam tendo que aceitar a tatuagem, no entanto, algumas mais conservadoras podem ser inflexíveis. Ele relata não ter sofrido discriminação. “Nunca aconteceu, inclusive indiquei tatuadores a chefes que tive ao longo da carreira”. Mesmo ciente de que as tatuagens podem gerar preconceitos, Maikel afirma que o mais próximo de se sentir marginalizado por conta de seus rabiscos foi quando assustou uma criança em uma loja. A mesma realidade não é vivida por Johnathan Rodrigues, 24 anos. Com desenhos no pescoço, rosto, cabeça e mais de 30 espalhados pelo corpo, ele conta já ter sido discriminado. “Cheguei para a entrevista e quando viram minhas tatuagens nem deixaram eu terminar de me apresentar”. Morador de Venâncio Aires, Johnathan revela já ter sofrido diversos tipos de preconceito. “Em

Mônica da Cruz / Imagem: Johnathan Rodrigues

Maikel Linhares/Arquivo pessoal


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cidade pequena isso é quase que rotineiro”. Especialista em gestão de carreiras e desenvolvimento profissional, Mônica Rizzatti, diretora executiva da Ser Humano Consultoria em Recursos Humanos, de Porto Alegre, diz que vale o bom senso, tanto para o candidato quanto para o funcionário que pensa em se tatuar. “O funcionário precisa conhecer e avaliar o ambiente em que está inserido, e o candidato deve saber o perfil da empresa na qual ele pretende concorrer a uma vaga”, pontua. A área de atuação serve como um termômetro para saber até onde se pode ir. Espaços formais e conservadores como bancos, forças armadas e direito tendem a ser menos flexíveis, enquanto comunicação, design e algumas áreas do comércio já estão plenamente adaptadas.

O QUE DIZ A LEI

QUERO FAZER

Apesar de alguns aspectos sociais estarem mais evoluídos, a legislação nem sempre acompanha essa nova realidade. Não existe menção específica para a tatuagem em nenhuma lei brasileira. A lei 7.716/89 trata como delito a discriminação por raça, etnia, cor, religião ou procedência nacional, enquanto a lei 9.029/95 considera crime o ato de discriminar por sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, idade ou deficiência no ambiente de trabalho. O deputado Edson Duarte (PV -BA) chegou a protocolar o Projeto de Lei 1.528/07 que modificava a lei 9.029/95, incluindo piercings e tatuagens nas formas de discriminação passíveis de punição. O projeto, como muitos outros, está parado na Câmara.

Por ser definitiva, a decisão de fazer uma tatuagem precisa ser pensada com tempo e cuidado. A escolha do profissional é de vital importância para o resultado, uma vez que existem diversos estilos e cada tatuador tem as suas especialidades. Aprendiz na profissão, Johnathan alerta: “Não faça antes dos 18 anos, tatuagem não é moda, é para sempre. Faça algo que expresse o que você é”. Para os arrependidos, existem procedimentos para remoção de tatuagem, no entanto são caros, dolorosos e o resultado nem sempre é satisfatório. Por isso, é importante se ter certeza do que quer e da habilidade do profissional.

Iuri Fardin iurisf@gmail.com

FIZ A TATUAGEM, E AGORA ? Desenhar na pele não é como desenhar no papel. Depois de feita, a tatuagem precisa cicatrizar e para isso são necessários alguns cuidados básicos. Um bom tatuador tem a obrigação de orientar o cliente sobre os procedimentos a serem tomados, que incluem a higienização da área tatuada e troca do curativo ao longo dos dias. O período de cicatrização varia com o tamanho e depende do organismo de cada pessoa, indo de duas semanas a um

dicas: mês, em média. Esse cuidado com a cicatrização tem relação direta com o resultado final, uma vez que a tatuagem mal cuidada pode perder a tinta e deixar a área borrada. Nos primeiros 30 dias não é recomendável frequentar a praia, piscina e sauna. Pessoas que sofrem de diabetes podem ter complicações na cicatrização e alguns tatuadores se recusam a fazer, portanto consulte um médico e não esconda sua condição de saúde.

- Conheça o estúdio e o tatuador antes, leve ideia de desenho para avaliação. - Preste atenção na forma como ele trabalha, se o ambiente é limpo e os materiais esterilizados e descartáveis. - Ouça o que o profissional tem a dizer, ele trabalha com isso e tem experiência. - Comece com desenhos pequenos, para saber como o seu corpo reage.


12 Ocultistas são pessoas que possuem o conhecimento do paranormal e podem prever o futuro. Por conta disso, não são bem vistos pela sociedade

Os bastidores do ocultismo

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m universo intrigante. Cercado de mistérios, segredos bem guardados e rituais elaborados, mas que possui membros discriminados, seja pela atividade desenvolvida, ou religião seguida. Eles estão à margem social, mesmo em um tempo cuja liberdade ao culto é pregada. Porém, na prática, não é o que ocorre. Cartomantes, mães e pais de santo, entre outros profissionais, são essas pessoas. Representante do Templo Ilê Axé Cigana do Oriente Saragô, a Ialorixá Guiomar Spalding, 59 anos, vive em Cachoeira

do Sul. Conhecida como ‘Mãe Guiomar’, ela faz parte desse meio há mais de quarenta anos. Desde pequena, Mãe Guiomar frequentou rituais de Umbanda, por intermédio de sua mãe, a principal influência. Ela afirma possuir um dom, pois considera tratar-se de um poder divino destinado a determinados indivíduos. Devido ao fato de lidar com vidas, a mãe de santo ressalta que o seu principal lema é a verdade. “Procuro trazer conforto ao cliente, utilizando as forças e as magias da natureza para o bem e superar as adversidades”, frisa.

Entenda os significados: Axé – Força, poder. Babalorixá - Pai de Santo Exu – Entidade representativa da sintonia entre o plano material e espiritual. Exu do Lodo – Sentinela das almas. Entidade capaz de modificar as energias, transformando a negativa em positiva. Ialorixá – Mãe de Santo Orixá – Qualquer santo de religiões de matriz africana e afro-brasileira. Oxalá - Entidade divina. Quimbanda – Um dos lados da Umbanda, considerado o conhecedor das maldades do mundo astral, e que podem ajudar a fazer tanto o bem quanto o mal.

Pai Altamir de Oxalá, 57 anos, outro membro da Umbanda, é também Espírita, com quarenta anos de atividades. A curiosidade o levou a conhecer as religiões e, nelas, se encontrou. Ele começou a realizar seus trabalhos pela identificação com as diferentes entidades e pela possibilidade de utilizá-las para ajudar o próximo. A boa ação é o principal compromisso. Altamir afirma que faz a ponte entre o plano real e espiritual. Utiliza as cartas do tarô, que, segundo ele, são orientadoras de boas vibrações para auxiliar o indivíduo no atendimento às necessidades espirituais e imateriais. Aos 63 anos, Mãe Eloí do Exu do Lodo é uma quimbandeira com 54 anos de atuação. Moradora de Porto Alegre, ela faz previsões através do uso de um copo d’água e uma vela branca (a cor de Oxalá). A vela funciona como elemento condutor para o profissional que identifica, após a observação da água, aspectos da personalidade, sentimentos e do destino do cliente. Quinzenalmente, rituais são feitos para cul-

tuar a religião. Suas idas aos templos começaram após a entidade Exu do Lodo manifestar-se em seu ser. “Senti que precisava atender ao chamado”, comenta Mãe Eloí. Preconceito Social, Cobrança e Charlatanismo As Mães Guiomar e Eloí e o Pai Altamir concordam quando o assunto é o preconceito. Eles confirmam que sofrem agressões verbais por causa da vida que escolheram. Tanto a Mãe Eloí quanto a Mãe Guiomar atribuem o comportamento hostil de uma parcela da sociedade ao desconhecimento das atividades religiosas que exercem e à falta de respeito. Já Pai Altamir, acredita no fanatismo religioso de adeptos de outras religiões principalmente pelo conflito de ideologias. Ele garante não ter nada contra nenhuma religião, mas existem pessoas que enxergam as religiões afro -brasileiras como o ‘reduto de satanás’. Os diferentes trabalhos espirituais e proféticos realizados não são vistos


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como um negócio pelas mães e pai de santo dessa reportagem, mas sim, como uma ajuda, uma indicação de rumo para a pessoa que precisa se encontrar. Entretanto, a sinalização do caminho a ser percorrido é cobrada. Os valores são variados. Tais preços são determinados conforme o pedido do consultante. Dependendo da situação financeira de cada um, a conta pode ficar salgada. Mas se as consultas e/ou trabalhos são vistos como auxílio – e não como prestação de serviço -, por que a Mãe Guiomar, Mãe Eloí e o Pai Altamir cobram para realizar grande parte deles? A resposta é a mesma: cobertura das despesas referentes à manutenção do espaço de trabalho, como contas de água e luz, decoração, velas e produtos aromáticos. Apesar de ser delicado, o assunto é tratado com naturalidade pelos ocultistas. Os três reconhecem a existência de pessoas mal -intencionadas no meio e apontam alguns aspectos prejudiciais para as ações que realizam. Mãe Guiomar classifica os charlatões

como “inescrupulosos, dispostos a tudo para conseguirem o que querem”. Pai Altamir de Oxalá, por sua vez, afirma que a prática do charlatanismo leva à mistificação, processo em que o indivíduo se aproveita da entidade para extorquir o outro. Ou seja, para fazer o mal. A Mãe Eloí entende que cada um faz o que bem quer. Porém, ela ressalta que esse alguém deve estar preparado para a justiça divina. A ação de charlatões, no seu conceito, contribui para que a imagem das religiões de matriz africana e afro-brasileira esteja tão deteriorada. Felizmente, identificar um charlatão não parece ser uma tarefa complicada. Mãe Eloí salienta que o trapaceiro se equivoca ao questionar e deixar o cliente falar sobre a vida, quando ele devia adivinhar. Mãe Guiomar e Pai Altamir de Oxalá compartilham do mesmo pensamento. Ambos destacam que o impostor é incapaz de indicar com veemência um rumo a quem lhe procura.

Marcel Lovato marcel.lovato@hotmail.com

Marcel Lovato

Colares diversos utilizados durante as sessões realizadas ou simplesmente para fins de decoração.

Pequeno altar com alguns orixás da Umbanda, como Oxalá , Xangô, Iemanjá, Ogum, Iorimá. Eles representam as linhas religiosa, da Justiça, do povo d’água, das demandas e dos “pretos – velhos”.


14 Em meio às batalhas e desafios da vida, Maria Zerli não desiste de viver e mostra que, com fé e força de vontade, muita coisa é possível

A Maria que não vê

H

á 21 anos, a aposentada Maria Zerli Bandeira, 59 anos, não enxerga o azul do céu, as flores dos jardins, a luz do dia e as pessoas que ama. Ela é mais uma das pessoas que perderam a visão devido a um glaucoma congênito, doença que, quando não tratada, é uma das principais causas da cegueira. É a falta de visão que coloca Maria à margem do mundo em relação às outras pessoas. Para conhecer um pouco mais sobre a história dela, fui até o bairro Aviação, em Venâncio Aires, onde mora em um apartamento, há quatro anos, com o companheiro José Dorival Jesus Freitas, 89. Dona Maria tem duas filhas, dois netos pequenos e é natural de Rio Pardo. Viveu grande parte da vida com os pais em Passo do Sobrado e também morou de aluguel. Foi apenas nos últimos anos que conseguiu conquistar a moradia própria. Logo quando cheguei, ela abriu a porta e pediu para eu entrar. Mesmo que não me visse e não soubesse muito

bem quem eu era, me recebeu com um sorriso, como se estivesse feliz por eu estar ali. Ao entrar, dei de cara com a cozinha, onde estava ‘Seu’ Freitas. Embora fossem apenas nove horas, um cheirinho de comida já tomava conta do ambiente. Em cima do fogão a gás, um vapor saía da panela. Não demorou muito para ela

Kethlin Meurer

dizer: “Não repara o cheiro. Estou cozinhando batatas”. Sorri e respondi: “Capaz, não tem problema. O cheirinho está bom”. Acomodei-me no sofá, organizei minhas coisas, peguei meu caderno e caneta e comecei a falar. O apartamento era organizado, cor de rosa. Na parede da sala, havia um quadro de flores. Na estante da televisão, os porta-retratos da família. Notei que a Maria dos cabelos curtos e pretos, era vaidosa, sorridente e acolhedora. Observei tudo e, aos poucos, ela começou a contar a própria história e o quanto a vida não foi fácil para ela. Sentada um pouco mais dis-

tante de mim, no meu lado direito, percebi que contar um pouco de si a deixava de fato feliz.

A vida de Maria Tudo começou quando Dona Maria era ainda criança e tinha dificuldades para enxergar as palavras escritas no quadro negro da sala de aula. Os pais não deram grande importância, mas, aos poucos, a dificuldade de ver se tornou cada vez maior. Estudou até a terceira série em escola pública e, após isso, iniciou os estudos no Instituto Santa Luzia, em Porto Alegre, onde aprendeu braile e completou a oitava série.

Mesmo que não tenha a visão, Maria busca sempre fazer tudo por conta própria.

Maria se casou, teve as duas meninas, presenciou e enxergou os primeiros passos delas. Contudo, ao chegar nos 38 anos, perdeu a visão completa das duas vistas. Na época, as filhas eram adolescentes e, desde então, ela não pode mais acompanhar com o olhar o crescimento das duas meninas. Separouse e, após isso, conheceu ‘Seu’ Freitas. Mesmo que não tenha a visão, Maria busca sempre fazer tudo por conta própria. Não gosta de depender das pessoas para caminhar, fazer comi-


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Kethlin Meurer

da, arrumar a casa. Contudo, andar sozinha não é tarefa fácil. Ela apenas anda com a bengala onde tem calçamento, porque possibilita que ela tenha noção de espaço. Em outros locais, ela necessita do auxílio de alguém. Na rua, ao se deparar com uma pessoa desconhecida, Maria conta que é difícil conter um pouco do medo, já que apenas pode escutá-la. Para ela, o grande problema não está tanto na visão, mas sim, na falta de audição do companheiro. Freitas escuta muito mal há três anos, o que dificulta a comunicação do casal. Para ser compreendida, Maria precisa falar muito alto ou fazer alguns gestos. Embora seja difícil, Dona Maria não desiste da vida. Vaidosa, ela seguido pinta as unhas, passa batom e usa brinco. Tamanha é a preocupação com a aparência que, no início de fevereiro deste ano, colocou uma prótese no olho esquerdo. Em abril, fez a mesma cirurgia, mas no outro olho. Hoje, Maria ainda é vítima de preconceito devido à falta de visão. Na rua, às ve-

zes algumas pessoas a tratam com indiferença. “Um dia fui entregar uma revistinha de produtos de beleza para uma mulher e ela, sem me conhecer antes, logo disse que não tinha dinheiro para fazer doações. Como se eu estivesse ali para pedir esmolas”, explica. Em função da falta de visão, Maria ficou com a audição e o olfato mais aguçados. Entre uma resposta e outra, eu pegava um tempinho para escrever. Quando, por alguns segundos, o silêncio tomou conta do ambiente, eu comentei: “Espera só um momento Maria, estou escrevendo”. Ela respondeu com um sorriso: “Sei que está escrevendo. Eu escuto isso” . APRENDIZADO Às vezes, perdida nos próprios pensamentos, Maria conta que faz questionamentos a si mesma pelo fato de não poder enxergar: “Eu queria tanto ver meus netos, ver o quadro que minhas filhas me deram. Fico me perguntando: por que Deus não me deu a visão?” Quando chegamos ao as-

sunto família, percebi o quanto Dona Maria ama seus familiares. Ela conta que foram eles que a fizeram continuar a ter vontade de viver em meio a tudo o que passou. No entanto, a perda de visão e o fato de ter um companheiro que tem problema de audição, lhe trouxeram alguns ensinamentos. Dona Maria aprendeu a confiar mais em si, tem ainda mais fé. Ela aprendeu a ver o bonito, o puro e o bem, não através dos olhos, mas por meio das atitudes. Dona Maria é feliz do jeito que é. Há três anos preside a Associação de Deficientes Vi-

suais de Venâncio Aires, uma das coisas que a orgulha muito. Em meio aos tropeços e batalhas da vida, ela valoriza o pouco, pois não quer o muito. Se tivesse que fazer um único pedido, seria apenas poder enxergar os netos, vê-los crescer e se desenvolver. Ela apenas gostaria de enxergar, de novo, o azul do céu, o verde da natureza e o colorido das coisas da vida. Como não pode fazer isso, Dona Maria continua a identificar as pessoas não pelos olhos, mas pelo caráter e coração.

Kethlin Meurer kethlinmeeurer@hotmail.com

CEGUEIRA O último senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, aponta que, no Brasil, existem mais de 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual, sendo 582 mil cegas e seis milhões com baixa visão. Conforme o oftalmologista de Venâncio Aires, Ivan José Marquetto, especialista em retina há 11 anos, em adultos, é comum uma diminuição da visão antes de ficarem cegos, mas há casos que podem ser repentinos de acordo com a causa.

A cegueira não é considerada uma doença, mas trata-se de um sintoma. Há muitas doenças que podem levar à cegueira. Existe a cegueira completa, em que há nenhum tipo de clarão, bem como, a visão de vultos, quando se vê a sombra de alguns objetos. Segundo o profissional, o tratamento da cegueira depende da causa: “Há doenças reversíveis, há doenças em que nada pode ser feito e há doenças que as pessoas tratam para manterem um pouco da visão restante”.

As causas mais comuns de cegueira precoce (nascimento e primeira infância) são doenças infecciosas na gestação, rubéola, sífilis; toxoplasmose; tumores oculares, malformações retinianas, vasculares e do nervo óptico. Além disso, a prematuridade extrema também pode provocar a cegueira na infância. De acordo com o profissional, para tratamento e prevenção de doenças que levam à cegueira, é necessário consultar regularmente um oftalmologista.


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O transtorno bipolar e a depressão são problemas mentais que afetam a maneira de ser e viver das pessoas e, por isso, é importante compreender o que elas sentem

O problema sou eu?

A

vida nos prepara coisas que, muitas vezes, não entendemos. É como a chuva que vem de repente em um dia de sol e nos pega desprevenidos. Algo que ninguém espera, mas que, por algum motivo, precisa passar. Tal-

vez seja para deixar-nos mais fortes, ou simplesmente para mostrar que somos capazes de encarar. Receber um diagnóstico de transtorno mental não é fácil, mas é preciso enfrentar e adaptar-se à nova realidade, mesmo que isso signifi-

que sofrer diariamente com o preconceito. Sintomas emocionais, infelizmente, ainda são confundidos com loucura e, por isso, pessoas que sofrem desses transtornos vivem à margem da sociedade. Sozinhas, elas têm fra-

co valor quantitativo, mas quando esses semelhantes se unem, as diferenças são deixadas de lado. Isso é observado nos centros de apoio psicossociais que abrigam muitas histórias de vida, e foi daí que surgiram essas duas histórias. Ingrid Jank


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DEPRESSÃO COMO COMEÇOU “Estou grávida de quatro meses. É minha segunda filha. Mas eu não quero essa criança dentro de mim. Sinto tristeza, insegurança e choro muito. O que eu posso fazer? Mas ao mesmo tempo, não quero ajuda. Quem sabe da minha vida sou eu e só eu sei o que estou passando. Vocês não podem me julgar!” Na psicoterapia “A sala é pequena e não me sinto confortável aqui. Por que ela me olha assim? Por que presta a atenção em todos os meus gestos? Doutora, eu sinto medo, estou fraca, sem ânimo para nada e nem vontade de comer eu tenho. É como se tudo estivesse perdendo o sentido. Quero ficar sozinha, isolada. Não vejo graça em ouvir os pássaros cantando e mesmo assim eles insistem em me perturbar. O sol já não tem o mesmo brilho. Sinto-me mal em conversar. Preciso de remédio? Porque eu não quero tomá-lo. O que eu tenho?” O transtorno Segundo a psicóloga e professora do curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul, Roberta Louzada Salvatori, a depressão é um transtorno de humor caracterizado pela tristeza excessiva, falta de energia para trabalhar e mesmo para fazer as atividades que gosta. Ela pode ser leve quando há um humor mais deprimido, ou agravante quando há o risco de suicí-

TRANSTORNO BIPOLAR dio ou homicídio. Geralmente, o paciente tem facilidade em reconhecer os sintomas, já que são perceptíveis. Atualmente, isso já gera preocupações, pois afeta 121 milhões de pessoas e, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que em 2030 a depressão será o transtorno mais comum no mundo. Aceitação “A psiquiatra me explica e eu reconheço os sintomas, sei que a minha realidade é essa e até entendo que eu tenho depressão. Mas eu tenho a minha opinião formada e não quero que digam o que devo fazer. Enquanto escuto a psiquiatra, só consigo pensar que não é ela que passa por isso e que vai ter um segundo filho. O meu marido conversa comigo e explica que planejamos essa criança. Por um momento ele me convence, mas logo tudo volta. Os pensamentos negativos e o medo tomam conta de mim.” Pós – parto “O sol voltou a brilhar. O canto dos pássaros agora é a trilha sonora do meu recomeço. Que criança linda! Como eu pude rejeitá-la? Porque eu passei por isso durante a gravidez? Sei que não tenho culpa, mas aqueles pensamentos... Quanta burrice! Hoje eu só penso em ti, minha filha. E não quero que você passe pelo que eu passei. Ainda não é fácil falar sobre o que me aconteceu. Só me resta uma pergunta: Por que foi comigo?”

A vida antes da descoberta “Fui motorista por quinze anos. Me aposentei, mas mesmo com os cabelos brancos e o corpo cansado continuei trabalhando. Eu precisava deste trabalho para viver bem. Sempre fui uma pessoa ativa e divertida, pois adorava participar das festas da comunidade e ajudava com o que fosse preciso. Organizava os bailes e eu e minha esposa éramos os últimos a sair. O meu erro foi parar de trabalhar.” A revelação “Quem sou eu? Não me reconheço mais. Não tenho mais ânimo para sair da cama, estou cansado. Minha rotina mudou completamente e eu sinto falta da minha liberdade. Já não posso sair de casa sozinho, muito menos dirigir – o que eu gostava tanto. Às vezes eu me sinto tão bem que acredito que posso voltar à minha antiga rotina, mas de uma hora para outra isso passa e, volto a me sentir diferente.”

O transtorno Segundo a psicóloga Roberta, o transtorno bipolar se caracteriza por uma oscilação brusca no humor. Há episódios de depressão e tristeza, e outros de euforia e alegria exagerada. Tornase difícil a aceitação, pois quando se está no momento de euforia, a pessoa se sente bem e pensa que pode não ter mais o problema. “Depois que descobri o que eu tenho, as pessoas começaram a me tratar diferente. Sinto que meus amigos me tratam melhor agora e se preocupam muito comigo. Por que me tratam tão bem?” O futuro “Eu quero voltar a ter a minha vida normal. Sei que voltar a dirigir pode ser difícil, mas quero ir às festas da minha comunidade, já que meus amigos ainda me convidam. Sinto muita falta. Não quero depender das pessoas e não quero que se preocupem comigo. Sei que muitas coisas boas estão por vir, pois não perco a esperança de que dias melhores virão.”

* Devido a questões éticas, optamos por não colocar o nome dos entrevistados.

Júlia Carolina Beling juliacarolinabeling@hotmail.com

Thiene Hermes thi_hermes@hotmail.com


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Gabriela* vive uma luta diária contra as dificuldades de ser diferente em uma sociedade binária

“SOU EU, E SOMENTE EU, QUE DECIDO QUEM SOU”

Peço que antes de começar a ler o próximo parágrafo, você, leitor, esqueça de tudo que aprendeu sobre gênero. Sobre sexo. Sobre o que é ser homem e mulher. Esqueça estereótipos e esqueça que vive em um mundo onde só se é normal se você se definir em um código binário (macho ou fêmea). Que você leitor, leia esse texto com a ingenuidade e julgamento de uma criança que ainda não sofreu com a infeliz padronização da nossa sociedade.

G

abriela* fica envergonhada quando é elogiada. Às vezes, nem sabe como reagir a elogios. Gabriela usa batom vermelho, delineador forte e esmalte preto. Adora floral, mas se acha melhor usando azul. Tem uma opinião forte. Se for preciso, ela faz até chover para conseguir o que deseja. Gabriela tem muitos amigos e vai a muitas festas. Mas Gabriela sofre preconceito. Tem um currículo invejável a qualquer um, mas quando se apresenta na empresa, muitas vezes, nem a deixam falar e mostrar do que é capaz, pois largam um “desculpe, mas você não é o que estamos procurando”. Tudo isso, porque Gabriela nasceu com um pênis. Mas Gabriela não é menos mulher por isso. Já dizia Simone de Beauvoir “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.

Muitas pessoas que cruzam com Gabriela na rua olham torto e até desviam o olhar. “Pessoas que conheci enquanto me vestia de acordo com o gênero masculino, já passaram por mim e atravessaram a rua para não me cumprimentar depois que comecei a usar vestidos

e saias”, ressalta. Gabriela é apenas um exemplo de muitos. Muitos estes que não se sentem parte do coletivo por não se adequarem ao que ele impõe como normal. Vivemos padrões preestabelecidos desde que nascemos, pois, a sociedade nos apresenta o mundo como

um lugar binário. Se você nasce com o cromossomo xx você é mulher, se nasce com o xy é homem. Você apenas é normal se aceitar e aderir isso. Se tiver algo diferente, é uma aberração. É doente. É inferior. Infelizmente, nos ensinam que não cabe ninguém diferente do homem e


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da mulher no mundo. Essa padronização que a sociedade impõe para taxar o ser humano faz com que muitos indivíduos sejam jogados para fora do círculo social. A pessoa que não se reconhecer dentro do pressuposto de que, se nasceu com um pênis é homem e se nasceu com uma vagina é mulher, é automaticamente posta à margem desta mesma sociedade que impõe que uma criança hermafrodita é uma aberração por não se adequar a padrões, por, simplesmente, não ter apenas uma designação de sexo. Gabriela sonha com um mundo onde não será julgada por suas escolhas, por seu jeito de ser e agir. Sua con-

vicção é que cada indivíduo tem o direito de mudar seu próprio corpo de modo que se sinta bem consigo mesmo, seja essa mudança uma troca de genitália ou uma plástica no nariz. Nenhuma dessas opções irá mudar a essência da pessoa, “sou eu, e somente eu, que decido quem sou”, acrescenta ela. O que é ser transgênero? Segundo o psicólogo Andrew Solomon, em seu livro Longe da Árvore: pais, filhos e a busca da identidade, o termo transgênero “se aplica a qualquer pessoa cujo comportamento se distancia de maneira significativa das regras aceitas para o gênero

indicado pela anatomia dessa pessoa ao nascer. ” Em palavras mais simples, a criança pode nascer sendo do sexo masculino, mas seu pensamento e seu comportamento irão se adequar ao de uma pessoa do gênero feminino. É importante que essa questão fique bem clara: quando falamos em gênero, estamos falando do modo como determinado indivíduo se identifica na sociedade. Quando falamos em sexo, nada mais é que a genitália que nasceu com a criança, sendo ela vagina ou o pênis; os quais, para grande parte da nossa sociedade, são o que definem se a criança é homem ou mulher, muito mais do que como seu psico-

lógico os apresenta. A partir disso, se conclui que ser transgênero não tem nada ligado ao desejo sexual de uma pessoa. Não é querer se ‘transformar’ em mulher para ter relacionamentos com homens. Essa transformação não existe. O que existe é o desejo de adequar a genitália ao gênero, Andrew escreve que “a questão não é com quem se deseja estar, é quem deseja ser.” * O nome foi trocado para presevar a identidade da fonte.

Karine Naue karine.naue@hotmail.com

Identidade vista como patologia A psicóloga Ana Paula Nedwed, explica que mesmo que não se fale mais em transtorno de identidade de gênero, pois agora a patologia se chama disforia de gênero, o seu significa final não mudou. O conceito ainda se refere a “pessoas que não se identificam com os papéis e comportamentos esperados do gênero que lhes foi atribuído no nascimento”. Mas Ana ressalta que “a sociedade ainda está enraizada nas classificações tradicionais de gênero” e que o ser

humano tem como orientação social “não reconhecer como normal qualquer indivíduo que não se enquadre nos comportamentos padronizados”. E isso não é só um problema com os transgêneros e sim com os mais variados grupos que não se enquadram na sociedade, onde acabam tomando rótulos de perigosos por serem diferentes e, consequentemente, se codificam como patologia. “É importante que a sociedade entenda que ser transgênero é uma

questão de identidade e que os estigmas que são criados e reforçados podem estar apontando uma cultura que está doente”, diz Ana e aponta que o maior problema que enfrentamos ainda hoje é a ideia de que “menina veste rosa, brinca de boneca e, quando crescer, precisa ter filhos; menino veste azul, gosta de futebol, etc.” O problema está na formação de uma sociedade binária, onde você só pode ser ou A ou B, e seguir as regras impostas desde quando você nasceu.


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Como os albergues se modernizaram e inovaram a cultura da hospedagem

Um lugar para acolher e ser acolhido

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iajar é preciso. E os motivos que temos para abandonar a zona de conforto e nos jogar no mundo são diversos, especiais para cada indivíduo. Viajamos porque temos compromissos, porque queremos conhecer lugares e também a nós mesmos. Independente da motivação, todo viajante precisa de um lugar para ficar quando a noite chega, e foi dessa necessidade de abrigo de um jovem professor alemão, que surgiu o que hoje conhecemos por hostel. Em 1909, Robert Schirmann foi surpreendido por um tempestade durante uma saída de campo com seus alunos e o único refúgio que encontraram ao longo das estradas montanhosas do Vale

do Brol, na Alemanha, foi um escola. Três anos depois começou a funcionar em um castelo da cidade de Altena, o primeiro Hostel da Juventude. O objetivo era criar uma lugar onde estudantes do mundo todo pudessem se hospedar durante suas viagens de estudo, gastando pouco e conhecendo outras culturas. Se no passado o valor acessível era o que motivava os jovens a optarem por esse tipo de acomodação, hoje trocar o quarto privado de hotel por um coletivo com dez pessoas desconhecidas, deixou de ser uma questão somente financeira. Tratase de uma nova filosofia de viagem, baseada na troca, na mão estendida e na descoberta de novas formas de enxergar a si mesmo e ao outro. Fernanda Junkherr

Quando pensei em escrever sobre o assunto, uma coisa ficou evidente desde o primeiro momento: era preciso estar em um hostel. Em uma segunda-feira nublada em Porto Alegre, peguei um ônibus da zona norte até o Bom Fim, e pelas nove da manhã cheguei ao hostel do João Menezes Costa, que havia me atendido pelo Facebook e me recebeu de braços abertos. Já havia visto algumas fotos do lugar na Internet, e descoberto que, além da decoração moderna e convidativa, o Brick Hostel tinha uma das melhores notas no Hostel World - o maior site de reservas desse tipo de hospedagem do mundo. Entrei curiosa, e não foi difícil entender de onde vinha a nota 9.4 que vi no site. Sentamos para conversar na cozinha, onde os hóspedes se cruzam no café da manhã e começam a interagir. A primeira coisa que chama a atenção no lugar, e na maioria dos hostels pesquisados, é que apesar da tradução do nome para albergue, esses lugares não nos remetem ao Fernanda Junkherr

que a denominação costuma sugerir. Nada de bagunça ou improviso, tudo tem nome e lugar, e cada detalhe é pensado para ser funcional. Não há luxos, mesmo porque com eles, o preço acessível não seria possível. Mas há conforto e acolhida, e muita dedicação de quem administra tudo isso. O Brick existe há apenas um ano e meio, mas muito antes de se tornar um hostel, já era uma espécie de república familiar. O imóvel da Rua Cabral, sempre foi tratado como uma entidade, apelidado carinhosamente de “Cabral” e utilizado por toda a família. Setenta anos de muito uso e pouca reforma, resultaram na necessidade de uma profunda restauração, e a partir dela surgiu a ideia de abrir algo voltado ao turismo. Esse processo se deu de forma bastante natural, afinal, acolher nunca foi estranho para a família do João. Quando questionado sobre qual a melhor parte de administrar o novo negócio, a resposta é imediata: saber da história de vida dos outros. E não se trata de receber estrangeiros exóticos toda semana, mas das pessoas comuns, cada uma com suas particularidades. Diferente de um hotel onde cada hóspede se esconde atrás de uma porta, no hostel existe diálogo, convivência. “Aqui as pessoas têm problemas, tem gente que vem aqui pra desabafar”, conta João.


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Acervo pessoal

O olhar de quem se hospeda Diana Azeredo tem 26 anos. Formada em jornalismo, ficou em um hostel pela primeira vez em 2013, quando viajou para Manaus para participar de um congresso. Apesar de alguns receios, a necessidade de economizar e a curiosidade falaram mais alto, e no fim, a experiência foi ótima: o lugar tinha uma excelente infraestrutura, a comida não foi roubada da geladeira coletiva, tinha armários com chaves para deixar pertences de maior valor e até mesmo uma ninhada de gatos encantadora, além de ter possibilitado a ela conhecer muita gente legal. No ano seguinte, os hostels visitados foram em Lima, no Peru, e em Foz do Iguaçu e em 2015, foi a vez de conhecer os albergues de Joinville e do Rio de Janeiro. Na

primeira cidade, segundo ela, foi o ambiente mais soturno de todos os hostels que conheceu: quartos um pouco velhos e acarpetados. No entanto, não chegou a passar por nenhum perrengue nos cinco albergues em que esteve e atribui isso a próprio organização dos lugares e ao fato de os hóspedes geralmente serem pessoas mais aventureiras e respeitosas.

No Brasil: 700 Em Porto Alegre: 17 No Rio Grande do Sul: 40 Hostels no mundo: 33.000 Valor médio da cama por diária: R$40 Curiosidade: O site Hostel World, citado no texto, elege anualmente os melhores hostels em uma lista chamada Hoscars. Os 4 melhores hostels do mundo ficam em Lisboa, e os 3 melhores da América Latina no Brasil. Dica: A Hostelling International é uma das maiores redes de hostel no mundo e cobra R$30 pela carterinha HI Hostel que pode ser usada em todos os continentes e oferece desconto nas diárias e em diversos programas turísticos. Tem validade de um ano e é feita no site da rede.

Para ela, a melhor parte do hostel, além de economizar, é poder conhecer gente interessante. Uma antropóloga alemã, alguns cariosas, um casal de meninas, uma assistente social, alguns chilenos e uma mexicana são algumas das pessoas que ela encontrou em suas andanças, e que se tivesse ficado em um hotel tradicional, provavelmente não teria conhecido. Entre as dicas que deixa para quem tem vontade de se aventurar em um hostel, Diana sugere uma boa pesquisada dos lugares na internet, a companhia de alguém conhecido ou de um quarto privado na primeira vez, bem como informar a família da localização exata do lugar, e não levar objetos de valor se não for necessário. Por último, e talvez mais importante: evite criar expectativas, vá pela experiência. Afinal, lembranças nunca são demais.

Fernanda Junkherr fernanda_sz@hotmail.com.br


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“Depilar-se ou não, é fácil, difícil é amar a si mesma”

O ato de se amar

S

entada num banco da praça, conversava com algumas das, provavelmente, mais corajosas meninas que já conheci e vou conhecer. Admirava a fisionomia daquela simplicidade, daquela falta de. Falta de maquiagem, falta de roupas que sigam um padrão de moda, falta de preocupação com os padrões estéticos, falta de depilação. Tudo aquilo a que eu, e 99% das meninas que conheço, nos subordinamos a fazer todos os dias de nossas vidas, querendo ou não. Enquanto elas discursam sobre tudo que as levou até aquele momento, me dei por conta do que elas faziam ali: de alguma maneira, externalizavam toda insegurança do meu subjetivo de mulher. O meu subjetivo - e caso você seja mulher, o seu também - que, consciente ou inconscientemente, tanto sofre. Estas meninas, num - nem tão - determinado momento de suas vidas, optaram por deixar os pelos de seu corpo seguirem a sua naturalidade: crescer. Digo que não foi em um momento tão determinado, pois o processo não é fácil, não é rápido, não é simples. Ninguém acorda pela manhã e decide “hoje eu vou desconstruir padrões e mudar meu estilo de vida”.

Não. Tudo decorre de um processo lento e sofrido. A desconstrução é linda e necessária, mas também é dor. “O que as levou a esse processo?” foi uma das minhas primeiras perguntas. E ali que vi a tamanha coragem: tomaram esta atitude por elas. A razão do ato de bravura foi perceber que a depilação era feita para os outros. Que nós, mulheres, passamos horas de nossas vidas em função da depilação, da maquiagem, da roupa do fim de semana. E para quem fazemos isso? Você só se aprova quando se depila? Só gosta de si mesmo quando está depilada? Ou só é aprovada pelos outros quando está “lisinha”? Se tu, mulher, faz isso para ti mesma, que ótimo! Continue! Mas se faz isso pensando na aprovação alheia... Vamos seguir até onde estas meninas me levaram. Vamos rever esse conceito, culturalmente reproduzido, de que é natural e higiênico a mulher se depilar. A começar pelo extremo paradoxo de colocar natural e depilação na mesma sentença, sem um “não” no meio. Ora, vejamos: se os pelos crescem em todo ser humano de maneira natural, sem nenhuma interferência estética ou cosmética, concordamos que ter pelos é

Nicole Rieger

YASMIN D’AVILA

“Eu acredito na frase “amo a mulher que me tornei porque eu lutei muito para ser ela”. É mais fácil não se depilar, menos constrangedor, mas é necessário. Tem que ter alguém que tencione, ou sempre vão ser os mesmos padrões. É revolucionário amar teu corpo num sistema que, o tempo todo, diz que ele é nojento.”


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Nicole Rieger

MARÍLIA DANIEL

“É muito fácil tu falar sobre amar o seu corpo e amar a si mesmo compartilhando isso no Facebook. Mas a gente esquece que é um processo muito lento e que, embora a gente esteja aqui dando uma entrevista sobre isso, não quer dizer que semana que vem não vamos estar numa situação constrangedora repensando tudo. Sair todo dia como a gente é, é uma luta diária para manter teu pensamento no lugar.”

normal, certo? Concordamos que retirá-los é ir contra uma ordem natural de nossa espécie, não? Arrancar os pelos é, portanto, inverter uma ordem biológica do nosso organismo. E, como as meninas me abriram os olhos, ao dizer “se não se depilar é anti-higiênico, todo homem com pelo na axila é nojento”? Se você consegue compreender isto, já temos meio caminho andado na nossa desconstrução. Concordamos que a depilação não é o natural, mas é o usual. As meninas nos trouxeram até aqui. É cultural, é um padrão que, se pararmos para pensar, reproduzimos. É tão não natural quanto usar maquiagem, tão não natural quanto pintar o cabelo, tão não natural quanto uma make definitiva. Mas, calma. Ninguém está te obrigando a deixar os pelos crescerem e não usar mais lápis de olho, não. Estamos apenas tentando compreender que essas são mudanças que fazemos em nosso corpo, alterando o que é natural dele. Mas ninguém está dizendo que não pode. A grande questão - que embora grande, seja simples, e, embora simples, poucos compreendam - é que você tem liberdade de escolher. O seu corpo (olha a surpresa vindo) é sabe de quem? SEU!

Todinho seu. Vamos tentar introduzir um novo conceito em nossas vidas: a autonomia. Já jogou essa palavra no Google? A primeira definição que você encontra é “capacidade de governar-se pelos próprios meios”, vai lá checar. A autonomia é algo que nós, como seres humanos que convivem numa sociedade cheia de outros diversos seres humanos, precisamos compreender. O Feminismo e as mina de pelo natural vêm nos mostrar isso. “Não é porque você é feminista que você não pode se depilar”, elas deixaram claro. Temos que desconstruir até o próprio padrão da feminista desconstrutora de padrões. Há quem prefira ter a axila depilada, porque se sente melhor e não tem problema nisso, caso das meninas da praça. Há quem experimentou a não depilação e não se sentiu confortável e também não há problema nisso, caso das amigas das meninas da praça. Há quem não deixe de usar short e regata, porque não está depilada e, advinha, não tem problema também. Você não deve nada a ninguém. Você não deve aprovação a ninguém. Não precisa deixar de transar, porque tem uns pelinhos a mais. Não precisa detestar axila não depilada.


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Não precisa amar também. Não precisa parar de se depilar para apoiar. Não precisa nada. O que precisa é se sentir bem. Bem por si mesma, bem pelo o que você escolheu, por sua autonomia Quando você compreende a autonomia de seu corpo, compreende que ele é seu e você o governa, você se empodera. O empoderamento, embora lindo, não é fácil. Diante do nosso dia a dia, passamos por diversos rituais que nos impõem questionamentos, que nos impõem a insegurança. Desde a hora que levantamos e temos que escolher a roupa que vamos ir trabalhar até o momento de chegar cansada em casa, olhar a menina esteticamente ideal na novela da globo e a nossa cara sem maquiagem no espelho do banheiro. Nos amar, nos empoderar, em todos os momentos do dia não é fácil. Ouvi isso da boca dessas guerreiras. As dúvidas da insegurança transbordam do inconsciente, colocamos para fora tudo aquilo que não sabemos se é socialmente aceitável. “Não é todo dia que tu vai acordar é pensar ‘nossa, eu me amo’”, elas disseram. Mas frisaram que estes são os dias mais importantes, porque são os

dias que vamos ter convicção de quanto a autonomia é importante para o humano, em especial, quando esse humano é feminino. Todo questionamento intimista da mulher é árduo. Os aflitos transformam nossa mente, imposta a padrões, em um campo de batalha. E é normal cairmos. É normal nos sentirmos perdidas diante da enorme pressão de ser aceita num sistema que não te aceita. Qualquer feminista também se sente assim, com maior intensidade, por tanto saber que não deveria, que não precisa estar num padrão, que, quando sofre, julga a si mesma. A desconstrução é pesada e ela ocorre a todo momento. Se amar, com pelos ou sem pelos, não é fácil. Se amar mulher é mais difícil ainda. Se amar é uma tarefa árdua, desgastante e contínua. É, acima de tudo, uma luta diária. É como uma das entrevistadas me disse, arrepiando minha pele, o empoderamento se resume naquela frase clichê, muito ouvida e pouco escutada: “amar a si mesmo é um ato revolucionário”.

Nicole Rieger nicolerieger12@gmail.com

Nicole Rieger

JOICE MACHADO “Eu prezo muito pela importância da mulher entender que se depilar não é necessário para estar bonita ou atraente. Por ela ter consciência própria para escolher o que é melhor pra si, ao invés de só reproduzir um sistema de submissão aos padrões.”


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poetizar

lambendo os dedos A com as mãos comerei meu poema

velha fonte ser centenas de poemas nascidos e morridos na janela do bus

meu poema feito da folha seca mato areia corredeira que me corta o peito feito pedra d’água mastigada dentes dentro da palavra todo verso é um tempero meu poema feito de fome meu poema feito de como meu poema feito de húmus meu poema feito de dedos misturo na terra prato o barro escarro no pote o poema maduro esmago a carne é mole o fruto aperto o punho vozes escorrem meu poema feito da fome seca mata sede mesa cheia com as mãos comerei.

Fernando Ursáries kphernando@gmail.com

cinzento às vezes invejo os sempre felizes. só às vezes. depois passa.

conto sobre a sina ser engo lido pela linguagem.

rodízio (ou: road is you) mil sui cídios cada dia me sui cido todos dias

tez sendo tem o lance do olhar, distante. tem o lance dos olhões, também. e tem o lance de ser só um lance - vida é lance. lance é risco - traço nu desconhecido. (lã) (se) (tece)


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Aos olhos da sociedade, a rua é perigosa, mas acaba se tornando abrigo para quem perdeu o lar

Quando a rua vira morada

S

aí de casa destinada a encontrar um ninguém. Aquele que muitos trocam de lado da rua para fingir não ver o que está na lixeira da calçada catando alimento e sustento. Foi na lixeira que o avistei. Ele catava lixo, enquanto eu, o catava. Na rua, no final de tarde e início da noite. Em meio ao caos, o barulho das motos e carros de fundo cantavam a fadiga do trabalho. Aproximei-me do homem de pernas curtas e passos arrastados: “Tô na vida”, e começou a falar. Seu nome ele responde na ponta da língua: Antônio Manuel de Moraes, “o pessoal me chama de Moraeszinho”. Há seis anos está na

rua e explica o porquê: “Se não da certo com a família o cara se retira”, fala em sotaque puxado de quem veio da roça. Natural de Vale do Sol, Moraeszinho deixou os filhos, a mulher, a sua terrinha e hoje mora em um barraco entre os eucaliptos em frente a uma empresa de alimentos localizada na BR 471. O mendigo que nunca mendigou, prefere a rua como morada. A calçada, nem sempre está à margem de quem a vê de longe. Para seu Antônio, seu terreiro é grande, pode ser todas as ruas da Santa Cruz. Nos dias em que não vai dormir no albergue municipal, acorda com o cheiro de bolacha asPaula Turcatto

sada da fábrica Germani. “Lá no albergue não é ruim, mas sete horas, chove ou não chove o cara tem que sair”, eles fecham tudo, explica.

Eu junto minhas latinhas e sou feliz.

De chinelos que um dia foram brancos e unhas encardidas, ele troteia manco. “Hoje eu vendi duas cargas de material”, e me mostra com simplicidade dez pilas e mais uns níqueis no chão da calçada. “Cinco quilos, não dá muito só dez contos”, e assim ele vive pra boia: “Eu vou ali no mercado e compro um pedaço de morcilha, ‘mortandela’ ou um pão”. Me garante que nunca passou fome. “Eu sou encostado do INSS”. O céu, as árvores, os fios e o pôr do sol descendo sobre nós. Moraeszinho é do tamanho de uma criança de 12 anos. De regata e shortinho, as varizes pretas saltam na negritude de sua pele manchada. É cego de um olho, que dá medo de olhar. Enquanto ele coça, lágrimas escorrem: “Foi acidente de trabalho”, conta que uma lasca de lenha de motosserra o sentenciou a ver a vida

apenas do lado esquerdo. Moraeszinho, ‘graças a Deus’, nunca precisou roubar e “nem pedir nada para ninguém”. Se as pessoas têm bom coração, ele enche o bucho. Não se sente ofendido perante a sociedade “se mulher ou homem me der adeus, eu respondo, se não der, eu sigo quieto, não entico com ninguém”, e assim ele vai vivendo. Não se sente sozinho, “eu junto minhas latinhas e sou feliz”. Dentro das sacolinhas, carrega um quilo de feijão cozido para um amigo e uns peixes fritos de aperitivo. Conta engolindo a saliva que, o resto da comida, ele deixa guardado na praça da Cohab – bairro de Santa Cruz do Sul. Ninguém mexe nas suas coisas. “Ontem eu ganhei um ranchinho”, diz faceiro; “panela eu não tenho”. Para cozinhar, usa lata de ervilhas. Afirma de pés juntos que sua vida é boa. “Até hoje eu nunca me arrependi de ter vindo pra rua” e sonha um sonho simples, o de viver sua vida catando latinhas sem incomodar ninguém.

Paula Cristina Turcatto paulacristina@mx2.unisc.br


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A natureza humana pode ser delimitada em poucas definições ?

Precisamos falar sobre sexualidade

T

odos são iguais. Ao menos, é o que indica a Constituição de 1988. Ainda assim, não é difícil encontrar integrantes da comunidade LGBT (sigla que representa gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros) que se sentem outsiders, uma palavra que representa aquele que não se enquadra na sociedade. De fato não o fazem, ao menos em uma cultura centrada na heterossexualidade e rigidez de gênero. Décadas atrás, porém, eles talvez se descrevessem como rejeitados ou até mesmo criminosos perante a lei. Ainda o são, em diversos países. Mas é impossível negar que, embora lentamente, a sociedade tem repensado sua relação com a sexualidade. Ao dar nome à homossexualidade, heterossexualidade e outras orientações sexuais, o século XIX ocasionou a hierarquização sexual. Ou seja, a atribuição de valores diferentes às formas de expressão sexual humana, que tornou a heterossexualidade o padrão a ser seguido. Com a sexualidade transformada em parte central da identidade, quem você gosta de beijar passou a determinar a

sua personalidade e o modo como a sociedade o vê. A chamada Revolução Sexual, que teve início no mundo ocidental na década de 60, foi responsável por trazer para o debate público as questões de diversidade sexual e gênero, antes tabus. Hoje, se declarar parte da comunidade LGBT não produz o mesmo estigma que há 50 anos. Exclusas, claro, as questões religiosas.

Quem você gosta de beijar passou a determinar também a sua personalidade e o modo como a sociedade o vê.

Essa maior liberdade sexual também alterou a forma como as pessoas têm se relacionado com a própria sexualidade. “Eu não coloco um rótulo mais a fundo. Acho que tudo envolve e aos poucos flui”, declara Rafael*, um jovem gaúcho de 20 anos, sobre a sua sexualidade. Apesar de tudo, ele sofreu até se aceitar: “Procurei várias igrejas, fui até mórmon. Pensava que era errado e queria me livrar

daquilo”. Encontrou no espiritismo, aos 16 anos, sua aceitação, e, com ela, logo veio o primeiro beijo. Hoje, vê toda expressão sexual como uma construção. “É complicado determinar até onde a tua sexualidade é fluída. Até onde ela vai ou não vai. São descobertas que fazemos”. Já Amanda*, também de 20 anos, beijou uma menina por curiosidade. Sempre havia se considerado heterossexual, mas “Por que não?”. Hoje, se relaciona com ambos os sexos. Ao contrário de Rafael, não precisou enfrentar preceitos religiosos para explorar sua sexualidade. “Sempre tive amigos LGBT e sempre entendi toda

forma de expressão sexual como legítima”. Amanda representa a juventude que se sente mais liberta para explorar seu eu, enquanto Rafael mostra que toda atitude humana é, de alguma forma, condicionada pelo seu meio. Ambos, entretanto, contam histórias de desconformidade de quem, por vezes, é esquecido em meio a tantos enquadramentos e necessidades de delimitar. * Os nomes foram trocados para presevar a identidade das fontes.

Stephanie Severo stephaniessevero@gmail.com Stephanie Severo


28 Mergulhados em segredos, swingers buscam se realizar sexualmente e ficam à margem da sociedade

Casal procura sexo com discrição

S

exo, desejo, tentação, perversidade. Traição. Estes são alguns dos primeiros pensamentos da maioria das pessoas ao se deparar com a palavra ‘swing’, ou ‘troca de casais’. Apesar de ser uma das práticas sexuais mais antigas da humanidade, ela divide opiniões, fazendo com que seus apreciadores vivam em uma realidade paralela, imersos em mistério, segredos e sensualidade.

Na busca de fontes para a reportagem ficou claro que, além do desejo sexual, os frequentadores convidados possuem características marcantes em comum: a discrição e o receio em falar sobre o assunto. Foram 23 casais contatados. Apenas um, encontrado em um mural de recados no site de uma casa de swing de Porto Alegre, aceitou expor sua vida pessoal e o sigiloso mundo da troca.

Ao longo da entrevista, feita por e-mail, o casal se mostrou disposto, respondendo a diversas curiosidades e itens que despertam atenção de muitos. No entanto, algumas perguntas foram silenciosamente ignoradas. Questões como o que muda na vida sexual, depois da prática do swing e se algum deles já havia ‘broxado’, ficaram sem respostas. Nunca saberemos. Naturais do Rio

Grande do Sul, o marido, de 33 anos, e a mulher, 31, utilizam o nome fictício CasalQuente e cultivam uma união estável há mais de seis anos. Adeptos à prática de swing há três, eles contam que frequentaram pela primeira vez apenas por curiosidade, mas na próxima visita estavam certos que queriam sexo sem se prender a pré-conceitos ou esteriótipos.

Fernando: Ciúmes e traição chegaram a passar pela cabeça de vocês quando decidiram frequentar as casas de swing? Como lidaram com isso? CasalQuente: Claro que sim. Tivemos uma situação de briga no mesmo dia que voltamos da casa. Minha mulher comentou que o um dos que estava fazendo sexo na cabine parecia muito bom de cama. Eu fiquei com ciúmes. Depois começamos a entender que só é traição se o casal não aceitar que o parceiro possa matar os desejos sexuais e continuar amando

o companheiro. F: Como é o sexo nas casas de swing? Existe o papai e mamãe ou todas as transas são com posições mais quentes? CQ: O que está em jogo é o prazer, pouco importa a posição. Mas, especialmente na casa, as pessoas vão em busca de algo diferente. Então as posições variam muito. O papai e mamãe não tem muita vez. “Os frequentadores são normais. Iguais às pessoas que transam entre quatro paredes. Ninguém fala, mas pode ser [adepto à prática] o padeiro, a profes-

sora, o enfermeiro, a vendedora... Geralmente é um público com uma faixa etária acima dos 25 anos e com condição econômica mais alta, mas qualquer um pode ir. As pessoas têm uma imagem muito suja sobre o lugar, sobre a prática e sobre quem vai, mas não é bem assim”.

vidros ou umas cabines abertas, onde pessoas podem assistir. F: Como o swing acontece? O casal simplesmente chega ao local e outros casais convidam pro sexo ou é um trabalho de conquista? CQ: Ah, já aconteceu da gente chegar na casa e ser chamado por um casal, por alguma mulher sozinha ou por um cara, mas tem o lance de observar e conquistar o casal desejado. Geralmente chegamos, bebemos algo e ficamos observando as pessoas em

F: Como é o interior das casas de swing? Possuem quartos pra fazer sexo ou o ato é feito na frente de todos? CQ: Depende. Tem quartos fechados, mas algumas também têm quartos com


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volta. Nessa hora rola a troca de olhares, insinuações, sinais com a língua, carícias, mãos passando no meio das pernas... Essa é a melhor parte! Se a química rolar, a gente fica muito excitado e vai se aproximan-

do. Às vezes tem conversa e às vezes não. Quando vemos, os dois casais estão se acariciando e decidindo em que local transaremos. “As pessoas julgam sem saber como é. Por isso que tratamos com tanto segre-

do. Ninguém sabe quem somos. Essa discrição toda é muito séria. Nas primeiras vezes, ficamos meio assustados, porque parecia uma sociedade secreta. Mas depois de tentar falar pra uns amigos e ouvir “que puta-

ria, gente que trai nesses lugares não tem respeito mesmo”, percebemos que o swing é um submundo pra maioria das pessoas.”

Fernando Uhlmann nandouhlmann@icloud.com Javier Pais

história Apesar de haver controvérsias, os primeiros relatos históricos relacionados à prática aparecem no período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), descritos no livro Lifestyle: A Look at the Erotic Rites of Swingers, de Terry Gould, publicado em 1999. Já para a imprensa, a cultura swinger começou a surgir na década de 50, realizada por casais da Califórnia. E foi apelidada de Troca de Esposas, com relação direta aos chamados Clubes da Chave, nos quais homens depositavam

suas chaves no centro de uma mesa e convidavam suas esposas para retirar uma chave aleatoriamente. Assim, o dono da chave seria o parceiro sexual da mulher por uma noite. Se já naquela época as informações sobre o swing eram tratadas como tabu e a prática mantida em clubes secretos, hoje não é diferente. Em Porto Alegre, a 156 km de distância de Santa Cruz do Sul, há pelo menos quatro casas que são específicas para a prática. Além de outros estabelecimentos que

organizam frequentemente uma data para realizar o swing. Ainda que encontrados facilmente pela internet, a maioria dos clubes não possui placas, nomes evidentes, outdoors ou qualquer informação que possa levar a certeza de que aquele local é uma casa de swing. Uma das únicas informações que distingue as casas de prática livre das demais - que trazem eventos tradicionais -, são alguns detalhes sigilosos, informados nos sites ou no contato direto com a empresa.


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De geração em geração, os Youtubers fazem grande sucesso nas redes com seus vídeos e estilos de vida alternativos

os Youtubers chegaram para ficar

O

mundo sempre presenciou atitudes e estilo de vida à margem do seu atual costume. Não é de hoje essa maneira alternativa de viver e de se comportar de forma diferente. A aceitação nos dias atuais é maior que antigamente, que, por deixarem os costumes de lado, algumas pessoas eram criticadas. Exemplos clássicos de marginais que vivem acerca da contracultura são os punks e também os hippies, principalmente da época do festival de Woodstock em 1969. Essa característica se dá, principalmente, pelo estilo de roupa, comportamento e vivência, além das críticas às guerras e ao consumismo. Sem esquecer,

claro, das célebres frases, como ‘paz e amor’ e ‘proíbam a bomba’. O tempo mudou, os contraculturas também. Agora, eles vivem na frente das câmeras, com luzes, equipamentos e, às vezes, uma equipe. Sim, equipe. O processo é rápido, assim como a fama. Hoje, quem chama a atenção é a ‘geração dos Youtubers’. Muitos deixaram de seguir um caminho considerado comum: faculdade, encontrar um emprego, seguir o destino já imaginado pelos pais, para, dessa forma, se dedicarem a produzir vídeos para pessoas desconhecidas. Com o alto número de inscritos, a publicidade vem lado a lado. Cresce, também,

tudo de forma conjunta, os números na conta bancária. Tudo rápido e eficiente, diferente de uma rotina que estamos acostumados e pertence à maioria das pessoas. A galera que tem canal no Youtube para produzir seu próprio conteúdo, e, claro, mostrar um estilo de vida diferente que cresce nos últimos anos. A variedade de canais hoje em dia é grande e, por isso, vamos citar alguns exemplos. O ‘Canal Nostalgia’ é um enorme sucesso nas redes, pois busca reviver períodos gloriosos que a juventude atual teve na infância. Quem não se recorda das longas jogatinas do Super Nintendo? E as temporadas de Pokémon e Dragon Ball Z na TV Glo-

binho? É através desses conteúdos antigos e da nostalgia que eles provocam, que percebemos o quanto estamos velhos... Outro exemplo é o ‘Canal Boom’, onde os integrantes, da cidade de Maringá, no Paraná, realizam pegadinhas com desconhecidos, no mesmo estilo do programa ‘Topa Tudo por Dinheiro’, de Silvio Santos. Além dos testes sociais, o canal ainda cria situações para ver se ocorre discriminação e/ou preconceito.. POSSIBILIDADES É esse grande estilo de vida e, consequentemente, o sucesso por ele provocado, que tem atraído inúmeFotos: Acervo Pessoal/ Canal LéoZAUM


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ras pessoas a criar um canal com conteúdo próprio. Esse trabalho alternativo motivou o ator e modelo Roberto Monteiro, 20 anos, a seguir esse caminho , principalmente pelas ideias que tinha e pela vontade de trazê-las para o ‘real’. O jovem ator começou a mexer com edições no Youtube em meados de 2008 e, nesse tempo, havia vários canais separados no site, um para cada tema, o que dava mais trabalho na hora de gerenciar os conteúdos. Em 2014, Roberto criou o canal ‘Mission Complete’, onde reúne diversos tipos de assuntos, todos a respeito de seu gosto pessoal. As ideias e produções surgiram através de alguns temas, como os chamados

‘Youtubers Poopers’, onde algum conteúdo de novela, seriado ou desenho é modificado por meio de montagens e sons divertidos. Assim, a cena que deveria ser séria ou chocante, acaba se tornando engraçada. O canal criado por Roberto fala sobre cosplayers (onde uma pessoa se fantasia de algum personagem que goste) e também realiza as redublagens, onde um fã dubla algum personagem de seu interesse. O youtuber destaca que produzir conteúdos para um canal é muito trabalhoso e dependendo do assunto, é preciso um vídeo por semana. No tempo livre, concentrado nos fins de semana, o ator produz cenários, edições e roteiros.

AJUDA EXTRA Os canais do Youtube podem ajudar no meio acadêmico e no profissional. É o caso do estudante de Engenharia Mecânica Tarcísio Gelaim, 22 anos, que acompanha o canal ‘Doutor Carro’. Este tem como objetivo ensinar técnicas de manutenção automotiva, seja para proprietários, profissionais da área ou mesmo curiosos. Segundo Tarcísio, a produção do canal é feita de acordo com a necessidade de conteúdos extras ,além do interesse pessoal em automóveis que surgiu com o passar dos anos. Os conteúdos produzidos ajudam a enxergar de forma prática os desafios presentes nas engenharias, principalmente a mecânica. É interessante ver a evolução e o desenvolvimento dos inúmeros canais do Youtube. O melhor é que eles ajudam em atividade dos seguidores e influenciam, de alguma maneira, o cotidiano e a opinião das pessoas. A geração dos Youtubers chegou para ficar.

Além disso, ele relata que há projetos para o futuro do canal e que um deles já está em execução: a criação da versão brasileira de uma série americana de humor, produzida e criada desde o zero pelos fãs. INTERAÇÃO Estudante de Relações Públicas, Leonardo Sommer, 19 anos, criou o canal ‘LéoZAUM’. Com o nome cheio de estilo, a ideia do canal era fazer ‘gameplay’, com videos ajudando o jogador a passar uma fase de um certo jogo ou desvendar algum código existente. Além disso, o acadêmico passou a se dedicar também às gravações sobre hardware. O canal foi criado em 2012 e tem por objetivo a interação, além da troca de conhecimentos entre Leonardo e os inscritos. A experiência o ajudou a ser uma pessoa mais observadora, contribuindo, assim, para o desenvolvimento das técnicas de edição. Além de ser produtor, o acadêmico passou, também, a ser ouvinte. Diferente do que se pode imaginar, Leonardo jamais sofreu algum tipo de preconceito por estar inserido nesse meio social, onde as opiniões são ditas, muitas vezes, sem serem ‘filtradas’.

Yuri Vassallo yurivassallo@hotmail.com


32 Se, por um lado, não existem mais correntes e senzalas, por outro, as condições indignas vividas por trabalhadores são considerados trabalho escravo contemporâneo

RETRATOS DA ESCRAVIDÃO

M

eu caminho cruza com ‘Seu’ Pedro em uma tarde abafada. De Santa Cruz do Sul viajamos pela BR-471 até o interior de Rio Pardo. Pedro Haas Lacerda, de 67 anos, mora no vilarejo de Volta Grande. Desci do carro antes do repórter fotográfico Cesar Lopes, em direção à casa branca, construída com tijolos e uma porta azul.

Como não tem telefone, chegamos de surpresa. O convite para entrar veio em seguida. Pedro aproximou-se do portão em passos lentos. Vestia camiseta vermelha e uma bermuda jeans dobrada. Na cabeça, boné branco – que logo é descartado. Nos pés, um chinelo azul-marinho preso por um prego nas tiras. Mas capricho mesmo é com a barba: rala e

bigode bem aparado. Homem de cabelos grisalhos, dentes amarelados, olhar profundo. Dono de um corpo minguado com pouco mais de um metro e cinquenta de altura. É bom na enxada, pá, foice e machado. Tem as mãos calejadas pelo trabalho forçado, árduo e exaustivo. O idoso foi descoberto por uma assistente social

de Rio Pardo, em situação análoga à de escravo. Por 29 anos, ‘Seu’ Pedro trabalhou em uma fazenda especializada na criação de bovinos para corte. Montado em um cavalo, percorreria 105 hectares para cuidar de oitenta cabeças de gado. Roçava o mato, limpava o celeiro, auxiliava na plantação e consertava as cercas de arame da propriedade, muitas veCesar Lopes


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zes debaixo de chuva e calor escaldante. ‘Seu’ Pedro enfrentava o mês com apenas R$ 30, quando recebia alguma coisa. Viu seu esforço diário trocado por um quilo de arroz, outro de feijão, café, um pouco de farinha de trigo, azeite e ossada de galinha – aquelas partes geralmente descartadas das refeições, como as patas, o pescoço e a cabeça do bicho. Na casa em que ‘Seu’ Pedro vivia não tinha paredes, o teto tinha risco de desabar e o piso era de chão batido. Ele sequer possuía geladeira. Ainda que tivesse, não poderia utilizar por conta da falta de energia elétrica. Os alimentos ficavam expostos à fumaça, à sujeira e aos insetos. Não havia água encanada, tampouco de poço. Enquanto a chuva não chegava, ‘Seu’ Pedro compartilhava a água do córrego com os animais da propriedade rural. Com a mesma água que se banhava, lavava roupa e preparava sua ração diária. A cama era improvisada com tábuas, tijolos, pedaços de papelão e uma fina espuma de colchão. Em dias de chuva, era preciso se cobrir com partes de uma lona transparente. O patrão de ‘Seu’ Pedro negou a existência de qual-

quer vínculo empregatício. Mas o Grupo de Fiscalização, formado pelos auditores fiscais do Trabalho, pela Procuradora do Ministério Público do Trabalho e pelos policiais federais, constataram jornada exaustiva e condições degradantes no caso de Lacerda – o que, de acordo com o Art. 149 do Código Penal Brasileiro, caracteriza trabalho escravo contemporâneo. Nesses casos, a pena para o crime pode chegar a oito anos de reclusão e pagamento de multas. Por ser um trabalhador libertado, ‘Seu’ Pedro recebeu, por três meses, um segurodesemprego no valor de um salário mínimo. O Ministério Público do Trabalho e Previdência Social (MTPS) autuou o empregador. Foi preciso assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT). Uma decisão judicial obrigou o antigo patrão a pagar R$ 30 mil, por meio da compra de um imóvel, para compensar o dano moral. O dinheiro da indenização foi investido na compra da casa nova. Depois de quase sete décadas, ‘Seu’ Pedro passou a beber água tratada, tomar banho em chuveiro elétrico e conservar os alimentos em uma geladeira. Depois de 127

anos da abolição da escravatura no Brasil, Pedro é o ‘Retrato da Escravidão’. TRABALHO ESCRAVO ‘Retratos da Escravidão’ é um site que retrata o trabalho escravo no Brasil. Produzido pelo Portal Hipermídia, o projeto foi desenvolvido pelo estudante de Jornalismo Régis de Oliveira Júnior e pelo repórter fotográfico Cesar Lopes, que percorreram os municípios de Rio Pardo (RS) e Itabirito (MG), lugares onde trabalhadores foram resgatados em condições de escravidão. A plataforma conta com 22 infográficos, 26 vídeos e um documentário. Foi idealizado para se tornar referência em consulta na

área no Rio Grande do Sul, apresentando a história da escravidão no País, desde seu início até a atualidade. Entre as histórias publicadas no portal, está a de Pedro Haas. A orientação do material produzido foi da professora do curso de Comunicação Social Cristiane Lindemann. O documentário tem edição e roteiro da jornalista formada pela Unisc Évelyn Bartz. O aluno de Produção em Mídia Audiovisual Maicon Herdina foi o responsável pelas trilhas do portal. Andrew Gorzny, formado pela Universidade de York em Toronto, editou o site do ‘Retratos da Escravidão’.

Régis de Oliveira Júnior regisojr@gmail.com

O ESTADO NO MAPA DA ESCRAVIDÃO Se, por um lado, não existem mais correntes, senzalas e comercialização de negros, por outro, as condições indignas vividas por trabalhadores são tratadas pela Lei como ‘escravidão contemporânea’. A cada dia, mais de quatro pessoas são libertadas no país em situações de cerceamento de liberdade, servidão por dívida, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva. Desde 1995, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) libertou 972 trabalhadores em condições de trabalho análogas às de escravo, no Rio Grande do Sul. O município de Bom Jesus lidera a lista com maior número de vítimas aliciadas.


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A rotina do palhaço e do malabarista que encontraram nas ruas a realização pessoal e profissional

O SORRISO DO PALHAÇO

S

egunda-feira. Sete horas da manhã. Esquina das ruas Marechal Floriano e Júlio de Castilhos. É o início de mais uma semana. Ainda é relativamente cedo e o movimento de veículos e pedestres é tímido. Em frente ao Quiosque da Praça Getúlio Vargas, um camarim improvisado: um espelho fixo na placa de sinalização, uma mochila, tintas e bolinhas. Assim começa o dia do chileno Nelson Munhoz.

Figura conhecida no cotidiano dos santa-cruzenses, Nelson está no Brasil há cerca de dez anos onde se apresenta como artista de rua. Vestido de palhaço, encontrou muito mais que um espaço para sobreviver da sua arte, conquistou o respeito e o carinho de quem passa todos os dias por aquele percurso. Basta fechar a sinaleira e as crianças fazem a festa ao verem o palhaço e suas estripulias. Além da rotina diária de Dóris Konrad

seis horas de apresentações na sinaleira do Quiosque, Nelson se apresenta também em outras cidades da região e complementa a renda fazendo artesanato. Para ele, é possível sobreviver com o que recebe das pessoas que passam e assistem seus malabares. Ainda que a jornada de trabalho seja cansativa, a profissão o deixa realizado. Com um sotaque misturando português e espanhol, Nelson esbanja um sorriso largo ao falar da profissão: “Eu trabalho de palhaço e sou o cara mais feliz do mundo no que eu faço. O recebimento das pessoas é muito bom”. Ainda afirma: “Um sorriso vale mais do que mil malabares”. Um pouco mais adiante, entre as ruas Tenente Coronel Brito e Borges de Medeiros, cartola, colete e meias coloridas, ali encontramos Aladim se apresentando. O espetáculo dura entre 30, 45 e 60 segundos. Apenas o tempo que a sinaleira está fechada. Claves, bolinhas, arcos. O brilho nos olhos de Jonas Augusto Santos, 31 anos, deixa claro sua realização. Natural de Venâncio Aires, Jonas é conhecido como Aladim. Ele veio para Santa

Cruz há cerca de três anos, onde mora com a mãe e a tia. Mochileiro, com espírito aventureiro, foi na sinaleira que encontrou sua vocação, ou dom, como ele prefere chamar. Antes de se tornar artista de rua, Jonas chegou a trabalhar em empresas, mas em nenhuma delas conseguiu adquirir independência financeira, autonomia e realização. Foi com suas apresentações como artista de rua, que ele se realizou: “Ser artista de rua hoje é o meu ganha pão, é a minha vida. As pessoas estão muito tristes e me sinto gratificado em poder levar alegria e um sorriso para o dia delas”. Jonas sobrevive com o que ganha das apresentações que faz na cidade e região e, também, com o que recebe em eventos particulares em que é contratado. Segundo ele, o trabalho ainda é visto com bastante preconceito: “Eu trabalho na rua, mas não vivo na rua. As pessoas têm preconceito com isso, não veem o artista de rua como profissão. Acham que a gente é vagabundo, que não quer trabalhar. Parte disso, porque mui-


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tos artistas acabam sim se envolvendo com drogas e isso prejudica quem vive da cultura de rua e, consequentemente, faz com que a população receba essas atividades, com algum receio”. Segundo o que foi verificado pela reportagem, trabalham nas ruas de Santa Cruz do Sul cerca de 12 artistas. Mesmo que não seja uma profissão regulamentada, a prática é antiga. Embora a arte de rua não possua uma origem exata, sabe-se que na Grécia Antiga homens se apresentavam em público cantando e discursando versos. Com a Idade Média, as primeiras obras literárias, poemas, trovas, jograis e versos ganharam as ruas, e, paralelamente, a arte circense também se espalhava ao redor do mundo. Atualmente, as manifestações artísticas são muito comuns em ruas. Vão de cantores, dançarinos, artistas circenses, estátuas vivas até pintores, desenhistas, grafiteiros e artistas plásticos. Por aqui, nas ruas de Santa Cruz do Sul, basta o sinal vermelho fechar e lá vão Nelson e Jonas, em esquinas diferentes fazerem

Marieli Gomes

o que sabem de melhor: levar alegria. Em meio ao cotidiano atribulado de quem passa por eles, lá está o sorriso do palhaço e

o brilho nos olhos do malabarista refletindo a alegria de quem encontrou na arte de rua algo ainda mais importante que a garantia

do sustento: a felicidade e a realização pessoal.

Dóris Konrad dlkdoris@hotmail.com


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A corrida de aventura é repleta de desafios e um modo de encará-los é exercitado por uma família de Venâncio Aires

esporte de desafios

O

desafio de encarar ambientes inóspitos, onde talvez poucos seres humanos se arriscaram a cruzar, passar dias percorrendo trajetos por terra e água, descansar pouco e conviver com animais selvagens são alguns desafios da corrida de aventura e que, ao serem lidos por uma pessoa que não pratica esse esporte, talvez, cause uma certa aversão. Mas eles são o combustível de uma família aventureira de Venâncio Aires. Os integrantes e fundadores da equipe Papaventuras, Valmir e Rosemeri Schneider, praticam a corrida de aventura há muito tempo e passaram esse gosto pelo esporte às filhas Larissa e Lavínia. O grupo poderia ter escolhido participar de maratonas ou Reprodução/ Arquivo Pessoal

procurando desafios maiores, apostado em saltos de asa-delta, mas foi diferente. Eles optaram por passar dias embrenhados em matas fechadas, locais desconhecidos e enfrentando desafios, vivendo o espírito da corrida de aventura. Com um vasto histórico de competições e eventos organizados pelo interior de Venâncio Aires, Valmir Schneider considera a corrida de aventura um esporte de ensinamentos. Para ele, a modalidade é carregada de desafios, surpresas e, para superá-los, é necessário saber trabalhar em equipe. “Os praticantes passam dias dormindo pouco e comendo menos ainda, percorrendo rios, lagos e pântanos, subindo e descendo montanhas,

você precisa estar preparado para tudo. Isso é um reflexo da nossa vida e para superar os desafios é necessário trabalhar em equipe”, explica o atleta que divide seu dia com treinos, atenção à família e administra a sua empresa de transportes. A mulher é conhecida como um pilar familiar e na corrida de aventura não é diferente. Segundo Rosemeri, o seu compromisso na corrida de aventura é dar equilíbrio ao time. “Posso dizer que sou o cérebro, que vai com calma, analisando as coisas, dando um basta quando é necessário. Sou muito ponderada. Já fiz mais de 50 provas e nunca desisti de nenhuma. Eu vou na minha e me divirto”, explica a educadora física de 47 anos. A corrida de aventura

proporciona paisagens e histórias diversas. Valmir Schneider participou de dois Campeonatos Mundiais, na França e no Pantanal. Segundo ele, foram experiências únicas, onde aprendeu novas culturas e encarou desafios. “Em 2012, eu tive o prazer de disputar um Mundial na França e encarei terrenos que jamais havia visto. Aqui no Brasil, nós enfrentamos montanhas, lagos, matas fechadas e lá eu estava caminhando em montanhas de neve. O equipamento é completamente diferente para um evento deste. A prova foi fantástica, os Alpes são, com certeza, um lugar muito especial e de uma natureza imensa. A corrida de aventura é um mundo mágico e emocionante”, explica. Alirio de Castro/ Divulgação


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convívio com animais Enquanto muitas pessoas optam por conviver com o seu cachorro e gato, no quintal de casa, os praticantes de corrida de aventura se relacionam com animais menos dóceis. No Mundial, realizado no Pantanal, os praticantes se depararam com aves raras, insetos diferentes e outros ferozes. “Nossa equipe conseguiu superar todos os desafios, sempre com o sorriso no rosto e a certeza de que logo chegaríamos à meta final. Em dado momento, o Valmir foi testar as luzes e não funcionou nenhuma. Tinha um jacaré vindo em nossa direção e nós ali, desesperados. Ninguém sabe

o que é passar por isso. Sem luz, de madrugada, sozinhos, na margem do rio. Nós e os jacarés, mas somos mais fortes que eles e sobrevivemos”, brincou Rosemeri. Em outro momento, durante a madrugada, em um matagal fechado, ouvindo o barulho dos grilos, uma onça emite um rugido estridente. Apavorados, a única defesa do grupo foi agrupar e empunhar as lanternas. A estratégia deu certo, permitindo que Rosemeri e Valmir dessem continuidade ao Mundial e propagassem essa história com alegria no rosto.

PAIXÃO DE PAIS PARA FILHAs O amor pela corrida de aventura não morreu no coração dos pais, ele foi repassado à jovem Larissa Schneider, de 16 anos. Ela integra a Seleção Brasileira de orientação, carregando muitos ensinamentos dos pais. No início

Alexandre Ceppi/ Divulgação

do ano, a atleta representou o Brasil no Campeonato Mundial, em Portugal. A pequena Lavínia, 7 anos, já respira o esporte ao participar da equipe de apoio. Assim, com um sorriso e trasbordando felicidade em

cada palavra, a família Schneider encara a corrida de aventura como uma filosofia de vida. Além de levar para casa os seus ensinamentos, a viagem liderou o projeto de criação do Instituto Papaventuras, com o objetivo de

desenvolver campeonatos e corridas na cidade, para difundir o esporte na região de Venâncio Aires.

Daniel Heck dani.lheck@yahoo.com.br

Wladimir Togumi /Adventuremag


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A venâncio-airense preferiu ficar calada e, assim, não teve tratamento inicial para a doença

quando se tenta silenciar o grito de desespero

A

Fábio Goulart

quele ditado de “as aparências enganam” nunca esteve tão certo como nesse caso. O ‘grito’ de que algo estava errado soou dois meses antes de tudo, de fato, acontecer. O estresse era cada vez mais frequente, o ânimo para levantar da cama e ir trabalhar ou ver os amigos, ausente. Foram esses os primeiros sinais de alerta que a venâncio-airense Olívia*, na época com 20 anos, notou. Mas, apesar disso, sua vida seguiu. Na verdade, ela

precisava seguir. Antes de notar que estava no início de uma depressão, a jovem tinha um amor incondicional pela própria vida e por tudo que fazia parte dela. Porém, depois de algum tempo, tudo isso mudou. As dificuldades e os problemas passaram a ganhar maiores proporções e, com isso, a sensação de que nada iria melhorar passou a ser presença constante na rotina de Olívia. Então, o sentimento de frustração ganhou mais intensidade e a vontade de mudar o rumo da

vida foi, aos poucos, fracassando. A solução que antes não era cogitada, tornou-se a única. A ideia de tirar a própria vida ganhou força. Mesmo com todas as mudanças de comportamento e os pensamentos suicidas, a jovem nunca quis que ninguém soubesse que estava mal. A vergonha, talvez, tenha sido sua sombra, tornando tudo ainda mais difícil. A adolescente, que antes era festeira, com um sorriso estampado no rosto – daqueles que contagiam – foi se tornando cada vez mais insatisfeita. Como um copo que vai enchendo e está prestes a transbordar, como quem clama por ajuda, mesmo em silêncio, Olívia resolveu agir. Para ela, da forma mais corajosa e arriscada possível. Para os outros, da maneira mais mesquinha e egoísta que existe. Olívia decidiu, por fim, se suicidar. No entanto, ela não está sozinha e não é o único número nas estatísticas. Pelo contrário. Olívia é mais uma entre tantas pessoas que já tentaram ou cometeram suicídio no município. Os inúmeros casos já estamparam capas de revistas e de jornais impressos, destacando todos os motivos e porquês desse alto índice. Porém, até hoje, não há explicações. Além de fazer parte das estatísticas,

a jovem, que não imaginava isso, passou a viver à margem. Afinal, as pessoas que tentam tirar a própria vida passam a ser ‘excluídas’ do convívio social, mesmo que indiretamente, e recebem da mesma forma, olhares julgadores de quem não aceita a opção de cada um. A DECISÃO No dia em que tentou suicídio, Olívia teve vários desentendimentos e, assim, tudo que já estava ruim, só piorou. A jovem se incomodou no trabalho, brigou em casa, terminou com o então namorado e a autoestima, que já estava baixa, afundou. Com esse amontoado de coisas, o pensamento que rondava a cabeça de Olívia era único: acabar com aquele sofrimento. “Eu só queria morrer, não queria mais brigar com ninguém, tenho pavor de brigas.” A arma que até então estava guardada, quase escondida, ganhou utilidade. O DEPOIS Depois de dar o tiro, as pernas não eram mais sentidas. Foi imediato. Mesmo assim, Olívia ficou lúcida o tempo inteiro e, ainda que com dor, acompanhou tudo a sua volta. A primeira pessoa a encontrar Olívia foi a mãe. “Me lembro quando ela


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abriu a porta e me viu sangrando, com a arma na mão. Ela entrou em desespero e começou a gritar muito.” Em seguida, foi o pai que entrou gritando, desesperado, chamando pela filha. Depois da ação, a jovem passou dez dias na UTI do Hospital São Sebastião Mártir, em Venâncio Aires. Ao sair de lá e ir para o quarto, a surpresa inesperada: muitas visitas. E essas, sem olhares

julgadores, sem comentários maldosos, sem dedos para apontar em argumentos cínicos para oferecer. Apenas compreensão, amor e proteção. Mas, infelizmente, nem todas as pessoas foram assim. Olívia, que já havia passado por tantos momentos difíceis, precisou, mais uma vez, arrumar forças para seguir em frente e encarar de cabeça erguida os comen-

tários que viriam a seguir. E não foram poucos. Após um ano e cinco meses da tentativa, Olívia aprendeu a lidar com as pessoas e seus julgamentos. “Hoje até faço piada quando alguém fala algo, pois tenho pena dela e não de mim.” Parece exagero, mas essa foi a forma que a jovem encontrou para seguir em frente e superar os traumas. Ver o lado positivo de uma atitu-

de questionada por muitos, foi o que deu a ela coragem para continuar vivendo e aprender com erros e atitudes cometidas antes de tudo ocorrer.

* O nome foi trocado para presevar a identidade da fonte.

Mônica da Cruz monicacruz1@mx2.unisc.br Fábio Goulart

agora “Temos que cuidar mais de nós, da nossa saúde.” Com a correria do dia a dia, Olívia, assim como muitos de nós, havia esquecido de olhar para si mesma e tirar um tempo para, apenas, respirar. Como ela bem destaca, queremos fazer tudo e sermos os melhores sempre, 24 horas por dia. Porém, isso faz mal, em todos os sentidos, e vai deixando as pessoas mais doentes. Assim, surge a sobrecarga, física e emocional.

Foi isso que ocorreu com Olívia. O ano de 2015 não foi fácil, especialmente com a culpa sempre se fazendo presente. Entretanto, esse foi mais um ano de aceitação e de retomar novamente o fôlego de vida. “Reaprendi a viver. Agora me sinto bem, aprendi com as minhas dificuldades.” O acompanhamento psicológico começou, talvez um tanto tarde, mas fez com que ela percebesse a necessidade de sempre estar atenta às próprias mudanças.

A jovem venceu os julgamentos, o medo e a culpa. A vontade de superar os próprios limites falou sempre mais alto. Essa – nova – vida vem cheia de lições e ensinamentos para uma Olívia que continua a mesma de antes, só que “sentadinha”, como ela mesma descreve. Mas, acima de tudo, muito mais humana, já que aprendeu na própria pele o que a maioria das pessoas desconhece: só se percebe o problema quando se passa por ele.



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