a poesia das coisas

Page 1

a poesia das coisas

silvana tavano adriana fernandes



a poesia das coisas silvana tavano adriana fernandes



POISÉ...

na cozinha tem fogão, panela, geladeira e pia também tem carinho e bolo com cheiro de poesia

madeira, lixa e parafuso sempre tem na marcenaria e não é que prego e martelo também rimam com poesia?

calor de fogo e casaquinho quente todo mundo quer quando esfria só que ainda melhor é se aquecer com chá sabor poesia

mistérios do fundo do mar conversa de flor e de vento o céu em noites de magia poisé: poesia!



A PORTA ANTIPÁTICA

ela é maciça e tem maçaneta de cobre tudo nela tem um jeito nobre

pena viver assim, sempre trancada dia e noite de cara fechada

seu olho mágico não revela nada só mostra o quanto ela é desconfiada

de que vale ter essa bela imagem se é uma porta que nunca dá passagem?


O MOTIM

cansado de tanto triturar, o liquidificador para de funcionar e avisa: – hoje não tem expediente, estou com dor de dente!

na mesma hora o ferro de engomar desliza pela tábua de passar e decreta: – também vou fazer greve, chega de trabalhar ardendo de febre!

e não é que o aspirador começa a engasgar e aproveita pra entrar na farra? – estou tão entupido de pó que a partir de agora não aspiro nem na marra...

então o fogão abre as suas seis bocas e lança chama na fogueira: – já que ninguém quer trabalhar, também vou pifar. Só falta você, geladeira!




O PÉ NERVOSO

de perna cruzada e olhar esquecido o moço parecia estar meio adormecido a única parte que tinha acordado era o pé esquerdo: que pé agitado!

um bocejo atrás do outro, que sono, coitado! só o pé balançava de um jeito afobado nervoso, chutando ar pra todo lado

de vez em quando sossegava um momento, mas logo recomeçava o vaivém, que tormento... dava aflição ver aquele pé sacudindo como se gritasse: ACORDA, VAMOS INDO!

bem que o pé já queria sair andando mas só podia continuar chacoalhando fazer o quê se o moço ainda estava sonhando?


UMA HISTÓRIA DE AMOR

o brinco se pendurou na orelha e deu um abraço bem apertado a coitada ficou até vermelha com aquele carinho inesperado

não fique aflita, cochichou o brinco, garanto que, comigo, você fica ainda mais bonita!

então o tempo foi passando e ela se acostumou a ter companhia toda noite se despedia do namorado esperando o seu abraço no outro dia


até que, certa manhã, o brinco não apareceu e a orelha ouviu alguém dizer: que pena, acho que ele se perdeu!

depois disso vieram muitos outros, redondos, compridos, ovais mas abraço como o daquele brinco pobre orelha, nunca mais!



CALMA!

pensamento apressado escapa pela boca e fica gago

sai pelos dedos e se escreve atropelado

fala antes da hora e explica tudo errado

sossega, pensamento! fica dentro da cabeรงa, bem quieto e aparece sรณ quando estiver completo


AI, QUE FRRRRRRRRIO!

preste atenção no seu arrepio: se o pelo eriçar de repente coloque um casaquinho quente

mas se o arrepio não desaparecer... (e o que pode ser?) é melhor começar a correr!

será assombração ou vento gelado? (na dúvida, corra!) daí você esquenta e o pelo assenta desarrepia e espanta até o diabo



PÃO COM MANTEIGA

todas as manhãs, o pãozinho chega quente e animado: – bom dia, dona manteiga, por acaso mudou de penteado?

dura como pedra, a manteiga nunca quer saber de brincadeira: – pensa que é fácil passar a noite na geladeira?

com uma piscada crocante, diz o pãozinho galanteador: – pois o frio lhe faz bem, em você só vejo frescor!

depois disso, a manteiga sempre amolece até derreter de vez: – ai de mim que não resisto ao calor de um pão francês!




A BOLA ABANDONADA

cansada de ficar parada, a bola chama o pé: – ei, você, vem me chutar, vamos dar um olé! o pé então chacoalha a perna e atiça: – já descansamos bastante, chega de tanta preguiça... sonolenta, a perna sacode o corpo e emenda: – que tal se mexer um pouco, seu molenga? o corpo cutuca a cabeça antes de se mover: – e aí: vai continuar pensando ou já posso correr? a cabeça reflete um segundo e responde: – mas, essa bola... quer levar a gente até onde? desanimada, a bola desiste e sai rolando pelo jardim: – hoje só o vento quer saber de mim!


O DRAMA DO PREGO

antes de entrar em ação o prego olha para o martelo e dá um sorrisinho amarelo

tremendo de medo, resolve falar: – sou forte, acho que posso aguentar... mas, por favor, bate devagar!

novinha em folha, a parede fica assustada e parece ainda mais branca quando ousa perguntar: – vai doer? é a minha primeira martelada!

neste momento, o martelo quase desiste mas o quadro quer ser pendurado e insiste: – vamos logo com isso, coragem! todos querem ver a minha paisagem


tum–tum–tum, o martelo finalmente começa na mesma hora, o pobre prego geme à beça e a parede solta uma lágrima–pozinho como se fosse um choro fininho

apesar de todo esse clima a dor de todo mundo logo passa e não é que presinho lá em cima o quadro ficou uma graça?

orgulhoso, o prego agora segura firme e a parede já nem se lembra da ferida feliz, o martelo volta para sua caixa com mais uma missão cumprida!



BOM DIA!

a árvore acordou arrepiada sacudindo a coberta–garoa de pingo fininho logo levou uma lambida de vento frio anunciando o dia sem visita de passarinho mesmo assim espreguiçou os galhos balançou as folhas e não se encolheu feliz de ser árvore, sorriu para o inverno e amanheceu


VIU?

se quer me cutucar o invisível vira vento

quando conversa comigo tem voz de pensamento

às vezes me assusta disfarçado de fantasma


e certos dias me encanta fazendo mágica de fada

invisível é assim: feito os anjos e o tempo

só vê quem sabe olhar com os olhos de dentro


AMOR–PERFEITO

– florzinha bonita, que coisa inesperada, que ideia foi essa de aparecer assim do nada? – e eu lá tenho ideia? foi puro acaso! mas é melhor estar aqui do que num vaso...

– levei um susto, afinal, sou uma calçada e, aqui, uma flor acaba sendo pisoteada! – ai, ai, ai, pobre de mim! por que não nasci num jardim?

– e pensar que você saiu de uma rachadura... quanto tempo será que você dura? – mas que horror! precisa ser tão indelicada? sou frágil demais e já estou machucada!


– florzinha cheirosa, não fique magoada até que estou gostando de ser enfeitada! – então deixe de ser dura e ranzinza, agora você já não é só um piso cinza

– florzinha tão linda, você é danada, brotou um coração no meu cimento de calçada!


RECEITA DE Nร CTAR

sirva duas bolas de sorvete de nuvem coloque uma pitada de farofa de estrela acrescente creme da via lรกctea a gosto e regue tudo com calda de lua cheia



VARINHAS DE CONDÃO

quando os lápis de cor resolvem conversar ninguém imagina a história que pode pintar

diz o amarelo: – era uma vez um chinelo que...

e o verde continua: – ...que? ... hmm... resolveu sair andando pela rua!

mas o vermelho não consegue se conter: – começou mal! e se o coitado se perder?

até o azul, sempre otimista, não bota fé: – e desde quando um chinelo anda sem pé?

então o roxo, como de costume, fica nervoso: – andar sozinho por aí pode ser muito perigoso!


daí o laranja se ilumina e tenta solucionar: – ele precisa do seu par, vai ter que procurar...

sempre calmo, o branco resmunga baixinho: – relaxem! o chinelo conhece os passos do caminho

nessa hora o marrom faz uma sombra e exclama: – vejam, o outro chinelo está embaixo da cama!

finalmente o rosa dá o tom da história e diz: – ah, juntinhos pra sempre: um final bem feliz!



DÚVIDA DE PASSARINHO

da árvore–poste de cimento

um passarinho olha

pra moça presa no congestionamento

dentro do seu carro–gaiola

bem que o passarinho queria perguntar:

isso é o seu ninho

ou você tem medo de voar?


BRIGA NO CÉU

nuvens ranzinzas vento furioso gritos de trovão

o céu fecha a cara relampragueja raios e a chuva chora sem parar no meio da grande confusão




MERGULHO

lá no fundo do mar tem peixe com cara de planta tem planta com jeito de pedra tem pedra disfarçada de concha tem concha–colchão de pérola

lá no fundo do mar as estrelas têm espinhos as nuvens são cardumes e o céu é escuro mas tudo brilha

lá no fundo do mar o silêncio faz barulho a terra é água e o mundo flutua no espaço das ondas


OS NOMES DAS COISAS

Infância sol é palavra que brilha solidão é a palavra ilha

música é palavra que canta segredo é palavra que não conta

estripulia é palavra que pula imaginação é palavra que fabula

é como se tivesse olhos boca, ouvidos e nariz

cada palavra dá um rosto a tudo que se diz


N at u r eza Sab edo ria

A conch ego

D elicad eza

Vida A mo r

I mensid ĂŁo Cu mplicidad e

Lib erdad e


Silvana Tavano foi jornalista por muitos anos

Um dia, conheceu a bruxa Creuza, e escrever suas histórias fez com que ela mudasse de planos

Desde então, já escreveu muitos livros com personagens sérios e também divertidos

Em alguns, rimou palavra com abracadabra e descobriu a magia de brincar de poesia


Adriana Fernandes nunca tinha feito isso antes

Estudou arquitetura e hoje constrĂłi pĂĄginas com arte e desenvoltura

Acontece que ela tambĂŠm ama literatura e sabe ler entrelinhas e texturas

Neste seu primeiro livro, arquitetou imagens rimou cores e projetou fantasia para construir um mundo de poesia





Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.