Sexta pele

Page 1

Sexta Pele Adan Costa



Apresentação A Construção do trabalho dar-se-á por meio da fricção das cinco peles do artista, imbuído de discursos políticos, de memória e plásticos, que vem se desenvolvendo no decorrer dos últimos cinco anos, vai buscar nas possibilidades expressivas que atravessam a fotografia, a performance, a construção de pequenas instalações, e trabalhos mistos, a finalização ou não do trabalho, por entendê-los também como processos. São referências do artista, a filosofia das cinco peles de Hundertwasser, a fragmentação e a efemeridade do discurso em Bauman, a tensão e a ritualística na construção de performances em Richard Schechner e Renato Cohen, assim como referenciais antropológicos, sociológicos, de história da arte e de vivências.

PROJETO PREMIADO NO PROGRAMA SEIVA DE INCENTIVO À ARTE E CULTURA DA FUNDAÇÃO CULTURAL DO ESTADO DO PARÁ - 2015



Por que o Corpo, Ou o Corpo como suporte. A arte é a expressão da corporeidade.Para James Elkins, crítico e historiador de Arte norteamericano, “toda imagem é a imagem de um corpo, e a linguagem de uma obra de arte é silenciosa porque, de certa forma, a obra já é um pensamento que se tornou matéria” (ELKINS apud AMORIM, Claudia, 2010, p. 17). O corpo é o limite entre o artista e o mundo, quando não, é a simbiose dos dois, porque “não tendo uma função clara, pode-se entender a arte como uma estratégia de sobrevivência que abre canais e estreita a relação do corpo com o ambiente, muitas vezes, tornando-os um só” (AMORIM, 2010, p. 14). O corpo é a única obra que é de nossa inteira propriedade. É com ele e através dele que nos atamos à vida e nos expressamos em arte. A linha limítrofe entre o existir e o pensar é o que o corpo produz e codifica, transfigurando a ideia em expressão, comunicação e sentido, ressignificando-a para posterior deleite. É ele que nos dá acesso à materialidade ou não da arte, visto que é ele que dá direcionamento à decodificação do conceitual. Se não houvesse a corporificação, estaríamos fadados a uma abstração a qual nos impediria de estabelecer a intercomunicação. A arte é vida em via de mão-dupla: corpo - razão; corpo - comunicação; corpo - imaterialidade; corpo - metáfora.Ainda de acordo com Amorim, É o corpo o veículo e a escala da arte. É o que somos e o que temos. Quando nos libertamos da dualidade “corpo e mente”, podemos compreender as verdadeiras correspondências entre ação e pensamento (AMORIM, 2010, p. 19). Christine Greiner confirma essa tese dual (corporeidade x espiritualidade) quando diz que “é a partir da construção de metáforas que o corpo se relaciona com o mundo e consigo mesmo, estabelecendo processos diversos de comunicação e em níveis diferentes” (GREINER, 2010, p. 128). E é a partir dessa construção metafórica com o ambiente que há o acionamento de nosso sistema sensório-motor, o homem em ação, estabelecendo inúmeras válvulas de abrir e de fechar, de compor e de decompor, “de fazer ou desfazer o que foi conceituado antes, instaurando novas possibilidades de pensar e mover: corpo, ideias e mundo” (GREINER, 2010, p. 129). O corpo é o limite do estar em sintonia, do manter-se em conexão com a vida e com suas interferências, seus obstáculos e suas intersecções. É o corpo que lança a metaforização do existir através (também) da arte, e é a arte que corporifica os conceitos, os sonhos e o imaginário, a memória e a história presente e pretérita.


“Quanto mais o adulto está empenhado na vida prática, tanto mais aguda é a distinção que faz entre fantasia e realidade, e tanto mais esta é valorizada em detrimento daquela.” Ecléa Bosi, 1994, p 58.


o corpo, os signos e a memória

9 de junho sempre foi uma data celebrada em casa, juntavam-se as festas dos santos juninos, o aniversário de minha avó materna e de meu irmão mais novo, 9 de junho representava reunir a família em torno de uma mesa, repleta de coisas gostosas, de reencontrar os primos, de correr pela casa lotada, de rir das histórias contadas pelos tios e tias, e é claro, por esperar Dona Júlia, repartir com uma paciência quase budista, a sua famosa torta salgada de frango. Esses últimos anos, tem sido povoados por uma mistura de saudade e de esperança, saudade porque ela nos deixou depois de longos sete anos lutando com todas as forças que tinha contra um câncer, que destruiu nossa família inteira, porque acompanhávamos o seu sofrimento em não podíamos fazer nada, a não ser esperar, esperança, por crer que ela hoje esteja em um lugar melhor, sem sofrimentos nem dores. Minha avó sempre teve no decorrer de seus 77 anos de vida, pessoas que a acompanharam, seja para ajudá-la e se locomover pela cidade, ou mesmo para ajudar a carregar as inúmeras sacolas da feira, ela pouco letrada, nordestina, mãe de 14 filhos, nunca se deixou trapacear, com uma habilidade matemática de meter medo em qualquer economista, ela geria a casa com mão de ferro, sem luxos, tudo era muito simples, tudo era na medida certa. Em abril de 2015, fez três anos de sua partida, quando moleque, eu à acompanhei por longos anos, em suas andanças, viagens, negociações, aprendi a ter paciência, a esperar a hora certa das coisas, a compartilhar minhas coisas com as pessoas que tem menos, a fazer economias, e sobretudo valorizar as coisas que tenho. Me despedi dela, beijando sua testa fria, seu corpo coberto de flores, queria ter feito tanto, queria ter ficado mais tempo ao seu lado, quando a doença se asseverou, eu me recusava a vê-la definhando, me recusa a ver aquela mulher tão forte, tão ativa, com quem convivi por anos, a um ser imóvel, mudo, repousado sobre uma cama a meia luz, coberta por um mosquiteiro cor de rosa, ela até seus últimos segundos esteve na casa que ajudou a construir, e onde educou filhos, netos e bisnetos, a casa era como coração de mãe. Dedico à sua memória, o trabalho 9 de junho, divido em dois movimentos, o primeiro com cartas, o segundo com fotografias.


cartas s찾o poemas que se p천em a deriva, encalham nos escombros da saudade


9 de junho - movimento um


Ficha TĂŠcnica Performer: Adan Costa Registro FotogrĂĄfico: Rodrigo Barata Registro em Video: Rodrigo Barata

Expografia


9 de junho - movimento um



9 de junho - movimento dois


Toda fotografia é um “crime espectral” – cada exposição à câmera nos rouba uma das camadas espectrais que compõem o nosso ser. A cada fotografia morremos um pouco. (Balzac, XIX).


9 de junho - movimento dois ... entre memórias, saudades, louvores, perdas e lanhos, suturas, fissuras... ... entre territórios ausentes, linhas tênues costuram a imagem do passado (etérea em sua essência, diáfana, além da materialidade) na derme (o corpo é o suporte da arte, da dor, do louvor). Na pele onde singram vagas de recordações; sangra por danos irremediáveis; sua por uma espécie de assimilação amorosa, uma marca pretérita no corpo presente, no peito futuro... A performance “9 de Junho” é uma experiência corpórea de lirismo e simbiose; de loa e de limites entre corpo e espírito. É a forma com que o artista Adan Costa pôde expressar a ausência, fazendo-a presentificada e autentificada na pele, num alinhavo de imagens de sua avó, conformando, com isso, a marca da figura amada em seu corpo, como se ambos fossem um, uma unicidade de dois em amoroso encontro, lírica costura de perenidade e efemeridade, como se esse paradoxo, por si só, coubesse na proposta de suturar-se para perpetuar-se; alinhavar amor em derme e sangue; imprimir no corpo a presença indefectível da ausência... A performance é o local da arte em que as expressões da corporeidade são plenas de atitudes, de reverberações, de ruídos, de contrastes, de recados de amor e de saudade. O corpo se doa à causa de resguardar o abstrato, um frame, uma foto,


Ficha TĂŠcnica Performer: Adan Costa Registro FotogrĂĄfico: Rodrigo Barata Registro em Video: Rodrigo Barata

Expografia


9 de junho - movimento dois




14 de marรงo - movimento um


“Art. 64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo: IV – homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes”. Portaria 2712, de 12/11/2013 do Ministério da Saúde”.


14 de março - movimento um

“Meu nome é Adan Costa, tenho 27 anos, Desde os 18, me relaciono com homens, Por muito tempo me senti sujo, Talvez por tem um pai militar e uma mãe machista, No ultimo carnaval tive um problema dentário, E fui a um posto me tratar Lá, encontrei corredores com dezenas de corpos empilhados Passado o tratamento, fui doar sangue Chegando lá a resposta é muito simples INTERDITADO REJEITADO PELO ORGÃO. Meu sangue é jogado no vazio”.

Uma performance sob judicial interdito, com um sentimento de civil liberdade. Esses são ingredientes paradoxais da arte. Ideias que divergem, mas extrapolam os polos e se direcionam a uma eternização da dor convergentemente. Quem prescinde de sangue, leva ao oferecimento desse sangue aos que somentecarecem, ou ao descarte. Objetiva, tensa, poética, metrificada, em diálogo com os discursos urgentes de gênero e de sexualidade é a performance “14 de Março”. Sangue rejeitado pelo órgão é vertido em arte na galeria. Sangue interditado é adorado em ritual na galeria. A sensação que fica depois de assistir à performance de Adan Costa é de susto, suspensão, como se alguém por nós estivesse dando o real grito de desgosto, como se por nossas bocas saíssem todas as nossas particulares interdições, como se nosso caráter dependesse de orientações, ou nosso sangue de purificação e catarse. De interditos, censuras, dejetos, descartes, partidas e de muito desencantamento com as instituições: esse é o rol, a essência com a qual Costa nos leva à unção. Unto-me de espanto; unto-me de loas e de gritos silenciosos pelos que nada podem ser, se não rejeitados.


Ficha Técnica Performer: Adan Costa Registro Fotográfico: Fabiola Tenório, Matheus Monteiro, Rodrigo Barata, Registro em Video: Meg Dias e Lara Mindelo

Expografia


14 de marรงo- movimento um



a casa que me mora


Em nome da tua ausĂŞncia ConstruĂ­ com loucura Uma grande casa branca E ao longo das paredes te chorei... Sophia de Mello Breyner Andresen


A Casa que me mora

Flerte com as fugidias e etéreas folhas brancas, partituras brancas, vozes brancas, brancura total para tamanha dor branca, dor silente, dor de um grito antigo, inaudível, abafado, interditado, grito de gênero, de questão de gênero, de uma sexualidade não binária... Adan Costa, com sua performance “A Casa que me Mora”, entrega-se à insânia, à possessão, à onírica imagem de dores paridas num entrelugar, uma casa branca, com paredes brancas, onde se chora arte, se chora pelo outro, se chora e se pranteia os desconsertos do mundo, do amor, da poesia, da bestialidade do sofrimento. Arte com cristalinidade, com névoas, com espumas brancas do mar salgado das lágrimas, com nuvens, neve, nódoa, nimbus... arte convertida semioticamente, é o poema performatizado, ou a performance em estado de poesia, ou ambos ao mesmo tempo buscando o seu local branco no devaneio de um tiro. A Casa que me Mora é a casa de todos os que moram e desmoram, habitam e desabitam, gritam dores e desgritam... corporeidade, símbolo, signo, desconvenções, saudades, sumos, lágrimas, litros delas, brancas e multifones... AdanCosta é de uma brancura nada higiênica, numa espécie de libela contra a alvura, a favor da multiplicidade de cores e marcas e fissuras, fronteiras, flancos e esfumaçadas imagens... A casa não nos mora, nós somos a casa, brancos e silentes...


Ficha Técnica Performer: Adan Costa Registro Fotográfico: Rodrigo Barata

Expografia 10 peças fotográficas impressas em Voil branco, medindo 1,00x2,00 m, fixadas ao teto da galeria, dispostas de forma a criar um pequeno labirinto de imagens, e plotagem em vinil adesivo recortado branco com o texto: Em nome da tua ausência, Construí com loucura Uma grande casa branca E ao longo das paredes te chorei...


14 de marรงo- movimento um





Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.