ANO 8 / NÚMERO 93
ELOGIO AOS SINDICATOS
MENOS ORGANIZAÇÃO, MAIS DESIGUALDADE POR SERGE HALIMI
R$ 13,90
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VOZES DA REPRESSÃO
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A PALAVRA DO POLICIAL NA JUSTIÇA CRIMINAL POR ANDERSON LOBO DA FONSECA
TURISMO DE MASSA
DE BERMUDA NAS TRINCHEIRAS POR GENEVIÈVE CLASTRES
LE MONDE
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diplomatique
BRASIL
UM NOVO OLHAR SOBRE O MUNDO.
UM NOVO OLHAR SOBRE O BRASIL.
REFORMA POLÍTICA
CRISE E OPORTUNIDADE
PARA ACABAR COM O TERRORISMO, É PRECISO REVOLVER OS CONFLITOS
AS (VERDADEIRAS) CAUSAS DA BARBÁRIE POR ALAIN GRESH
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PREÇOS EM QUEDA
PETRÓLEO E PARANOIA POR PIERRE RIMBERT
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ÁFRICA
JUVENTUDES REBELDES POR JACQUES DENIS E OUTROS
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O PIOR AINDA ESTÁ POR VIR
SÃO PAULO A SECO POR ANNE VIGNA
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Le Monde Diplomatique Brasil
ABRIL 2015
SUMÁRIO LE MONDE
diplomatique
BRASIL
Ano 8 – Número 93 – Abril 2015 www.diplomatique.org.br
Diretor e Editor-chefe Silvio Caccia Bava Editor Luís Brasilino Editores de Arte Adriana Fernandes e Daniel Kondo
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EDITORIAL Uma falsa polarização Por Silvio Caccia Bava
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CRISE E OPORTUNIDADE Reforma política: democracia ou plutocracia? Por Francisco Fonseca Corrupção e a “bopização” brasileira Por Fábio Salem Daie
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MENOS ORGANIZAÇÃO, MAIS DESIGUALDADE Elogio aos sindicatos Por Serge Halimi
Editor assistente Cristiano Navarro Revisão Lara Milani e Maitê Ribeiro Assinaturas Alex Sander da Silva Gonçalves Gestão Administrativa e Financeira Arlete Martins
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DA ÁSIA AO CARIBE, A CORRIDA PELAS RESERVAS EM ÁGUAS PROFUNDAS A guerra pelo petróleo se joga no mar Por Michael T. Klare
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TEORIAS PARA EXPLICAR A QUEDA NOS PREÇOS Petróleo e paranoia Por Pierre Rimbert
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A “NEUTRALIDADE” DOS CREDORES Em Atenas, a mídia de joelhos Por Valia Kaimaki
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VIAGEM AO INTERIOR DE UMA MULTINACIONAL PATERNALISTA Tata, uma lenda indiana Por Jyotsna Saksena
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JUVENTUDES REBELDES DA ÁFRICA O fim da “geração silenciosa” Por Alain Vicky Quando os jovens dão uma aula Por Jacques Denis Uma vassourada de cidadania Por David Commeillas
Estagiária Viviane Alves Escritório Comercial Brasília Marketing 10: José Hevaldo Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br Tradutores desta edição Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Lívia Chede Almendary e Rita Grillo Assessoria Jurídica Rubens Naves, Santos Jr. Advogados Conselho Editorial Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Ana Cláudia Teixeira, Ana Toni, Anna Luiza Salles Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Caco Barcellos, Claudius Ceccon, Danilo Miranda, Fernando Gabeira, Ferréz, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Eduardo Martins Cardozo, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor, Leonardo Boff, Marcio Pochmann, Nabil Bonduki, Nilton Bonder, Raquel Rolnik, Ricardo Abramovay, Ricardo Azevedo, Roberto de Andrade Martins, Rubens Naves, Ruy Cezar do Espírito Santo, Sebastião Salgado, Silvia Dias Alcântara Machado, Soninha, Tânia Bacelar de Araújo, Vera da Silva Telles
Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação da associação Palavra Livre, em parceria com o Instituto Pólis. Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque São Paulo/SP – 01220-020 Tel.: 11. 2174-2005 diplomatique@diplomatique.org.br Assinaturas assinaturas@diplomatique.org.br Tel.: 11. 2174-2010 Impressão Plural Indústria Gráfica Ltda. Av. Marcos Penteado de Ulhôa Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001 Distribuição nacional DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda. Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte – Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624
LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
Fundador: Hubert Beuve-Méry Presidente do Diretório, Diretor da Publicação e Diretor de Redação Serge Halimi
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A UCRÂNIA EM BUSCA DA SOBERANIA ENERGÉTICA Na frente de batalha do urânio Por Sébastien Gobert e Laurent Geslin
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É PRECISO RESOLVER OS CONFLITOS, NÃO AGRAVÁ-LOS Para acabar com o terrorismo Por Alain Gresh
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NOS EUA, UMA FONTE DE ENERGIA QUE DESTRÓI A NATUREZA, MAS GERA EMPREGOS Os Apalaches decapitados pelos mercadores do carvão Por Maxime Robin
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COREIA DO NORTE Rússia ao resgate Por Philippe Pons
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“A ÁGUA FOI EMBORA E A DIGNIDADE TAMBÉM” São Paulo a seco Por Anne Vigna
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PREPARAR O FUTURO DOS DETENTOS Prisão fora dos muros, uma solução esquecida Por Sarah Perrussel e Leah Ducré
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QUESTIONAMENTOS SOBRE A PRIMAZIA DO DEPOIMENTO POLICIAL NA JUSTIÇA CRIMINAL A força da palavra repressiva Por Anderson Lobo da Fonseca
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RESISTÊNCIA AO AVANÇO DO INGLÊS O custo do monolinguismo Por Dominique Hoppe
Redator-Chefe Pierre Rimbert 1-3, rue Stephen-Pichon 75013 Paris | Tel 33-1-53 94 96 01 Fax 33-1-53 94 96 26 | secretariat@monde-diplomatique.fr
Le Monde Diplomatique tem 51 edições internacionais produzidas em 30 idiomas, com uma tiragem mensal de 2,4 milhões de exemplares em todo o mundo. ISSN: 1981-7525
CANAL DIRETO
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O TURISMO DE MASSA INVADE OS LOCAIS DE MEMÓRIA De bermuda nas trincheiras Por Geneviève Clastres
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MISCELÂNEA
Corruptos e corruptores Muito bom texto. Acrescento apenas que o MPF, infelizmente, está a cada dia que passa mais ineficiente, não devido aos membros (cabeças) da instituição, mas porque a cada ano saem 60% dos servidores do quadro efetivo (baixos salários pagos pela instituição). Nelson Silva Ricos brasileiros têm a quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais, US$ 520 bilhões em 2010 – um terço do PIB. Necessita o Brasil privatizar para obter investimentos estrangeiros? Por que não investem na produção ou produto nacional? Vanderlei Nogueira O interesse por trás do ataque à Petrobras Se o Gabrielle tem razão, naquela de que agentes obscuros pretendem o fim da Petrobras, do petróleo brasileiro, como explicar que o Partido dos Trabalhadores promoveu em cima da própria Petrobras, alvo de tanto zelo segundo ele mesmo, a pior corrupção da história brasileira e mundial, de tal forma que os ativos tão bem zelados estão à venda? Eliana Martinelli Não há nenhum ataque à Petrobras, muito pelo contrário, os brasileiros sentem muito orgulho dessa empresa. A revolta é contra seus administradores e contra o governo, que permitem os desvios de dinheiro e deles participam. Domingos Sávio Soares De fato um texto rico de conhecimento e detalhes sobre temas coligados à real situação empresarial. Convincente e com ar de verdade, parabéns. Só uma pergunta: por que o alto custo do combustível final? Mais-valia do lucro sobre os necessitados, ou talvez um obscuro faltante no texto... Jonathan Fonseca Muito bom o texto do ex-presidente Gabrielli. Pode haver divergência de opiniões em qualquer sentido, mas os dados que ele relata são públicos. É interessante como alguns, quando confrontados com a realidade dos números, simplesmente dizem “É mentira”... Para alguns, a verdade é dolorosa! Mário Gonçalves Gostei do artigo, mostra um lado em que eu nunca tinha pensado. Sou estudante de cursinho e busco uma visão imparcial. Leio vários jornais para ter uma opinião mais consistente. Acredito que quem perde com tudo isso é o povo brasileiro, nossos serviços públicos ficam comprometidos, além de sermos rotulados como cidadãos do país do futebol, do samba e da corrupção. A Petrobras é um bem do povo, deve haver fiscalização pesada para retirar as maçãs podres e deixar a empresa fluir no caminho do crescimento; não se pode jogar no lixo a galinha dos ovos de ouro devido a poucas pessoas corruptas. Lucian Lara Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, se necessário, resumidas para a publicação. Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação do periódico. Capa: Samuel Casal
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© Claudius
EDITORIAL
Uma falsa polarização POR SILVIO CACCIA BAVA
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á intelectuais que querem nos fazer crer que estamos vivendo no Brasil uma polarização de posições políticas entre esquerda e direita, entre neoliberais e bolivarianos, entre uma classe média “coxinha” e os trabalhadores, e por aí vai. De quebra assistimos à condenação do governo federal e do PT como corruptos. Isso é o que vemos na superfície e que gera uma insatisfação geral. O que não está visível são os principais atores que impulsionam essa polarização e seus objetivos. Um primeiro passo para entendermos essa situação é olhar para o lucro das grandes empresas e bancos. As empresas que têm ações na Bovespa, que são as maiores, tiveram aumento de seu lucro da ordem de 46% em 2014, se comparado ao lucro de 2013. E os bancos, algo entre 26% (Itaú) e 30% (Safra). Isso numa economia em que o crescimento do PIB de 2014 ficou próximo de zero. Como se opera esse milagre? Essa rentabilidade depende muito da taxa Selic, que remunera a dívida pública, e das taxas cobradas pela intermediação financeira sobre empréstimos e financiamentos pelos bancos. O governo federal, adotando políticas contracíclicas para garantir o dinamismo da economia brasileira diante da crise internacional, em 2009 reduziu a taxa Selic; em 2010 sofreu pressões para aumentá-la novamente; em 2011 retomou a política de baixar os juros. Como consequência, 2014 apresentou o menor superávit primário desde 1999,
ou seja, a menor remuneração para os rentistas. O setor rentista também se sentiu ameaçado com a ação dos bancos públicos – Caixa e BNDES, especialmente –, que aumentaram o crédito, baixaram os juros e ganharam mercado. Os bancos públicos, de 35% do mercado que detinham em 2009, chegam a 55% em 2015. O congelamento dos preços da gasolina e da eletricidade tem o mesmo sentido, de preservar a capacidade de compra das pessoas e manter o dinamismo do mercado interno, e também contrariou interesses das empresas concessionárias. Como consequência dessas políticas, o grande empresariado e o setor financeiro se uniram contra a redução da rentabilidade do rentismo, contra as políticas anticíclicas, contra o governo Dilma. Isso se expressou nas eleições de 2014 e nas tentativas de desestabilização política que continuam até hoje. A estratégia defendida pelos governos do PT, de promover um impacto “keynesiano” de estímulo da economia pelo lado da demanda, de preservação do emprego, pode ser observada na distribuição entre renda do trabalho (salários, pensões, aposentadorias) e renda do capital (lucros, juros, aluguéis e renda da terra) nas contas nacionais. A participação da renda do trabalho no PIB era de 35% em 2003; em 2013, foi de 47%. O rentismo disputa a retomada de parcela maior da renda nacional, travando, com isso, o impacto esperado das políticas contracíclicas e o desenvolvimento do país.
Pesquisas recentes mostram uma classe média tradicional assustada com o cenário econômico, com medo do desemprego, com medo de uma perda maior de poder aquisitivo, coisa que já estão sentindo. Há muito tempo não se via esse medo voltar. É essa insatisfação que é trabalhada pela grande imprensa escrita e televisiva, e mesmo internacional, para direcioná-la contra o governo e até para criar a pressão “fora Dilma”. Não importa que a crise seja internacional e que seja de fato necessário equilibrar as contas do país. Importa que o ajuste não toque nos mais ricos e a corrupção passe a ser a explicação da situação atual. Essa estratégia de focar a corrupção para promover o desgaste do governo está trazendo resultados inesperados, pois atinge o sistema político como um todo. As ações do Ministério Público implicam também os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, Aécio Neves, todos os partidos e outras personalidades denuncistas da oposição. É com base nas denúncias contra a corrupção que a oposição quer mobilizar a população contra o governo, e tem conseguido bons resultados. Mas a classe média que foi para as ruas é um setor muito desinformado. Até uma simples pergunta de quem assumiria a Presidência num eventual impedimento de Dilma fica sem resposta para a maioria dos manifestantes. Apenas 27% defendem “fora Dilma”. Eles estão na rua para defender o que
entendem por seus direitos num cenário econômico recessivo, o que guarda semelhança com as demandas apresentadas pelas centrais sindicais em outra recente manifestação de peso. Também é importante lembrar que 37 milhões de brasileiros votaram branco ou nulo nas últimas eleições, ou seja, não se posicionaram em relação às opções eleitorais disponíveis. Isso não significa que não tenham opiniões, mas que não se sentem representados ou não valorizam mais este sistema político. Temos de lembrar também o rechaço aos partidos políticos, seja nas manifestações de junho de 2013, seja nas de 15 de março deste ano. Quando políticos quiseram se manifestar, ouviram da população nas ruas um veto: gritava-se “sem partido, sem partido”. É o próprio sistema político que está em xeque, e não este ou aquele partido. É uma oportunidade interessante enfrentar essa falsa polarização, promovendo um trabalho de esclarecimento público sobre os verdadeiros agentes e interesses que apostam na desestabilização do governo. Se ao lado desses esclarecimentos surgir um forte movimento de defesa dos direitos sociais, também buscando mobilizar a classe média, então o jogo pode mudar e a reforma política por uma Constituinte independente pode se tornar uma bandeira de muitos, de uma ampla aliança da cidadania com capacidade para mudar a correlação de forças. Diretas Já! foi assim.
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CRISE E OPORTUNIDADE
Reforma política: democracia ou plutocracia? Deve-se notar quão diferentes são os projetos: o de Eduardo Cunha, assentado no binômio “financiamento privado” e “voto facultativo”, em contraste com o da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, cuja lógica é o financiamento público e o empoderamento dos partidos políticos, das mulheres e do cidadão comum
© Luciano Feijão
POR FRANCISCO FONSECA*
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o último governo militar, comandado pelo general Figueiredo e articulado ideologicamente pelo general Golbery, o atual sistema político foi estruturado com o objetivo de, parcialmente, contemplar demandas democráticas (caso do pluripartidarismo), mas fundamentalmente manter o statu quo, o que implicou, por um lado, impedir qualquer reprimenda às barbáries impetradas pelos militares e, por outro, vetar grandes reformas estruturais: políticas, sociais e econômicas.1 Deu-se a redemocratização, e a espinha dorsal do sistema político não foi alterada, pois: a) o pluripartidarismo foi levado às últimas consequências, a ponto de termos hoje 28 partidos legais com participação no jogo político, dos quais grande parte é considerada “partido de balcão”; b) o financiamento dos partidos políticos se consolidou de forma mista (fundo partidário público e financiamento privado legal), mas com uma terceira e decisiva forma de financiamento, ilegal: o chamado caixa dois, que se desenvolve durante todo o período governamental. Neste, as prioridades governa-
mentais (a questão da agenda), que se dão desde o momento eleitoral (coligações eleitorais), passam por parte significativa das licitações, pela composição dos governos (distribuição de nacos de poder a grupos com interesses muito distintos) e pela lógica da chamada “governabilidade”, por meio de “bases de apoio” amplíssimas (coalizão), tornando o caixa dois uma verdadeira instituição informal da vida política brasileira. Nesse sentido, independentemente de partidos políticos e governos, o que se vê, desde a redemocratização, é uma sucessão de escândalos, cuja lista é longa e perpassa todos os governos, e cuja raiz é o financiamento de partidos/campanhas tanto por meio de doações privadas legais – cuja lógica é beneficiar-se após as eleições – como por meio do caixa dois; c) a lógica da “governabilidade a qualquer custo”, anteriormente referida, aprofundou-se de tal forma que qualquer governo de coalizão paga um custo político brutal – notadamente os partidos ideológicos, quando vencem eleições ao Executivo – para governar, a ponto de
perder sua identidade, então construída quando de oposição (caso notório do PT). Tal sistema tornou-se verdadeira “máquina de moer partidos”, em boa medida indiferenciando-os no quesito “comportamentos/costumes políticos” – embora não quanto a determinados conteúdos de políticas, mesmo que incrementais –, o que traz consequências trágicas à chamada “cultura política”, isto é, aos valores referenciados à “esfera pública”; d) distorções as mais distintas foram ocorrendo, tornando o sistema político um mosaico de perversidades: coligação nas eleições aos cargos proporcionais, que implica que o eleitor vote num partido/candidato e eleja outro, de outro partido; a lógica de que os partidos derrotados também governam, em razão da referida necessidade de maioria parlamentar a qualquer custo; a controversa desproporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados; o estímulo ao personalismo na vida política, associado ao descrédito que o sistema político confere tanto ao subsistema de partidos como ao Parlamento; entre outros;
e) os mecanismos institucionais/legais de fiscalização, embora tenham avançado enormemente, não foram capazes de desfazer a lógica privatizante da vida “pública” brasileira, a ponto de “engavetadores-gerais da República” serem possíveis, uma vez que, em boa medida, dependem do perfil de quem está no poder das instituições fiscalizatórias; f) o papel despolitizante, simplificador ao extremo dos problemas nacionais e antidemocrático da grande mídia formou gerações e gerações de “cidadãos” manipulados e incapazes de minimamente refletir sobre os aspectos basilares do processo político (caso das manifestações das classes médias ocorridas no dia 15 de março). Nunca é demais relembrar que a grande mídia brasileira é fortemente oligopolizada (conceito econômico) e oligárquica (conceito político: famílias detentoras de enorme poder comunicacional), tendo prestado enormes desserviços à democracia no Brasil, e jamais foi contida por nenhum governo desde a redemocratização, por quaisquer meios: institucionais, legais, políticos, econômicos, creditícios etc. Em razão desse conjunto de problemas, tem havido intensos debates, propostas diversas de reforma política e inúmeros embates desde a redemocratização. Dessa forma, duas grandes propostas se consolidaram, desde o ano passado, como projetos claramente antagônicos. Do lado conservador, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 352/2013, de autoria do hoje ex-deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) e encampada pelo deputado e atual presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ),2 que, em linhas gerais, fundamentalmente institucionaliza o financiamento privado – por meio de um inexequível sistema de “escolha”, por partido, da forma de financiamento, isto é, se público, misto
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ou privado; institui o “voto facultativo”; e impede a reeleição aos executivos; entre outras medidas, a maior parte conservadoras e outras nem tanto, embora, estas, de menor importância. Sobretudo as duas primeiras medidas são suficientes para simultaneamente derrogar toda a luta por reformas de cunho democrático e institucionalizar o que há de pior na vida política do país. Como bem aponta Maria Inês Nassif: “O país, agora, está diante de uma ação desafiadora do presidente da Câmara e de seus asseclas, que têm especialmente como objetivo manter o financiamento privado de campanha, centro de todos os escândalos políticos que envolvem o país desde a primeira eleição direta para a Presidência da República pós-ditadura, em 1989”.3 A chamada “privatização da vida pública” tem no financiamento privado (legal e ilegal) verdadeiro pilar, uma vez que torna estratosférico o preço das campanhas; impede que os pequenos partidos ideológicos tenham a mínima chance de concorrer com os grandes partidos que “jogam o jogo”; torna os poderes do Estado e boa parte de suas ações verdadeiros “balcões de negócios”; estimula a existência ao infinito de partidos e atrai políticos sem qualquer compromisso com a democracia e sem o mais tênue sentido de “esfera pública”; elitiza fortemente a política, dificultando estruturalmente reformas populares ao blindar as elites de qualquer possibilidade de “reformas radicais democráticas”; desestimula a participação política do cidadão comum, abrindo caminho para os lobbies e toda forma de tráfico de influência. Tudo isso amparado, coordenado e amplificado pelo aparato midiático, espécie de “intelectual orgânico” do capital e das classes médias gestoras deste, e que precisa igualmente ser reformado. A PEC n. 352 constitucionaliza, portanto, a plutocracia, isto é, a formalização do governo dos detentores do capital, que hoje atua de maneira informal. Quanto ao voto facultativo, trata-se de verdadeira derrubada de qualquer vestígio popular de democracia, o que é um paradoxo. Afinal, num país em que historicamente se descrê, e de maneira vigorosa, das instituições estatais e do sistema político,4 o voto facultativo – cuja imagem é a ideia de que “direitos não se obrigam” – tenderia fortemente a excluir os pobres da vida política. A plutocracia fecharia o círculo: pela origem, via capital privado, e pela dinâmica, por meio do voto das classes médias e dos ricos. Não é coincidência que a agenda conservadora tem no voto facultativo um de seus motes, reforçado ao extremo pela cobertura dos grandes meios de comunicação: TVs, rádios, jornais, revistas e grandes portais privados. A imagem negativa das instituições e do
sistema político como algo intrinsecamente sujo tende a afastar da vida política institucional os mais pobres, mais vulneráveis ao “pensamento único” e àquilo notabilizado por Goebbels e válido fortemente nos dias de hoje: a estratégia de que “uma mentira contada reiteradas vezes torna-se verdade”. Portanto, o voto facultativo adquire enorme importância para a lógica privatista e elitista: excluir os pobres – num sistema “formalmente” democrático – da democracia sem a utilização da violência e de regimes autoritários. Reitere-se que a combinação de constitucionalização do financiamento privado com voto facultativo liquida liminarmente a experiência democrática brasileira.5
A PEC n. 352 constitucionaliza a plutocracia, isto é, a formalização do governo dos detentores do capital, que hoje atua de maneira informal De maneira oposta, diversas organizações democrática e politicamente organizadas vêm se articulando em torno da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas,6 que reúne mais de uma centena de entidades, entre as quais OAB, CNBB, centrais sindicais e inúmeras outras, das mais distintas naturezas, mas com um único propósito: reformar o sistema político brasileiro numa perspectiva de fato democrática. Os pilares da proposta, que necessita de 1,5 milhão de assinaturas para ser apresentado ao Congresso, baseiam-se na proibição do financiamento empresarial a partidos e candidatos; o voto em lista em dois turnos: no primeiro turno o eleitor vota em uma lista de candidatos apresentada pelo partido e, no segundo turno, em um candidato específico; fim das coligações proporcionais; paridade entre homens e mulheres nas listas partidárias;7 e fortalecimento dos mecanismos de democracia direta com a participação da sociedade em decisões nacionais importantes. Trata-se de um projeto autenticamente popular e democrático: forma e conteúdo. Afinal, impede o financiamento empresarial8 ao expor a incoerência e a desigualdade resultante desse instrumento, que privilegia determinados partidos em detrimento de outros, torna o jogo político iníquo e fundamentalmente permite o domínio do capital sobre o cidadão. O projeto procura empoderar dois atores fundamentais: primeiro, os
partidos políticos, por meio do voto em lista preordenada, em que os partidos se tornam protagonistas, em vez de os candidatos como indivíduos. Os partidos políticos passam, portanto, a ser responsabilizados e cobrados pela lista de candidatos ofertada, o que implica tornar os mandatos dos eleitos pertencentes, de fato, aos partidos que lhes deram guarida. Mas, o mais importante, implica fortalecê-los como instituição, diminuindo o personalismo individualista que rege o cenário partidário brasileiro. Segundo, as mulheres (política de gênero) são igualmente empoderadas ao se estatuir paridade entre homens e mulheres na lista ofertada aos eleitores. O projeto considera fundamental que as mulheres sejam protagonistas na vida político/institucional, uma vez que não apenas são maioria da população brasileira (51%, de acordo com o último Censo), como sua participação – nas três esferas do Estado – é historicamente diminuta. Embora haja a lei dos 30% de vagas reservadas às mulheres candidatas aos parlamentos, por partido, o fato é que a participação feminina continua extremamente aquém de seu número e, sobretudo, de sua importância. Por fim, quanto aos mecanismos de participação direta – também chamados de “democracia direta” e de “controle social” –, procura-se equalizar a democracia representativa (institucional) e a democracia direta (ou de base), de forma que se complementem. Afinal, não há qualquer incompatibilidade entre ambas,9 visto que conselhos gestores de políticas públicas, conferências locais, regionais e nacional de políticas, formas diversas de participação, incluindo-se as digitais, entre outras, já fazem parte da dinâmica social brasileira, embora sem a formalização de uma lei orgânica, que seria o caso do decreto presidencial que os institucionalizaria. Deve-se notar quão diferentes, isto é, opostos, são os projetos: o de Eduardo Cunha, assentado no binômio “financiamento privado” e “voto facultativo”, em contraste com o da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, cuja lógica é o financiamento público (fim da plutocracia) e o empoderamento dos partidos políticos (voto em lista), das mulheres (paridade) e do cidadão comum (formas de democracia direta e controle social). Embora em ambos os projetos haja outras questões, tal como proibição da reeleição aos executivos (PEC n. 352), reeleição apenas uma vez, incluindo-se os cargos parlamentares (proposta da Coalizão), entre tantas outras, os pilares de ambos os projetos ancoram-se na forma de financiamento, na obrigatoriedade ou não do voto e na formatação do sistema eleitoral.
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Quanto a este último – no bojo das premissas que devem reger a reforma política –, a questão fundamental baseia-se no conjunto de princípios, isto é, representatividade, legitimidade, responsividade, transparência e expressão de uma doutrina política que deve possuir o sistema político e, consequentemente, seus subsistemas: partidário e eleitoral. A PEC n. 352 (forma e conteúdo), encampada pelo deputado Eduardo Cunha, coloca sobre a democracia brasileira verdadeira “bala de prata”, com o objetivo de ceifá-la, tornando-a uma democracia “formalmente democrática”, mas, na prática, “essencialmente plutocrática”. O projeto da Coalizão é simples e extremamente democrático. São dois projetos de Brasil. A vitória de um ou de outro impactará gerações. Não é pouco o que está em jogo! *Francisco Fonseca, mestre em Ciência Política e doutor em História, é professor de Ciência Política da FGV/Eaesp e da PUC-SP. 1 Analisei a trajetória recente do sistema político brasileiro na edição de outubro de 2014 do Le Monde Diplomatique Brasil, no artigo intitulado “A que(m) serve o sistema político brasileiro?”. 2 Ver em: <www2.camara.leg.br/camaranoticias/ noticias/POLITICA/456328-GRUPO-DA-REFORMA-POLITICA-PROPOE-FIM-DA-REELEICAO-E-CONSOLIDA-PROPOSTA-FINAL.html>. 3 Maria Inês Nassif, “A quem serve a reforma política que Eduardo Cunha tirou do baú?”, Carta Maior, 21 fev. 2015. Disponível em: <http://cartam a i o r. c o m . b r / ? / E d i t o r i a / Politica/A-quem-serve-a-reforma-politica-que-Eduardo-Cunha-tirou-do-bau-/4/32909>. Deve-se notar, além do mais, a pressa com que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, pretende votar o projeto, aproveitando-se de sua popularidade, assim como o conservadorismo de alguns dos principais nomes componentes da comissão que analisa o projeto, a começar por seu presidente, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ). 4 Descrença essa captada por pesquisas sobre crença na democracia nos países da América Latina pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e pelo instituto chileno Latinobarómetro (www.latinobarometro.org). Ver também o texto de Francisco Fonseca, “Mídia e poder: elementos conceituais e empíricos para o desenvolvimento da democracia brasileira”, Texto para Discussão, Brasília, Ipea, 2010 (TD 1509). Disponível em: <www. ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=9660>. 5 Embora o voto obrigatório não seja um fim em si mesmo – o que significa que poderá futuramente ser alterado tendo em vista a democratização da sociedade e do Estado –, permanece ainda hoje como fundamental em virtude da ainda vigorosa desigualdade brasileira (em diversos sentidos), da lógica privatista do sistema político e do oligopólio do sistema midiático, entre outros fatores. 6 Ver: <www.reformapoliticademocratica.org.br>. Trata-se de projeto de iniciativa popular construído por entidades representativas da sociedade politicamente organizada – também chamada, por muitos, de “sociedade civil”. 7 Desses tópicos, o fim das coligações nas eleições proporcionais é semelhante nos dois projetos, que, de resto, têm pressupostos e objetivos antagônicos, embora com um ou outro aspecto semelhante. 8 Não há menção ao financiamento privado por pessoas físicas, aceito no projeto da presidenta Dilma e do PT, mas com tetos parcimoniosos. 9 Deve-se notar que não foi dessa forma a percepção majoritária do Congresso Nacional sobre a “Política Nacional de Participação Social” (PNPS), iniciativa da presidenta Dilma Rousseff ao final de seu primeiro mandato, tendo em vista que fora derrogada. Ver PNPS: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2014/Decreto/D8243.htm>.
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“O SISTEMA É F*, PARCEIRO”
Corrupção e a “bopização” brasileira Ao contrário do que sugere o clima atual, não há oposição alguma entre o fenômeno da corrupção e a tara policialesca generalizada. Em retrospectiva, seria possível discernir certa tendência que remonta ao Congresso eleito no ano passado, às jornadas de 2013 e mesmo à recepção de Tropa de elite (2007/2010)? POR FÁBIO SALEM DAIE*
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© Mello
QUE HORAS SÃO?
ostaríamos de propor uma hipótese: em 2015, quanto mais prementes forem os reclamos legítimos de setores da sociedade brasileira, mais fortemente o tema da corrupção será explorado por políticos e pela mídia corporativa. Fica a pergunta: quanto esse discurso denuncista, atualmente generalizado, fala à verdade do tempo? Quanto a corrupção, por si, tem a dizer sobre o sentido de nossa trajetória contemporânea? No início de 2014, o historiador inglês Perry Anderson publicou um texto intitulado “O desastre italiano”,1 em que analisou a situação da corrupção no bloco europeu, com ênfase na Itália e na trajetória do empresário (e hoje político) Silvio Berlusconi. Que a União Europeia nada em rios lamacentos de crimes do colarinho branco já há alguns anos, isso não é novidade. O forte da análise de Anderson é a elucidação de quanto, nas chamadas velhas democracias, pôde se formar uma elite político-financeira que se retroalimenta dos jogos de poder, cede os anéis para não perder os dedos, dissimula e negligencia sem pejos to get the job done. Lendo nas entrelinhas, Anderson atribui as causas da sujeira atual a três fontes principais: a) o esvaziamento de ferramentas de efetiva participação popular na política, bem como na fiscalização de leis aprovadas e de representantes eleitos; b) certa cultura privatista, instalada na política a reboque das reformas neoliberais, que substituiu valores como seguridade social e direitos civis (legados do Welfare State) por valores de mercado (do consumo à exclusividade), inclusive entre servidores públicos; c) o impacto socioeconômico das desregulamentações ocorridas principalmente no setor financeiro, que são resultado, entre outras coisas, da chamada “porta-giratória” existente entre as mesas diretoras dos grandes bancos e os cargos estratégicos nas instituições financeiras de muitos países. Contudo, parece que, no Brasil, o tipo de leitura de Perry Anderson – que visa articular corrupção e opções históricas da Economia Política – está completamente ausente. E isso a des-
peito de depoimentos de Augusto Ribeiro de Mendonça,2 dono da Setal Engenharia, e de Ricardo Semler,3 que apontam certa inflexão no caráter da corrupção a partir da onda neoliberal ocorrida no país na década de 1990. Em que pesem tais exemplos, a ênfase no denuncismo da corrupção – que opta por agravos personalistas – continua. Talvez fosse válido lembrar que algo desse discurso já estava presente nas jornadas de junho de 2013. Recentemente, à causa do Congresso Nacional conservador eleito em 2014,4 muito
se falou a respeito daquelas jornadas. Alguns viram aí uma grande contradição entre as manifestações e o perfil dos representantes escolhidos pelo povo.5 Outros observadores usaram conceitos específicos para explicar o que houve: um backlash,6 termo político para definir reação violenta derivada de um fato anterior. As interpretações foram muitas. A essas, quem sabe poderíamos acrescentar uma que nos conecte com o denuncismo da corrupção, onipresente no início de 2015.
Para começar, quando o assunto são os protestos de 2013, é preciso traçar uma linha fundamental, esquecida por alguns comentadores: não houve apenas um junho. Como todo movimento popular de monta, esse também foi complexo e admite, se quisermos, muitos momentos. Ficaremos, por agora, com dois. O “primeiro junho” (cuja largada teve início meses antes) foi marcado por alguns milhares de manifestantes, unidos ao Movimento Passe Livre (MPL), contra o aumento da tarifa de ônibus em diversas capitais. Com essa pauta central – que levou à derrota política de administrações municipais e estaduais – coexistiam outras duas: o direito à cidade na defesa do transporte gratuito e a defesa do próprio direito de manifestação (alimentada pela truculenta reação, física e ideológica). Como vemos, são pautas pontuais e intrinsecamente conectadas. Dito isso, muitos dos primeiros manifestantes agredidos pela PM nada tinham a ver com os depois tão afamados Black Blocs, e sua denúncia da repressão ganhou repercussão com as balas de borracha e o gás, também reservados a gente da imprensa. Na televisão, o comentarista da Rede Globo, Arnaldo Jabor, vociferava pedidos de criminalização dos manifestantes, defendendo a truculência policial em clichês antológicos (“justamente, a causa deve ser a ausência de causa”). Vale notar que Jabor propunha – como pauta para tais “protestos sem causa” – a luta contra o Projeto de Emenda Constitucional n. 37 (PEC n. 37), que teria a função de limitar as investigações do Ministério Público Federal. Já existia ali, portanto, o tema latente da corrupção. Mais integrado e menos apocalíptico, o departamento de jornalismo da Globo punha em prática engenho mais sutil: veiculava cenas dos primeiros cuidados recebidos por policiais feridos nos confrontos, bem como de pacatos moradores intimidados pela turbamulta. Corria a primeira quinzena do mês. Os grandes veículos de comunicação se uniam na condenação geral do movimento. Em 13 de junho, o título do editorial do jornal O Estado
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de S. Paulo dava o tom da bronca: “Chegou a hora do basta!”. Citando o “vandalismo” dos “baderneiros”, pedia o fim da moderação (sic) na política de segurança pública e a profusão dos castigos. Tudo deveria correr bem, segundo o script usual da república das bananas, não fosse um contratempo: as manifestações cresceram. É neste ponto que os fatos desafiam a leitura. Caso elas tivessem crescido no sentido do fortalecimento da pauta única – transporte público e direito à cidade –, seria talvez mais fácil reclamar seu triunfo sobre o conservadorismo. Como sabemos, não foi isso o que ocorreu. Os últimos dias de junho registraram um aumento exponencial da participação popular em todo o país, paralelo a uma diversificação das reivindicações. Foram espontâneas? Eis um embrulho difícil de ser denudado. Contudo, a título de sugestão, recobremos certa sequência do chamado “segundo junho”. Na quarta-feira, 19, após seis manifestações, o governador do estado de São Paulo e o prefeito da capital vieram a público revogar o aumento das tarifas. O mesmo sucedeu no Rio, onde o prefeito, Eduardo Paes, anunciou redução de R$ 2,95 para R$ 2,75. No fim da semana – passados quase quinze dias do início dos protestos –, a capa da revista Veja fez a primeira menção às manifestações: “A Revolta dos Jovens: depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade?”. A proposta de Jabor fora ouvida e retornava, ao que tudo indicava, amplificada. Na página 84, lia-se: “Os jovens já marcharam pela paz, democracia e liberdade. Os de agora vão às ruas para baixar o preço das passagens. Mas isso é tudo?”. Depois da revogação, a Rede Globo seguiu a mesma trilha e começou a divulgar “novas causas” surgidas nas ruas. No dia 20 de junho, o Jornal da Globo levou ao ar reportagem em que destacava o clima nacionalista e cujo remate foi: “Enquanto marchavam, os manifestantes deixavam claro que o protesto era acima de tudo pelo Brasil”. Na internet pipocavam ideias de pautas paralelas. O número de manifestantes alcançou a cifra dos milhões, e o rechaço à corrupção assumiu a linha de frente. Em 22 de junho, uma passeata contra a PEC n. 37 saiu do vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp) rumo à Praça da Sé. Nas ruas, proliferaram cartazes contra o senador Renan Calheiros (PMDB) e políticos envolvidos em escândalos. O fim do desvio de dinheiro público e da impunidade aos membros da elite política se tornou ponto crítico. Enquanto isso, aumentava a violência nas passeatas contra pessoas identificadas com partidos e sindicatos, o que levou o MPL a
publicar nota condenando tais agressões.7 Ou seja, ao mesmo tempo que houve diversificação dos reclamos populares, ocorreu uma ascensão da postura jurídico-policialesca (de tom ufanista) em detrimento de distinções ou filiações políticas. Por causa da variedade das palavras de ordem alçadas, comentadores chegaram a atribuir (e seguem atribuindo) a esse período pautas como a democratização do sistema político ou mudanças profundas nas instituições da República. Parece um equívoco. Se é correta nossa leitura, esses supostos reclamos são uma construção ex post facto de setores da esquerda e se vinculam na realidade aos “cinco pactos” divulgados pela presidenta Dilma no dia 24 de junho. Entre esses pactos, e não nas ruas, constava a proposta da reforma política. O “segundo junho” não expressou reclamo algum por reforma política, eleitoral ou tributária, embora isso não as redima como desafios urgentes. Seu significado se aproxima mais da transformação de luta defensiva contra o aumento da tarifa de ônibus (na primeira fase das manifestações) para uma guinada conservadora, perfeitamente compatível com a composição do Congresso Nacional eleito em 2014. Nesse sentido, ao contrário do que viram analistas, não houve contradição ou backlash algum. Mesmo porque seria preciso levar em consideração as distorções proporcionadas pelo atual sistema de coligações partidárias durante o período eleitoral; sistema que, como se sabe, beneficia muitos candidatos com votação inexpressiva.
Tudo deveria correr bem, segundo o script usual da república das bananas, não fosse um contratempo: as manifestações cresceram Tais distorções – mencionemos também as que facultam o patrocínio privado de campanhas políticas – constituem a real contradição existente entre as manifestações de 2013 e as eleições de 2014. Tanto é assim que, na velha tradição da modernização conservadora, uma tímida tentativa de atenuá-las segue em disputa no atual governo (vide a comissão especial liderada no início deste ano por DEM e PMDB para realizar a reforma política sem Constituinte exclusiva, proposta original do PT). O “segundo junho” deixava o âmbito da ação política e virtualmente
ilegal da primeira fase para adentrar o terreno controlado da legalidade e pela legalidade. Expressão disso é a distinção, então difundida largamente, entre “manifestantes” e “vândalos”, entre “defensores do Brasil” e “baderneiros”. Tendo como sintoma a fixação na corrupção, o “segundo junho” de 2013 já dizia algo sobre 2015. A “BOPIZAÇÃO” BRASILEIRA
O denuncismo da corrupção detém especificidade: é modalidade de discurso aparentemente política e progressista, mas se abriga, no fundo, no lado apolítico e no conservadorismo. Sua força está em passar-se por uma coisa sendo outra. E, tal qual os cartuns de Mickey Mouse da década de 1930 – em que Walter Benjamin viu recompensa às retinas fatigadas de perscrutar uma realidade oblíqua –, o denuncismo também nos oferece uma sedutora recompensa, desenredando as tortuosas conexões da guerra ideológica e dos conflitos de classe para apresentar um problema único, supostamente simples, que exclui as tensões sociais. Antes o contrário: une as classes ao redor de um inimigo interno comum, assim como a Guerra das Malvinas fez, nos anos 1980, no contexto da ditadura argentina. Sua intensidade atual deveria nos desafiar a reler o passado. Em termos socioeconômicos, falou-se no encerramento de um ciclo encabeçado pelo PT. Em termos culturais, é possível que um dos sentidos profundos da guinada conservadora recente seja o processo de “bopização” (da sigla Bope) que vem ocorrendo desde, pelo menos, a consolidação neoliberal nos anos 1990. Para tentar diagnosticar esse efeito, falemos um pouco do sucesso de Tropa de elite – Missão dada é missão cumprida (2007) e Tropa de elite – O inimigo agora é outro (2010), do diretor José Padilha. Centradas na ação do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) do Rio de Janeiro, as duas produções receberam grande atenção, e a primeira chegou a ser distinguida com o Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 2008. Capitão Nascimento (personagem de Wagner Moura) virou capa da revista Veja como “o primeiro super-herói brasileiro”, alcunhado pela publicação de “o incorruptível”. A eficiência dos filmes tem muito a ver com a dualidade insuspeita do discurso conservador que se passa por progressista, vinculando-se ao processo de elaboração ficcional. O título de estreia, em 2007, concentra-se na construção idealizada do destacamento do Bope e de seu líder. As simplificações – à la Mickey Mouse – são inúmeras: “Polícias regulares estão simplesmente no caminho, assistentes sociais são irremediavelmente ine-
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ficazes e ingênuos, e jovens ricos maconheiros são tão maus quanto traficantes”.8 A lógica do primeiro Tropa de elite poderia ser resumida assim: ou você tem uma caveira bordada no peito, ou você é traficante entocado no alto do morro. Nenhum dos dois? “Não vai subir ninguém.”
A lógica do primeiro Tropa de elite poderia ser resumida assim: ou você tem uma caveira bordada no peito, ou é traficante entocado no alto do morro Liberando todo mundo da solução do problema da violência – porque seu entendimento como questão social foi, juntamente com os intelectuais de esquerda, ridicularizado –, e liberado ele mesmo pela reputação adquirida no filme de estreia, capitão Nascimento está pronto para alçar voos na continuação (2010). Lotado na Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, agora ele se empenha em combater “o sistema” desde a cúpula. “Se o Bope tratasse político corrupto como trata traficante, o Brasil seria um país melhor.” A frase é perturbadora. Aproximando a natureza dos indivíduos e dos delitos (no caso, políticos corruptos e traficantes), a corrupção se torna não um grave sintoma de degradação da República, mas outro crime ordinário. Como tal, demanda, segundo Tropa de elite, ação policial ostensiva (investigação, julgamento, pena), dispensando qualquer exigência de repensar a democracia e seus dispositivos de participação. A distorção não para aí. Ao pintar a corrupção como crime comum, perde-se de vista sua especificidade – ela não pode ser medida como se medem, por exemplo, furtos e latrocínios – e, por consequência, perde-se também o conhecimento das razões que a retiraram dos porões da sociedade. Menoscabada como questão social, em Tropa de elite não resta interpretação possível à corrupção senão como praga endêmica contra a qual se batem os cavaleiros templários do culto da caveira. O resultado é a decretação da falência do Estado, da própria política e, consequentemente, a legitimação da violência. De qual violência? Por certo não aquela do monopólio legal estatal, mas outra, realizada por seus agentes especiais para além (e mesmo contra) qualquer direito assegurado. Só isso já seria o suficiente para que o frenesi e a larga aceitação da figura do capitão Nascimento acen-
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dessem, à época, um sinal de alerta na torre. Ignorado o primeiro alarme, o segundo emergiu de forma trágica: não há abismo entre as operações de busca e destruição do capitão, no filme, e os atos de justiçamento empreendidos por civis em anos recentes. Em todos eles, na berlinda estava a égide do Estado. Desacreditada, não em favor de um novo projeto coletivo, e sim do isolamento do indivíduo – que procede segundo seus próprios mandamentos –, reaparecia na vida real a contraparte do fenômeno da corrupção elidida em Tropa de elite: a desagregação social. Parte desse problema da desagregação é a acomodação, entre as classes baixas, da ideologia da classe dominante que vê o banditismo como mero caso de polícia. A relação corrupção e polícia torna-se ainda mais clara à medida que mergulhamos no fosso da brutalidade. Como notou o teórico inglês Raymond Williams, a partir da década de 1970 “há um fluxo [...] de uma forma nova e perigosa de legitimação da violência pelas forças da ordem: o detetive racionalmente penetrante tem sido com frequência substituído, nos centros dominantes de produção dramática em massa, pelo policial oficial rígido, indistinguível física e etnicamente dos que ele persegue e pune”.9 Ou seja, a fiar no que nos dizem Anderson e Williams, o agravamento do fenômeno da corrupção e o aparecimento de figuras brutais como o capitão Nascimento são contemporâneos da ascensão neoliberal e estão, ao contrário do que deseja fazer crer Tropa de elite, não em oposição, mas em contiguidade. No Brasil, a ruína do “detetive racionalmente penetrante”, cujas feições aparecem já no astuto major Vidigal – personagem de Manuel Antônio de Almeida em Memórias de um sargento de milícias (1852/1853) –, é também, por sua vez, a ruína de outra figura cara à cultura nacional: o malandro. Desbancando o detetive, o agente brutal da ordem depara não mais com os desvios do ladino popular, mas com a transgressão “espontânea” do delinquente. A diferença é de âmbito ideológico. Enquanto o malandro impunha à norma um tom satírico, derrisório, fugindo “às esferas sancionadas pela burguesia”,10 o delinquente – pensemos em Laranja mecânica (1971), de Stanley Kubrick – é a objetivação dessa ideologia em sinal negativo. Diríamos: como personagem, a malemolência do malandro expõe o descompasso tão nosso entre o puritanismo da lei e os favorecimentos inerentes à dinâmica social; por sua vez, o delinquente reitera a lei como imagem complementar, só aparentemente oposta e, no fundo, necessária. Portanto, também não há em Tropa de elite alternativa ao ministério da ordem, e, se o malfeitor escapa
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às garras da morte, não escapa às garras da ideologia de seu perquisidor. Perdido o malandro, perdeu-se também a contraditória simpatia que existia entre ele e a sociedade dita “ordeira”. Para o que nos interessa, a perversão do cidadão comum tornado justiceiro é o ponto final desse itinerário de metamorfoses. Vemos outra vez como Tropa de elite parece a expressão mais atual de um aspecto que remonta ao século XIX e que depois testemunhou a interiorização da práxis policialesca.
Promovidos a cães de guarda no melhor espírito policialesco, estamos convencidos de que o inimigo público número um da República tem por nome “corrupção” No ensaio “A verdade da repressão”, Antonio Candido se preocupa em mostrar como grandes escritores perceberam a instituição policial na sociedade moderna. A partir de Balzac, descobrimos como essa instituição cumpriu “seu grande papel no mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação da legalidade”. Seu método de ação mais comum, então, era bifurcar-se em “organização dupla”, com uma parte visível e outra invisível. Esta última seria formada por um “exército impressentido de espiões e alcaguetes”, cidadãos comuns recrutados pelas forças da lei. Para tanto, segundo Candido, “a sociedade suscita milhares de indivíduos de alma convenientemente deformada, [...] puxa para fora [...] a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a tara – e os remete à função repressora”. Balzac também teria visto, por meio de seu personagem Vautrin, marginal tornado chefe de polícia, que o transgressor pode não se distinguir, em determinado momento, do repressor. Interessante notar nessa leitura de Candido o desaparecimento, dos romances de Balzac para Tropa de elite, de duas informações: 1) a polícia (falamos sempre do capitão Nascimento e do Bope) como instrumento “da vontade dos dirigentes” no interior de uma luta de classes; 2) a oposição entre transgressor e repressor. No filme, o conflito de classes cede lugar a uma associação entre polícia e justiça, percebida esta na chave de “bandido bom é bandido morto”. Tal associação, para regressar a Candido, surgirá excelente no universo de um escritor posterior a
Balzac: Franz Kafka. No início do século XX, o tcheco já teria visto “a polícia como algo inseparável da justiça, e esta assumindo cada vez mais um aspecto de polícia”. Por sua vez, a oposição transgressor vs. repressor se transmuta com a supressão da transgressão. Como vimos, o discurso suspeito da falência da política e do Estado legitima a violência do batalhão, deixando-lhe apenas a face repressora. O que resiste com ênfase é justamente a perversão do cidadão à função repressora, ao justiceiro. À ascensão da figura brutal do capitão Nascimento em detrimento do “detetive racionalmente penetrante” (segundo Raymond Williams) equivale, de maneira coerente, a derrocada do “exército impressentido de espiões e alcaguetes” (como escreveu Candido) em favor do exército pressentido de executores, prontos a ministrar a justiça com as próprias mãos. À SOMBRA DE ROBESPIERRE
Promovidos a cães de guarda no melhor espírito policialesco, estamos convencidos de que o inimigo público número um da República tem por nome “corrupção”. Política e polícia se fundem em declarações recentes do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que sentenciou: “Não nos enganemos: vivemos em um mundo injusto. O Brasil [...] precisa livrar-se da máquina corrupta”.11 Como dissemos, quanto mais prementes forem as reivindicações de setores da sociedade brasileira, mais forte o denuncismo da corrupção circulará nos meios políticos e midiáticos. Tropa de elite, antecipando-se ao “segundo junho” de 2013, valeu-se desse tema para expor o que havia de mais pobre no país: uma visão de futuro segundo a qual a resolução da crise não encontra saída em perspectiva político-social, e sim na tara justiceira, que clama pelo endurecimento das penas e pela profusão dos castigos. A “bopização” brasileira separa-nos de uma visão apurada do presente. Qual, então, é a finalidade desse discurso? A dimensão que a prática diária do denuncismo ganhou na estratégia da maioria dos partidos não aponta para outra coisa senão uma temerosa ausência de qualquer projeto nacional, um vazio de propostas políticas, com pautas concretas, que a sequência de escândalos vem encobrir. Moralizar o país se disseminou como medida primaz, tão falsamente atual quanto foi aos militares dos anos de chumbo. De tudo isso, e com agravantes sérios, a grande mídia é cúmplice. Foi ela quem montou o palco para a farsa de heróis contemporâneos celebrados pelo apanágio de “incorruptíveis”: do capitão Nascimento ao ex-ministro do Superior Tribunal Federal, Joaquim
Barbosa. “Incorruptível”, vale lembrar, era a alcunha do líder jacobino francês Maximilien de Robespierre. Sem a mesma estatura política daquele, entretanto, os nossos “incorruptíveis” pretendem prodigalizar o terror da justiça sem aprofundar (e fundar) República alguma. Isso porque já se tornou claro que a pauta urgente deste início de século – inclusive para bastiões do conservadorismo econômico como o Banco Mundial12 – é justamente aquela deixada em segundo plano durante a Revolução Francesa: a igualdade. Do rol de temas essenciais que tornaram Robespierre a figura central da Revolução, alguns permanecem como desafios imediatos ao Brasil dos próximos anos. A limitação da propriedade privada em favor de sua função social, a tributação progressiva dos rendimentos, a taxação das grandes riquezas, tudo isso – defendido pelo jacobino – vai contra os compromissos da maioria que se intitula, hoje, guardiã da ética republicana, “incorruptíveis”. Com o perdão da frase tomada a Roberto Schwarz, estes “alinham-se com o poder como quem faz uma revolução”. De fato, dos temas de que se ocupou Robespierre, nossos principais atores políticos carregam apenas um: a ameaça do “inimigo interno”, a corrupção. Com esse lugar-comum (mais um) do golpe militar de 1964, caminhamos em falso passo, em verdadeiras lutas obstaculizadas. Enquanto denuncismo e tara policialesca não avançarem para um debate sobre sua relação com privilégios mantidos no país – para uma narração verdadeiramente política do presente –, estaremos condenados a olhar o relógio, sem ponteiro algum. *Fábio Salem Daie é jornalista e pesquisador no programa de pós-graduação da Universidade de São Paulo.
1 “The Italian Disaster”, London Review of Books, 22 maio 2014. 2 “Empreiteiras combinam contratos na Petrobras desde o fim dos anos 1990”, Portal Vox, 4 dez. 2014. 3 “Nunca se roubou tão pouco”, Folha de S.Paulo, 21 nov. 2014. 4 “Congresso eleito é o mais conservador desde o fim da ditadura, diz Diap”, Carta Maior, 7 out. 2014. 5 “‘Parece que junho de 2013 não aconteceu’, diz especialista”, Rede Brasil Atual, 6 out. 2014. 6 Rafael Bezerras, “Junho/2013: quando o backlash é sinônimo de conservadorismo”, GGN/Luís Nassif Online, 14 out. 2014. 7 “Sobre o ato de 20/06”, Movimento Passe Livre – São Paulo, 21 jun. 2013. 8 Jay Weissberg, “Review: ‘The Elite Squad’” [Resenha: Tropa de elite], Variety, 11 fev. 2008. 9 Raymond Williams, “Posfácio para tragédia moderna”. In: Política do modernismo: contra os novos conformistas. São Paulo: Editora Unesp, 2011. 10 Antonio Candido, “A verdade sobre a repressão”. In: Teresina etc. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2007. 11 Folha de S.Paulo, 4 jan. 2015. 12 “World Bank Says Growth Alone Can’t End Poverty” [Banco Mundial diz que o crescimento por si só não pode terminar com a pobreza], The Guardian, 10 abr. 2014.
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MENOS ORGANIZAÇÃO, MAIS DESIGUALDADE
Elogio aos sindicatos POR SERGE HALIMI*
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*Serge Halimi é diretor do Le Monde diplomatique.
1 Florence Jaumotte e Carolina Osorio Buitron, “Le pouvoir et le peuple” [O poder e o povo], Finances & développement, Washington, mar. 2015. 2 George Melloan, “Whatever Happened To the Labor Movement?” [O que aconteceu com o movimento operário?], The Wall Street Journal, Nova York, 4 set. 2001.
© Samuel Casal
onsiderando que todos afirmam estar preocupados com o aumento das desigualdades, por que essa análise do Fundo Monetário Internacional (FMI) passou de tal forma despercebida?1 Por causa de suas conclusões? Num estudo publicado em março, dois economistas oriundos desse templo do liberalismo destacam “a existência de uma ligação entre a baixa taxa de sindicalização e o aumento de parte dos rendimentos mais elevados nos países avançados durante o período 1980-2010”. Como explicar essa ligação? “Reduzindo a influência dos assalariados sobre as decisões das empresas”, o enfraquecimento dos sindicatos permitiu “aumentar a parte dos rendimentos constituídos pelas remunerações da alta direção e dos acionistas”. Segundo os especialistas do FMI, “cerca de metade” do aprofundamento das desigualdades que os liberais preferem tradicionalmente atribuir a fatores impessoais (globalização, tecnologias etc.) decorreria do declínio das organizações de assalariados. Por que se espantar com isso? Quando o sindicalismo se apaga, tudo se degrada, tudo se desloca. Ponto de apoio histórico da maior parte dos avanços emancipadores, sua anemia só pode aguçar o apetite dos detentores do capital. E sua ausência, liberar um lugar que será logo ocupado pela extrema direita e pelo integralismo religioso, ambos se empenhando em dividir grupos sociais cujo interesse seria se mostrarem solidários. O apagamento do sindicalismo não tem a ver com o acaso nem com a fatalidade. Em abril de 1947, enquanto o Ocidente se preparava para conhecer trinta anos de prosperidade um pouco mais bem dividida, Friedrich Hayek, um pensador liberal que marcou seu século, já desenhava o mapa da estrada de seus amigos políticos: “Se quisermos alimentar a mínima esperança de um retorno a uma economia de liberdade, a questão da reestruturação do poder sindical é uma das mais importantes”. Hayek pregava no deserto, mas cinquenta anos depois, graças à intervenção direta – e brutal – de dois de seus admiradores, Ronald Reagan e Margaret Thatcher, em conflitos trabalhistas marcantes (os controladores de voo norte-americanos em 1981, os mineiros britânicos em 1984-1985), o “poder sindical” morreu. Entre 1979 e 1999, o número de greves envolvendo pelo menos mil assalariados passou nos Estados Unidos de 235 para 17; o dos dias de trabalho “perdidos”, de 20 milhões para 2 milhões.2 E a parte do salário na renda nacional diminuiu... Em 2007, tão logo foi eleito presidente da República, Nicolas Sarkozy pôs em voto uma lei restringindo o direito de greve nos serviços públicos. No ano seguinte, ele se exibia feito um moleque engraçado: “Atualmente, quando há uma greve na França, ninguém percebe”. Idealmente, o estudo do FMI deveria ter concluído pela urgência social e política de reforçar os sindicatos, mas ele preferiu estimar que “falta determinar se o crescimento das desigualdades em razão do enfraquecimento dos sindicatos é bom ou ruim para a sociedade”. Os que têm já alguma ideia da resposta vão, sem esforço, tirar disso a conclusão que se impõe.
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DA ÁSIA AO CARIBE, A CORRIDA PELAS RESERVAS EM ÁGUAS PROFUNDAS
A guerra pelo petróleo se joga no mar As descobertas de novas reservas em águas profundas (mais de 400 metros) proliferam e se igualam ao total das reservas terrestres descobertas entre 2005 e 2009 fora da América do Norte. Dado ainda mais importante é que as reservas descobertas em águas ultraprofundas (mais de 1.500 metros) representam quase metade das jazidas encontradas em 2010 POR MICHAEL T. KLARE*
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o início de maio de 2014, a instalação da plataforma petrolífera de perfuração HYSY-981 nas águas contestadas do Mar da China Meridional suscitou especulações sobre as motivações chinesas. Na avaliação de diversos observadores ocidentais, Pequim pretendeu, com esse gesto, demonstrar que pode impor seu controle e dissuadir outros países de seguir com suas reivindicações de direito de exploração dessas águas, como é o caso do Vietnã e das Filipinas. A medida chinesa faria parte “do quadro de uma série de ações empreendidas pelos chineses nos últimos anos para afirmar a soberania do país em relação a partes contestadas do mar [da China Meridional]”, de acordo com Erica Downs, especialista em China na Brookings Institution (Washington). Entre essas ações, exemplifica, estão a tomada de controle do recife de Scarborough (ponta de terra não habitada, reivindicada pela China e pelas Filipinas) e o ataque repetido a navios de vigilância vietnamitas. Para outros especialistas, essas ações são a expressão legítima da emergência de uma China como potência regional. Se por um lado o país não estava em condições de proteger seus territórios marítimos, agora lideranças afirmam que a China está suficientemente forte para fazê-lo. No entanto, se considerações nacionalistas e geopolíticas sem dúvida desempenharam um papel essencial na decisão de instalar a HYSY-981, não se pode subestimar o interesse relacionado a assuntos terrestres que essa plataforma oceânica re-
presenta para a busca de preciosas jazidas de petróleo e gás natural. As necessidades chinesas aumentam, e as autoridades desaprovam a dependência crescente de fornecedores pouco confiáveis na África e Oriente Médio. O país procura suprir grande parte da energia utilizada por meio de fontes internas, entre elas os campos petrolíferos marítimos das zonas dos mares da China Oriental e Meridional, que considera estar sob seu controle. A China pretende monopolizar a exploração nessas áreas. PEQUIM E TAIWAN, A MESMA ÁREA
Até agora, essas águas profundas foram exploradas de forma limitada, e a amplitude real da fonte de hidrocarbonetos permanece desconhecida. A Agência de Informação sobre Energia (Energy Information Administration, EIA), ligada à Secretaria de Energia dos Estados Unidos, estima que o Mar da China Oriental abrigue entre 60 milhões e 100 milhões de barris de petróleo, e entre 28 bilhões e 50 bilhões de metros cúbicos de gás.1 Os especialistas chineses falam em volumes muito maiores. A China investiu consideravelmente no desenvolvimento de tecnologias de perfuração de águas profundas. Procurando reduzir sua dependência em relação a tecnologias estrangeiras, a China National Offshore Oil Corporation (Cnooc) investiu 6 bilhões de yuans (mais de R$ 3 bilhões) para construir HYSY-981, a primeira plataforma semissubmersa do país. Com a superfície do tamanho de um campo de futebol e
uma torre de perfuração equivalente a um prédio de quarenta andares, essa plataforma pode operar a uma profundidade de 3 quilômetros oceano abaixo e 12 quilômetros na terra.2 A China alega que cerca de 90% do Mar Meridional faz parte de suas águas territoriais, de acordo com uma carta publicada pelo governo nacionalista de 1947 – chamada muitas vezes de “traçado de nove linhas”, em referência às linhas que delimitam a zona reivindicada. Outros quatro Estados – Brunei, Malásia, Vietnã e Filipinas – reivindicam zonas econômicas exclusivas na mesma área. Taiwan, que justifica sua reivindicação da área pela mesma carta usada pela República Popular, quer a totalidade das águas.3 No Mar da China Oriental, Pequim estima que seu platô continental exterior se estenda até a foz do Okinawa, não distante das ilhas ao longo do Japão – que, por sua vez, reivindica uma zona econômica exclusiva que se estende até a linha mediana entre os dois países. Até o momento, as duas partes respeitaram um acordo tácito segundo o qual nenhum dos dois países deve avançar a exploração para além dessa linha. Mas as empresas chinesas estão realizando perfurações em uma zona imediatamente a oeste da linha mediana e explorando um campo de gás que se estende até o território reivindicado pelo Japão. Essa rivalidade pela energia reflete a dependência mundial e crescente do petróleo e do gás marítimos em detrimento das reservas terrestres. Segundo a Agência Internacional de Energia
(AIE), a produção de petróleo bruto proveniente das jazidas existentes, em sua maioria situadas em terra ou em águas costeiras pouco profundas, baixará em dois terços entre 2011 e 2035. Essa perda, afirma a AIE, pode ser compensada, contudo, apenas se os campos atuais forem substituídos por outras jazidas no Ártico, nas águas profundas e em formações ricas em xisto na América do Norte.4 Fala-se muito na extração por fraturação hidráulica do petróleo e gás natural contidos nas reservas de xisto dos Estados Unidos. Esforços mais importantes, porém, foram consagrados ao desenvolvimento de fontes marítimas. Segundo analistas do IHS Cambridge Energy Research Associates, eminente escritório de consultores, as descobertas de novas reservas em águas profundas (mais de 400 metros) proliferam e se igualam ao total das reservas terrestres descobertas entre 2005 e 2009 fora da América do Norte. Dado ainda mais importante é que as reservas descobertas em águas ultraprofundas (mais de 1500 metros) representam quase metade das jazidas encontradas em 2010.5 Em alguns casos, os futuros campos de exploração se localizam em águas pertencentes a zonas econômicas exclusivas de um Estado, que podem chegar a 200 milhas náuticas (370 quilômetros) da costa do país. A regra evita contendas como as dos mares da China Oriental e Meridional. O Brasil, por exemplo, descobriu diversas jazidas importantes na bacia de Santos, no Atlântico Sul, a cerca de 180 quilô-
metros a leste do Rio de Janeiro. Nas zonas mais promissoras, contudo, nenhum Estado criou zonas econômicas exclusivas, e as atividades exploratórias são controversas. Os conflitos se produzem geralmente nos mares semifechados, como o Mar Cáspio, o do Caribe e o Mediterrâneo. As fronteiras marítimas podem ser terrivelmente difíceis de estabelecer em razão de um litoral irregular e da presença de muitas ilhas, cuja propriedade muitas vezes é reivindicada por outros Estados. Além disso, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que data de 1982, contém uma série de disposições sujeitas a múltiplas interpretações. Enquanto um Estado pode usar uma das causas para reivindicar uma zona econômica exclusiva a 200 milhas náuticas de seu litoral (como no caso do Japão e da China oriental), outro Estado pode se valer de uma disposição diferente que permite o controle sobre o platô continental exterior, mesmo que este se estenda sobre os domínios da zona exclusiva de seu vizinho (como a China alega neste caso). Apesar das Nações Unidas terem estabelecido uma Corte especial para cuidar desses desacordos – o Tribunal Internacional do Direito do Mar –, vários Estados não reconhecem sua autoridade, e os conflitos continuam crescendo. Algumas nações adotaram posições inflexíveis, ameaçando recorrer a forças militares para defender o controle do que consideram interesses nacionais essenciais. Os perigos são patentes, como se observa no caso das águas do Atlântico Sul que contornam as Ilhas Malvinas (Ilhas Falkland, para os britânicos), reivindicadas tanto pelo Reino Unido como pela Argentina. Em 1982, os dois países entraram em guerra pelo controle do arquipélago. O conflito breve, porém sangrento, teve como motor o nacionalismo e a queda de braço entre os dirigentes políticos envolvidos: Margaret Thatcher em Londres e uma junta militar em Buenos Aires. Desde então, as partes acorda-
ram um armistício, mas a questão da soberania sobre as ilhas não foi resolvida. Atualmente, a descoberta de campos submersos de petróleo e gás na região fez as tensões recrudescerem. Londres declarou uma zona exclusiva de 322 quilômetros ao redor das ilhas e autorizou empresas sediadas no Reino Unido a prospectar lá. De seu lado, a Argentina afirma que seu platô continental exterior se estende até as Malvinas e que essas empresas estão atuando de forma ilegal em seu território. Entre ameaças de outras represálias, proibiu navios britânicos do setor petroleiro de aportar em seu litoral. Londres reagiu reforçando destacamentos aéreos e navais no arquipélago. DESENVOLVER AS ZONAS DISPUTADAS
Uma situação ainda mais perigosa ronda o Mediterrâneo oriental, onde Israel, Líbano, Síria, Chipre, República Turca do Chipre do Norte, assim como autoridades palestinas de Gaza, reivindicam reservas promissoras de petróleo e gás. De acordo com o Escritório de Estudos Geológicos dos Estados Unidos (United States Geological Survey), o Mar Levantino, que corresponde ao quarto mais a leste do Mediterrâneo, abrigaria reservas de gás natural estimadas em 3,4 bilhões de metros cúbicos, aproximadamente o volume das reservas confirmadas no Iraque.6 Hoje, Israel é o único Estado costeiro que explora sistematicamente essas reservas. A produção começou em março de 2013 na jazida de gás natural de Tamar, e Tel-Aviv prevê explorar a jazida de Leviatã, muito mais vasta. O projeto provocou protestos no Líbano, que reivindica uma parte dessas águas. Enquanto isso, o Chipre concedeu licenças para as empresas Noble Energy (norte-americana), Total (francesa) e Eni (italiana) para a instalação de plataformas em seu território marítimo, e pretende começar a produção nos próximos anos. A Turquia, em apoio aos cipriotas turcos, condenou fortemente essas decisões.
Conflitos similares eclodiram em outros espaços marítimos ricos em recursos energéticos, como no Mar Cáspio (onde Irã, Uzbequistão e Turcomenistão disputam uma fronteira marítima) e nas águas situadas a nordeste da costa sul-americana (onde a Guiana e a Venezuela reivindicam a mesma zona de potencial exploração). Em todos esses casos, um nacionalismo exacerbado se alia à busca insaciável de recursos energéticos para evitar a importação de petróleo e gás natural.
As fronteiras marítimas podem ser terrivelmente difíceis de estabelecer em razão de um litoral irregular e da presença de muitas ilhas Em vez de considerarem essas contendas um problema sistêmico, o que exigiria uma estratégia específica para resolvê-lo, as grandes potências tendem a tomar partido de seus respectivos aliados. Assim, com a pretensão de permanecer neutro em relação à questão da soberania das ilhas Senkaku/Diaoyu, no Mar da China Oriental, o governo de Barack Obama reafirmou várias vezes que apoiava o Japão e se comprometeu a enviar auxílio em caso de ataque chinês. Essa posição foi denunciada por Pequim como uma afronta inaceitável – e torna ainda mais difícil convencer partes adversárias, implicadas nessa querela ou em outras do mesmo tipo, a sentarem-se na mesa de negociações para encontrar uma solução e evitar que as coisas piorem. Para tentar amenizar esses desentendimentos, há diversas iniciativas em andamento: explicações mais precisas sobre os direitos dos Estados costeiros e as zonas econômicas ex-
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clusivas em alto mar; eliminação das ambiguidades suscitadas pelas disposições da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; esforço internacional para estabelecer instâncias neutras que possam encontrar soluções por meio de negociações pacíficas. Enquanto esperam a consolidação de tais medidas, as partes engajadas nesses conflitos deveriam procurar desenvolver conjuntamente os espaços contestados – estratégia adotada pela Malásia e pela Tailândia no Golfo da Tailândia, assim como pela Nigéria e São Tomé e Príncipe no Golfo da Guiné. Na ausência de esforços nesse sentido, as contendas marítimas atiçadas pela disputa de recursos energéticos poderão estremecer o século XXI, assim como os conflitos fronteiriços terrestres abalaram os séculos passados. *Michael T. Klare, professor no Hampshire College, é autor de The Race for What’s Left: The Global Scramble for the World’s Last Resources [A corrida pelo que sobrou: a luta global pelos últimos recursos do mundo], Metropolitan Books, Nova York, 2012.
1 “China”, Energy Information Administration, 4 fev. 2014. Disponível em: <www.eia.gov>. 2 “China Begins Deep-Water Drilling in South China Sea” [China começa a exploração em águas profundas no Mar da China Meridional], Xinhua, 9 maio 2012. 3 Cf. notadamente Ronald O’Rourke, “Maritime Territorial Disputes and Exclusive Economic Zone (EEZ) Disputes Involving China: Issues for Congress” [Disputas territoriais marítimas e disputas de zonas econômicas exclusivas envolvendo a China: temas para o Congresso], Congressional Research Service (Serviço de Pesquisa do Congresso), Washington, 24 dez. 2014. 4 International Energy Agency, “World Energy Outlook 2012” [Panorama da energia mundial 2012], Paris, 2012. 5 Philip H. Stark, Bob Fryklund, Steve DeVito e Alex Chakhmakhchev, “Independents Setting Sights on International Opportunities in Deep Water, Shale and EOR” [Estabelecimento unilateral de oportunidades em águas profundas e jazidas], The American Oil & Gas Reporter, Derby (Kansas), abr. 2011. 6 US Geological Survey (USGS), “Natural Gas Potential Assessed in Eastern Mediterranean” [Potencial de gás natural no Mediterrâneo oriental], USGS Newsroom, Washington, 8 abr. 2010.
© André da Loba
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TEORIAS PARA EXPLICAR A QUEDA NOS PREÇOS
Petróleo e paranoia A espetacular queda do preço do petróleo desde junho de 2014 tem empolgado os amantes de teorias maiúsculas. Os dados do problema? O preço do barril, que desde 2011 girava em torno de US$ 110, caiu em março de 2015 para um patamar entre US$ 50 e US$ 60 POR PIERRE RIMBERT*
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o gênio teve uma ideia. Pensando no Irã e na Venezuela, Thomas Friedman, colunista do The New York Times, concebeu, em 2009, a “Primeira Lei da Petropolítica” – com maiúsculas: “Nos países ricos em petróleo, o preço do petróleo bruto e o passo das liberdades seguem sempre em direções opostas”.1 Atenção, esclarece Friedman, uma física particular aplica-se a alguns gentis países com uma bela produção do recurso: “Reino Unido, Noruega e Estados Unidos, por exemplo, escapam à Primeira Lei da Petropolítica”. Embora sem soprar grandes ventos de liberdade sobre Riad ou Moscou, a espetacular queda do preço do petróleo desde junho de 2014 tem empolgado outros amantes de teorias maiúsculas. Os dados do problema? O preço do barril, que desde 2011 girava em torno de US$ 110, caiu em março de 2015 para um patamar entre US$ 50 e US$ 60. Os analistas previram caos no Oriente Médio e retração da produção norte-americana para sustentar o preço; e quebraram a cara. Em primeiro lugar, o crescimento, em desaceleração na China e nulo na Europa, limitam a demanda por hidrocarbonetos. Em segundo, a oferta global cresceu mais que o esperado: salto de produção na Líbia no verão local, manutenção das exportações iraquianas, frenesi de extração nos Estados Unidos, onde a exploração de gás de xisto bate recordes. Redução da demanda, aumento da oferta: a queda dos preços parece ditada pela aritmética do mercado. No entanto, ela também se inscreve num contexto geoestratégico que suscita especulações sobre as intenções ocultas dos atores desse drama. A começar pela Arábia Saudita, líder da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), que na década de 1980 assumiu o papel de regulador do preço mundial. Ali al-Naimi, ministro saudita do ouro negro, observa impávido a degringolada dos preços; em uma reunião da Opep no dia 27 de novembro, ele recusou-se até mesmo a reduzir as metas de produção do cartel. Dissecada com lupa, essa passividade logo foi alvo de interpretações impressionantes. Em 10 de
outubro, a agência de notícias turca Anadolu transmitiu a avaliação de um analista saudita segundo a qual, oficialmente, seu país vende petróleo a preço de banana para conservar sua fatia de mercado, mas oficiosamente “A Arábia Saudita quer que o Irã ceda na questão nuclear e que os russos repensem o apoio ao regime sírio.” Muito rapidamente, o influente site de informações Zero Hedge associou a transmissão turca à existência de um “acordo secreto” entre sauditas e norte-americanos: em sua visita a Riad, no dia 11 de setembro de 2014, o secretário de Estado dos Estados Unidos, John Kerry, teria aceitado uma participação maior de seu país na luta contra o presidente sírio, Bashar al-Assad; em troca, o rei Abdallah teria endossado a campanha de bombardeio ocidental contra a Organização do Estado Islâmico e comprometido a Arábia Saudita em uma guerra de preços contra a Rússia e o Irã, dois aliados do regime sírio.2 Mas a falta de entusiasmo dos norte-americanos para derrubar Al-Assad fez os analistas reorientarem a hipótese. “[O governo Obama] quer dobrar Teerã a respeito do programa nuclear. Quer que Putin bata em retirada no leste da Ucrânia. [...] Com a ajuda de seu aliado saudita, os Estados Unidos baixam os preços, inundando de petróleo bruto um mercado já saturado. Como russos e iranianos são exportadores de petróleo, fica mais fácil negociar com eles”, escreve Larry Elliott, jornalista econômico do The Guardian (9 nov. 2014). No caso, descobrir quem se beneficia com o crime não ajuda muito a encontrar o culpado: China e Índia, grandes consumidores de hidrocarbonetos, são os primeiros a se favorecer com o preço baixo. Mas o petroleocentrismo, na análise das relações internacionais, não carece de fundamentos históricos. No século XX, os dirigentes franceses, britânicos, alemães, norte-americanos e russos trabalharam incansavelmente, nos bastidores ou em público, para controlar essa energia fluida e flexível. Os fluxos de hidrocarbonetos reorientaram o comércio, reconfiguraram o sistema monetário, redesenharam
muitas fronteiras. Tantas fortunas, golpes de Estado, ditaduras e intervenções militares fermentaram à sombra das torres de perfuração que a interpretação petrocausal impõe-se como escrita automática. O petróleo fascina e “desperta toda sorte de fantasmas sobre seu suposto papel na agitação política e na eclosão de conflitos armados”.3 Assim, a queda dos preços de 20142015 repetiria o cenário do “contrachoque” do petróleo de 1985-1986: na época, a Arábia Saudita abriu as válvulas e fez os preços despencarem. O movimento fora ditado pelos Estados Unidos, a fim de estrangular a economia soviética, já sem fôlego pela corrida armamentista. Três décadas depois, Putin não descarta que a história se repita. “Há quem fale de uma conspiração entre Estados Unidos e Arábia Saudita para punir o Irã, deprimir a economia russa e abalar a Venezuela”, disse em dezembro. Mas logo amenizou sua afirmação: “Mas também pode ser uma batalha entre produtores tradicionais e produtores de gás de xisto” (Tass, 18 dez. 2014). Isso porque o colapso do preço alimenta um segundo cenário: o de uma manobra saudita contra os norte-americanos. Em 28 de novembro, um despacho de Viena, onde a Opep se recusou a sustentar o preço, relata que “o ministro saudita do petróleo disse aos colegas da Opep que eles devem lutar contra o boom norte-americano de gás de xisto” (Reuters, 28 nov. 2014). O inimigo não estaria, portanto, na Sibéria ou em Teerã, mas em Dakota. “A Arábia Saudita acha que a lei do mercado acabará dobrando os pequenos yankees, que produzem a custos três vezes superiores aos da Península Arábica”, detalhou o Le Monde (22-23 de fevereiro de 2015). Essa hipótese desdobra-se em outras duas. Para Jacques Attali, “a queda do preço do petróleo destemidamente determinada pela Arábia Saudita, contra a vontade e os interesses norte-americanos” (L’Express, 19 fev. 2015), sancionaria a pusilanimidade militar-diplomática dos Estados Unidos. No outro polo do espectro ideológico francês, o economista Jacques Sapir questiona: “Podemos nos perguntar se não há um acordo tácito entre Arábia
Saudita e Rússia para expulsar, ou pelo menos limitar, um novo ator no mercado de hidrocarbonetos”.4 Após o cenário da aliança entre Estados Unidos e Arábia Saudita para arruinar os russos e o das intrigas sauditas – e russas? – para enfraquecer os norte-americanos, uma nova interpretação surgiu: “A América matou a Opep”, disse Eduardo Porter, do The New York Times (22 jan. 2015); desde 1973, os Estados Unidos tentam libertar-se de sua dependência em relação ao cartel, subvencionando maciçamente a pesquisa de tecnologias responsáveis pelo boom do petróleo. Para o famoso consultor Daniel Yergin, a Opep, incapaz de elevar os preços diante do fluxo de gás de xisto, teria “passado sua responsabilidade de regulador do mercado” para os Estados Unidos (The New York Times, 25 jan. 2015). Em matéria de política energética, hipóteses contraditórias não necessariamente se anulam – a maioria dos participantes destaca-se na arte do jogo duplo. Algumas coisas são certas: seis meses de petróleo em liquidação animaram as empresas de transporte e os países pobres em recursos fósseis; afligiram as nações produtoras mais frágeis (sobretudo na África); adiaram indefinidamente a perspectiva de uma economia livre do carbono; e desestabilizaram as multinacionais do petróleo que haviam apostado na perenidade dos preços altos para alargar ainda mais as fronteiras geográficas e geológicas da extração.5 *Pierre Rimbert é membro da direção e da redação do Le Monde diplomatique. 1 Thomas Friedman, “The First Law of Petropolitics” [A Primeira Lei da Petropolítica], Foreign Policy, Washington, 16 out. 2009. 2 “Why Oil Is Plunging” [Por que o petróleo está afundando], 11 out. 2014. Disponível em: <www. zerohedge.com>. 3 Marc-Antoine Pérouse de Montclos, “Les fantasmes géopolitiques du pétrole dans les pays en guerre… ou pas” [Os fantasmas geopolíticos do petróleo em países em guerra... ou não], Hérodote, n.155, Paris, 2014. 4 Jacques Sapir, “Rouble, pétrole et idéologie” [Rublo, petróleo e ideologia], 13 dez. 2014. Disponível em: <http://russeurope.hypotheses.org/>. 5 Michael Klare, “Big Oil’s Broken Business Model” [Modelo de negócio da grande quebra do petróleo], 12 mar. 2015. Disponível em: <http://mondediplo.com>.
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A “NEUTRALIDADE” DOS CREDORES
Em Atenas, a mídia de joelhos Raramente os interesses do dinheiro e da imprensa se encontram em uma simbiose tão próxima quanto na Grécia. Será que a “retomada democrática” anunciada pelo Syriza após a vitória nas eleições em janeiro poderá também libertar a informação? POR VALIA KAIMAKI*
nais diários – o Ta Néa, ligado ao Partido Socialista Grego (Pasok) – vende somente 18 mil exemplares por dia. Outro jornal histórico, o Eletherotypia, desapareceu no início da crise. A difusão dos semanários caiu de mais de 1,5 milhão de exemplares para cerca de 600 mil. A maior parte das empresas de imprensa escrita é deficitária, e a maioria das vendas dos diários depende da oferta promocional da semana, como cupons de desconto. Nessas condições, esses proprietários – recrutados entre as grandes fortunas do país, sobretudo os empresários da indústria naval, que não pagam impostos – não esperam que seus investimentos lhes proporcionem lucros. Possuir um grupo de imprensa lhes oferece, em contrapartida, uma influência política suscetível de lhes permitir conquistar mercados públicos. O grupo Pegasus, por exemplo, que edita os diários Ethnos e Proto Thema, pertence à família Bobolas, especializada no setor de construção e em obras públicas, e principal beneficiária dos contratos públicos de construção nos últimos vinte anos. Desde o início da crise, os meios de comunicação se aliaram às elites políticas para facilitar a maquiagem da realidade econômica do país – para a qual havia trabalhado o banco de investimento Goldman Sachs – e disfarçar a amplitude da corrupção. Eles também apoiaram o programa de austeridade imposto pela Troika (Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e Comissão Europeia) pelo fato de que uma grande parte das medidas recomendadas correspondia a suas preferências. “O grupo DOL [Lambrakis Press Group] esteve entre os primeiros a colocar em prática uma das principais medidas impostas pela Troika: a supressão das convenções
coletivas por ramo de trabalho em benefício das convenções por empresa”, esclarece Smyrnaios. “Ele conseguiu assim impor uma queda salarial de 22% a seus empregados.” Tudo que poderia levar a desacreditar o programa do Syriza encontrava um forte eco. Em 2013, por exemplo, as grandes redes de televisão transmitiram um vídeo em que um líder da coalizão antiausteridade explicava: “Vamos sair do euro!”. Seu discurso tinha sido truncado porque a sequência esclarecia: “Se, e somente se [a chanceler alemã Angela], Merkel nos colocar para fora”. Foi preciso que o Syriza ameaçasse as redes de processos judiciais para que elas parassem com a transmissão. Todas as pesquisas mostram: a maior parte dos gregos não é favorável ao abandono da moeda única. Além do relançamento econômico do país, o programa do Syriza prevê uma “retomada democrática” que passa pela regulamentação do setor de comunicações, o que distingue a coalizão das outras formações gregas. Ela se empenhou, assim, em fazer que as empresas de audiovisual paguem pelas licenças que lhes são concedidas. Sua atribuição permanente se traduziria por um controle aprofundado da composição do capital das empresas, de sua proveniência, de sua viabilidade e de suas incompatibilidades eventuais com outros investimentos. A medida poderia mudar o jogo: a maioria das redes sobrevive graças a empréstimos – a taxas favoráveis – concedidos pelos bancos, com a bênção dos governos precedentes. Surpresa: desde a eleição de Alexis Tsipras, as grandes redes parecem ter mudado de atitude em relação a ele e pintam o novo governo de maneira menos cáustica... Outra questão-chave: a da radiotelevisão nacional (ERT), fechada em ju-
nho de 2013 pelo governo de Antonis Samaras. Reunido em torno de sindicalistas e apostando numa eventual vitória do Syriza, um núcleo de assalariados rejeitou a proposta do antigo governo: reabrir com um efetivo de pessoal reduzido em um terço. Expulso dos locais da rede pelas forças da ordem em dezembro de 2013, esse grupo criou uma estrutura autogerada que reivindica o título de “verdadeira ERT”. Todavia, um grande número de jornalistas e técnicos o deixou desde então, em desacordo com a maneira autoritária do ex-presidente do sindicato e sua forma opaca de gerir o caixa da greve. Resultaram dessa cisão duas estruturas distintas, às quais não pertence, aliás, a maior parte dos ex-empregados da ERT, vítimas ao mesmo tempo da Troika (que diminui seus seguros-desemprego) e da queda de braço entre seus colegas e os partidos políticos. O Syriza prometeu reabrir a ERT, mas não parece ter pressa para isso. Aliás, ela não cedeu aos sindicalistas que exigiam retomar a estrutura de maneira idêntica ao que era e se mostra mais favorável à criação de um organismo baseado em novas fundações, em ruptura com o caráter estatal de antes. *Valia Kaimaki é jornalista em Atenas.
1 Fabienne Schmitt, “Fréquences télécoms: un jackpot à 45 milliards pour l’État américain” [Frequências de telecomunicação: um grande prêmio de 45 bilhões para o Estado norte-americano], Les Échos, Paris, 30-31 jan. 2015. 2 “O déficit empresarial dos meios de comunicação gregos” (em grego), 2 jul. 2009. Disponível em: <www.medium.gr/a/3275-1549.html>. 3 Nikos Smyrnaios, “Grèce: la fabrication du consentement par les médias” [Grécia: a fabricação do consentimento pelos meios de comunicação], 26 fev. 2012. Disponível em: <www.ephemeron.eu> (todas as citações de Smyrnaios foram tiradas desse artigo).
© Daniel Kondo
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os Estados Unidos, leilões lançados em novembro de 2014 e destinados a atribuir cerca de 1,5 mil frequências do espectro hertziano atingiram US$ 45 bilhões.1 Nada comparável à Grécia. Ali as redes de televisão e de rádio privadas dispõem de licenças ditas “provisórias” desde 1989. E não pagaram um único centavo ao Estado. Há alguns anos, o jornalista Paschos Mandravelis resumia assim a situação: o funcionamento dos meios de comunicação gregos não se inscreve no quadro de um mercado da informação, e sim no de um “mercado da política”.2 A proximidade entre esses dois mundos surgiu, aliás, em plena luz do dia, em novembro de 2011, quando o diretor do jornal diário Ta Néa, Pantelis Kapsis, deixou o cargo para se juntar ao governo de Lucas Papademos, um ex-banqueiro. Como ressaltou na época o jornalista Nikos Smyrnaios, a família Kapsis nem por isso desaparecia da imprensa: Manolis, o irmão de Pantelis, “atua[va] todos os dias no jornal televisivo da Mega Channel, onde, como comentador político, apoia[va] esse mesmo governo”.3 Hoje, uma população de cerca de 11 milhões de habitantes se vê diante de não menos de trinta diários e semanários nacionais, uma dezena de jornais esportivos diários, seis redes de televisão privadas (que se somam a duas redes nacionais) e 150 redes locais, sem contar cerca de mil estações de rádio. Obviamente, todos esses órgãos de imprensa não podem coexistir de maneira autônoma. E muito menos o mercado publicitário, que garante uma parte dos recursos e segue a curva da produção de riquezas do país, em queda livre. A verdade é que a imprensa está agonizando. Um dos principais jor-
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VIAGEM AO INTERIOR DE UMA MULTINACIONAL PATERNALISTA
Tata, uma lenda indiana Em Hayange, na região francesa de Lorraine, onde produz trilhos de aço, a indiana Tata parece “gentil” se comparada à sua compatriota Mittal, que fechou brutalmente seus dois últimos altos-fornos. Mas isso não a impediu de ir embora. Na Índia, a corrida pela rentabilidade agita a multinacional, que até agora consegue combinar paternalismo, nacionalismo e capitalismo
© Reuters / Parth Sanyal
POR JYOTSNA SAKSENA*, CORRESPONDENTE ESPECIAL
Nano, o carro mais barato do mundo, que custa R$ 4,5 mil, em exposição na cidade de Calcutá
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alores mais fortes que o aço.” O slogan do maior complexo siderúrgico da Índia, a Tata Steel, destaca a singularidade do grupo, maior conglomerado privado do país. Os valores em questão – confiança, confiabilidade, responsabilidade social – ecoam os princípios estabelecidos por seu criador, Jamshetjee Nuswarjee Tata (muitas vezes chamado simplesmente de Jamshetjee). Na Índia, todo mundo conhece a lenda da família Tata, fundadora de um império que atinge quase todas as áreas da vida: da indústria agroalimentar à informática, passando pelo aço, indústria química, energia, setor automotivo, cosméticos. Impossível escapar dos produtos do grupo. Para a população, a Tata continua associada à construção nacional: ela se confunde com o desenvolvimento do país e
com seu destino econômico desde o fim do século XIX. LIBERDADE POLÍTICA E FORÇA ECONÔMICA
Sua história começa em 1868, quando Jamshetjee lançou-se na indústria têxtil, depois de abandonar o negócio de importação e exportação da família, ativa no comércio de ópio com a China.1 Com seu filho mais velho, Dorab, e um primo, Ratan Dadabhhai Tata, ele montou a empresa hoje conhecida como Tata & Filhos (Tata Sons), principal holding do grupo. Próximo do Partido do Congresso, criado em 1884, que teria Mahatma Gandhi como figura principal, Jamshetjee logo adotou a perspectiva da independência. Convencido de que as liberdades políticas dependem da força econômica, ele quis desenvolver áreas tão diversas como siderurgia, energia e pesquisa
científica. Sua visão do desenvolvimento e da modernização do país foi tal que, meio século depois, o primeiro-ministro Jawaharlal Nehru disse que “Jamshetjee sozinho valia por toda uma Comissão de Planejamento”. Mas seus projetos só se concretizaram após sua morte, em 1904. Foi sob a autoridade colonial britânica que a Tata criou seus primeiros negócios nas áreas de aço, energia, cimento, petróleo, seguros, produtos químicos, aeronáutica, automóveis. Em 1911, fundou o hoje célebre Instituto de Ciência de Bangalore, cidade que se tornou um emblema da modernidade, sobretudo na área de informática e tecnologia da informação. Em 1944, em Mumbai, nasceu o Instituto Tata de Pesquisa, que depois veio a se tornar o prestigiado Instituto de Pesquisa Atômica. Grandes nomes da ciência e
da indústria estão ligados a ele, como C. V. Raman, Prêmio Nobel de Física em 1930, e o professor Homi Bhabha, pai da bomba atômica indiana. Após a independência, em 1947, a expansão apoiou-se na política de desenvolvimento autônomo da Índia, conduzida pela nova equipe no poder com base no planejamento, na indústria pesada, na política industrial nacional de “substituição das importações” e na proteção do mercado interno. Símbolo dos laços entre a economia e a política, Nehru confiou a diversos diretores do grupo Tata funções importantes em seu governo, inclusive o Ministério das Finanças, oferecido a John Mathai em 1948. Desse modo, a Tata pôde contar com um mercado protegido, que lhe permitiu tornar-se um dos grandes grupos monopolistas da economia nacional. Ela se diversificou para a produção de aparelhos de ar-condicionado, chá, tecnologia da informação, relógios, joias e óculos... Foi ela que lançou a primeira marca de cosméticos indiana, a Lakmé, socorrendo Nehru quando este teve de enfrentar os protestos femininos contra a proibição da importação desse tipo de produto. O grupo teve alguns contratempos com a nacionalização de sua companhia aérea, a Air India International, em 1953, e de suas operações de seguros. Mas isso não o impediu de crescer, passando de catorze empresas em 1938 para 85 em 1991, sob a tutela de Jehangir Ratan Dadabhoi Tata (conhecido pelas iniciais JRD), sobrinho de Jamshetjee e outra “lenda” da família. Ele foi o único empresário a receber uma homenagem póstuma no Parlamento indiano, em novembro de 1993. Em 1992, às vésperas da liberalização da economia indiana e de sua abertura, a receita do grupo representava quase 2% do PIB. A Tata passou então a investir no exterior, especialmente no Reino Unido, onde comprou o chá Tetley, a siderúrgica Corus e a fabricante de automóveis Jaguar-Land Rover. Na Índia, reestruturou-se e continuou diversificando-se: lançou-se na telefonia móvel, assumiu o controle do
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principal servidor informacional (internet, televisão digital, telecomunicações), produziu o primeiro carro inteiramente fabricado na Índia, e depois o Nano, o carro mais barato do mundo... Em 2013, fundou, em colaboração com a Singapore Airlines, a companhia aérea Vistara.
A Tata também investe na criação de produtos para a população de baixa renda. É famosa a invenção de um aparelho doméstico de filtragem de água vendido por R$ 50 VIOLÊNCIA E PATERNALISMO
A Tata construiu sua reputação de “grupo diferente” adotando uma gestão paternalista. No fim do século XIX, em suas fábricas têxteis, Jamshetjee criou um fundo para aposentadoria e outro para acidentes de trabalho, construiu casas, equipamento esportivo... “Não queremos ser mais altruístas, generosos ou filantrópicos que os outros”, explicou. “Mas seguimos princípios simples e sólidos, considerando que os interesses de nossos acionistas são os nossos interesses e que a saúde e o bem-estar de nossos funcionários são a mais segura fundação de nossa prosperidade.”2 Em conformidade com esses “melhores interesses”, a jornada de oito horas, a assistência médica gratuita e as férias remuneradas foram introduzidas na empresa siderúrgica Tata Iron and Steel Company Limited (Tisco), fundada em 1907 por Dorab, sucessor de Jamshetjee. Em 1908, ele mandou construir do zero uma cidade inteira, Jamshedpur, também chamada Tatanagar (“Cidade de Tata”), para os empregados de uma fábrica em uma das regiões mais pobres da Índia, o atual estado de Jharkhand. Os povos tribais foram expulsos de suas terras, e sua resistência foi violentamente reprimida. A empresa conseguiu uma localização excepcional (próximo a fontes de água e minas de ferro) e uma concessão quase gratuita do terreno, renovada por sucessivos governos como contrapartida pelo desenvolvimento da cidade. Além disso, obteve dedução de impostos dos custos de construção. Para atrair e reter a mão de obra, a empresa ofereceu aos trabalhadores direito a moradia, escolas gratuitas, atendimento médico e instalações desportivas, além de garantia de acesso a água. Rodeada por colinas verdejantes, Jamshedpur hoje parece um modelo de urbanismo, com largas avenidas ar-
borizadas, belos parques paisagísticos, lagos e rios, casas para executivos, inúmeros centros científicos, culturais e desportivos, tudo patrocinado pela companhia. O mais impressionante, porém, está na limpeza e no acesso, dia e noite, à energia elétrica e água potável, um luxo na Índia... O ar é puro, apesar da presença de grandes fábricas, como as da Tata Steel (que continua a ser chamada de Tisco), Tata Motors e Tata Power. Mas nem toda a população goza dessa qualidade de vida. Extensa, Jamshedpur não conta com uma administração pública unificada. A parte arrendada – a “Cidade do Aço”, como é chamada (cerca de um quarto da área da cidade) – continua sendo administrada pelos dirigentes de uma filial da Tisco. Entre ela e o resto da cidade, o contraste é impressionante, em termos de infraestrutura e equipamento urbano. Quase três quartos da população, que não trabalham para a empresa, não podem usufruir seus serviços. Outra particularidade da multinacional: o controle exercido até hoje pelos membros da família, graças a um sistema de fundações de caridade. Elas detêm 66% das ações da holding principal, a Tata & Filhos. Em virtude de seu caráter caritativo, elas contam com uma tributação muito vantajosa, que pode chegar à isenção total de impostos sobre os lucros. Em média, 10% de suas imensas receitas são utilizadas para financiar atividades sociais e ambientais de ONGs, entidades de saúde e educação, ações culturais, centros de pesquisa... Todas vitrines para a grandeza da Tata. Cada empresa do grupo deve conduzir suas ações filantrópicas com recursos próprios. Isso permite reduzir os impostos, e essas atividades “proporcionam uma melhor integração da empresa a seu ambiente geográfico”, explica Ashok Kumar Mattoo, que trabalhou para a Tata Steel durante 22 anos como chefe de recursos humanos e serviços sociais. Isso contribui para a aura do grupo. Desse modo, a Tata Steel criou uma ONG em Jamshedpur, a Sociedade para o Desenvolvimento Rural, cuja atividade envolve mais de seiscentas aldeias nos estados de Jharkhand e Odisha (ex-Orissa). Outras práticas contribuem para alimentar o mito. Em 2002, quando fraudes afetavam a filial financeira, à beira do colapso, Ratan Tata assumiu publicamente o compromisso de pagar cada centavo a seus clientes, cuja maioria era composta por pessoas que corriam o risco de ver todas as suas economias roubadas. Palavra cumprida, com um custo de quase R$ 2,4 bilhões. Uma ameaça à imagem do grupo que, paradoxalmente, ajudou a fortalecer sua reputação.3
A Tata também investe na criação de produtos para a população de baixa renda. É particularmente famosa a invenção de um aparelho doméstico de filtragem de água, vendido por mil rúpias (R$ 50) – equipamento de valor inestimável em um país onde centenas de milhares de famílias não têm acesso a água potável. Também ficou célebre o desenvolvimento de um sistema de alerta meteorológico para os pescadores, após o tsunami de 2004. Mas o exemplo mais emblemático é o Nano: diz a lenda que Ratan Tata, observando uma família de quatro pessoas em uma scooter – modo de transporte tão comum quanto perigoso –, projetou a carroceria de um carro em torno de duas rodas, entregou aos engenheiros da Tata Motors e pediu que o produzissem ao preço de R$ 4,5 mil. A REESTRUTURAÇÃO E A REDUÇÃO DE DESPESAS
Essa gestão paternalista e um sistema de sindicatos de fachada garantem a raridade dos movimentos sociais. Operando de forma autônoma, as empresas têm seus conselhos de administração e seus sindicatos. Os funcionários (não executivos) são fortemente encorajados a se sindicalizar – na verdade, é quase obrigatório. Paralelamente, há uma cultura da consulta e da negociação. As questões relativas a condições de trabalho e salários são definidas nos comitês consultivos de cada fábrica. Nos últimos anos, apenas alguns movimentos sociais eclodiram, entre eles o da Tata Motors, em 1988, que reivindicava aumentos salariais e a reintegração de um sindicalista demitido (somente a demanda salarial foi atendida), e depois o da Titan Industries (fabricante de relógios e óculos), em 2003, contra a tentativa de vincular os salários à produtividade.
A direção consegue a “queda do custo de produção” sem tocar no salário dos permanentes, mas aumentando a precariedade e a produtividade Mas o tempo do paternalismo generoso parece ter ficado para trás. É chegada a era da globalização, da reestruturação e da redução de despesas salariais. Em toda parte, a direção consegue a “queda do custo de produção” sem tocar no salário dos funcionários permanentes, mas aumentando a precariedade e a produtividade. Por exemplo, metade da força de trabalho foi cortada na Tata Steel da Índia, passando de 77.448 pessoas em
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O GRUPO EM NÚMEROS – Data de nascimento: 1868. – Holdings: Tata & Filhos (Tata Sons, fundada em 1886) e Tata Industries (1944). – O grupo é dividido em várias empresas, incluindo Tata Consultancy Services, que inclui 60% da capitalização do grupo, Tata Motors (18,4%) e Tata Steel (6,4%). – Volume de negócios: US$ 103,27 bilhões (ano fiscal março 2013-março de 2014), dos quais 67,2% foram provenientes de operações no exterior. – Lucros: US$ 5 bilhões para o ano fiscal 2011-2012. – Efetivos: 581.473 empregados; 57,7% na área de tecnologia da informação e comunicações; 15% em engenharia; 13,9% nos materiais; 7% em serviços; 3,7% em bens de consumo; 1,6% em energia; e 1% em química. – Principais atividades e classificações mundiais: • Aço: 11º produtor mundial. • Veículos pesados: 4º. • Bicarbonato de sódio: 2º. • Serviços informacionais: 10º. • Chá: 2º. O grupo também está muito presente na telefonia e internet, nos serviços de telecomunicações para empresas e na hotelaria, com a Indian Hotels e o célebre Taj Mahal Hotel, em Mumbai.
1994 para 36.199 em 2013. As demissões voluntárias e aposentadorias foram incentivadas. Como indica um funcionário da Tisco, que pede anonimato, o primeiro plano de reestruturação da década de 1990, em Jamshedpur, ofereceu 1,2 salário mensal para o período de serviço restante, sem o benefício, é claro, de indexar à inflação (da ordem de 12% a 15% ao ano). Em caso de morte antes dos 60 anos, o benefício seria transferido à família. Logo vieram outros planos, muito menos vantajosos. Além disso, algumas conquistas foram suprimidas, como a cláusula de contratação obrigatória de um membro da família após a aposentadoria de um funcionário, introduzida por JRD Tata na carta da fábrica em 1968. Os planos foram negociados pelos dirigentes da Tata Workers Union (TWU), sindicato único da Tata Steel, muito rico, que dispõe de um fundo social para os membros e suas famílias. Eles eram “inevitáveis para a sobrevivência da empresa”, explicam longamente os líderes sindicais na sede da TWU, um belo edifício de dois andares, com ar-condicionado, no centro da cidade. Sempre com o consentimento do sindicato, em 2008 a direção decidiu
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abandonar o Comitê Nacional da Metalurgia, que negocia os salários do setor em nível nacional. Em 2010, uma revisão da grade salarial foi negociada na Tata Steel. Incluindo uma ajuda de custo no salário-base, o acordo prevê que as novas contratações de operários, supervisores e engenheiros sejam baseadas em uma nova grade, que reduz o pagamento em 25%. A ajuda de custo deixou de ser indexada à inflação, que, no entanto, continua alta (9,3% em 2014). Outros auxílios (moradia, transporte, adicional noturno etc.) também foram reduzidos. Assim, para o mesmo trabalho, os trabalhadores recebem valores diferentes, dependendo da data da contratação. Quando perguntamos por que o sindicato aceitou tal retrocesso, os líderes apontam a antiga direção sindical, mas não questionam o que foi assinado, pois a Tata cortou, segundo eles, “apenas” 20% dos benefícios históricos. O orgulho de pertencer à Tisco Jamshedpur faz o resto. Embora alguns funcionários tenham contestado o acordo, não lhes parecia possível criar outro sindicato. “No momento da contratação”, diz um deles, “é obrigatório aderir ao sindicato, é uma regra implícita. Aliás, todos os operários permanentes são membros. Às vezes, militantes da Central dos Sindicatos Indianos [Citu, filiada ao Partido Comunista da Índia] distribuem panfletos na porta da fábrica. Mas cuidado para não ser visto perto deles, ou você pode acabar no olho da rua...” E logo acrescenta: “Embora alguns dos benefícios conquistados tenham sido – e possam ser – suprimidos, no atual clima de liberalização econômica, a Tisco não vai retroceder em muitos avanços do século passado que proporcionaram, para nós e nossas famílias, a qualidade de vida que gozamos hoje...”. Muita gente acredita nisso.
“No momento da contratação, é obrigatório aderir ao sindicato, é uma regra implícita. Todos os operários permanentes são membros” A Tisco emprega cada vez mais mão de obra fornecida por um intermediário independente, uma espécie de agência de trabalho temporário. Esses empregados temporários não são protegidos pela TWU e não contam com os benefícios reservados aos funcionários permanentes. Mesmo assim, eles preferem trabalhar na empresa. Na saída da fábrica, um deles – um ho-
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mem de seus 30 anos, cujo pai e avô ali trabalharam até se aposentarem – explica por quê: “Tenho certeza de que vou receber no fim do mês, tenho direito ao refeitório da fábrica, cobertura de saúde, e as relações de trabalho são, de qualquer modo, melhores que em outros lugares...”. Esses temporários recebem apenas o salário mínimo fixado pelo Estado, quatro a cinco vezes menor que o dos funcionários permanentes, e não estão protegidos pelas leis trabalhistas no que concerne à demissão. Portanto, não é de estranhar que seu número continue aumentando, a ponto de chegar a 12 mil em Jamshedpur. Em outras empresas – como a Tata Consultancy Services, fundada em 1968 e hoje o florão do grupo, já que emprega quase 60% de seus efetivos e é, de longe, a mais rentável –, nem os funcionários permanentes estão livres das demissões. Não sindicalizados, eles podem, apesar da alta qualificação, ser colocados para fora com apenas um mês de aviso prévio. EXPLORAÇÃO E CORRUPÇÃO
As críticas mais virulentas dirigem-se às atividades da Tata nas regiões de floresta, ricas em minerais e habitadas por uma população muito pobre, constituída por tribos (habitantes autóctones) e dalits (ver boxe). Uma subfilial do grupo, a Amalgamated Plantations Private Limited (APPL), está na berlinda por violar os direitos dos trabalhadores em plantações de Assam e Bengala Ocidental. A mão de obra, majoritariamente feminina, é recrutada entre as populações tribais e os dalits. A APPL, que tem entre seus acionistas um dos órgãos do Banco Mundial (International Finance Corporation, IFC), é acusada de não respeitar leis trabalhistas, não fornecer equipamentos de proteção e usar a violência... Os resultados da investigação oficial, realizada após reclamações de ONGs, ainda não são conhecidos.4 Essas controvérsias encontram relativamente pouca ressonância na grande mídia indiana, embora grupos de defesa e círculos universitários façam um trabalho muito importante em relação a essas lutas. Com a campanha “Jaago Re!” (Acorde!), a Tata Tea, entre os indianos, é mais lembrada por sua imagem positiva do que pela situação particular dos direitos humanos em suas plantações. Ainda mais prejudicial para a Tata é a associação de seu nome à lista de escândalos públicos ligados ao último governo de Manmohan Singh (20092014), em torno de irregularidades na atribuição de licenças de telecomunicações (escândalo 2G) e revelações das “fitas de Radia” – publicação de conversas telefônicas relacionadas às conexões entre o mundo dos negócios,
os políticos, a alta administração e a mídia. Há menções a subornos envolvendo a Tata Motors em um mercado público de ônibus em Tamil Nadu e a Tata Steel na obtenção de licença para explorar uma mina de ferro em Jharkhand.5 As investigações ainda estão em curso. Somam-se a isso litígios com a administração fiscal sobre algumas de suas empresas, entre elas a Apex Investments, com sede nas Ilhas Maurício, um paraíso fiscal.
As críticas mais virulentas dirigem-se às atividades da Tata nas regiões de floresta, ricas em minerais e habitadas por uma população muito pobre
No entanto, o grupo está longe de ter esgotado seu crédito junto à opinião pública. Por quanto tempo? Desde 28 de dezembro de 2012, pela pri-
meira vez na história do grupo, já não é um Tata quem dirige a multinacional, mas Cyrus Mistry Pallonji. A irmã de Cyrus, porém, casou-se com Noel Tata – meio-irmão de Ratan Tata, o qual cedeu o posto de diretor-geral –, e seu pai detém 18% das ações da Tata & Filhos. Não estamos em terreno desconhecido. O novo chefe publicou, em julho de 2014, sua projeção para 2025, prometendo um investimento de US$ 35 bilhões nos próximos três anos, a fim de “consolidar e ampliar” o império. *Jyotsna Saksena é cientista política.
1 Cf. Amalya Bagchi, “JRD Tata 1904-1993”, Economic and Political Weekly, v.28, n.52, Mumbai, 25 dez. 1993. 2 Russi M. Lala, The Creation of Wealth [A criação de riqueza], Penguin Books India, Nova Déli, 2004. 3 Morgen Witzel, The Evolution of a Corporate Brand [A evolução de uma marca corporativa], Penguin Books India, Nova Déli, 2010. 4 Max Bearak, “Hopes, and Homes, Crumbling on Tea Plantations” [Esperanças, e famílias, arruinadas em plantações de chá], The Hindu, Nova Déli, 17 fev. 2014. 5 “2G Scam” [Escândalo 2G], 13 ago. 2014. Disponível em: <www.business-standard.com>; “Radia Tapes” [As fitas de Radia], 29 ago. 2014. Disponível em: <www.firstpost.com>.
MONOPÓLIO FACILITADO PELAS AUTORIDADES LOCAIS
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o início dos anos 1990, o governo do estado de Odisha (ex-Orissa) decidiu montar um complexo industrial. Para isso, comprou terras dos camponeses de Kalinganagar. De início, estes consentiram, esperando uma melhora de suas condições de vida, mas logo veio a desilusão. Sem título de propriedade, muitos não receberam nada. Para os outros, o montante recebido revelou-se irrisório em comparação com o preço de venda depois proposto pelo governo às empresas. As ofertas de realocação e reconversão foram pouco satisfatórias. Em 1997, quando se deram as primeiras expulsões, houve incidentes violentos entre a polícia e os camponeses. Em seguida, formou-se uma organização – a Visthapan Virodhi Jan Mancha (Fórum dos Povos contra o Deslocamento) – para defender a causa dos camponeses. Quando a Tata Steel decidiu construir uma nova usina siderúrgica integrada, com capacidade para 6 milhões de toneladas, muitos confrontos ocorreram. Em 2006, foi sob proteção policial que ela tomou posse dos terrenos adquiridos. Nos confrontos, treze pessoas foram mortas, incluindo um policial, e 37 autóctones foram feridos. De acordo com o grupo, após esses incidentes e outros, ocorridos em 2010, as populações receberam indenizações melhores e promessas de emprego de pelo menos um adulto para cada família
deslocada. A primeira fase da construção da usina foi concluída. A produção está prevista para começar em abril. Quando estiver pronta, a Tata Steel produzirá 16 milhões de toneladas nas plantas de Jharkhand e Odisha. Os defensores da causa tribal contam uma versão da saga Tata bem diferente da lenda. Eles também citam os exemplos do projeto de expansão das minas de ferro em Noamundi e de uma siderúrgica de 5 milhões de toneladas em Lohandiguda. Nessa cidade de Chattisgarh, dizem, procedimentos regulamentares foram manipulados a fim de obter o consentimento dos conselhos de aldeia, os gram sabha, e a autorização ambiental.1 A mesma controvérsia paira sobre o acordo relacionado a uma mina de carvão em Gopalpur, Odisha. Os moradores dizem que nunca foram consultados, enquanto as autoridades administrativas afirmam o contrário. De qualquer forma, a licença foi cancelada pela Corte Suprema, como quase todas aquelas concedidas entre 1993 e 2010, em razão de sua atribuição “arbitrária” e “ilegal” pelo governo indiano. (J.S.) 1 Cf. Purnima Tripathi, “Battle of Bastar” [Batalha de Bastar], Frontline, v. 29, Madras (Chennai), 21 abr.-4 maio 2012, ou “Singur Rerun in Bastar, Tata’s Project Hangs Fire” [Singur se repete em Bastar: projeto da Tata trava], 15 ago. 2013. Disponível em: <www. indiatimes.com>.
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JUVENTUDES REBELDES DA ÁFRICA – NIGÉRIA
O fim da “geração silenciosa” Em 2012, a repressão policial sobre os protestos contra o preço da gasolina na Nigéria tinha causado a morte de quinze pessoas, entre elas Mustapha Muyideen, de 23 anos, transformado no símbolo de uma juventude maltratada. Seja o que for que venha a acontecer no futuro, a “geração silenciosa” não mais irá se calar POR ALAIN VICKY*
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um país como a Nigéria, que tem 65 milhões de internautas, não é raro que as redes sociais se agitem. Assim ocorreu no sábado, 7 de fevereiro, por volta do meio-dia, quando se difundiu uma notícia transmitida pela agência Reuters a partir de Dakar (no Senegal): previstas para 22 de fevereiro, as eleições parlamentares e presidencial, que se resumem a um duelo que opõe o presidente que vai sair, Goodluck Jonathan, ao general aposentado e ex-ditador Muhammadu Buhari, foram adiadas para 28 de março. A Comissão Eleitoral Nacional Independente estima que o Exército, às voltas com o Boko Haram no norte do país,1 não está em condições de assegurar a segurança do pleito. “Depois desse relatório”, confessa a cantora e militante Aduke Ayobamidele Aladekomo, “começo a sentir medo. Mensagens cada vez mais violentas invadem as redes sociais.” Nas eleições presidenciais de 2011, Aduke, filha de um dentista e de uma jurista, ex-estudante de História e de Estudos Estratégicos na universidade pública de Lagos – a capital econômica –, não se preocupava com política. “De fato”, explica a jovem, “como a maior
parte da minha geração nascida na década de 1990, no fim dos anos da ditadura, eu era despreocupada e silenciosa. Eu pensava principalmente em aproveitar o dinamismo que nosso país reencontrara.” O ano de 2012, porém, marcou uma virada. A Nigéria foi varrida pela mais importante onda de contestação desde sua independência, em 1960, desencadeada pelo fato de a gasolina na bomba ter dobrado de preço subitamente após a decisão governamental de acabar com os subsídios aos combustíveis. No início de janeiro de 2012, Aduke gravou “Hear the Voice”,2 uma canção dedicada “àqueles que não podem se expressar, aos invisíveis, a todos os que sobrevivem numa pobreza abjeta”. Esse trecho da música, cujo clipe foi exibido durante as manifestações, tornou-se o hino dos jovens manifestantes. Durante uma semana, eles tiveram como companheiras de cólera centenas de milhares de pessoas, que incluíam funcionários e operários, desempregados e empregados do setor privado, organizações religiosas pentecostais e muçulmanas, atores de Nollywood.3 Em 2014, a forte desvalorização da naira contribuiu
para encarecer ainda mais o custo dos produtos importados de primeira necessidade. Numa população de 170 milhões de nigerianos, 64 milhões têm entre 15 e 34 anos, e dois terços deles estão sem emprego.4 Aduke divide a vida entre sua pequena empresa, onde fabrica camisetas, e a criação musical. Seu último show, em 25 de fevereiro, foi organizado pelo Freedom Park de Lagos em benefício do Enough is Enough [Só o necessário] Nigeria. A organização é dirigida por Yemi Adamolekun. Criada em 2010, ela reúne movimentos de jovens que lutam pela melhoria das condições de vida e contra a corrupção. A coalizão os convida a ir às urnas e conta com as redes sociais, como proclama seu site (www.eie.ng), para atingir a maior quantidade deles. Em 2014, 11 milhões de nigerianos estavam inscritos no Facebook e cerca de 6 milhões eram ativos no Twitter.5 O Enough is Enough conta com vários apoios externos, sobretudo o da rede Open Society Foundations, do bilionário George Soros. Em 2012, depois que o presidente Jonathan finalmente aceitou reduzir o preço da gasolina, as duas principais
centrais sindicais, a Nigeria Labour Congress e a Trade Union Congress, anunciaram a suspensão das manifestações. Estudantes pensaram por um tempo em prosseguir com o movimento, antes de abandoná-lo. A repressão policial tinha causado a morte de quinze pessoas, entre elas Mustapha Muyideen, de 23 anos, transformado no símbolo de uma juventude maltratada. Seja o que for que venha a acontecer no futuro, a “geração silenciosa” não mais irá se calar. *Alain Vicky é jornalista. 1 Ler Rodrigue Nassa Ngassam, “Le Cameroun sous la menace de Boko Haram” [Camarões sob a ameaça do Boko Haram], Le Monde diplomatique, jan. 2015. 2 É possível assistir ao clipe on-line. 3 Nome dado à indústria cinematográfica da Nigéria, uma referência a Hollywood. 4 Tunji Akande, “Youth Unemployment in Nigeria: A Situation Analysis” [Desemprego entre os jovens na Nigéria: uma análise da situação], Brookings, 23 set. 2014. 5 Christopher Akor, “From Subalterns to Independent Actors? Youth, Social Media and the Fuel Subsidy Protests of January 2012 in Nigeria” [De subalternos a atores independentes? Juventude, mídias sociais e os protestos pelo subsídio do combustível de janeiro de 2012 na Nigéria]. Disponível em: <http://codesria.org/IMG/pdf/chris_ akor_nigeria.pdf>.
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JUVENTUDES REBELDES DA ÁFRICA – SENEGAL
Quando os jovens dão uma aula Três anos depois de ter contribuído consideravelmente para a derrota do presidente Abdoulaye Wade nas eleições presidenciais de 2012, o movimento Y en a Marre (Yeam) [algo como “Já deu” ou “De saco cheio”] procura escrever seu futuro fora das lógicas partidárias e mais perto da realidade concreta POR JACQUES DENIS*, ENVIADO ESPECIAL
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niversidade Cheikh-Anta-Diop, de Dakar, sexta-feira, 13 de fevereiro, 16 horas. Todo mundo é convidado a rezar, depois a cantar o hino nacional do Senegal. É o ritual de toda conferência organizada pelo movimento Y en a Marre (Yeam). Sob uma tenda branca, estudantes e professores discutem as manifestações que agitam o imenso câmpus desde a morte, em agosto de 2014, do jovem Abdou Bassirou Faye durante um confronto com a polícia. Os jovens pedem o pagamento de suas bolsas e a melhoria das condições de estudo. Fogueiras, desfiles, provocações, repressão... Violência demais. “É preciso conseguir mudar os métodos de ação!”, insiste Babacar Mbaye Diop, professor de Filosofia. Esse homem de cerca de 30 anos, que participou dos movimentos estudantis dos anos 2000, figura entre os membros da mesa. Antes de passar às questões do público, numeroso, os cinco rappers do grupo de hip-hop Campus 2H pegam os microfones: “Vamos falar da situação, mas do nosso jeito...”. E se ouvem os sons que dão ritmo a suas punchlines.1 Suas camisetas estampam o logo do movimento. Fundamentalmente não violento e surgido dos meios hip-hop, o Yeam se destacou durante as eleições presidenciais de 2012 ao incitar a juventude das periferias da capital senegalesa a ir às urnas para “pesar na votação”. Em uma declaração de intenção, o movimento chamava então ao surgimento de um “novo tipo senegalês”, base de uma “república de cidadãos”. O Yeam nasceu nos dias que se seguiram à derrubada do presidente tunisiano Zine al-Abidine ben Ali, em 15 de janeiro de 2011. “Um sinal de que tudo era possível”, conta Fadel Barro, 36 anos, um dos fundadores. Em 23 de junho de 2011, o movimento obteve, depois de diversos dias de manifestação, a retirada do projeto de revisão constitucional proposto pelo presidente Adoulaye Wade e considerado pela população uma manobra destinada a promover seu filho Karim. “A ação não visava o aumento dos preços, mas lutava pela liberdade. Quando o mundo soa vazio, é preciso bater nele
para fazê-lo ressoar. Foi o que o Yeam fez: acordou nosso pensamento, aguçou nossa tomada de consciência”, resume Soro Diop, um jornalista próximo ao movimento, que participa da conferência. Barro veste com vontade o mesmo gorro que Amílcar Cabral, o herói da independência do vizinho Cabo Verde e figura importante do pan-africanismo. O chapéu, de tecelagem tradicional, tornou-se símbolo da coragem e do engajamento revolucionário. “Assim que conseguia conquistar um pequeno espaço, Cabral introduzia ali uma farmácia e uma escola. Para nós, é um exemplo! Mas, atenção, não somos marxistas nem liberais. Buscamos simplesmente valores. A esquerda fracassou na África porque estava desconectada do mundo concreto.” Entre os princípios fundadores do Yeam figura até mesmo a recusa de qualquer participação no jogo político. Aos que estimam que o movimento seria em razão disso pouco legível, Barro responde que ele trabalha em profundidade. “Alguns têm raiva de nós por não termos ido para os negócios, outros estimam que nosso lugar eterno é na rua. Acho que há um tempo para desconstruir e para reconstruir. Nas próximas eleições não vamos integrar um dos blocos políticos. Vamos traçar nossa linha e tentar inte-
grar aqueles que se parecem conosco. Teorizamos o tipo de deputado que desejamos: aquele que não responde às ordens do seu partido, mas às exigências do povo. Somos óvnis na paisagem: não nos identificam nem com as estruturas clássicas da sociedade civil nem com os partidos políticos.” Nesse clima social tenso, o processo por corrupção de Karim Wade foi manchete dos jornais. O filho do antigo presidente foi acusado de ter desviado para seu benefício uma parte das somas destinadas ao encontro da Organização da Conferência Islâmica, realizada em 2008 em Dakar. No entanto, o novo chefe de Estado, Macky Sall, ainda não mudou as coisas em profundidade. Na sede do Yeam – o antigo apartamento de Barro, no bairro Parcelles Assainies, periferia 16, longe do centro da cidade –, os militantes permanecem circunspectos. “O movimento era mais contra o ‘Velho’ do que a favor do seu rival”, resume Pidi Nef, um dos rappers do grupo Fuk’n’Kuk, que faz parte do movimento. Na parede estão penduradas fotos das manifestações de 2011, da intervenção durante as inundações que atingiram os bairros do norte da capital em 2012, do encontro com Barack Obama durante sua visita ao Senegal, em junho de 2013. Malal Almamy Talla, conhecido pelo apelido de Louco Doente, aderiu rapidamente à “causa nobre” do Yeam. Ele é o diretor artístico. Para o rapper, que trabalha desde os anos 1990 com o grupo Bat’Haillons Blind-D, “não se pode deixar o terreno apenas para os políticos. Eles não são a maioria. Cabe a nós ter uma massa crítica para que possamos pressionar”. Trata-se de sensibilizar as populações para os mecanismos de decisão, e também de mudar o cotidiano, em particular nos “bairros esquecidos”. Estima-se que existam cerca de quatrocentos núcleos locais do Yeam. “Encontrar respostas alternativas” e “implicar as pessoas na busca pelo bem comum” figuram entre os eixos de trabalho do G Hip-Hop, centro cultural estabelecido em Guediawaye, periferia superpopulosa e com má reputação da capital, onde os militantes se encontram. A juventude
encontrou um slogan para si: “Nos recusamos a ser um fardo, somos um meio”. Isso faz sentido: 60% dos desempregados têm entre 15 e 34 anos.2 Diante do velho estádio municipal, os militantes limparam “sem a ajuda de ninguém” um antigo depósito de lixo e, contando com alguns apoios, construíram um palco a céu aberto, um estúdio de gravação de alguns metros quadrados e um bar onde o Yeam deseja desenvolver oficinas de cozinha... Eles também começaram a instalar lixeiras (muito raras no Senegal), fabricadas com pneus recuperados, nas ruas da vizinhança. “Colocamos em ação observatórios da boa governança nas catorze regiões do país, para criar mecanismos de controle. A ideia é reconectar os cidadãos à coisa política.” Louco Doente também trabalha na reinserção de antigos jovens detentos. Há mais de vinte anos o hip-hop senegalês fala dos excluídos do sistema de clãs que domina o país, do disco Présidents d’Afrique, do cantor Didier Awadi, ao L’Opinion publique, do grupo Keur Gui, cujo líder, Thiat, é um dos fundadores do Yeam. “Hoje, um Macky Sall teme mais o movimento hip-hop do que os outros partidos políticos. A mudança deve vir de baixo”, afirma o rapper Matador. O Yeam pesa na vida política senegalesa e fez escola na sub-região, com jovens da Costa do Marfim e do Togo – onde o movimento Etiamé (Y en a Marre, em fon)3 está crescendo –, além de Les Sofas de la République, no Mali, Y en a Marre Comme Ça [De saco cheio assim], no Gabão, e Touche pas à Ma Nationalité [Não toque na minha nacionalidade], na Mauritânia. Sem esquecer o movimento Le Balai Citoyen [A vassoura cidadã], que expulsou do poder o presidente de Burkina Faso, Blaise Compaoré, em outubro de 2014. *Jacques Denis é jornalista.
1 Frases que, no rap, têm o objetivo de criar um efeito de choque ou encerrar a letra. 2 Segundo a Agência Nacional da Estatística e da Demografia, que avaliava em 25% a taxa de desemprego nacional em 2013. 3 Língua falada principalmente no Togo e no Benin.
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JUVENTUDES REBELDES DA ÁFRICA – BURKINA FASO
Uma vassourada de cidadania © Alves
Não violenta, e organizada por jovens, a associação Le Balai Citoyen [A vassoura cidadã] incita os habitantes de Burkina Faso a se engajarem. Em outubro de 2014, o coletivo desempenhou um papel decisivo nas manifestações que culminaram na deposição do presidente Blaise Compaoré POR DAVID COMMEILLAS*
“É
muito fácil brincar de rebelde nos clipes e ao mesmo tempo não se arriscar quando se apresenta concretamente a ocasião de melhorar a situação do país”, martela o rapper Serge Bambara, conhecido como Smockey. “Não temos outra escolha senão nos envolver, porque essas pessoas são o público que nos pediu que falássemos em seu nome.” Se esse músico de 43 anos, autor de vários hits que denunciam a corrupção política na África,1 se expressa na primeira pessoa do plural, é porque ele não está só. Na companhia do cantor de reggae Sams’K Le Jah, ele fundou a associação Le Balai Citoyen [A vassoura cidadã] em 2013. Esse coletivo desempenhou papel essencial nas manifestações que culminaram na deposição do presidente de Burkina Faso, Blaise Compaoré, em 31 de outubro de 2014, após 27 anos de reinado.2 “Nosso número é a nossa força” é um dos slogans mais conhecidos da organização. Se por um lado é impossível contabilizar precisamente seus membros, de outro se sabe que a Le Balai Citoyen contabiliza sessenta núcleos na capital, Uagadugu, e cerca de quarenta outros instalados por todo o território nacional. Um núcleo deve ter pelo menos dez inscritos para ser listado como cibal, contração de citoyens balayeurs (cidadãos varredores). Eleita por uma assembleia geral anual, a coordenação nacional tem treze membros, entre os quais estudantes, comerciantes, três músicos, dois jornalistas e um advogado. Constituída para lutar contra o abuso de poder de Compaoré, a Le Balai Citoyen estabeleceu seu estatuto em junho de 2013. O advogado Guy Hervé Kam, de 43 anos, o redigiu. Esse ex-magistrado é bem conhecido dos círculos militantes porque, como dirigente do Centro para a Ética Judiciária (CEJ), lançou uma petição destinada a tornar inatacável o famoso artigo 37 da Constituição, que limita a dois o número de mandatos presidenciais. Sua presença ao lado dos músicos reforça o crédito da associação. Além disso, suas competências de negocia-
dor se revelaram preciosas após a queda de Compaoré, quando a Le Balai Citoyen acabou assumindo o papel de mediadora entre os militares (muito influentes nos círculos do poder), a oposição política e a população. No final de outubro, após vários dias de revoltas populares, o país se viu à beira do caos. “Pedimos aos militares que designassem um interlocutor único, capaz de assegurar a transição aberta pela deposição do presidente. A partir do momento em que houvesse unanimidade entre eles em relação a essa pessoa, iríamos nos empenhar em apoiá-la para assegurar a estabilidade do país; o mais importante para nós era a segurança das pessoas e dos bens”, conta Kam. Os militares designaram o general Yacouba Isaac Zida, que tinha sido companheiro de armas do ex-presidente. “Exigimos então que ele não tomasse nenhuma decisão sem a concordância dos partidos políticos e das associações. Queríamos que todos se sentassem à mesma mesa para organizar a transição, mas os partidos políticos se recusaram.” Várias formações organizaram as mesmas marchas nas ruas, em 2 de novembro, aumentando a confusão. Ocorreram enfrentamentos, e tiros foram ouvidos na capital, fazendo dois mortos entre os civis. Finalmente, chegou-se a um compromisso: um civil, ex-diplomata e ministro do Interior, Michel Kafando, assumiu a direção temporária do país com o título de presidente interino, enquanto o general Zida tornava-se primeiro-ministro. Nesse clima explosivo, a Le Balai Citoyen tenta desempenhar um papel de sentinela, velando pelo bom funcionamento da transição e pela probidade dos ministros. Em janeiro, por exemplo, o coletivo empreendeu uma campanha e conseguiu a demissão do ministro dos Transportes, Moumouni Dieguimdé, acusado pelo semanário Le Reporter de atribuir a si mesmo diplomas imaginários e esconder uma condenação a quatro meses de prisão nos Estados Unidos por falsificação. “Queremos líderes com uma ética irrepreensível”, insiste Smockey.
Sams’K e Smockey já receberam pedidos de apoio e orientação vindos do Níger e do Gabão, onde movimentos mais ou menos calcados no deles querem se constituir. “É muito importante apoiá-los”, sublinha o rapper. “Quando a Le Balai foi montada, as pessoas compreenderam imediatamente aquilo que se queria fazer porque elas conheciam o movimento Y en a Marre, do Senegal, e isso nos ajudou.” A Le Balai Citoyen agora faz parte de uma plataforma continental chamada Tournons la Page (Viremos a página),3 que luta pela alternância e pela democracia na África. “No Togo, jovens chegaram a criar uma Balai Citoyen sem nem mesmo nos comunicar”, alegra-se Smockey. “Não podemos dar apoio sem saber do que se trata, é claro, mas queremos realmente encorajar as iniciativas de pessoas que não provêm dos meios políticos e agem de maneira completamente espontânea.” A Le Balai Citoyen de Burkina Faso enfrenta as dificuldades próprias de um movimento que cresceu muito rapidamente: desfruta uma forte notoriedade na África, enquanto permanece muito frágil no âmbito nacional; divergências de opiniões sobre os métodos a empregar e o caminho a seguir atrasam seu progresso. Alexandre Diakité, responsável pelo núcleo de Bobo-Dioulasso, a segunda cidade do país, foi suspenso porque se apresentou como candidato a funções no Conselho Nacional de Transição (CNT) sem o aval do movimento. A questão do envolvimento político dos líderes do coletivo é: devem-se aceitar eventuais propostas de cargos governamentais? “Eu penso que seria um erro”, estima Kam. “Isso iria nos desacreditar e tornar confusa nossa mensagem, e devemos empregar nosso tempo para justificar nossa atividade, a fim de manter nosso capital de simpatia. Foi porque não estávamos no governo que pudemos criticar certas indicações, e é porque não somos remunerados pelo Estado que podemos denunciar os salários exorbitantes dos membros do CNT.” O desafio dos cidadãos varredores agora é trabalhar pela organização de
uma eleição presidencial democrática e transparente. Isso inclui incitar os milhões de pessoas que se dispuseram em outubro e novembro a se inscrever nas listas eleitorais. As providências administrativas necessárias desagradam à maioria da população de 17 milhões de habitantes, dos quais apenas 28% são alfabetizados.4 Em seguida, a Le Balai Citoyen quer tratar do papel dos chefes religiosos e de costumes. Na cultura mossi do planalto central, os representantes das autoridades tradicionais exercem com frequência uma influência determinante no resultado da eleição.5 O ex-presidente compreendeu muito bem isso: depois de ter encorajado alguns deles a ocupar um lugar na Assembleia Nacional, ele pensou, em 2011, em lhes oferecer salários e status para assegurar seu apoio definitivo. A Le Balai Citoyen queria, ao contrário, reduzir sua influência, proibindo-os, por exemplo, de receber presentes de líderes públicos. Enfim, a associação deve velar para que Compaoré, refugiado na Costa do Marfim, não consiga instalar um de seus parentes no poder na eleição presidencial de outubro de 2015. “Burkina Faso não tem os meios de constituir um governo afastando sistematicamente todos os que trabalharam com ele”, admite Kam, de forma realista. Os cidadãos varredores sabem muito bem que um regime que perdurou por 27 anos não pode ser desconstruído em alguns meses, mas continuam a trabalhar para virar a página do antigo regime e evitar que o cargo de presidente vá de novo para um militar. *David Commeillas é jornalista.
1 “Votez pour moi” [Vote em mim], disponível no EP (quatro títulos) homônimo (Abazon, 2005), e “À qui profite le crime?” [Quem se beneficia do crime?], single inédito (Abazon, 2007). 2 Ler Anne Frintz, “La jeunesse burkinabé bouscule la ‘Françafrique’” [A juventude de Burkina Faso sacode a África francesa], Le Monde diplomatique, dez. 2014. 3 Ver: <https://tournonslapage.wordpress.com>. 4 Estatísticas 2008-2012 do Unicef (últimos dados disponíveis). Disponível em: <www.unicef.org>. 5 Cerca de 49% dos habitantes de Burkina Faso são mossis.
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A UCRÂNIA EM BUSCA DA SOBERANIA ENERGÉTICA
Na frente de batalha do urânio Privada de carvão pelos combates no Donbass e em conflito com a Gazprom, a Ucrânia aposta cada vez mais na energia nuclear para atender às suas necessidades. Mas o fornecimento de combustível das centrais atômicas herdadas da União Soviética também depende de boas relações com a Rússia. Emancipar-se é algo que não ocorre sem risco POR SÉBASTIEN GOBERT E LAURENT GESLIN*
E
m algumas manhãs de inverno, a umidade sobe do Dnieper e mergulha nas brumas os blocos de concreto da central nuclear da cidade de Enerhodar, situada no oblast de Zaporijia (sudeste da Ucrânia). Ônibus impregnados de uma neve suja descem as avenidas para transportar 11 mil empregados para o coração do complexo nuclear. “Enerhodar é uma cidade de progresso, a capital energética da Ucrânia”, explica com orgulho Oleg Ocheka. “Os 54 mil habitantes da cidade têm consciência de que fornecem eletricidade para milhões de lares.” O diretor adjunto do centro de informação da central se instalou ali no início dos anos 1980, quando a cidade era jovem e a União Soviética parecia eterna. Os primeiros imóveis foram erguidos em 1970 para abrigar os empregados de uma usina térmica construída ao longo do rio. A construção da central elétrica atômica Zaporiska AES1 começou em 1972. A energia nuclear puxava o desenvolvimento de cidades-modelo cujo planejamento urbano deveria oferecer condições de vida ideais aos empregados. Prypiat, a mais célebre delas, hoje em dia acabou por desaparecer sob a vegetação, no coração da zona proibida de 30 quilômetros de raio que rodeia Chernobyl, no norte do país. A central de Zaporijia contém seis reatores, cada um deles com 1.000 megawatts (MW) de capacidade. Com mais potência que Gravelnes, a principal central francesa (5.706 MW), ela só é superada em capacidade pelos oito reatores de Bruce, no Canadá (6.232 MW). A produção de eletricidade assegura uma relativa prosperidade a essa cidade na qual se penetra com a estranha impressão de fazer uma viagem no tempo. “A URSS ruiu, mas as condições de vida não evoluíram muito em Enerhodar”, continua Ocheka. Ainda que as fachadas das moradias estejam decrépitas, a cidade permanece atraente o suficiente para que suas escolas estejam cheias. “Sempre tem água quente, a eletricidade custa menos que em outros lugares, os salários são bons e estamos em segurança”, confirma Bogdan Stryjoff, um empre-
gado da central. “Mais jovem, eu queria ir para Kiev ou para fora do país. Fiz meus estudos na cidade vizinha, mas me ofereceram um emprego, então voltei para me casar aqui.” Herdeira das ambições energéticas da URSS, a Ucrânia dispõe de quinze reatores nucleares, todos de tipo VVER com água pressurizada.2 Três unidades estão em atividade na central de Yuzhnoukrainsk, duas em Khmelnytskyi, quatro em Rivne e seis em Zaporijia. O último dos três reatores não avariados pela catástrofe de 1986 em Chernobyl foi definitivamente desativado em dezembro de 2000.
Herdeira das ambições energéticas da URSS, a Ucrânia dispõe de quinze reatores nucleares, todos de tipo VVER com água pressurizada Na imensa sala das turbinas do reator número 1 de Zaporijia, as máquinas roncam sem interrupção há trinta anos. “O reator número 1 mostra sempre ótimos resultados nos testes de segurança”, garante o diretor-geral da central, Viacheslav Tishchenko. “A cada dez anos, a Inspeção de Estado de Regulamentação Nuclear [Iern] decide sobre a extensão da atividade dos reatores. Tendo em vista os resultados atuais, acreditamos que vamos poder utilizá-los ainda por sessenta anos.” Extensões de dez a vinte anos já foram concedidas à maior parte dos reatores. A central de Zaporijia ocupou, no entanto, as manchetes da imprensa internacional em 2 de dezembro de 2014, após o anúncio inábil de um incidente técnico no bloco número 3 pelo primeiro-ministro, Arseniy Iatseniuk, em uma coletiva de imprensa. O incidente, ocorrido em 28 de novembro, consistiu em um curto-circuito em um transformador auxiliar. Sem consequências nem perigo de contamina-
ção, ele foi classificado como 0 – o nível mais baixo – na escala internacional dos eventos nucleares (Ines) de sete níveis: “Um burburinho midiático sem nenhuma justificativa”, rebate o diretor com ar irritado. “A maior parte daqueles que falam sobre a energia nuclear não sabe nada a respeito, ou está mal-intencionada.” COMBUSTÍVEL NORTE-AMERICANO?
A afirmação faz referência à guerra de informação a que se dedicam a Ucrânia e a Rússia há meses. Em 30 de dezembro de 2014, uma rede de televisão ligada ao Kremlin, a LifeNews, afirmava que taxas de radiação próximas a dezessete vezes mais os níveis máximos autorizados tinham sido observadas na vizinhança da central. Com essa ofensiva midiática, os líderes russos procuravam ligar os riscos de vazamentos radiativos às entregas de combustível nuclear produzido pela Westinghouse Electric Company.3 Desde 2008, a empresa norte-americana – controlada pela japonesa Toshiba – realiza testes para adaptar seu combustível aos reatores VVER, quebrando o monopólio da companhia estatal russa Rosatom e de sua filial TVEL, que abastecem a totalidade das centrais ucranianas e vários países da União Europeia. Herança do passado, as empresas russas estão intimamente ligadas ao setor nuclear ucraniano, da concepção de reatores ao tratamento dos dejetos. Todo ano, por exemplo, a Ucrânia paga US$ 200 milhões à Rússia para ali guardar seu combustível usado, à espera de um novo local de armazenamento previsto para 2017, na região de Chernobyl. “Nosso combustível recebeu neste outono o aval da Iern. É muito comum que as centrais nucleares tenham vários fornecedores de combustível. É uma questão de concorrência, mas também de segurança das entregas. No caso da Ucrânia, os abastecimentos provenientes da Rússia talvez não sejam totalmente garantidos diante da situação política”, insinua Mike Kinst, vice-presidente de relações exteriores da Westinghouse Europe. Ele considera sem fundamento a cautela do vice-
-primeiro-ministro russo, Dmitri Rogozine, que declarou em abril de 2014 que, se utilizasse o combustível norte-americano, “a Ucrânia não teria tirado nenhum ensinamento do acidente de Chernobyl”. Em 2011, a estatal ucraniana EnergoAtom tinha julgado “infrutíferos” testes do combustível ocidental que haviam levado à desativação de duas unidades.4 Outros incidentes, notadamente na República Tcheca, foram destacados pelos russos para alarmar a opinião pública. Mesmo assim, em 30 de dezembro de 2014, a Westinghouse e a EnergoAtom assinaram um acordo que prevê o aumento até 2020 dos abastecimentos de combustível norte-americano. Se todos os termos do contrato permaneceram confidenciais, segundo Kinst, a Westinghouse teria necessidade de fornecer “três ou quatro reatores” para que a operação fosse rentável. A companhia é a única do mundo a ter investido desde o início dos anos 1990 na criação de um combustível compatível com os reatores VVER, até aqui inteiramente dependentes dos fornecimentos da TVEL. A chegada de novos dirigentes ucranianos é como uma esmola para a empresa norte-americana. “Há anos, a Ucrânia tenta diversificar suas fontes de abastecimento energético”, explica Mihailo Gonchar, especialista em energia. “Entendemos bem que é o presidente russo, Vladimir Putin, que decide as orientações estratégicas das grandes companhias russas. Para o momento, a TVEL preenche suas obrigações, e nós temos reservas de combustível até outubro próximo, mas quem sabe como o conflito entre os dois países pode evoluir?” Depois da anexação da Crimeia em março de 2014 e do início dos combates mortais que opõem, no leste da Ucrânia, as forças armadas ucranianas aos separatistas pró-russos, Kiev deve enfrentar uma situação energética preocupante. A Ucrânia está privada das minas de carvão do Donbass que outrora alimentavam as centrais térmicas. Já a gigante russa Gazprom regularmente ameaça interromper as exportações de gás se Kiev não colocar em dia seus pagamentos atrasados. A
© Reuters/ Gleb Garanich
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Válvula de alta pressão em instalação de armazenamento de gás em Mryn, a 120 km de Kiev
“estratégia 2020”, endossada em setembro pelo presidente ucraniano, Petro Poroshenko, prevê priorizar as barragens hidrelétricas e as energias renováveis, e sobretudo retomar a energia nuclear civil,5 que já forneceu mais de 50% da eletricidade do país em 2014 (contra 43% no ano anterior). Para atender à demanda interna, a Ucrânia recentemente precisou reduzir suas exportações de eletricidade para a Moldávia e a Bielorrússia. “O Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento e a Euratom já concederam um empréstimo de 600 milhões de euros para a modernização das centrais, depois da catástrofe de Fukushima”, explica Olya Kocharna, da associação Fórum Nuclear Ucraniano. “Somos prisioneiros de estratégias energéticas que datam da época da URSS; nenhum centavo foi investido para aumentar a eficácia energética”, detalha Olexi Pasyuk, do Centro Nacional Ecológico da Ucrânia, uma organização não governamental. A rede elétrica nem sempre teve a capacidade de transportar o conjunto da eletricidade produzida pelos reatores ucranianos. A central de Zaporijia funciona assim abaixo de sua capacidade, e os dois últimos reatores de Rivne e de Khmelnytskyi, terminados em 2004, funcionam alternadamente há dez anos. A estratégia 2020 prevê reforçar a capacidade de transmissão da rede com apenas 750 KW, enquanto 1,7 GW seria perdido a cada ano. “A independência energética proporcionada pela energia nuclear é to-
talmente ilusória. Atualmente, importamos da Rússia US$ 600 milhões de combustível, e a Westinghouse nunca estará em condições de assumir totalmente a parte da TVEL”, continua Pasyuk. Em seu escritório da Zaporiska AES, o diretor Tishchenko afirma, por sua vez, “nada saber” sobre o combustível Westinghouse. “Não se trata de uma interrupção qualquer de nossa cooperação com a EnergoAtom”, afirma Alexander Merten, diretor do escritório do Leste Europeu da Rosatom. “O ciclo de vida de um contrato nuclear é de pelo menos um século: nenhuma decisão pode ser tomada sobre uma base política. Nossa prioridade absoluta é a segurança nuclear.”
“Somos prisioneiros de estratégias energéticas que datam da época da URSS; nenhum centavo foi investido para aumentar a eficácia energética” A Rosatom é desde já uma vítima colateral do conflito russo-ucraniano. Em julho de 2014, o novo governo afastou essa empresa do projeto de construção dos reatores 3 e 4 em Khmelnytskyi, que ele pensa em reservar para empresas ocidentais. A construção de uma usina de montagem de
combustível nuclear em Smolino, na região de Kirovohrad, também foi suspensa, enquanto o Parlamento se mostrava prestes a ceder 40% da companhia nacional EnergoAtom a um investidor estrangeiro. Retomado em 2012, o projeto se anunciava então como o mais importante investimento entre dois países, por um valor de mais de US$ 500 milhões. A Rosatom também se viu na mira do Parlamento europeu quando, em 15 de janeiro de 2015, os eurodeputados intimaram o Conselho dos Ministros a manter o regime de sanções em relação à Rússia e “estendê-lo ao setor nuclear”. Tal agravamento das sanções ainda teria consequências na Bulgária, na Finlândia, na República Tcheca e na Hungria. ESCARAMUÇAS DAS CENTRAIS NUCLEARES
“O lobby nuclear na Ucrânia tem, portanto, do que se alegrar com a queda do regime de Viktor Yanukovich”, observa Kocharna. Antes da fuga do ex-presidente, em 22 de fevereiro de 2014, era o oligarca mais rico do país, Rinat Akhmetov, que podia se orgulhar de controlar boa parte do mercado nacional de energia. Sua holding DTEK controlava poços de carvão no Donbass e 80% das centrais térmicas do país. “O Estado comprava a energia térmica três vezes mais caro que a energia nuclear, o que permitiu a Akhmetov juntar fortunas consideráveis”, continua Kocharna. Em contrapartida, durante os quatro anos da presidência de Yanukovich, a EnergoAtom perdeu centenas de milhões de dóla-
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res. A dívida do operador ucraniano representaria, segundo ela, o equivalente da produção trimestral de todos os seus reatores. A redistribuição das cartas no seio do setor energético ucraniano está, no entanto, longe de ser concluída, e Akhmetov, que conserva interesses no Donbass e cujas relações com os separatistas permanecem ambíguas, sem dúvida ainda não deu a última palavra. De momento, na central Zaporiska AES, aguarda-se com ansiedade a evolução da frente de batalha, situada a 200 quilômetros a leste, nas periferias de Donetsk e de Mariupol. “Os partidários da energia nuclear partem sempre do princípio de que o pior nunca vai acontecer, mas quem iria prever uma guerra contra a Rússia?”, indaga-se Pasyuk. “Uma central depende de fontes de energias externas. Se você a desliga e os geradores de segurança param, o sistema de resfriamento é desativado e o reator começa a superaquecer. Para isso, você não precisa de um tsunami, apenas de um conflito militar nas proximidades.” Na entrada de Enerhodar, tudo o que se vê é um bloqueio do Exército ucraniano para defender os seis reatores da central. No entanto, as escaramuças se multiplicam na região. Em 21 de janeiro de 2015, uma ponte ferroviária explodiu a uma centena de quilômetros a sudeste de Zaporijia, destruindo um comboio de mercadorias. Em 15 de abril de 2014, cerca de quarenta homens armados se apresentando como militantes da organização ultranacionalista Praviy Sektor tinham tentado entrar no complexo para “defender a Zaporiska AES contra as incursões dos separatistas”. A guerra próxima, no entanto, não parece amedrontar seu diretor. Continua sendo difícil desvincular as questões técnicas das escolhas políticas. Após a “revolução laranja”, o presidente Viktor Yushchenko colocou à frente as questões de independência energética e de segurança para se aproximar da Westinghouse. Em seguida, Yanukovich utilizou as questões de compatibilidade de combustível para aumentar a cooperação com a Rosatom. Hoje, o governo põe toda a sua confiança na tecnologia ocidental. Mas as centrais têm uma duração de vida bem superior à dos governos. *Sébastien Gobert e Laurent Geslin são jornalistas. 1 Atomna ElektroStancija (AES). 2 Reatores chamados de “segunda geração”, que utilizam a água como transmissora de calor e moderadora, e fabricados nos anos 1960 e 1970. 3 LifeNews, 30 dez. 2014. 4 Segundo a Associação Mundial da Energia Nuclear (www.word-nuclear.org). 5 Depois da queda da URSS, as armas nucleares armazenadas na nova Ucrânia independente foram transferidas para a Rússia, e o país ratificou o tratado de não proliferação.
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É PRECISO RESOLVER OS CONFLITOS DO ORIENTE MÉDIO, NÃO AGRAVÁ-LOS
Para acabar com o terrorismo Os atentados em Túnis e Sanaa lembram que os países muçulmanos são os mais atingidos pelas ações que têm civis como alvo. A luta contra o “terrorismo” permite mobilizar a opinião pública, criar coalizões militares e aprovar leis que restringem as liberdades. Mas isso torna possível enfrentar as realidades políticas do Oriente Médio?
© Reuters/ Kai Pfaffenbach
POR ALAIN GRESH*
Mulheres curdas da Turquia exibem nos punhos as cores do Curdistão em funeral de combatentes que enfrentaram a OEI em Kobane
F
oi uma batalha homérica, coberta hora a hora por todos os meios de comunicação do mundo. A Organização do Estado Islâmico (OEI), que havia conquistado Mossul em junho de 2014, prosseguia em seu avanço fulgurante em direção a Bagdá e à fronteira turca, e ocupava 80% da cidade de Kobane, na Síria. Os combates se agravaram durante meses. Os milicianos curdos locais, apoiados pela aviação norte-americana, receberam armas e a ajuda de cerca de 150 soldados enviados pelo governo regional do Curdistão no Iraque. Seguidos com paixão pelas TVs ocidentais, os enfrentamentos terminaram no início de 2015 com a retirada da OEI. Mas quem são esses heroicos resistentes que cortaram uma das cabeças da hidra terrorista? Qualificados de maneira genérica como “curdos”, eles pertencem em sua maioria ao Partido da União Democrática (PYD), o ramo sírio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Ora, o PKK figura há mais de uma década na lista das orga-
nizações terroristas elaborada pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Assim, podemos ser condenados em Paris por “apologia ao terrorismo” se emitirmos uma opinião favorável ao PKK; em Kobane, porém, seus militantes merecem toda a nossa admiração. Quem ficaria espantado com isso num momento em que Washington e Teerã negociam um acordo histórico sobre a energia nuclear e em que o diretor do setor de informação nacional norte-americano envia ao Senado um relatório no qual o Irã e o Hezbollah não são mais apontados como entidades terroristas que ameaçam os Estados Unidos?1 UM QUALIFICATIVO APLICADO AO OUTRO
Foi um verão particularmente agitado. Em Haifa, um homem colocou uma bomba em um mercado em 6 de julho; 23 pessoas foram mortas e 75 feridas, na maioria mulheres e crianças. No dia 15, um ataque realizado em Jerusalém matou dez pessoas e fez 29 feridos. Dez dias depois, uma bomba ex-
plodiu, também em Haifa, fazendo 39 mortos. As vítimas eram todas civis e árabes. Na Palestina de 1938, esses atos foram reivindicados pelo Irgun, braço armado da ala “revisionista” do movimento sionista que deu a Israel dois primeiros-ministros: Menahem Begin e Itzhak Shamir.2 Resistentes? Combatentes da liberdade? Delinquentes? Bárbaros? Sabemos que o qualificativo “terrorista” é sempre aplicado ao outro, nunca a “nossos combatentes”. A história também nos ensinou que os terroristas de ontem podem se tornar os dirigentes de amanhã. Isso causa surpresa? O terrorismo pode ser definido – e os exemplos do PKK e dos grupos sionistas armados ilustram as ambiguidades do conceito – como uma forma de ação, não como uma ideologia. Nada liga os grupos de extrema direita italianos dos anos 1970, os Tigres Tâmeis, o Exército Republicano Irlandês (Irish Republican Army, IRA), sem falar da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) e do Congresso Nacional
Africano (CNA), estes dois últimos denunciados como “terroristas” por Ronald Reagan, por Margaret Thatcher e, é claro, por Benjamin Netanyahu, cujo país colaborava estreitamente com a África do Sul do apartheid.3 Na melhor das hipóteses, podemos inscrever o terrorismo na lista dos meios militares. E, como já se disse com frequência, ele é a arma dos fracos. Figura brilhante da revolução argelina, preso pelo Exército francês em 1957, Larbi ben M’hidi, chefe da região autônoma de Argel, foi interrogado sobre o motivo pelo qual a Frente de Libertação Nacional (FLN) colocava suas bombas camufladas no fundo de cestinhos de carregar bebês em cafés ou em lugares públicos. “Deem-nos seus aviões, nós lhe daremos nossos cestinhos”, retorquiu a seus torturadores, que iriam assassiná-lo friamente alguns dias depois. A desproporção dos meios entre guerrilheiros e um exército regular leva a uma desproporção do número de vítimas. Se o Hamas e seus aliados de-
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vem ser considerados “terroristas” por terem matado três civis durante a guerra de Gaza de 2014, como deveríamos classificar o Estado de Israel, que massacrou, segundo as estimativas mais baixas – as do próprio Exército israelense –, de oitocentos a mil, entre os quais centenas de crianças? Para além de seu caráter indistinto e indeciso, o uso do conceito de terrorismo tende a despolitizar as análises e, pelo mesmo caminho, tornar impossível qualquer compreensão dos problemas levantados. “Nós lutamos contra o Mal”, afirmava o presidente George W. Bush diante do Congresso norte-americano em 24 de setembro de 2001, acrescentando: “Eles odeiam o que veem nesta assembleia, um governo democraticamente eleito. Seus dirigentes designam a si próprios. Eles odeiam nossas liberdades: nossa liberdade religiosa, nossa liberdade de expressão, nossa liberdade de votar e de nos reunir, de estar em desacordo uns com os outros”. Para enfrentar o terrorismo, não é, portanto, necessário modificar as políticas norte-americanas de guerra na região, colocar um termo ao calvário dos palestinos; a única solução consiste na eliminação física do bárbaro. Se os irmãos Kouachi e Amedy Coulibaly, autores dos atentados contra o Charlie Hebdo e o Hyper Cacher da Porte de Vincennes, são movidos fundamentalmente por seu ódio à liberdade de expressão, como proclamaram os principais dirigentes políticos franceses, é inútil nos interrogarmos sobre as consequências das políticas levadas a efeito na Líbia, no Mali e no Sahel. No dia em que prestava homenagem às vítimas dos atentados de janeiro, a Assembleia Nacional votava com o mesmo ímpeto o prosseguimento das operações militares francesas no Iraque. UM BALANÇO DA “GUERRA AO TERROR”
Não seria chegada a hora de realizar o balanço dessa “guerra contra o terrorismo” em curso desde 2001, do ponto de vista de seus objetivos afixados? Segundo o Global Terrorism Database, da Universidade de Maryland, a Al-Qaeda e suas filiais cometeram cerca de duzentos atentados por ano entre 2007 e 2010. Esse número aumentou 300% em 2013, com seiscentos atos. E ninguém duvida que as cifras de 2014 irão superar todos os recordes, com a criação do califado por Abu Bakr al-Baghdadi.4 E quanto à quantidade de terroristas? Segundo as estimativas ocidentais, 20 mil combatentes estrangeiros se juntaram à OEI e às organizações extremistas no Iraque e na Síria, entre eles 3,4 mil europeus. “Nick Rasmussen, chefe do Centro Nacional de Contraterrorismo norte-americano, afirmou que o fluxo de combatentes estrangeiros que se dirigiu para a Síria
ultrapassa de longe o daqueles que partiram para o jihad no Afeganistão, no Paquistão, no Iraque, no Iêmen ou na Somália em algum momento ao longo dos últimos vinte anos.”5 Esse balanço da “guerra contra o terrorismo” seria bem fragmentário se não levasse em conta os desastres geopolíticos e humanos. Desde 2001, os Estados Unidos, às vezes com a ajuda de seus aliados, conduziram guerras no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e, de maneira indireta, no Paquistão, no Iêmen e na Somália. Balanço: o Estado líbio desapareceu, o Estado iraquiano mergulha no confessionalismo e na guerra civil, o poder afegão vacila, os talibãs nunca foram tão poderosos no Paquistão. Condoleezza Rice, ex-secretária de Estado norte-americana, evocava um “caos construtivo” em 2005 para justificar a política da administração Bush na região, anunciando os amanhãs que cantariam o hino da democracia. Dez anos depois, o caos se estendeu a tudo aquilo que os Estados Unidos chamam de o “Grande Oriente Médio”, do Paquistão ao Sahel. E as populações foram as principais vítimas dessa utopia cuja dimensão construtiva temos dificuldade de medir.
“Ainda que não tivesse havido uma religião chamada islã, o estado das relações entre o Ocidente e o Oriente Médio seria hoje mais ou menos igual” Dezenas de milhares de civis foram vítimas dos “bombardeios direcionados”, dos drones, dos comandos especiais, das prisões arbitrárias, das torturas sob a égide de conselheiros da CIA. Nada foi poupado, nem festas de casamento, cerimônias de nascimento e funerais, reduzidos a cinzas por tiros norte-americanos “direcionados”. O jornalista Tom Engelhardt citou oito bodas bombardeadas no Afeganistão, no Iraque e no Iêmen entre 2001 e 2013.6 Quando são evocadas no Ocidente, o que é raro, essas vítimas, contrariamente àquelas que o “terrorismo” faz, nunca têm rosto, nunca apresentam uma identidade; são anônimas, “colaterais”. No entanto, todas têm família, irmãos, irmãs, pais. Seria de admirar que sua lembrança alimentasse um ódio crescente contra os Estados Unidos e o Ocidente? Podemos imaginar que o ex-presidente Bush seja levado diante de um tribunal penal internacional por ter invadido e destruído o Iraque? Esses crimes
jamais punidos dão crédito aos discursos mais extremistas na região. Ao designar o inimigo como uma “ameaça à existência”, ao reduzi-lo ao “islamofascismo”, como fez o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, evocando uma terceira guerra mundial contra um novo totalitarismo herdeiro do fascismo e do comunismo, o Ocidente concede à Al-Qaeda e à OEI visibilidade, notoriedade e estatura comparável àquela da URSS, ou mesmo da Alemanha nazista, fazendo crescer artificialmente o prestígio e a atração exercidos por essas organizações sobre aqueles que desejariam resistir à ordem imposta por exércitos estrangeiros. É PRECISO ENTENDER AS CONEXÕES
Certos líderes norte-americanos têm por vezes lampejos de lucidez. Em outubro de 2014, o secretário de Estado, John Kerry, ao celebrar com os muçulmanos norte-americanos a “festa do sacrifício”, declarou, evocando suas viagens na região e suas discussões em relação à OEI: “Todos os líderes mencionaram espontaneamente a necessidade de tentar alcançar a paz entre Israel e os palestinos, porque [a ausência de paz] favoreceria o recrutamento [da OEI], a cólera e as manifestações de rua às quais esses líderes deveriam responder. É preciso entender essa conexão com a humilhação e a perda da dignidade”.7 Haveria então uma relação entre “terrorismo” e Palestina? Entre a destruição do Iraque e o florescimento da OEI? Entre os assassinatos “direcionados” e o ódio contra o Ocidente? Entre o atentado do Museu do Bardo, em Túnis, o desmantelamento da Líbia e a miséria das regiões abandonadas da Tunísia, que, se espera, sem muita convicção, vá receber enfim uma ajuda econômica substancial não condicionada pelas receitas habituais do Fundo Monetário Internacional, criadoras de injustiças e de revoltas? Ex-integrante da CIA e excelente especialista no islã, Graham Fuller acaba de publicar um livro, A World Without Islam [Um mundo sem o islã], cuja conclusão ele mesmo resume: “Ainda que não tivesse havido uma religião chamada islã ou um profeta chamado Maomé, o estado das relações entre o Ocidente e o Oriente Médio seria hoje mais ou menos igual. Isso parece contraintuitivo, mas revela um ponto essencial: existe uma dúzia de boas razões fora o islã e a religião para que as relações entre o Ocidente e o Oriente Médio sejam ruins [...]: as cruzadas (uma aventura econômica, social, política e geopolítica ocidental), o imperialismo, o colonialismo, o controle ocidental dos recursos do Oriente Médio sobre a energia, a introdução de ditaduras pró-ocidentais sem fim, as
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fronteiras redesenhadas, a criação pelo Ocidente do Estado de Israel, as invasões e as guerras norte-americanas, as políticas norte-americanas enviesadas e persistentes em relação à questão palestina etc. Nada disso tem a ver com o islã. É certo que as reações da região são cada vez mais formuladas do ponto de vista religioso e cultural, ou seja, muçulmanos e islâmicos – o que não é de surpreender. Em cada grande enfrentamento, as pessoas procuram defender sua causa em termos morais mais elevados. É o que fazem tanto as cruzadas cristãs quanto o comunismo com sua ‘luta pelo proletariado internacional’”.8 Ainda que tenhamos de nos preocupar com os discursos de ódio propagados por certos pregadores muçulmanos radicais, a reforma do islã depende da responsabilidade dos fiéis. Em contrapartida, é de nossa responsabilidade a inflexão das políticas ocidentais que, há décadas, alimentam o caos e os ódios. E desprezamos os conselhos de todos aqueles especialistas na “guerra contra o terrorismo”. O mais ouvido em Washington há trinta anos não é outro senão Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelense, cujo livro How the West Can Win [Como o Ocidente pode vencer]9 pretende explicar como podemos “acabar com o terrorismo”;10 ele serve de breviário a todos os novos cruzados. Suas receitas alimentaram a “guerra da civilização” e mergulharam a região em um caos do qual, ao que tudo indica, ela terá dificuldades para sair. *Alain Gresh é membro da redação do Le Monde diplomatique.
1 Cf. Jack Moore, “US Omits Iran and Hezbollah From Terror Threat List” [EUA eliminam Irã e Hezbollah da lista de ameaças terroristas], Newsweek, Nova York, 16 mar. 2015. 2 Uri Avnery, “Who Are the Terrorists?” [Quem são os terroristas?], artigo publicado no Haolam Hazeh, 9 maio 1979, e reproduzido no Journal of Palestine Studies, Beirute, outono de 1979. 3 Ler “Regards sud-africains sur la Palestine” [Olhares sul-africanos sobre a Palestina], Le Monde diplomatique, ago. 2009. 4 Cf. Gray Matter, “Where Terrorism Research Goes Wrong” [Onde erram as pesquisas sobre terrorismo], International New York Times, 6 mar. 2015. 5 Associated Press, 10 fev. 2015. 6 Tom Engelhardt, “Washington’s Wedding Album From Hell” [O álbum de casamentos do inferno de Washington], Tom Dispatch, 20 dez. 2013. Disponível em: <www.tomdispatch.com/blog>. 7 Joseph Klein, “Kerry Blames Israel for ISIS Recruitment” [Kerry culpa Israel por recrutamento da OEI], 23 out. 2014. Disponível em: <www.frontpagemag.com>. 8 Graham E. Fuller, “Yes, It Is Islamic Extremism – But Why?” [Sim, é extremismo islâmico – Mas por quê?], 22 fev 2015. Disponível em: <http://grahamefuller.com>. 9 Farrar, Straus e Giroux, Nova York, 1986. 10 Benjamin Netanyahu, Paix et sécurité. Pour en finir avec le terrorisme [Paz e segurança. Para acabar com o terrorismo], L’Archipel, Paris, 1996.
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NOS EUA, UMA FONTE DE ENERGIA QUE DESTRÓI A NATUREZA, MAS GERA EMPREGOS
Os Apalaches decapitados pelos mercadores do carvão Apesar do boom do petróleo e do gás de xisto, o carvão continua sendo a principal fonte de energia nos Estados Unidos. Para aumentar a produção, as mineradoras têm preferido a exploração a céu aberto, removendo as montanhas para extrair o minério. Esse método, muito utilizado nos Apalaches, tem consequências ambientais consideráveis POR MAXIME ROBIN*
N
a tarde de 5 de abril de 2010, uma poderosa bola de fogo espalhou-se pelas galerias de Upper Big Branch, mina de carvão do Coal River Valley, na Virgínia Ocidental. Dezenas de homens foram pegos na armadilha. Caminhões-satélite da Cable News Network (CNN) correram para o local; o presidente Barack Obama apareceu na televisão. O vale profundo, salpicado por vilas quase fantasmas, onde a água que sai da torneira cheira a diesel, ficou no olho do furacão midiático norte-americano. O suspense macabro terminou em poucos dias. O balanço final: 29 mortos. Duas lápides foram construídas em memória dos desaparecidos. Uma, de granito, exibe 29 silhuetas se abraçando. Financiada pela empresa, ela é dedicada a “todos os mineiros feridos, doentes ou mortos no trabalho”. O outro memorial, mais íntimo, pode ser contemplado no próprio local da tragédia: 29 capacetes e coroas de flores. No chão, uma mensagem escrita a giz por um morador, como um grito: “Deus abençoe o carvão”. Quatro anos e meio se passaram desde a explosão. Em 20 de novembro de 2014, Don Blankenship, que de 1989 a 2010 dirigiu a Massey Energy – maior companhia mineira dos Apalaches –, assiste à audiência preliminar de seu julgamento no tribunal penal de Beckley. Uma investigação federal acusa-o de ser diretamente responsável pela tragédia, por negligência e ganância.1 Para economizar, as galerias de minas não tinham ventilação. Quando ocorriam as visitas-surpresa dos inspetores, os mineiros usavam um código para disfarçar as infrações. De acordo com o inquérito, um alerta era dado pela sentinela da porta de entrada aos capatazes na superfície. Avisados por telefone, os mineiros suspendiam a produção e rapidamente improvisavam um falso sistema de ventilação. “Tínhamos uma hora e quinze minutos para ficar dentro das normas”, explicou um antigo mineiro à rádio pública norte-americana
(National Public Radio, NPR), em 27 de maio de 2010. O processo teve início em 26 de janeiro de 2015. Um dia histórico para o país, afirma o advogado das vítimas, Bruce Stanley: pela primeira vez, o dirigente de uma grande empresa de mineração é julgado por um tribunal penal nos Estados Unidos.2 A justiça fixou a fiança em US$ 5 milhões, que Blankenship pagou em dinheiro. “Para ele, são trocados”, zomba Mike Roselle, morador de Rock Creek que veio assistir à audiência.
“Em seu julgamento, [Blankenship] será tratado mais dignamente do que sempre tratou seus funcionários, e ele sinceramente não merece” Na sala do tribunal, as famílias observam em silêncio o “monarca sombrio das montanhas”, um dos qualificativos criados pela imprensa. Para a maioria, é o primeiro encontro com o homem de bigode castanho que rege a vida dessas pessoas. Os jornalistas o descrevem como um empresário sempre em ascensão, que vê a sociedade norte-americana como “uma selva onde só os mais fortes sobrevivem”. E, para ser “o mais forte”, não se pode ter medo de quebrar regras. Foram encontradas 835 violações (às instruções de segurança, ao código de trabalho) nas minas da Massey ao longo dos 24 meses anteriores à tragédia. As falhas mais comuns estavam relacionadas à ventilação das galerias e à falta de resfriamento das máquinas – procedimento de rotina para evitar o superaquecimento do equipamento de perfuração e o aparecimento de faíscas. As infrações se acumularam na
mesa de Blankenship, mas as autoridades nunca sancionaram a companhia de maneira dissuasiva. O montante das multas, quando são aplicadas, não é suficiente para influenciar as práticas de grandes empresas, e são muitas as que não são pagas: parece que os controladores federais não podem nem querem obrigar as empresas a pagar.3 Escândalos de contaminação do solo marcam a história da Massey Energy, sendo o mais famoso deles o “vazamento” da mina de Martin County, no leste do Kentucky, em outubro de 2000. Uma quantidade de poluentes trinta vezes superior à maré negra do Exxon Valdez, petroleiro que encalhou em 1989 na costa do Alasca, espalhou-se por centenas de quilômetros de rios, deixando 27 mil habitantes sem água potável. A Massey Energy acabou tendo de pagar US$ 46 milhões para limpar a bagunça.4 Blankenship foi muitas vezes beneficiado, graças sobretudo a suas estreitas relações com o poder judiciário. Em 2009, a imprensa publicou fotos suas passando férias em Mônaco com um dos cinco juízes do Supremo Tribunal da Virgínia Ocidental, no momento em que uma queixa contra sua empresa era julgada nessa mesma corte. A queixa foi recusada por três votos a dois. A impunidade de Blankenship teve fim com o desastre de Upper Big Branch. O homem tornou-se um incômodo para seus antigos aliados políticos. Jay Rockefeller, senador por Washington desde os anos Reagan, abandonou-o após anos de apoio: “Em seu julgamento, [Blankenship] será tratado mais dignamente do que sempre tratou seus funcionários, e ele sinceramente não merece”, declarou o cacique democrata em comunicado uma semana antes da audiência preliminar. Quando o juiz cita as acusações contra ele, Blankenship vira a cabeça, erguendo as sobrancelhas, como se estivesse procurando um amigo. Ape-
nas um senhor isolado num banco do tribunal parece responder ao apelo. Capataz em Upper Big Branch, Delbert5 estava de licença no dia da explosão. Ele conhecia as vítimas, “mineiros experientes”, e não desceu mais após a explosão. Foi realocado para uma loja de peças de reposição em Whitesville. Delbert permanece fiel ao ex-patrão. “Estamos atirando um homem aos leões”, sussurra, “querem vê-lo enforcado.” Para esse piedoso mineiro, os imperativos de produção fazem parte do jogo, e o acidente é um castigo divino que não tem culpados. “O que aconteceu em Upper Big Branch não foi culpa de ninguém... Foi um ato de Deus.” Delbert certamente sabe: essa frase remete a uma tragédia mais antiga, que engoliu um vale vizinho – a ruptura de uma barragem em Buffalo Creek, numa manhã de inverno de 1972. Ela represava um lago de sludge, ou “lodo de carvão”: um dejeto mineiro armazenado no alto das montanhas. A substância negra transformou-se num rio violento, destruindo dezesseis aldeias e matando 125 pessoas. A empresa operadora, Pittston Coal, explicou aos sobreviventes que a catástrofe era de certa forma inevitável: segundo suas palavras, “um ato de Deus”. Hoje, esse lodo ainda é armazenado no topo das montanhas, do Kentucky à Pensilvânia, passando pela Virgínia Ocidental, pendendo como espadas de Dâmocles sobre os vales. Os mineiros das galerias norte-americanas sempre tiveram um preço alto a pagar. Em 1907, contaram-se 3.247 mortos entre eles; no início da década de 1980, a exploração de carvão ainda fazia 250 vítimas por ano, e quase cem em 1991. Essa queda reflete a redução do próprio número de mineiros. Na Virgínia Ocidental, por exemplo, eles eram 41 mil em 1983, e apenas 24 mil em 2012. No entanto, ao longo dessas duas décadas, a produção do estado manteve-se estável e elevada, superada apenas pela do Wyoming.
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A mineração no subsolo está em acentuado declínio. Ela foi suplantada pelo mountaintop removal (MTR), um tipo de exploração a céu aberto em que se remove o cume das montanhas com explosivos, a fim de extrair o minério. O processo avançou consideravelmente na virada do século. Mais produtivo e demandando muito menos mão de obra, ele corresponde à mais avançada etapa da mecanização na indústria mineradora. Os avanços da engenharia permitiram que o MTR alcançasse uma escala gigantesca, com um impacto ambiental sem par. Nos bancos do tribunal, Vernon Haltom sussurra que a potência somada das explosões na Virgínia Ocidental e no Kentucky equivale hoje a “uma bomba de Hiroshima por semana”. Ele é presidente da Coal River Mountain Watch, associação que luta pelo fim da prática. Nas escolas, Haltom diz “4 mil mísseis Tomahawk por dia”, pois as crianças não conhecem Hiroshima. Legal nos Estados Unidos, o MTR já causou o desaparecimento de pelo menos quinhentas montanhas e 3 mil quilômetros de riachos na Virgínia Ocidental e no Kentucky. Para reverdecer o ambiente, as empresas espalham uma mistura de sementes de pinheiro, fertilizante e corante verde. A indústria pretende impulsionar a economia local transformando essas vastas áreas planas em terrenos de golfe, como em Mingo County; há também um projeto de prisão federal no Kentucky. Mas os exemplos de reconversão podem ser contados nos dedos de uma mão e não criam muitos postos de trabalho. A cada explosão, uma nuvem de pó espalha-se sobre o vale. Nanopartículas de sílica são inaladas por pessoas e animais. No verão, uma película fica depositada sobre os carros e os brinquedos das crianças, como depois de uma tempestade de areia. A água dos poços fica tingida. Os habitantes da região têm dores de cabeça e apresentam irritações na pele. Os dentes das crianças ficam cariados mais cedo. Estudos de longo prazo da Universidade da Virgínia Ocidental estabeleceram que as taxas de câncer e malformação infantil são 50% maiores em áreas próximas às explosões.6 O problema seria causado pelas partículas finas e pela contaminação do solo com metais pesados – manganês, cádmio –, usados para extrair e processar o minério. Um punhado de associações tenta compensar a falta de controle das autoridades procurando infrações e processando as empresas. Essa tarefa ingrata desperta a animosidade dos moradores cujo salário depende da indústria. O debate divide famílias, aldeias, cantores populares: a favor ou contra o carvão, a favor ou contra
© Reuters / Robert Galbraith
UMA BOMBA ATÔMICA POR SEMANA
O operário Mike Hawks, de 53 anos, em túnel de mina de carvão na Virgínia Ocidental
os empregos? “Você não gosta de carvão? Então apague a luz”, podemos ler nos para-lamas das picapes que atravessam o vale. Os norte-americanos costumam zombar do baixo nível educacional e do sotaque dos habitantes dos Apalaches, que são estigmatizados tanto pela ruralidade como pela pobreza: são hillbillies, “caipiras das montanhas”. Em troca, os mineiros desenvolveram uma mentalidade particular, a de homens que trabalham duro, para os quais os acidentes de trabalho e as doenças – “pulmão preto”, câncer – fazem parte da vida. Diversos fatores fizeram saltar as taxas de desemprego nas áreas mineradoras, especialmente a mecanização e, mais recentemente, o boom do gás natural. Extraído pelo método de fraturamento hidráulico, ele se tornou vital em muitos estados norte-americanos, inclusive nos Apalaches. Embora em declínio, o carvão continua a ser a principal fonte de geração de energia elétrica no país. De acordo com dados da Energy Information Agency, sua participação caiu de 48,5%, em 2007, para 37,4%, em 2012, enquanto a do gás natural passou de 21,5% para 30,4% no mesmo período. A publicidade televisiva defende um modo de vida ameaçado por burocratas de Washington, focando a Igreja e o king coal, o “rei carvão”. Nessas regiões, comprometer o desenvolvimento do minério pode levar à morte política.7 Shelley Capito, uma das representantes da Virgínia Ocidental no
Congresso, preside a Coal Caucus, associação de parlamentares que defende a indústria de mineração em Washington. Ela considera o aquecimento global um mito e ajudou a gerar uma lei que protege a mineração de carvão. A lei, que acabou rejeitada pelo Senado em julho de 2014, privaria Washington de qualquer poder de intervenção na indústria mineradora. “Nossas minas estão fechando. Nossos mineiros enfrentam o desemprego, porque os controles desaceleram a produção. [...] Nossa lei é da mais alta importância”, explica. “O salário do povo dos Apalaches depende dela.”
“Ele trabalhou apenas dez anos embaixo e, com 49 anos de idade, parecia ter 70. Ele toma diversos remédios e fica na cama o tempo todo” Junior Walk cresceu em Coal Valley, entre uma mina, uma fábrica e um tanque de lodo. Ele pretende continuar vivendo ali, não importa o que aconteça. Quando terminou a escola, foi fazer “a única coisa que há para fazer no vale”: trabalhar para a Massey, na usina de tratamento situada a cinco minutos de sua casa, que tam-
bém empregava seu pai. O salário era bom, mas Walk saiu em seis meses ao ver a saúde de seu pai se deteriorar. “Ele trabalhou apenas dez anos embaixo e, com 49 anos de idade, parecia ter 70. Ele toma diversos remédios e fica na cama o tempo todo”, conta o rapaz de 24 anos e cavanhaque puxando para o ruivo. Sua casa fica abaixo do maior tanque de lodo do mundo ocidental: Brushy Fork. Para vê-lo, é preciso ir de helicóptero ou invadir uma estrada, propriedade da companhia Marfolk, sucursal da Massey Energy. A subida leva quinze minutos de quadriciclo. Do outro lado do topo, entre as árvores, vemos o lago preto, plácido e faraônico, com 270 metros de profundidade. O dique que o contém é feito com restos dos terrenos explodidos. Quando Brushy Fork estiver com sua capacidade completa, seu volume ultrapassará 31 milhões de metros cúbicos, o equivalente a 1,5 mil petroleiros equilibrados no topo de uma montanha. O lodo infiltra-se por galerias abandonadas, contaminando a água dos poços abaixo. Durante anos, as crianças da escola primária reclamaram de dores de cabeça e vômitos; um silo de carvão também foi localizado a menos de 30 metros do parque infantil. Após dez anos de protestos, a escola foi finalmente deslocada para alguns quilômetros dali. Walk tem um emprego fixo desde que, em 2009, um amigo lhe ofereceu
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trabalho como vigia noturno de uma instalação. “Doze horas dentro de um carro sem fazer nada: achei que eu tinha nascido para aquilo. E então vi o que estavam fazendo com a montanha. Fiquei me sentindo um vendido”, conta. “Sempre tive uma saúde debilitada, e com certeza é por causa da água, ainda que bebesse pouco. Ela saía da torneira vermelha, todos os dias. Os metais pesados são um veneno de longo prazo.” É possível filtrá-los, mas o aparelho custa milhares de dólares e “ninguém aqui pode pagar”. Walk toma cuidado para não beber água da torneira, “mas há o chuveiro, a lavagem da roupa, da louça. Às vezes, minha mãe cozinhava com ela. Em suma, eu sei o que as pessoas que vivem perto do local que eu vigiava passam”. O rapaz começou então uma carreira de ativista por conta própria. Sem laptop, colocava o computador no carro, ligava a uma bateria e passava as noites escrevendo. Quando decidiu atravessar o Rubicão e se tornar assistente do Observatório das Montanhas de Coal River, seu pai o mandou embora de casa. “Se ele não fizesse isso, teria sido demitido num piscar de olhos. Para manter as aparências,
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me isolou. Quase tão devastador quanto o impacto sobre a natureza é o impacto sobre as pessoas.” O engajamento tem um preço: no ano passado, os cabos de freio de seu veículo foram cortados, e um mineiro o ameaçou com uma arma no estacionamento de um posto de gasolina. “Ele disse que eu estava roubando o pão da boca de seus filhos.” Desde então, Walk mantém um colete à prova de balas no porta-malas do carro. Entre a cruz e a caldeirinha, os mineiros de Coal River lutam para salvar os últimos empregos bem remunerados do vale – um mineiro ganha US$ 60 mil por ano em início de carreira –, e qualquer questionamento dos métodos atuais é visto como um casus belli. Na noite da audiência preliminar de Blankenship, a pequena Morrisville abrigava uma reunião pública sobre a ampliação de uma mina gigantesca, Hobet, que já pulverizou 40 quilômetros quadrados de montanha. Seis representantes de associações foram até lá para alertar uma centena de moradores e mineiros sobre as consequências da ampliação. No pequeno salão de festas, a reunião logo degringola, com os participantes se unindo contra
os ambientalistas. Uma pequena mulher de óculos de aros e cabelos grisalhos, Diane Bady, da Ohio Valley Environmental Coalition, é chamada de “monstro” por se referir a um estudo que relaciona o MTR ao aumento de casos de câncer. Os resultados dos estudos são rejeitados, considerados ciência fajuta, ou encarados como um risco necessário para manter os empregos no vale. “Eles falam de câncer e crianças malformadas”, diz Jerry Hager, um mineiro morador de Alkol, ao microfone. “Mas não estou vendo crianças com três braços nadando em nossos riachos. E se eu tiver câncer? Não ligo. Tenho seguro.” O efeito de grupo vai de vento em popa, e a reunião termina com ameaças direcionadas. “Sabemos onde você mora e não esquecemos as coisas!”, conclui Donnie Barker, esposa de mineiro, que acusa as associações de desviar água de um esgoto para falsificar registros. Ao fim de uma hora, policiais armados escoltam os representantes das associações até o carro. Um projeto de lei foi elaborado para proibir o MTR em todo o território dos Estados Unidos. “A lei já tem o apoio de 47 senadores em Washington”, diz, oti© Reuters / Baz Ratner
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mista, Halsom. Mas Walk está bastante desiludido. “Quarenta e sete é muito pouco. Democrata, republicano, isso é só um bottom no casaco. Há muitos políticos pagos pela indústria. Eles fecham os olhos.” *Maxime Robin é jornalista.
1 Cópias da acusação e da investigação federal podem ser consultadas em: <www.wvgazette.com/ assets/PDF/CH62291113.pdf>. 2 Ken Ward Jr., “Longtime Massey Energy CEO Don Blankenship Indicted” (Indiciado Don Blankenship, CEO de longa data da Massey Energy), The Charleston Gazette, 13 nov. 2014. 3 Ver Howard Berkes, “Coal Mines Keep Operating Despite Injuries, Violations and Millions in Fines” [Minas de carvão continuam operando, mesmo com lesões, violações e milhões em multas], National Public Radio, 12 nov. 2014. Disponível em: <www.npr.org>. 4 Dylan Lovan, “After Decade, Still Signs of Coal Slurry Spill” [Após uma década, ainda há sinais de vazamento de lodo de carvão], The Washington Post, 17 out. 2010. 5 Ele prefere manter o anonimato, em razão de suas ligações profissionais com a Alpha Natural Resources, que comprou a Massey Energy em janeiro de 2011 por US$ 7,1 bilhões. 6 Os estudos acadêmicos, numerosos, estão compilados aqui: <http://crmw.net/resources/health-impacts.php>. 7 Ler Serge Halimi, “Le petit peuple de George W. Bush” [O povo simples de George W. Bush], Le Monde diplomatique, out. 2004.
CHEIRO DE ALCAÇUZ
O
capitólio de Charleston, onde se reúnem os parlamentares da Virgínia Ocidental, fica a uma distância confortável das explosões que sacodem continuamente o “vale do carvão”. Até 9 de janeiro de 2014, ele mantinha excelentes relações com a indústria mineira e química. Mas, naquela manhã, um odor suspeito perturbou o bom funcionamento da assembleia. Maya Nye, especialista em direito industrial, ligou o computador. Seu círculo de amigos a alertou de que um cheiro forte, “como de alcaçuz”, havia invadido sua cidade natal. Isso geralmente indica algum vazamento, o que é comum nessa área apelidada de Chemical Valley – “vale químico” –, por causa de suas inúmeras fábricas e armazéns. Desde a década de 1930, com a ajuda da proximidade do carvão, lá se produzem e armazenam fertilizantes, pesticidas, anticongelante, “agente laranja”. As pessoas orgulham-se disso e fazem até piada: a equipe local de roller derby, esporte coletivo feminino, tem como logotipo duas patinadoras usando máscaras de gás. Nye cresceu nesse universo de alertas e abrigos anticatástrofe. A casa de sua família fica a 1 quilômetro de uma fábrica da Union Carbide, onde trabalham seus pais e muitos vizinhos. A empresa armazenava MIC – substância responsável pelo desastre de Bhopal1 – em quantidades cinco vezes maiores que a da fábrica indiana. Em 2008, depois de ser comprada pela Bayer, uma explosão na fábrica matou dois mineiros. Ela aconteceu a menos
de 15 metros de um tanque cheio de MIC – se ele tivesse pegado fogo, Charleston teria sido devastada por um acidente industrial cujas consequências, segundo um inquérito parlamentar, “ofuscariam as de Bhopal”. Mas nenhuma lei foi aprovada para impedir esse tipo de acidente.2 Nye conhece bem os odores suspeitos. Na infância, tinha o hábito de registrá-los – “repolho podre”, “batata frita”. Quando perguntava ao pai, ele respondia: “É o cheiro do dinheiro, querida”. Mesmo assim, ela nunca havia sentido cheiro de alcaçuz, e as notícias do dia superavam seus piores temores: a empresa Freedom Industries declarou às autoridades que uma quantidade desconhecida de MCHM – um coquetel químico usado para tratar o carvão – havia vazado de um reservatório e contaminado o Rio Elk. A fábrica fica 1 quilômetro acima da maior estação de tratamento do estado, que fornece água potável para Charleston. A água de 300 mil pessoas estava contaminada, mas as autoridades não sabiam exatamente com o quê: o MCHM é uma das cerca de 80 mil moléculas que o governo norte-americano permite que sejam produzidas e armazenadas sem que seus efeitos sobre seres humanos tenham sido testados. Uma espécie de presunção de inocência para incentivar o dinamismo industrial. Do majestoso capitólio, temos uma visão panorâmica do Rio Kanawha, do qual o Elk é afluente. Cento e trinta e quatro parlamentares estavam reunidos sob a cúpula no dia do vazamento. A sessão foi encerra-
da e senadores passaram mal. Símbolo bastante forte, o acidente, incentivado pelas brechas legais graças às quais a indústria floresce, afetou pessoalmente os legisladores. Os serviços de emergência ficaram sobrecarregados com milhares de chamadas; o governador Earl Ray Tomblin, cuja mansão fica a um pulo do capitólio, declarou estado de emergência; o presidente Barack Obama ordenou o envio de comboios da Agência Federal de Gestão de Emergências (Federal Emergency Management Agency, Fema). O Ministério da Saúde da Virgínia Ocidental indicou ao público os sintomas potenciais em caso de exposição a um produto como o MCHM: “Grave ardência na garganta. Grave ardência nos olhos. Vômitos violentos. Dificuldade em respirar. Lesões na pele formando bolhas”. Os moradores foram informados de que não deveriam usar a água encanada para nada, a não ser para dar descarga no banheiro. No dia 10 de janeiro, em uma coletiva de imprensa, os serviços estatais confessaram não conhecer as propriedades do MCHM: a Freedom Industries, conforme lhe permite a lei sobre propriedade industrial, não informou o conteúdo exato da substância. Várias medidas contraditórias foram recomendadas pelas autoridades. Primeiro se recomendou não beber água encanada de modo algum, e a Guarda Nacional distribuiu água aos habitantes como num país em guerra. Houve brigas nas lojas por causa de pacotes de garra-
fas. Os mais ricos abandonaram Charleston para tomar banho e lavar roupa em segundas residências; os outros colocaram baldes no jardim esperando que chovesse. Então o governo suspendeu a interdição, para logo em seguida voltar parcialmente atrás, desaconselhando o consumo pelas mulheres grávidas. Em 20 de janeiro, onze dias após o vazamento, o governador Tomblin acaba sugerindo que o povo confie em seus instintos. “Não posso dizer que é 100% seguro. O que posso dizer é: se você não se sente confortável, não beba.” “Alguma coisa deveria proteger a população”, avalia Nye. “Isso faz sentido, pois há muita gente exposta.” Após dois meses de indignação pública, a Lei n. 373, que obriga os fabricantes a declarar os produtos químicos armazenados em reservatórios acima do solo, foi finalmente aprovada, em 8 de março de 2014. Ela é provavelmente a medida mais restritiva já adotada na história do estado. Resta saber se os fabricantes vão, como pretendem, conseguir esvaziá-la com seu intenso lobby junto aos legisladores. (M.R.) 1 A cidade de Bhopal, na Índia, foi o epicentro da maior catástrofe industrial da história. Na noite de 2 para 3 de dezembro de 1984, o vazamento de um reservatório de MIC causou a morte de milhares de pessoas e feriu outras centenas de milhares. 2 Depois de uma moção apresentada pela associação People Concerned About Chemical Safety, presidida por Nye, a Bayer CropScience acabou fechando sua unidade em 2011.
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COREIA DO NORTE
Rússia ao resgate Para sua primeira visita ao exterior, a ser realizada no dia 9 de maio, o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, escolheu Moscou – não Pequim. Ainda frágil, a aproximação russo-norte-coreana poderia afetar os equilíbrios regionais POR PHILIPPE PONS*
© Patrício Bisso
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ladimir Putin deve ser o primeiro chefe de Estado a receber Kim Jong-un, convidado para as cerimônias do septuagésimo aniversário da vitória russa sobre o nazismo, no dia 9 de maio. Essa viagem ao exterior, a primeira desde que sucedeu ao pai em dezembro de 2011, será a oportunidade de o líder norte-coreano conhecer outros chefes de Estado e de governo, e deve marcar sua entrada oficial no cenário internacional. A visita confirmará principalmente a rápida aproximação entre a Coreia do Norte e a Rússia. Combatida a oeste por sanções internacionais após o conflito na Ucrânia e a anexação da Crimeia, a Rússia volta-se para o leste, reforça suas relações com a China e redescobre o peso estratégico da Coreia do Norte nos equilíbrios regionais (ponto de convergência dos interesses norte-americanos, chineses, sul-coreanos e japoneses).1 Esta, por sua vez, procura diversificar seus parceiros. Em Potsdam, em julho de 1945, Estados Unidos e União Soviética decidiram que a península coreana, então colônia japonesa, seria temporariamente dividida em duas zonas de ocupação – partilha que acabou ratificada pela criação de dois Estados diferentes em 1948. No Norte, instaurou-se, sob a tutela soviética, um regime semelhante às democracias populares do Leste Europeu. Em junho de 1950, Joseph Stalin deu sinal verde para a invasão do Sul pelo Norte; porém, após a intervenção das forças da ONU, sob o comando dos Estados Unidos, foi a China, mais que a União Soviética, que apoiou a Coreia do Norte e interveio militarmente na península. Mais tarde, depois de purgar os pró-chineses e pró-soviéticos de dentro do Partido do Trabalho e jogar com a rivalidade sino-soviética nos anos 1960-1970, o país conduziu uma hábil política de equilíbrio entre seus dois mentores “socialistas”, a fim de construir uma margem de manobra para si. Sem esperança de voltar a esse sistema de contrapeso, agora ele pretende afrouxar a pressão política e, sobretudo, econômica da China, que fere sua feroz reivindicação de independência. Essa busca por novos parceiros tornou-se ainda mais necessária pelo fato
de que, desde a chegada ao poder do presidente Xi Jinping, a China não esconde sua irritação com o regime norte-coreano. A Coreia do Norte lançou seu charme em direção à Rússia, em particular nas cerimônias do sexagésimo aniversário do fim da Guerra da Coreia, em julho de 2013, que foram marcadas por uma homenagem à União Soviética por seu apoio e uma reafirmação da amizade “de geração em geração” entre os dois povos. Após a queda da União Soviética, em 1991, a Rússia encerrou sem a menor cerimônia suas relações privilegiadas com os “países irmãos”, exigindo o pagamento, a preço de mercado, de suas exportações de produtos de base para fabricação de fertilizantes e energia – exigência que a Coreia do Norte não pôde cumprir e que foi um dos gatilhos do colapso econômico e da fome na segunda metade dos anos 1990. No início da década seguinte, sob a liderança de Putin, a Rússia reatou com a Coreia do Norte: em fevereiro de 2000 foi assinado um novo tratado de amizade, boa vizinhança e cooperação; depois, em julho do mesmo ano, o presidente russo visitou a capital norte-coreana. Kim Jong-il foi a Moscou no ano seguinte e ainda se encontrou com o presidente Dmitri Medvedev, em Ulan-Ude (Sibéria), em 2011. Dois grandes projetos foram então iniciados: um gasoduto ligando as jazidas russas à Coreia do Sul via Coreia
do Norte; e a ligação da ferrovia entre Kazan, na fronteira russa, e a zona econômica especial norte-coreana de Rason, na perspectiva de uma conexão da rede ferroviária da Coreia do Sul à Transiberiana – ligação que encurtaria em dois terços o tempo de transporte das mercadorias que passam hoje pelo Canal de Suez. A primeira fase do projeto ferroviário foi realizada em setembro de 2013: restauração, com financiamento russo (US$ 340 milhões), de 54 quilômetros de ferrovias que permitem à Rússia usar o porto de Rason como terminal de contêineres e, assim, aliviar o de Vladivostok, congestionado. A Rússia planeja se envolver no setor de mineração e, para facilitar a operação, modernizar quase metade da rede ferroviária norte-coreana, ou seja, 7 mil quilômetros no total. O gasoduto e a estrada de ferro “transcoreana” exigem um investimento considerável e levantam complexas questões de segurança para a Coreia do Sul. Sem ter concordado com o projeto, esta também não perdeu o interesse nele. Prova disso é a participação de representantes da Korail, a companhia nacional de ferrovias sul-coreana, em uma conferência internacional sobre o transporte entre Europa e Ásia, realizada em Pyongyang em abril de 2014. A Korail, a siderúrgica Posco e a companhia de comércio marítimo Hyundai chegaram a comprar metade das ações russas na joint venture russo-norte-coreana que ge-
rencia o caminho entre Kazan e Rason. Mas esses projetos só poderão tomar forma se for reduzida a tensão entre as duas Coreias. Num gesto de boa vontade, a Rússia cancelou, em abril de 2014, 90% da dívida norte-coreana (US$ 10,9 bilhões) contraída durante a era soviética; os 10% restantes destinam-se a financiar projetos de energia na Coreia do Norte. Os dois parceiros decidiram utilizar o rublo nas transações bilaterais, a fim de reduzir a dependência em relação ao dólar. Essas transações, modestas (US$ 100 milhões em 2013), podem decuplicar até 2020. A Rússia não pode nem quer suplantar a China como principal parceiro da Coreia do Norte, mas seu retorno como ator influente ao tabuleiro coreano poderia ter consequências sobre o jogo de estratégia global, dando ao Kremlin uma carta adicional em seu confronto com a Casa Branca. Favorável à desnuclearização da Coreia do Norte pelo diálogo, a Rússia faz frente com a China para bloquear resoluções que poderiam colocar Pyongyang contra a parede: como Pequim, Moscou quer manter a estabilidade na península. A questão norte-coreana continua sendo um dos raros terrenos de cooperação entre a Rússia e os Estados Unidos. O Kremlin manteve um perfil baixo nas negociações multilaterais a seis (China, duas Coreias, Estados Unidos, Japão e Rússia), deixando a Pequim o papel de defensor da Coreia do Norte. Afastada das negociações multilaterais, porém, a Rússia tem deixado de fazer o papel de mediador. Exposto às sanções norte-americanas e europeias, o Kremlin poderia desistir dessa “neutralidade” para se aproximar mais da posição chinesa2 e opor-se mais firmemente à política de isolamento da Coreia do Norte para forçá-la a abandonar suas ambições nucleares. *Philippe Pons é jornalista. 1 Isabelle Facon, “La complexe quête asiatique de la Russie” [A complexa busca asiática pela Rússia], em “Poudrières asiatiques” [Barris de pólvora asiáticos], Manière de voir, n.139. 2 Georgy Toloraya, “A Tale of Two Peninsulas: How Will the Crimean Crisis Affect Korea?” [Uma história de duas penínsulas: como a crise da Crimeia afeta a Coreia?], 13 mar. 2014. Disponível em: <www.38north.org>.
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“A ÁGUA FOI EMBORA E A DIGNIDADE TAMBÉM”
São Paulo a seco “Você sabe o que eles pretendem fazer? A Sabesp tem um plano B para o futuro?”, indaga. Todos olham para a debatedora, que responde desolada: “Não, eu tenho as mesmas informações que vocês e não faço a menor ideia se há um plano B, C ou D. Por outro lado, sei que o pior ainda está por vir” POR ANNE VIGNA*, ENVIADA ESPECIAL
© Bernardo França
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m restaurante elegante no coração de São Paulo, capital econômica do Brasil. O sommelier apresenta a seus clientes uma garrafa de vinho, que ele manipula como se fosse um bebê, e em seguida serve seu conteúdo, em copos de plástico. Nos banheiros do local, impecáveis, o sifão foi desmontado e a água corre direto para um balde. Na porta, um cartaz sugere: “Caros clientes, por favor, utilizem a água de reúso para a descarga”. Há vários meses, a cidade dos superlativos – a mais populosa, a mais cheia de automóveis, a mais rica... – também se tornou a cidade das cenas mais estranhas. São Paulo está entre as megalópoles do mundo que tiveram um forte crescimento econômico na última década, mas a água começa a faltar de forma aguda. No estado de São Paulo, com 41 milhões de habitantes, os conservadores estão no poder há 24 anos. No último debate televisivo entre os candidatos a governador, em outubro, os reservatórios já estavam com níveis assustadoramente baixos. Ao ser questionado sobre o tema, o candidato à reeleição, Geraldo Alckmin, do PSDB, foi categórico: “Não está faltando nem vai faltar água em São Paulo”. Ele ganhou as eleições, mas a frase ainda aparece nas redes sociais. “No início, em agosto de 2014, eles cortavam a água apenas à noite. Mas agora cortam também na hora do almoço”, esbraveja o dono do restaurante chique apontando para os galões de água na cozinha – usados nos intervalos sem água. “Eles”? A Sabesp, empresa de economia mista1 encarregada da distribuição e saneamento na cidade. A reserva dos galões não é suficiente para as necessidades do estabelecimento: a louça da noite ficará acumulada até a manhã seguinte, e os cozinheiros só conseguem realizar suas atividades graças a garrafões de água potável. Assim como em todo lugar, o fenômeno repercute nos preços do cardápio. E as coisas não melhoram: a Sabesp chegou a considerar limitar o abastecimento a dois dias por semana em alguns bairros, mas depois voltou atrás. Os funcionários se inquietam, a
empresa dá informações a conta-gotas. Após forte pressão popular, a concessionária indicou em seu site na internet as horas de corte de cada bairro. As informações, contudo, muitas vezes estavam equivocadas. E parou de dar entrevistas à imprensa. O PIOR AINDA ESTÁ POR VIR
No fim da projeção do documentário A lei da água (ver boxe), de André D’Elia (Cinedelia, 2014), no fim de janeiro, ninguém se mexe. No salão lotado, como acontece com todas as sessões desse filme, todos esperam o debate com Ana Paula Fracalanza, pesquisadora da Universidade de São Paulo e especialista em gestão hídrica. Na casa de Maria Caçares, que estava na plateia e fez uma intervenção, o corte de água acontece antes de sua chegada do trabalho e só volta às 10h da manhã, quando ela já saiu de casa. Felizmente, em seu edifício, as pessoas mais velhas se encarregam de encher galões de água para os que trabalham fora. “Você sabe o que eles pretendem fazer? A Sabesp tem um plano B para o futuro?”, indaga a Fracalanza. Todos olham para a debate-
dora, que responde desolada: “Não, eu tenho as mesmas informações que vocês e não faço a menor ideia se há um plano B, C ou D. Por outro lado, sei que o pior ainda está por vir”. Todos conhecem o plano A do governo: investir cerca de R$ 1 bilhão para captar a água do Rio Paraíba do Sul, que já abastece o Rio de Janeiro. Mas a operação – que privará o Rio de parte de sua fonte de abastecimento – precisa de dezoito meses para ser concluída, na melhor das hipóteses. “Perdemos muito tempo por causa das eleições. Se o governo tivesse dito antes que era preciso economizar água, a população teria entendido”, explica Marcelo Cardoso, representante da Aliança pela Água, uma coalizão de organizações ecológicas que surgiu com a eclosão da crise. Em outubro passado, em Itu (SP), houve uma série de protestos pela situação de calamidade pública da cidade: sem água, os moradores atacaram prédios públicos. Os caminhões-pipa enviados pelo estado precisaram entrar na cidade escoltados pela polícia. Os manifestantes não eram fanáticos ou revoltados, eram cidadãos de “bem”, entre os
quais muitas mulheres de classe média. “A água foi embora e a dignidade das pessoas também. Quando não podemos mais tomar banho, ir ao banheiro, cuidar das crianças, entramos em pânico”, explica Cardoso. Segundo um relatório de serviços de informação do estado de São Paulo revelado pela edição brasileira do jornal El País,2 a região poderia experimentar manifestações graves como as de junho de 2013, desencadeadas pelo aumento da tarifa dos transportes públicos. O site especializado em questões de segurança Defesa.net3 assegura que a crise hídrica explica o “estágio” que funcionários do serviço de informação de São Paulo realizaram, em novembro último, em uma unidade policial especializada dos Estados Unidos chamada Special Weapons and Tactics (Swat). Ironia da história, São Paulo recebeu em março catorze veículos munidos de potentes canhões de água para dispersar manifestantes.4 Será que de fato o poder público ousará enfrentar manifestantes que protestam contra a falta de água com esse aparato? Propostas que visam otimizar os recursos hídricos não faltam: desenvolvimento de agroecologia, despoluição do Rio Tietê – que se transformou em um esgoto a céu aberto em São Paulo –, reparações no sistema de abastecimento para mitigar perdas (estimadas em 25%), captação de água das chuvas etc. Nenhuma dessas iniciativas, porém, ganhou a atenção dos poderes públicos. DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA
A explicação dessa crise está mais ao norte, na floresta amazônica, devorada para dar lugar à plantação de soja e criação de gado. O Brasil se encontra em um impasse: a agroindústria, pilar de sua balança comercial, absorve quase 70% do consumo de água no país. A exportação de bens agrícolas representa uma transferência ao estrangeiro de cerca de 112 bilhões de litros de água por ano.5 Esse setor repousa sobre um regime de chuvas abundantes, colocado em risco pelo desmatamento que se amplia constantemente.
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A floresta permite não apenas reter a água da terra, mas também o fenômeno da evapotranspiração do solo e das folhas – dessa forma, restitui à atmosfera uma quantidade considerável de vapor. Os cientistas estimam que a Bacia Amazônica emita o equivalente a impressionantes 20 trilhões de litros de água por dia. Essa umidade favorece a condensação de nuvens e provoca o fenômeno dos “rios aéreos de vapor”. “Os ventos que provêm do oceano se encarregam do vapor constante que predomina na Amazônia e são barrados a leste pelos Andes, o que faz toda essa água ser reenviada para o sul do continente”, explica Antonio Donato Nobre, especialista em clima e autor de uma síntese de duzentos relatórios científicos sobre a Amazônia.6 O ecossistema da Amazônia e da Cordilheira dos Andes permite que o sul da América Latina sofra menos com a seca que atinge a maior parte do globo nessa latitude (como os desertos da Namíbia e da Austrália, por exemplo). A pluviometria que eles favorecem é crucial para cerca de 70% da produção da riqueza regional.7 “Desmatamos quase 90% da mata atlântica em toda a costa leste do país, mas sem sentir as consequências, porque a Amazônia oferece umidade suficiente”, continua Nobre. “Hoje, 18% da Amazônia está desmatada, e a área degradada já atinge 29% do bioma.8 Não podemos dizer com precisão em que momento sentiremos o efeito desse desastre, mas ele está anunciado há mais de uma década.” De acordo com as últimas estimativas, 762.979 km² de floresta – mais de duas vezes a superfície da Alemanha – foram destruídos nos últimos quarenta anos. Somente em 2004, desapareceram 27.772 km². Se o ritmo anual pudesse voltar a 4.571 km² em 2012, essa situação poderia ter curta duração. Em 2011, o governo reformou seu Código Florestal sob pressão dos deputados e senadores chamados de “ruralistas”, que defendem os interesses da indústria agroalimentar. Esse novo
código limita fortemente as zonas de conservação e anistia todos os processos judiciais ligados ao desmatamento, que pode se intensificar com as novas prerrogativas. A falta de chuva se traduz igualmente por uma penúria de eletricidade em um país cuja produção energética provém 75% de usinas hidrelétricas. O ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, reiterou a vontade de construir uma barragem no Rio Tapajós, na Amazônia, enquanto a de Belo Monte, no Rio Xingu, nem sequer entrou em atividade. Essa seca na megalópole brasileira permitirá uma tomada de consciência sobre a necessidade de proteger a Amazônia? Por enquanto, o governo federal concentra sua ação no financiamento do plano A de São Paulo. Ele deverá igualmente responder às dificuldades dos outros estados em crise, como Rio de Janeiro e Minas Gerais – sem mencionar os auxílios que os agricultores reivindicam para enfrentar a seca e os subsídios fiscais que as indústrias exigem para se munir de equipamentos que consomem menos água. O “bombeiro” federal precisa conter todos os incêndios que ameaçam seu edifício. Mas o dinheiro, assim como a água, é escasso. “DEUS É BRASILEIRO, E ELE FARÁ CHOVER”
Na imensa favela da Brasilândia, a uma hora de ônibus ao norte do centro de São Paulo, os moradores já estão bem conscientes do problema que se anuncia. Abaixo da favela, os cortes acontecem como no resto da cidade, mas, quanto mais avançamos pelo labirinto de ruas morro acima, menos acesso à água têm os moradores. Uma avó que tenta recolher a água usada da máquina de lavar roupa nos explica: “Com isso, limpo toda a casa”. Ela fica surpresa com o fato de, naquele mesmo dia, a Folha de S.Paulo ter publicado um infográfico pedagógico apresentando justamente formas de economizar água: recuperar a água da máquina de lavar, reutilizar a água do
banho, fechar a torneira quando escovamos os dentes etc. “Até o pessoal lá de baixo está fazendo isso? Então a situação é grave”, conclui. Ao subirmos na laje, observamos uma profusão de galões e baldes empilhados nos tetos vizinhos. Com qualquer chuvinha, “subimos e posicionamos os recipientes para recolher água da chuva”, comenta seu filho mais velho. A técnica funciona bem, mas, em um país tropical como o Brasil, tem consequências previsíveis. Segundo a Secretaria de Saúde da cidade, os casos de dengue se multiplicaram por três em janeiro deste ano em relação ao mesmo período em 2014.9 A crise da água produz múltiplos efeitos. Para exemplificar um dos mais espetaculares, é preciso visitar os reservatórios do Sistema Cantareira, um dos sistemas mais importantes de adução do mundo. A paisagem que vemos por lá é desoladora. O imenso lago artificial parece, hoje, uma mina a céu aberto. A terra exposta ao sol está rachada. O que resta de água corresponde a 18,2% (em 26 de março) do nível original. “Ninguém pode nos dizer o tempo que será preciso para recuperar o nível de antes da crise, mas certamente estamos falando de anos, pois, como a terra está exposta, a água se infiltra quando chove, mas também evapora rápido e não faz o nível subir muito”, explica Francisco de Araújo, adjunto da Secretaria de Meio Ambiente de Bragança Paulista. Nas margens, as cinco marinas, em geral cheias durante o verão, estão desesperadamente vazias. “Quase todos os nossos clientes levaram seus barcos para o litoral e não acho que voltarão”, explica Sydney José Trinidad, proprietário de um desses pequenos portos. Rumores sugerem que, depois de deslocar seus barcos, os mais abastados também já deixaram São Paulo. Mas o ministro de Minas e Energia permanece sereno: “Deus é brasileiro, e Ele fará chover”. *Anne Vigna é jornalista.
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ocumentário brasileiro sem fins lucrativos que explica a relação entre o novo Código Florestal, o desmatamento e a crise hídrica brasileira. O filme está sendo exibido em uma série de cinedebates gratuitos espalhados pelo país (acesse a agenda: https://aleidaaguafilme.wordpress. com/agenda-cinedebates/) e chegará aos cinemas de algumas cidades por uma campanha de financiamento colaborativo via Catarse (https:// agua.catarse.me/).
1 O estado de São Paulo detém 50,3% do capital da Sabesp. O resto está nas Bolsas de São Paulo e Nova York. 2 “Polícia teme onda de protestos por causa da falta de água e de luz”, El País Brasil, São Paulo, 6 fev. 2015. 3 “Seca em São Paulo é tratada como caso de segurança pública”, 30 nov. 2014. Disponível em: <www.defesa.net.com.br>. 4 “PM de São Paulo terá caminhões com canhões de água”, O Estado de S. Paulo, 9 jul. 2013. 5 Isabella Bueno, “A água virtual no contexto da exportação”, Jornal Biosferas, Rio Claro, 10 mar. 2015. 6 Antonio Donato Nobre, “O futuro climático da Amazônia. Relatório de avaliação científica”, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, out. 2014 (disponível on-line). 7 Ibidem. 8 Deterioração de uma floresta por corte seletivo e não durável, em particular pela instalação de pastos e exploração do gado. Nos casos mais graves, pode chegar a se configurar desmatamento. 9 “Secretaria divulga segundo balanço de dengue e chikungunya na cidade”, comunicado do Serviço Municipal de Saúde da cidade de São Paulo, 12 fev. 2015.
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PREPARAR O FUTURO DOS DETENTOS
Prisão fora dos muros, uma solução esquecida Na França, há quinze anos o cumprimento externo da pena permite que condenados em final de sentença vivam e trabalhem fora da prisão. Sem suspender a condição de detento, ele prepara o regresso à liberdade. No entanto, apesar de mais barata, humana e adequada para a reintegração, essa alternativa ao encarceramento continua muito marginal
© Gabriel K.
POR SARAH PERRUSSEL E LEAH DUCRÉ*
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gente sai do xadrez e é atirado na rua, no frio, na hora que eles bem entendem!” Rachid reclama por princípio,1 porque prefere estar aqui a estar na prisão. São 8 horas da manhã. Na noite anterior, a temperatura caiu abaixo de 0 °C na pequena comuna de Saint-Hilaire, a poucos quilômetros de Grenoble. Armados com pás e rastelos, Karim e os outros detentos ligados à iniciativa Solid’Action tiram a neve das proximidades de uma escola. Enfrentando o gelo, eles voltam a se confrontar com as exigências do mundo do trabalho. Alguns meses antes, viviam atrás das grades. Hoje, esses marcados pela vida contam com o “cumprimento externo da pena”. Essa alternativa francesa ao confinamento permite que os detentos completem sua sentença em regime aberto. Supervisionados por associações, prisioneiros de longa data ou pequenos infratores que vêm de uma curta passagem na prisão tomam o caminho da reintegração ou, para alguns, da integração. A lei sobre prevenção da reincidência e individualização das sentenças, aprovada pelo Parlamento em 17 de julho de 2014, apresenta esse dispositivo como parte da “liberdade supervisionada após cumprimento de dois terços da pena”. Mas como ter certeza de que, apesar de valorizado no texto da lei, ele não será esquecido na prática ou negligenciado em favor da pulseira eletrônica? Existente na França desde
1970, o cumprimento externo da pena é reconhecido em termos de integração há quinze anos, mas só atinge um pequeno número de detentos. Em 2013, apenas 664 pessoas ficaram sob a responsabilidade de associações.2 Na última década, a participação dessa medida no abrandamento de penas só caiu, passando de 11% em 2005 para menos de 5% em 2013.3 A administração francesa não dispõe de dados estatísticos.4 Enquanto a pulseira eletrônica é alvo de alguns estudos, a ausência de pesquisas qualitativas sobre o cumprimento externo da pena torna muito subjetiva a avaliação de sua eficácia. Optar por esse dispositivo também é uma escolha ética e filosófica. “É necessário repensar a punição para que ela permita reintegrar o condenado à comunidade”, avalia Pierre-Victor Tournier, diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França. O especialista em demografia penal lamenta que a prisão ainda seja o foco do sistema no país. No inconsciente coletivo, o encarceramento continua sendo a pena de referência. O cumprimento externo pode ser visto como outro nome para o acesso à liberdade, a pérola das políticas laxistas. A realidade é bem diferente. “Isto está longe de ser um acampamento de férias!”, exclama Jean-Yves Balestas, presidente da Arépi, uma associação de inserção social da comuna de Dauphin. A juíza Céline Roccaro concorda: “O cumpri-
mento externo da pena é mais restritivo do que ficar em uma cela na frente da televisão, mas também é uma maneira mais inteligente de cumprir a pena”. Ao contrário da crença popular, o cumprimento externo da pena é mais barato que uma vaga na prisão. A administração penitenciária paga entre 20 e 40 euros por dia, por pessoa, à associação que se encarrega dos detentos, ao passo que o encarceramento custa cerca de 95 euros. O elevado número de guardas nas prisões explica em grande parte a diferença. A economia para o governo também resulta do fato de que ele não cobre todas as despesas das associações: alojamento, refeições, acompanhamento social, assistência na procura de emprego, atividades culturais ou de formação. Balestas estima que cada residente custa em média 70 euros por dia. A administração penitenciária repassa apenas 35 euros.5 Para cobrir o restante, a Arépi e as cinquenta associações de cumprimento externo da pena existentes na França precisam procurar contratos com as coletividades regionais ou com empresas. É um verdadeiro desafio. São raras as instituições dispostas a trabalhar com pessoas sob custódia judicial. E isso mesmo com os contratos permitindo financiar parte do sistema, pois os condenados repassam entre 20% e 40% de sua renda à associação que os acolhe e lhes oferece trabalho. Como
os salários dos condenados variam entre 400 e 1.100 euros líquidos, o montante que lhes resta depois de pagar esses custos é modesto. Já as associações, para cobrir suas despesas, estão constantemente em busca de outras subvenções junto ao governo ou às coletividades: metrópole, conselho geral, departamento ou direção de coesão social. A maioria das associações que pratica o cumprimento externo de pena enfrenta uma grande precariedade. Por que o governo não dá mais apoio? Anne Chemithe, membro do Serviço Penitenciário de Inserção e Condicional (SPIP, na sigla em francês) de Isère, explica: “De acordo com as regras orçamentárias, o governo compromete-se a cobrir apenas os custos adicionais vinculados à sentença de prisão: a vigilância e o reforço da segurança”. O acompanhamento social, a assistência, a moradia e o trabalho não estão incluídos nesse orçamento. VIRAR-SE PARA O FUTURO
A prisão trancafia o detento em seu passado; o cumprimento externo da pena ajuda a preparar seu futuro. “Sem a Solid’Action eu ainda estaria na prisão. Teria voltado a fazer besteira para poder comer, para ter onde morar”, diz Jérémy, que já cumpriu sua pena. Aos 27 anos, sua situação financeira ainda é frágil, e ele sabe que a qualquer momento pode se ver obrigado a voltar para a rua. “O que me deixa estressado é a dívida. Ainda tenho de
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compensar as partes civis, durante seis anos.” Então, para não colocar tudo a perder novamente, ele volta à Solid’Action com frequência para encontrar trabalho e moradia. Tanto as refeições como os quartos são coletivos. Jérémy nem sempre consegue a privacidade com que sonha, mas sabe que pode contar com essa estrutura em caso de dificuldade. Entre os dispositivos penais existentes, o cumprimento externo da pena é o que oferece o suporte mais abrangente. Apesar dessa qualidade, é o menos utilizado. Em 2013, as pessoas que usavam pulseiras eletrônicas eram quinze vezes mais numerosas que os detentos em cumprimento externo da pena.6 Para a administração penitenciária, a vigilância eletrônica tem duas vantagens principais: custa muito mais barato (10 euros por dia, por pessoa) e é mais simples de pôr em prática. Mas não se ajusta a muitas situações.7 O uso de pulseira eletrônica implica retornar ao domicílio, o que nem sempre é possível. Para Jérémy, voltar a viver com os pais seria impensável. A Solid’Action dá uma solução para esse problema. Lá, ele também encontrou um ambiente afetivo que o impede de voltar a se meter em confusão e retornar ao ciclo da reincidência. Além disso, para poder usar a pulseira eletrônica, o detento precisa apresentar um projeto profissional, mas muitos não conseguem fazê-lo, por falta de formação, experiência ou referências. Não é fácil encontrar trabalho depois da prisão. Para essas pessoas, e também para aquelas que o vício ou as más influências as impedem de se reintegrar, o cumprimento externo da pena costuma ser o melhor dispositivo penal possível para o abrandamento da sentença. Somente a falta de recursos financeiros não justifica o fraco desenvolvimento dessa pena alternativa. Fre-
quentemente, o número de casos concedidos é inferior ao que prevê o orçamento da administração penitenciária. Outros obstáculos estão envolvidos, como a falta de informação entre as instituições ou o receio pessoal dos envolvidos na decisão de instaurar um cumprimento externo de pena. A política de abrandamento da pena em um departamento se assenta na parceria entre o diretor do Serviço Penitenciário de Inserção e Condicional e o juiz de aplicação de pena (JAP).8 E ambos podem relutar quanto à alternativa de cumprimento externo da pena: o SPIP alega a insuficiência de recursos humanos para aplicá-la, ao passo que o JAP considera os riscos que o detento representa para a sociedade. Em caso de um incidente grave, a responsabilidade é do juiz, por isso ele pode se mostrar resistente ou exigir fortes garantias antes de optar pelo dispositivo.9 A lógica da segurança geralmente prevalece sobre a da reinserção. Além disso, os JAP muitas vezes desconhecem as práticas das associações de integração. Quando assume plenamente seu papel de intermediário, o SPIP permite estabelecer uma relação de confiança e favorece a ousadia nas decisões sobre o dispositivo de abrandamento de pena. É o caso de Grenoble, onde a juíza Roccaro conduz uma política voluntarista. Ela explica que se “tranquilizou” conhecendo bem as associações e o serviço de inserção de Isère. O Serviço Penitenciário de Inserção e Condicional tem mais um compromisso: fazer as associações locais conhecerem o dispositivo. O processo é ainda mais difícil pelo fato de os conselheiros de condicional trabalharem sempre com menos pessoal que o necessário. Em 2011, diante da queda de seu crédito, os SPIPs de Eure e Sena Marítimo decidiram não mais indicar casos para cumprimen-
to externo da pena.10 A administração penitenciária previu o financiamento de novos projetos; no entanto, só colocou no orçamento a compensação das associações, mas nenhum dinheiro suplementar para aumentar o número de conselheiros do SPIP... ENGAJAMENTO NECESSÁRIO
Essa falta de recursos, aliás, acaba tendo de ser compensada pelo compromisso forçado do terceiro elemento-chave da relação: as associações. Muitas vezes, é pela convicção pessoal que os diretores dessas estruturas voltam-se ao cumprimento externo de pena. “Minha preocupação é reinserir as pessoas na vida em sociedade, quando tudo foi feito para excluí-la. Também acho que é essencial retirar os mais fracos da desumanidade da prisão por alguns meses”, diz o responsável pela Solid’Action, Alain Poncet-Montange. Em algumas regiões, o tripé institucional funciona muito mal. Na Borgonha, por exemplo, as associações que abrigam o cumprimento externo de pena ficaram bastante desanimadas em 2012: “De maneira geral, o sentimento é de que a justiça é um parceiro complexo (até problemático), sobretudo pelo tempo consumido em procedimentos e pelo risco de decisões inesperadas que desarranjam tudo o que foi preparado”.11 De voz rouca e ombros curvados, Frédéric carrega consigo o passado na prisão. Após onze anos encarcerado, ele experimentou dois anos de cumprimento externo da pena. Ciente das desvantagens e das vantagens do dispositivo, ele se sente feliz de ter podido receber uma “lufada de ar fresco” antes de sair: “O cumprimento externo da pena me ajudou muito a reencontrar a realidade”, declara. “Consegui me adaptar às mudanças da sociedade: celular, internet e tudo o mais.” Mas Frédéric provavelmente não vol-
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tará a ver a associação que o apoiou. Os militantes das associações seguem em frente sem agradecimentos. Eles estão acostumados. Em todos os níveis, aprenderam a trabalhar sem esperar reconhecimento. Sua abnegação continua sendo a pedra angular do sistema. Como em muitas outras áreas, é ela que compensa o recuo do Estado. *Sarah Perrussel e Leah Ducré são estudantes de jornalismo.
1 O nome dos condenados foi alterado. 2 Pierre-Victor Tournier, “Nouvelles séries pénales temporelles actualisées au 1er décembre 2013” [Novas séries penais temporais atualizadas em 1º de dezembro de 2013], relatório do Observatório das Prisões e Locais de Detenção ou Restrição das Liberdades, 2013. 3 Direção da Administração Penitenciária, “Les chiffres clés de l’administration pénitentiaire au 1er janvier 2013” [Principais números da administração penitenciária em 1º de janeiro de 2013], Paris, jul. 2013. 4 Kensey Annie e Abdelmalick Benaouda, “Les risques de récidive des sortants de prison, une nouvelle évaluation” [Os riscos de reincidência dos egressos da prisão, uma nova avaliação], Direção da Administração Penitenciária, Cahiers d’études pénitentiaires et criminologiques, n.36, Paris, maio 2011. 5 Hajman Elsa, “Le placement à l’extérieur, un aménagement de peine à développer” [Cumprimento externo da pena, um dispositivo penal a ser desenvolvido]. Disponível em: <www.fnars.org>. 6 Pierre-Victor Tournier, “Nouvelles séries pénales...”, op. cit. 7 Pierre-Victor Tournier, “Le placement sous surveillance électronique, est-ce que ça marche?” [O monitoramento eletrônico funciona?], Observatório da Criminalidade e Respostas Penais, Éditions du CNRS, nov. 2010. 8 FNARS Borgonha, “Placement extérieur” [Cumprimento externo da pena], 2012. 9 Mouhana Christian, “Les relations entre monde judiciaire et administration pénitentiaire” [A relação entre o mundo judicial e a administração penitenciária]”, Questions pénales, XXV/2, Centro de Investigação Sociológica em Direito e Instituições Penais, maio 2012. 10 Correspondência do SPIP de Eure à associação Saint-Paul de Rouen, 4 abr. 2011; correspondência do SPIP de Sena Marítimo à associação Saint-Paul de Rouen, 31 mar. 2011. 11 Estudo de acompanhamento de pessoas sob custódia judicial acolhidas nas associações da rede FNARS.
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QUESTIONAMENTOS SOBRE A PRIMAZIA DO DEPOIMENTO POLICIAL NA JUSTIÇA CRIMINAL
A força da palavra repressiva Segundo pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, 74% das prisões por tráfico de drogas em São Paulo contaram apenas com o testemunho dos policiais que realizaram a apreensão do acusado, e, em 76% de todos os inquéritos policiais da cidade, os agentes que participaram da prisão foram ouvidos como testemunhas
© Daniel Kondo
POR ANDERSON LOBO DA FONSECA*
A
o contrário do que muito se ouve, o Brasil não é o país da impunidade, estando mais próximo de ser o país da repressão: com mais de 580 mil pessoas presas, segundo dados de 2013,1 o país é o quarto que mais prende no mundo. No entanto, quando se fala em repressão, não basta olhar para os números, é preciso abordar também as dinâmicas dessas prisões: majoritariamente prisões em flagrante, por crimes não violentos, cujo crescimento é ainda maior no tocante às prisões por tráfico e prisões de mulheres. O motor dessa máquina são as polícias, que, na linha de frente da atuação estatal, são as responsáveis por capturar os clientes do sistema de justiça criminal. A palavra final ainda é da justiça, mas, dentro dela, a palavra da polícia conta demais. Diversas pesquisas retratam a dinâmica dessas prisões:2 a maioria dos flagrantes é realizada em vias públicas, por patrulhamento ou denúncia, com pouca investigação posterior. Na fase judicial, o Ministério Público agrava a acusação, com provas escassas, sendo o testemunho do policial envolvido o principal elemento de acusação. A fim de prestigiar o trabalho das polícias, esses testemunhos embasam a manutenção da prisão provisória e posterior condenação dos
acusados. Uma série de questões deve ser feita sobre esse procedimento pouco justo. Contudo, neste artigo pretendo explorar um problema em especial: a “fé pública” atribuída à polícia. A FÉ PÚBLICA DA POLÍCIA
O termo “fé pública” não é normalmente encontrado nas decisões judiciais, para as quais o depoimento de policiais não deveria ser diferente do testemunho de qualquer outra pessoa. A polícia detém, enquanto entidade administrativa, presunção de veracidade, um mecanismo que permite aos agentes administrativos executar suas funções, mas é válido apenas dentro de suas próprias instâncias. O Judiciário é justamente o lugar em que essa presunção de veracidade deve ser questionada, cuja verdade deve ser produzida pelo confronto entre acusação e defesa. No entanto, em um cenário generalizado de poucas provas, muitas vezes o que fica é a palavra do policial contra a do acusado. É nesse sentido que se percebe a polícia investida de poderes de uma verdadeira “fé pública”: segundo pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP,3 74% das prisões por tráfico de drogas em São Paulo contaram apenas com o testemunho dos
policiais que realizaram a apreensão do acusado, e, em 76% de todos os inquéritos policiais da cidade, os agentes que participaram da prisão foram ouvidos como testemunhas. O peso desproporcional dado à palavra policial enquanto prova e o descompasso disso com os princípios constitucionais ficam ainda mais evidentes ao analisarmos o que geralmente ocorre nas prisões ligadas às drogas. Alguns desses problemas, segundo essa pesquisa do NEV, transparecem em categorias como “confissão informal” e “entrada franqueada”, e no vínculo que se faz entre o acusado e a posse da droga. Verificou-se que, em 44% dos casos analisados, os policiais militares alegaram que o acusado confessou a autoria no momento da prisão, mas, nos depoimentos formais, apenas 11% desses acusados efetivamente confessaram a autoria. O problema está na fase judicial, quando essas “confissões informais”, rechaçadas no depoimento formal do acusado, são levadas em consideração pelos juízes como “forte indício de culpa”. Além disso, a pesquisa averiguou que 17% das prisões por tráfico de drogas ocorriam no domicílio do acusado, sendo 5% mediante “entrada franqueada”, isto é, o ingresso do poli-
cial no domicílio depois de uma abordagem na rua. Essa autorização é no mínimo duvidosa, pois foi feita sob coação, e a Constituição prevê a inviolabilidade do domicílio e o direito de não produzir prova contra si mesmo. A Constituição permite a invasão do domicílio se lá estiver ocorrendo flagrante delito, mas a mesma pesquisa mostra que o suposto delito (guarda e depósito de drogas em casa) não é flagrante, nem mesmo é certo, uma vez que a polícia ainda vai revistar a casa em busca dessa droga. Encontramos, porém, um consenso dentro das instituições judiciárias de que isso não configura um problema, por mais que a defesa levante essa questão. Esses problemas relacionam-se com outro ainda maior: a mesma pesquisa do NEV aponta que em 48% dos casos analisados a droga nem sequer se encontrava efetivamente com o acusado e que o vínculo foi estabelecido unicamente pelos policiais envolvidos. A posse da droga não é provada por investigações prévias à prisão, mas meramente pelo depoimento dos policiais responsáveis por “montar” o flagrante, por produzir a legalidade do ato repressivo. Essa prova seria bastante frágil, facilmente questionável, não fosse a alta estima do Judiciário por depoimentos policiais.
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FLAGRANTES E PRISÕES DE INOCENTES: O PRIMADO DA ORDEM PÚBLICA
A excessiva “fé pública” atribuída à polícia nos processos criminais reflete o modelo de segurança pública brasileiro, com pouca capacidade investigativa e prisão maciça por flagrante: segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),4 59,2% dos inquéritos policiais foram instaurados a partir da prisão em flagrante do acusado. Essa situação reporta-se a desafios institucionais, mas o grande problema reside no campo político, na escolha sobre o que significa segurança pública. A opção pela investigação prioriza o combate aos crimes mais danosos, como os grandes crimes econômicos ou contra a vida, que dependem da produção de provas que fundamentem a acusação dos envolvidos. A opção pelo flagrante, pelo contrário, prioriza o combate do pequeno crime cotidiano, por meio de ação policial na rua: a “inteligência” por trás dos flagrantes é a presença policial ostensiva, rotineira, especialmente nas “zonas criminógenas”,5 reprimindo as classes socialmente marginalizadas. O crime é naturalizado, com lugar, dia e hora para acontecer – como apontam os gráficos de inteligência policial –, e a solução é a presença militar repressiva, abordando e prendendo, atribuindo aos suspeitos a responsabilidade pelos crimes por meio de negociações locais nem sempre claras (como mostram os exemplos da pesquisa do NEV). Não se trata de um “mero combate ao crime”, como se este fosse uma figura jurídica neutra, mas de um ato eminentemente político sobre o que é o crime, quem é o criminoso e, então, sobre qual é sua pena. Isso fica evidente na distribuição dos tipos penais que são incriminados: em 2013, 12% das pessoas haviam sido presas por crimes contra a vida, enquanto expressivos 25% eram por tráfico de drogas e 47% por crimes contra o patrimônio. Esses dados, lidos em paralelo à baixa taxa de esclarecimento dos homicídios, revelam quais são as prioridades da política de segurança pública. Outro dado que reflete esse panorama é a alta quantidade de presos provisórios no Brasil: 37% de todos os detidos não têm condenação, estão presos ainda aguardando seu julgamento. O que seria uma exceção para os casos em que a pessoa que representa um grave risco caso permaneça solta vira a regra, na qual as pessoas “cumprem a pena” antes mesmo de serem condenadas. Segundo pesquisa do Ipea, quase 40% dos presos provisórios foram absolvidos ao final do processo ou receberam penas menores ao tempo em que permaneceram presos até o julgamento. Temos com isso a prisão de inocentes, tanto por-
que todos são inocentes até condenação transitada em julgado – número que equivale a pelo menos 216.342 pessoas – quanto porque aproximadamente 80 mil pessoas presas nem sequer serão condenadas a essa medida. TRÁFICO DE DROGAS E MULHERES: EVIDÊNCIAS DO PROBLEMA
A situação é especialmente delicada nos crimes de tráfico, cuja lei reflete a guerra às drogas adotada pela sociedade brasileira. Os crimes de tráfico são muito abertos, permitindo enorme discricionariedade policial: o artigo 33 da Lei de Drogas lista dezoito verbos que configuram tráfico de drogas, entre os quais “ter em depósito”, “trazer consigo” e “guardar”, condutas passivas nas quais o mero porte de drogas basta para que se configure o “flagrante” e seja feita a prisão. Além disso, o tráfico de drogas é equiparado a crime hediondo, com penas altíssimas e grandes obstáculos para progressão de regime e aplicação de penas alternativas, mesmo que o tráfico de drogas, em si, seja um crime sem violência e sem vítima.
Segundo pesquisa realizada pelo Ipea, 59,2% dos inquéritos policiais foram instaurados a partir da prisão em flagrante do acusado O tráfico de drogas é um crime continuado, em que a abordagem policial é um elemento-chave para dizer se o acusado é mesmo traficante ou usuário. Nas investigações criminais, o principal elemento de prova é o depoimento dos policiais envolvidos, ao que se soma basicamente o exame pericial que comprova que a substância apreendida é realmente uma droga; muitas vezes nem mesmo a pequena quantidade de droga apreendida serve para colocar em dúvida o depoimento policial ou para relativizar a gravidade do delito. A fragilidade desses procedimentos não sensibiliza o Judiciário, que, em razão da demonização das drogas, quase sempre mantém a prisão fundamentando-se na cláusula da manutenção da “ordem pública”, de que fala o Código de Processo Penal. Segundo pesquisa recente da Associação pela Reforma Prisional (ARP) e do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Ucam (CESeC),6 98% das prisões em flagrante por tráfico são mantidas, índice superior inclusive à prisão preventiva por homicídio (93%).
O aumento extraordinário do encarceramento feminino se relaciona a essa guerra às drogas: 60% das mulheres são presas por tráfico, e o encarceramento feminino aumentou 246% entre 2000 e 2012. Muitas vezes as mulheres se veem compelidas a exercer pequenas funções relativas ao varejo do tráfico a fim de complementar a renda e colaborar no cuidado familiar. Em outros casos, as que estão em casa acabam sendo responsabilizadas pela droga lá encontrada, dada a abertura do tipo penal de tráfico e os procedimentos de “entrada franqueada”. Segundo as regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangcoc), a prisão de mulheres deveria ser ainda mais evitada, levando em consideração suas responsabilidades familiares e a pequena gravidade de seus delitos, em geral. Para isso, se prevê que sejam priorizadas medidas não privativas de liberdade, assim como outras ações não punitivas, e a própria liberdade. No entanto, essa norma jurídica que o Brasil ajudou a elaborar é muito pouco aplicada aqui, encontrando obstáculos enormes no modo como se pune por tráfico de drogas. POLÍCIA, MINISTÉRIO PÚBLICO E JUDICIÁRIO: UMA CONTINUIDADE (IN)CONVENIENTE
As instituições judiciárias não teriam muito a ver com a discussão dos procedimentos policiais, uma vez que são provocadas para lidar com os casos que já passaram pelo filtro da segurança pública. Ainda que a presunção de veracidade das polícias deva ser questionada no Judiciário, as instituições policiais gozam de plena discricionariedade na análise da conveniência do serviço público e na definição de seus procedimentos. Esse juízo sobre a função da segurança pública e sobre como é exercido o poder de polícia seria puramente político, das secretarias de Segurança, não cabendo ao Judiciário margem de atuação senão diante de abusos de poder. No entanto, temos um sistema de justiça que compactua com essa “conveniência”, uma vez que a abertura legal para questionar e frear abusos da polícia não é usada, ou o é para endossar os julgamentos políticos feitos pelas polícias. A análise do Judiciário fundamenta a prisão em grande parte por defesa da “ordem pública”, e os aspectos subjetivos do acusado que serviriam para relativizar as condutas ou as penas são geralmente usados em prejuízo dos acusados, de forma complementar à avaliação da delinquência efetuada pela polícia. O Judiciário, que teoricamente seria uma instituição neutra e espaço adequado para questionar os arbítrios estatais, se vê também como um agente da segurança
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pública, responsável por “dar resposta à sociedade”. Algo semelhante ocorre no Ministério Público, cuja função seria fiscalizar a atuação da polícia e exigir a produção de provas mais robustas antes de levar os casos à Justiça, além de procurar soluções diferentes dos pedidos em massa de prisão. O que se verifica, como demonstrado na pesquisa “Tecer Justiça”,7 é que o Ministério Público, mesmo sem a existência de novas provas, agrava o enquadramento de 30% dos casos no momento da denúncia. Observamos assim uma continuidade entre diferentes instâncias, que deveriam se controlar e questionar problemas e insuficiências. São diversas faces de um Estado, criadas cada uma com sua autonomia e função específica, a fim de garantir o devido processo legal, ainda que trabalhando uma contra a outra. No entanto, esse Estado se mostra monolítico demais no seu intuito punitivo, refletindo determinado segmento social, mesmo que essa unidade punitiva se sustente sobre elementos jurídicos muito frágeis. Essa fragilidade, contudo, é um elemento central de seu funcionamento. *Anderson Lobo da Fonseca é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP e pesquisador do Programa Justiça Sem Muros, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).
1 Os dados utilizados para a elaboração deste artigo são relativos ao Infopen, disponíveis em: <www. justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/transparencia-institucional/estatisticas-prisional>. 2 Este artigo utiliza um conjunto de pesquisas elaboradas pela sociedade civil, mobilizadas em torno da Rede Justiça Criminal. O resultado dessas pesquisas está sintetizado no Sumário Executivo de Pesquisas sobre Prisão Provisória, disponível em: <https://redejusticacriminal.files. wordpress.com/2013/07/13-12-04_sumarioexecutivofinal.pdf>. 3 Núcleo de Estudos da Violência, “Prisão provisória e lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo”. Disponível em: <https://redejusticacriminal.files.wordpress.com/2013/07/nev-prisao-provisoria-e-lei-de-drogas.pdf>. 4 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “A aplicação de penas e medidas alternativas. Relatório de pesquisa – Sumário executivo”. Disponível em: <http://apublica.org /wp-content/ uploads/2015/02/pesquisa-ipea-provisorios.pdf>. 5 A técnica de policiamento por hot spots, importada como “zonas quentes de criminalidade”, foi criada nos Estados Unidos e vem sendo introduzida nas metrópoles brasileiras, inclusive para lidar com o problema de baixos efetivos policiais. Essas zonas são, em geral, espaços muito restritos aos quais é atribuída grande parte dos crimes das cidades, com a consequente “criminalização” de todos os moradores, que precisam lidar com o controle militar sobre seu cotidiano. 6 ARP e CESeC, “Usos e abusos da prisão provisória no Rio de Janeiro: avaliação do impacto da Lei 12.403/2011”. Disponível em: <https://redejusticacriminal.files.wordpress.com/2013/07/presosprovlivro.pdf>. 7 Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e Pastoral Carcerária Nacional, “Tecer Justiça: presas e presos provisórios na cidade de São Paulo”. Disponível em: <www.tecerjustica.com.br/sumario-executivo-do-projeto-tecer-justica/>.
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RESISTÊNCIA AO AVANÇO DO INGLÊS
O custo do monolinguismo Se as vantagens econômicas globais do monolinguismo são negadas pelos números, seu interesse para os britânicos ou irlandeses é incontestável. O falante nativo desfruta uma posição privilegiada em campos como a tradução, a interpretação, a edição, a educação e a produção de ferramentas educativas POR DOMINIQUE HOPPE*
© Daniel Kondo
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o seio das organizações internacionais, a política linguística torna-se objeto de debates intensos. Ainda que as regras estatutárias definam línguas oficiais e línguas de trabalho (seis nas Nações Unidas,1 24 na União Europeia),2 um monolinguismo se impõe pouco a pouco. Evoca-se, quase sem complexos, uma nova língua franca: o English Lingua Franca (ELF).3 Por longo tempo apresentada como o resultado lamentável – porém inevitável – de limitações orçamentárias, essa evolução parece hoje assumida. As culturas profissionais das organizações internacionais se integram agora à dominação do inglês, e seus defensores chegam a afirmar que ele se internacionalizou: libertado das práticas e representações dos falantes nativos, ele não constituiria mais uma ameaça à diversidade linguística ou à equidade. Com frequência adeptos da doutrina da “nova gestão pública”,4 os que defendem o ELF insistem no fato de que seu uso seria o melhor meio de impedir uma insustentável explosão dos custos. Esse argumento, porém, não resiste à análise. A União Europeia, que, no entanto, tem o regime formal mais exigente em termos de línguas de trabalho, gasta aproximadamente 1,1 bilhão de euros por ano com os serviços linguísticos, o que corresponde a 1% do orçamento, 0,0087% do PIB, 2,20 euros por morador ou 2,70 euros por cidadão com mais de 15 anos. Ainda que existam riscos de evolução para gastos
maiores, uma despesa de menos de 0,01% do PIB não poderia ser considerada economicamente incontornável. Além disso, as reduções de custos evocadas para justificar o ELF repousam geralmente em relatórios orçamentários das organizações envolvidas. Estes se referem exclusivamente aos custos primários diretos (traduções, trabalhos de interpretação) e indiretos (despesas gerais associadas aos serviços linguísticos) imputados às próprias instituições. Com base apenas nesses critérios, pode-se falsamente “demonstrar” que o monolinguismo é menos caro que o multilinguismo. Na realidade, o custo real de um regime linguístico só pode ser medido se levarmos em conta os encargos secundários e implícitos, não somente para a organização em si, como para o conjunto dos atores envolvidos. Reduzir ou suprimir traduções não elimina a necessidade delas, por exemplo. Estas deverão ser feitas em outro local e representarão, portanto, um encargo para alguma outra pessoa. O que é apresentado pelos partidários do ELF como uma redução de custos não passa na verdade de uma transferência de custos. O lançamento em 2014 do novo programa “Erasmus+” para a educação, a formação, a juventude e o esporte fornece uma demonstração dos efeitos perversos de tal transferência. Contrariamente às regras linguísticas da União Europeia, o guia do programa foi de início publicado unicamente
em inglês, tendo sido traduzido em seguida somente após a data-limite de entrega dos dossiês para o primeiro ciclo de candidaturas; a situação era, portanto, levemente similar àquilo que seria se o ELF fosse oficialmente reconhecido. O documento foi, então, traduzido com as condições que cada um tinha, em diversos níveis de detalhes, em várias línguas (mas não em todas) e por atores diferentes (ministérios, universidades, associações, empresas privadas...). O acesso ao conteúdo era parcial e mudava de uma língua para outra; as traduções oferecidas se mostraram por vezes contraditórias. O grande número de palavras ou textos repetidos tornava difícil a identificação da melhor informação. Assim, confusão e multiplicação dos custos se seguiram à carência de tradução inicial. Já os anglófonos puderam desfrutar a situação porque tiveram acesso fácil às ferramentas que lhes permitiram solicitar fundos e às possibilidades oferecidas pelo programa. UMA GARANTIA DO PRÓPRIO PROCESSO DEMOCRÁTICO
Se estendermos a análise comparativa entre monolinguismo e multilinguismo à comunicação nos dois sentidos (se expressar e compreender o outro), a diferença dos custos explode. Também nesse caso é a União Europeia que oferece o exemplo mais flagrante. Hoje em dia, os textos são oficialmente traduzidos em 24 línguas, e cada cidadão pode escolher aquela na qual irá se dirigir às instituições. Isso torna a comunicação direta possível para todos e permite igualmente a cada europeu participar, se desejar, dos debates que envolvem questões financeiras ou políticas importantes. Essa política multilinguista é, portanto, uma garantia do próprio processo democrático. Os últimos estudos indicam que, se o inglês se tornasse a única língua da União Europeia, o custo de aquisição das competências linguísticas necessárias para que cada país pudesse intervir e participar de maneira equitativa nas atividades comuns seria de cerca de 48 euros por cidadão europeu
por ano. Afora o fato de que o processo de aprendizagem tomaria um tempo considerável e que nada prova que ele seria sociologicamente realizável, estamos bem longe dos 2,70 euros do atual multilinguismo europeu, por mais imperfeito que ele seja.5 Uma história resume bem tanto o custo financeiro dos erros e das aproximações no uso do inglês quanto aquele, mais político, das dificuldades de compreensão, de expressão e de negociação ligadas ao emprego de uma língua “imposta”. Em março de 2013, interrogado pelo diário britânico Financial Times, o presidente do Eurogroupe, o holandês Jeroen Dijsselbloem, declarou que o plano de salvação europeu do Chipre podia ser considerado um modelo passível de ser reproduzido, provocando uma queda do euro e dos valores bancários. Essa declaração, contrária à posição do Eurogroupe, se baseava num erro. Dijsselbloem, que não conhecia o sentido da palavra inglesa template (“modelo”, em linguagem da informática), não ousou confessar isso: consequentemente, entendeu mal a pergunta e respondeu de forma inexata. Se as vantagens econômicas globais do monolinguismo são negadas pelos números, seu interesse para os britânicos ou irlandeses é incontestável. O falante nativo desfruta uma posição privilegiada em campos como a tradução, a interpretação, a edição, a educação e a produção de ferramentas educativas. Sendo sua língua o referencial, ele pode desenvolver com excelência e a um custo menor atividades nos campos cobertos pela organização envolvida. Essa vantagem estratégica lhe proporciona de fato economias substanciais, que poderão ser investidas em outros lugares, gerando efeitos de treinamento consideráveis. Jamais compensado, esse fenômeno quebra o equilíbrio entre as nações e a igualdade entre os cidadãos europeus que estão no cerne das políticas multilaterais. Em 2001, o British Council avaliou o valor dos produtos ligados à língua inglesa em 13 bilhões de euros.6 Em 2005, um relatório7 encomendado pelo Alto Conselho da Avaliação da Escola examinou em de-
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talhe esse número. Levando em conta o crescimento do PIB nominal, os efeitos multiplicadores e as rendas liberadas, os mercados privilegiados foram estimados em 8,4 bilhões de euros, a economia de esforço para a tradução e a interpretação em 2,2 bilhões de euros e a economia no ensino das línguas estrangeiras em 64 bilhões de euros. Em 2014, esse efeito de transferência em favor do Reino Unido em razão da posição dominante do inglês foi reavaliado em 21 bilhões de euros. Sob a influência da “nova gestão pública”, as preocupações orçamentárias fagocitam o debate sobre os regimes linguísticos. No entanto, as questões são acima de tudo políticas. Em 1988, Boutros Boutros-Ghali, ex-secretário-geral das Nações Unidas e então presidente da Organização Internacional da Francofonia (OIF), já expressava a natureza delas: “A primeira razão de nossa posição sobre o plurilinguismo é o respeito à igualdade entre os Estados. Sabemos que o fato de obrigar os funcionários internacionais, diplomatas e ministros a se exprimir em uma língua que não é a deles equivale a colocá-los em situação de inferioridade. Isso os priva da
capacidade de estabelecer nuances e refinamentos, o que significa fazer concessões àqueles dos quais ela é a língua maternal. Além disso, todos nós sabemos que conceitos que parecem similares são com frequência diferentes de uma civilização para outra. As palavras expressam uma cultura, uma maneira de pensar e uma visão do mundo. Por todas essas razões, eu creio que, como a democracia de um Estado se baseia no pluralismo, a democracia entre dois Estados deve se basear no plurilinguismo”.8 A análise dos sites de internet das organizações internacionais prova que a grande maioria delas sofre de monolinguismo9 e de repercussões culturais e conceituais. Das trinta agências descentralizadas da União Europeia, 21 apresentam seu site unicamente em inglês, cinco exibem uma diversidade que, no entanto, privilegia o inglês e quatro são realmente diversificadas do ponto de vista linguístico. Em campos tão variados quanto aqueles cobertos pela Autoridade Bancária Europeia (ABE), a Agência de Cooperação dos Reguladores de Energia (Acer) ou a Agência Europeia de Defesa (AED), o conhecimento do inglês é ne-
cessário para que alguém possa se informar sobre algo. Sem falar de relatórios regulares sobre a ameaça islâmica na Europa, que só foram publicados pela Europol em inglês... Globalmente, os sinais da hegemonia cultural e conceitual são incontestáveis. Sabemos que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial construíram, desde os anos 1980, uma forma de desenvolvimento baseada na ideologia neoliberal aplicada indiferentemente na América Latina, no Sudeste Asiático e hoje em dia no sul da Europa. Como não se preocupar com o progressivo deslizamento da justiça penal internacional para um modelo que privilegia o direito jurisprudencial da common law?10 E os exemplos do mesmo tipo são numerosos. Como se espantar a partir disso com a desconfiança que têm os cidadãos em relação às instituições multilaterais? Sintoma emblemático de uma certa visão do mundo, o monolinguismo é um indicador importante dos equilíbrios geopolíticos globais. Limitá-lo traduziria a capacidade das nações de agir em conjunto harmoniosamente no respeito de suas diferenças.
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*Dominique Hoppe é presidente da Assembleia dos Funcionários Francófonos das Organizações Internacionais (Affoi).
1 Mandarim, russo, inglês, francês, árabe e espanhol. 2 Cada língua oficial de um de seus países-membros é língua oficial da União Europeia. 3 Sabir, ou língua franca, utilizada por falantes de línguas maternas diferentes. 4 Doutrina que incide sobre a gestão pública dos modelos da gestão privada. 5 François Grin, “Valeur du français, valeur du multilinguisme: exploration des convergences pour une politique francophone du multilinguisme” [Valor do francês, valor do multilinguismo: exploração das convergências para uma política francófona do multilinguismo]. In: Jean-François Simard e Abdoul Echraf Ouedraogo (orgs.), Une francophonie en quête de sens [Uma francofonia em busca de sentido], Presses de l’Université Laval, Montreal, 2014. 6 Relatório de John Wiley, disponível em: <www.britishcouncil.org/english/engfaqs.htm#hmlearn1>. 7 François Grin, “L’enseignement des langues étrangères comme politique publique” [O ensino de línguas estrangeiras como política pública], relatório enviado ao Alto Conselho para a Avaliação da Escola, Paris, set. 2005. 8 Simpósio sobre o plurilinguismo, Genebra, 5-6 nov. 1998. 9 “Rapport synthétique des analyses des pratiques linguistiques appliquées aux sites internet des organisations internationales” [Relatório sintético das análises das práticas linguísticas aplicadas aos sites de internet das organizações internacionais] (2014). Disponível em: <www.affoimonde.org>. 10 Ler Cyril Laucci, “Quand le droit anglo-saxon s’impose” [Quando o direito anglo-saxão se impõe], Le Monde diplomatique, abr. 2014.
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O TURISMO DE MASSA INVADE OS LOCAIS DE MEMÓRIA
De bermuda nas trincheiras Desde o final dos anos 1990, as construções em homenagem aos mortos explodiram: museus, memoriais, pontos históricos etc. A Unesco se vê chamada para reforçar a obra ao dar seu selo, comprovação de um respiro turístico. Essa moda, porém, preocupa alguns historiadores e levanta uma série de questões delicadas
© Cristiano Navarro
POR GENEVIÈVE CLASTRES*
Parque da Memória em Buenos Aires, Argentina, lembra os 30 mil mortos e desaparecidos vítimas da última ditadura cívico-militar, quando centenas de militantes foram arremessados no rio da Prata
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emorial do Holocausto de Berlim, Parque da Memória em Buenos Aires, Museu-Memorial de Drancy, estupa [monumento construído sobre restos mortais (N.T.)] para as vítimas dos khmers vermelhos, Museu do 11 de Setembro nova-iorquino... Tantos lugares que têm menos de dez anos e testemunham a vontade de fixar a memória em locais simbólicos. Particularidade desses novos espaços, todos devem levar em conta o fato turístico desde sua concepção,1 pois cada vez mais visitantes não possuem ligação direta com a tragédia evocada. Na região de Somme, França, cerca de 200 mil turistas pisam todos os anos no terreno da batalha que opôs franceses e britânicos às tropas alemãs, de julho a dezembro de 1916. A maioria dos visitantes é originária dos países do Commonwealth (cerca de 60%). Muitos querem se recolher e
apreender o que seus avós ou bisavós viveram. No entanto, encontramos também uma parcela cada vez mais importante de adultos e estudantes desprovidos de ligações familiares com os homens mortos na guerra. Eles visitam a área para compreender, descobrir, por interesse histórico...2 Esse novo público influencia o conteúdo dos locais e das exposições. Ele deve ser mais didático do que antes, às vezes adaptado a um público jovem, frequentemente multilíngue. Em Lyon, o Centro de História da Resistência e da Deportação passou por uma renovação para comemorar seus vinte anos e reabriu em 2012 com uma cenografia nova. A partir de agora seguimos um percurso que se apoia no trabalho fotográfico de artistas da época. No Memorial de Caen, a sala consagrada ao dia D e à batalha da Normandia também foi reformada em 2012, com muitos do-
cumentos, mapas em relevo, objetos e depoimentos. A vulgarização e a internacionalização de locais de memória não ocorrem sem que surjam questionamentos. Como dividir o espaço entre os visitantes e as vítimas (ou os descendentes das vítimas), que não têm as mesmas expectativas? Como evitar práticas desrespeitosas, administrar as diferentes percepções da relação com a morte, da cultura da memória, do religioso? Como se recolher entre os ônibus de turismo e os grupos escolares? Como administrar essas coabitações que podem se tornar conflituosas? Com mais de 1,5 milhão de visitantes por ano, o cemitério norte-americano de Omaha Beach (em Calvados) se tornou um vasto playground onde todo mundo vem fazer sua pose no meio das miríades de cruzes brancas. Sobra algum lugar para as famílias dos soldados?
As vítimas diretas e seus descendentes não se encontram mais nesses lugares superpopulosos. Preferem se reunir em locais que fazem sentido para eles e em datas intimamente ligadas à sua tragédia pessoal, explica Brigitte Sion,3 jornalista e pesquisadora que trabalhou no Memorial do Holocausto de Berlim e no dos Desaparecidos de Buenos Aires. Em março de 2014, o ingresso num valor equivalente a R$ 82 para o Museu do 11 de Setembro de Nova York gerou polêmica. A entrada num local de memória deve ser paga? UM DESAFIO ECONÔMICO E POLÍTICO
Em um impulso ecumênico, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco) é frequentemente chamada a reforçar dando seu selo de “valor universal excepcional” para locais ligados a acontecimentos trágicos. Entre 1978 e
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1999, a Ilha de Goreia (comércio de escravos, 1978), Auschwitz-Birkenau (Segunda Guerra Mundial, 1979), o domo Genbaku, do Memorial da Paz de Hiroshima (bomba atômica, 1996) e Robben Island (prisão do apartheid, 1999) foram inscritos na lista do patrimônio mundial. Claro, a criação da Unesco depois da Segunda Guerra Mundial tinha como missão favorecer a paz e o diálogo intercultural. Mas locais ligados a guerras, massacres e abusos podem criar essa ligação? Em outras palavras, como atribuir um valor universal excepcional a espaços difíceis de apreender, seja em sua materialidade ou em sua dimensão trágica? Efetivamente, para que esse valor universal excepcional seja reconhecido, é preciso preencher pelo menos um dos dez critérios da instituição:4 representar “uma obra-prima de um gênio criador humano”, ser um “depoimento único ou ao menos excepcional sobre uma tradição cultural ou uma civilização viva ou desaparecida” etc. No caso dos memoriais, o sexto critério é determinante. O local deve “ser direta ou materialmente associado a eventos ou tradições vivas, ideias, crenças ou obras artísticas e literárias, tendo um significado universal excepcional”. Segundo a historiadora Sophie Wahnich, basear-se nesse critério é nonsense: “Como falar de tradições vivas para campos de batalha que conheceram milhares de mortos?”.5 O paradoxo é evidente. Então, não haveria um sentido oculto por trás dessa vontade dos memoriais de serem endossados pela Unesco? Na França, duas propostas estão em estudo para obter o selo. Os locais funerários e memoriais da Primeira Guerra Mundial (front Oeste) e as praias do desembarque da Normandia. A primeira proposta também foi apresentada pela Bélgica, por meio de uma associação astuta de catorze departamentos franceses6 com as regiões de Flandres e Valônia, o que permite uma inscrição suplementar, já que cada país é limitado no número de propostas que pode apresentar (ler boxe nesta página). Com relação ao front Oeste, a inscrição na lista do patrimônio mundial cairia bem neste período de centenário da Primeira Guerra Mundial. Uma centena de locais importantes esperam por isso. No entanto, ao escutar a apresentação do projeto feita por Serge Barcellini, conselheiro junto ao secretário de Estado francês encarregado dos antigos combatentes e da memória, nos questionamos diante das expressões “clientela cativa”, “mercado principal”...7 O objetivo para as coletividades territoriais se tornou tão econômico quanto político. Em Carcassone, a frequência turística teve um salto de 20% em 1998, ano seguinte à inscri-
ção da cidadela. Em 2013, cinco anos após a classificação de doze grupos de construções fortificadas ao longo das fronteiras, a associação Rede Vauban constatou aumento de 10% a 20% da média de visitas. Em Albi, cuja cidade episcopal foi classificada em 2010, as visitas à Catedral de Santa Cecília aumentaram 23% entre 2009 e 2012. A questão está clara, então, e os objetivos, assumidos; mas, no caso da Primeira Guerra Mundial, o assunto permanece delicado, pois se trata nesse caso de locais cuja dimensão trágica beira o indizível. Uma frase pronunciada por Barcellini resume essa sensação incômoda: “A região de Marne pôde escolher entre o 1914-1918 e o champanhe; eles escolheram o champanhe, dá mais lucro”. As bolhinhas contra a memória, a embriaguez em vez dos massacres – o combate era desigual demais. Lancinante, a questão retorna agora como um bumerangue: é justo, ou pelo menos pertinente, colocar a tônica nos locais que retraçam antes de mais nada as feridas da humanidade? Seria preciso assim rejeitar tudo, negar o papel e o lugar do turismo nos locais memoriais? Podemos argumentar sobre o papel pedagógico desses lugares, que deveriam nos informar sobre os massacres que nunca mais gostaríamos de rever e que procuramos transcender. Em outras palavras, eles dizem respeito às gerações futuras, as que devem saber, compreender, já que, com os anos, o tempo da lembrança e das vítimas dá lugar a um tempo mais distanciado, o da história. A OPORTUNIDADE DE PENSAR
Quando se trata de definir a universalidade de um local, uma série de questões aparece, nota Sébastien Jacquot, do Instituto de Pesquisa e de Estudos Superiores do Turismo (Irest, na sigla em francês): “Quem propõe? Quem escolhe? Quais vozes? Os moradores? Os resistentes?”. De fato, é difícil classificar os locais onde o indizível aconteceu. Segundo Wahnich, “é importante aceitar a parte não reabsorvível do que tentamos reconciliar, esse traço deixado pela crueldade humana. Tentar inscrever os locais a qualquer preço, fazer deles santuários, seria o mesmo que negar a crueldade, não reconhecer essa pulsão de destruição que gera apenas uma lacuna. E isso porque o ser humano tem uma forte propensão a querer apagar os traços do insuportável, a não querer ver”. Olhar não é ver. Não basta que um lugar tenha sido declarado “local de crueldade” para contornar a resistência dos indivíduos em se confrontar com o impensável. Então, para transmitir, para ajudar também o olhar a ultrapassar o primeiro estágio do testemunho, até mesmo de voyeur, a historiadora propõe que se criem iti-
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UNESCO, UM SELO QUE DEVE SER MERECIDO...
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França conta com 39 locais na lista do patrimônio mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), sendo o último a gruta ornada da Ponte d’Arc, chamada gruta Chauvet-Pont-d’Arc (região de Ardèche), classificada em junho de 2014. Para apresentar um projeto, os Estados devem em primeiro lugar fazer um inventário dos pontos naturais e culturais que desejam propor ao longo dos cinco a dez anos por vir. Estes últimos são inscritos em uma lista indicativa, que poderá ser atualizada a qualquer momento. Os projetos são então trabalhados e apresentados por associações auxiliadas por serviços de Estado. Para a gruta Chauvet, a candidatura à Unesco foi feita por uma reunião do Sindicato Misto da Caverna de Pont-d’Arc, dos serviços de Estado, do conselho geral de Ardèche e da região Rhône-Alpes. A cada ano, cerca de cinquenta projetos são apresentados, de todos os
nerários que permitam ajustar o passo ao ritmo dos pensamentos: “É preciso que o olhar saia das normas, que esses locais de memória gerem a oportunidade de pensar. É preciso andar, vasculhar, criar itinerários que produzirão uma possibilidade de apropriação. É o que acontece sob nossos pés que importa, a relação entre o visível e o invisível”. E o turismo? Os profissionais do setor jogam frequentemente com a identificação com as vítimas, os discursos emocionantes. Eles colocam em cena a piedade para vender “tours da memória”, esquecendo-se frequentemente de mostrar os carrascos. Não podemos nos impedir de pensar no contrário, no cineasta franco-cambojano Rithy Panh e seu extraordinário S21 (2003), que coloca em cena os torturadores khmers vermelhos. Como conseguir fazer do turismo um instrumento inteligente e responsável, e não apenas uma alavanca econômica e política a serviço de alguns? Em nossas sociedades, onde é preciso saber se mostrar, comunicar, “se autopromover”, o símbolo importa mais que o conteúdo e os recipientes. A emoção toma a frente do sentido e da decência. Esgotamo-nos recenseando tudo o que pode ser lançado para ser devorado por um público ávido por eventos, memórias gloriosas, para o qual o vazio de uma época se preenche com acontecimentos, aniversários, bicentenários, homenagens. Somente o passado poderia alimentar o presente? Um presente que questiona...
países. Cada Estado só tem direito a apresentar dois projetos por sessão, um local natural e um cultural. Os projetos são examinados pelo Centro do Patrimônio Mundial e avaliados por duas organizações consultivas independentes: o Conselho Internacional dos Monumentos e dos Sítios (Icomos) e a União Mundial pela Conservação da Natureza (UICN, nas siglas em inglês). Uma vez por ano, o Comitê Intergovernamental do Patrimônio Mundial se reúne para decidir quais locais serão escolhidos. Em 2014, 26 foram inscritos na lista do patrimônio mundial: 21 locais culturais, entre eles o Grande Canal da China, a Fábrica Van Nelle, na Holanda, e a cidade histórica de Djeddah (a porta de Meca), na Arábia Saudita; quatro locais naturais, entre os quais o complexo de paisagens de Trang An, no Vietnã; e um local misto, a antiga cidade maia e as florestas tropicais protegidas de Calakmul, no México. (G.C.)
*Geneviève Clastres, jornalista, é autora, entre outros livros, de Le Goût des voyages [O gosto pelas viagens], Gallimard Jeunesse, Paris, 2013.
1 Este artigo é inspirado na jornada de estudos “Memoriais no patrimônio mundial. Qual é o lugar para o turismo na definição do valor universal excepcional?”, organizado por Maria Grabari-Barbas, em 24 de junho de 2014, com o Instituto de Pesquisa e de Estudos Superiores do Turismo (Irest), a tribuna Unesco “Cultura, turismo, desenvolvimento”, a Equipe Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Turismo (Eirest, Paris-I), assim como as universidades de Cergy-Pontoise, Laval (Quebec) e do Quebec em Trois-Rivières. 2 Cf. o fôlder realizado sob a direção de Marc Pellan (conselho geral de Somme), “Somme na Primeira Guerra Mundial”. Disponível em: <www.somme14-18.com>. 3 Cf. Brigitte Sion (org.), Death Tourism: Disaster Sites as Recreational Landscapes [Turismo da morte: locais de desastres e lugares de recreação], Seagull Books, Salt Lake City, 2014, e “Le Mémorial de la Shoah à Berlin. Échec et succès” [O Memorial do Holocausto em Berlim. Fracasso e sucesso]. In: Denis Peschanski (org.), Mémoire et mémorialisation. De l’absence à la représentation [Memória e memorialização. Da ausência à representação], Hermann, Paris, 2013. 4 Os dez critérios estão enunciados no site da Unesco: <http://whc.unesco.org/fr/criteres>. 5 Cf. Mireille Gueissaz e Sophie Wahnich (orgs.), Les Musées des guerres du XXe siècle: lieux du politique? [Os museus das guerras do século XX: lugares do político?], Kimé, Paris, 2000; e Sophie Wahnich (org.), Fictions d’Europe. La guerre au musée [Ficções da Europa. A guerra no museu], Éditions des archives contemporaines, Paris, 2002. 6 Aisne, Ardennes, Haut-Rhin, Marne, Meuse, Meurthe-et-Moselle, Moselle, Nord, Oise, Pas-de-Calais, Seine-et-Marne, Somme, Territoire de Belfort, Vosges. 7 Intervenção durante a jornada de estudos “Memoriais no patrimônio mundial”, assim como as citações do parágrafo seguinte.
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MISCELÂNEA
vinhos
por Didú Russo*
MODISMO E REALIDADE NO MUNDO DO VINHO
quadrinhos
por Maria Nanquim*
© Daniel Kondo
ARTISTA DO MÊS: RÔMOLO D’HIPÓLITO
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ão há a menor dúvida de que existe um modismo no tema dos vinhos “naturebas” (orgânicos, biodinâmicos e naturais), modismo que começou com uma juventude interessada em saúde, em mercados que cresciam e crescem mais que os não naturebas, em críticos que procuram o verdadeiro terroir, e tudo isso atraiu a “indústria do vinho”, aquelas empresas enormes que tratam a bebida como produto, e não como cultura. Surgiram os trabalhos de redução da emissão de carbono, as garrafas mais leves com o mesmo objetivo, o tratamento de águas, a preocupação com o entorno e os empregados, a procura por redução de uso de químicos etc. Essas iniciativas turbinaram o modismo, pois passaram a ser divulgadas por quem tem dinheiro no negócio do vinho. Sempre me lembro do produtor José Alberto Zuccardi, um grande produtor, diga-se, argentino e muito gente fina, que um dia, ao me responder quanto era rentável seu negócio, me disse: “Didú, o vinho não é um negócio, é uma maneira de viver...”. Perfeito. Quem fizer conta direito irá descobrir que só há dois tipos de produtores de vinho que ganham dinheiro: os produtores de vinho de volume, grandes quantidades, grande distribuição, força de marca. Caso de Gallo, Great Wall, Hardy’s, Concha y Toro, por exemplo. O outro é o produtor que conseguiu agregar valor à sua marca, seja pela alta qualidade e baixa oferta (Romanée-Conti), por aproveitar adequadamente um momento (Bad Boy) ou por insistência em preservar sua cultura e extrema dedicação à qualidade (Viña Tondonia), apenas para citar um exemplo de cada tipo, pois há inúmeros. O vinho, para mim, é cultura antes de tudo. E esse produtor de vinho precisa de mim e de você, consumidores que deem valor ao que ele faz, pois a indústria não está nem aí com cultura, mas com vendas. Ela tem um poder incontestável, com o qual o produtor não tem como brigar. Os governos, estamos cansados de saber, sucumbem aos lobbies das indústrias e, portanto, nunca governam para proteger o pequeno. Hoje, esse pequeno produtor que quer preservar os hábitos culturais de ancestrais e produzir vinho puro, que não use produtos químicos, está sofrendo em toda parte, na Europa e na América, pois está sendo forçado às práticas de assepsia que matam as leveduras locais e induzem ao uso de produtos sintéticos e químicos. Três sugestões de vinhos portugueses de produtores autênticos: Quinta da Pellada e Niepoort (à venda na Mistral), e Quinta do Infantado (à venda na Premium Wines).
Ex-publicitário entediado com o setor, larguei tudo na década de 1990 para viver de vinho. Degustar, escrever e falar de vinhos virou minha maneira de viver do que antes era apenas um hobby. Ganhase pouco, degusta-se muito, do bom e do ruim, viaja-se bem, e o melhor, conhecem-se pessoas maravilhosas. Sou Didú Russo.
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roquei uma ideia superlegal com o Rômolo D’Hipólito. Ele é o criador de uma série que eu adoro, o Malditos Designers. www.romolo.com.br | facebook.com.br/malditosdesigners Desde quando você faz o Malditos Designers? As primeiras tiras produzidas foram em 2006, mas somente dois anos depois que eu me comprometi em publicá-las regularmente. Como começou? Malditos Designers surgiu na faculdade a partir de um convite de uns amigos do centro acadêmico da PUC PR. Na época, publicavam um folheto independente bastante crítico com relação a profissão, discussões, enquetes... Enfim, temas típicos de um CA. A princípio, eles pediram que eu fizesse tiras para tirar uma “onda” de clientes. Afinal, quem nunca xingou um cliente? Porém, achei mais interessante mexer no ego da profissão. Ali sim dava um “caldo”. As tiras até que tiveram uma certa repercussão, mas naquela época ainda não pretendia manter o projeto por muito tempo. Foi então que um pessoal do blog design.com.br me chamou para dar continuidade nas tiras em 2008. Achei legal, pois era um veículo interessante no meio. E por uma coincidência, a tira já tinha esse formato quadrado o que foi ótimo para se adaptar ao “scrolling” do blog. Publiquei um ano lá e depois migrei para o IdeaFixa. Com o tempo, as ideias foram amadurecendo e o universo dos malditos se expandiu para diversas áreas das humanas. Não me limito mais à profissão, até acho que o termo designer já não faz muito sentido, mas mantenho por um valor histórico. Publico até hoje no IdeaFixa e também na página dos MD no Facebook. Sempre pensou em fazer quadrinhos? Desde moleque, sempre gostei de desenhar. Até aí nada de mais. Acredito que algumas pessoas simplesmente param de desenhar e outras continuam. Eu continuei. E por ter sido uma criança pouco comunicativa, acho que me identifiquei com os quadrinhos como uma forma eficiente de expressão. De alguma forma, os quadrinhos deram sentido aos meus desenhos. Mas apesar de ter sido minha principal influência durante minha formação, hoje não vejo os quadrinhos como o produto final de meu trabalho, e sim uma vertente. O que você diria para quem está começando? Pela minha experiência, quadrinhos exigem disciplina e sacrifício. No caso, sacrifício pode significar tempo ou dinheiro. Ou os dois! Portanto você tem que curtir muito o que faz. Luciana Foraciepe é apaixonada por quadrinhos desde sempre. Mais conhecida como criadora da página Maria Nanquim e editora da revista Xula , se define numa frase do personagem Calvin, de Bill Watterson: “A realidade continua atrapalhando a minha vida”. https://www.facebook.com/mariananquim
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livro DIFERENTES FORMAS DE DIZER NÃO – EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS DE RESISTÊNCIA, RESTRIÇÃO E PROIBIÇÃO AO EXTRATIVISMO MINERAL de Julianna Malerba (org.), Organização Fase
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e o título do livro antecipa uma viagem internacional, importa destacar que ela parte de terras tupiniquins e a elas retorna, nas quais impasses decorrentes da extração mineral acelerada mobilizaram a investigação de processos políticos sobre a determinação de áreas livres de mineração. A diversidade acadêmica dos autores nos oferece um leque de perspectivas e de estudos de caso. Tal construção se realizou por meio de uma tessitura exemplar, definida pelo compromisso com uma matriz centrada no contexto nacional e nas dinâmicas da contestação social. Assim, somos convidados a celebrar um livro plural, sem deixar de ser uno. No plano imediato, desdobra-se um arcabouço das ações de cada conflito, em que se combinaram mobilização popular, comunicação e formulação institucional. Somos apresentados às montanhas argentinas, que se tornaram livres de mineração metalífera e de fracking; à Amazônia equatoriana, que projetou uma transição para além da exploração petrolífera; a Wisconsin, que antecipou o ônus da precaução às mineradoras; à lei que declarou a Costa Rica livre de minas a céu aberto; e à moratória de mineradoras no Peru e nas Filipinas. Num plano mais sensível, um fio de Ariadne emerge e nos mostra uma saída: mais do que pelo emaranhado dos casos, somos guiados pelos efeitos políticos da obra, que privilegia forças que resistem e reivindicam aos territórios outros usos e valores que não os que repousam no subsolo. Trata-se de recusar à mineração a pretensão de primordialidade ou de inevitabilidade com que se reveste, especialmente quando implica a exploração não só de minérios, mas de desigualdades sociais e ambientais. A viagem nos leva a batalhas épicas, nas quais não se procura resgatar tesouros ou princesas, mas a política em seu sentido mais profundo – aquele que Rancière sugere quando nos inspira a restituir à palavra seu poder transformador, ou aquele em que buscamos libertar o “interesse nacional” da captura corporativa. Em mãos, não espadas ou fuzis, mas um livro a cada página tornado mais instrumento. [Maiana Maia Teixeira] Pesquisadora do Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Núcleo Tramas/UFC), mestranda no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur/UFRJ) e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA).
filme BRANCO SAI, PRETO FICA de Adirley Queirós
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internet NOVAS NARRATIVAS DA WEB
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lguns sites e projetos interativos com os formatos e conteúdos mais interessantes da web.
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oucos filmes causaram tanta discussão nos últimos anos como Branco sai, preto fica, que estreou nos cinemas em 19 de março e foi dirigido por Adirley Queirós. Premiado como melhor filme no último Festival de Brasília, é um misto de ficção e documentário que parte de um massacre em um baile funk nos anos 1980 em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, quando a polícia invadiu o espaço gritando “Branco sai, preto fica!”, antes de começar o linchamento e os tiros. A narrativa acompanha a saga de um detetive que vem do futuro para apurar os crimes contra a juventude negra no Brasil. O artifício da ficção científica é a solução encontrada pelo diretor para investigar uma violação que é natural no Brasil desde nossa colonização – o genocídio da população negra. Na melhor linha do cinema terceiro-mundista que transforma suas limitações em elemento criativo, Adirley coloca o detetive Dimas Cravalanças, interpretado pelo ótimo Dilmar Durães, viajando no tempo em uma caçamba de metal, em busca de provas contra o Estado brasileiro pelos assassinatos de jovens negros periféricos. O filme brinca com sua própria precariedade criando um efeito de distanciamento que exige do espectador uma atitude crítica diante da história que lhe é descortinada. A investigação leva a dois personagens centrais, homens mutilados pelo massacre policial: Shockito e Marquim da Tropa (em interpretação magistral). Aqui, realidade e ficção se confundem. O isolamento desses dois personagens, seus silêncios reveladores e as narrativas dissipadas no passado resultam em um acerto de contas que só pode ocorrer no campo simbólico, posto que não existem direitos para os que vivem à margem. Esses “não acontecimentos” são mostrados em um tempo próprio, embalado por velhos funks apresentados por Marquim em sua rádio pirata. Com Branco sai, preto fica, Adirley, diretor do também fundamental A cidade é uma só?, firma-se como um dos mais importantes realizadores do cinema brasileiro contemporâneo e aponta novos horizontes para o nosso cinema político. O filme marca o nascimento de uma cinematografia provocativa, inventiva e poética que chegou para incomodar e não procura agradar a ninguém. [Thiago B. Mendonça] Diretor e roteirista. Integra o Coletivo Zagaia.
VERDADE ABERTA A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo lançou um site com o resultado de sua investigação. Cada seção do relatório, lançado em 12 de março de 2015, tem sua versão multimídia, com centenas de materiais complementares – imagens, vídeos, áudios, mapas. Com uma navegação simples, direta, limpa, é um exemplo de design bem resolvido. Todo o conteúdo é licenciado em Creative Commons 4.0, o que significa liberdade para cópia, inclusive para fins comerciais. Lucas Pretti, jornalista responsável pela estratégia digital, conta que originalmente o relatório era “só um PDF gigantesco, voltado para pesquisadores”, mas houve um trabalho de abrir as informações para que fossem facilmente encontradas no Google ou no Facebook. <http://verdadeaberta.org> 360 GRADOS O site do jornal El País da Colômbia publica reportagens chamadas de 360 graus: rápidas, interativas, documentais e inovadoras. Ganhadores de diversos prêmios com histórias sobre personagens de Cali, sobre a indústria do gênero musical salsa, ou uma viagem virtual pela cidade – é dos raros jornais latino-americanos que mantêm uma equipe própria para projetos especiais para web. Começaram em 2009 com a proposta de realizar trabalhos mensais, mas não conseguiram produzir tanto. No entanto, conservam uma coleção de reportagens especiais bastante impressionante. <www.elpais.com.co/reportaje360/> MEDIASHIFT A rádio pública dos Estados Unidos PBS mantém desde 2006 o programa MediaShift, um “guia para a revolução da mídia digital”, como anunciam. Comandados por Mark Glaser, eles publicam diariamente textos, links e áudios sobre novos modelos de narrativas e informações, além de histórias sobre como veículos tradicionais como jornais, revistas, rádios ou canais de TV estão lidando com as transformações trazidas pelo universo digital e a comunicação móvel. Glaser realiza um evento chamado J-School Hackaton, uma maratona cujo objetivo é moldar a próxima geração de jornalistas-hackers pelo empreendedorismo. <www.pbs.org/mediashift> [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Laab, professor de Jornalismo e Publicidade (ESPM) e mestre em Teoria da Comunicação pela USP.