Caitlin Crews - Os Irmãos Castelli

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SENTIMENTOS MASCARADOS Uma nova chance? Após um acidente de carro, Lily Holloway foi embora e deixou para trás a paixão proibida que viveu com Rafael Castelli. Cinco anos depois, quando seus caminhos se cruzam novamente, ela fica desesperada para manter sua liberdade e finge sofrer de amnésia, negando ter qualquer lembrança de Rafael. Contudo, essa mentira é rapidamente consumida pelo intenso desejo que sentem. Agora que se reencontraram, Lily sabe que é apenas questão de tempo para que Rafael descubra o seu maior segredo: o filho que tiveram.

SENTIMENTOS OCULTOS Anjo ou pecadora? O magnata Luca Castelli acha que sabe tudo sobre a viúva de seu pai, Kathryn. E não se deixará enganar pelos elogios dos tabloides. Para ele, essa jovem estonteante não é nenhuma santa! E quando uma cláusula do testamento o obriga a se tornar chefe de Kathryn, Luca decide testar seus limites. Contudo, ela se mostra à altura do desafio, fazendo com que a mistura entre o ódio e o desejo que sentem um pelo outro fique ainda mais perigosa. Até Luca descobrir que a inocência de Kathryn é bem maior do que ele imaginara...


OS IRMÃOS CASTELLI Existem coisas que o dinheiro não pode comprar… Rafael e Luca Castelli gostam de viver perigosamente e estão acostumados a ultrapassar os obstáculos mais difíceis. Esses magnatas implacáveis acreditam ter tudo o que desejam: um império bem-sucedido, uma vida luxuosa e belas mulheres em suas camas… Até dois novos e inesperados itens serem incluídos em suas listas de conquistas! Para alcançar a felicidade, Rafael e Luca precisarão superar o maior desafio suas vidas: as belas e obstinadas Lily e Kathryn. Acompanhe essas histórias apaixonantes de Caitlin Crews. Sentimentos mascarados & Sentimentos ocultos


Querida leitora, Rafael e Luca Castelli gostam estar no controle. Porém, o destino lhes provará que as coisas mais imprevisíveis são as melhores. Divirta-se com duas histórias maravilhosas de Caitlin Crews. Em Sentimentos mascarados, Rafael Castelli mudou drasticamente após a morte da única mulher que se permitiu amar. Ele não é mais um jovem conquistador e inconsequente. É um CEO implacável, que comanda o império da família com pulso de ferro. Imagine a surpresa de Rafael ao descobrir que Lily Holloway está viva… e que tivera um filho dele! Em Sentimentos ocultos, Katheryn não tinha dúvidas de que os filhos de seu falecido marido a julgavam uma interesseira. E o beijo que trocara com Luca Castelli no dia do funeral apenas reforçara essa ideia. Contudo, agora que ele é o seu chefe, Katheryn está decidida a provar sua inocência. E deixará esse poderoso bilionário estarrecido com a verdade que revela! Boa leitura! Equipe Editorial Harlequin Books


Caitlin Crews

OS IRMÃOS CASTELLI Tradução Ligia Chabu

2016


SUMĂ RIO

Sentimentos mascarados Sentimentos ocultos


Caitlin Crews

SENTIMENTOS MASCARADOS

Tradução Ligia Chabu


CAPÍTULO 1

RAFAEL CASTELLI era totalmente familiarizado com fantasmas. Ele os vira em todos os lugares naqueles primeiros meses depois do acidente. Todas as mulheres com cabelos loiroavermelhados eram sua Lily, sob certo ângulo. Um toque do perfume dela na multidão, uma risada feminina rouca num restaurante lotado... tudo lhe dava esperança de reconhecer Lily. Sempre aquele fio de esperança delirante, tão desesperado quanto estava condenado a ser. Ele, uma vez, perseguira uma mulher por metade de Londres, antes de perceber que ela não era Lily. Que não poderia ser Lily. Sua irmã de criação tinha morrido naquele acidente horrível na costa norte de São Francisco, Califórnia. E, apesar do fato de o corpo dela nunca ter sido recuperado das águas traiçoeiras abaixo daquele penhasco rochoso, apesar de ninguém ter encontrado provas de que ela morrera no fogo que transformara o carro em cinzas, nada, nenhum truque de luz, teorias malucas inventadas às 3h da manhã ou seu próprio coração lhe pregando peças, poderia mudar isso. Fazia cinco anos. Lily se fora.


Ele entendia, finalmente, que eles não eram fantasmas, afinal de contas. Eram flashes do que poderia ter sido. Era seu arrependimento consumidor representado em centenas de estranhas, e nenhuma delas era a mulher que ele queria. Mas aquele fantasma era diferente. E o último, Rafael jurou enfurecido. Cinco anos era tempo suficiente para sofrer pelo que nunca tinha sido, graças a seu egoísmo. Mais do que suficiente. Era hora de seguir em frente. Era fim de uma tarde de dezembro em Charlottesville, Virgínia, uma cidade universitária pitoresca, localizada aos pés das montanhas Blue Ridge, a aproximadamente três horas de carro de Washington, DC, e a um mundo de distância de sua nativa Itália. Rafael havia feito a viagem da capital da nação de helicóptero, hoje, observando os vinhedos da região de cima, com o objetivo de expandir o alcance global dos negócios históricos de vinho da família Castelli. Agindo como diretorgeral – porque o imenso orgulho de seu pai doente não permitia uma transferência oficial da liderança para Rafael ou para seu irmão mais novo, Luca, enquanto o velho homem ainda respirasse, o que era irritante –, Rafael fizera muitas viagens como essa nos últimos anos. Portugal. África do Sul. Chile. A última viagem para a região de vinhos da Virgínia era mais do mesmo. A parada no fim da tarde na charmosa Charlottesville para um jantar com um dos negociantes locais de vinho era a típica excursão para ajudar a promover o charme do feriado que fazia a cidade inteira parecer um cartão de Natal interativo. Não era desagradável, pensara ele quando eles tinham saído da rua comercial, embora nunca tivesse se importado com a


agitação das festas. Pessoas enchiam as ruas, cantando canções natalinas, entrando e saindo de lojas sob as luzes festivas, andando em volta de barracas de rua que vendiam suas mercadorias. O pequeno grupo de Rafael tinha entrado num dos Cafés para tomar um café forte e espantar o frio. E para lutar contra os efeitos do jet lag, sem dúvida. Rafael pedira um expresso triplo. E então ele a vira. A mulher movia-se como poesia contra a luz do crepúsculo, o ritmo dos passos tocando-o profundamente, abafando as canções de Natal que vinham de um aparelho de som dentro do Café. Fazia cinco anos, mas Rafael conhecia aquele andar. E conhecia o balanço daqueles quadris e a extensão daquelas pernas. Aquele giro irresistível enquanto ela passava pela janela onde ele estava de pé. Ele viu um flash do perfil dela, nada mais. Mas aquele andar. Isso tem de parar, ordenou a si mesmo. Lily está morta. – Você está bem, sr. Castelli? – perguntou a negociante de vinhos ao seu lado. Seu irmão, Luca, ali como diretor de marketing da Castelli Wine, estava muito ocupado ao celular para fazer mais do que dar uma olhada distraidamente na direção de Rafael. – Eu ficarei bem – respondeu Rafael. – Com licença, por um momento. E ele saiu do Café, andando entre a multidão, enquanto a noite caía. Por um momento, pensou que a tivesse perdido, e sabia que era o melhor resultado possível dessa loucura... mas então ele a


viu novamente, andando apressadamente com aqueles passos que lembravam tanto Lily. Não era Lily. Nunca era Lily. Entretanto, toda vez que isso acontecia, Rafael seguia a pobre estranha e fazia papel de tolo. – Hoje será a última vez que você cede a essa loucura – falou para si mesmo, então seguiu a última encarnação da mulher que sabia que nunca mais veria. Era a última tentativa de apagar a faísca da pequena chama de esperança que ainda se recusava a morrer. Uma última vez para provar o que ele já sabia: Lily partira, jamais voltaria, e ele nunca veria alguém igual a ela. E talvez, apenas talvez, se ele não tivesse sido um idiota, não a visse em todos aqueles rostos estranhos. Rafael duvidava que algum dia se livrasse da culpa que corroía sua alma. Mas nessa noite, naquela cidadezinha charmosa, numa parte da América que ele nunca visitara antes, e provavelmente nunca mais visitaria, tentaria enterrar sua história de uma vez por todas. Não esperava paz. Não a merecia. Mas estava cansado de perseguir fantasmas. Ela será uma estranha. É sempre uma estranha. E, depois que você confirmar isso pela centésima vez, nunca mais duvidará. Isso tinha de acabar. Ele precisava fazer com que acabasse. Não conseguia ver o rosto de sua presa, apenas a forma delgada de costas, enquanto ela se afastava dele. Ela vestia um casaco preto longo e um cachecol brilhante, com alguns fios de cabelo saindo da boina de tricô preto que usava sobre as orelhas. As mãos estavam enfiadas nos bolsos. Ela estava abrindo espaço


entre a multidão de um jeito que sugeria que sabia exatamente para onde estava indo, e não olhava para trás. E memórias o atingiram como ondas contra as pedras, uma após a outra estourando sobre ele. Lily, a única mulher que o capturara completamente. Lily, quem ele perdera. Lily, sua amante proibida, sua paixão secreta, que ele escondera do mundo, e então tivera de ficar de luto como se ela não fosse mais do que a filha da quarta esposa de seu pai. Como se ela não tivesse sido mais do que isso para ele. Rafael se odiava por tanto tempo agora que isso era indistinguível daquela dor que nunca o deixara. A dor que o transformara... tornando-o um bon vivant muito rico que estivera contente em jogar o dinheiro da família fora, em vez de se tornar um dos homens de negócios mais formidáveis da Itália. Isso, também, levara anos. Tinha sido outra forma de punição. – Dentro de você, está a semente de um homem muito melhor – dissera-lhe Lily da última vez que ele a vira, depois que ele a levara ao orgasmo e a fizera chorar: sua especialidade. – Eu sei disso. Mas, se você continuar nesse caminho, matará a semente antes que ela tenha a chance de crescer. – Você me confunde com alguém que quer crescer – replicara Rafael com toda a indiferença que não tivera ideia que passaria sua vida inteira se detestando por sentir. – Eu não preciso ser um jardim, Lily. Estou feliz como sou. Aquela era uma das últimas conversas que eles tinham tido. Seu coração estava quase dolorido dentro do peito. Sua respiração saía como nuvens contra a noite se aprofundando. Ele a seguiu quando ela deixou as ruas comerciais brilhantes do centro da cidade e começou a descer uma das ruas laterais,


maravilhando-se diante da silhueta incrivelmente familiar, do corpo que ele poderia ter desenhado dormindo, da pura perfeição dessa mulher que não era Lily; todavia, era igualzinha ele se lembrava dela. Sua Lily, passeando por uma rua nebulosa de São Francisco, alegando que tudo que queria era fugir dele e do relacionamento disfuncional deles, finalmente. Na época, Rafael rira, tão arrogantemente certo de que ela voltaria para ele, como sempre voltava. Como sempre vinha voltando desde o dia que eles haviam atravessado aquela linha, quando Lily tinha 19 anos. Outro encontro no corredor, talvez, com ele cobrindo-lhe a boca para abafar seus gritos, enquanto eles enlouqueciam um ao outro a poucos metros de suas famílias. Outra noite roubada no quarto de Lily, na casa da mãe dela nas ricas montanhas de Sausalito. Um quarto de hotel aqui, um momento roubado num galpão de casa de veraneio alugada ali... tudo tão de mau gosto agora, em sua lembrança. Tudo tão estúpido e esbanjador. Mas ele tinha tanta certeza de que sempre haveria outro encontro... Seu celular vibrou no bolso; o assistente que ele deixara no Café, pensou ele, imaginando onde Rafael se metera. Ou talvez, seu irmão Luca, irritado pela ausência de Rafael, quando havia trabalho a ser feito. Ele ignorou a ligação. Rafael era um homem diferente do que fora cinco anos atrás. Tinha responsabilidades hoje em dia; cumpria-as de bom grado. Não podia seguir mulheres pela cidade como fizera em sua juventude, embora, na época, por razões muito distintas. Por luxúria, não culpa. Não era mais o mulherengo inveterado que tinha sido, contente em apreciar seu relacionamento questionável com sua irmã de criação, em particular, e todas


suas outras conquistas, publicamente, nunca se importando se aquilo a machucava. Nunca se importando com nada, se fosse honesto, exceto em se manter seguro das garras de envolvimentos emocionais. É assim que deve ser, Lily, ele falara para ela com toda a segurança do tolo que tinha sido, sempre em busca do prazer. Rafael não era mais o jovem egoísta que sentia deleite em conduzir o caso vergonhoso deles debaixo dos narizes de suas famílias unidas, simplesmente porque podia. Porque Lily era incapaz de resistir a ele. A verdade era que ele fora igualmente incapaz de resistir a ela. Uma realidade terrível que ele só entendera quando era tarde demais. Ele mudara desde então, com ou sem fantasmas. Mas ainda era Rafael Castelli. E aquela era a última vez que pretendia mergulhar na sua culpa. Era hora de crescer, aceitar que não podia mudar o passado, e parar de imaginar que via uma mulher morta em cada esquina. A mulher diminuiu o ritmo da caminhada, enfiando a mão no bolso e apontando uma chave para um carro próximo. O alarme tocou quando ela se virou para abrir a porta do motorista, e a luz da rua, acendendo naquele momento, iluminou-a completamente no rosto... E o atingiu no âmago. Havia um zumbido em sua cabeça, uma sensação de que ele estava se partindo ao meio. Ela encostou contra a porta do carro e deixou-a fechada, e Rafael teve a fraca impressão de que ele gritara algum tipo de ordem. Ou a chamara pelo nome? Ela congelou, olhando para ele atrás do capô do carro.


Não havia engano de quem ela era. Lily. Não podia ser outra pessoa. Não com aquelas maçãs do rosto esculpidas, que emolduravam a boca grande e carnuda que ele provara milhões de vezes. Não com aquele rosto em forma de coração que pertencia a uma pintura na Galleria degli Uffizi. Os olhos dela ainda eram daquele tom de azul sonhador, que o lembrava dos invernos da Califórnia. Os cabelos escapavam da boina de tricô e caíam sobre os ombros delgados, combinando mechas douradas e avermelhadas. As sobrancelhas eram do mesmo formato, levemente arqueadas, e ela parecia não ter envelhecido um único dia em cinco anos. Ele achou que seu coração poderia parar de bater. Respirou fundo, esperando que as feições dela se rearranjassem numa estranha. Esperando acordar em algum lugar para descobrir que era tudo um sonho. Esperando que alguma coisa... Rafael respirou fundo novamente, então exalou. E ainda era ela. – Lily – sussurrou ele. Então estava fechando a distância entre os dois, e não havia mais nada, exceto barulho em seu interior. Suas mãos tremeram quando ele as estendeu para segurá-la pelos ombros. Ela emitiu um som assustado, mas Rafael continuou olhando-a fixamente, procurando sinais. Evidências, como a sardinha à esquerda da boca, a covinha que se formava na face quando ela sorria. E suas mãos conheciam o formato daqueles ombros, mesmo sob o casaco grosso. Ele se lembrou de como se encaixavam perfeitamente, como se seus corpos fossem peças de quebracabeça que se uniam. Ele reconheceu o jeito que a cabeça dela


inclinou para trás, a maneira como os lindos lábios se entreabriram. – O que você está fazendo? Rafael leu as palavras nos lábios dela, mas não podia dar sentido a elas. Apenas sabia que aquela voz levemente rouca, a voz que nunca esperara ouvir de novo, era de Lily. E o aroma – aquela fragrância que era alguma combinação de hidratante para as mãos, xampu e perfume – se misturava para concluir a simples verdade. Era sua Lily. Ela estava viva. Ou esse era um surto psicótico. E Rafael não se importava com qual das duas coisas fosse. Simplesmente, puxou-a para si e tomou-lhe a boca na sua. O mesmo gosto que ela sempre tivera. De luz. De risada. De desejo. Ele foi cuidadoso no começo, provando-a, testando-a, seu corpo inteiro exultando-se na impossibilidade, naquilo que ele sonhara um milhão de vezes, apenas para acordar sem ela, de novo e de novo ao longo dos anos. Mas então a eletricidade que sempre existira entre os dois aconteceu. Rafael angulou a cabeça para aquele encaixe perfeito do qual se lembrava tão bem e devorou-a. Seu amor perdido. Seu verdadeiro amor. Finalmente, pensou ele em italiano, como se apenas sua língua nativa pudesse dar sentido àquilo. Suas mãos estavam naqueles lindos cachos quando ela afastou a boca da dele. Os olhos de Lily tinham aquele tom impossivelmente azul que o perseguira por meia década, a cor do céu de São Francisco. – Onde você esteve? – perguntou ele, o sotaque mais pronunciado do que em anos. – Que diabos é isso?


– Solte-me. – O quê? – Ele não entendia. – Você parece muito zangado – disse ela, os olhos azuis com uma expressão que parecia de pânico, o que não fazia o menor sentido. – Mas eu preciso que você me solte. Agora. Prometo que não chamarei a polícia. – A polícia? – Aquilo não fazia sentido, mesmo que muita coisa ali também não fizesse. – Por que você chamaria a polícia? Rafael estudou o lindo rosto que acreditara que nunca mais veria. Não naquela vida. As faces dela estavam rosadas agora, a boca, úmida da sua. Mas ela não estava se derretendo contra ele, como sempre fizera no passado, e, se ele não estivesse enganado, as mãos em seu peito estavam empurrando-o. Tudo em Rafael se rebelou, mas ele soltou-a. E esperou que ela desaparecesse na escuridão se formando entre eles, ou numa nuvem de fumaça, mas isso não aconteceu. Ela prendeu seu olhar por um longo momento frio, então, muito deliberadamente, limpou a boca com a mão. Rafael ficou furioso. – Que diabos está acontecendo? – demandou ele, numa voz que tinha de usar apenas uma vez com seus funcionários. Nunca duas. Lily enrijeceu, mas o fitava de maneira estranha. Muito estranha. – Por favor, recue. – A voz dela era baixa e intensa. – Pode parecer que estamos sozinhos aqui, mas eu lhe garanto que há todo tipo de pessoas que irão me ouvir gritar. – Gritar? – Pura devastação o inundava. Não havia nada além de desejo e fúria, dor e desespero. E aquela terrível esperança


que sentira durante tanto tempo, embora soubesse que não era saudável. Soubera que tal esperança era uma fraqueza. Algo sentimental e mórbido. Uma fraqueza que considerara sua menor punição. Mas ela estava viva. Lily estava viva... – Se você me atacar de novo... Mas o fato de que ela estava parada ali, numa ruazinha de Charlottesville, Virgínia, fazia tão pouco sentido para Rafael quanto a aparente morte de Lily, cinco anos atrás. Ele ignorou o que ela estava dizendo, franzindo o cenho ao começar a sair do estado de choque. – Como você sobreviveu àquele acidente? – demandou ele. – Como veio parar justo aqui? Onde esteve durante todo esse tempo? – Rafael subitamente absorveu as palavras dela e piscou. – Você disse atacar? Ela afastou-se, uma mão na lateral do carro. A expressão era perturbada, e ela certamente não o cumprimentara como ele teria esperado que Lily o fizesse... se, é claro, tivesse se permitido imaginar que ela pudesse realmente estar viva. Não um fantasma, dessa vez. Lily em carne e osso, parada a sua frente, numa rua fria e escura. Mesmo se o olhasse como se ele fosse um monstro. – Por que você está me olhando como se não me conhecesse? – perguntou Rafael suavemente. Ela franziu o cenho. – Porque eu não o conheço. Rafael riu, embora o som tivesse soado quase histérico.


– Você não me conhece – repetiu ele, como se estivesse testando o som das palavras. – Eu vou entrar no carro agora – disse ela muito cautelosamente, como se ele fosse algum tipo de animal selvagem ou psicótico. – Saiba que estou com a mão no botão de pânico do meu chaveiro. Se você fizer qualquer movimento em direção a mim, eu irei... – Lily, pare com isso – ordenou ele. – Meu nome não é Lily. – Ela franziu o cenho. – Você caiu e bateu a cabeça? Está muito frio e... – Eu não bati a cabeça, e você é, na verdade, Lily Holloway – disse ele entre dentes, embora quisesse gritar. – Imaginou que eu não fosse reconhecê-la? Eu a conheço desde que você tinha 16 anos. – Meu nome é Alison Herbert – replicou ela, olhando-o como se ele tivesse gritado, afinal de contas. Como se ele tivesse feito qualquer das coisas loucas dentro de sua cabeça, nenhuma das quais poderia ser classificada como remotamente civilizada. – Você parece o tipo de homem de que as pessoas se lembrariam, mas eu não lembro. – Lily... Ela deu um passo atrás e abriu a porta do carro, colocando-a entre os dois. Uma barreira. Uma barreira deliberada. – Eu posso chamar uma ambulância. Talvez você esteja ferido. – Seu nome é Lily Holloway – insistiu Rafael, mas ela não reagiu. Apenas continuou olhando-o, e ele percebeu que devia ter tirado a boina da cabeça dela, quando a beijara de modo tão selvagem, quando os cabelos loiro-avermelhados brilharam à luz


da rua. Ele os reconheceu, também. Aquela cor indefinível, única. – Você cresceu nos arredores de São Francisco. Seu pai morreu quando você era criança, e sua mãe se casou com meu pai, Gianni Castelli, quando você era adolescente. Ela meneou a cabeça. – Você tem medo de altura, aranhas e vírus estomacal. É alérgica a molusco, mas adora lagosta. Formou-se em Berkeley em Literatura Inglesa, depois de escrever uma tese totalmente inútil sobre elegias anglo-saxãs que não lhe servirá em emprego algum. Tem um lírio tatuado no quadril direito, subindo ao longo de sua lateral, que adquiriu como um ato de rebeldia durante uma bebedeira. Você estava de férias no México naquele ano, e provou muita tequila. Acha que estou inventando todas essas coisas para me divertir? – Acho que você precisa de ajuda – disse ela, com uma firmeza que não combinava com as memórias que ele tinha de Lily. – Ajuda médica. – Você perdeu sua virgindade aos 19 anos – declarou Rafael. – Comigo. Talvez não se recorde disso, mas eu lembro muito bem. Eu sou o amor da sua vida!


CAPÍTULO 2

ELE ESTAVA lá. Cinco anos depois, ele estava lá. Rafael. Bem ali. Parado à sua frente e olhando-a como se ela fosse um fantasma, falando de amor como se soubesse o significado da palavra. Lily queria morrer... e de verdade, dessa vez. Aquele beijo ainda a abalava, deixando-a em chamas de um jeito que ela se convencera de que era apenas uma fantasia, não lembranças, e, certamente, não era verdade. Queria jogar-se nos braços dele, daquela mesma maneira doentia, insensata e viciante que sempre fizera. Sempre. Independentemente do que tivesse acontecido ou não entre eles. Ela queria se derreter dentro de Rafael. Todavia, não era mais aquela garota. Tinha outras responsabilidades agora, muito maiores. Coisas muito mais importantes em que pensar do que no seu próprio prazer tolo ou nesse homem destrutivamente autocentrado que já consumira muito da sua vida.


Rafael Castelli era o demônio que ela carregava em seu interior, a coisa negativa e egoísta contra a qual ela lutava todos os dias de sua vida. O símbolo de seu mau comportamento, de todas as suas escolhas terríveis, de sua inabilidade de pensar em qualquer pessoa ou qualquer coisa além de si mesma. A mágoa que ela causara, a dor que distribuíra, intencionalmente ou não. Rafael estava intimamente envolvido em tudo isso. Ele era o incentivo para ela levar a nova vida que escolhera, tão distante da antiga, que estivera arruinada. Seu “bicho-papão”. O monstro embaixo da sua cama em mais de uma maneira. Ela não esperara aquela metáfora em particular, aquela memória viva que costumava usar como seu compasso para não ser a pessoa que tinha sido quando o conhecera, para ganhar vida nova numa quinta-feira aleatória de dezembro. Ali, em Charlottesville, onde acreditara que estava segura. Finalmente, começara a acreditar que poderia se entregar à vida que construíra como Alison Herbert. Que poderia se tornar a versão melhorada de si mesma e nunca olhar para trás. – Devo continuar? – Rafael perguntou num tom de voz que ela não se lembrava de tê-lo ouvido usar antes. Duro, inflexível. Quase rude. Ela disse a si mesma que aquilo a assustava, mas o que a abalava era muito mais complicado do que isso, e causava um calor no seu baixo-ventre. – Tudo que eu disse mal se aproxima das coisas que sei a seu respeito. Eu poderia escrever um livro. Lily não pretendera fingir que não o conhecia. Não exatamente. Ficara congelada num misto de horror e deleite, e então horror diante do deleite. Estivera voltando para seu carro, depois de resolver algumas coisas no centro, ouvira um barulho


atrás de si, no momento que destrancara o veículo, e se deparara com a visão saída de seus pesadelos. Rafael. Ela mal tivera tempo de observá-lo. Experimentara aquele flash de reconhecimento... o corpo magro e forte num paletó preto impecável, a beleza máscula do rosto, desde os cabelos escuros mais curtos do que ele costumara usar àquela boca que a tentara além da medida e a atormentara além da imaginação, até os olhos escuros profundos. E então nada daquilo importara, porque ele a beijara. O gosto, o toque, o calor de Rafael. Tudo desaparecera. O segredo. A música que vinha de alguma loja das redondezas. A cidade inteira, o estado, o país. Os últimos cinco anos sumindo numa única onda de calor e desejo que a inundara, destruindo cada mentira que ela vinha dizendo a si mesma durante todo esse tempo. Que o que tinha sentido por Rafael não passara de uma paixão. Que o tempo e a distância apagariam o fogo entre eles. Que não havia nada a temer daquele homem, que não passara de um garoto rico mimado que se recusava a abrir mão de seu brinquedo favorito... A verdade era tão ardente que queimava, dizendo-lhe coisas que ela não queria saber... provando que ela era tão viciada quanto sempre fora, e, pior, como sua mãe sempre fora. Vê-lo depois de cinco anos a abalara tão profundamente que Lily não sabia o que poderia acontecer a seguir... mas, então, lembrara. Ela afastara a boca da dele, horrorizada consigo mesma. Porque havia se lembrado do motivo pelo qual não poderia entregar-se àquele homem, como seu interior ansiava fazer. Porque não podia confiar em si mesma perto dele, nem por um


instante. Porque precisava fazê-lo ir embora, custasse o que custasse. Todavia, o jeito como ele a olhava indicava que Rafael não tinha a menor intenção de ir embora. – Seria uma obra de ficção, então. – Ela conseguiu falar agora. – Se você escrevesse um livro. Porque nenhuma dessas coisas aconteceu comigo. O rosto dele mudou, então. A expressão assombrada dissipouse, e um brilho mais suave surgiu nas profundezas dos olhos escuros. – Peço desculpas – murmurou ele, numa voz tão terna que arrepiou os pelos do corpo de Lily, embora ela tivesse se impedido de tremer em reação. – Quem você disse que era? – Não tenho certeza se quero compartilhar informações pessoais com algum louco na rua. – Eu sou Rafael Castelli – disse ele. – Se você não me conhece, como alega, os detalhes pertinentes seriam os seguintes... Sou o filho mais velho de Gianni Castelli e herdeiro da antiga fortuna Castelli. Estou trabalhando como diretor-geral da Castelli Wine Company, renomada mundialmente por minha perspicácia nos negócios. Não persigo mulheres nas ruas. Não preciso fazer esse tipo de coisa. – Porque homens ricos são tão famosos por seus comportamentos racionais? – Porque, se eu tivesse o hábito de abordar mulheres estranhas na rua, isso já teria sido notado antes – retrucou ele secamente. – Suspeito que países pensariam duas vezes antes de me deixar atravessar suas fronteiras.


Lily mudou de posição e tentou passar uma expressão confusa. – Eu realmente acho que deveria chamar uma ambulância. O que você fala não faz sentido. – Não há necessidade. – Ele soou mais italiano do que um momento atrás, o que a deixou nervosa. Isso e a rigidez no maxilar de Rafael eram as únicas dicas da raiva dele, mas ela sabia que estava lá. Podia senti-la. – Eu mesmo ligarei para o serviço de emergência. Você foi reportada como morta, cinco anos atrás, Lily. Realmente acha que eu serei a única pessoa interessada em sua ressurreição? – Eu preciso ir. Ele estendeu uma mão e fechou-a sobre o topo da porta do carro, como se pretendesse mantê-la ali simplesmente segurando o veículo no lugar. O pior era que ele provavelmente conseguiria. – Em hipótese alguma eu a deixarei sair da minha vista. Lily o encarou, uma guerra se construindo em seu interior, que ela esperava fervorosamente que não estivesse visível no seu rosto. Ele tinha de ir embora. Tinha. Não havia outra opção. Mas aquele era Rafael. Ele nunca fizera uma única coisa que não quisesse desde que ela o conhecia... mesmo quando parecera mais impassível do que o homem que estava a sua frente agora, irradiando um tipo de autoridade que Lily não queria investigar mais profundamente. – Meu nome é Alison Herbert – repetiu ela. Inclinou a cabeça para lhe encontrar o olhar, então lhe contou a história de Alison com todas as suas particularidades... exceto por um detalhe crucial. – Eu sou do Tennessee. Nunca estive na Califórnia e não


fiz faculdade. Moro numa fazenda fora da cidade, com minha amiga e proprietária, Pepper, que dirige um canil e uma creche. Eu passeio com os cachorros. Brinco com eles. Limpo a sujeira deles e moro num pequeno chalé lá. Tenho feito isso há anos. Não sei nada sobre vinho, e, para ser honesta, prefiro uma boa cerveja. – Ela deu de ombros. – Não sou quem você pensa que sou. – Então, você não terá problema em se submeter a um teste de DNA para me deixar tranquilo. – Por que diabos seu estado mental me interessaria? – Lily tem pessoas que se importam com ela. – O dar de ombros de Rafael pareceu muito mais letal do que o seu, mais uma arma do que um gesto. – Há questões legais. Se você não é a mulher que eu juraria que é, prove. – Ou eu poderia pôr a mão no meu bolso e pegar a carteira de motorista que prova que sou exatamente quem digo ser. – Carteiras de motorista podem ser forjadas. Exames de sangue são muito mais confiáveis. – Eu não vou fazer um teste de DNA porque algum louco na rua acha que eu deveria – retrucou Lily. – Ouça, fui mais do que gentil, considerando o fato de que você me agarrou, me apavorou e... – Foi pavor o que eu provei na sua língua? – A voz dele era como seda, deslizando por ela, demolindo suas defesas. Lembrando-a novamente por que esse homem era mais perigoso do que heroína. – Achei que tivesse sido alguma outra coisa. – Afaste-se deste carro – Lily ordenou. Não podia se permitir reagir. Não podia deixá-lo ver que ele mexia com ela. – Eu vou entrar e partir.


– Nenhuma dessas coisas vai acontecer. – O que você quer? – perguntou ela irritada. – Já lhe disse que eu não sei quem você é! – Eu quero os últimos cinco anos de minha vida de volta – respondeu ele, numa voz que soou alta na quietude da rua. – Quero você. Tenho perseguido seu fantasma por meia década. – Eu não sou... – Eu fui ao seu funeral. – A voz aprofundou-se, penetrando-a. Deixando-a trêmula. – Fiquei lá, fingindo ser apenas seu irmão de criação, nada mais. Como se meu coração não tivesse sido arrancado do meu corpo e se estraçalhado nas pedras onde seu carro caiu da estrada. Eu não dormi por meses, por anos, imaginando você perdendo o controle da direção e caindo... – Ele parou, pressionando os lábios. Quando falou novamente, a voz estava rouca: – Toda vez que eu fechava os olhos, via você gritando. Lily nunca saberia dizer como ficou ali, olhando para ele, como se ele estivesse falando de outra pessoa. Ele está falando de outra pessoa, disse a si mesma com ferocidade. A Lily Holloway que Rafael conhecia realmente morrera naquele dia. Jamais voltaria. E o Rafael que ela conhecera nunca se importara muito com ela... ou com qualquer coisa. A quem ele estava enganando? Ela havia sido uma das muitas mulheres dele na época, e aceitara aquilo, porque, o que mais pudera fazer? Tinha aprendido a se rebaixar a homens horríveis quando ainda estava no colo de sua mãe. – Sinto muito. – Ela conseguiu dizer. – Por todos os envolvidos. Isso parece horrível.


– Sua mãe nunca se recuperou. Mas Lily não queria falar sobre sua mãe. Sua mãe brilhante, frágil e muito ausente, que tremera diante do menor vento, suscetível a todas as tempestades emocionais que lhe aconteciam. Sua mãe, que tinha se automedicado com combinações perigosas de remédios, sempre com o auxílio de um ou outro médico charlatão. – Você sabia que ela morreu 18 meses atrás? – continuou Rafael. – Isso não teria acontecido se ela soubesse que a filha ainda estava viva. Isso deixaria cicatrizes profundas, Lily sabia. Mas ela não se abalaria. O que sentia sobre sua mãe negligente era fraco em comparação ao que possuía para se manter segura ali. – Minha mãe está na cadeia – disse ela, e não sabia como conseguia parecer tão equilibrada. – A última notícia que tive foi que ela encontrou Jesus, pela terceira vez. Quem sabe, dessa vez, ela não O perca. – Isso é tudo mentira. – Rafael era tão intenso; o olhar, tão penetrante. Lily temia que ele visse através dela, visse tudo. – O que não entendo é como você imagina que pode falar essas coisas na minha cara. Não pode realmente pensar que vou acreditar, pode? Lily não sabia o que poderia ter acontecido então. Eles estavam num impasse, e ela não tinha ideia de como sair daquela situação... mas então ouviu vozes chamando-a do outro lado da rua. Dois dos clientes de Pepper estavam lá, um casal que a chamou de Alison e a cumprimentou educadamente, enquanto ela se mantinha imóvel, congelada com terror, esperando que


eles perguntassem por Arlo. Mas, quando eles o fizeram, o que foi inevitável, porque ali era o Sul e as pessoas ainda levavam bons modos a sério, ela percebeu que não havia necessidade de pânico. O homem ao seu lado não moveu um músculo. E por que o faria? Não era como se Rafael conhecesse aquele nome. Não poderia saber o que significava. Ela ficou aliviada quando o casal foi embora. – Espero que isso tenha esclarecido as coisas para você – murmurou ela. – Porque eles a chamaram por esse nome falso? – questionou Rafael. – Perguntas apenas levam a mais perguntas. Você está vivendo aqui por algum tempo, claramente. Tornou-se parte desta comunidade. – A expressão dele era dura. Imperdoável. – Não tinha intenção de voltar algum dia, tinha? Estava contente em nos deixar sofrer pela sua morte, como se fosse real. Ele soltara a porta do carro, e Lily bateu-a, então, ciente dos olhos escuros que a encaravam. Ela o ignorou, trancando o carro novamente e voltando em direção à rua do comércio, onde haveria luzes e pessoas. Mais pessoas que a conheciam. Mais pessoas para colocar entre eles e usar como barreira. – Aonde vai? – perguntou ele em tom agressivo. – É isso que você faz agora, Lily? Foge? Onde eu a acharei da próxima vez... andando pelas ruas do Paraguai? Moçambique? Usando outro nome falso? Ela continuou andando, e ele a alcançou, o que não ajudava em nada. A proximidade a fazia lembrar muita coisa que era melhor ser esquecida. Coisas que apenas machucariam. Lily manteve os olhos à frente e disse a si mesma que o tempo frio fazia seus olhos arderem. Nada mais.


Tinha de haver um jeito de escapar disso. De livrar-se dele. Ela precisava manter Arlo seguro. Aquilo era a única coisa que importara nos últimos cinco anos, e era a única coisa que importava agora. Sentiu-se mais segura quando eles se juntaram à multidão da rua comercial. – Nós vamos fazer compras? – A voz de Rafael era sardônica. – Isso me lembra muito mais a pequena herdeira solitária que eu conheci um dia. – Eu pensei em beber alguma coisa quente e sair do frio por um momento – disse ela, recusando-se a reagir ao que ele falara. Ela não era uma herdeira solitária. Para começo de conversa, houvera pouco para herdar, além da casa de sua mãe. Mas a pobre garotinha rica nesse cenário fora tediosa para Rafael, que era adorado pelas atrizes de terceira categoria, pseudoestrelas de programas de televisão e uma variedade de modelos de lingerie. Haviam sido as mulheres com quem ele desfilara em público. As mulheres que ele levara para casa, as mulheres com quem provocara Lily, com todas aquelas férias intermináveis em família, no Lago Tahoe, deixando-as esfregar seus corpos melhorados por todos aqueles procedimentos de beleza nele, então fazendo Lily admitir seu ciúme, antes que ele usasse a boca e seus dedos habilidosos com ela, enquanto lhe roubava alguns momentos contra uma porta trancada. Ele era um homem terrível, ela lembrou-se, enquanto eles desviavam de uma criança num skate. Tinha sido horroroso com ela, e pior, ela permitira. Tudo entre eles fora errado. Lily detestava quem havia sido perto dele. As mentiras que ela lhe


contara, os segredos que guardara. Detestara aquela vida na qual estivera presa. Recusava-se a voltar a essa situação. Recusava-se a aceitar que seu único destino era se tornar sua mãe triste, de uma maneira ou de outra. Recusava-se a deixar que o veneno daquela vida, daquelas pessoas, infectasse Arlo. Recusava-se. Lily acelerou os passos e não esperou para ver se Rafael estava seguindo-a – sabia que ele estava, podia senti-lo em seus calcanhares, como um agente da destruição –, simplesmente andando sem parar, até chegar a seu Café favorito, então abriu a porta e entrou. E colidiu com outro corpo masculino. Ouviu um palavrão em italiano que Rafael lhe ensinara quando ela era adolescente, e saltou para trás, apenas para levantar a cabeça e encontrar outro par daqueles olhos Castelli escuros. Droga. Luca, três anos mais novo que Rafael. O irmão de criação mais quieto e mais firme, segundo sua lembrança, mas então ela nunca vira quase mais nada além de Rafael. Luca parecia ter levado um murro. Lily sentia como se tivesse recebido o mesmo golpe. Poderia ter sido possível convencer apenas Rafael de que ela era outra pessoa... ou assim ela estivera desesperada para acreditar durante todo o caminho para lá. Mas convencer os dois irmãos Castelli? Impossível. Ela estava completamente encrencada. – Ah, sim – falou Rafael atrás dela, o tom sarcástico mais ardente que o calor do Café ou o choque no olhar do irmão. – Luca, lembra-se de nossa falecida irmã de criação, Lily? Descobri


que ela está viva e aqui na Virgínia, esse tempo todo. Sã e salva, como você pode ver. – Eu não sou Lily – insistiu ela, embora suspeitasse que aquilo fosse mais desespero do que estratégia, especialmente com ambos os homens encarando-a com expressão zangada. – Estou cansada de repetir isso. Os olhos de Rafael emitiam faíscas de fogo quando ele a conduziu para longe da porta do Café, com uma mão em seu braço, da qual ela se libertou rapidamente. Mas talvez isso tivesse sido ainda menos trágico, pensou quando ele sorriu... como se soubesse exatamente o que seu toque lhe causava, mesmo tantos anos depois. Como se ele pudesse sentir a lambida daquele fogo tão bem quanto ela. Rafael voltou a atenção para seu irmão. – Embora, como você vai notar, ela parece estar sofrendo de um caso conveniente de amnésia. O que não era uma solução, mas era a melhor resposta para sua situação atual, é claro. E foi como Lily decidiu, naquele momento, dentro do Café lotado, que amnésia era exatamente do que ela sofria. Amnésia total.


CAPÍTULO 3

– ISSO É impossível. – Foi tudo que Luca disse, enquanto Lily fingia que não estava afetada pelo choque no rosto dele. – Observe – respondeu Rafael, o olhar fixo em Lily. – Eu lhe trago notícias de conforto e alegria. Nosso próprio milagre de Natal. – Como? – questionou Luca, parecendo mais abalado do que ela alguma vez o vira. O que a fez se sentir mal. Mas não havia tempo para pensar nisso. Os três andaram até uma fileira de bancos diante da janela que dava para a rua e todo o esplendor das decorações natalinas. Os irmãos Castelli estavam ali em toda sua altura, olhando-a com muita emoção e intensidade. Ela tentou parecer imperturbável. Ou, talvez, um pouco preocupada... do jeito que uma estranha ficaria. – Como ela conseguiu sobreviver ao acidente? – perguntou Luca. – Como ela desapareceu por cinco anos, sem um único arranhão?


Lily não pretendia contar para nenhum deles como aquilo fora fácil. Tudo que precisara fazer tinha sido ir embora. E então nunca, jamais revisitar seu passado. Nunca olhar para trás. Nunca revisitar quaisquer das pessoas ou lugares que conhecera antes. Tudo que precisara era de uma boa razão para fingir que não possuía história... então, seis semanas depois de sua decisão impetuosa, feita no calor do momento, descobrira que tinha a melhor razão de todas. Mas como poderia explicar isso para dois italianos que podiam rastrear toda a sua linhagem? Mesmo se ela quisesse explicar. E ela não queria. Você não pode, lembrou a si mesma com firmeza. Esse era o problema com a família Castelli. Qualquer exposição a eles, e ela pararia de fazer o que sabia que deveria fazer, e começaria a fazer o que eles quisessem. – Estranhamente – começou Rafael, ainda estudando-a enquanto falava com Luca –, ela está alegando que é uma pessoa diferente, e que nada disso lhe aconteceu. – Ela também está aqui, na frente de vocês, e pode falar por si mesma – declarou Lily. – Eu não estou alegando nada. Sua confusão sobre a minha identidade é problema seu, não meu. Você me atacou numa rua escura. Acho que estou sendo muito generosa, considerando as circunstâncias. – Você a atacou? – Luca arqueou as sobrancelhas para o irmão. – Isso não combina com seu jeito. – É claro que não. – Mas Rafael não tirou os olhos de Lily, enquanto dizia isso. Dentro do Café iluminado, ela podia ver os reflexos dourados naqueles olhos escuros, que um dia a tinham fascinado tanto. E podia sentir a boca de Rafael na sua novamente, uma coisa


luminosa em meio àquele dezembro escuro. Disse a si mesma que o que a tocara então tinha sido uma memória, nada mais. – Eu não acho que... – Ela quase falou seu irmão, mas detevese a tempo. Uma estranha saberia que aqueles homens eram irmãos, numa única olhada? Ela achava que a semelhança física era como um grito num cômodo silencioso... inconfundível e óbvia. A altura imponente de ambos, os ombros fortes e todos aqueles músculos que os faziam parecer esculpidos à perfeição. Os cabelos pretos grossos que, quando não penteados, flertavam com a tendência de enrolar. Luca usava os seus desalinhados, sempre os penteando para trás com os dedos. Rafael, por outro lado, parecia algum tipo de monge letal, com os cabelos tão curtos e aquela expressão séria no rosto. Mas eles compartilhavam a mesma boca carnuda, e riam da mesma forma cativante... usando o corpo inteiro, como se tivessem sido colocados no mundo para se entregarem ao prazer. Não que ela pudesse imaginar essa versão mais velha e furiosa de Rafael rindo de alguma coisa. Voltou sua atenção para Luca. – Eu acho que seu amigo não está bem. – Uma bela tática – comentou Rafael. – Amigo. Muito convincente. Mas eu não sou o único que está em dúvida sobre a própria condição. – Que bom que você está aqui – continuou Lily, ainda olhando para Luca. – Eu não tenho certeza, mas talvez ele precise de atenção médica.


Rafael falou alguma coisa numa torrente de italiano que fez Luca piscar, então assentir. Claramente, Rafael tinha dado uma ordem. E parecia que, naquela encarnação da família Castelli, Rafael esperava que suas ordens fossem seguidas, e, mais impressionante, elas foram. Porque Luca virou-se em direção a um casal que ela não notara, sentados a alguns bancos de distância, observando a interação dos três em diferentes graus de interesse, e começou a falar com eles de uma maneira claramente designada a voltar a atenção do casal para ele. E desviá-la de Lily e Rafael. – Eu vou deixá-lo nas mãos do seu amigo agora. – Lily falou para Rafael, numa voz alegremente falsa. Rafael sorriu outra vez, enviando uma onda de eletricidade para cada célula do corpo dela. – Você acha mesmo? – Eu tenho uma vida. – Ela não devia ter falado aquilo. Soava defensiva. Uma estranha não seria defensiva, seria? – Eu tenho... – Lily precisava ser cuidadosa – coisas para fazer que não incluem cuidar de estranhos na rua e suas confusões sobre assuntos que não têm nada a ver comigo. – Por que você veio para cá? – perguntou Rafael muito calmamente, quando ela podia ver raiva, dor e alguma coisa mais nebulosa no olhar dele. Talvez fosse por isso que ela não saía dali. Sentia a mesma nebulosidade em seu interior, também. A culpa da qual não conseguia se livrar. Mas Lily fingiu não entender a pergunta. – Este é meu Café favorito em Charlottesville. Pensei que talvez um café Moca com menta pudesse lavar toda aquela estranheza na rua, e dar-lhe tempo para ficar sóbrio.


Divertimento iluminou os olhos escuros e a fez tremer. – Eu estou bêbado? – Não sei o que você está. Não sei quem você é. – Assim você diz. Lily acenou uma mão no ar. – Acho que isso deve ser coisa de homem rico. Vocês acham que veem alguém que conhecem na rua, resolvem segui-lo e ainda querem que ele admita que é aquela pessoa, apesar de sua insistência... e da prova documentada... de que é outra pessoa. Eu acabaria na cadeia, se tentasse isso... ou num hospital psiquiátrico. Mas imagino que isso não seja uma preocupação para alguém tão rico como você. – Meu patrimônio interessou a essa sua memória rompida? – O tom de voz dele era ríspido. – Descubro que este é frequentemente o caso. É incrível como muitas mulheres que nunca conheci podem estimar minha exata fortuna. – Você me disse que era rico. – Ela o estudou. – Sem mencionar que não está exatamente vestido como um vagabundo, está? – Quando esta representação vai acabar? – perguntou ele suavemente. – Agora. – Lily endireitou a coluna. – Eu vou para casa. E não estou lhe perguntando se posso. Estou informando-o. Sugiro que você tenha uma boa noite de sono... talvez, então, pare de ver coisas. – O interessante sobre isso, Lily, é que esta noite é a primeira noite em cinco anos que eu não vi um fantasma quando pensei ter visto você. – Ele realmente parecia achar aquilo divertido. Ela


não achava. – Você é muito real e está parada à minha frente, finalmente. Ela forçou um sorriso. – Dizem que todo mundo tem um sósia. – Se eu abrisse seu casaco e olhasse debaixo de sua saia agora, o que encontraria? – perguntou ele, daquele jeito suavemente ameaçador. – Uma queixa de agressão – retorquiu ela. – E uma potencial sentença de prisão. A boca dele se torceu em algo que não era bem um sorriso. – Um lírio vermelho aninhado numa videira preta, subindo pelo seu quadril direito e estendendo-se por sua lateral, talvez? O olhar dele era tão intenso que tirou o fôlego de Lily. E ficar parada lá foi muito mais difícil do que deveria ter sido. Imóvel. Impedir-se de tocar sua lateral em reconhecimento, recuando como se ele a tivesse pego, ou visto algum de uma centena de outros sinais que lhe mostrariam que ela era culpada. Não que Rafael parecesse estar em dúvida sobre sua culpa. Ou sua identidade. – Há diversos bons psiquiatras na área de Charlottesville – disse ela, quando estava certa de que poderia falar sem aquela perturbação em sua voz. Apenas com a educação que ofereceria para qualquer pessoa que encontrasse, com um pouco de compaixão por alguém tão obviamente louco. – Tenho certeza de que um deles o receberia para uma sessão de emergência. Seu patrimônio, sem dúvida, ajudará nisso. Ele realmente sorriu então, embora não fosse nada como os velhos sorrisos de Rafael, tão brilhantes e livres que ele poderia ter iluminado a Europa inteira, se quisesse. Aquele era um


sorriso focado. Determinado... e parecia tocar em seu interior como uma carícia. Ela estava tão ocupada em dizer a si mesma que ele não a afetava que não saiu do caminho depressa o bastante. Nem mesmo viu o perigo até que fosse tarde demais. A mão de Rafael estava nela muito rapidamente, os dedos roçando-lhe a testa, e Lily não sabia como reagir, enquanto sensações a inundavam. Uma estranha recuaria? Ou ficaria parada ali, congelada em choque e incredulidade? – Tire sua mão de mim imediatamente – disse ela entre dentes, escolhendo a opção congelada... porque era assim que estava. Não achou que conseguiria se mexer, se quisesse. Estava enraizada ao solo, e disse a si mesma que era ultraje. Podia sentir o toque dele em todos os lugares. Todos os lugares. Quente, excitante e perfeito. Como se, todos aqueles anos depois, Rafael apenas precisasse tocá-la para provar que ela estava vivendo num mundo frio e sem cor sem ele. Aquilo era calor. Aquilo era cor e luz e... Aquilo era perigoso!, tudo em seu interior gritou em alarme. – Você adquiriu esta cicatriz esquiando em Tahoe, num inverno – murmurou ele, a voz baixa agora, como se aquelas fossem palavras de amor ou sexo, em vez de acusação, enquanto ele traçava a pequena marca que ela há muito esquecera que estava lá. O efeito era narcótico. – Você bateu num bloco de gelo e, logo depois, numa árvore. Teve sorte de não quebrar nada, exceto um esqui. Teve de descer a montanha andando, e estava com medo da família, quando aparecesse no chalé, sangrando. Ele se aproximou mais, os olhos escuros intensos focados na pequena cicatriz que Lily nem via mais quando se olhava no


espelho. E, certamente, a estranha que estava fingindo ser teria ficado paralisada como ela estava, então... vacilante sobre a necessidade de correr gritando na rua e o desejo de permanecer onde estava. Certamente, qualquer uma faria o mesmo. Qualquer uma para quem este homem sempre foi um terrível vício, uma voz falou em sua cabeça. Mas ela ainda não se mexeu. – E eu tive de fazer as observações sarcásticas do irmão mais velho que nunca fui para você – murmurou Rafael com voz rouca. – Fingindo para nossos pais. Até mais tarde. Lily piscou. Lembrava-se de mais tarde. Ele usara a chave que ela não deveria ter lhe dado de seu quarto de hotel, e a encontrara no banho. Ela podia se lembrar dos detalhes. Do vapor. Da água quente contra sua pele gelada. Rafael entrando no pequeno cubículo de vidro, ainda inteiro vestido, a boca estranhamente séria e um brilho duro nos lindos olhos. Então ele a beijara, e Lily se derretera contra ele do jeito como sempre fizera. Mãos grandes tinham deslizado sobre a curva de seus quadris, sobre a tatuagem que ela alegava que detestava e ele alegava que amava, até que Rafael se livrara da calça molhada, erguera-a e a tomara com uma investida poderosa. – Nunca mais me assuste assim – murmurara ele em seus cabelos, então levara ambos a um esquecimento louco. Depois, ele a carregara para fora do box, deitando-a na cama do hotel, e fizera tudo de novo. Duas vezes. Lily achara aquilo muito romântico na época, mas então tinha sido uma garota patética de 22 anos sob a magia daquele homem naquele inverno. Agora, isso não passava de mais uma memória


que ela não deveria estar tendo, com um homem que nunca deveria ter tocado. – Essa é uma história muito perturbadora com alguma dinâmica familiar problemática – disse ela agora, tirando a mão dele de seu rosto. – Mas isso ainda não faz de mim essa outra mulher, independentemente de quantas histórias você contar para se convencer do contrário. – Então você precisa fazer um teste de DNA e provar isso. – Obrigada, mas eu passo. – Não foi uma sugestão. – Foi uma ordem? – Ela riu então, e manteve a risada leve, de alguma forma. Percebeu o olhar de Luca, e o daquelas pessoas com ele, e soube que ficara tempo demais. – Tenho certeza de que você está acostumado a dar ordens. Mas isso também não tem nada a ver comigo. – Ela capturou o olhar de Luca e forçou um sorriso. – Ele é todo seu. Lily começou a ir para a porta, esperando que Rafael a detivesse. Então disse a si mesma que não se sentiu desapontada quando isso não aconteceu. Abriu a porta, mas não pôde evitar olhar por sobre o ombro. Rafael permanecia onde ela o deixara e observava-a. – Mi appartieni – disse ele. E ela entendia aquele pouco de italiano. Ele lhe ensinara muito tempo atrás. Você pertence a mim. Lily fungou, o ar frio da noite batendo em seu rosto. – Eu não falo espanhol – conseguiu dizer, fingindo que não podia distinguir entre espanhol e italiano. – Eu não sou ela.


UMA VEZ que ela desapareceu na noite da Virgínia, tudo dentro de Rafael parou. Desde o zumbido insano na cabeça quando percebera que era realmente ela, até uma clareza que não podia se recordar de ter sentido antes. Seu irmão e a negociante de vinhos estavam conversando, e seu assistente estava tentando lhe mostrar alguma coisa em sua tela do celular, mas Rafael acenou uma mão e ignorou aquilo. – Há um canil fora da cidade dirigido por alguém chamada Pepper – falou ele para seu assistente em italiano. – Ache-o. – Voltou seu olhar para Luca. – Ligue para o médico pessoal de nosso pai e pergunte-lhe como uma pessoa poderia ter saído andando daquele acidente cinco anos atrás, e que tipo de ferimentos na cabeça ela poderia ter adquirido. – Você acredita que ela está mesmo com amnésia? – perguntou Luca. – Parece coisa de novela. Mas é Lily, certamente. – Não há dúvida quanto a isso – concordou Rafael. Soubera que era Lily desde o momento que a vira passando por aquela janela. Todo o resto havia sido mera confirmação de uma verdade que ele já sabia. Luca o encarou por um momento. – Seu sofrimento pela morte de Lily foi extremo. Eu sou mais próximo dela em idade e fui menos afetado. Você alterou sua vida inteira depois do ocorrido, como se... Rafael apenas olhou para seu irmão, as sobrancelhas arqueadas, desafiando-o a terminar a sentença. Ele não sabia o que Luca viu no seu rosto, mas o homem mais novo apenas assentiu, deu um meio sorriso e tirou o celular do bolso.


Levou muito pouco tempo para obter as respostas que ele pedira, dispensar a negociante de vinhos e sair à procura de Lily, indo para o carro onde seu assistente esperava por eles, uma quadra fora da área para pedestres. – Se ela está fingindo essa perda de memória – Luca falou para Rafael quando eles entraram no banco de trás do veículo –, já deve ter ido embora. Por que ficaria? Obviamente não quer ser encontrada. Rafael manteve o olhar fora da janela, enquanto o carro percorria as ruas, e então os campos. Não achava que Lily já tivesse se mudado, baseado no mesmo instinto que lhe dizia que ela estava fingindo a coisa toda. Ela fora tão teimosa ao dizer que era a tal de Alison. Ele pensou na garota teimosa que conhecera, a garota que enfrentaria a situação, em vez de fugir... Mas a verdade é que você não a conhece, uma voz interior sussurrou. Porque a garota que conhecia nunca teria abandonado você. – Como família, nós temos a responsabilidade de determinar se Lily não está sofrendo de algum tipo de estresse póstraumático causado pelo acidente – disse Rafael. – No mínimo. As palavras saíram tão facilmente, quando, no fundo, ele sabia que eram desculpas. Lily estava viva. Isso significava que ele faria qualquer coisa necessária para reivindicá-la, como deveria ter feito cinco anos atrás. Mas não queria contar isso ao seu irmão. Ainda não. A paisagem campestre distante do centro de Charlottesville era linda. Árvores com seus galhos vazios erguiam-se sobre campos ainda brancos da última nevada. Era uma terra rica e cultivável, Rafael sabia. Lily sempre adorara os extensos


vinhedos Castelli, ao norte de Sonoma Valley. Talvez ele não devesse se surpreender que ela encontrara um lugar parecido para viver. Videiras e uvas tinham sido uma parte da vida de Lily quando ela tinha 16 anos e não estava nada feliz que a mãe ia se casar de novo. Ainda menos feliz com ele. Rafael podia lembrar tudo tão claramente, enquanto o carro percorria os campos congelados da Virgínia. Estivera com 22 anos. Os pais deles os haviam unido no château que servia como centro de operações de Castelli Wine e principal vinícola nos Estados Unidos. E Francine Holloway fora exatamente o que eles tinham esperado. Linda, o corpo delgado e frágil, com cabelos muito loiros e olhos azuis da cor do céu. Ela tremera e falara numa voz suave que fazia certo tipo de homem se inclinar para mais perto. O pai de Rafael era precisamente esse tipo. Ele adorara resolver problemas de mulheres frágeis como Francine... uma preferência que datava de antes da mãe de Rafael, que tinha passado muito anos, antes e depois do divórcio, internada numa clínica sofisticada na Suíça. Rafael imaginara que a filha adolescente seria como a mãe. Mas Lily era forte. Divertida, também, pensara ele ao vê-la se sentar rigidamente na sala de estar formal do château e manter uma carranca durante as apresentações. – Você não parece desejar felicidades para nossos pais – provocara ele, depois de um jantar infinito, durante o qual seu pai fizera um discurso que poderia ter sido tocante, se Francine não fosse a quarta esposa do velho homem, e se Rafael não o tivesse ouvido antes.


– Eu não me importo nem um pouco com a felicidade de nossos pais – retorquira ela, sem olhá-lo. Aquilo tinha sido diferente. A maioria das garotas da idade dela dava uma olhada para ele e se derretia aos seus pés. Aquela, aparentemente imune ao seu charme, fungara, o olhar em algum lugar a distância, através das grandes janelas. – Assim como imagino que eles não se importam com a nossa. – Eu tenho certeza de que eles se importam – dissera Rafael, pensando que deveria tranquilizar os medos infantis dela com a sabedoria de sua idade. – Você precisa lhes dar uma chance de superarem quão perfeitos eles imaginam que são um para o outro, de modo que possam prestar atenção as suas vidas novamente. Mas Lily virara-se para encará-lo, a expressão desdenhosa. Ela usava um vestido que não mostrava qualquer indecência, entretanto havia alguma coisa sobre o jeito que ela tombava aqueles cabelos loiro-avermelhados em todas as direções que fizera Rafael sentir vontade de tocá-la. Ele ficara horrorizado. – Eu não preciso de um irmão mais velho – falara ela. – Não quero conselhos, principalmente de alguém como você. – Alguém como eu? – Alguém que tem encontros amorosos puramente para acabar em programas baratos de televisão, o que, tenho certeza, mantém você superpopular no mundo dos ricos e enfadonhos. Parabéns. E não preciso que você me informe sobre os padrões ridículos de minha mãe. Eu os conheço muito bem, obrigada. Seu pai é o último de uma longa fila de cavaleiros brancos que nunca conseguiram salvá-la. O casamento não vai durar.


Ela se virara de volta para a vista, obviamente dispensando-o, mas Rafael não era acostumado a ser dispensado. Muito menos por adolescentes, que geralmente gostavam de segui-lo por toda parte, dando risadinhas. Ele não pudera imaginar Lily Holloway fazendo nada do tipo. – Ah, mas eu acho que você descobrirá que vai durar. Ela havia suspirado, sem olhá-lo. – Os relacionamentos de minha mãe têm a validade de um produto orgânico. – Mas meu pai é um Castelli. – Ele apenas dera de ombros quando ela o encarara, torcendo o nariz, como se ele fosse mais do que um pouco desagradável. – Nós sempre conseguimos o que queremos, Lily. Sempre. Sentado no banco traseiro de seu carro, que pegara uma estradinha particular agora, Rafael ainda não sabia por que dissera aquilo. Ele soubera então? Suspeitara o que estava por vir? Lily o detestara abertamente por mais três anos, o que a distinguira de qualquer outra mulher do planeta. Ela o insultara, rira e zombara dele, e o dispensara um milhão de vezes. Ele dissera a si mesmo que ela era antipática. Que estava com ciúme. – Ela é insuportável – falara ele para Luca uma vez, quando Lily tinha passado uma noite cantando músicas antigas para ele e sua namorada da época. – Mas sua namorada age como se fosse velha – replicara seu irmão, com um sorriso preguiçoso. – Lily não está errada. E então houvera aquela festa de Ano-Novo no château em Sonoma. Talvez Rafael tivesse bebido um pouco de champanhe Castelli demais. No começo, convencera-se de que estivera bêbado, e que ela também deveria ter estado, mas tivera longos


cinco anos, pensando que Lily estava morta, para admitir que isso não era verdade. Soubera exatamente o que estava fazendo quando ela passara por ele no corredor superior da ala da família, naquele vestido curto demais. O cheiro de Lily o enlouquecera. – Se você está procurando Calliope – dissera ela, conseguindo fazer o nome ridículo da namorada dele parecer um insulto –, ela provavelmente está na sala de brinquedos com as outras crianças. Seu pai contratou um serviço de babá. Ele obviamente estava esperando você. Rafael soubera que a última coisa que devia ter feiro era segurar-lhe a nuca e puxar-lhe a boca para a sua. Imaginara que a beijaria, ela o socaria, e ele riria, dizendo-lhe que, se ela não estava disposta a tomar o lugar de Calliope, deveria ficar quieta. Mas um toque da boca de Lily na sua, e tudo tinha mudado. Tudo. E você arruinou isso, pensou ele agora, quando uma velha casa de fazenda surgiu à vista no fim da estradinha. Porque é isso que faz. O carro parou diante da casa e foi prontamente cercado de uma multidão de cachorros latindo. Rafael desceu quando uma mulher de cabelos grisalhos saiu da casa e andou na direção deles, numa tentativa fracassada de reunir os cães. Todavia, apesar dos latidos e do barulho geral, Rafael soube o momento que Lily apareceu no degrau, como se tudo tivesse se calado. Ele observou-a. Ela não estava mais usando o casaco e o cachecol, e ele não pôde evitar traçar as linhas elegantes daquele corpo magnífico com os olhos. O jeans justo fez sua boca aguar, e a blusa de manga comprida abraçando os seios o fez perceber


como estava excitado por ela... mesmo entre todos aqueles animais. Mesmo se ela parecesse horrorizada em vê-lo. – Isso é perseguição! – acusou ela da escada. – Você não pode me seguir até minha casa. Não tem direito algum! Antes que Rafael pudesse responder, uma figura passou correndo por ela, e teria descido os degraus, se Lily não o tivesse segurado. Um menino. Um menino pequeno. – Eu lhe disse para ficar do lado de dentro, independentemente de qualquer coisa. – Lily ralhou com ele. – Arlo não tem nem cinco anos – falou a mulher mais velha de algum lugar onde, Rafael estava vagamente ciente, conseguira encurralar os cachorros. Mas ele não podia tirar os olhos de Lily. E do menino. – Ele não entende “independentemente de qualquer coisa”. O garotinho olhou para a mulher mais velha, então olhou para Lily, que ainda o segurava pelo colarinho da camisa. – Desculpe, mamãe – murmurou ele de modo angelical, então sorriu para ela. Era um sorriso travesso, cheio de luz e alegria, e a expectativa de que seus pecados fossem esquecidos num instante, simplesmente porque ele assim queria. Rafael conhecia bem aquele sorriso. Já o vira muitas vezes no rosto de seu irmão durante toda a vida de Luca. E o vira em seu próprio espelho milhares de vezes mais. Seu coração parou de bater. Então recomeçou com uma velocidade que poderia tê-lo feito desmaiar.


– Você não tem o direito de estar aqui – disse Lily novamente, as faces vermelhas e os olhos brilhando, e Rafael não entendia como podia querê-la tanto. Nunca entendera. E o desejo estava de volta, como se nunca tivesse desaparecido, um desejo tão profundo que era como uma dor em seu interior. Porém, isso não importava mais. Nada disso importava. O garotinho não se parecia com a mulher loira que ele chamara de mãe. Ele tinha os cachos escuros de Rafael e os olhos escuros dos Castelli. Parecia-se com cada foto que Rafael vira de si mesmo quando criança, espalhadas pelo lar ancestral dos Castelli ao norte da Itália. – Você está tão certa de que eu não tenho o direito de estar aqui, Alison? – perguntou Rafael, impressionado que podia falar, quando tudo em seu interior era um grito alto e longo. – Porque, a menos que eu esteja muito enganado, esse parece ser meu filho.


CAPÍTULO 4

ELES ATERRISSARAM no aeroporto particular, ao norte da Itália, na sombra das Dolomitas, logo após o amanhecer, no dia seguinte. A luz natural estava apenas começando a se tornar rosada sobre as montanhas imponentes cobertas de neve, de cada lado do vale estreito. Lily olhava pela janela, quando o avião andou pela pequena pista, sentindo como se tivesse sido golpeada no estômago. Nunca imaginara que veria aquele lugar novamente. Por anos agora, dissera a si mesma que nunca mais queria ver nada que os Castelli possuíssem, incluindo aquelas garrafas de vinho com seus rótulos distintos nas lojas de bebidas... Entretanto, não havia engano no jeito como seu coração disparou quando o avião particular tocou o solo. Não havia como negar que a sensação de chegar em casa era mais forte do que deveria ser. A noite anterior tinha sido a segunda pior noite de sua vida. Ela soubera, durante o longo trajeto de Charlottesville para a fazenda, depois que deixara Rafael naquele Café, que ele não iria desaparecer. Não Rafael. Ele podia ter sido mimado quando ela o conhecera, um ser criado da riqueza e privilégios, e mais do


que feliz em explorar ambos, a fim de alcançar seus próprios fins... mas sempre conseguira o que quisera, Lily sendo apenas mais uma das coisas que ele tomara porque podia. Ela dirigira em velocidade ao longo das estradas escuras, mal vendo a beleza do inverno do lugar que passara a chamar de lar. Perdida naquele beijo, novamente. Perdida nele. Se tivesse sido somente ela, Lily teria partido naquele momento. Teria continuado dirigindo até que se tornasse outra pessoa, em outro lugar. Tinha feito isso antes. Sabia exatamente como desaparecer sem deixar rastro. Mas não era mais uma garota desesperada de 23 anos, e havia Arlo agora. Seu garotinho lindo e encantador. Ela refletira muito durante aquela viagem, mas não podia ver como poderia desenraizar Arlo legitimamente e fazê-lo agir como se estivesse no programa de proteção à testemunha pelo resto da vida, apenas porque ela não queria lidar com o pai dele. Pai dele. Pensar em Rafael dessa forma ainda a fazia tremer. Podia lembrar quando confirmara que estava grávida, tão vividamente como se tivesse sido ontem. Ela estivera morta há seis semanas, então. Cada dia que ficara longe de sua velha vida tinha sido mais fácil do que o anterior, porque era muito mais difícil voltar. Tempo demais havia passado. Um ou dois dias, talvez duas semanas, após o acidente, ela poderia ter explicado. Mas seis semanas inteiras sem um único arranhão? Isso era intencional. Eles teriam sabido que ela desaparecera deliberadamente. Lily vira a cobertura de seu acidente de carro de um computador numa biblioteca no Texas, uma vez, mas aquilo fora


um erro que ela não repetira. Ver as pessoas que amara sofrendo sua perda a fizera se sentir um ser humano desprezível. Como poderia voltar para as vidas deles tendo causado tanta dor? O que poderia dizer? Oh, desculpem-me, pessoal, eu pensei que quisesse fugir de tudo isso, e deixar vocês pensarem que morri naquele acidente horrível pareceu uma boa ideia na época... Depois de algumas semanas sentindo-se enjoada, Lily fizera um teste de gravidez no banheiro de um restaurante de estrada, perto da fronteira de Missouri com Arkansas. Lembrava-se de cada detalhe daquela manhã de inverno. O barulho dos caminhões do lado de fora. O ar gelado que parecia penetrar seus ossos. O jeito como ela se agachara no chão sujo, olhando horrorizada para o teste positivo em sua mão... Não houvera retorno. Ela entendera ali, naquele banheiro, que, apesar de tudo – como a cerimônia memorial que eles tinham feito para ela em Sausalito, semanas depois do acidente –, voltar não era mais uma opção. Não quando estava grávida do filho de Rafael. Havia sido suficiente ruim ter se relacionado com Rafael por todos aqueles anos, apesar de saber que suas famílias não reagiriam nada bem se soubessem disso, considerando o fato de que sua mãe insistira em se referir a Rafael e Luca como seus irmãos mais velhos a cada oportunidade. Como ela poderia levar um bebê para aquela confusão doentia? Sem mencionar que não imaginava como Rafael teria se comportado diante de uma adversidade real. Ele negaria que era o pai? Ordenaria que ela terminasse a gravidez?


Lily jurara então que criaria seu filho melhor do que naquele começo horrível no banheiro de um restaurante de estrada. Que daria ao seu bebê um recomeço num lugar novo, onde sua necessidade doentia por Rafael, como os vícios variados de sua mãe, que tinham marcado a vida de Lily tão profundamente, não fosse mais um fator. A criança sempre viria em primeiro lugar, e não ela... o oposto de como fora criada. E ela fizera um bom trabalho em cumprir todas aquelas promessas, pensara na noite anterior, enquanto parava o carro na frente da casa de fazenda. Arlo saíra da casa quando ela chegara, excitado como os cachorros que o seguiram degraus abaixo. Ela abraçara o pequeno corpo quente e colocara todas suas tristezas e desculpas no modo como o apertara contra si. Porque soubera que era apenas uma questão de tempo, e, como esperado, eles nem haviam começado a jantar, quando o carro parara do lado de fora. Lily tentara conter o inevitável, mas não tivera sucesso. Em algum nível, soubera que aquilo aconteceria desde que vira Rafael na rua. E tinha sido ainda pior do que imaginara. Ela sabia que Arlo se parecia com o pai, é claro, mas uma coisa era saber, outra era ver aquilo tão de perto. Então Rafael lhe dera um olhar gelado, e Lily soubera que aquela vida estava acabada. E uma nova começaria... ela quisesse ou não. Não houvera engano na conexão entre pai e filho. Estava escrito no rosto de ambos, tão óbvio quanto o sol. E, embora Lily tivesse valentemente mantido sua história de Alison, a qual incluía uma parte sobre um namorado traficante que


convenientemente morrera depois de ajudar a fazer Arlo, Pepper envolvera-se na conversa, dessa vez. Pepper, que confirmara que sim, Alison tinha a exata tatuagem que Rafael mencionara. E, não, ela nunca conhecera uma única pessoa da vida de Alison antes de Charlottesville. E, consequentemente, não havia confirmação das histórias de Alison. Apenas o que Lily contara a ela. – Eu lhe contei o que sei – falara Lily em determinado ponto. – Tudo que sei. Lily sofrera um sério acidente de carro numa estrada costeira da Califórnia, cinco anos atrás, Rafael dissera – presumivelmente para Pepper – e Luca confirmara. O corpo dela nunca fora encontrado. Agora, eles sabiam por quê. – Como explica o fato de que eu estou aqui e não me lembro de você? – Lily demandara. – Isso não faz o menor sentido. – Eu não entendo como uma mulher poderia cair de um penhasco de Sonoma Coast, entretanto aparecer ilesa, cinco anos depois, do outro lado do país, com uma memória de uma vida totalmente distinta e um filho que é inegavelmente meu – dissera Rafael, com fúria na voz e nos olhos. – Eu apenas sei que você é a mesma mulher. Isso significa que aconteceu, faça sentido ou não. E a verdade era que não houvera necessidade de mostrar a Pepper fotos antigas de Lily, no celular, porque o jogo acabara no momento em que a mulher vira Rafael ao lado do filho. – Isso é uma coisa boa – sussurrara Pepper, abraçando Lily quando os irmãos Castelli os tinham levado embora do único lar


que Arlo conhecera. – Todos devem saber quem são realmente, querida. E este garotinho precisa do pai. Lily questionara se alguém precisava de Rafael Castelli, principalmente a criança que ela não pretendia deixá-lo corromper, mas não teria adiantado falar qualquer coisa. A situação inteira estava fora de seu controle. A única carta que ela poderia ter jogado, a fim de protelar o inevitável, seria exigir um exame de sangue... mas, para quê? Já sabia qual seria o resultado. De qualquer forma, Rafael antecipara tal questão. – Nós pegaremos o helicóptero de volta para Washington – ele a informara, friamente –, onde um médico discreto está esperando para fazer os exames de sangue necessários. Saberemos de toda a verdade biológica antes de aterrissarmos na Itália. Se tiver ocorrido algum engano, prometo que a família Castelli irá proporcionar a você e aa seu filho férias adoráveis na Itália, antes que a mandemos de volta para sua casa, sã e salva. – Maravilhoso – retorquira ela, forçando um sorriso. – Eu sempre quis conhecer Veneza. O avião parou no aeroporto Castelli, levando-a de volta ao presente. Arlo já estava pulando no assento ao seu lado, com sua usual energia, e ela não poderia culpá-lo por ter saído correndo no momento em que a porta do avião se abriu e o ar frio da montanha entrou. Lily não se apressou, mas teve de descer os degraus de metal. E colocar-se de volta na Itália. A verdade daquilo era como um golpe. O lugar era ainda mais lindo do que ela lembrava... os incríveis Alpes cobertos de branco, o céu azul com manchas corde-rosa do exultante amanhecer, e o homem que a esperava ao pé da escada, tão magnífico e perigoso.


Rafael tirou o celular do bolso no momento em que ela pisou em solo firme, ao seu lado. Lily recusou-se a olhá-lo, mas seu coração estava disparado, e, pela primeira vez na vida, achou que fosse possível desmaiar. Não ouse!, ralhou consigo mesma. E não porque desmaiar era uma fraqueza, e ela não queria mostrar fraqueza, mas porque sabia que Rafael a pegaria, e o último lugar que precisava estar era nos braços dele. Ela manteve o olhar fixo em Arlo, que estava seguindo o tio ao longo da pista de decolagem vazia. Um Land Rover preto esperava a uma distância discreta, pronto para levá-los à grande casa que ocupava diversos acres numa das extremidades do lago alpino cristalino que os locais chamavam de Lago di Lacrime. Lago de Lágrimas, pensou Lily, olhando na direção na qual sabia que o lago estava, atrás da parede mais próxima de pedras alpinas. Quão apropriado. – Os resultados dos exames de sangue chegaram, e não há mais espaço para discussão. – Rafael a informou então, a voz triunfante de um jeito que a fez se encolher. – Você é Lily Holloway. E Arlo é nosso filho. Ela deveria sentir alguma coisa forte. Pânico. Desespero. Talvez até o oposto disso... um senso perverso de alívio. Mas o que sentia era profunda tristeza. Nosso filho, ele dissera, como se eles fossem como outras pessoas. E como se houvesse alguma outra possibilidade. Como se não tivessem arruinado tanto um ao outro que, mesmo depois de cinco anos, nada houvesse mudado. Lily não achava que alguma coisa mudaria.


Eles permaneceram parados ali, num dos lugares mais deslumbrantes e isolados do mundo. E tudo que ela podia ver era o passado sombrio que os unira lá. Seu terrível vício de Rafael e o profundo egoísmo dele. Os segredos sujos dos dois. As péssimas escolhas que ela fizera para fugir dele, tão necessárias quanto imperdoáveis. Esse não era um recomeço. Era uma sentença de prisão. E a única coisa que ela sabia com certeza era que, embora Rafael fosse responsável pelo seu filho – a única coisa maravilhosa em sua vida, seu único propósito neste planeta –, ele também era a razão pela qual ela tivera de queimar todas as pontes e fugir de tudo que sempre amara. Mas, por Arlo, valia a pena. Qualquer coisa valia a pena por Arlo. O que não significava que Lily soubesse como sobreviveria à proximidade de Rafael novamente. – Eu não sei como responder a isso – disse ela, após um longo silêncio. – Não me sinto Lily Holloway. Não sei quem essa pessoa é. Certamente, não entendo quem ela foi para você. – Não se preocupe – murmurou Rafael, a voz suave, porém firme: – Eu lhe ensinarei tudo. RAFAEL NÃO tinha ideia do que fazer, agora que levara Lily e o filho dela... seu filho... para a Itália. Era uma sensação nova e distintamente desagradável. Ele ouviu seu irmão entrar no estúdio particular aconchegante que usava como escritório na velha mansão, mas não se virou da janela onde estava. Estivera ali há um tempo, ainda nutrindo o mesmo pensamento que tivera desde a Virgínia. À sua frente, o


lago alpino estendia-se para as névoas baixas da tarde que escondiam o pequeno vilarejo pitoresco que adornava as montanhas altas que se erguiam como uma fortaleza atrás, como se para protegê-lo. E muito mais perto, nos jardins abaixo, a criança de cinco anos, que era inegavelmente sua, corria em círculos em volta da mulher que alegava não se lembrar de Rafael. Ele tinha certeza de que ela se lembrava. Vira isso naqueles olhos adoráveis, como sempre vira o desejo dela. A rendição. Sabia que Lily estava mentindo, com a mesma certeza que soubera quem ela era quando a vira na rua. O que não sabia era por quê. – Você pretende falar? – perguntou ele para Luca, com mais agressividade do que o necessário. – Ou ficará parado aí como uma das montanhas, silencioso e desaprovador? – Eu posso falar, se você quiser – replicou Luca, parecendo, como sempre, imperturbável. – Mas as histórias que tenho para contar são bem menos interessantes que as suas, eu acho. Rafael virou-se e encarou o irmão. – Pensei que você estivesse indo para Roma, esta noite. – Eu estou. Imagino que você e Lily tenham mais a conversar do que ela e eu. – O som de uma risada de criança subiu dos jardins, então, e pairou entre eles. Luca apenas sorriu. – Todas aquelas histórias interessantes, por exemplo, que você ainda não me contou. Eles se entreolharam naquela sala relativamente pequena. Fogo queimava na lareira. O vento de dezembro balançava as janelas e batia na superfície do lago congelado. E, do lado de fora, um menininho estava correndo o bastante para deixá-lo


tonto, no mesmo lugar que Rafael e Luca costumavam correr quando crianças, embora, no caso deles, tivesse sido sem a supervisão parental de uma mulher doente que nunca quisera ser mãe, para começar. Rafael nunca pretendera ter um filho. Não tinha a menor ideia do que fazer, agora que possuía um, sem sua permissão. Sem seu conhecimento. Graças a uma mulher que fugira dele, e então escondera a existência do seu filho durante todos esses anos. Deliberadamente. Ela fizera aquilo deliberadamente. Ele não sabia o que sentia. Ou, mais precisamente, o que deveria sentir primeiro. – Você veio me perguntar alguma coisa? – questionou Rafael, após um momento. – Ou esse é o tipo de tática que usa em negociações, esperando que a outra parte se esmoreça no silêncio? Luca riu, mas não negou aquilo. – Eu lhe pediria que confirmasse que você realmente dormiu com nossa irmã... – Irmã de criação – corrigiu Rafael. – Uma distinção crucial. – ...mas isso seria para efeito dramático, nada mais. – Luca acenou uma mão no ar. – Eu já sei a resposta. A menos que você tenha uma história bem mais interessante para me contar, em cujo caso, sou todo ouvidos. Rafael suspirou. – Há uma pergunta em algum lugar aí? – Foi por isso que ela fugiu, então? – A voz de Luca era quase desinteressada, mas Rafael não acreditava naquilo. Vira o choque no rosto do irmão quando ela entrara no Café.


– Eu não poderia dizer por que ela fugiu – replicou Rafael. Ou forjou a própria morte. Era isso que Lily tinha feito, afinal de contas. – E, aparentemente, ela não tem intenção de me contar. Luca observou-o por um momento, como se pesando suas palavras. – É estranho como aquele garotinho se parece com você. Nosso pai pode ter um enfarto ao vê-lo. Ou mergulhar mais fundo na demência, nunca voltando, murmurando sobre fantasmas da família. – Eu certamente pensarei nisso mais tarde. – Rafael o assegurou. – Mas não espero ver o velho homem e sua nova noiva jovem até bem mais perto do Natal. Acho que podemos conter o melodrama da família até lá. – Buon Natale, irmão – murmurou Luca, então riu de novo. – Será o melhor Natal do mundo, tenho certeza. Fantasmas, ressurreições e um neto surpresa. É quase bíblico. – Que bom que você acha isso divertido. – Eu não diria que é divertido, exatamente. – Luca tornou-se sério. – Mas qual seria o ponto em atacá-lo ainda mais? Você não fez nada que lhe desse prazer nos últimos cinco anos, e eu já me diverti muito cutucando-o, para ser honesto. – Era hora de crescer, e eu cresci – respondeu Rafael, porque o castigo que ele se infligira por uma mulher que não tinha realmente morrido não era da conta de seu irmão. – Rafael. – Luca pôs os cabelos desalinhados para trás. – Você ficou arrasado quando pensou que ela estivesse morta, e por muito tempo. Talvez devesse se sentir feliz que ela esteja viva. Todo o resto são detalhes que irão se resolver. Rafael franziu o cenho.


– É claro que eu estou feliz que ela não está morta, Luca. – Mas está feliz que ela está viva? – questionou Luca, com aquele estranho insight que sugeria que era mais do que a criatura perigosa que passara a maior parte da vida fingindo ser. Pelo menos, em público. – Não é exatamente a mesma coisa, é? – É claro. – Mas Rafael levara um momento longo demais para responder. – É claro que estou feliz por ela estar viva. Seu irmão mais novo o estudou. – É por que ela não se lembra de você? Ou por algum outro motivo? – Eu não acredito que Lily tenha esquecido qualquer coisa. Ela foi embora. Ele não disse, ela me deixou, como pensou em dizer, entretanto tal verdade parecia estar lá, no meio daquela sala, de qualquer forma. Bem no centro do tapete inestimável que era mais velho que os dois e Lily, juntos. Tão óbvia e terrível que Rafael detestou a si mesmo naquele momento. Luca mudou de posição, o corpo inteiro subitamente adquirindo um tipo diferente de tensão. – Rafael. Mio fratello... – Esta discussão acabou para mim. – Rafael falou entre dentes. – Mas não para mim. – Luca balançou a cabeça. – Não é a mesma coisa. Lily não é nossa mãe. Não há comparação entre o acidente e o que aconteceu aqui. – Você não sabe disso realmente – disse Rafael calmamente. Calmamente demais. O que revelava muita coisa, como ele viu nos olhos de seu irmão. – Raf...


– Basta! – Rafael interrompeu seu irmão. – Lily e eu chegaremos a um acordo sobre o que ela realmente esqueceu e o que achou conveniente fingir que esqueceu, tenho certeza. Não há necessidade de envolver nossa mãe nisso. Por um momento, ele achou que Luca protestaria. Sentiu-se enrijecer, como se achasse que precisaria lutar se seu irmão ousasse... Recomponha-se, ordenou a si mesmo. Este é Luca. A única pessoa que você ama e que nunca o traiu. – Você tem alguma razão em particular para pensar que ela está fingindo? – perguntou Luca, após um momento, a voz relaxada, como se eles nunca tivessem pensado no destino triste de sua mãe. Ele até sorriu novamente. – A maioria das mulheres o agarraria com ambas as mãos, mesmo se elas se perdessem no processo, tamanho é o charme dos Castelli. Sei disso por mim mesmo, é claro. Mas Lily sempre foi diferente. Rafael forçou um sorriso. – Sim, sempre. – A memória dela irá retornar ou não – falou Luca cuidadosamente, observando a expressão de Rafael de perto. – Enquanto isso, há a criança. Meu sobrinho. – Meu filho – concordou Rafael. Ele não achou que tinha dito aquilo em voz alta antes. Meu filho. Não estava preparado para a emoção alegre que o inundou. Mas não sabia o que fazer com aquilo. – Realmente. – Os olhos escuros de Luca brilharam. – Então, talvez, o que ela lembra, ou o que aconteceu na história antiga de vocês, não seja importante depois disso. Ou não deveria ser.


– Adeus, Luca – disse Rafael, e não se importou com o que seu irmão poderia ler em seu tom de voz. Não importava o que revelasse, contanto que aquela conversa desconfortável acabasse imediatamente. Contanto que Luca o deixasse lá para recobrar seu equilíbrio. – Eu não espero vê-lo de novo até o Natal. Que pena. Sua falta será sentida. Por alguém, tenho certeza. – Mentiroso – respondeu o irmão, despreocupado pela dispensa. – Você já sente minha falta. Rafael meneou a cabeça, então se virou para a janela e ignorou o som da risada do irmão, enquanto Luca partia. Do lado de fora, o garotinho... seu garotinho... ainda corria, o capuz do casaco azul jogado para trás e a cabeça inclinada em direção ao céu. Arlo era um milagre. Arlo era impossível. Arlo era um erro perfeito e maravilhoso que Rafael não soubera ter cometido, e já o achava puro encantamento. Mas ele não mudava nada. Apenas tornava o curso de ação de Rafael ainda mais claro. A ANTIGA mansão Castelli funcionava com o tipo de funcionários perfeitos dos quais Lily se esquecera ao longo dos últimos cinco anos. Impecavelmente treinados, eles a faziam se sentir sempre bonita e bem-vinda. Mas a verdade é que eles tinham a habilidade de limpar cômodos enquanto ela ainda estava neles, produzir um exército de babás com credenciais para cuidar de Arlo sempre que ela precisava de um momento, e manter a elegância ao seu redor de maneira que parecesse tão natural como se ela estivesse morando lá novamente.


Tudo tinha ido na direção oposta, desde os luxos diários até os desafios de uma vida real sem eles, mas, na época, Lily vira aquilo como sua punição. E seu teste. Se ela conseguisse se virar, dissera a si mesma enquanto servia mesas em lugares que a velha Lily não teria ousado entrar, ganharia o direito de criar seu filho, sozinha. Ela se dera um prazo. Se, até o oitavo mês da gravidez, não conseguisse uma vida melhor do que apenas sobreviver precariamente, então teria de contar a Rafael sobre o bebê. Ou arranjar para que ele ganhasse a custódia, sem confrontá-lo diretamente. Alguma coisa. Criança nenhuma merecia viver na pobreza total, muito menos quando a mãe poderia dar um único telefonema e tirá-lo daquele restaurante de estrada para um lugar como aquele. Lily podia ter deixado sua vida de luxo pelo que considerava bons motivos, mas esperava que não fosse tão egoísta. Estivera grávida de seis meses, quando Pepper entrara no restaurante de estrada onde Lily trabalhava, depois de ter entregado dois cachorros resgatados de um abrigo na Virgínia para seus novos donos em Missouri. Talvez não fosse surpreendente que houvesse uma sintonia imediata... afinal de contas, Pepper levava jeito com errantes. E, quando o prazo de oito meses vencera, Lily estava morando no chalé de hóspedes na fazenda de Pepper, com um emprego de que gostava. Apreciara sua vida lá, e não viu razão para seu bebê não apreciar, também. Pepper era como a irmã mais velha que Lily nunca tivera. E fora mais do que uma avó amável para Arlo.


Lily não se arrependia de um único minuto de seu tempo na Virgínia, e disse a si mesma que também não se arrependia de esconder a existência de Arlo de Rafael. Todavia, era muito fácil se adaptar à vida com todo aquele luxo, novamente. Desde os salões de baile espetaculares até às salas graciosas e às muitas bibliotecas, cada centímetro da mansão era um louvor ao nome antigo Castelli e uma celebração aos muitos séculos de riqueza deles. Ela entrara em sua biblioteca favorita naquela noite, uma semana depois que eles tinham chegado à Itália, enquanto as babás das quais ela dissera não precisar cuidavam do banho de Arlo. Era para isso que elas haviam sido contratadas, Lily fora informada na primeira noite que tentara dispensá-las. O que significava que Rafael decretara aquilo... e, naquela mansão, o que Rafael decretava era lei. – Você sempre adorou esta sala. Lily saltou ao som da voz dele. Era como se ela o tivesse materializado com o pensamento, e precisou de toda sua força de vontade para não se virar e encará-lo, do jeito que uma pessoa culpada, que lembrava exatamente o quanto adorava aquela sala, faria. – Eu gosto de bibliotecas – disse ela, tentando soar vaga. – Todos não gostam? – Você gosta desta porque dizia que parecia uma casa de árvore – murmurou Rafael, e foi somente ao ouvir como a voz dele estava calma que ela percebeu que estivera prestes a gritar. Lily ouviu-o se aproximar na sala aconchegante, com suas prateleiras de madeira escura e a janela que ficava entre folhas verdes dos topos das árvores no verão. Nessa época do ano, os


galhos vazios roçavam o vidro, fazendo-a pensar em todos os fantasmas que estavam na sala com eles, nenhum dos quais ela queria enfrentar agora. Virou-se para encontrar Rafael muito mais perto do que esperava. Ele estava lindo, em calça esportiva e um suéter macio. Ela disse a si mesma que o disparo em seu coração era ansiedade. Pânico diante do papel horrível que tinha de representar, quando nunca fora boa em fingir coisa alguma. Mas o calor que a inundava contava uma história diferente, especialmente quando se instalou em seu baixo-ventre. E começou a pulsar. Foi então que Lily percebeu que não ficava sozinha com Rafael desde aquele dia na rua fria, em Charlottesville. Não assim... fechada numa sala numa velha casa, onde ninguém poderia ouvi-los, e ninguém os interromperia. O coração de Lily começou a bater tão alto que, por um momento, ela temeu que ele pudesse ouvir. – Uma casa de árvore? – Ela franziu o cenho, então olhou para fora da janela e para a escuridão, onde as árvores de dezembro pareciam esqueletos. Alguém que nunca estivera lá não poderia imaginar como o lugar era no verão. – Eu não entendo. Os olhos escuros eram intensos nos seus, como se ele a estivesse analisando, procurando mentiras, embora se encontrasse a alguns metros de distância, as mãos enfiadas nos bolsos. Ela supunha que aquela era uma distância segura. Mas aquele era Rafael. Nada sobre ele era seguro, e não havia distância no mundo que cortasse a eletricidade que pairava no ar


entre eles. Mesmo agora, como se nada tivesse acontecido. Como se o tempo não tivesse passado. – Como foi sua semana aqui? – perguntou Rafael, como se fosse apenas um anfitrião educado, e aquelas fossem férias para ambos. Lily não acreditava naquele tom suave de voz. – É muito bonito aqui – replicou ela, do jeito como uma pessoa que visse o local pela primeira vez teria feito. – Mesmo com o frio desta época no ano. E, obviamente, a mansão é incrível. Mas isso não a faz parecer menos uma prisão. – Você não está na prisão, Lily. – Não é... – Ela parou. – Eu não gosto quando você me chama assim. – Eu não posso chamá-la de nenhuma outra forma – murmurou ele, com um fogo na voz e no olhar que pareceu queimá-la. – O nome está cravado na minha língua. Ela não queria pensar na língua dele. – Se isto não é uma prisão, quando eu posso ir embora? – Não vá. – Não conheço você. Não conheço este lugar. O fato de que você se lembra da vida que acha que eu tive não muda o fato de que eu não me lembro de tê-la vivido. Um exame de sangue não muda como eu me sinto. – Lamento que você se sinta dessa maneira – disse Rafael num tom calmo que não combinava com a dureza no rosto bonito. – Mas as coisas são complicadas. Não posso deixá-la ir e esperar que você seja amável o bastante para permanecer em contato. Você é mais do que um mero risco de fuga.


Lily lutou para não demostrar reação àquilo. Podia não ter ficado muito sozinha com ele desde que chegara lá, mas certamente sentira muitas daquelas farpas aparentemente inocentes que temia serem testes. Em todas as refeições que eles haviam compartilhado com Arlo, porque, ela fora informada, esconder-se com uma bandeja em seu quarto não era permitido. Toda vez que encontrava Rafael, na verdade. Estava respondendo como Lily? Ou como alguém que não sabia quem Lily era? Não era fácil ter de se preocupar com cada palavra que falava ou com cada expressão que deixava transparecer no rosto. – E por que não? – questionou ela. – Como você sabe que é isso que eu quero? – Porque – respondeu ele suavemente – eu sou pai. – Arlo não distingue você de uma lata de tinta. – E de quem é a culpa disso? O lembrete sedoso a deteve. Podia sentir raiva preenchendo-a, quando sabia que a última coisa que poderia fazer era perder o controle perto de Rafael. Raiva a derrotaria mais rapidamente que paixão. Pelo menos, se ela o estivesse beijando, não poderia falar ao mesmo tempo. Lily piscou. De onde viera aquilo? Mas é claro que ela sabia. Estava numa pequena sala, sozinha com Rafael. Cinco anos atrás, ele já estaria dentro dela. Não teria havido hesitação, nada de mãos enfiadas no bolso ou distância cautelosa. Ele uma vez a erguera sobre o encosto do sofá de couro a sua direita e a fizera gemer depois de segundos que fechara a porta.


Ela sentou-se no mesmo sofá agora e viu um brilho nos olhos de Rafael que dizia que ele estava lembrando a mesma coisa. Lily removeu as botas curtas que usava e levantou as pernas, cruzando-as embaixo de si. – Então, conte-me suas teorias – disse ela com uma calma que não sentia. Rafael continuou de pé, perto da parede de livros. Estudandoa. Procurando fraquezas, pensou ela e tentou fortalecer-se. Porque estava muito ciente de que Rafael não acreditava em sua amnésia nem por um momento. – Eu tenho muitas. – O que acha que aconteceu comigo? Se eu sou esta tal de Lily, por que acho que sou outra pessoa? Os olhos escuros brilharam, e ela sabia que ele estava contendo a vontade de dizer que não havia se sobre aquilo. Que ela era Lily Holloway, gostasse disso ou não. Todavia, para o crédito de Rafael, ele não disse isso. – O que você pensou quando eu lhe perguntei sobre sua tatuagem naquele Café? – questionou ele. – Não achou bizarro que um estranho pudesse descrevê-la tão perfeitamente, quando, segundo você, nós nunca tínhamos nos visto antes? – É claro que achei. Mas eu achei que tudo sobre você era estranho. – Não lhe ocorreu que eu pudesse estar falando a verdade? – Em absoluto. – Lily descruzou as pernas e abraçou os joelhos junto ao peito. – Se eu o abordasse na rua e dissesse: “Olá, seu nome é Eugene Marigold, e eu o conheço de nossa época em Wisconsin”, você teria acreditado em mim?


Um brilho de divertimento dançou nos olhos dele, fazendo-a tremer por dentro. – Dependeria da evidência. Lily deu de ombros. – Eu estou aqui para lhe dizer que a evidência não ajuda. Suponho que eu pensei que você pudesse ter visto minha tatuagem antes. – Você sempre desfila por aí, mostrando-a? Lily refletiu. Conhecia aquele tom. Possessivo. E excitante, quando ela deveria achar aquilo horrível. – Eu uso um traje de banho no lago, às vezes, se é isso que você quer dizer com “desfilar por aí”. – Um traje de banho muito pequeno. – Na América, nós os chamamos de biquínis. Ele emitiu um som que não era bem uma risada, então se aproximou, o que fez Lily enrijecer... mas ele apenas sentou-se na poltrona diante do sofá. E, subitamente assim, ela voltou no tempo. Foi o jeito como ele se estendeu ali, tão indolente, como se nada na face da Terra pudesse perturbá-lo. Aquela era o Rafael que ela conhecera. Provocante. Sensual. Mesmo agora, com aquele brilho nos olhos, que lhe dizia que ele não estava relaxado, por mais que quisesse dar essa impressão, o corpo dela reagiu à memória. Mais do que apenas reagiu. Seu corpo esquentou, ficou em chamas, fazendo-a querer se contorcer no assento. Mas ela não ousou se mexer. Mal ousou respirar. E esperou que ele pensasse que ela estava vermelha em virtude da menção dos biquínis. Ou pelo fogo crepitando na lareira. A quem estava enganando? Rafael sabia por que ela estava rubra.


Mas nada daquilo era sobre o que Rafael sabia. Era sobre o que ele podia provar. – Como você surgiu com o nome Alison Herbert, para começar? – perguntou ele, após um momento. – Você tinha uma biografia muito específica de prontidão. De onde veio esta? De onde, realmente?, pensou Lily com tristeza. A verdade – que ela comprara aquela carta de motorista de uma garota que se parecia vagamente com ela, num estacionamento de um restaurante de estrada, com as gorjetas de uma semana, e se inteirara da história de vida dessa garota – estava, obviamente, fora de questão. Lily deu de ombros. – Eu não sei realmente. – Acho que você pode fazer melhor do que isso. – Os lábios sensuais se curvaram num sorriso, e ele não tirou os olhos dela nem por um segundo. – Lembra-se de sua infância como esta, Alison? Ela tivera um pouco mais que uma semana para se preparar para aquela performance em particular, e pensara muito sobre aquilo. Então, fez uma careta para ele, agora. – É claro. – Rafael esperou quando ela pausou. Lily respirou fundo. Contou até dez. – Quero dizer... eu acho que lembro. – Ah. Lily não sabia como ele podia roubar todo o ar da sala, quando ela o encarava e podia ver que ele não se mexera. Ela franziu o cenho. – Não vejo propósito em conversarmos sobre isso. – Ela desviou o olhar, certa de que ele podia ler muito no seu rosto, e brincou com a manga de seu suéter. – Obviamente, o que eu


lembro ou não lembro é irrelevante. Você tem o exame de sangue. – Eu tenho. – E é por isso que estamos aqui. – Lily engoliu em seco, então levantou a cabeça e encontrou-lhe o olhar. Dessa vez, sustentouo. – Mas e quanto a você? – Eu? – Ele pareceu levemente divertido. – Eu sei exatamente quem sou. – Mas você era meu irmão de criação. – Lily inclinou a cabeça para um lado, esperando que parecesse curiosa, em vez de desafiadora. – Como tudo isso aconteceu? ELA PARECIA frágil naquela noite, pensou Rafael. Os cabelos loiroavermelhados estavam presos no topo da cabeça, realçando o pescoço elegante, algo em que ele percebeu não ter prestado muita atenção cinco anos atrás. Naquele momento, no entanto, não podia pensar em outra coisa. Ela usava um suéter exageradamente grande, sem dúvida, para esconder o máximo de si mesma. Ele duvidava que Lily percebesse que, sem a distração daquele corpo deleitoso que ainda o enlouquecia, ele não tinha nada para fazer, exceto analisar cada expressão que surgia no roto e nos adoráveis olhos dela. Rafael não acreditava, por um segundo, que ela não se lembrava dele. E, se ela não se lembrasse dele, como alegava, então não podia lembrar o que acontecera entre os dois, e Rafael poderia inventar aquilo do jeito que quisesse. Se Lily se recordasse dele, ela o interromperia para corrigi-lo, certo?


Afinal de contas, aquela era a mulher que não lhe contara que ele era pai, que tinha um filho há cinco anos. Se ele não a tivesse visto naquela rua, na Virgínia, ela algum dia lhe contaria sobre Arlo? Provavelmente não. Ele nunca teria sabido. Ele quase desejou que ela realmente tivesse amnésia. Pelo bem dela. Rafael sorriu-lhe então, e se sentiu mais um predador do que era sábio. – É uma história muito triste – começou ele, e a viu enrijecer. – Você era uma adolescente estranha quando nossos pais se uniram, desajeitada e tímida. Mal falava. – O quê? – Lily tossiu quando ele a olhou, e conseguiu parecer tão sincera que ele quase duvidou que ouvira o tom agudo na voz dela. Quase. – Desculpe. Você disse desajeitada? – Muitas adolescentes são desajeitadas – replicou ele, como se estivesse tentando confortá-la. – Mas acho que ficar perto de mim e de Luca ajudou você um pouco. – Porque vocês eram excelentes irmãos para mim? – Ela torceu o nariz daquele jeito que ele sempre adorara. Ainda adorava. – Isso nos coloca em território desagradável, não é? Rafael riu. – Nada poderia estar mais longe da verdade. Nós praticamente a ignoramos. – Ele acenou uma mão no ar. – Nosso pai está sempre se casando. Com diversas mulheres. Quanto mais pobres, melhor, e, às vezes, elas vêm com filhos que esperamos tratar como família por um tempo. Sabemos que é temporário. Uma forma de caridade, realmente. – Ele sorriu, e havia um pouco mais de cor nas faces de Lily agora, embora pudesse ser devido ao fogo que crepitava ao lado deles. – Não,


eu quis dizer que Luca e eu saíamos com uma seleção de mulheres elegantes e sofisticadas. Você as idolatrava, é claro. Aquilo deve ter sido como uma grande escola para uma garota com você, vinda de circunstâncias tão diferentes. Ela voltou a brincar com o punho do suéter. – Nossas circunstâncias eram tão diferentes assim? – Estou falando sobre certo polimento que algumas garotas tinham. Polimento com o qual nasceram. – Rafael olhou para o rubor crescente no rosto dela, certo de que era de raiva, e não pelo fogo, desta vez, e continuou: – Espero que minha honestidade não a aborreça. Se isso ajuda, eu acho que mulheres europeias são melhores em conseguir tal polimento do que as americanas. Talvez seja algo cultural. – Que sorte a minha ter conhecido todas as mulheres com quem você saía para superar meu estado de americana – replicou ela. Ele esperou que ela estivesse se lembrando das mulheres com quem ele saíra na época, nenhuma das quais era sofisticada. Mas Lily apenas o fitou, os olhos azuis ilegíveis. – Foi isso que aconteceu? Aqueles modelos de perfeição me tornaram uma delas, e você descobriu que precisava ter um caso comigo, também? Rafael sorriu daquilo e viu a reação nos olhos azul-claros, antes que ela os abaixasse outra vez. Mas o calor que ele viu lá esquentou seu corpo inteiro, e sua voz soou rouca quando ele continuou: – Você me escrevia poemas diariamente, confessando seus sentimentos infantis por mim. Era adorável. – Poemas – ecoou ela. – Acho isso... muito estranho. Uma vez que eu nunca escrevi uma palavra desde que posso lembrar.


– Nós não estabelecemos quanto tempo faz isso, certo? – E por quanto tempo eu tentei cortejá-lo com poesias de adolescente? – perguntou ela, com um sorriso que não alcançava os olhos. – Você deve ter achado a situação embaraçosa. – Muito – concordou ele. – Você era ruim nisso, sabe? – Se não fosse pela existência de Arlo, eu pensaria que essa história estava indo para uma direção muito diferente. – No seu aniversário de 18 anos – disse ele, como se recordando uma velha história, em vez de inventando –, você parou na minha frente num vestido branco, como um vestido de noiva, e me pediu para realizar um desejo seu. – Oh. – Ela arfou. – Como um conto de fadas. Você disse que eu tinha 18 anos ou oito? – Dezoito. – O tom de Rafael era reprovador, e estava difícil conter o riso. – Você era muito resguardada, Lily. – Mas não em relação a você, porque então o fato de que ficamos juntos seria certamente rude. – Ela sorriu. – Estou supondo. – Você foi resguardada pelo convento rígido onde estudou – mentiu ele, alegremente. Ela nunca passara nem perto de um convento na vida. – Você flertou com a ideia de se tornar freira. Rafael podia quase ouvir o som da raiva dela, como água contra metal, embora Lily apenas tivesse engolido em seco. – Freira – repetiu ela, estreitando os olhos. – Eu queria ser freira. Ele sorriu com muita satisfação. – Isso era engraçadinho. – Entretanto, nós produzimos um filho – apontou ela, um toque ácido na voz, embora a expressão fosse impassível. –


Apesar do fato de que eu, aparentemente, uma menina de oito anos que queria ser freira e não possuía ambição maior do que viver num conto de fadas. Um conto de fadas poético. – No seu aniversário de 18 anos, você me pediu um beijo – continuou ele, recostando-se em sua poltrona e se divertindo. Na verdade, não podia se lembrar de ter se divertido tanto nos últimos cinco anos. – “Por favor, Rafael”, você suplicou. “Eu quero saber como é me sentir mulher”. – Ora, pare com isso. Ninguém diz coisas como essa. Não na vida real. Ele deu de ombros. – Mas você disse. Ou tem recordações diferentes? – Eu não tenho qualquer recordação – murmurou ela, e ele viu o brilho de rebeldia nos olhos azuis. Sua garota teimosa. – Embora essa história pareça um pouco dramática, se eu for honesta. – Você era uma adolescente muito teatral, Lily. O desespero de sua mãe e um desafio para todos os seus professores, ou assim me contaram na época. Ela esfregou o rosto. – Todavia, de alguma maneira, todo esse drama levou a um relacionamento secreto? Difícil de acreditar, não é? – A decisão foi sua – respondeu ele, esperando por uma reação diante do que talvez fosse a maior mentira de todas, mas ela apenas o encarou de volta. – Você suplicou por um beijo, o qual, é claro, eu recusei. – Não posso culpá-lo. Eu questionaria o homem que olhasse para uma adolescente desajeitada num vestido de noiva falso, que considerara seriamente ser freira, e pensasse: Eu a quero.


Rafael teve de se esforçar para não rir. – Eu lhe disse que não poderia beijar uma garota tão inocente. Que você teria de provar que era mulher, se quisesse que eu a beijasse como uma. – Achou que essa era a abordagem certa para uma adolescente obviamente confusa? – Lily fungou. – Talvez uma conversa franca fosse mais útil nesse caso. Ou um terapeuta. – Eu pensei que você fosse voltar correndo para seu pequeno mundo protegido. – Ele não sabia em que momento tinha passado de sua história fantástica para alguma coisa muito parecida com a verdade, mas sabia que não gostava disso. Estendeu as pernas e olhou-a do outro lado do tapete grosso, onde uma vez Lily se ajoelhara e o tomara na boca, enquanto seu pai e a mãe dela discutiam no corredor, do outro lado da porta. Rafael lembrava-se do calor daquela boca, como se tivesse acontecido ontem. Assim como seu órgão, em estado rígido, também se lembrava. – Pensei que você só estivesse provocando, mas que fugiria na hora H. – Deixe-me adivinhar. Eu não fugi. – Não. – Rafael recordava-se daquele beijo na véspera de Ano-Novo. Do gosto dela, do peso dos cabelos rebeldes contra suas mãos. Da pressão dos seios contra seu peito e da pele sedosa no topo das coxas delgadas. – Você decidiu que precisava provar que era mulher. – Houve testes? – Lily perguntou em voz suave, mas havia irritação por baixo da suavidade. – Um fogo cruzado? – Você realmente quer os detalhes? O olhar de Lily foi ardente quando encontrou o seu. Antes que ela o desviasse.


– Não. – Você insistiu que mantivéssemos aquilo em segredo. Exigiu que eu namorasse outras mulheres em público, de modo que ninguém desconfiasse. Estava determinada. – E você, é claro, concordou. – É claro. Eu sou um cavalheiro. Um longo silêncio se seguiu. Só havia o som do fogo. E o do coração de Rafael, batendo aceleradamente demais para uma simples conversa como aquela. – Posso ser honesta com você? – perguntou ela. – Sempre. – Acho que eu não acredito em você. Rafael não pôde evitar um sorriso. – Você se lembra de outra versão dos eventos? – Você sabe que não. Ele observou-a fechar as mãos em punho, e aceitou o sinal como uma vitória. – Então, minha versão terá de permanecer como válida. – Vamos supor que tudo isso seja verdade. – Ela o estudou. – Por que você se apaixonaria por mim? A pessoa que você descreve como um desastre, na melhor das hipóteses. – O amor deixa as pessoas tolas, Lily. – Você praticamente admitiu que inventou tudo isso – apontou ela. – Ou não teria me pedido uma versão diferente. – Conte-me que parte. – Ele a desafiou. Lily sentou-se então, tão abruptamente que o fez piscar. Ela calçou as botas e se levantou. Rafael queria fazer o mesmo, mas permaneceu onde estava, fingindo sentir-se completamente relaxado.


– Isso é loucura – murmurou ela, mais para si mesma do que para ele. Mas, então, olhou-o. – Que tipo de pessoa você é, para fazer jogos assim? – Realmente quer saber a verdade? – perguntou ele, e não podia nem mais fingir que estava relaxado. Sentou-se ereto, nunca tirando os olhos dela. – Eu pensei que esse fosse o motivo de você me trazer aqui. Toda a verdade, o tempo inteiro. Independentemente de eu gostar ou não. – Porque você conheceu a verdade um dia, Lily – falou ele, com uma dureza que o surpreendeu. Parecia não conseguir contê-la. – Você a viveu. E então caiu de um penhasco enquanto dirigia e saiu ilesa do acidente. Teve um bebê, mudou de nome e escondeu-se num lugar onde ninguém pensaria em procurá-la. Talvez não queira saber a verdade. Lily meneou a cabeça, mais como se estivesse se livrando da ideia do que negando o que ele dissera, e Rafael viu isso como outra vitória. – Ou – continuou ele no mesmo tom – você já sabe a verdade e está fazendo um jogo por razões pessoais. Que tipo de pessoa isso faria de você? Ela enrijeceu, como se ele a tivesse esbofeteado. – Eu acho que você não está bom da cabeça – declarou Lily, e começou a andar para a porta. – Por que me contaria um monte de mentiras? Como histórias falsas ou um passado inventado poderia fazer alguma coisa, exceto piorar as coisas? – Eu não me preocuparia com isso – replicou Rafael, ouvindo o perigo em sua própria voz. A ameaça. E precisou de toda sua força de vontade para permanecer onde estava. Para deixá-la ir,


quando essa era a última coisa que ele queria. – As chances são de que você tenha se esquecido disso, também.


CAPÍTULO 5

O

histórico Castelli era pequeno para os padrões venezianos, erguido sobre o majestoso Grand Canal, na sombra de residências mais sublimes, uma vez habitadas pelas famílias nobres de Veneza. Todavia, independentemente de quantas vezes Lily se lembrasse do jeito desrespeitoso como seu expadrasto se referira àquele lugar, como se não entendesse por que alguém iria lá, sua primeira visão do palácio a fez arfar. Ela inalou, então prendeu a respiração, como se tanta beleza num só lugar pudesse machucar seu coração dentro do peito. Disse a si mesma que era a vista. A construção de pedras saindo das profundezas do canal, como se estivesse flutuando lá, a qualidade da luz dourada que vinha de dentro e refletia na água, era como um sonho se tornando realidade na noite fria. Era a vista, assegurou a si mesma, não o homem alto e imponente silencioso ao seu lado no táxi aquático particular, que a fazia tremer e abraçar mais o casaco de inverno que estava usando. Ele parecia um príncipe sombrio, pensou ela então, como se estivesse aflorando a poetiza adolescente que nunca fora. Parecia PALÁCIO


feito de sombras e luzes que se moviam sobre a água com encanto. Parecia sobrenatural. Mais uma fábula do que um homem. Pare com isso, ordenou a si mesma. Perca o controle com este homem, e você perderá tudo. – É linda, não é? – A voz de Rafael era sedosa, como a noite caindo naquela cidade de ecos e arcos, mistérios e sonhos. – Entretanto, ainda não entrou no mar. – É adorável, sem dúvida, como você sabe muito bem – replicou ela, soando rude para seus próprios ouvidos. – Tenho certeza de que todos os guias turísticos dos últimos trezentos anos concordam. Mas eu ainda não entendo por que estamos aqui. – Eu lhe disse. – Ele mudou de posição contra o casco do pequeno barco. Lily desejou que tivesse se sentado do lado de dentro, longe dele. Mas quisera ver Veneza mais do que quisera evitá-lo. – É época de Natal. Eu preciso fazer minha aparição anual para nossos vizinhos, ou o mundo como conhecemos irá parar. Meus ancestrais sairão de seus túmulos em protesto, e o nome Castelli ficará na lama por séculos. Ou assim meu pai me informou numa série de mensagens de voz teatrais. – Eu não entendo o que isso tudo tem a ver comigo – retrucou ela. – Ou por que tive de deixar meu filho com estranhos para acompanhá-lo em alguma tarefa familiar. Rafael deu aquele sorriso torto, então. Um que a descompensava. – Não entende? Você é a mãe do meu filho... que não poderia estar mais feliz onde está, com um exército de babás que atendem a cada capricho dele. Onde mais você estaria, senão ao


meu lado, para que o mundo inteiro veja e se maravilhe diante de sua ressurreição? Lily não sabia o que a irritava mais... se o fato de ele a chamar de mãe do seu filho, de maneira tão possessiva, ou o fato de ele alegar que a queria consigo, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Quando o Rafael que ela conhecera se recusara a reconhecê-la publicamente. É claro, ela não deveria se lembrar disso. E, por um momento, permitiu-se imaginar como seria se pudesse acreditar nele dessa vez. Mas isso só levaria à loucura. A um coração partido e à traição. – Quando você diz “para que o mundo inteiro veja”, espero que não esteja se referindo aos paparazzi. – Ela balançou a cabeça. – Eu trabalho num canil na Virgínia. Não quero estranhos olhando para mim. Lily não foi capaz de interpretar o brilho sombrio nos olhos dele então, ou o jeito como o maxilar forte enrijeceu. – Você pode usar uma máscara, se quiser, mesmo que ainda não seja Carnevale – replicou ele, após um momento. – Muitos usam, embora, talvez, não pelo mesmo senso de modéstia que você parece sentir. Considerando que não passa de uma trabalhadora de um canil. Na Virgínia. Lily o olhou intensamente, então desviou o olhar, quando o barco chegou ao cais do palazzo e o piloto saltou para puxar as cordas, de modo que eles pudessem desembarcar. – Mas não se engane, Lily. Eu sempre saberei quem você é.


A voz de Rafael foi como um toque, e ela detestou sua parte traidora que desejou que realmente fosse. Mais do que desejou... ansiou por ele de todas aquelas maneiras que temia admitir, até para si mesma. Temia que, uma vez que o fizesse, se sentiria caindo de um penhasco de verdade, desta vez, e então, o que seria dela? Mas, é claro, Lily já sabia. Talvez você não queira saber a verdade, Rafael a acusara na outra noite, e estava certo. Ela realmente não queria saber. Porque já vira para onde tal verdade levava. Já sabia exatamente o que amá-lo a levava a fazer. No mínimo, as consequências de todos aqueles sentimentos a tinham transformado em alguém que ela desprezava. – Está um dia bonito – falara Rafael numa manhã brilhante daquela última semana, andando no salão particular na ala da família da mansão, onde Lily e Arlo haviam se acostumado a tomar o café da manhã. Lily olhara para cima e perdera o fôlego por um momento, diante da visão dele. Um suéter de lã casual estendia-se sobre o peito perfeito, e a calça escura agarrava-se às coxas grossas. Ele parecia algum tipo de aventureiro poderoso, um príncipe italiano moderno, prestes a saltar sobre uma das montanhas do lado de fora e assumir o trono mais próximo... Talvez, pensou ela, todas aquelas mentiras ridículas que ele lhe contara sobre seu comportamento adolescente dramático não estivessem tão longe da verdade. – Obrigada. – Ela olhara além dele, na direção das janelas do chão ao teto, onde podia ver o tipo de dia por si mesma. – Eu apreciei o relatório do tempo. A boca de Rafael se curvara num sorriso.


– Sua apreciação é encantadora – murmurara ele, e Lily não entendia como ele podia fazer aquilo soar sexy. Como podia fazer qualquer coisa soar sexy quando falava com aquela voz. Arlo, enquanto isso, apreciava tudo em Rafael de um jeito puro e sincero que fazia o coração de Lily se apertar no peito. E que lhe causava culpa. Naquela manhã, Arlo tinha erguido os braços acima da cabeça e começado a cantar alto, completamente inconsciente da tensão permeando a sala. Lily forçara um sorriso quando Rafael arqueara uma sobrancelha interrogativa. – Essa é uma música de bom-dia. – Ela o informara. – Arlo aprendeu na escolinha. Eles cantam todas as manhãs. – Estou honrado. – Rafael sorrira para o filho. E Lily detestara a si mesma. Porque o sorriso que ele dera para Arlo havia sido sincero. E lindo. Era um sorriso iluminado com orgulho e com uma doçura que ela teria dito que Rafael Castelli não possuía. Diante da visão de tal sorriso, Arlo correra para ele, atirando-se sobre as pernas de Rafael para lhe dar um de seus abraços impulsivos. Lily não soubera se sorria ou chorava. Especialmente quando Rafael parecera tão atônito por um segundo. Ele havia colocado a mão na cabeça do filho, e então sorrido para o garotinho, como se Arlo fosse uma explosão de sol de verão numa manhã tão gelada de dezembro. E então ela arruinara aquilo. – Ele faz isso com todos os homens que conhece. – Lily se ouvira dizendo. As palavras tinham pairado no ar entre eles, parecendo ecoar nas paredes. Se ela pudesse tê-las capturado de volta e as


mantido para si mesma, teria feito isso. Mas não havia como reparar o tipo de dano que sempre causara para aquele homem, e ele para ela. Era preciso conviver com aquilo. O sorriso de Rafael desaparecera, enquanto ele a olhava, a expressão furiosa e triste ao mesmo tempo, e Lily sentira tanta dor como se ele a tivesse ferido de volta. Mais, talvez. Continuou pensando que não podia se sentir mais horrível do que já se sentia, e então descobriu que existia um lugar muito pior. Isso é o que você faz, ela dissera a si mesma. Quando está com ele, isso é quem você é. Ela quisera falar aquilo em voz alta. Lembrá-lo que eles sempre acabavam no mesmo lugar repulsivo... mas não conseguiu dizer uma palavra. – O dia está bonito o bastante para irmos até o vilarejo, hoje – Rafael murmurara após um longo momento. – Achei que pudesse ser um passeio agradável em família, assumindo que você não esteja muito ocupada em preparar mais comentários maldosos para atirar em mim. Lily recusara-se a pedir desculpas, entretanto, sua garganta doía como se tivesse mais de um pedido de desculpas alojado ali. – Parece adorável – dissera ela, a voz rouca com todas as coisas que não conseguia falar. As coisas que não queria admitir que sentia. – Obrigada. Lily voltou ao presente para descobrir Rafael estudando-a de um jeito que a fez se esquecer de respirar. Com pura força de vontade, ela controlou sua reação, antes de perceber que ele estava estendendo a mão. E esperando que ela a pegasse.


Ela queria tocá-lo tanto quanto queria pular do barco nas águas geladas do Grand Canal, mas reprimiu sua reação, ciente de que ele a observava. De que estava calculando quanto tempo levaria para que ela desviasse o olhar da mão estendida para o rosto dele. De que Rafael provavelmente podia ler cada pensamento seu. Porque Lily estava consciente de que ele sabia que ela se lembrava de tudo. Mas ele não podia provar isso. – Eu só quero ajudá-la a descer do barco, Lily – murmurou ele em tom divertido. – Essa é outra mentira. – Ela não pretendera falar aquilo. E talvez, para provar quão pouco ele a incomodava, Lily deslizou a mão dentro da dele. Foi um erro. Como ela soubera que seria. Não importava que ambos usassem luvas para espantar o frio. Não importava que ela não podia sentir a pele ou o calor da palma dele contra a sua. Podia sentir a força de Rafael. Podia sentir aquele poder inundando-a com sensações que ela não queria, tão perigosas como a misteriosa noite veneziana em volta deles. Sem sorrir, Rafael prendeu-lhe o olhar. Calor, paixão, desejo fizeram Lily se sentir distorcida. Alterada. Lily subiu na plataforma com mais entusiasmo do que graça, então soltou a mão de Rafael, como se ele a tivesse queimado. E ele não precisava rir dela, embora Lily pudesse sentir, mais do que ouvir, o eco de tal risada. Já estava em seu interior, onde ela ainda estava sintonizada com Rafael, onde era parte dele.


Como se eles ainda estivessem conectados dessa forma... mais do que de forma sexual, como um fogo no sangue que nada seria capaz de apagar. Não tempo. Não distância. Não a traição. Nem mesmo sua suposta morte. Ela começou a entender que nada apagaria aquele fogo. Que estivera se enganando por todos aqueles anos, imaginando que pudesse ser diferente. O palazzo agigantou-se a sua frente, seus pisos superiores graciosos brilhando contra o céu como algum tipo de farol, e Lily assegurou-se que era apenas o vento frio vindo da lagoa a distância e batendo no seu rosto que fazia seus olhos lacrimejarem. Mas então sentiu mãos grandes sobre si, virando-a para que ela o encarasse, e soube que estava condenada. Que ambos estavam condenados. Tinham sido destinados a despedaçar um ao outro desde o momento em que haviam se conhecido, e naquela colisão horrível que destruíra os dois. De novo e de novo. Podia ver isso na expressão séria de Rafael. No fogo nos olhos escuros. Pior, podia sentir isso no jeito como ela... se derretia. E que pensava que nunca quisera tanto uma coisa na vida como queria a pressão daquela boca contra a sua novamente. Só mais uma vez, disse a si mesma, quando olhou para ele. Mas sabia que essa era a maior mentira de todas. – Não me beije – sussurrou ela, de maneira rápida e reveladora demais. – Eu não quero que você me beije. A boca séria de Rafael estava tão perto... tão perto... e aquela expressão nos olhos dele era suficiente para demolir cidades inteiras, e não havia disfarce no jeito como aquilo a fazia tremer. Ela não tentou.


– Falando em mentiras – disse ele, aproximando-se ainda mais, os braços a envolvendo como os de um amante. Lily abriu as mãos contra o peito largo, embora não soubesse se o estava empurrando ou simplesmente mantendo-o ali. – Não é mentira apenas porque você não gosta disso. Rafael estudou-a por um momento, e Lily esqueceu onde eles estavam. Em que continente, em que ano. Em que cidade. Não havia nada, exceto o brilho dourado nos olhos escuros, o tumulto em seu interior e sua resistência frágil. Ele levantou uma mão enluvada para alisar seu rosto, o couro tanto uma carícia quanto uma punição. – Relaxe – disse ele, soando divertido. Como se ela fosse a única abalada por aquilo. – Eu não vou beijá-la aqui. Está muito frio. – Você quer dizer que aqui é muito público. Houve um brilho perigoso nos olhos dele, então. – Eu quero dizer que está muito frio. – Não entendo o que a temperatura tem a ver com isso. – A voz dela saiu quase zangada, e Rafael sorriu. – Da próxima vez que eu a beijar, Lily, não ficarei tão desconcertado quanto fiquei na rua da Virgínia. Não haverá nada senão a nossa química usual. – Rafael deu de ombros, mas a mão contra o rosto dela se apertou, indicando que ele não estava tão inabalável como parecia. – E você sabe o que acontece então. Ela sabia. Um milhão de imagens surgiu em sua mente, uma mais provocante do que a outra. A agitação da boca e das mãos dele. Os movimentos do corpo poderoso dentro do seu. A perfeição sólida sob suas mãos.


A dor, o fogo. O fogo impossível, inconquistável. – Não – negou ela, olhando-o com raiva. – Eu não sei o que acontece. Ele traçou-lhe o lábio com o polegar, um sorriso divertido no rosto, porque sabia exatamente o que fazia com ela. Lily quase gemeu. Quase. – Então você se entregará à experiência. – Era como se ele já estivesse dentro dela, estabelecendo um ritmo frenético. – É incontrolável. Sempre foi. Lily inclinou a cabeça para trás, fugindo do toque dele. Ciente de que Rafael poderia tê-la impedido de se afastar, se quisesse. Ele abaixou a mão e ela teve de cerrar os dentes para não esbofetear aquela expressão satisfeita. – Eu não sei o que isso significa. – A voz de Lily era gelada como o ar em volta deles. – E tenho certeza de que não quero saber. Os olhos escuros encontraram os seus. Rafael ainda parecia como se eles estivessem fazendo sexo. Como se essa fosse uma conclusão inevitável. Como se não passasse de preliminares... e o corpo de Lily estivesse em chamas diante da visão. – Significa que eu a beijo, então estou dentro de você – replicou ele. – Sempre. – Eu entenderei isso como uma ameaça. – Ela deu um passo atrás, como se a pequena distância pudesse tornar menos verdade o que ele dizia. – Você pode entender isso como escolher. É um fato, Lily. Tão inevitável quanto o amanhecer após uma noite longa e fria. RAFAEL PENSOU que ela pudesse fugir.


Pôs dois empregados à porta do quarto dela e descobriu-se mais irritado do que deveria estar, enquanto considerava quais tentativas de fuga inúteis ela usaria, dessa vez. Entretanto, apesar de suas imaginações, conforme as horas passavam, nenhum alarme foi dado. E, quando o relógio indicou a hora marcada, Lily apareceu no topo da grande escadaria dentro do palazzo, como todas as fantasias que ele criara nos últimos cinco anos. Ele planejara bem aquilo, pensou. Mandara o vestido vir de Milão, incumbira cridas para cuidar dos cabelos e da maquiagem de Lily. Pensara ter se preparado para o resultado inevitável. Todavia, uma coisa era imaginar Lily, sua Lily, viva, bem e vestida como um membro da alta sociedade veneziana com quem eles se misturariam nessa noite. Outra coisa era vê-la com seus próprios olhos. Rafael nunca se sentira tão grato pela longa escadaria que vinha do andar superior do palazzo até o nível principal, onde ele se encontrava, pois aquilo lhe deu tempo para se recompor. Lily movia-se como água, com graça e beleza em cada passo, enquanto descia na sua direção. Os cabelos cor de mel estavam empilhados no topo da cabeça, presos com uma série de presilhas douradas, como ele pedira. O vestido que ele mandara fazer para ela abraçava os lindos seios e então se abria em direção ao chão, conseguindo insinuar a figura delgada, mesmo enquanto a escondia em metros e metros de tecido azulesverdeado. Ele nunca vira nada mais maravilhoso.


Então, ela parou aos pés da escada, como uma deusa perfeita, e fez seu coração doer dentro do peito. – Eu quero uma máscara – disse Lily. Rafael piscou. E tentou conter sua reação possessiva. Não poderia deitá-la nos degraus, lambê-la inteira e provar os segredos que ela ainda escondia. – Por quê? Ele achou que seu tom tinha sido educado, mas a carranca de Lily aprofundou-se. – Eu preciso de uma razão? Você disse que pessoas as usam. – É verdade. – Rafael não podia se permitir tocá-la. Não até que tivesse certeza de seu controle. – Aqui é Veneza. Mas quero que me conte por que você quer uma máscara. Ela ergueu o queixo. – Quero fingir ser uma das grandes cortesãs venezianas. – Ela o encarou. – Não foi para isso que você me trouxe aqui? De modo que eu pudesse reviver a história? – A menos que você queira reviver nossa própria história aqui, nos degraus de mármore, sugiro que tente novamente – disse ele. Lily desviou o olhar, mas manteve o queixo orgulhoso erguido. – Eu não quero ser reconhecida. Não gosto particularmente de ser tratada como um fantasma que saiu do túmulo. Especialmente quando não consigo me lembrar da pessoa que eles acham que eu sou. – Eu irei lembrar por nós dois. Rafael não sabia de onde a promessa viera, como se ele fosse um homem bom, e aquele fosse o tipo de situação. Então, ela o


fitou novamente, os olhos azuis contendo uma ironia que Rafael achou que pudesse ser seu fim ali. E ela não sorriu, mas ele sentiu como se ela tivesse sorrido. Como um presente. – É disso que tenho medo – murmurou ela. E Rafael descobriu que não podia falar. Levantou um dedo para chamar o servo mais próximo, e ficou satisfeito pelos momentos que levou para conseguir uma máscara dourada. Para o lindo rosto de Lily. Ela estendeu a mão para a máscara, mas ele ignorou-a. Então, aproximou-se e colocou a peça no rosto de Lily de maneira quase reverente. Alisou-a contra as faces elegantes e foi recompensado quando ela arfou e tremeu de leve contra suas mãos. – Pronto – disse ele, e soou como um estranho. – Agora, ninguém saberá quem você é, exceto eu. Os olhos de Lily encontraram os seus através da máscara, e pareciam perturbados. Solitários. Ou talvez fosse ele. – Eu pensei que esse fosse o objetivo – sussurrou ela em tom de acusação. – Achei que fosse isso que você estivesse tão determinado a me mostrar. Que ninguém, exceto você, sabe quem eu sou. – Ou algum dia saberá – concordou ele. E não pôde fazer o que queria, não naquele momento e lugar, então fez a próxima coisa melhor. Pegou-lhe a mão e conduziu-a noite adentro.


CAPÍTULO 6

ELES PEGARAM um táxi aquático para a festa, a qual acontecia no majestoso palazzo da era renascentista, que parecia se curvar em direção às águas escuras do Grand Canal. Quando eles se aproximaram do cais, Lily inclinou a cabeça para trás a fim de ver as luzes brilhando em cada janela dos três andares. Música preenchia a noite, e convidados elegantemente vestidos riam o bastante para cortar a brisa. E Lily estava achando muito difícil respirar. Pelo menos, tinha a máscara nessa noite, pensou. Além de esconder sua identidade do resto do mundo por um pouco mais de tempo, ela esperava que a máscara também pudesse esconder seus pensamentos de Rafael. Ele lia sua expressão muito facilmente. Tentando respirar, ela removeu a capa e deixou-a na cabine do táxi aquático que Rafael contratara pela noite, como instruída. Rafael ajudou-a a sair do barco, e Lily ficou orgulhosa de si mesma quando aceitou a mão oferecida e desceu, como se tocálo não fosse nada. Então, ele pegou-lhe o braço, e eles subiram os degraus para o grande hall, suas portas abertas para a noite como


se o frio não ousasse entrar, a escuridão se submetendo ao brilho de muitas tochas. Rafael estava quente ao seu lado, e Lily disse a si mesma que a consciência que tinha dele era um aviso, nada mais. Cuidado. Era o que sua pulsação acelerada estava tentando lhe dizer. Cuidado com ele. Nada mais que um aviso. Dentro do hall central do palazzo magnífico, era como um sonho estonteante. Como ser levada para uma caixa de música e girar com lindas criaturas que já estavam lá, se movendo pelo piso de mármore e sob candelabros inestimáveis. Rafael pediu licença a fim de cumprir seu dever para com seus anfitriões, seus vizinhos, deixando Lily achar seu caminho para um dos grandes pilares e permanecer lá, anônima. Ela abraçou a si mesma contra o mármore frio como se ele pudesse ancorá-la à terra. Não sabia para onde olhar, primeiro. Uma única olhada em volta, e ela se sentiu saturada pelas sensações e estímulos. Lily certamente frequentara sua parcela de festas chiques no passado. Tinha ido a um baile num palacete romano, uma vez, com a família Castelli inteira e sua própria mãe, a casamentos glamorosos em locais espetaculares, a eventos beneficentes exclusivos, e, certa vez, dançara numa festa de Ano-Novo com Manhattan aos seus pés, numa cobertura incrível, no Central Park West. Mas tudo aquilo fazia muito tempo, e nada havia sido como Veneza. Naquela noite, todo mundo brilhava como os mais finos diamantes. As mulheres estavam deslumbrantes, ao passo que cada homem parecia atraente em sua elegância. Eram as pessoas ou o lugar em si? Lily não sabia. O próprio ar parecia mais rico.


Havia penas joviais e máscaras ocasionais, vestidos finos, joias e smokings. Uma orquestra graciosa tocava de uma plataforma de mármore que parecia pairar, como se por mágica, acima da multidão e da pista de dança no centro do grande espaço aberto para o céu noturno, entretanto tal espaço era cercado por tantos pequenos aquecedores que era impossível sentir o frio de dezembro. Lily tremeu mesmo assim, e sabia que não era devido à temperatura, e sim à decadência exultante. Ali era uma cidade afundando, um meio de vida quase esquecida, entretanto nem uma única pessoa diante dela parecia consciente daquelas realidades desagradáveis, enquanto dançavam e riam. Algo dentro de Lily doeu. – Venha – disse Rafael, a boca contra sua orelha e o peito largo tocando suas costas, fazendo a dor interna dela aumentar. – Eu quero dançar. – Há centenas de mulheres aqui – replicou Lily, os olhos no espetáculo a sua frente. – Tenho certeza de que uma delas dançaria com você. Se pedir com jeito. A risada dele pareceu penetrar todos os poros de Lily, e ela não conseguiu se afastar, como sabia que deveria. – Eu não quero dançar com elas, cara. Quero dançar com você. Lily queria muito dançar com ele naquele palácio mágico, e por isso mesmo sabia que não deveria fazer nada do tipo. Com extremo esforço, afastou a cabeça da boca dele e quebrou a conexão. Quando se virou para encará-lo, o olhar de Rafael estava no topo de seus seios, que podiam ser vistos acima do corpete, e seus mamilos enrijeceram instantaneamente. A


verdade de sua reação a ele. Óbvia e inconfundível, não importava o que ela dissesse. Quando os olhos de Rafael finalmente encontraram os seus, estavam tão ardentes que Lily quase gemeu. – Eu não danço – disse ela, antes que ele simplesmente a conduzisse para a pista. Ele ficou parado ali, alto e lindo num smoking impecável que delineava o corpo másculo à perfeição, e ela queria chorar. Gritar. Qualquer coisa para quebrar a tensão em seu interior. – Quero dizer, eu acho que não sei dançar. – Você sabe. – Não sei de que adianta você me dizer isso, se eu não lembro como dançar. Posso pisar nos seus pés e causar uma cena horrível. Duvido que esse seja o tipo de espetáculo que você quer numa festa como esta. Ela só percebeu como parecia nervosa quando ele traçou a parte inferior de sua máscara com um único dedo. Era pressão, não calor. Rafael não a estava tocando, não realmente, e não havia motivo para que sua pulsação estivesse tão acelerada, ou para que estivesse ofegante. Notavelmente. Mais evidência contra ela, sabia. – Você não precisa lembrar, Lily – disse ele, a voz baixa acariciando-a e fazendo seu corpo inteiro ficar tenso, quente e desejoso. – Precisa apenas me deixar conduzi-la. Rafael não esperou resposta, o que ela supôs que fosse algum tipo de bênção. Ou, mais provavelmente, tratando-se dos dois, de praga. Ele simplesmente pegou sua mão e conduziu-a para a pista de dança. E Lily disse a si mesma que estava se misturando com a multidão ali, nada mais. Que não queria ser reconhecida aquela


noite, o que significava que também não queria chamar atenção para si mesma e causar uma cena. Já era ruim o bastante que Rafael fosse tão lindo e tão instantaneamente reconhecível... ela podia ver cabeças se virando, enquanto ele atravessava a multidão, algo que, claramente, era tão comum para Rafael que ele nem sequer parecia notar, enquanto acontecia. Lily convenceu-se de que acompanhá-lo de maneira obediente era a coisa certa a fazer. Que estava apenas se certificando de que permanecesse anônima e não notada... somente mais uma mulher bem vestida e mascarada entre tantas. Mas então ele virou-se e envolveu-a nos braços, e Lily não pensou em mais nada, exceto nele. Em Rafael. A boca sensual estava comprimida numa linha fina, mas a intensidade nos olhos escuros a fez tremer por dentro. Lily não tinha defesa contra aquela mão envolvendo a sua, ou contra a outra descansando na parte baixa de suas costas, como se ela estivesse nua, como se o vestido não fosse barreira alguma. Ela engoliu em seco enquanto deslizava sua própria mão até o ombro poderoso e sentia o calor emanando de Rafael e penetrando-a como se ele fosse um radiador. Lily se sentia em chamas, mas tudo que podia fazer era olhar para ele, seus lábios entreabertos numa respiração dificultada, o próprio desejo de Rafael como uma presença física que ela podia sentir. Sabia que deveria fazer alguma coisa... qualquer coisa... para suavizar o momento, para esconder como tremia diante do toque dele, da expressão possessiva nos olhos escuros, mas não o fez.


Não fez nada. E, por um momento, eles apenas permaneceram ali, se entreolhando. Parados, enquanto a dança girava ao seu redor, como se estivessem no centro de um carrossel, e a única coisa na cabeça de Lily fosse que eles estavam finalmente se tocando. Depois de cinco longos e solitários anos, ela estava nos braços dele, novamente. O lugar a que você pertence, uma parte suicida sua sussurrou. Onde sempre pertenceu e onde sempre pertencerá. E então Rafael começou a se mexer. Lily sentiu como se estivesse flutuando. Não tinha a sensação dos dois como entidades separadas... havia apenas a glória da dança e o toque mágico dele, o jeito como deslizavam pela pista como se estivessem sozinhos. Ela esqueceu onde acabava e ele começava. Seus corpos estavam muito próximos. E eles dançaram e dançaram. E era como voar. Os passos rítmicos eram como a poesia que ela nunca escrevera. Então a música mudou para algo muito mais inspirado no Natal do que em romance. Lily piscou, como se uma magia tivesse sido quebrada. Rafael diminuiu o ritmo, praguejando baixinho em italiano. – O que houve? – perguntou ela, mas estava muito confusa para se preocupar. Além disso, sentia tudo. A pressão das roupas finas contra sua pele aquecida. O calor do grande salão, da mão grande em suas costas. A maneira como ele a segurava contra si, as coxas grossas muito perto do lugar devasso que mais ansiava por ele. Ela o queria. Que Deus a ajudasse, mas ela sempre queria aquele homem, independentemente de qualquer coisa.


Rafael não respondeu sua pergunta, e Lily não se importou. A expressão no rosto dele era quase sofrida, e ela exultou-se por isso. Porque sabia exatamente o que acontecera com ele durante a dança. Era a mesma coisa que sempre acontecia, não importava o que eles fizessem. Era a coisa que já os destruíra tantas vezes. Mas ali, naquele momento, numa festa chique de Natal, naquela cidade de luz e magia, Lily não conseguia se importar com tudo aquilo, como sabia que deveria. Era como se a dança estivesse dentro deles agora, insistente e elegante, elementar e exigente. Ele emitiu um som que falava mais do animal no interior de Rafael do que do homem civilizado que estava representando essa noite, e Lily sentiu seus mamilos enrijecerem contra o corpete do vestido. Então, Rafael estava se movendo de novo, não dançando dessa vez, mas atravessando a multidão. Puxando-a consigo enquanto pegava um corredor iluminado que saía da lateral do hall principal, onde retratos a óleo antigos mostravam homens sérios sobre as paredes ornadas, enquanto portas menores levavam ao interior do palácio. – Eu não acho que este lugar seja aberto ao público – falou Lily. – Não acho que deveríamos estar aqui. Você acha? – Eu não poderia me importar menos com isso – murmurou Rafael. Então, acrescentou em italiano: – Mi appartieni. Ou foi isso que ela pensou ter ouvido, já que ele falara tão baixo. Você me pertence. E então ele girou-a e pressionou suas costas contra a parede mais próxima. Lily teve um breve vislumbre da expressão selvagem nos olhos escuros, antes que ele cobrisse sua boca com um beijo. E tudo estava perdido.


Aquele não era um momento de surpresa na rua. Não era nada, exceto desejo puro, carnal e mútuo. Lily não podia fingir o contrário. Nem mesmo se incomodou em tentar. Aquilo era fogo. Paixão. A história deles e aquela perfeição elétrica que os envolvia de forma instantânea. Esquecendo-se completamente de si mesma, ela o abraçou e permitiu que ele incendiasse a ambos. Rafael beijava do jeito como fazia tudo: com entrega total e habilidade devastadora. Ele tomou-lhe a boca, provando-a, saboreando-a, usando a parede para mantê-la exatamente onde a queria. Emitiu um gemido baixinho enquanto a beijava, como se não pudesse ter o bastante. Como se nunca fosse bastar. Ele segurou-lhe o rosto entre as mãos e angulou a cabeça, levando o beijo para outro nível de sensações intensas. Lily sentiu os joelhos fraquejarem, e seu corpo inteiro tremeu, enquanto ela correspondia aos beijos ardentes. Devia ter sonhado com o gosto de Rafael um milhão de vezes desde que fugira daquela vida, dele, mas a realidade era melhor. Muito melhor. Rafael mudou de posição, as mãos descendo do rosto dela para testar o formato de seus seios sob o tecido do vestido, e ela soube precisamente, pelo som de apreciação que ele emitiu, quando Rafael encontrou os bicos rijos. Mas então foi sua vez de gemer quando ele os cobriu com as mãos e pressionou-os, fazendo-a inclinar a cabeça para trás, a fim de aumentar a deliciosa pressão. Ele encontrou sua boca mais uma vez, e eles se beijaram, se abraçaram, se tocaram, um querendo enlouquecer o outro,


como uma explosão que continuava irrompendo. E explodindo. Sem fim. Lily precisava se afastar daquela boca incrível, por um momento, para respirar, ou pelo menos para tentar respirar. O corredor onde eles estavam era semiescuro e deserto, mas as luzes e música não estavam longe, de modo que alguém poderia entrar ali a qualquer momento... O jeito como sempre tinha sido. Desejo e o risco de serem descobertos, unidos e escondidos, onde apenas eles poderiam ver, sentir, sucumbir. E então ela esqueceu sobre o passado deles, sobre a festa, as pessoas e sobre o mundo inteiro, porque as mãos de Rafael estavam em sua saia longa e debaixo dela, e ele estava erguendo suas pernas para os quadris dele, a boca aberta contra seu pescoço. Lily não pensou. Ela incendiou-se. Envolveu o pescoço dele nos braços, enquanto Rafael levava uma mão entre eles, antes de encontrar seu olhar. Ela viu o maxilar forte enrijecer enquanto ele lidava com a calça. Em seguida, dedos hábeis estavam movendo sua calcinha para o lado, e a cabeça do sexo viril provocava sua entrada. Ela tremeu. Inteira. De dentro para fora. Tinha esquecido como aquilo era visceral, necessário. Como respirar. Apenas melhor. – Eu lhe disse – sussurrou ele. – Um beijo. Isso é tudo de que sempre precisa. E, então, ele a penetrou. De maneira vigorosa e profunda. E perfeita, como sempre.


Lily despedaçou-se em milhões de fragmentos diante do encaixe glorioso, e somente então ele se mexeu. Cada investida mais intensa e selvagem do que a outra. A dança gloriosa continuou, segurando-a quando ela teria desmoronado, e enlouquecendo-mais outra vez. Como se todo aquele desejo fosse novo. Rafael deslizou uma mão para seu traseiro, a fim de erguê-la mais, até que ela, ainda com as pernas abraçando a cintura estreita, agarrou os ombros largos, antes que ele inclinasse as costas dela contra a parede, a apoiasse com sua outra mão e investisse mais fundo. Lily adorou aquilo. Mais do que adorou. Era como chegar em casa, banhada em fogo. Era Rafael. Era a união deles. Novamente. Finalmente. E, quando ela jogou a cabeça para trás e atingiu outro clímax, mordendo o lábio para conter um grito, ele gemeu seu nome contra a lateral de seu pescoço e a seguiu. RAFAEL NÃO tinha ideia de quanto tempo eles permaneceram abraçados assim. Sua respiração estava tão ofegante que quase doía, sua testa contra a de Lily, enquanto ele tentava se recuperar, percebendo que não sentira que sexo era tão certo há tanto tempo que começara a pensar que tinha imaginado a coisa toda. Ela. O jeito como eles se moviam juntos, a poesia do ato de amor deles, que fora a única coisa sobre a qual ele pensara durante alguns anos. Já estava enrijecendo dentro dela outra vez, e movimentou os quadris preliminarmente, mas não adiantou. O ardor desesperado era o mesmo. Aquela loucura, como uma sede,


todos esses anos depois, continuava lá, e ele não sabia como saciá-la. Ainda não queria fazer nada, exceto mergulhar em tal loucura. Nela. Lily sempre fora uma revelação para ele. Isso não mudara. Mas ela o empurrou. E de novo, mais forte, e ele percebeu que ela enrijecera em seus braços. – Solte-me – disse ela, o tom de voz nervoso. Rafael angulou o corpo para trás, então a ajudou a abaixar as pernas para o chão. Reprimiu um sorriso de satisfação quando ela balançou um pouco, antes de se apoiar na parede, como se seus joelhos não estivessem aguentando seu peso. Mas o divertimento de Rafael desapareceu quando ele encontrou o olhar atormentado dela. – Lily – começou ele, estendendo o braço para lhe roçar o rosto, não inteiramente surpreso que ela estivesse tremendo de forma descontrolada. Ele sentia o mesmo tremor por dentro. – Cara, certamente... – Eu não posso fazer isso de novo! – Ela emitiu um som agudo, como se estivesse com dor, ou como se não tivesse pretendido falar. Os olhos de Lily estavam muito escuros, e Rafael fechou a calça enquanto a observava ajeitar o próprio vestido no lugar, como se eles nunca tivessem se tocado. Ele descobriu que detestava aquilo. – Eu não posso fazer isso! – Lily – repetiu ele, mas era como se ela não pudesse ouvi-lo. Como se houvesse uma tempestade envolvendo-a. – Olhe onde nós estamos! – acusou ela, gesticulando uma mão na direção da festa, o rosto contorcido e lágrimas escorrendo por baixo da máscara que ela ainda usava. –


Poderíamos também ter feito um show no centro da pista de dança! Qualquer um poderia ter nos visto. Ele deu um suspiro impaciente. – Ninguém nos viu. – Você não sabe disso. Espera que não. E isso é tão infantil, imaturo e irresponsável agora como foi cinco anos atrás... exceto que pior, por que o que acontece com Arlo se nossas escapadas sexuais chegarem aos tabloides, desta vez? Rafael começou a falar, a tranquilizá-la, mas então parou. Congelou, na verdade. Sentiu-se zonzo. Como se o grande palazzo de pedra tivesse virado de ponta-cabeça e aterrissado no centro de seu peito. – O que você disse? – Ele percebeu que fizera a pergunta em italiano e traduziu-a para o inglês, sua pulsação batendo nas têmporas. – Eu não posso fazer isso! – continuou ela, como se ele não tivesse falado. – Sei exatamente para onde isso nos leva. Eu, sozinha no acostamento na estrada, sem escolha senão fugir da minha vida inteira. Você é minha heroína, e eu não passo de uma viciada, e tudo entre nós é tóxico, Rafael. Sempre foi. E, então, ela virou-se e voltou para a multidão, não parecendo notar ou se importar que ainda estava instável sobre os pés. Enquanto Rafael permanecia parado ali no corredor pouco iluminado, totalmente atônito. Ela lembrava. Ela sabia. Uma coisa era suspeitar que ela lembrava. Outra era ouvi-la confirmando aquilo. Rafael ouviu um barulho baixo e inarticulado e percebeu que ele mesmo o produzira. Um som que vinha de algum lugar


profundo, onde ele trancara todas essas coisas... Então, sentindo-se atordoado pela intensidade das emoções que o percorriam em ondas, entretanto focado e entendendo que aquilo era mais a força de seu próprio temperamento de que qualquer outra coisa, ele foi atrás dela. Encontrou-a nos degraus do palazzo, do lado de fora, perto do canal. Lily virou-se antes que ele pudesse pegar seu cotovelo, como se tivesse ouvido sua aproximação, e enxugou umidade das faces com as mãos fechadas em punhos. Rafael disse a si mesmo que não se importava se ela chorasse. Que derramar algumas lágrimas era o mínimo que ela podia fazer, depois do que causara a ele. Levou longos momentos para que ele reconhecesse que a umidade no rosto de Lily não era de lágrimas. Era da neve, que caía entre eles, suave e silenciosa, desaparecendo ao encontrar a água do canal, o cais aos pés deles, a linda ponte iluminada a distância. – Você mentiu. – Rafael não ousou tocá-la. Não confiava em si mesmo para tocá-la agora. Lily finalmente admitira a verdade. Que o traíra de maneira cruel, e, naquele momento, ele se sentia tão desesperado que não sabia o que seria capaz de fazer. Pela primeira vez na vida, Rafael não se reconhecia. – Você mentiu esse tempo todo. Escondeu-se de mim, de propósito. Manteve meu filho longe de mim por cinco anos. Então mentiu ainda mais, quando eu a encontrei. Ele não percebeu, até que ouviu o eco de sua própria voz na água, que estava falando alto. Estar parado nos degraus de um palazzo em Veneza, na neve, com uma mulher há muito tempo


declarada morta, que tinha sido sua irmã de criação quando viva, não era algo exatamente discreto. Mas ela não se acovardou. Lily – e ela era inteiramente Lily, sua Lily – riu. Não havia humor na risada. Era um som horrível, e ele pensou que poderia tê-la ferido. Detestava que se preocupasse com isso. Que a dor dela lhe importasse, quando o contrário não era verdadeiro. – Em qual casa de vidro nós deveremos jogar pedras esta noite, Rafael? – demandou ela, a voz tão ríspida quanto a risada tinha sido. – Isso é o que fazemos. É quem somos e quem sempre fomos. Machucamos um ao outro. De novo e de novo. Que importância tem isso agora? – Você forjou sua morte! – acusou ele, enquanto a neve, o frio e o eco da música vinda de dentro do grande palácio os envolvia. – Como qualquer coisa que eu lhe fiz equivale a isso? – Eu não forjei nada. – Ela estava ofegando, mas ainda imóvel, como ele. Como se ambos estivessem congelados juntos naquele momento horrível da verdade. Como se não houvesse escapatória para nenhum dos dois. – Eu apenas não apareci e corrigi as pessoas, quando elas pensaram o pior. Não é a mesma coisa. Rafael não reconheceu o sentimento quase violento que o preencheu então. Deu um passo atrás, voltando à realidade, lembrando que eles estavam do lado de fora do palácio, em público, lavando roupas tão sujas que ele pensou que poderiam contaminar a Itália inteira. Precisava conter isso. Precisava conter seus sentimentos, antes que eles o consumissem. Antes que olhasse atrás da fúria que


experimentava e se permitisse sentir o que espreitava do outro lado... Mas isso era para outra hora. Outro lugar. Rafael assobiou para seu táxi aquático, e seu piloto apareceu das sombras tão rapidamente que ele se perguntou o quanto o homem ouvira daquela conversa. Não podia fazer nada a respeito, então pegou o braço de Lily. Pensou que a audácia da traição dela pudesse ter diminuído sua luxúria insaciável por Lily... mas o contrário aconteceu. No momento que ele a tocou, desejou-a com desespero. Era quase como se a quisesse mais, sabendo o que ela fizera com ele. Você sempre foi obcecado no que diz respeito a Lily, disse a si mesmo então. Por que isso o surpreende? – Não aqui – disse ele, e não a olhou. Não tinha certeza se seria capaz de não gritar com ela... ou pior, de não a beijar até que a feia verdade desaparecesse. – Acho que já fizemos cena suficiente por uma noite. Ela tentou desvencilhar-se de seu toque, então o fitou com raiva quando ele não a soltou, conduzindo-a escada abaixo e em direção ao cais. – Então, sexo quase público não tem problema, mas alguém ouvir uma discussão é um escândalo? – demandou Lily, tentando, sem sucesso, parar. – Eu não vou a lugar algum na sua companhia. Você deve estar insano! – Estou muito mais do que insano, Lily – replicou Rafael, e viu-a arregalar os olhos diante de seu tom suave e letal. Ele inclinou-se para mais perto, encarando-a, sem esconder sua fúria. – Eu fiquei de luto por você. Senti sua falta. Minha vida foi pouco mais do que um mausoléu erguido em sua memória, e era


tudo uma mentira. Uma mentira contada por sua ausência proposital, durante anos, e então, quando eu a encontrei por acaso, você mentiu deliberadamente, na minha cara. Rafael podia senti-la tremendo sob sua mão, e não achou que fosse um tremor de desejo, dessa vez. Podia ver a tempestade nos olhos azuis, e não queria isso. Nada disso. Passara cinco anos sonhando com o retorno de Lily, sã, salva e sua novamente, mas nunca pensara muito sobre como tal encontro poderia acontecer. Não tinha certeza se queria saber. Talvez fosse melhor manter algumas portas fechadas. – Rafael – começou ela com um tremor na voz que o desmoronaria, se ele permitisse. O que não fez. Em vez disso, interrompeu-a: – Se eu fosse você, entraria no maldito barco.


CAPÍTULO 7

O TRAJETO de barco pelo canal foi tenso e silencioso. A neve caía em volta deles com o tipo de bênção natalina que nenhum dos dois merecia, abafando os sons da velha cidade e transformando-a, tornando-a muito mais serena. Porém, muito pior do que isso, pensou Lily, colocando a capa em volta dos ombros desnudos e vendo o mundo se tornar um globo de neve, era que a viagem pela água era breve demais. Ela se revelara, finalmente. Não tinha ideia do que isso significava, apenas que estava feito e não havia retorno. Rapidamente demais, Rafael conduziu-a do barco para dentro do palazzo de sua família, a fúria palpável enquanto ele caminhava ao seu lado, e mais forte do que a mão que circulava seu braço. Não ocorreu a ela desafiá-lo. Lily não achava que isso lhe faria algum bem. Se ela fosse honesta consigo mesma, sabia que, por mais que tivesse tentado evitar o momento da verdade, uma grande parte sua estava aliviada. Não que ela fosse sucumbir àquela paixão destrutiva novamente, mas não haveria mais mentiras.


Disse a si mesma que isso era uma coisa boa, enquanto entregava a capa para um servo e tremia... embora não de frio. Era hora para honestidade, por mais feia que a verdade fosse. Rafael andou ao longo da coleção de cômodos no segundo andar, mais comumente alugados para exposições de arte, hoje em dia, do que para dar festas como aquela da que eles tinham acabado de sair, então subiu a escada para as suítes privadas da família. Ele manteve uma mão nas costas de Lily, conduzindo-a para onde queria ir, e ela não ousou desobedecer-lhe. Não quando sentia que Rafael estava se contendo com muita dificuldade para fingir educação. Quando um olhar para o rosto sério dele a fez pensar em coisas selvagens, paixões incontroláveis e desafios que ela esperava que fosse sábia demais para aceitar. Ele guiou-a para dentro do vasto salão no centro das suítes que se estendiam por todo o piso superior, com vista para a linda Veneza nevando, em todas as direções. Então, deixou-a parada lá, no meio da arte opulenta e objetos antigos, desde as pinturas a fresco adornando as paredes até os quadros e móveis elegantes. Um exemplo da riqueza dos Castelli... e do seu poder... num único cômodo, com a fúria de Rafael em seu centro. Ela observou-o andar até o gabinete de madeira entalhada que servia como bar e servir-se de uma bebida escura. Rafael tomou o drinque num gole só, serviu-se de outra dose, e somente então se virou para encará-la. Foi quando Lily percebeu que ela simplesmente ficara lá, onde ele a deixara, como se estivesse aguardando o julgamento dele. Como se merecesse a condenação... mas ela reprimiu o pensamento assim que ele se formou.


Rafael não era a vítima ali. Nem ela era. Ou, talvez, ambos fossem, e vítimas da mesma paixão louca. E Lily disse a si mesma que o fato de ainda estar parada lá não tinha nada a ver com algo que parecera mágoa, que pensara ter visto no rosto de Rafael, quando ele a seguira para os degraus do palazzo do outro lado do canal. Uma expressão atormentada que ela sabia que colocara lá. Sabia que tinha feito isso com ele, independentemente de quem fosse a vítima naquela história. Lily o deixara, e da pior maneira imaginável. Isso era inegável. Por que deveria se importar se saber o que fizera o magoara? Já não o magoara... e a todos que conhecia? O que mais uma mágoa importava, considerando todo o resto? – Tire a máscara – ordenou Rafael, e o grande salão pareceu encolher. – É hora de nos encararmos, depois de todo esse tempo. Não acha? A verdade era que Lily havia esquecido que estava com a máscara. Assim como esquecera como estivera frio do lado de fora, até agora, quando o calor a envolveu e fez sua pele gelada parecer marcada. Quase dolorida. Ela pensou que havia algum significado naquilo, como se até mesmo o tempo estivesse conspirando com Rafael, forçando-a a sentir todas as coisas que Lily jurara que nunca mais sentiria. Todavia, era hora da verdade. Da honestidade, por mais brutal que fosse. Ela puxou a máscara do rosto e jogou-a no sofá mais próximo, dizendo a si mesma que não havia razão para se sentir vulnerável. Como a máscara a protegera? Não a protegera. Ainda podia sentir a posse de Rafael como uma marca pulsando entre suas pernas.


Ele não tocara sua máscara. Mas a tomara. E ela permitira. Mais do que permitira... ela o encorajara. Nenhum deles tinha causado essa coisa louca entre os dois. Ambos eram vítimas. Ambos estavam igualmente perdidos na situação. Sempre estiveram. – Agora – começou Rafael numa voz gelada, quando ela o olhou. – Explique. – Você já sabe o que aconteceu. – Não. – Ele parecia mais do que apenas zangado, mais do que magoado, também, e ela sentiu um friozinho na barriga. – Eu sei que você supostamente morreu. E sei que então, eu a vi, anos depois, na rua, numa cidadezinha da América. Tirei conclusões sobre o que podia ter acontecido entre esses dois eventos, enquanto você brincava de jogos de identidade, mas não. Eu não sei o que aconteceu. – Ele apertou a mão em volta do copo. – E certamente não sei por quê. Lily passara cinco anos tentando responder essas perguntas para entender suas razões ... mas responder para ele era diferente. Para Rafael, que era o motivo por trás de todas as terríveis decisões que ela tomara na vida, de uma maneira ou de outra. Lily engoliu em seco e cruzou os braços, como se isso pudesse protegê-la dele. Ou da história que ela nunca quisera contar. Ainda não queria. – Talvez seja melhor esquecer tudo isso – sugeriu ela, chocada ao ouvir como sua voz soou fraca. Pigarreou. – Por favor, lembre que eu não queria ser encontrada. – Eu lembro, acredite. – A voz profunda era ríspida. Ele girou o líquido no copo, estudando-a, e ela teve a impressão de que ele


podia ver todos os pelos arrepiados em sua nuca e braços. – Você está protelando. – Por que o motivo importa? – Lily lutou para parecer calma, apesar do abalo interior. – O que saber o motivo fará, exceto piorar as coisas? – Você me deixou pensar que estava morta. – Rafael não estava se contendo agora, e ela precisou se esforçar para não se encolher diante de toda aquela emoção emanando dele. – Deixou o mundo inteiro pensar que estava morta. Que tipo de pessoa fingiria estar morta para as pessoas que a amavam? – Você não me amava – retrucou ela, antes que tivesse tempo de temperar aquilo. Ele enrijeceu, mas estava dito. Não havia retorno. Ademais, era verdade. Isso se tratava de verdade. – Você estava obcecado. Viciado, talvez. Com o segredo. Com a loucura. Com o deleite de toda aquela paixão. Eu sei. Eu estava lá. Mas amor? Não. – Acho que você interpretou tudo sozinha, sem me perguntar sobre como eu me sentia. – Sei o que você sentia – insistiu ela. – Eu sentia o mesmo. – Evidentemente não – discordou Rafael. – Ou você não teria enviado um carro penhasco abaixo e saído andando, deixandome imaginar sua morte horrível e dolorida para sempre. Você não sentia o que eu sentia, Lily. Duvido que sentisse qualquer coisa. Aquilo a feriu, mas ela absorveu a ofensa valentemente. Esperou até que seu coração doesse menos no peito. Até que pudesse falar sem trair as lágrimas presas na garganta. – Eu sentia muito – disse ela. – Muito de tudo. Muito para suportar.


A condenação nos olhos escuros foi pior do que qualquer coisa que ele pudesse ter dito. – Perdoe-me se não estou convencido. Suas ações falam diferente, Lily. – E quanto as suas? – Eu amava você. – Ele não gritou as palavras, entretanto Lily achou que elas fizeram o palazzo inteiro tremer sobre sua fundação. – Nunca mais me senti inteiro desde então. – Eu acho que você se apaixonou por um fantasma – murmurou ela, a voz levemente trêmula. – Teve cinco anos para criar sua Lily perdida em sua cabeça. Ela era pura e virtuosa? Você a amou com tanto desespero que nenhuma mulher viva se comparava? A perda dela foi um golpe do qual você nunca se recuperou? – Lily deu de ombros quando ele fez uma careta. – Ela parece um modelo de perfeição. Mas essa não sou eu, Rafael. E aquele certamente não era você. – Eu a amei – repetiu ele. – Não pode fazer isso desaparecer porque não é conveniente para você. – Eu lembro bem como você me amava, Rafael. Lembro-me de todas as mulheres com quem você dormiu, enquanto alegava que nosso relacionamento precisava continuar secreto. Disse que tinha de manter sua imagem. Riu quando isso me aborreceu. Diga-me, você me amava tanto assim quando estava dentro delas? E, por um momento, Lily não soube o que era pior... a possibilidade de ele não responder... ou a resposta que ouviria. – Se essa é sua versão de uma explicação, é horrível – falou ele, após um longo momento, então bebeu o drinque num único


gole. Colocou o copo sobre o gabinete com tanta violência que fez Lily saltar. – Não sou eu o mentiroso nesta sala. – Pelo contrário – replicou ela, esperando não demonstrar seu nervosismo. – Há dois mentirosos nesta sala. Você não é a história que tem contado para si mesmo, Rafael. – É a verdadeira Lily que está falando agora, ou o fantasma que criei na minha cabeça? – perguntou ele, a expressão furiosa. – Estou achando difícil acompanhar. Ela balançou a cabeça. – Mentirosos é tudo que sempre fomos, desde aquela primeira noite, quando você tirou minha virgindade sobre uma pilha de cobertas no quarto de hóspedes do château de seu pai, então voltou para a festa, a fim de beijar sua namorada à meianoite, como se nada tivesse acontecido. – Lily riu da expressão dele, quando Rafael pareceu tão feroz. – Desculpe, você embelezou isso em sua imaginação? Tornou tudo colorido e sem traições? Bem, não foi assim. E eu sou tão ruim quanto você, porque sabia que você tinha uma namorada, e não tentei impedir aquilo. Ele a olhou, todo o ultraje e ferocidade desaparecendo do rosto bonito, e ela viu quando ele absorveu suas palavras. Imaginara esse momento tantas vezes. Imaginara a si mesma atingindo-o com a verdade, e isso mudando tudo, de alguma maneira. Todavia, sentiu-se pior. Incalculavelmente pior. – Nós éramos pessoas horríveis – murmurou Lily então, com uma urgência que fez sua voz tremer. – Com certeza – concordou ele, aproximando-se, uma tristeza na voz que ela nunca ouvira antes.


– Talvez você devesse permitir que nós dois esquecêssemos o passado. Rafael meneou a cabeça. – Mas esse é o problema, não é? Nenhum de nós esqueceu coisa alguma. Lily ficou tensa. – Isso não significa que precisamos remoer o passado. – É isso que você acha que estamos fazendo? – perguntou Rafael, o olhar tempestuoso. – Talvez sim. Mas eu não vou me desculpar por ter sofrido por sua suposta morte, Lily. Por como lidei com sua perda. Você me abandonou. Sabia o que estava fazendo. Eu não tive tal escolha. – Suas escolhas vieram antes disso – retorquiu ela, magoada e furiosa com ambos, que tudo aquilo ainda podia machucar depois de todo aquele tempo. Depois que tanta coisa mudara. – E você escolheu segredos. Mentiras. Outras mulheres. – Não vou negar que fui um homem egoísta, Lily. – Os olhos escuros eram como fogo, e ela não percebera quando ele se aproximara. – Não posso. Arrependo-me disso todos os dias. Mas nós não tínhamos compromisso. Posso não tê-la tratado tão bem quanto deveria, mas eu não a traí. Lily respirou fundo, impressionada com a dor que sentia, quando não havia nada novo na situação. Nada além de uma velha ferida, uma lâmina cega. E a mesma mão familiar para empunhá-la. – É claro que não. – Ela desejou que pudesse odiá-lo. Certamente, seria melhor. Mais simples. – E, pensando nessas linhas, eu nunca escondi Arlo de você. Tecnicamente. Se eu o tivesse visto, teria lhe contado.


As palavras fervilharam no ar entre eles, como angústia. Se ela pudesse morrer disso, pensou Lily, já teria morrido. Anos atrás. Deus sabia que ela chegara perto. Rafael resmungou alguma coisa em italiano. Pondo uma mão em sua nuca, puxou-a para seu peito sólido. Então, parou de falar e cobriu-lhe a boca com um beijo ardente. E, dessa vez, não havia festa por perto. Ou pais que pudessem ficar horrorizados diante da cena. Ninguém para interrompê-los. Ninguém para ouvi-los. Dessa vez, Rafael não teve pressa. Beijou-a como se isso fosse realmente amor. Como se ela tivesse se enganado o tempo todo. A boca sensual era condenação e carícia, ao mesmo tempo, e Lily perdeu-se, do jeito como sempre se perdia. Entregando-se. Carente, desesperada e inteiramente dele. Como sempre fora. Rafael removeu o paletó, deixando-o cair no tapete, ainda beijando-a. Mergulhou as mãos nos cabelos dela, soltando as presilhas, até que mechas ricas cascateassem entre eles e os acessórios brilhantes caíssem no chão, enquanto ele aprofundava o beijo, como se nada no mundo importasse tanto quanto a fricção delirante da boca dele contra a sua. Lily traçou os músculos do peito largo, incapaz de se controlar, e incerta se queria tentar. Enfiou os dedos nas aberturas entre os botões da camisa masculina e puxou, satisfeita quando eles estouraram e expuseram o peito esculpido. E então ela sucumbiu ao velho desejo e deslizou a palma da mão na pele suave, com sua trilha de pelos escuros. Estava consciente do cheiro do sabonete de Rafael, da língua que provocava a sua e de


seu desejo crescente por esse homem que ela não deveria querer com tanto desespero. Lily afastou a boca da dele, e eles ofegaram enquanto se entreolhavam, todos os erros daquela conexão, todas as mentiras que haviam contado e as coisas que tinham feito como uma névoa grossa entre eles, embaçando tudo ao redor. Ele falou alguma coisa em italiano que doeu ouvir, e ela nem entendeu as palavras. Lily não sabia o que fazer. Era mais fácil atirar palavras amargas em Rafael. Era mais fácil tentar odiá-lo. Era tão mais fácil odiar a si mesma, censurar-se pela importância da abstinência, chamar a si mesma de viciada. Mas heroína não causava dor. Era infinitamente mais difícil inclinar a cabeça para pressionar os lábios sobre os músculos peitorais de Rafael, como um pedido de desculpas que ela não ousava pronunciar. Rafael suspirou, ou talvez fosse um gemido, e removeu toda a camisa. Então ficou parado lá, nu da cintura para cima, ainda mais perfeito do que tinha sido todos aqueles anos na cabeça de Lily. Ela não conseguiu ler a expressão no rosto dele, ou definir sua própria reação àquilo. E isso ameaçava despedaçá-la, e estava tudo lá, no dourado dos olhos escuros. No aperto em seu peito, fazendo-a imaginar se algum dia respiraria novamente. – Vire-se – ordenou ele. Ela congelou, mas Rafael apenas encarou-a de maneira implacável. – Não me faça repetir. Lily obedeceu sem pretender fazê-lo, virando-se de costas para ele e de frente para o encosto alto do sofá mais próximo. – Rafael – começou ela, mas parou e arfou quando um peito sólido pressionou suas costas, deixando-a tonta de desejo.


Aquele desejo delirante e infinito que mudava sua vida. – Aqui estão suas escolhas, Lily. – A boca dele estava perto daquele lugar sensível atrás de sua orelha, enviando excitação diretamente para o centro de seu corpo. Ela estava cercada por ele, e não sabia o que sentia. Não sabia mais quem era quando estava com Rafael. Ou o que estava fazendo. Mas também parecia incapaz de parar. – Você pode ir dormir agora, sonhar com todas as maneiras que erramos um com o outro, de modo que possamos nos ferir mais pela manhã. Eu não a culparei, se você fizer isso. Lily sentiu que não podia respirar, mas então percebeu que era ela quem estava ofegando. – Ou...? – perguntou, numa voz que mal reconheceu como sua. E ele estava rígido, quente e perfeito atrás dela. – Ou você pode se dobrar sobre esse sofá e segurar-se firme. RAFAEL ACHOU que ela fugiria. Talvez alguma parte sua quisesse que ela fizesse exatamente isso. Talvez ele não soubesse qual dos dois estava tentando assustar. Ouviu quando Lily respirou fundo. Disse a si mesmo que a deixaria ir. Que não tinha outra escolha. – E... o que acontece se eu fizer isso? Ele não fingiu que não sabia a que isso Lily se referia. Triunfo o inundou, mais potente do que o uísque que bebera, e ele sorriu. Deslizou a mão pela lateral dela, por toda aquela extensão quente e a tatuagem que sabia que o esperava sob o vestido. Lily


mexeu-se de leve contra ele, então ficou imóvel, como se também não pudesse se controlar. E Rafael descobriu que isso fazia toda a diferença, pois esclarecia as coisas. Não importava a situação caótica na qual se encontravam. O que tinham perdido. Como haviam mentido. Nada disso tornava Lily menos sua. – Dobre-se, Lily – ordenou ele com a voz rouca, e era animal o bastante para apreciar a reação que ela lutou para reprimir diante de suas palavras. – Agora.


CAPÍTULO 8

LILY DISTANCIOU-SE um passo, e Rafael descobriu-se prendendo a respiração, enquanto ela ficava ali parada por um momento. Como se ainda não tivesse decidido, antes que virasse a cabeça para olhá-lo por sobre o ombro. Os olhos dela eram tão azuis. Como o céu da Califórnia. Ele pensara que nunca mais fosse ver aquela cor maravilhosa, que teria de se contentar com a memória. Não ia mais se contentar com memórias. Queria lhe dizer centenas de coisas, mas nada importava quando o que fervilhava entre eles era a mesma coisa. Lily era sua. Não importava a distância, os anos. As mágoas e as mentiras. O que ela pensava dele, deles, o passado, o futuro que tinham que decidir, agora que havia Arlo a considerar. Era tudo confusão. Lily era a tranquilidade doce no centro daquilo tudo. Ela era sua. Ele a viu inspirar e expirar. Viu a decisão brilhar nos lindos olhos, uma decisão que ergueu o pequeno queixo e fez tudo nele enrijecer em antecipação. E, ao mesmo tempo, temer...


Ela virou a cabeça para frente de novo e deu outro passo, agarrando o encosto do sofá, como ele lhe pedira para fazer. Luxúria e uma onda de triunfo o preencheram. Ele a queria tanto naquele momento que, se a tocasse, imaginava que poderia implodir. E isso não seria bom. Então, ele a fez esperar. Foi até o bar e serviu-se de outro drinque. Demorou-se ali, observando-a intensamente. – Não se mova – ordenou suavemente, quando ela se mexeu, como se pretendesse endireitar o corpo. – É a sua vez de esperar, Lily. Eu aguardei por cinco anos, sem esperança de que você retornaria. Você esperou cinco segundos até agora, e sabe exatamente onde estou. Pode sofrer com o mistério um pouco mais, não acha? – Eu não sabia que você gostava de torturar – retorquiu ela, a postura desafiadora quando inclinou a cabeça de lado, fazendo com que os cabelos loiro-avermelhados cascateassem sobre um ombro. – Esse é um hobby novo? – Você não tem ideia – murmurou ele. – Você poderia me beijar como uma pessoa normal – apontou Lily casualmente, como se não estivesse numa posição provocante, esperando seu prazer. – Ou isso é muito trivial para um herdeiro Castelli num palazzo veneziano? – Ogni volta che ti bacio dimentico dove sono. Cada vez que beijo você, eu esqueço onde estou. Ele não pretendera dizer isso. Mas a verdade era que não apenas queria aquela mulher. Ele a admirava. Ansiava pela língua ferina dela tanto quanto pelo calor úmido contra sua pele. Nunca conseguira superar a perda de Lily. Uma perda que fizera de Rafael um homem


completamente diferente... e ele não sabia, agora, como juntar tais peças distintas numa só, outra vez. Se é que isso era possível. Pondo o copo sobre o bar, ele voltou para ela, que, naquele vestido da cor do mar, parecia uma criatura mística, perfeita demais para ser acreditada. Todavia, ali era Veneza, afinal de contas. Era mais fácil acreditar que tudo era possível numa cidade que não deveria existir. Mas Lily estava lá novamente, não estava? Ela vivia. Não tinha morrido no acidente de carro. Isso não era um sonho. Rafael podia considerar considerá-la um milagre, se quisesse, e disse a si mesmo que se preocuparia mais tarde com os detalhes que tornavam aquilo possível. Muito mais tarde. Ele inclinou-se sobre ela, segurando-lhe os quadris. Ela tremeu daquele jeito profundo que parecia contagiá-lo, e, quando Rafael abaixou-se para lhe beijar a nuca, ambos suspiraram. Ela estava tão quente, tão delicadamente perfumada. Ele podia sentir o cheiro que era unicamente de Lily, uma mistura sedutora de pele, sexo e artigos de banho. E a pele sob seus lábios era tão macia. Tão, tão macia. Ela estremeceu, e ele queria inalá-la. Inteirinha. – La tua pellet e’ come seta – murmurou Rafael contra a nuca sensível, sabendo que ela podia entendê-lo. Apreciando esse fato, se fosse honesto. Sua pele é como seda. – Por que eu não posso virar? – A voz de Lily não passou de um sussurro. Ele sorriu contra a pele dela.


– Porque, assim, só pode haver honestidade entre nós. Sem mentiras ou memórias de faz de conta. Ou você vai responder a mim ou não vai. – Você não parece preocupado que eu não responda – disse ela, quase com tristeza. Ele mordiscou-a de levinho e ouviu um gemido em resposta, música para seus ouvidos, e inclinou-se para mais perto. – Não – sussurrou ele contra a pele quente. – Eu não estou preocupado. Rafael espalhou uma trilha de fogo ao longo do pescoço delicado, descendo para o ombro delgado. Explorou-o com a boca, as mãos, então foi para o outro ombro. Manteve-a presa ali pelo seu corpo muito maior, absorvendo cada som doce que Lily emitia... muito mais inebriantes do que qualquer uísque. E, apenas quando reaprendeu cada centímetro das costas dela, afastou-se. Lily estava tremendo, a cabeça entre os ombros, ofegando como se tivesse corrido. – Prepare-se, cara – disse ele, não tentando esconder a satisfação masculina na voz. – Eu só estou começando. Lily deu uma risada baixa e rouca. Infinitamente sensual. Penetrando-o e abalando-o como um pequeno tsunami. – Promessas, promessas – provocou ela suavemente. Ela era letal. Era bom que Rafael se lembrasse disso. Ele estendeu a mão e encontrou o zíper escondido do vestido, começando a descê-lo e expondo a coluna longa e a extensão de pele sedosa. Sua boca aguou, mas ele continuou descendo o zíper, deixando o vestido cair aos pés dela, efetivamente prendendo-a em metros e metros de tecido.


Lily era como um banquete a sua frente, e ele se permitiu deleitar-se com a visão. Seu próprio milagre pessoal. Rafael olhou para a tatuagem que acreditara que nunca mais veria, a tatuagem que provara que ela era quem ele sabia que era à primeira olhada. A tatuagem que a marcava como sua Lily para sempre. Ele tocou-a ali, traçando as linhas pretas sinuosas, que desciam quase até o topo da calcinha fio-dental, acima das nádegas, e subiam até onde teria sido a linha do sutiã, se Lily estivesse usando um. Então, traçou os dedos sobre o lírio delicado que algum estranho desenhara na pele dela, as pétalas abertas e o doce botão no centro, como se ele a estivesse pintando com sua posse. – Rafael... – A voz rouca de Lily continha puro desejo, e ele sorriu. – Por favor. – Por favor, o quê? – perguntou ele. – Eu mal comecei. E acho que esta tatuagem é outra mentira que você contou. Ela balançou a cabeça, erguendo-se um pouco, mas ainda mantendo a posição. Parada onde ele a colocara, e Rafael não sabia o que o excitava mais, a obediência de Lily ou o desejo dela. Ambas as coisas. – Uma tatuagem é o oposto de uma mentira – declarou ela. – É tinta na pele, e imutável. – E, se você a detestasse tanto quanto alega detestá-la – ele se inclinou para mais perto, então se abaixou de modo que pudesse pôr a boca no centro da bonita flor vermelha –, já teria mandado removê-la, a essas alturas. Ele ouviu-a arfar novamente e continuou a provar a flor delicada, enquanto usava as mãos para lhe acariciar os quadris e


as curvas do doce traseiro. E, somente quando podia senti-la tremendo, tocou-a onde ela estava quente, úmida e mais do que pronta para ele. Rafael conhecia aquele corpo melhor do que o seu próprio corpo. Conhecia o gosto, o formato de Lily. Sabia exatamente como tocá-la para enlouquecê-la. E, se aquilo o matasse, bem... ressurreições estavam acontecendo. Ele sobreviveria, de alguma maneira, mesmo se apenas para encontrá-la novamente. Traçou as dobras femininas e o centro do prazer, até que ela estivesse se inclinando para trás a fim de encontrá-lo. – Conte-me uma coisa – murmurou ele, enquanto a provocava. – Quantos homens Alison teve naqueles cinco anos? Ele pôde senti-la enrijecendo diante da pergunta, mas tinha dois dedos dentro dela, e havia somente uma verdade que sempre importara entre eles. Não importava o que Rafael fazia com ela, ou que mentiras ela contava. Não importava quão furiosa Lily estivesse ou o que ela tivesse feito. O que ele fizera com todas aquelas outras mulheres, a propósito, ou o quanto se arrependia de cada uma delas. Podia senti-la, úmida e doce, comprimindo-o, mesmo nesse momento. Essa era a única verdade. Esse calor. Esse desejo. Isso era o que eles eram. – Você é hipócrita – disse ela, soando desesperada e furiosa, entretanto seus quadris se moviam em abandono selvagem, encontrando cada investida. – Saiba disso. – Eu nunca aleguei o contrário – respondeu ele. – Especialmente não para você. Mas não respondeu a minha pergunta.


– Que importância tem isso? – demandou ela, então deu um gritinho quando ele mudou o ângulo e penetrou-a mais fundo. – Quantos? Rafael sentiu-a tremer, então parou de fingir que era qualquer coisa, exceto animal, no que dizia respeito àquela mulher. Ou que algum dia seria. Cinco anos de separação, pensando que ela estava morta, não haviam mudado isso. Nada poderia. – Fale – insistiu ele. – Nenhum, Rafael – gritou Lily, quando ele pressionou o centro do desejo dela com uma mão e massageou-a profundamente com a outra. – Nunca houve outro homem além de você. E nunca haverá, pensou ele, sentindo uma emoção forte preenchê-lo. – Por isso – disse ele, movendo-se para cima e colocando a boca contra a orelha dela –, você ganha uma recompensa. Então Rafael girou a mão e tocou-a precisamente no lugar certo, segurando-a quando ela atingiu o clímax. E ele só estava começando. LILY REGISTROU quando ele a ergueu, tirando-a do vestido, que estava agora amassado no chão, e acomodando-a nos braços fortes. Mas ela sentiu a mudança na temperatura enquanto ele a carregava através das portas da grande sala para o corredor, segurando-a contra seu peito nu. Ela deveria ter sentido frio, sabia, mas, na verdade, sentiu-se segura. Do jeito como sempre se sentira quando estava com aquele homem... o último homem que poderia ser considerado remotamente seguro.


Mas Lily envolveu o pescoço dele com os braços e não se questionou. Rafael abriu outro conjunto de portas com os ombros, e Lily teve apenas um momento para absorver uma saleta de estar, iluminada por pequenos abajures de vidro colorido, antes que ele entrasse num quarto majestoso, localizado bem acima do Grand Canal. Ela viu as luzes brilhantes dos prédios antigos do lado de fora, e a neve que caía, e então o mundo se estreitou numa cama de quatro colunas que dominava o cômodo ricamente decorado. Quadros com molduras em ouro enfeitavam as paredes vermelhas, havia um fogo dançando na enorme lareira na parede mais distante, e havia Rafael no centro de tudo. Ele sentou-a na lateral da grande cama, a expressão inescrutável. Os cabelos de Lily estavam soltos e desalinhados, e ela estava somente de calcinha, enquanto ele ainda usava a parte de baixo do terno escuro. Lily achou que alguma dessas coisas deveria tê-la incomodado, mas isso não aconteceu. – Você se lembra de mim – afirmou ele então, depois do que pareceu um longo tempo. Podia ter sido uma acusação... mas não era. Rafael levantou a mão e estendeu-a, e ela imitou o gesto, colocando sua mão contra a dele, de modo que eles ficassem palma com palma. – Sim – concordou ela, consciente de que a palavra era como um juramento no vasto quarto silencioso. – Eu me lembro de você. Lembro-me disto. Era mais fácil lembrar-se do sexo e das mentiras, das traições e das brigas. Mas tais coisas não tinham sido a soma total do que


se passara entre eles. A verdade era que Lily não gostava de se lembrar da outra parte. Ainda doía muito. Mas isso não parecia importar agora, num conto de fadas de uma suíte naquela cidade mágica, enquanto a neve continuava caindo e o fogo dançava, e Rafael estava bem a sua frente, mais lindo do que ela se permitira lembrar. Lily estivera com 19 anos naquela véspera de Ano-Novo. Ela o provocara, ele a tomara, e então eles tinham voltado para suas vidas, fingindo que nada acontecera. Ele bancara o namorado atencioso para qualquer namorada tola que tivera na época. Ela fingira desprezá-lo, e desprezar a família Castelli inteira, como sempre desprezara. Então o feriado acabara, e era hora de Lily voltar para Berkeley, continuar seu segundo ano de faculdade. Ele a capturara no foyer do château enquanto ela começava a ir para o lado de fora, em direção ao carro, com suas malas. A namorada de Rafael estava rindo no cômodo ao lado, com o resto das famílias de ambos. Eles poderiam ser descobertos a qualquer momento. Rafael não falara. Mal a olhara desde a véspera do Ano-Novo. Mas ele levantara a mão assim, e ela a encontrara. E tinha sido um momento intenso, o simples toque parecendo conter choro, constrição e dor. No entanto, eles haviam ficado parados daquela forma pelo que parecera uma eternidade. Agora, todos esses anos depois, Lily entendia melhor. Essa era a conexão deles em sua forma menos destrutiva. O toque ainda os unia, conferindo uma importância secundária a todo o resto. – Eu pensei que tivesse perdido você – disse ele em voz baixa. Tão baixa que Lily pensou que tivesse imaginado as palavras.


Mas então os olhos escuros prenderam os seus. – Achei que você tivesse ido embora para sempre. A brutalidade do que ela fizera a atingiu então. Ela entendera que o ferira, sim. Tinha ferido muitas pessoas. Convencera-se de que aceitava aquilo, pois, por Arlo, valia a pena. Mas nunca pensara sobre isso. O calor da pele de Rafael contra a sua. A conexão deles que desafiava todos os pensamentos, todos os motivos, todos os esforços para rompê-la. O que ela teria feito se tivesse pensado que ele morrera? Como poderia ter vivido com isso? Sua garganta estava apertada demais para falar. Lily não tentou. Em vez disso, inclinou-se para frente e beijou-lhe o centro do peito. Sentiu-o arfar, mas não parou. Empurrou-o deitado na cama, ciente de que Rafael estava permitindo aquilo, e que, do contrário, ela não teria movido o corpo poderoso. Ela ainda não conseguiu falar. Mas isso não significava que não podia se desculpar do seu jeito. Lily despejou toda sua dor e tristeza sobre ele, transformandoa em calor. Rafael apoiou-se sobre os antebraços, e ela subiu pelo corpo másculo, beijando a coluna forte do pescoço, o local da pulsação que sabia que batia por ela, então descendo a boca para celebrar a perfeição do peito sólido. Deixou seus cabelos o roçarem, enquanto deslizava para o abdômen reto, provando-o e celebrando-o, despejando-se sobre ele como luz do sol, até que abriu a calça do terno, removeu-a e jogou-a longe. Ela pausou então, olhando-o enquanto segurava a extensão rígida nas mãos. Os olhos de Rafael estavam pretos de necessidade, e o pedido de desculpas se fundiu com desejo simples, quando Lily se abaixou e o tomou na boca.


Rafael resmungou algo. Ou talvez fosse o nome dela. Lily ajoelhou-se entre as pernas grossas, deleitando-se nele. No gosto, na sensação de seda sobre aço, no tremor do corpo poderoso, enquanto ela o tomava cada vez mais fundo. Ele entrelaçou os dedos nos seus cabelos e manteve-a ali, enquanto ela o torturava. Rafael murmurou palavras de sexo e desejo em italiano. De encorajamento e aprovação. – Basta. A voz dele era tão rouca que ela mal reconheceu, mas entendeu quando ele afastou-a de seu sexo e puxou-a contra si, rolando na cama larga e invertendo as posições. Por um momento, Lily pensou que ele apenas fosse tomá-la, mas ele rolou mais uma vez, posicionando-a no topo e arqueando-se para pressionar suas dobras escorregadias. Os olhos escuros eram como fogo, ou, talvez, o fogo estivesse nela. Talvez, tudo fosse fogo. Lily levou a mão entre os dois e segurou-o. Ouviu Rafael arfar, e então ambos gemeram, quando ela mudou de posição e tomou-o em seu interior. Nus, pensou ela, como se a palavra fosse uma feitiçaria. Ou uma prece. Eles estavam nus. Ali não era uma chapelaria, um canto escuro do lado de fora da pista de dança ou outro lugar semipúblico, como aqueles que eles haviam usado ao longo dos anos. Não era um quarto de hotel ilícito, onde os dois alegavam ser outras pessoas. Ninguém os estava olhando e, mesmo se estivessem, não importaria se eles fossem descobertos. Isso era simplesmente eles, pele com pele, finalmente. E então Lily começou a se mover.


O mesmo fogo queimou alto, mas era um calor mais doce. O ritmo que ela estabeleceu foi lento. Perigoso. Rafael estava abaixo, segurando seus quadris, os olhos fixos nos seus. Perfeito, pensou Lily. Ele sempre fora perfeito. Então ela levou ambos para fora do planeta Terra e para o êxtase abençoado.


CAPÍTULO 9

LILY ACORDOU para se encontrar sozinha na grande cama, os lençóis emaranhados abaixo de si, e o dossel como uma tenda alta acima. Por um momento, ela não pôde lembrar onde estava. As imagens vieram aos poucos, no começo, então numa torrente. Aquela rápida viagem pelo lago nas Dolomitas, na tarde anterior, o barco que os levara pelos canais maravilhosos de Veneza. As horas que ela passara se aprontando para o baile a que não queria ir, cercada por criadas, como algum tipo de rainha, encontrando-se cada vez menos avessa à noite pela frente, conforme gostava de sua aparência no espelho. Ali estava a verdade mais desagradável de todas: ela era fútil e vaidosa assim. Mas tinha valido a pena ver a expressão ardente no rosto de Rafael, enquanto ela descera a longa escadaria ao seu lado. Ela sentou-se agora, a longa noite evidente nas pequenas dores por todo seu corpo, incapaz de se arrepender do que fizera. Saiu da cama, pondo a coberta a sua volta enquanto se levantava. O fogo estava baixo na lareira, sua iluminação dando um tom


azulado ao ar. Rafael não estava no banheiro ou em parte alguma. Do lado de fora, a neve da noite anterior cobria os barcos ancorados ao longo do canal e os topos dos palácios do lado oposto, formando um típico cartão-postal de Natal em Veneza da vista já adorável. Lily pôs a mão contra o vidro do mesmo jeito que a pusera contra a mão de Rafael, na noite anterior, sentiu aquele aperto no coração e, de súbito, entendeu muitas coisas. Estava apaixonada por ele. É claro que estava. Sempre fora apaixonada por ele, e isso era tão ruim quanto tinha sido aos seus 19 anos. Porque nada mudara. Não realmente. Eles eram as mesmas pessoas que sempre tinham sido, e agora os últimos cinco anos estavam entre os dois. E Arlo. E nem todo sexo do mundo, por melhor que fosse, poderia mudar o que ela fizera ou quem Rafael era, ou qualquer das muitas razões pelas quais eles nunca dariam certo. No fundo, Rafael era igual ao pai, que casava e recasava num piscar de olhos, acreditando-se profundamente apaixonado, sem ter de provar isso por muito tempo. E Lily era muito parecida com sua própria mãe, que desaparecera dentro das coisas que amava, fossem elas drogas prescritas ou homens... até que aquilo a matara. Tão egoísta. Tão destrutiva. Fugir como ela fugira podia não ter sido uma escolha madura, ou sequer uma boa escolha, Lily entendia. A dor que causara era incalculável. Uma noite em Veneza não poderia mudar isso. Nada poderia. Ela não era menos egoísta. Não era menos destrutiva. Mas, pelo menos, tinha consciência disso; aceitava a verdade sobre


seu comportamento, por mais desagradável que fosse. Como tudo mais, não havia nada a fazer senão conviver com aquilo. De um jeito ou de outro. Ela endireitou os ombros e abaixou a mão da janela. Então decidiu que estava com fome. Não podia se lembrar da última vez que comera alguma coisa. Saindo do quarto, foi para a sala de estar que vislumbrara tão rapidamente na noite anterior, certa de que deveria haver alguma coisa para comer num palácio tão grande. Mas, ao entrar na sala, parou abruptamente. O fogo lá estava alto e vivo, e um rico café da manhã estava posto sobre um aparador lateral, porém o que lhe chamou a atenção foi Rafael. Ele estava de pé, junto às janelas, olhando para o que ela assumia que fosse a mesma vista que deixara para trás no outro cômodo. Pensou que aquilo era a soma total de quem eles eram. Separados para sempre, perdidos um para o outro para sempre, em busca do mesmo objetivo. Uma onda de melancolia ameaçou derrubá-la então, surpreendendo-a com sua força. Lily reprimiu o sentimento e piscou para dissipar o ardor em seus olhos. – É bonito lá fora – comentou ela, e sua voz soou muito embargada. Lily pigarreou e apertou mais a coberta ao seu redor. – Embora a paisagem seja rústica, com toda essa neve. O fato de que ela via alguma coisa além da neve, do canal e da luz de uma manhã de inverno deixando o céu dourado, devia ter alguma coisa a ver com o jeito como Rafael estava parado ali, tão distante, usando apenas uma calça baixa nos quadris, que mostrava o corpo poderoso. Era a firmeza dos ombros largos, ou a sensação de que ele não estava lá, em absoluto.


– Minha mãe era louca – disse ele, sem se virar, como se fosse imune ao frio do outro lado daquela janela. – Esse não é o termo preferido, eu sei. Houve tantos diagnósticos, tantas suposições. Mas, no final, louca é o que ela era, independentemente do quanto eles tentaram amenizar isso. Tudo que tinha sido necessário era uma conexão com a internet para encontrar alguns artigos sobre o primeiro casamento condenado de Gianni Castelli, de modo que isso não era novidade para Lily. Ela costumara ler tudo que conseguia, quando estava com 16 anos e menos do que satisfeita com o novo noivo de sua mãe. Mas não podia se recordar de Rafael discutindo a história de sua família antes. Nunca, em todo o tempo que ela o conhecia. O fato de que ele estava escolhendo fazer isso agora causou um descompasso no coração de Lily. – Essa é a desculpa que sempre foi dada em todos aqueles anos, antes que ela fosse levada – continuou ele, quando Lily não respondeu. – Que ela estava doente. Que não era responsável por suas ações. – Ele virou-se para olhá-la, mas a fisionomia no lindo rosto estava fechada. – Acontece que isso não é uma desculpa quando é de sua mãe que eles estão falando. – O que ela fez? – Lily não sabia como ousara falar. Percebeu que tinha congelado a um passo da porta e forçou-se a se mexer novamente. Adentrou mais a sala e sentou-se na beira da poltrona mais próxima. – Nada – respondeu Rafael, os olhos escuros fixos nos seus. – Ela não fez absolutamente nada. Lily engoliu em seco. – Eu não sei o que isso significa.


A boca dele se curvou em alguma coisa que não era um sorriso. – Significa que ela não fazia coisa alguma, Lily. Quando nós caímos. Quando corríamos para ela. Quando suplicávamos por atenção, quando nós a ignorávamos. Era tudo a mesma coisa. Ela agia como se estivesse sozinha. Talvez, em sua mente, estivesse. – Sinto muito. – Lily não sabia por que ele estava lhe contando aquilo, e não conseguia encontrar dicas no rosto de Rafael. – Não deve ter sido fácil. – Por fim, ela foi levada para um hospital na Suíça – continuou ele, no mesmo tom distante. – No começo, nós a visitávamos lá. Acho que meu pai acreditava que ela poderia ser curada. Ele sempre gostou de consertar coisas quebradas. Mas minha mãe não pôde ser reparada, não importava quantas drogas diferentes e terapias eles tentassem. Finalmente, todos desistiram. – Rafael enfiou as mãos nos bolsos, e, embora ainda olhasse para ela, Lily não tinha certeza se ele a via. – Meu pai divorciou-se de minha mãe, alegando que era o melhor para todos, apesar de parecer que era melhor só para ele. O hospital começou a falar sobre o conforto e segurança dela, em vez de sobre o progresso de minha mãe, e nos disse que era melhor se ficássemos longe. Lily não sabia o que dizer. Sabia apenas que queria ajudá-lo, curá-lo, de alguma maneira, e não podia. – Sinto muito. Ele deu um sorriso tenso. – Eu estava com 13 anos da última vez que a vi. Havia pegado o trem de meu colégio interno, tomado por todo drama e propósito de um jovem numa missão. Eu já tinha determinado,


há muito tempo, que meu pai era culpado pelo declínio de minha mãe, e que, se eu pudesse vê-la, sozinho, poderia saber a verdade. Eu queria salvá-la. Lily o olhou, abalada. O fogo crepitava ao seu lado, mas Rafael não parecia ouvir. – Rafael, você não precisa me contar nada disso. – Preciso, sim – replicou ele. Estudou-a por um momento, então continuou: – O hospital não me deixou falar com ela, apenas vê-la de longe. Minhas memórias de minha mãe eram das explosões de raiva dela, das lágrimas. Do jeito como ela empalidecia no meio de cômodos lotados. Entretanto, a mulher que eu vi, sozinha em seu pequeno quarto, estava em paz. – Ele riu, um som vazio. – Ela estava feliz lá, trancada naquele lugar. Muito mais feliz do que já estivera fora dali. Lily estudou-o por um momento. – O que você fez? Rafael deu de ombros. – O que eu poderia fazer? Eu tinha 13 anos, e ela não estava precisando ser salva. Deixei-a lá. Três anos depois, minha mãe estava morta. Eles disseram que ela, acidentalmente, tomou uma overdose de comprimidos que não deveria ter acumulado. Duvido muito que tenha sido um acidente. Mas, àquela altura, eu havia descoberto as mulheres. Lily enrijeceu onde estava sentada. – Não entendo por que você está compartilhando essas coisas comigo. – Eu não pretendia ser pai – murmurou Rafael calmamente. – Não tinha interesse em me tornar algum tipo de mecânico de relacionamentos, sempre consertando sob o capô de outra coisa


quebrada. Eu gostava de rir. Gostava de sexo. Queria só me divertir e, quando isso se tornava pesado, como inevitavelmente acontecia? Eu ia embora. Nunca mais senti aquele desejo de salvar alguém. Não queria complicações, problemas. – Ele a olhou fixamente. – E então você apareceu. – Você não deveria ter me beijado – acusou ela, como se eles estivessem discutindo, em vez de tendo uma conversa calma num cômodo aconchegante, numa manhã fria de dezembro. – Não – concordou ele prontamente. – Eu não deveria ter tocado você. Não tinha ideia do que estava desencadeando. – Rafael pareceu ficar tenso. – E eu detestei isso. Detestei você. Lily não conseguiu respirar. – Você me detestou – repetiu ela, como se isso fizesse doer menos. – Pensei que, se eu pudesse fingir que não acontecera, a sensação passaria. Mas continuou acontecendo. – O olhar raivoso dele a fez tremer. – Pensei que, se eu pudesse conter, controlar, diminuir ou diluir aquilo, sufocaria o sentimento antes que ele me engolisse vivo. – Eu não lhe pedi para me contar nada disso – disse Lily então, sentindo-se desequilibrada. Tonta. – Gostaria que você parasse. – Mas então você caiu de um penhasco do qual não deveria estar perto, num carro que não deveria estar dirigindo, muito menos em alta velocidade – disse Rafael, o brilho nos olhos escuros informando-a de que ele não tinha intenção de parar. – Eu sabia muito bem que, se você estava chateada, do jeito como eles alegaram que devia estar, para dirigir daquela forma, era culpa minha. Eles falaram que foi um acidente, que você perdeu


o controle da direção e derrapou, mas eu questionei. Era realmente um acidente? Ou eu havia tornado sua vida tão miserável que sua única chance em qualquer tipo de felicidade era escapar de mim da única maneira que podia? Assim como minha mãe fez. Ela estava tremendo inteira agora. – Rafael... – Exceto que aqui está você – prosseguiu ele, e ela desejou que ele se movesse. Que fizesse alguma coisa além de ficar parado ali como uma criatura de pedra, despedaçando mais seu coração com cada palavra. – E você ainda me tira o fôlego quando entra num cômodo. E eu, há muito tempo, entendi que nunca foi ódio o que senti por você, mas era muito imaturo... ou tinha muito medo... para compreender a enormidade dos meus sentimentos. E você tem um filho meu, uma criança linda e perfeita que eu pensei que não quisesse, até que o conheci. – Rafael balançou a cabeça, como se a realidade de Arlo ainda o impressionasse. – E eu não a detesto, Lily. Eu a quero como nunca quis qualquer outra mulher. Não posso imaginar isso mudando algum dia. Mas você está certa. Os olhos escuros eram tão frios que causavam dor em Lily. E ela se transformara em pedra, agora. – Eu não a amo – declarou Rafael. – Se eu sou capaz de amar alguma coisa, se sou capaz de tal sentimento, eu amo aquele fantasma. Lily ficou surpresa que ainda estava inteira depois disso. Que tudo em volta deles não tivesse desabado e afundado na água. Que ainda havia um sol para se infiltrar pelas janelas naquele dia frio.


E ele ainda não tinha terminado. – Eu sempre amarei aquele fantasma – disse Rafael, muito distintamente, de modo que não houvesse engano. – Ela está na minha cabeça, no meu coração, por mais egoísta e indigno que eu possa ser. Todavia, é a mulher de carne e osso que eu não consigo perdoar, Lily. Para ser honesto, não sei se algum dia conseguirei. – O sorriso dele foi triste e letal, ao mesmo tempo. – Mas não se preocupe. Duvido que perdoarei a mim mesmo. RAFAEL OBSERVOU-A absorver aquilo, um caleidoscópio de emoções movendo-se no rosto expressivo de Lily, e disse a si mesmo que aquilo não era mentira. Era a verdade... uma verdade. Apenas havia uma verdade maior que ele não pretendia compartilhar com ela. Porque não confiava em Lily, por mais que estivesse tentado a fazer exatamente isso. Conhecia-a melhor do que qualquer pessoa, e não a conhecia, em absoluto. E entendera, ao longo daquela noite ardente, que provavelmente estava marcada em sua carne, que esse era exatamente o tipo de peso que ele passara a vida evitando. Por uma boa razão. Havia outras palavras para todas aquelas coisas pesadas que o preenchiam. Rafael não tinha mais medo delas. Porém, sucumbira às suas vulnerabilidades na noite anterior. Não faria isso de novo. Havia Arlo para considerar agora. E Rafael jurou que não arruinaria a vida de seu filho, como seus pais tinham arruinado a sua, apostando em sentimentos, quando era a aplicação prática da razão e força que realizava coisas. Ele passara os últimos cinco anos provando isso em seus negócios. Não poderia fazer menos por seu filho.


Não viveria sua vida pelo fantasma que não salvara. – Nós teremos de decidir que história queremos contar – murmurou ele, quando Lily pareceu ter controlado suas reações. Ela estava embrulhada naquela colcha dourada que devia ter tirado de sua cama, os cabelos gloriosos cascateando sobre os ombros, e Rafael se sentiu um santo por manter distância, quando isso era a última coisa que queria fazer. Mas era necessário. Não importava que os olhos azuis parecessem magoados, e que ele sentisse dor física ao saber que fizera isso com ela. Novamente. – Qualquer que seja a versão, não pretendo esconder o fato de que sou o pai de Arlo. Do mundo ou dele. Você precisa aceitar isso. Ela piscou, então se levantou. – O que você quer dizer com isso? – perguntou ela, encarando-o sem mais qualquer traço de mágoa nos olhos azuis, agora. – Eu estou na Itália, não estou? Se não tivesse aceitado isso, imagino que ainda estaria na Virgínia, cuidando de cachorros. – Você está na Itália, sim – concordou Rafael. – Escondida numa casa nas montanhas, onde ninguém a viu, exceto alguns aldeões que nunca questionariam a família. E, então, mascarouse em público aqui, de modo que ninguém pudesse reconhecêla. Você não pode ter as coisas das duas maneiras por muito mais tempo, lamento. Lily desviou o olhar para o aparador, onde se serviu de uma xícara de café com mãos que pareciam firmes... e um bom homem não quereria ver a mãe de seu filho tão aborrecida a ponto de tremer. Rafael entendeu aquilo novamente... provara que nunca poderia ser bom. Especialmente onde Lily estivesse.


– Não sei por que você acha que certa reticência é tentar ter as coisas das duas maneiras – defendeu-se ela, após um momento, dando uma olhada para trás. – Que história você acha que devemos contar, Rafael? Aquela que acabou de me contar? Ele deu de ombros. – Não imagina que você pode ressuscitar do mundo dos mortos sem ser notada, imagina? – Não vejo por que não – replicou ela, dando um gole do café, antes de virar-se para encará-lo novamente. – Isso não é da conta de ninguém. – Talvez não. Mas a atenção da mídia será inevitável. – Rafael soava impaciente até mesmo para seus próprios ouvidos, mas a colcha estava escorregando no corpo dela agora, chegando muito perto de expor o bico rosado do seio magnífico. Ele precisava se focar. – Você morreu tragicamente, e muito jovem. O fato de estar viva, bem e em posse do herdeiro da fortuna Castelli tornará a história muito mais irresistível. Lily se tornara aquela estranha novamente, fria e inescrutável... ou, talvez, ela também tivesse crescido durante aqueles cinco anos. Tornando-se menos emotiva. Ou, no mínimo, mais capaz de não mostrar todos os pensamentos estampados no rosto. Era problema dela sentir que aquilo era uma perda. – Parece que você já sabe o que eles dirão. – Foi a vez de Lily dar de ombros. – Por que não podemos deixá-los falar? – A história real aqui não é sua ressurreição inesperada, por mais emocionante que isso possa ser – replicou ele, depois que se forçou a desviar o olhar dos seios quase à mostra. – É a questão do que aconteceu cinco anos atrás.


– E eu aqui pensando que ressuscitar do mundo dos mortos seria suficiente – disse ela com ironia. – A mídia está realmente voraz hoje em dia. – Depende da história. Você se escondeu deliberadamente durante todo esse tempo? Ou bateu a cabeça e esqueceu quem era? – Ele a encarou. – A primeira opção levará a uma série de perguntas desagradáveis sobre por que você teria sentido necessidade de fazer algo tão irrevogável, e quem teria sido responsável. A segunda história, por sua vez, sem dúvida, irá capturar o interesse do público por um tempo, mas depois será esquecida. – Então, para esclarecer, nós não estamos falando sobre a verdade agora, apesar de quantas vezes você me chamou de mentirosa nas duas últimas semanas. – Ela arqueou uma sobrancelha desafiadora. – Estamos falando sobre manipular a mídia para seus próprios fins obscuros. – Não, Lily. – O tom de Rafael era duro. – Estamos falando sobre Arlo. Ela pareceu chocada com aquilo. – O que isso tem a ver com Arlo? – Algum dia, ele será capaz de ler sobre tudo isso – apontou Rafael. – Se alguém já não tiver compartilhado a história com ele num playground, como crianças são tão propensas a fazer. A história será pública para qualquer um acessar. Eu preferiria que essa não fosse sobre a mãe dele pensando tão pouco do pai que fingiu se matar, depois se escondeu por meia década. Que bem faria a Arlo saber disso? Alguma coisa brilhou nos olhos muito azuis de Lily. – Eu não vou mentir para Arlo.


– Por favor, poupe-me do ultraje moral. Você já mentiu para ele. Mentiu para todos que conheceu, antes e depois do acidente. Pelo menos, desta vez, a mentira seria para o bem de Arlo. – Você está presumindo muita coisa – disse ela com voz tensa. – Mal o conhece. E uma noite comigo depois de cinco anos dificilmente lhe dá o direito de tomar qualquer tipo de decisão sobre o que é para o bem de Arlo. – Eu não estou presumindo nada – retrucou Rafael, friamente. – Arlo é meu filho. Ou você o escondeu de mim deliberadamente, em cujo caso, qualquer juiz provavelmente me daria a custódia, diante de um ato parental tão desprezível... ou você não sabia o que estava fazendo até que eu a encontrei, o que sugere um dano cerebral que dificilmente a classificaria como a mãe do ano. Eu pensaria melhor sobre isso, se fosse você. Não quero tratá-la como uma rival nos negócios, e derrubá-la usando quaisquer meios disponíveis. Mas, se eu tiver de fazer isso, farei. Ela o olhou como se nunca o tivesse visto antes. – Ontem à noite foi sobre isso? – Não havia inflexão na voz de Lily, mas ela colocou sua xícara de café sobre uma mesa lateral com muita precisão. – Você tentou derrubar minhas defesas, de modo que pudesse me golpear com mais facilidade, hoje? – Lily. – Rafael falou o nome do jeito como o ouvia em sua cabeça... delicado e leve, a mesma música que a torturava por todos aqueles anos. – Não tenho motivo algum para pensar que qualquer coisa que eu faça possa atingir você. Ele viu as mãos dela tremerem, de leve, antes que ela as fechasse na colcha que a envolvia. E aquilo o fez se sentir pior, não melhor. Vazio.


– Então, o fato de que parece muito que você está me ameaçando é o quê? – questionou ela, a voz firme, como se ele tivesse imaginado o pequeno tremor. – Minha imaginação superativa? Um remanescente daquela poetiza do convento que você inventou para sua própria diversão? – Eu não estava ameaçando você. Estou meramente apontando a realidade da situação na qual nos encontramos. – Um homem seminu num palazzo veneziano, que vem de uma linhagem familiar muito antiga, não deveria posicionar-se como se fosse uma autoridade – retorquiu ela. – Isso o faz parecer tolo. – Lily levantou uma mão para impedi-lo de falar. – Entendo que você esteja se sentindo ferido, Rafael. Que sexo apenas tornou tudo mais evidente e, talvez, pior. – Você não tem ideia. – Ele não pretendera falar aquilo. Mas falara, então decidiu continuar: – Eu a quero, Lily. Não posso negar isso. Meu desejo não vai desaparecer, independentemente de quantas vezes eu me perca em você. Mas isso não muda o que fizemos um para o outro. Como nos comportamos e o que resultou de tais comportamentos. Como você mesma disse, ontem à noite. – Usar meu filho... nosso filho... como uma arma também não vai mudar o que fizemos um para o outro. – Ela prendeu-lhe o olhar. – O que isso faz de você? – Determinado – respondeu Rafael, pondo mais raiva na voz do que gostaria. Como se ainda não tivesse controle absoluto sobre si mesmo no que dizia respeito a ela. – Eu perdi cinco anos da vida de Arlo. Não perderei nem mais um momento. – Eu não lhe neguei acesso a ele, Rafael. Nem vou negar. Podemos combinar alguma coisa, tenho certeza. Pessoas que não


conseguem passar três segundos no mesmo cômodo, sem arrancar sangue, podem fazer isso. Então nós podemos. – Você não está me entendendo. – Ele a encarou. – Não haverá custódia compartilhada, ou lares separados. Ele fica comigo. Lily ficou literalmente boquiaberta. – Você deve ter enlouquecido. – Sinto muito, mas isso deixa você com poucas opções – murmurou ele, e uma parte sua detestou vê-la empalidecer, ver que aquilo claramente a surpreendera e a machucara. Mas não o bastante para detê-lo. – Você pode ficar com ele e comigo. Mas, nesse caso, teremos de tornar isso oficial... e, embora não fingirei que conseguirei manter minhas mãos longe de você, não posso prometer que algum dia eu lhe darei mais do que sexo. Não imagino que possa confiar em você algum dia. – Ele deu de ombros, como se aquilo não importasse. – Alternativamente, você pode voltar para sua vida na Virgínia ou criar uma nova vida, se preferir, e pode usar o nome que bem entender até o fim de seus dias. Mas, se escolher essa opção, fará isso sozinha. Ela não se mexeu, embora ele tivesse a impressão de que ela balançava sobre os pés, e desejou que aquilo fosse diferente. Desejou que pudesse envolvê-la nos braços, fazê-la sorrir. Consertar a situação inteira. Mas a triste verdade era que ele não sabia como. Não sabia como fazer Lily sorrir. Apenas sabia como despertar o pior nela... e como fazê-la chorar. Não tinha feito nada além disso, repetidas vezes. Ela não é a única que precisa de perdão, uma vozinha sugeriu em seu interior. Há muitos monstros em vocês dois.


Mas Rafael não sabia como parar aquilo. Como salvar qualquer um deles. – Eu não deixarei Arlo com você – declarou ela com muita precisão, como se temesse que pudesse gritar se não escolhesse cada palavra cuidadosamente. – Isso nunca vai acontecer, Rafael. – Meu filho terá meu nome, Lily – avisou ele com firmeza. – De um jeito ou de outro. Você pode ser parte dessa família ou não, como escolher. Mas está ficando sem tempo para decidir. – Ficando sem tempo? – Ela franziu o cenho, a expressão indignada. – Arlo não sabia da sua existência até duas semanas atrás. Você pensou que eu estivesse morta. Não pode fazer esse tipo de intimação e esperar que eu o leve a sério. – A proposta é essa, cara. – Rafael cruzou os braços sobre o peito e disse a si mesmo que ela era o inimigo, como todos os rivais que ele derrotara ao longo dos anos, agindo como presidente dos negócios da família. Assegurou a si mesmo que Lily era sua para que ele a conquistasse como escolhesse. E mais: ela merecera aquilo. – Lamento que a escolha seja difícil para você. Sinceramente lamento. Mas isso não muda nada. Todavia, talvez as coisas tivessem mudado, se aquele brilho nos olhos azuis houvesse se transformado em lágrimas. Poderia tê-lo lembrado que ele era capaz de misericórdia. Que realmente a amara o tempo todo. Mas aquela era Lily, teimosa até o fim. Ela piscou duas vezes, então o encarou com olhos claros. Ergueu o queixo, parecendo quase régia, como se não houvesse nada que ele pudesse fazer para tocá-la de verdade. O mesmo jeito como ela o olhara naquele hall de entrada quando tinha 19 anos.


E Rafael experimentou a mesma vontade frenética que sentira na época: de provar que podia fazer muito mais do que tocá-la. Que poderia desnorteá-la completamente. Disse a si mesmo que dessa vez, pelo menos, a situação era mais saudável do que fora no passado, porque não era sobre nenhum dos dois. Era sobre o filho deles. Motivo pelo qual ele manteve distância. Como não fizera no passado. E daí se isso o estava matando? Esse era o preço. Rafael assegurou-se de que, por Arlo, valia a pena pagar tal preço. – Você tem até o Natal. – Ele a informou casualmente. – Então, ou se casará comigo ou sairá da minha vida, para sempre, desta vez. E da vida de Arlo.


CAPÍTULO 10

– VOCÊ DECIDIU o que vai fazer? – Rafael perguntou para ela na primeira manhã depois do retorno deles de Veneza mais tarde naquele dia gelado, sorrindo-lhe de um jeito zombeteiro à mesa do café da manhã. – As próprias Dolomitas esperam sua resposta, tenho certeza. Assim como eu. Foi a educação fingida, pensou Lily, que a fez querer jogar o prato de linguiças na cabeça dele. Como se ele estivesse realmente interessado em sua resposta, em vez de apenas cutucando-a para o próprio divertimento. – Vá para o inferno – balbuciou ela sobre a cabeça de Arlo. Em resposta, o sorriso de Rafael se aprofundou. Não ajudava que Lily não soubesse o que ia fazer. Ela jamais deixaria Arlo, é claro. A mera ideia fazia seu estômago se contorcer em protesto. Mas como poderia se casar com Rafael? Especialmente quando o tipo de casamento que ele mencionara em Veneza era muito diferente do tipo que ela imaginara quando era jovem e tola e ainda acreditava que o relacionamento deles pudesse dar certo algum dia.


Bem, aquele era um dia, e não dera certo, em absoluto. Muito pelo contrário. – Talvez, nós devêssemos fazer uma lista de prós e contras – sugeriu ele em outra tarde, mais perto do Natal, indo se sentar ao seu lado. Lily estava do lado de dentro das portas de vidro, olhando para o jardim, onde Arlo e duas babás construíam uma legião de bonecos de neve. – Talvez uma planilha eletrônica ajudasse? Novamente, aquele tom cortês, como se ela não estivesse decidindo sobre nada mais do que qual dos vinhos dele era melhor para acompanhar o jantar. – Isso é um jogo para você? – Lily perguntou, escondendo a irritação da voz. – Não é somente da minha vida que estamos falando, sabia? Entendo que você não se importe com isso. Mas é a vida de Arlo, também, com quem você alega se importar, e está disposto a tirar tudo que é mais importante para ele. Ela não esperou que Rafael a tocasse... muito menos que segurasse seu queixo na mão, forçando-a a encará-lo. Lily teve de lutar contra um tremor interno que teria contado a ele verdades que ela não queria que ele soubesse, e todas as coisas que já lhe mostrara em detalhes naquela cama em Veneza. – Nós dois fizemos as escolhas que nos trouxe aqui – murmurou Rafael suavemente. – Não posso fazer nada, se você não gosta do jeito como estou lidando com a situação, Lily. Tem uma solução melhor? – Qualquer coisa seria uma solução melhor! – exclamou ela. Ele abaixou a mão, mas não se afastou. Ela não conseguia olhá-lo, então olhou através do vidro, novamente, onde a melhor


coisa que eles tinham feito, juntos, rolava uma bola de neve pelo gramado. Isso é sobre Arlo, lembrou a si mesma. Isso é tudo sobre Arlo. Qualquer outra coisa que aconteça é secundário. – Diga uma, então – disse Rafael, desafiando-a. – Diga uma solução melhor. Lily deu uma olhada para ele, então voltou a observar Arlo. O lindo filho deles, que ela amava profundamente desde o momento que soubera de sua existência. Naquele banheiro do restaurante de estrada. Sentira-se apavorada, claro. E tão sozinha. Mas tivera Arlo e o amara, muito antes de conhecê-lo. – Você pode pensar o que quiser – disse Lily. – Mas nenhuma das escolhas que eu fiz foi fácil. Todas elas deixaram cicatrizes. – Nada disso muda onde estamos, certo? – perguntou ele. – Nós mesmos criamos nossas cicatrizes, Lily. Cada uma delas. Descobri que não posso perdoar isso, também. Lily não respondeu. E, da próxima vez que olhou para o lado, ele se fora. Ela disse a si mesma que era melhor assim. E talvez não fosse inteiramente surpreendente que os pesadelos voltaram naquela noite. E na noite seguinte. E duas noites depois, também. O grito dos breques, o giro louco. A sensação horrível, o entendimento assustador que não ia... não podia... corrigir aquilo. Então o impacto que a jogara para fora do carro e a deixara caída no chão. Ela encontrara-se com o rosto na terra, completamente desorientada, com apenas alguns arranhões, enquanto, ao seu redor, a noite californiana estava silenciosa. Um leve nevoeiro, e as ondas do mar batendo nas pedras abaixo.


Não foi até que o carro explodisse em chamas penhasco abaixo que ela entendera o que tinha acontecido. O quanto chegara perto da morte. Por quão pouco escapara. Lily sentou-se na cama num sobressalto. Aquela era... a quarta noite seguida? Seu coração estava tão disparado que ela pensou que pudesse causar um buraco no peito. Do mesmo jeito que se sentira naquela noite, cinco anos atrás, quando finalmente compreendera o que acontecera. Tinha quase esquecido o terror, todos esses anos depois. O cheiro de fluido de freio e borracha queimada, e daquela fumaça grossa do fogo, tão real em suas narinas que Lily teve de respirar fundo diversas vezes, antes de perceber que aquilo era uma lembrança. Já havia acontecido. Não estava acontecendo agora. – É só um sonho – sussurrou ela. – Não é real. Mas a sombra que ela viu saindo da escuridão perto da porta era real. Era Rafael, Lily percebeu em seguida. – O que você está fazendo? – perguntou ela quando conseguiu falar, embora tivesse se encolhido em posição fetal contra a cabeceira. – Você me assustou! – Posso dizer o mesmo – murmurou Rafael. Parecendo irritado e mais alguma coisa que ela não conseguiu identificar, ele aproximou-se e parou ao lado da cama. Estava lindo, apenas numa calça de corrida baixa nos quadris, os pés descalços. – Rafael, qual é o problema? O que você está fazendo aqui? – Você gritou. Ela engoliu em seco. Sentia frio, mesmo debaixo de todas as cobertas. – Oh.


– Lily. – Não havia aquele tom educado na voz de Rafael agora. Nem o tom zombeteiro. Ele acendeu o abajur sobre o criado-mudo. – Não acha que está na hora de você me contar o que aconteceu naquela noite? – Naquela noite? – ecoou ela, embora soubesse. É claro que sabia. O sonho ainda estava reverberando em sua cabeça. Lily franziu o cenho, porque era mais fácil. – Mas como você conseguiu me ouvir? – Eu tenho um dom – replicou Rafael, acrescentando: – Posso ouvir duas coisas com total clareza em qualquer lugar que estou: os gritos de uma mulher assustada e alguém tentando ser irritantemente evasiva às 3h27 da manhã. Ele não a tocou, como Lily quase esperou. Em vez disso, inclinou-se contra a lateral da cama, cruzou os braços, encarou-a e esperou. E essa era a história que Lily nunca contara para outra alma viva. Talvez, pensou ela agora, porque ele fosse a única pessoa no mudo que pudesse entender o que tinha acontecido e o que ela fizera... e ela nem sequer estava certa sobre isso. Não mais. – Tem certeza de que você quer que eu lhe conte? – questionou ela. – Você tem apreciado tanto me caluniar. Eu detestaria arruinar isso para você. O maxilar de Rafael enrijeceu, mas ele não disse uma palavra. Apenas esperou... como se pudesse ficar lá a noite inteira, independentemente do que ela lhe atirasse. Lily suspirou e afastou os cabelos do rosto, sentando-se de pernas cruzadas à cabeceira da cama. Então pensou que, talvez, desde o instante que ele a vira na rua, em Charlottesville, até


aquela noite em Veneza... eles viessem caminhando em direção a esse momento. Talvez, esse tivesse sido o destino, o tempo inteiro. – Você se lembra da última briga que tivemos? – Lily o fitou, então olhou para suas próprias mãos, contorcendo-as no colo. A briga havia sido muito tempo atrás. – Em São Francisco, naquela quinta-feira. A boca sensual comprimiu-se numa linha séria. – Eu lembro. – A briga foi como sempre. Eu chorei, você riu. A outra mulher com quem você estivera tinha aparecido em todos os jornais. Você me desafiou a deixá-lo. Eu lhe disse que, dessa vez, realmente iria embora. – Lily deu de ombros. – Não acreditei numa palavra que falei. Nem você. Nós tínhamos tido a mesma briga centenas de vezes antes. – Mais que isso – concordou Rafael, numa voz que parecia revelar autodesprezo. Ela reconheceu porque ouvira isso em sua própria voz muitas vezes ao longo daqueles anos. – Naquele fim de semana, eu fui para o château. Estava uma noite bonita, eu estava entediada e furiosa com você, então peguei um dos carros ultravelozes naquela garagem absurda de seu pai e saí. – Ela levantou a cabeça e fitou-o. – Dirigi para a cidade de novo. Queria ver você. Lily teve a impressão de que Rafael estava prendendo a respiração. – Você não estava atendendo ao telefone, mas eu tinha uma chave de sua casa em Pacific Heights. Entrei. – Ela emitiu um som que sabia que não era uma risada, mas não pôde evitar. Aquela história era como uma avalanche. Uma vez que


começava, continuava rolando até que destruísse tudo. Não era de admirar que ela nunca a tivesse contado antes. – Acho que eu sabia o que estava acontecendo muito antes de chegar ao seu quarto. Não me recordo de ter ouvido qualquer barulho, mas devo ter ouvido... Ele praguejou. Profundamente em italiano. – ...porque, quando cheguei ao seu quarto e entrei, não fiquei tão surpresa quanto deveria ter ficado. Se eu não houvesse tido algum aviso, quero dizer. Se eu tivesse ficado surpresa, teria feito mais do que apenas permanecer parada ali, não acha? Teria feito um barulho. Chorado. Gritado. Alguma coisa. – Ela balançou a cabeça. – Mas não fiz nada. – Não sei se isso melhora ou piora as coisas – murmurou Rafael numa voz estranha, como se aquilo o ferisse. – Mas eu nem mesmo lembro o nome dela. Lily lembrava-se de muita coisa. Ainda podia ver os dois na cama, com perfeita clareza. Era como se a cena estivesse marcada em seu cérebro para sempre. Rafael estivera profundamente enterrado numa morena deslumbrante, e os dois ofegavam, aproximando-se do grande final. Lily se sentira quase uma observadora clínica por um momento, olhando-os, porque soubera exatamente qual era a sensação quando Rafael fazia o que estivera fazendo com aquela mulher, entretanto vira aquilo de um ângulo totalmente diferente... A sensação de observadora não durara. E, quando passara, Lily se sentira nauseada. – Não – disse ela agora. – Não acho que isso ajuda.


– Por que você não falou alguma coisa? – perguntou ele com voz rouca. – Na época. Enquanto ficava parada lá. – Como o quê? Ele não respondeu. Por que... o que ela poderia ter dito? O que havia para dizer numa situação como aquela? Lily olhou para suas próprias mãos. Então, fechou-as. – Uma coisa era saber que você tinha outras mulheres. Eu sempre soube. Você não fazia exatamente segredo disso. Até mesmo levava algumas para sua casa. Mas ver foi diferente. Ela respirou fundo, e pensou que ele quase falara alguma coisa... mas Rafael não disse nada. Ela não lhe pedira perdão, lembrou a si mesma. Talvez ele também não lhe pedisse. Talvez não fizesse sentido se incomodar com pedidos de desculpas quando as feridas eram tão profundas. Que bem um pedido de desculpas faria por qualquer um deles, agora? Que bem contar a ele tudo que acontecera faria?, uma voz interior demandou, mas ela não podia parar agora. Sabia que não podia. – Eu não sabia o que fazer, então me virei e fui embora – contou ela. – Tão silenciosamente quanto tinha entrado. Saí e fiquei parada na frente da sua casa. Foi como uma experiência fora do corpo. Eu continuava pensando que, a qualquer momento, começaria a soluçar. Que eu choraria tanto e por tanto tempo que seria partida ao meio. – Lily o fitou. – Mas nada aconteceu. Então entrei no carro e dirigi. – Para onde você estava indo? – Rafael soava tão estranho que não parecia ele mesmo, mas Lily não se permitiu preocupar-se com isso. Não agora. – Encontrar suas amigas?


– Minhas amigas detestavam você – disse ela, e observou-o piscar ao absorver aquilo. – Oh, elas não sabiam quem você era, mas sabiam do homem secreto que sempre me magoava. Elas o odiaram por anos. Abertamente. Não me incomodei em ligar para qualquer de minhas amigas. Sabia o que elas diriam. Lily mudou de posição, puxando os joelhos para baixo do queixo. Rafael continuou de pé, imóvel, parecendo uma estátua. – Eu apenas dirigi – continuou ela. – Para fora de São Francisco, então para a costa. Não tinha um plano. Não estava chorando ou gritando. Sentia-me entorpecida. Mas eu sabia o que estava fazendo. – Ela encontrou-lhe o olhar na luz parca e imaginou que o seu rosto não estava menos torturado do que o de Rafael. – Eu não estava tentando me machucar. Saiba disso. – Então, como aconteceu? Lily deu de ombros. – Eu estava dirigindo um carro muito potente em alta velocidade. Fiz uma curva e havia uma pedra no meio da estrada. Desviei, e então não consegui endireitar o volante. O carro estava derrapando, e não havia nada que eu pudesse fazer sobre aquilo. Ela ouviu o barulho dos breques novamente, podia ouvir seu próprio grito no interior do carro, e lembrou-se daquele momento horrível, quando percebera que não ia conseguir impedir o acidente, que não ia conseguir se salvar... Lily suspirou. – Então o carro bateu. Não me lembro dessa parte. Só que eu sabia que ia morrer. – Ela engoliu em seco, determinada a não sucumbir à emoção que podia sentir preenchendo-a. – Mas


então eu não morri. Estava deitada no chão, viva. Ainda não sei como. – Eles acham que você saiu pelo para-brisa – disse Rafael com a voz tensa e baixa. – Essa foi a teoria. Pelo que sobrou do carro. – Oh. – Ela tentou visualizar aquilo, mas sentiu-se tonta novamente. Tonta, frágil e inteiramente quebrável. – Suponho que isso faz sentido. Eu acordei com o rosto na terra no acostamento da estrada. – Não estava ferida? – Eu estava tremendo. Tinha alguns arranhões e sangrava um pouco. Os arranhões demoraram alguns dias para se formarem completamente, e um longo tempo para desaparecer. – Ela abraçou mais os joelhos. – Mas eu estava bem. Alarmantemente bem, pensei, no momento que vi o carro explodir. – Alarmantemente? – Eu pensei que estivesse morta – respondeu ela, vendo-o enrijecer ainda mais. – Não fazia sentido que eu estivesse... bem. O carro estava... – Eu sei – disse ele, o rosto muito sério. – Vi o carro. Estava irreconhecível. – Como alguém poderia ter sobrevivido àquilo? – perguntou Lily. – Mas então, quando tentei levantar, fiquei enjoada. E imaginei que pessoas mortas não vomitavam. Eu tremia muito. – Ela preparou-se para a próxima parte, e não conseguiu olhá-lo. Puxou o cobertor sobre o colo, em vez disso. – Então, tudo que eu podia pensar era que queria você. Que precisava de você. Ela ouviu o gemido que Rafael emitiu, mas não se permitiu analisar aquilo.


– Eu havia passado pela cidade há pouco tempo, então decidi andar para lá e achar um telefone. Pensei que, se ouvisse sua voz, ficaria melhor. – Lily ainda podia sentir o ar pesado daquela noite, salgado e úmido, com nevoeiro. Tinha terra e sangue na boca, e doía um pouco para andar. Mas ela continuara. – No momento em que cheguei à cidade, os bombeiros estavam saindo. Não sei por que eu não fiz sinal para que eles parassem. Acho que estava preocupada sobre o fato de que era o carro do seu pai. E eu não tinha permissão para dirigi-lo. Durante toda a caminhada para a cidade, fiquei pensando sobre quanto dinheiro eu devia, e como algum dia conseguiria pagá-lo com um diploma estúpido em elegias anglo-saxãs. Minha cabeça estava girando. Não acho que eu estava raciocinando com clareza. Rafael murmurou alguma coisa em italiano, algo que indicava fúria. Mas Lily continuou: – Cheguei a um posto de gasolina e encontrei um telefone pago. Talvez o último telefone funcionando na Califórnia. Eu o peguei para ligar para você. – Ela fez uma mímica pegando o telefone, e não sabia de onde o nó na garganta se formou. A pressão em seu peito. Olhou para Rafael. Abaixou a mão. – Mas de que teria adiantado? – Lily – disse ele, como se o nome o machucasse. Mas não discutiu. – Nada ia mudar – explicou ela. Ele sentou-se aos pés da cama, então, os olhos escuros atormentados. – Foi um momento de total clareza. Você estava na cama com aquela mulher, mas poderia ter sido qualquer mulher, e poderia não ter sido nenhuma, naquela noite em particular. Tanto fazia. Há anos e anos era sempre a mesma coisa. Não ia mudar. Nós não íamos


mudar. E aquilo estava me matando, Rafael. Aquilo estava me matando. Eles permaneceram sentados, separados pela extensão do colchão e pela história deles, por tanto tempo que, se o sol tivesse aparecido do lado de fora de suas janelas, Lily não teria ficado surpresa. Mas ainda estava escuro quando Rafael mudou de posição e pigarreou. E o fato de que queria desesperadamente saber o que ele estava pensando disse a Lily tudo que ela precisava saber sobre quão pouco ela mudara em todo aquele tempo. Nem sequer possuía forças para se chamar de patética. Era a mesma velha loucura, todos esses anos depois. Prova de que nada mudara. Muito menos ela. – O que você fez então? – perguntou Rafael. – Eu falei para um casal simpático, no posto de gasolina, que meu namorado abusivo tinha me deixado depois de uma briga. Eles foram tão gentis que me levaram até Portland, Oregon, para me afastar dele. Antes de continuarem seguindo para Vancouver, me deixaram numa rodoviária com dinheiro e uma passagem para a casa da minha tia, no Texas. – Você não tem uma tia no Texas. – Ele franziu o cenho. – Você não tem uma tia. – Não – concordou Lily. – Mas isso não era motivo para eu não ir para o Texas. Então foi isso que fiz. Uma semana depois, todos pensaram que eu estivesse morta. Ninguém sequer me procurou. Portanto, eu decidi continuar morta. – Mas você estava grávida. Ela assentiu. – Sim, embora ainda não soubesse disso.


– E se tivesse sabido? Ela queria mentir para ele, mas não o fez. – Eu não sei. Rafael assentiu. De maneira sofrida. – E, quando você descobriu que estava grávida, não lhe ocorreu que uma fugitiva, presumida morta, talvez não fosse a melhor figura materna para uma criança? – É claro que me ocorreu – respondeu Lily. – Se eu não conseguisse sustentá-lo, não iria ficar com ele. Eu tinha tudo planejado. – Adoção? – Não – disse ela. – Você, Rafael. É claro, você. Pensei que o deixaria a sua porta, ou algo assim. Pareceu um milagre que aquelas mulheres já não tivessem feito isso uma centena de vezes, quando pensei sobre a possibilidade. – Todavia, em nenhuma versão dessa história, você estava planejando voltar – afirmou Rafael, quando o silêncio se estendeu. – É isso que eu estou ouvindo? Lily não esperara aquilo. Tentou ler a expressão fechada no rosto dele, mas, ou perdera tal habilidade, ou Rafael estava fazendo um trabalho melhor em se esconder. Ela sentiu ambas as possibilidades como uma perda. – Não, Rafael. Eu não ia voltar. Por que voltaria? Ele olhou-a com tanta intensidade então que ela perdeu o fôlego. Ele parecia destruído. Lily não entendia por que vê-lo assim também a fez se sentir destruída por dentro. Ela queria alcançá-lo, abraçá-lo, tocá-lo... qualquer coisa para fazer aquela expressão terrível desaparecer do rosto dele. Mas não se mexeu. Não ousou.


– Não posso pensar numa razão pela qual você voltaria – murmurou Rafael dentro da escuridão, do que restava da noite. Diretamente dentro do coração que Lily pensava que deveria estar curado, a essas alturas, mas que entendeu que continuava quebrado. – Nem uma única razão.


CAPÍTULO 11

RAFAEL FINALMENTE saiu do seu escritório na véspera de Natal, muito tempo depois que o sol se pusera, e sem sentir nenhuma alegria típica do feriado. Há anos e anos era sempre a mesma coisa, Lily tinha dito. Não ia mudar. Nós não íamos mudar. Ele não conseguira tirar as palavras da cabeça desde que ela as dissera. Essa noite era ainda pior. As frases ecoavam em sua mente, cada vez mais alto, até que ele pensou que fosse enlouquecer. Rafael estivera em seu escritório, trabalhando em projetos que ninguém veria antes do próximo ano, e, por um momento, pensara que sucumbira à loucura que sua própria mãe sofrera. Levara longos momentos para que ele percebesse que aquela não era a voz de Lily, mas o som de sinos de verdade. Sinos de trenó, se não estivesse enganado, o que tinha sido curioso o bastante para tirá-lo de seu escritório e levá-lo para os corredores da velha casa, a fim de procurar a fonte do barulho. Encontrou seus empregados enfeitando o terraço da casa, apesar do fato de tê-los informado que seu pai e a nova esposa


estariam nas Bahamas, e Luca decidira ir a uma festa para qual havia sido convidado. E a decoração estava sendo feita com mais entusiasmo do que nos anos anteriores, o que Rafael sabia que tinha tudo a ver com a criança superexcitada de cinco anos, que estava praticamente dando cambalhotas no grande hall frontal. Rafael ficou parado ali, distante da confusão acontecendo abaixo. Inclinou-se sobre o parapeito do piso acima e olhou para os empregados que nunca o viram sorrir, sorrindo amplamente para seu filho. Seu filho. Arlo, que era como a luz do sol. Arlo, que emanava pura alegria de viver. Arlo, cuja mãe odiara Rafael... ou o temera, e Rafael não era capaz de discernir as duas coisas. Ela escapara ilesa de um acidente de carro e fugira, pegando carona para outro estado. Descobrira-se grávida e sem dinheiro, e, mesmo assim, seus planos tinham se centrado no que seria melhor para o bebê, mas ela nunca considerara voltar para Rafael. E ele não pudera argumentar contra um único ponto naquela história que ela finalmente lhe contara. Estivera naquela cama, com aquela mulher sem nome e sem rosto (não que tivesse imaginado por um segundo que Lily pudesse tê-lo visto). Tinha sido o homem que Lily descrevera... aquele que rira dela, que a traíra e que sempre, sempre, assumira que ela voltaria para ele. Como se convencera de que, se ela tivesse vivido, teria sido sua? Quando ele fizera tudo que estivera em seu poder, na época, para se certificar de que eles nunca ficassem juntos? Lily decidira que preferia deixar todos acreditarem que ela estava morta a continuar com aqueles jogos terríveis, e Rafael


não podia culpá-la. Era hora de lhe dizer isso, pensou então, observando seu filho rir e saltar no piso abaixo. Não podia lançar ultimatos quando era ele quem deveria... – Que gentileza sua emergir de sua caverna, finalmente. – Rafael virou-se ao som da voz seca. Lily estava na galeria, que funcionava como um tipo de foyer naquela parte da casa, os braços cruzados sobre o peito e uma carranca no rosto. – A caverna de autoflagelação, presumivelmente. Eu estava começando a pensar que nós teríamos de arrombá-la com dinamite. Eu estava inclinada a jogar um pouco em sua cabeça. Rafael piscou. – Perdão? A carranca de Lily se aprofundou, e ele não pôde evitar estudá-la. Ela estava usando calça larga e um suéter macio, com os cabelos empilhados no topo da cabeça, entretanto ele ainda a queria. Desesperadamente. Quando mais ela o olhava com expressão zangada, mais ele a queria. E mais se detestava por isso. – Arlo acha que você está doente – disse Lily, parecendo furiosa. – Porque, sabe de uma coisa, Rafael? Quando você é pai ou mãe, não pode simplesmente desaparecer até que sinta vontade de voltar. Você é pai o tempo todo, não apenas quando é conveniente. Ele tinha passado mais de 48 horas lutando com sua culpa, sua vergonha, e dois segundos na companhia de Lily eram suficientes para aumentar seu autodesgosto por tais sentimentos. Inclinando a cabeça para um lado, estreitou os olhos. – Eu sou pai de Arlo, Lily? – questionou ele friamente. – Porque tive a impressão de que, não fosse pelos exames de


sangue, você não pretendia contar ao garoto quem o pai dele é. – Eu poderia ter contado a Arlo a história inteira da família Castelli nos últimos dois dias – retrucou ela. – Umas cem vezes. – E você não saberia, porque ficou trancado em seu escritório, sentindo pena de si mesmo. – Eu não estava sentindo pena de mim mesmo – disse ele, com mais honestidade do que pretendia. – Estava sentindo pena de você. Por tê-la feito passar por tudo isso. – Bem, não há necessidade de retraçar aqueles passos. – O tom dela foi mais suave do que um momento antes. – Eu fiz isso por anos. Não ajuda. – Lily... – Mas ele não sabia o que precisava ser dito. Os olhos azuis estavam muito brilhantes, subitamente, e aquela carranca pareceu mais feroz e mais precária, ao mesmo tempo. – E sabe o que mais não ajuda? Você exigindo a verdade, depois fugindo, quando a recebe, me deixando para lidar com isso. Novamente. – Eu sou tudo que você me acusou de ser – replicou ele, então. – Mais. Não há por que fingir o contrário. – Que nobre da sua parte! – exclamou Lily. – Mas isso não muda o fato de que temos um filho, e ele não se importa se você acabou de descobrir que a história épica de amor que teve durante todos esses anos é uma farsa. – Não fale isso. – Ora, Rafael. Você sabe que nosso relacionamento não foi mais do que sexo e segredo. Duas crianças brincando, com consequências perigosas e imprevistas, nada mais.


– Você não acredita nisso. – Ele balançou a cabeça, quando ela começou a falar. – Se acreditasse, nunca teria fugido. Certamente, não teria criado Arlo sozinha. “Duas crianças brincando” não é razão suficiente para uma traição dessa magnitude, Lily, e você sabe disso. Ela pareceu frágil na luz suave, mas isso não a tornou menos linda. – Eu não quero me casar com você – declarou ela, e havia alguma coisa na voz que o afetou profundamente, como se Lily tivesse se desmoronado ali mesmo. Mas não tinha. Continuava alta e orgulhosa, do jeito que sempre fora. Talvez fosse ele quem tivesse desmoronado. – E não vou deixar Arlo aqui e partir. Eu teria lhe dito o que fazer com seu ultimato, mas você já passou dois dias mal-humorado em seu escritório. Só Deus sabe o que aconteceria a você, se eu extravasasse toda a minha raiva. Ele estudou-a por um momento, enquanto a vozinha excitada de Arlo ecoava à volta deles. E aquilo estava errado. Rafael sentia isso. Estava tudo errado. Mas ele enfiou as mãos no bolso, em vez de tocá-la, como queria fazer. Disse a si mesmo que era isso que um homem bom faria. E uma vez... apenas uma vez... seria o homem bom que nunca tinha sido para Lily. – Considere o avião a sua disposição – murmurou ele. – O avião poderá levá-los para onde você quiser. Eu não lutarei pela custódia. Como você falou, todo tipo de pessoas consegue resolver sobre as visitações. Tenho certeza de que podemos fazer isso, também. – É claro que podemos. – A voz de Lily estava rouca. – Que civilizado, Rafael. Eu não teria pensado que tínhamos isso em


nós. E, dessa vez, quando ela se afastou, Rafael deixou-a ir. LILY TENTOU dormir. Arlo estava tão exaltado por causa do Natal que, inevitavelmente, tivera uma crise nervosa e acabara na cama dela, chorando em exaustão. Lily o acalmara da melhor maneira que conseguira, quando o problema era muito açúcar e a injustiça de que ainda não era manhã de Natal, até que ele finalmente adormecera. Ela havia se acomodado na cama, ao lado dele, aberto um livro e dito a si mesma que aquilo era perfeito. Aquela era a vida que vinha levando pelos últimos cinco anos, e era a vida que queria, com seu filhinho, em algum lugar bem longe dali. De Rafael. Livros, cachorros e liberdade total. O que poderia ser melhor? Mas não conseguira absorver uma única palavra nas páginas diante de si, independentemente de quantas vezes relesse as sentenças. Finalmente, desistira. Aninhara-se ao corpinho de Arlo e fechara os olhos, confiante de que logo adormeceria. Em vez disso, ficou acordada, olhando para o teto da velha casa, tornando-se mais furiosa a cada minuto. Passava da meia-noite, quando finalmente desistiu. Ela saiu da cama, cuidando para não acordar Arlo. Calçou pantufas e vestiu um roupão, então saiu no corredor frio e escuro. Desceu a escada principal, onde as decorações natalinas brilhavam à luz parca. Ficou parada ali por um momento, aos pés da escada, mas então qualquer demônio que a tirara do quarto instigou-a a continuar andando. Lily encontrou-se diante


das portas para a biblioteca principal, antes que pudesse se censurar por isso. O cômodo era a joia da casa, como Rafael dissera uma vez. Uma biblioteca imensa, com prateleiras do chão ao teto acessadas com o tipo de escadas giratórias que deixavam uma amante de leitura como Lily zonza de alegria, embora aquele fosse o tipo de biblioteca que continha livros mais para serem vistos do que lidos. Nessa época do ano, isso pouco importava, uma vez que uma enorme árvore de Natal dominava o canto da sala, onde havia normalmente uma área de estar maior, com cadeiras de couro e acessórios masculinos. E, essa noite, Rafael estava de pé na frente da lareira, um braço apoiado sobre o mantel acima, o rosto virado em direção às chamas. Lily permaneceu parada ali por um momento, absorvendo seus muitos sentimentos complicados em relação àquele homem. Deixou que tais sentimentos a inundassem, abalando-a como uma maré alta, girando e girando a sua volta, até que ela mal conseguisse ver com clareza. Até que se focou em Rafael, e ele fosse tudo que ela podia ver. Talvez, pensou, tudo sempre fora como fora por uma razão. Talvez ela não fosse doente ou desequilibrada. Talvez eles simplesmente houvessem sido jovens demais para lidar com o que existira entre os dois desde o começo. Talvez. Estava tão cansada de todos esses “talvezes”. – Você fez isso de novo – disse ela, e sua voz soou estranha na vastidão da sala formal e abafada. Perto do fogo, Rafael não se mexeu, o que a fez pensar que ele soubera que ela estava lá. –


Você fugiu. Bem ali, a minha vista. Costumava fazer isso com outras mulheres. Esta noite, fez o mesmo com seu suposto autodesgosto e seus gestos nobres que ninguém lhe pediu para fazer. Mas ainda foi uma fuga, não foi? – Suponho que poderíamos ter uma competição de quem chega mais longe – replicou ele após um momento, mas, pelo menos, a voz estava baixa e séria novamente. Não a voz forçada e educada que ele usara mais cedo. Pelo menos, agora parecia Rafael outra vez. Olhou para ela, então, sem endireitar o corpo. – Arrumou suas malas? Ou está planejando voltar a pé para a Virgínia? A injustiça daquilo foi como outra onda cobrindo à cabeça de Lily, e a atitude inteligente a tomar seria virar-se e ir embora... mas ela não foi. Em vez disso, deu outro passo para dentro da sala. – Que diferença faria se eu estivesse ou não planejando isso? – demandou ela. – Você não se importa, de nenhuma maneira. – Eu me importo. – A voz profunda soou ríspida. – Acredite no que quiser, mas eu sei que me importo. Ele endireitou-se, e Lily o observou. Não havia mais ternos ou roupas esportivas elegantes. Essa versão de Rafael parecia muito mais... crua. A camisa estava aberta, potencialmente abotoada errada. Ele não parecia ter se barbeado recentemente. E aquela expressão nos olhos escuros... queimava. Lily ainda não partiu. Continuou estudando-o, enquanto muitas emoções duelavam em seu interior. Muitas para contar. Muitas para nomear. – Você se convenceu de que isso era tudo uma grande história de amor, certo? – demandou ela. – Não era.


– Não? – questionou ele e começou a andar em direção a ela. O corpo de Lily reagiu instantaneamente. Em todos os lugares. – Deveria ter sido. – As coisas são apenas épicas para você quando as perde, Rafael, já notou? – Lily não sabia o que a deixava mais furiosa... ele, ou a resposta do seu corpo a ele, a qual somente se intensificara. Se alguma coisa, aquela noite em Veneza piorara a situação. – Esta só pode ser uma história de amor se eu deixá-lo. É isso que você quer. – Eu amo você. – Foi uma frase direta, sem rodeios, e eles se entreolharam, enquanto as palavras dançavam no ar como uma fagulha errante do fogo no velho tapete, então desaparecendo. Ela pensou que ele fosse retirar o que falara, mas Rafael respirou fundo e prendeu-lhe o olhar. – Eu deveria ter lhe contado isso no passado. Deveria ter lhe dito isso todos os dias desde que a reencontrei. Eu te amo, Lily. Lily o encarou, atônita. Então riu. Foi um som feio. Ouviu a rispidez no eco da risada, mas não conseguiu parar, nem mesmo quando Rafael se aproximou e se agigantou à sua frente. – Pare – disse ele, e piorou aquilo com uma expressão gentil no rosto, com o jeito que a boca se suavizara. Lily esfregou os olhos com mãos que fechara em punhos sem notar. – Você não precisa fazer isso. – Amor não faz nada, Rafael – disse ela, então. – Não salva mais. Não pode mudar nada. Amor é uma desculpa. No final, é insignificante. E, na sua pior forma, destrutivo. Ele estendeu o braço e segurou-lhe a lateral do pescoço, mantendo a palma ali. Sobre sua pulsação, Lily percebeu. Como


se estivesse analisando seu coração. Ela achou difícil permanecer de pé. Mas não conseguia desviar os olhos dele, também. – Você está falando sobre o que pessoas fazem com amor, ou em nome do amor – murmurou ele. – Mas essas são pessoas. Amor é maior e melhor que todas essas coisas. Lily meneou a cabeça. – Como você saberia? Pelo exemplo brilhante de minha mãe? Ou talvez de seu pai? – Eles são pessoas – replicou Rafael. – Com defeitos e limites, como qualquer um. – Minha mãe passou a vida procurando a próxima excitação. Homens. Drogas. Qualquer coisa. Seu pai se casa por esporte. Você chama isso de defeitos? Eu diria que é mais patológico. – Você e eu somos melhores? – desafiou ele, e não poderia saber, pensou ela, enquanto o calor daquela mão em seu pescoço a aquecia. O quanto ela queria entregar-se ao toque e deixar que ele a abraçasse para sempre... Rafael não podia saber disso, podia? – Essa é a questão. – A voz dela não passou de um sussurro. – Eu lhe contei a verdade, e você não quis ter nada a ver comigo. Eu lhe disse que levaria seu filho para longe novamente, e você me permitiu fazer isso. Você e eu somos piores que nossos pais, Rafael. Muito piores. Ele levou a outra mão para o outro lado do pescoço dela e inclinou-lhe o rosto em direção ao seu. – Não – negou ele, com tanta segurança. Com tanta certeza. – Nós não somos.


Mas ela estava ficando nervosa, irritada com aquele nó em seu interior, que parecia que ia sufocá-la, se ela não pusesse tudo para fora. – E eu não entendo qual é o ponto de tudo isso – murmurou ela. – As coisas que você fez ou eu fiz, no passado e agora. As coisas que qualquer pessoa faz. O que há para mostrar com isso? – Você – disse Rafael. – Eu. Arlo. – Ele deu de ombros. – Isso é o que amor é. Complicado. Brutal. Glorioso. – As mãos grandes a puxaram para mais perto, até que eles estivessem quase se beijando. Quase. – Nosso, Lily. Isto é nosso. – Rafael... – Eu mesmo a colocarei no avião – interrompeu ele. – Se for o que você quiser. Se realmente quiser colocar isto... eu... para trás. E Lily abriu a boca para dizer que era exatamente o que queria, mas não disse. Não conseguiu. Tudo girava a sua volta. Todo o medo, a dor. A fuga e o ato de esconder-se por todos aqueles anos. As mentiras, no passado e agora. Limitara sua própria vida por causa de Rafael? Ou Rafael tinha sido a última fuga de uma vida em que ela sempre viera em segundo lugar para sua mãe? Talvez, apenas talvez, tudo fosse a mesma fuga. E, talvez, fosse hora de finalmente parar. Ela nunca deixara de amar aquele homem. Apenas nunca aprendera a fazer isso sem perder tudo no processo. Sua vida. A si mesma. – E se eu não quiser isso? – Ela ousou perguntar. Rafael estudou-a por um longo momento. Tão longo que Lily esqueceu tudo, exceto a beleza impressionante do rosto másculo. Tão longo que ela se esqueceu de si mesma, também, do passado


deles, e sorriu-lhe com aquele nó em seu interior, que temia ser esperança. E valeu a pena, pensou, ao ver o sorriso em retorno no rosto dele, transformando o homem sério e duro no Rafael que ela amara desde sempre. O Rafael que tinha sido tão lindo para uma garota de 16 anos que ela não ousara olhá-lo diretamente. Como se soubesse, mesmo na época, que, uma vez que o olhasse, nunca mais conseguiria desviar o olhar. – Eu quero vê-la sorrir, Lily. – Quero fazê-la feliz. – Ele roçou a boca na sua, sorriso com sorriso, e a fez tremer por dentro. – Mas não tenho a menor ideia de como fazer isso. Então ela envolveu-lhe o pescoço com os braços e puxou-o para mais perto, descansando a testa contra a dele. – Ame-me – sussurrou ela, toda a emoção deixando sua voz rouca e seus joelhos fracos. – Acho que é um bom começo. – Eu sempre a amei – declarou ele, as palavras ressonando como um juramento. – E sempre a amarei. Ela respirou fundo, então expirou toda a tristeza e dor, a mágoa e a fúria. Deixou sair, como neve na água daqueles canais de Veneza. – Rafael, eu fui apaixonada por você a vida inteira. Eu não saberia como deixar de amá-lo. Nunca soube. Acho que nunca saberei. – Eu me certificarei disso – prometeu ele. E Lily não sabia se ele a beijara ou ela o beijara, apenas que eles estavam na mesma sintonia, e, dessa vez, ela sentiu o nó se abrindo, esperança como luz no interior dos dois, inundando ambos. Amor. Vida. Complicada e maravilhosa... e, pela


primeira vez na vida, realmente acreditou que podia ter todas aquelas coisas. Com ele. Finalmente, com ele. Rafael ergueu-a nos braços e carregou-a para o quarto. Então, deitou-a sob as luzes brilhantes da primeira árvore de Natal que era verdadeiramente deles, no primeiro dia do resto de suas vidas, e começou a trabalhar no “para sempre”. Beijo após beijo perfeito.


CAPÍTULO 12

NO

seguinte, Arlo era a única pessoa presente no casamento de seus pais, numa capela no meio da floresta, perto do lago da velha casa, na sombra daquelas montanhas italianas que davam a sensação de eternidade. – Eu tenho uma coisa para lhe contar – dissera Rafael para seu filho naquela primeira manhã de Natal que eles tinham passado juntos, depois que o garotinho abrira os presentes e brincara com seu atual videogame favorito. – É sobre bolo? – perguntara Arlo, sem largar o jogo. – Eu gosto de bolo. Bolo amarelo, mas também de chocolate. – Não – respondera Rafael, imaginando como era possível sentir-se desajeitado e tão certo, ao mesmo tempo. – Eu quero lhe contar que sou seu pai. Lily estivera sentada no sofá, fingindo não ouvir. Arlo parecera refletir por um momento, então perguntara: – Para sempre? – Sim, para sempre – replicara Rafael solenemente. – Legal – dissera Arlo, e tudo tinha sido simples assim. A mãe dele fora uma questão diferente. NATAL


Rafael olhou-a agora, enquanto ela segurava uma das mãos de Arlo, e ele segurava a outra. Eles sorriram um para o outro, andando em direção ao padre que os aguardava no pequeno altar. – Case-se comigo porque você quer – dissera ele, quando o Natal dera lugar ao Ano-Novo. Eles ainda estavam juntos, preenchidos com esperança de que o passado complicado de ambos significava que já haviam superado as piores tempestades que qualquer um poderia suportar. – Não porque eu a intimei. – Porque seu filho precisa ter seu nome? – Ela o provocara com aquele brilho travesso nos olhos azuis. – Meu filho terá meu nome – Rafael a assegurara, cada centímetro seu irradiando o chefe poderoso da fortuna de sua família. E o homem que amava ambos. – É apenas uma questão de quando. Mas Lily achara que havia outros assuntos para resolver primeiro. Havia a questão de sua ressurreição, antes de qualquer coisa. Pelo bem de Arlo, eles decidiram dizer que ela tivera amnésia durante todos aqueles anos. Que encontrar Rafael na rua a fizera recuperar a memória. – E, de certa forma – Lily lhe dissera uma noite, enquanto eles estavam aconchegados um nos braços do outro na casa dele em São Francisco –, isso é verdade. – É a história mais gentil para contar – concordara Rafael, acariciando-lhe as costas. – Para todos nós. Ela respondera uma infinidade de perguntas, e nem todas para a mídia. Para suas velhas amigas, que tinham chorado sua morte, e agora queriam desfrutar de seu retorno. Todas as partes


de sua vida que ela deixara para trás, e achava tão diferente, agora que retornara. Descobrira que seu tempo escondida no canil de Pepper lhe dera mais habilidades de gerenciamento que imaginara possível, e, quando uma posição surgiu no escritório corporativo de Castelli Wine, em Sonoma, Lily aceitou-a. Visitara o túmulo de sua mãe e dissera a Rafael que encontrara conforto ao saber que a mãe estava finalmente em paz. Mas era lidar com a família dele que mais a preocupava, Rafael sabia. Ajudava, pensou ele, que eles já tivessem um filho. Havia um garotinho que não se importava com as pessoas com quem seus avós haviam sido casados antes que ele nascesse. E, após o choque inicial, Gianni Castelli dera de ombros de um jeito que lembrou Rafael de quando seu pai tinha sido mais jovem. A jovem noiva... Corinna... estivera falando alegremente ao celular, e Gianni a olhara com expressão amorosa, antes de voltar o olhar para seu filho. – Amor coloca todos nós no mesmo nível, de um jeito ou de outro – murmurara seu pai. – Ajuda se você não se prepara para a queda. Muito melhor deixar a gravidade fazer seu trabalho. O que ela fará, de qualquer forma. Luca, é claro, havia meramente rido. Depois, batido nas costas de Rafael. Então, rido de novo, mas, dessa vez, Rafael rira com ele. Lily contatou Pepper sob seu nome verdadeiro, e até mesmo procurou o doce casal canadense que a tirara da Califórnia naquela noite fatídica, finalmente capaz de recompensá-los pela gentileza deles.


E então, num dia de outono no sul da França, para onde eles tinham ido numa exposição de vinhos, Lily finalmente concordara em se casar com ele. – Eu não sei por que você demorou tanto para se decidir – disse Rafael, emocionado. – Porque – ela parou no meio de um mercado movimentado em Nice, para fitá-lo solenemente – eu queria ter certeza, desta vez. Rafael fora incapaz de evitar tocá-la. Nem tentara. – De que eu não fugiria? – De que eu não fugiria – respondeu ela suavemente e sorriulhe, os cabelos loiro-avermelhados como uma auréola na linda luz francesa. – E eu não fugirei, Rafael. Nunca mais. E então, finalmente, eles estavam na pequena capela, recitando seus votos, um para o outro e para o filho. Quando eram finalmente marido e mulher, andaram para a casa de mãos dadas, enquanto Arlo corria na frente. Do lado de dentro, o resto da família esperava para comemorar o casamento e o Natal, mas ele a parou diante da porta, antes que ela entrasse. Estava frio, mas, quando ele estendeu a mão, a palma virada para frente, ela encontrou-a com a sua. Aquilo era quem eles eram. Este calor. Esta conexão. Eles haviam desafiado um começo escandaloso, a possibilidade da morte e muitas mentiras. Tinham suportado quando não confiavam um no outro, e enquanto um ensinava o outro a sorrir. – Todo o resto de nossos dias – murmurou Rafael. – Mi appartieni.


– E você me pertence – concordou Lily, o brilho de lágrimas nos lindos olhos azuis. – Para sempre. E então ele segurou-lhe a mão, sua esposa finalmente, e conduziu-os seguramente para casa.


Caitlin Crews

SENTIMENTOS OCULTOS

Tradução Ligia Chabu


CAPÍTULO 1

– POR

FAVOR,

diga-me que isso é mentira, Rafael. Uma brincadeira do palhaço menos provável da Itália. Luca Castelli nem tentou disfarçar o tom ríspido ou a carranca que podia sentir em sua expressão, enquanto olhava para o irmão mais velho do outro lado da biblioteca particular. Rafael era também seu chefe e o presidente da empresa da família, fatos que normalmente não incomodavam Luca em absoluto. Mas não havia nada normal hoje. – Bem que eu gostaria – disse Rafael, sentado em uma poltrona em frente ao fogo brilhante que em nada aliviava a sensação de fúria e tristeza de Luca. – Minha nossa. Quando se trata de Kathryn, não temos escolha. Seu irmão parecia um monge entalhado em granito, o que, para Luca, apenas aumentava e sensação de traição e de que algo estava errado. Aquele era o velho Rafael, aquela criatura pesada, séria e amarga. Não o Rafael dos últimos anos, aquele que Luca preferia grandemente, que havia se casado com o grande amor


de sua vida... a mulher que Rafael chegou a pensar que estivesse morta e que, naquele momento, esperava o terceiro filho dele. Luca detestava que o sofrimento os tivesse atirado na história desagradável de um passado distante. Detestava qualquer tipo de sofrimento. Não importava a forma. O pai deles, o famoso Gianni Castelli, que construíra um império de vinho e riquezas, e uma personalidade ríspida que atravessou ao menos dois continentes, mas que era mais conhecido mundialmente por sua colorida vida matrimonial, estava morto. Do lado de fora, a chuva de janeiro lavava as janelas da velha mansão Castelli, despretensiosamente espalhada, há gerações, no topo de um lago alpino ao Norte das Montanhas Dolomitas, na Itália. As nuvens pesadas estavam baixas sobre a água, escondendo o resto do mundo da vista, como se prestassem tributo ao velho que foi sepultado no mausoléu dos Castelli naquela manhã. Cinzas produziam cinzas, e poeira, sempre poeira. Nada mais seria o mesmo novamente. Rafael, que era o diretor-geral dos negócios da família há anos, apesar da calorosa recusa de Gianni em se afastar, agora estava inegavelmente no comando. O que significava que Luca era o mais novo chefe de operações, um título que não descrevia nem de longe seu panteão de responsabilidades como sócio proprietário, mas que, ao mesmo tempo, era útil. No início, Luca achava que aquelas frescuras oficiais fossem boas para os irmãos Castelli e a companhia, já que ambos tinham assumido tais posições desde o começo do declínio da saúde do pai, há alguns anos.


Até agora. – Não entendo por que não podemos simplesmente pagar a mulher, como o restante da horda de ex-esposas – disse Luca, num tom raivoso e à beira da agressividade. Sentia-se impaciente e irritado, sentado no sofá oposto a Rafael, mas sabia que qualquer movimento resultaria numa péssima ação. Um soco na parede. Uma prateleira derrubada. Vidros quebrados. Muitas reações inflamadas que ele não gostaria de explorar, muito menos explicar ao irmão... já que eles eram propensos à falta de controle, o que Luca não permitia. Jamais. – Dê a ela um pouco da fortuna de papai e mande-a embora. – O testamento de papai é muito claro em relação a Kathryn – respondeu Rafael, e não parecia mais feliz do que Luca sobre aquilo. Luca pensou que já era alguma coisa. – E ela é a viúva dele, Luca. Não ex-esposa. Uma diferença crucial. Luca quase gemeu, mas impediu-se no último minuto. – Isso não passa de semântica. – Infelizmente não. – Rafael balançou a cabeça, mas continuou encarando Luca. – A escolha é de Kathryn. Ela pode tanto aceitar uma boa quantia agora, quanto um cargo na empresa. Ela escolheu o cargo. – Isso é ridículo. Era algo bem pior que simplesmente ridículo, mas Luca não tinha palavras para descrever o sentimento vazio e inquietante que o inundava sempre que mencionavam a sexta e última esposa de seu pai. Kathryn. Aquela que, naquele exato momento, estava na biblioteca maior no andar de baixo, chorando o que pareciam ser lágrimas verdadeiras pela morte do marido que tinha três vezes a sua


idade e com quem ela só podia ter se casado por interesse. Luca viu as lágrimas escorrerem silenciosamente pelas faces dela, uma após a outra, dando a impressão de que ela não conseguia conter o sofrimento. Ele não acreditava nela. Nem por um segundo. Se havia algo que Luca sabia era que o tipo de amor que poderia levar a tamanho sofrimento era raro, excessivamente improvável e não aparecia muitas vezes na família Castelli. Ele achava que a felicidade atual de Rafael talvez fosse a única evidência de amor em gerações. – Pelo que sabemos, papai a encontrou ganhando a vida nas ruas de Londres – murmurou ele e olhou para o irmão. – Que diabos vou fazer com Kathryn no escritório? Nem sabemos se ela sabe ler. Rafael se mexeu, os olhos escuros tão estreitos quanto os de Luca. – Você encontrará algo para mantê-la ocupada, porque o testamento assegura a ela três anos de emprego. Tempo suficiente para apresentá-la às alegrias do mundo escrito. E se você gosta ou não de Kathryn, é irrelevante. Gostar não era a palavra que Luca teria usado para descrever o que lhe acontecia quando aquela mulher era mencionada. Não chegava nem perto. – Não tenho qualquer sentimento em relação a ela. – Luca deixou escapar uma risada que pareceu vazia. – O que é mais uma noiva jovem... adquirida apenas para satisfazer o ego do velho... para mim? Seu irmão apenas olhou por um momento que pareceu longo demais. As velhas janelas tremiam. O fogo crepitava. E Luca


descobriu que não desejava ouvir o que seu irmão tinha a dizer. Preferia Rafael quando ele estava perdido numa prisão de fúria e tristeza, e incapaz de se concentrar em nada além de sua própria dor. Aquele novo Rafael possuía muito insight para seu gosto. – Se você está determinado a fazer isso – disse ele antes que Rafael pudesse falar alguma coisa com que Luca tivesse de discordar –, por que não arranjamos algo para Kathryn em Sonoma? Ela pode adquirir experiência nos vinhedos da Califórnia, como fizemos quando éramos crianças. Podem ser férias deliciosas para ela, bem longe. De mim, pensou ele. Bem longe de mim. Rafael deu de ombros. – Ela escolheu Roma. Roma. A cidade de Luca. O lado de Luca no ramo altamente competitivo do vinho. Ele se gabava de ter conseguido sozinho o poder de mercado e o alcance mundial da marca Castelli Wine. Em grande parte, porque foi deixado sozinho ali por tantos anos. Certamente, não tinha sido requisitado para bancar a babá de um dos muitos erros de seu pai. O pior erro de seu pai, em sua opinião. Em uma vida repleta deles... incluindo o próprio Luca. Ele sabia que o pai teria concordado. – Não há espaço – disse ele. – A equipe é enxuta, centrada e foi escolhida a dedo. Não há lugar para uma mocinha que está de férias de sua verdadeira vocação para troféu de velhos. Rafael era seu chefe ali. Não seu irmão. E totalmente impiedoso. – Você terá de abrir espaço. Luca meneou a cabeça.


– Pode nos atrasar em meses e causar um prejuízo incalculável, se tentarmos organizar uma equipe que inclua tal criatura, a qual certamente cometerá muitos enganos. – Confio que você irá certificar-se de que nada disso aconteça – disse Rafael, secamente. – Ou duvida de suas próprias habilidades? – Este tipo de nepotismo vulgar provavelmente causará revolta. – Luca. – Rafael não falou alto, mas silenciou o irmão. – Suas objeções foram anotadas. Mas você não está enxergando a situação como um todo. Luca tentou conter a raiva que ameaçava dominá-lo. Estendeu as pernas à frente e passou a mão pelo cabelo, como se estivesse relaxado. Indolente. Não atingido por tudo aquilo, apesar de seus argumentos. O papel que vinha representando a vida toda. Ele não tinha ideia de por que manter sua fachada profundamente despreocupada havia se tornado tão difícil nos últimos anos. Por que havia começado a sentir como se estivesse numa jaula, em vez de num refúgio. – Esclareça – murmurou ele quando tinha certeza de que conseguiria falar em seu tom normalmente entediado e quase divertido. Rafael não pareceu convencido. Apenas levantou o copo da mesa lateral antiga e girou o líquido âmbar dentro do mesmo. – Kathryn conseguiu o interesse do público – disse ele depois de um momento. – Eu não deveria ter que lembrá-lo disso. A Santa Kate esteve na capa de cada tabloide desde a notícia da


morte de nosso pai. O sofrimento dela. Sua abnegação. Seu amor verdadeiro pelo homem, apesar das improbabilidades. – Desculpe-me se sou cético a respeito da verdade da devoção dela. – Pelo menos, ele soou mais divertido do que se sentia. – Para colocar isso suavemente. A verdade do interesse de Kathryn pela conta bancária de nosso pai é uma história bem mais convincente e menos divertida. – A verdade é maleável e tem pouco a ver com a história que acaba saindo em cada site de fofoca e revistas existentes – apontou Rafael com um toque de amargura no sorriso. – Ninguém sabe disso melhor que eu. Podemos realmente reclamar que, desta vez, a imprensa não está exatamente a nosso favor? Luca não tinha certeza se a óbvia manipulação da imprensa de sua mais nova madrasta estava no mesmo patamar das histórias que Rafael e sua esposa, Lily... que era também ex-irmã de criação deles, porque a árvore genealógica da família Castelli misturava-se e dobrava-se sobre si mesma... haviam contado para explicar o fato de que ela foi considerada morta por cinco anos. Mas achou melhor não dizer nada. Rafael continuou: – A verdade é que, embora nós tenhamos gerenciado os negócios por anos, a percepção de fora é bem diferente. A morte de papai dá a todos a oportunidade de fazer suposições sobre os filhos ingratos arruinando o que ele construiu. Se marginalizarmos Kathryn, isso refletirá negativamente e atiçará este fogo. – Ele apoiou o copo. – Não quero atiçar o fogo. Nada


em que os tabloides possam enfiar suas garras sujas. Você entende. É necessário. Luca entendia que aquilo era uma ordem. Do presidente da Castelli Wine e novo chefe oficial da família. Possuir metade da companhia não mudava o fato de ter de obedecer a Rafael. E nada disso ser aceitável não alterava o fato de Rafael não estar pedindo sua opinião. Ele estava dando uma ordem. Luca levantou-se abruptamente, antes que dissesse palavras que não tinha certeza se queria dizer, numa tentativa de mudar a opinião do irmão. Rafael permaneceu onde estava. – Não gosto disso – murmurou Luca suavemente. – Não pode terminar bem. – Tem de terminar bem – contrapôs Rafael. – Esse é o objetivo. – Farei com que você lembre que foi ideia sua, quando Castelli Wine afundar por conta da incompetência dessa mulher – declarou Luca, encaminhando-se para a porta. Precisava fazer alguma coisa. Correr por quilômetros. Nadar como louco. Levantar muitos pesos ou encontrar uma mulher disponível e cheia de desejos. Qualquer coisa, menos ficar ali, pensando na terrível nova realidade. – Discutiremos quando chegarmos ao fundo do poço. Rafael riu. – Kathryn não é nosso Titanic, Luca – disse ele num tom que o irmão não gostou. – Mas talvez você pense que ela é o seu? Luca pensou apenas que podia ficar sem as observações do irmão hoje... ou qualquer dia, principalmente quando


envolvessem Kathryn, que, sem dúvida, era a ruína de sua existência. Maldita mulher. E maldito pai por impô-la a seus filhos. Ele saiu da biblioteca particular com um gesto rude da mão, que fez seu irmão rir, e caminhou em direção ao andar de baixo pelos corredores da antiga residência, cujos detalhes nem reparava mais. Os retratos nas paredes. As estátuas ocupando cada superfície disponível. Tudo como sempre foi, antes de Luca nascer, e o mesmo que seria quando Arlo, o filho mais velho de Rafael, se tornasse avô. Os Castelli resistiam, não importava as confusões que aprontavam. Ele imaginou que também resistiria, apesar da situação. Ouviu a voz de Lily ao passar por uma sala, olhou para dentro e viu a cunhada grávida de seis meses numa de suas “discussões” com Arlo, de 8 anos, e Renzo, de 2, sobre comportamento adequado. Luca escondeu um sorriso ao passar, achando a bronca bem parecida com as que ele levava quando criança. Não de sua mãe, que abdicou daquela posição logo depois que Luca nasceu, ou de seu pai, que foi importante demais para se preocupar com problemas domésticos. Ele tinha sido educado por uma legião de empregados bem-intencionados e uma série de madrastas com motivos infinitamente mais obscuros. Talvez por isso, havia desenvolvido aversão a complicações. E a madrastas. Luca cresceu em meio a uma família muito desordenada, que transmitia seus dramas particulares para o mundo todo ver, sem importar se a publicidade impiedosa tornava tudo pior. Ele detestava aquilo. Preferia as coisas claras e fáceis. Ordenadas. Sem confusão. Sem drama. Sem teatros que terminavam


espalhados nos jornais, apresentados sob a pior luz possível. Ele não se importava de ser considerado um playboy... cultivava tal papel para que ninguém o levasse a sério, um benefício para os negócios e para sua vida pessoal. Não partia corações... simplesmente não transitava pelos picos emocionais que marcavam os membros de sua família. Não. Obrigado. Mas Kathryn era outra história, pensou ele ao entrar na grande biblioteca e ver a figura esguia parada sozinha no canto oposto, observando a chuva como se competisse com ela pelo título de A Mais Desolada. Kathryn estava um desastre. Ele não estava surpreso que a Santa Kate, como era conhecida pelo seu suposto martírio por causa do velho Gianni Castelli e sua considerável fortuna, estivesse nos jornais aquela semana. Kathryn bancava a inocente convincente e facilmente magoada tão bem que Luca sempre pensou que ela teria se saído melhor se dedicasse sua vida aos palcos. Embora ele achasse que ela dedicara. Representar a amante compreensiva e esposa troféu nada exigente de um homem tão mais velho que seus 25 anos era uma grande performance. O que Luca não entendia era por que uma rameira tão óbvia quanto Kathryn o fazia enrijecer e ter tanta vontade de testar a maciez dela, mesmo agora. Não fazia sentido experimentar esta tensão que nada... nem o tempo, nem o espaço, nem o odioso casamento dela com seu pai, nem a perspectiva de ela poluir o refúgio de seu escritório em Roma... alterava ou aliviava, de jeito nenhum. Ele a fitou ao fundo da enorme sala repleta de prateleiras ocupadas por livros do chão até o teto, com se pudesse fazê-los desaparecer. Ou fazê-la desaparecer.


Mas sabia que não podia. Sempre foi assim. O pai de Luca havia feito uma segunda carreira ao se casar com uma sucessão de mulheres mais jovens que o deixavam agir como salvador. Ele prosperava nisso. Gianni nunca teve muito tempo para os filhos ou para a primeira mulher, da qual se livrou internando-a num hospício, e cuja morte lamentou muito brevemente. Todavia, para sua legião de amantes e esposas, com suas necessidades infinitas, preocupações, crises e melodramas, ele sempre esteve disponível para bancar o Deus benevolente, solucionador de todas as calamidades, capaz de resolver qualquer tipo de problema com um aceno de seu cartão de crédito. Quando Gianni retornou à Itália, um mês depois de se divorciar de sua quinta esposa, e já com a sexta a tiracolo, Luca não se surpreendeu. – Há uma nova noiva – contou Rafael assim que Luca chegou às Dolomitas naquela manhã de inverno, dois anos atrás. – Já? Luca fez uma careta. – Esta é maior de idade? – Ela tem 23 anos – respondeu Lily de modo repreensivo, com a mão sobre a barriga grávida, que, em breve, se tornaria Renzo. – Não é nenhuma criança. E parece muito simpática. – Claro que parece simpática – retrucou Rafael, sorrindo, a ligação entre eles brilhando como sempre, como se os Castelli pudessem fazer algo de bom em meio às suas confusões. – É o trabalho dela, não é?


Luca se preparou para uma madrasta parecida com a antiga ocupante do cargo, a criatura exageradamente loura que Gianni inexplicavelmente amou, apesar de ela passar mais tempo ao telefone ou enfrentando seus filhos do que com ele. Corinna tinha 19 anos quando se casou com Gianni e era modelo de moda praia. Luca imaginou que seu pai não a havia escolhido por sua personalidade ou caráter. Mas, em vez de uma nova versão da totalmente plastificada Corinna, quando Luca entrou na biblioteca, onde seu pai esperava com Arlo, encontrou Kathryn. Kathryn, que não deveria estar ali. Tinha sido seu primeiro pensamento, como uma chama intensa em sua mente. Ele ficou imóvel no meio da biblioteca e olhou zangado para a mulher que sorria educadamente na sua maneira britânica reservada. Até que sua inabilidade de fazer qualquer coisa além de olhá-la fixamente fizesse com que o sorriso dela desaparecesse. Ela não pertence a este lugar, pensou ele novamente. Não parada ao lado de seu velho pai, afundado na poltrona em frente ao fogo, todo enrugado, de cabelo branco e com dedos cheios de nós devido à artrite. Não torcendo as mãos em sua frente como uma estudante deslocada, em vez de recorrer aos olhares provocantes que as madrastas de Luca normalmente lançavam. Aquela madrasta não. O cabelo dela era escuro, quase preto, entretanto, continha nuances douradas quando as chamas refletiam nele. Batia além dos ombros, liso e grosso, e uma franja caía sobre os olhos acinzentados, quase verdes. Ela vestia calça preta simples e um suéter caramelo aberto sobre uma blusa de tricô sem nenhum


decote. Parecia elegantemente eficiente, nada plástica ou vulgar. Era pequena e delgada e, é claro, havia sua boca. Sua boca. A boca de uma cortesã zangada, carnuda e sugestiva, e, por um momento longo e chocante, Luca teve a estranha impressão de que ela não tinha a menor ideia dos próprios atrativos. Que era inocente... mas aquilo era absurdo, é claro. Um desejo seu, talvez. Nenhuma inocente se casava com um homem muito rico com idade para ser seu avô. – Luca – bradava Gianni em inglês, pelo bem da esposa. – Qual é o problema? Comporte-se. Kathryn é minha nova esposa e sua nova madrasta. Luca foi tomado por uma fúria que não poderia descrever nem se sua vida dependesse disso. Não notou que estava se movendo até parar em frente a ela, agigantando-se com seu tamanho superior... Não que ela tivesse recuado. Não Kathryn. Ele enxergava demais naqueles olhos expressivos, arregalados com algum tipo de angústia. E consciência... Luca viu a chama desta, seguida instantaneamente de confusão. Mas, em vez de mudar de posição para tirar alguma vantagem ou vê-lo melhor, ela apenas estendeu a mão. – Prazer em conhecê-lo – disse com seu sotaque britânico. O som o atingiu como um bloco de gelo, e não ajudou a acalmar o fogo em seu interior. Luca apertou a mão de Kathryn, embora soubesse que era um terrível erro. E estava certo.


A sensação da pele sedosa traçou um longo caminho até seu sexo. Ele deveria ter puxado a mão. Em vez disso, apertou-a mais forte, sentindo a delicadeza, o calor e o tumulto delator no pulso delicado. Os lábios carnudos haviam se aberto, como se ela também tivesse sentido aquilo. Ele teve de lembrar a si mesmo que não só não estavam sozinhos, mas também ela não estava livre. Na verdade, era bem mais do que simplesmente não estar livre. – O prazer é todo meu, madrasta. – Luca falou em voz baixa, aquele fogo queimando seus membros e enviando eletricidade a ambos. Percebeu que ela havia enrijecido, mas jamais saberia se devido ao choque de sua agressividade ou à mesma consciência que ele sentia. – Bem-vinda à família. E foi um declínio a partir dali. Que o levou até o momento. À mesma biblioteca de dois anos atrás, onde Kathryn estava parada sozinha, num vestido preto simples que, de algum modo, a fazia parecer frágil e bonita demais ao mesmo tempo. O cabelo preso e nenhuma cor nas faces. Ela olhava pela janela que dava vista para o lago e parecia genuinamente triste. Como se realmente lamentasse a morte de Gianni, o homem que usou para seus propósitos, os quais, aparentemente, incluíam entrar no escritório de Luca contra a vontade dele. Isso o enfurecia. Ele disse a si mesmo era raiva que o dominava. Não a sensação obscura e perigosa à espreita, ou o desejo terrível que preferia negar.


– Venha, Kathryn – disse Luca com voz sombria e um tanto insultante, notando que ela havia enrijecido com o som. Diante da presença dele. – O velho está morto e os repórteres já foram. Para quem é este teatro sentimental?


CAPÍTULO 2

O

RESMUNGO,

marca registrada de Luca Castelli, seu inglês adornado tanto pelo italiano nativo quanto por aquela crueldade aguda que Kathryn ouvia somente quando ele se dirigia a ela, atravessou-a como um choque elétrico. Ela estremeceu diante da janela da biblioteca e teve um sobressalto que era muito improvável que ele não tivesse percebido, mesmo estando do outro lado da sala longa, luxuosa e formidavelmente organizada. Ótimo, pensou ela, desesperando-se novamente. Agora ele sabe exatamente o quanto consegue atingi-la. Kathryn não esperava que nada do que fizesse pudesse fazer com que aquele homem gostasse dela. Luca deixou bem claro que isso não aconteceria. Muitas e muitas vezes durante os últimos dois anos. Mas ela o queria... precisava dele... não para odiá-la ativamente, quando ela iniciava uma nova fase de sua vida. Achou que era melhor que nada. Um começo tão bom quanto poderia desejar, na verdade. E sua mãe certamente não a havia educado para ser covarde, apesar de, sem dúvida, ter se


decepcionado inúmeras vezes. Rose Merchant jamais deixava o sofrimento ficar entre ela e o que precisava ser feito, como lembrava a Kathryn em todas as oportunidades. Forçar seu ingresso no mundo corporativo, como Rose não foi capaz de fazer, tendo de criar uma filha sozinha, era o mínimo que Kathryn podia fazer para honrar todos os sacrifícios da mãe. E para amenizar a culpa que sentia pelo casamento com Gianni... o que tinha sido uma honra aos sacrifícios da mãe, permitiria que ela fizesse algo puramente para si mesma. Mas não podia se permitir pensar muito sobre aquilo. Fazia com que se sentisse ingrata. Kathryn endireitou-se, sabendo que seus movimentos eram sobressaltados e desajeitados, do modo como sempre parecia agir quando estava perto daquele homem, que percebia cada detalhe embaraçoso e nunca hesitava em usar cada um deles contra ela. Ela alisou a frente do vestido, nervosa, mas também cuidadosamente, como se o traje fosse um talismã. Havia agonizado a respeito do que vestir naquele dia, porque não queria parecer a vadia interesseira que sabia que a família... Luca... achava que ela fosse. Mas também tinha muito medo de acabar se parecendo com a versão pobre de uma aspirante a Audrey Hepburn. Os jornais chamariam aquilo de uma homenagem a Audrey ou algo igualmente embaraçoso, e Luca assumiria que tudo não passava de parte de uma campanha proposital com algum objetivo repugnante que ele acreditava que ela já tinha em mente desde o início. O ciclo da condenação amarga de Luca continuaria infinitamente... Mas ela estava adiando o inevitável. Sempre quis uma chance de provar o contrário, de trabalhar no lado criativo de uma


corporação e tentar lidar com algo divertido como marketing ou posicionamento de marca. Passou todo seu casamento excitada com a perspectiva de trabalhar na empresa da família, com Luca e seu gênio criativo. Mesmo se, além da chama corporativa, ele fosse bastante cruel. Ela assumiu que os homens poderosos eram assim mesmo. Que Luca estivesse na média neste sentido. Kathryn respirou profundamente, aprumou os ombros e se virou para finalmente encarar seu demônio pessoal. – Olá, Luca – disse ela do outro lado dos metros que os separavam na vasta sala, e ficou orgulhosa de si mesma. Pareceu tão calma, fria, quando não sentia nada disso. Por muitas razões, mas principalmente porque olhar para Luca Castelli era como olhar diretamente para o sol. Tinha sido assim desde o começo. E, como sempre, ela ficou instantaneamente tonta. Luca moveu-se como uma sombra aterrorizante pelo chão da biblioteca e, tragicamente, estava lindo como sempre. Alto, sólido e impressionantemente atlético. Sua enorme figura era esculpida à perfeição e era constantemente celebrada nos tabloides de pelo menos cinco continentes. O cabelo grosso e negro sempre parecia desordenado, como se ele vivesse uma vida tão despreocupada que precisava passar a mão por ele o tempo todo, sugerindo pontuar cada afirmação... apesar de agora ser o chefe de operações da empresa da família. Mesmo no dia do funeral do pai, usando um terno escuro que evidenciava sua masculinidade exuberante e seu excelente gosto na mesma proporção, ele tinha aquele ar indolente. Aquele perpétuo estado relaxado, preguiçoso e brincalhão que apenas


um homem no alto da riqueza de gerações de ancestrais igualmente influentes poderia conseguir. Como se uma parte dele sempre estivesse passeando num iate com uma bebida gelada nas mãos e mulheres apresentando-se para seu prazer. Ele tinha a aparência de um homem que estava sempre prestes a rir, desde a boca deliciosa até os brilhantes olhos escuros. Kathryn havia visto centenas de fotografias dele exatamente daquele jeito, iluminando toda a Costa Amalfitana e metade da Europa com aquele seu brilho irrepreensível... Exceto, é claro, quando ele olhava para ela. A carranca que usava agora não o deixava menos bonito. Nada deixaria. Mas fez Kathryn estremecer por dentro, como se tivesse perdido o controle de todos os seus ossos. Ela queria fugir. Teria fugido se não fosse piorar ainda mais toda aquela situação. Além disso, se havia aprendido algo nesses últimos dois anos, era que não havia como fugir de Luca Castelli, não havia como manobrá-lo. Havia apenas como sobreviver a ele. – Olá, madrasta – disse ele com aquele tom horrível na voz, atingindo cada parte de seu corpo com sensações obscuras de algo como vergonha, tão profundamente que era difícil respirar. Ele parecia impassível como sempre, serpenteando em direção a ela com sua usual atitude enganosamente despreocupada e aqueles olhos escuros tão ardentes que ela poderia senti-los perfurando-a a distância. – Ou deveríamos inventar um novo título para você? A Viúva Castelli tem certo apelo gótico. Eu acho. Vou mandar colocar no seu cartão de visitas. – Sabe – disse Kathryn, porque ainda estava fraca demais para controlar a língua como deveria –, se você decidisse não ser tão


horrível comigo por cinco minutos, o mundo não pararia. Todos sobreviveríamos. Eu juro. O rosto de Luca estava rígido, evidenciando seu desprazer, enquanto ele diminuía a distância entre eles rapidamente demais para a paz de espírito de Kathryn. – Não tenho ideia de por que você acha necessário trazer este seu teatro performático para dentro de um escritório – disse ele aproximando-se. – Muito menos o meu. Tenho certeza de que há muitos bares em hotéis pela Europa que acolham seu tipo de desespero e sua ganância covarde. Não terá nenhuma dificuldade em encontrar sua próxima vítima em uma semana. Kathryn sabia que não deveria estar surpresa que ele ainda a odiasse tanto, porque Luca havia sido notavelmente consistente nisso desde o dia em que ela chegara à Itália com Gianni, dois anos atrás. Entretanto, como naquela fria manhã de inverno, quando ele se armou contra ela naquele mesmo lugar, furioso e aterrorizante de um modo que ela jamais entendeu completamente, estava surpresa. Embora surpresa não fosse realmente a palavra certa para descrever a sensação. – Suponho que o mundo realmente acabaria se aceitasse a possibilidade de que, talvez, eu não seja quem você pensa que sou – murmurou ela, endireitando a coluna contra a onda de sofrimento sem sentido por este homem detestável jamais ter gostado dela. Em vez disso, Kathryn canalizou o estranho sentimento em raiva. – Você teria de reexaminar seus preconceitos, e quem sabe o que poderia acontecer? É claro que um homem como você acharia isso assustador. Você tem muitos deles.


A verdade era que ela mal conhecia Luca, apesar de dois anos de interações forçadas e desagradáveis. O que sabia era que ele havia desenvolvido uma aversão instantânea e intensa a ela. Por que ela tentava convencê-lo de que ele estava errado a seu respeito era um mistério para Kathryn. Com certeza, isso tinha a ver com profundos problemas psicológicos de sua parte, mas então, por que seu relacionamento com o resto da família era normal? Todavia, ela sabia que não era sábio provocá-lo. Kathryn experimentou um momento de tristeza pelo fato de que já o havia provocado, de qualquer forma, enquanto ele caminhava pelos tapetes inestimáveis dispostos abaixo de fileiras de primeiras edições. Tudo tão presunçoso e absolutamente intocável quanto ele. – Este é um momento tão bom quanto qualquer outro para discutir as expectativas que tenho de todos os empregados da Castelli Wine que trabalham em meu escritório de Roma. – A voz dele estava fria. E, à medida que ele se aproximava, lançava aquele olhar que causava sensações em seu baixo-ventre. – Primeiro, obediência. Informarei quando quiser que você fale. Se estiver em dúvida, prefiro que permaneça em silêncio. Você pode assumir que este sempre será o caso. Segundo, confiança. Se você não puder ser confiável, sempre correrá aos tabloides para dar entrevistas sobre os anos em que foi vitimada e mal interpretada, Santa Kate... Kathryn encolheu-se. – Por favor, não me chame assim. Sabe que é invenção dos tabloides.


Sua mãe já lamentava o nome e a imagem mais de uma vez, então Kathryn se lembrou que ela dera à filha tudo sem receber nada em troca, entretanto, jamais fora chamada de santa por ninguém. Até mesmo sugeriu que Kathryn tivesse inventado o nome e a detestável história. Ela não havia inventado coisa alguma. O que não significava que ela não brincava com isso de vez em quando. Sempre foi fascinada por uma boa marca e marketing global. O fato de ninguém acreditar que ela não tinha inventado tudo, entretanto, enfurecia-a. – Santa Kate não tem nada a ver comigo. – Acredite – disse Luca no seu modo terrível. – Não tenho nenhuma ilusão sobre você ou sua pureza. Uma bofetada teria machucado menos. Kathryn piscou e forçou-se a permanecer exatamente onde estava, em vez de remoer a afirmação. Porque, apesar da opinião dele, aquela era sua chance de fazer algo em que realmente acreditava ser boa. Sabia que ele a odiava. Poderia não saber o motivo, mas não importava. Kathryn nunca quis posição social ou joias, ou o que quer que as outras madrastas quiseram de Gianni. Ela queria uma chance de provar que era capaz de fazer um trabalho numa empresa que tinha alcance internacional e um futuro brilhante, e finalmente mostrar a sua mãe que ela também poderia ter sucesso nos negócios. Do seu jeito, não do jeito de Rose. Era o que Gianni prometeu quando a convenceu a largar a faculdade em Londres para se casar com ele: a oportunidade de trabalhar nos negócios da família quando o casamento acabasse.


Ela sabia que se fizesse o que cada terminação nervosa de seu corpo estivesse pedindo, e fugisse dali, jamais voltaria, e Luca certamente nunca lhe daria uma nova chance, independentemente do que o testamento de Gianni determinasse. Sua mãe jamais a perdoaria. E a garota solitária dentro de Kathryn, que jamais quis outra coisa além do amor de Rose, simplesmente não podia deixar isso acontecer. – Luca – murmurou ela –, antes de começar com os insultos, que são sempre tão criativos e compreensivos, quero me certificar de que você entenda que eu tenho toda intenção... – Que os anjos me protejam das intenções de mulheres inescrupulosas. – Ele estava quase em cima dela, e uma das partes mais injustas desta situação era que Kathryn não parecia conseguir evitar uma fascinação pelo modo como ele se movia. Aquela graça impossível e improvisada que Luca não merecia, e que ela não deveria notar, enfraquecia seus membros. – Terceiro, o testamento de meu pai diz apenas que tenho de acolher seu desejo de experimentar um emprego no escritório, sem especificações. Se você reclamar de qualquer coisa, isso ficará pior. Entendeu? Ela experimentou uma sensação sombria. Parecida medo. Agarrando-se às suas têmporas. Às cavidades por trás de seus joelhos. À sua garganta. Ao seu sexo. Kathryn não tinha ideia do que estava lhe acontecendo. Então, tentou atingi-lo. – Oh, quanta diversão. – Ela o encarou quando a expressão dele se tornou feroz, e não fez qualquer tentativa de impedir o


tom sarcástico. Gianni estava morto. Começava a disputa. – Está planejando me fazer limpar o chão? De quatro e com uma escova de dente? Assim aprenderei uma lição, tenho certeza. – Duvido muito – ralhou ele. Parou a poucos centímetros dela. Perto demais. E ficou parado em sua fúria masculina, enquanto aquela coisa sombria que sempre houve entre eles aumentava cada vez mais e roubava o ar da sala graciosa. – Mas espero que você faça qualquer coisa que eu mandar. Sem desculpas. Kathryn se forçou a falar. – E se você estiver enganado e eu não for tão inútil quanto imagina? Suponho que pedidos de desculpas não são exatamente seu forte. A boca dele... que Kathryn não deveria achar tão fascinante, porque, o que havia de errado com ela?... assumiu uma curvatura impiedosa demais para ser um sorriso. – Eu já lhe disse o quanto odeio mulheres como você? Aquela palavra. Ódio. Era muito forte, e Kathryn nunca compreendeu como tudo entre eles podia ser tão intenso. Continuava sem entender por que isso atingia tanto seu íntimo. Como se ele importasse. Quando era claro que ele não importava. Luca era um meio para uma finalidade, nada mais. – Estava bastante implícito – retrucou ela, lutando para manter a voz inabalada. – No entanto, pode ficar orgulhoso por ter conseguido esclarecer seus sentimentos perfeitamente desde o princípio.


– Meu pai se casou com mulheres mais novas, como homens trocam seus sapatos – declarou Luca, como se aquilo fosse uma novidade para ambos. – Você não é nada além da última delas. Não é a mais bonita. Não é nem a mais nova. É simplesmente aquela que sobreviveu a ele. Deve saber que não significava nada para ele. Kathryn balançou a cabeça. – Sei exatamente o que eu significava para seu pai. – Eu não me gabaria de seus meios calculistas e coniventes – respondeu ele. – Especialmente em meu escritório, onde verá que as pessoas que trabalham com afinco e são recompensadas pelos seus méritos, em vez de suas técnicas de sedução, provavelmente não gostarão dos seus métodos. Luca meneou a cabeça, o julgamento estampado em cada linha de seu corpo naquele terno elegante no qual um homem tão horrível quanto ele não deveria ficar tão bem. Técnicas de sedução, havia dito ele com expressão enojada. Ofendendo-a. Ele a ofendia. Talvez por isso Kathryn perdeu um pouco a cabeça. Ele finalmente havia ido longe demais. – Eu passei a maior parte do meu casamento tentando descobrir por que você me odeia tanto – extravasou ela, negligenciando a proximidade opressiva dele. Não se importando com aquele brilho nos olhos escuros. – Que um adulto, aparentemente lúcido e obviamente capaz de realizar grandes feitos corporativos, pudesse odiar outra pessoa à primeira vista, e sem qualquer razão, não fazia nenhum sentido para mim.


Ela estava ciente da casa em seu esplendor italiano, pressionando-a por todos os lados. Do lago cristalino que se estendia para dentro da névoa. De Gianni, doce Gianni, com quem ela jamais riria novamente e que nunca mais a chamaria de cara com sua voz envelhecida. Até este belo mundo raro parecia diminuto diante da perda dele, e ali estava Luca, detestável como sempre. Ela não conseguiria suportar isso. – Eu sou uma pessoa decente. Tento fazer a coisa certa. – Kathryn levantou a voz quando Luca emitiu um som de desprezo. – Não mereço o ódio que você vem dirigindo a mim há anos. Casei-me com seu pai e cuidei dele, ponto final. Nem você nem seu irmão fizeram isso. Alguns homens em sua posição deveriam me agradecer. Foi como se Luca se expandisse e preenchesse todo o espaço da biblioteca, de repente ele ficou maior ainda do que já era. Tão grande que ela não conseguiu respirar, e ele não moveu um só músculo. Estava simplesmente sombrio, e aquela luz horrível nos olhos queimou-a quando ele a fitou. – Você era mais uma de uma longa lista de... – Sim, mas esta é a questão, não é? – Ele pareceu atônito que ela o tivesse interrompido, mas Kathryn ignorou e continuou: – Se você enxergou minha insignificância, por que me odiar? Eu deveria ser uma qualquer. – Você foi. Foi a sexta. – Mas você não desprezou as outras cinco – acusou ela bruscamente, frustrada. – Lily me contou tudo sobre elas. Você gostava da mãe dela. A última tentou dormir com você mais de uma vez, e você ria cada vez que a dispensava. Simplesmente


avisou-a para parar de tentar... nem mesmo contou a seu pai. Não a odiava e você sabia que ela era tudo que me acusa de ser. – Está realmente alegando que você não é nada disso? Que, na verdade, é este irreconhecível modelo de perfeição que aparece nos jornais? Ora, vamos, Kathryn. Não pode imaginar que eu seja tão ingênuo. – Nunca fiz nada para você, Luca – proferiu ela e não conseguiu controlar a voz, desta vez. Havia quase dois anos de sentimentos reprimidos dentro dela. Cada comentário malicioso. Cada palavra agressiva. Cada olhar irado e injusto. Cada vez que ela tentava uma conversa e encontrava aquele olhar. Verdade que, em certo nível, era um alívio encontrar alguém que fosse tão chocantemente direto. Mas isso não aliviava a dor em nada. – Não tenho ideia de por que me odiou no momento em que pôs os olhos em mim. Não tenho ideia do que se passa na sua cabeça. – Ela avançou para bem perto dele, e então, sem se importar com a reação, de modo suicida, pressionou o peito de Luca com dois dedos. Forte. – Mas, depois de hoje? Não me importo mais. Trate-me da maneira como trata qualquer um que trabalhe para você. Pare de agir como se eu fosse um demônio enviado diretamente do inferno para torturá-lo. Ele ficou imóvel debaixo dos seus dedos. Como mármore. – Tire a mão. – A voz era gelada. Furiosa. – Agora. Ela o ignorou. – Não tenho de provar a você que sou uma pessoa decente. Não me importo que o mundo saiba que seu pai o forçou a me contratar. Eu sei que farei um bom trabalho. Meu desempenho


mostrará. – Ela o cutucou novamente, com a mesma força, e quem se importava se esse era um comportamento suicida? Havia coisas piores. Como sofrer uma nova rodada de ataques a seu caráter. – Mas não vou mais escutar seus abusos. – Eu disse para tirar a mão de mim. Kathryn o encarou e viu o alerta que deveria tê-la assustado. Deveria tê-la impressionado de algum modo, lembrando-a que ele era um homem muito forte, imprevisível e perigoso. E que a detestava. Mas ela se manteve impassível. – Não me importo com o que você pensa de mim – disse ela, muito claramente. Então, cutucou-o pela terceira vez. Ainda mais forte, bem no centro do peito. Luca se moveu tão rapidamente que ela nem teve tempo de processar. Quando percebeu, estava espremida contra a parede rígida do peito sólido, com a mão torcida atrás de suas costas. Aquilo era mais do que estonteante. Era como cair do topo de uma das montanhas que circundavam o lago e colidir contra ela até chegar ao solo. O coração de Kathryn bombeava freneticamente, e o lindo rosto moreno estava muito perto do seu, e ela o estava tocando, seu vestido sendo uma fraca barreira para impedi-la de notar certos aspectos, como o cheiro de Luca, um toque cítrico e condimentado. O calor que emanava do corpo másculo, que era como uma fornalha. E aquela força languidamente enganadora dele, que mexia com algo profundo no seu interior.


– Isto, sua tola. – Luca pausou, a boca tão perto que ela podia sentir o gosto das palavras. Podia sentir o gosto dele, e estremeceu, impotente, completamente incapaz de disfarçar sua reação. – Isto é o que eu penso de você. E então ele cobriu a boca de Kathryn com a sua.


CAPÍTULO 3

ELE NÃO pediu. Ele não hesitou. Simplesmente tomou. A boca de Luca desceu sobre a de Kathryn, e ela esperou por aquele golpe de terror, de desconforto, de puro pânico que sempre acompanhava qualquer dica de interesse sexual masculino em sua direção. Mas este nunca veio. Ele a beijou com toda a confiança despreocupada que fazia de Luca quem ele era. Tomou a boca de Kathryn repetidamente, ainda segurando seu braço atrás de suas costas e deslizando a mão livre pelo rosto dela, a fim de guiá-la para onde ele a queria. Ardente. Delicioso. Selvagem. E incrivelmente másculo. Ele a beijou como se eles já tivessem feito aquilo mil vezes. Como se os últimos dois anos os tivessem conduzido a aquele momento. A aquele lugar quente que Kathryn não reconhecia. Não havia nada a fazer, senão render-se. Ao fogo que a derretia. Ao peso em seus seios pressionados contra o peito dele. E àquela sensação impaciente e irascível que pulsava calor em seu baixo-ventre. Desejo. Insistente.


E Kathryn esqueceu. Esqueceu quem ele era. Que tinha sido sua madrasta por dois anos, embora ele fosse oito anos mais velho que ela. Esqueceu que, além de ser seu mais severo crítico e seu inimigo amargo, sem que ela não tivesse culpa alguma, ele agora seria seu chefe. Kathryn se esqueceu de tudo, exceto do gosto dele. Da doce magia que ele realizava, do modo como a comandava e a conduzia, como se soubesse do que seu corpo precisava e do que era capaz, quando ela mesma não tinha ideia. Quando ela estava simplesmente perdida... à deriva no meio do fogo. As chamas vorazes que a atingiam profundamente e faziam com que correspondesse a cada investida da língua erótica e seu sabor glorioso... Ele a afastou. Como se aquilo doesse. – Droga – murmurou Luca. Seguido de algo que pareceu bem mais cruel em italiano. Mas ele pareceu demorar um bom tempo para soltá-la. Kathryn não conseguia falar. Não entendia a tempestade dentro de si fazendo seu sangue ferver nas veias e sua pele parecer esticada e apertada demais para conter todas as sensações que não conseguia nomear. Eles se entreolharam no espaço mínimo que havia entre os dois. O rosto de Luca estava inflexível e severo, entretanto, isso não diminuía a pura beleza masculina. – Você me beijou – disse Kathryn, arrependendo-se em seguida. Mas seus lábios estavam inchados, o gosto dele na sua boca, e ela não sabia como processar aquele sentimento caloroso que a invadia e se concentrava entre suas pernas.


Como se fosse possível, o olhar dele tornou-se ainda mais obscuro. Como se ele fosse uma tempestade. – Não ouse tentar esse jogo inocente comigo – ralhou ele. – Não sei o que isso significa. – Significa que eu sei a diferença entre uma virgem e uma vadia – respondeu Luca, a fúria como uma marca pressionada contra ela, queimando sua carne, e Kathryn não entendia como a sensação podia ser a mesma daquele beijo desesperado. – Certamente, conheço o gosto de cada uma. Ela percebeu que não tinha ideia de como responder. – Luca – murmurou ela tão cuidadosamente quanto conseguiu, quando todo seu corpo estava perdido no tumulto daquele beijo interminável. Quando não tinha ideia de como seria capaz de falar. – Acho que devemos considerar isso como nada mais que uma reação emocional a este dia muito difícil e... – Eu não serei seu próximo alvo, Kathryn – disse Luca com algum tipo de indignação fria na voz. – Preste atenção. Não vai acontecer. – Não tenho alvos. – Ela piscou, a sala inteira parecia brilhar, exceto onde ele estava, como se ele fosse um buraco negro. – Eu não sou uma arma. Que tipo de vida você leva para pensar estas coisas? Ele a pegou pelo braço e a puxou para perto novamente. De maneira feroz e selvagem. Quase a derrubando. – Eu não quero você no meu escritório – reclamou ele. – Não a quero poluindo o nome Castelli mais do que já poluiu. Não a quero perto de nada que seja importante para mim. Kathryn bateu os dentes, apesar de não estar com frio.


– Esta provavelmente seria uma ameaça mais aterrorizante se você não estivesse me tocando. – Ela conseguiu comentar, embora sua voz não estivesse tão calma quanto gostaria. – De novo. Luca riu, apesar de o som não lembrar em nada aquela risada livre que o ajudou a ser tão amado no mundo todo, e soltou-a. Se ela não o conhecesse, se ele tivesse as fraquezas normais de qualquer ser humano, em vez de uma pedra no lugar do coração, ela pensaria que ele não teve a intenção de segurá-la, para começar. – Eu nunca me rebaixarei aos restos de meu pai – disse ele horrivelmente com o olhar endurecido e fixo, no caso de ela querer fingir que não tivesse escutado. – Também não a deixarei corromper o pessoal em meu escritório com seus esquemas repulsivos. Seu jogo não funcionará comigo. – Certo – disse ela, talvez porque aquilo já estivesse tão fora de controle. Talvez por isso, parecia não conseguir mais se conter perto dele. Para quê? Tentou ser superior por dois anos, e ali estavam eles, do mesmo jeito. – Imagino que por isso você tenha me beijado. Para demonstrar sua imunidade. Luca ficou imóvel. Tão imóvel que Kathryn parou de respirar, como se o menor som pudesse irritá-lo. Os olhos escuros estavam fixos nos seus, como se ela fosse o alvo que ele mencionara. E ela jamais havia se sentido tão alvo quanto agora. Entre eles, aquela corrente elétrica e perigosa parecia cada vez mais forte. Tão forte que pulsava dentro de Kathryn, insistente e cruel. Tão letal que ela jurava conseguir ver a eletricidade estampada em cada músculo rígido da forma esculpida de Luca.


A chuva batia nas janelas atrás dela, e, em algum lugar da enorme casa, o pequeno Renzo soltou um de seus gritos ensurdecedores, que podia tanto ser de alegria quanto de perigo. Luca balançou a cabeça, como se tivesse sido libertado de um feitiço. Deu um passo atrás, sua expressão mudando de rígida e cruel para algo mais próximo a desgosto. – Você vai se arrepender – prometeu ele. Ela engoliu em seco. – Você terá de ser mais específico. – Eu me certificarei disso – disse Luca como se ela nem tivesse falado. – Nem que seja a última coisa que eu faça. O tom de voz conclusivo tocou o interior de Kathryn como um gongo. Ela permaneceu lá, abalada, a boca ainda dolorida pelo beijo e o corpo perdido numa luta estranha, e observou enquanto ele simplesmente se virava e se afastava. Ela queria apenas esquecer-se de tudo aquilo. Pegar o dinheiro que Rafael ofereceu e desaparecer. Poderia ter a vida que quisesse. Poderia ser quem ela quisesse ser, longe da enorme sombra dos Castelli, onde viveu por tanto tempo. Mas isso significaria que os últimos dois anos de sua vida teriam sido em vão. Que ela simplesmente os jogaria fora por dinheiro. Significaria que ela era exatamente a mulher que Luca achava que ela era... e que todos os sacrifícios de sua mãe tivessem sido em vão, afinal de contas. Que não havia nada na sua vida, além de culpa e sentimento de inferioridade. E Kathryn podia suportar muitas coisas. Não teve escolha, considerando o fracasso que se tornou diante dos olhos da mãe. Mas não estava nela ser derrotada. Uma parte sua estava convencida, depois de todos aqueles anos, que se ela se


esforçasse com afinco, conseguiria fazer com que sua mãe a amasse. Se pudesse fazer a coisa certa, ao menos uma vez. – Estou feliz que tenhamos tido esta conversa – murmurou ela, direcionando o tom nada doce ao centro das costas largas de Luca. Ele queria brincar de alvo? Ela podia fazer isso. – Vai melhorar a segunda-feira de todos. Ele não se virou, mas diminuiu o ritmo dos passos. – Segunda-feira? Se ela fosse a pessoa boa que sempre acreditou ser, pensou Kathryn, certamente não sentiria tanto prazer naquele breve momento, naquela vitória quase sem sentido. – Oh, sim – replicou ela com uma calma proposital e aquele triunfo na voz. – É quando eu começo. ELE JAMAIS deveria tê-la tocado. Certamente, não deveria ter provado o gosto de Kathryn. Mas sempre foi tolo no que dizia respeito àquela mulher, e no caso de ficar tentado a duvidar disso, ela o assombrou durante o caminho de volta à Roma. Luca dirigiu para a cidade, arriscando a morte num elegante carro esportivo, transformando o famoso trânsito caótico de Roma num jogo de manobras, em velocidade ousada e deliciosa. E não se arrependeu ao chegar à propriedade renascentista que abrigava sua casa e seu escritório, porque brincar com a própria vida em alta velocidade pelas ruas da cidade antiga que amava era preferível, e bem menos perigoso, do que se permitir pensar em Kathryn. Embora achasse que ambos ocupavam o mesmo lugar obscuro em seu interior, como se, no fundo, ele fosse tão


complicado quanto todos os outros Castelli, debaixo de todo controle que passara a vida priorizando para evitar justamente aquilo. Atirou as chaves para o manobrista de sua garagem e entrou no prédio com a cabeça repleta daqueles malditos olhos que tinham adquirido um tom verde dos sonhos depois que ele havia beijado aquela boca suculenta... Luca murmurou uma dúzia de palavrões. Passou as mãos pelo cabelo e dirigiu-se para os escritórios que ocupavam os primeiros dois andares daquele prédio adoravelmente conservado, no bairro Tridente de Roma, a poucos metros das escadarias da Piazza di Spagna e da Piazza del Popolo. Seu escritório. Seu único verdadeiro amor. A única coisa que já amara de fato. A única coisa que chegara perto de retribuir seu amor, com um sucesso atrás do outro. Ele morava na cobertura que ocupava os dois últimos andares, e era para lá que se dirigia, pegando seu elevador particular para entrar nos cômodos que havia decorado com aço e cromo, espaços abertos e arte minimalista, mostrando a história em cada pedaço de pedra e artesanato nas paredes, nos afrescos do teto alto e na vista da bela e frenética Roma. Livrou-se das roupas em seu quarto de vidro e aço e foi até a piscina no terraço, que circundava a cobertura e fornecia uma vista de 360 graus da Cidade Eterna. Se Roma existia há mais de 2.500 anos, certamente Luca poderia sobreviver ao ataque de Kathryn. Ela não tinha ideia no que estava se metendo. Luca era um chefe severo, exigente e feroz, e era isso que os funcionários leais escolhidos a dedo diziam sobre ele na sua frente. O que uma antiga esposa troféu


poderia saber sobre o mundo coorporativo? Ela podia ter uma fantasia de ser uma mulher de negócios, mas era improvável que durasse mais de uma semana. Claro que ela não aguentaria, pensou ele, sentindo algo bem parecido com alívio... como não havia percebido isso antes? Ele foi intimado a satisfazer um capricho de Kathryn, não mudar toda sua existência controlada. Quanto antes ela entendesse como era inadequada para uma vida que envolvia mais trabalho do que brincadeira, mais cedo decidiria encontrar novos interesses. O problema se resolveria sozinho. Luca ainda se sentia irritado e confuso, apesar do frio da noite de inverno e do golpe do vento. Sem controle. Agitado e horrorizado consigo mesmo. Tentou convencer-se de que deveria ser o sentimento de luto, apesar de não ter sido próximo de seu pai. Podia até ter desejado, em alguns momentos sentimentais muitos raros, que tivesse um entendimento com o homem cuja sombra caía sobre ele todos aqueles anos... mas nunca teve. Talvez, o funeral o tivesse atingido com mais força do que ele percebeu. Porque não conseguia entender por que havia beijado Kathryn. Qual era o problema com ele? Como ele, um homem que se orgulhava de sempre manter sua vida bem organizada e livre de qualquer problema que lembrasse uma confusão sentimental, poderia não saber? Ele mergulhou na piscina aquecida e começou a nadar. Perdeu-se no ritmo de suas braçadas, no peso da água contra si e no calor que crescia em seu corpo enquanto nadava. Chegada após chegada.


Luca nadou e nadou, esforçou-se até o limite, e não adiantou. Ela ainda estava bem ali, povoando sua mente, lembrando-o de como o resto dele era tão vazio. Grandes olhos acinzentados. Todo aquele cabelo negro e aquela franja que a faziam parecer ainda mais misteriosa. Tudo de Kathryn estava cravado em Luca como uma lança serrilhada que ele não conseguia remover, que parecia incapaz de fazer qualquer coisa além de enterrá-la ainda mais dentro de si. Continuava pensando em Kathryn e não tinha mais ideia de quem era quando estava perto dela. O que devia fazer. Luca parou de nadar e bateu com a mão na superfície, espirrando água para todos os lados. Ele jamais brincava com sua empresa. Era esperto demais para jogar granadas como aquela no meio de sua vida. Não mexia com seus empregados e certamente não se dispunha a tirar proveito das sobras de seu pai. Havia sido uma criança nervosa e bagunceira, frequentemente abandonada pelo pai por meses naquela velha casa, por causa dos problemas que causava. Já havia superado aquele tipo de comportamento quando ainda era criança. Passara toda sua vida adulta justamente evitando aquele tipo de confusão. Aquilo não era um problema. Luca saiu da piscina, enrolou-se numa toalha e voltou para dentro, mal notando a maneira como o sol tornava a velha cidade alaranjada e cor-de-rosa, enquanto descia no horizonte. Nem quando parou diante das janelas com vista para as ruas que levavam à Piazza di Spagna e às famosas escadarias, onde parecia que a metade de Roma se reunia algumas noites.


Não enxergava nada além de Kathryn, vestida em suas roupas de funeral, como uma viúva etérea de contos de fadas, e aquilo precisava parar. Ela já tinha duas marcas negras. O casamento com seu pai e o fato intragável de sua presença nos tabloides, a eterna canonização da Santa Kate, desgostosamente descrita como a inglesa corajosa que enfrentara os muitos dragões da deturpada e antiga família italiana. Ele sentia repulsa. E disse a si mesmo que ela também sentia. O beijo de hoje era a terceira marca negra. Ele não podia fingir que não havia começado. Atraindo-a com o tipo de paixão descuidada que estava tão certo de ter eliminado de sua vida. Quantas vezes assistiu a um desejo desse tipo derrubar seu pai? Quantas vezes revirou os olhos diante da angústia do seu irmão por Lily? Quantas vezes suas próprias emoções sem sentido não tinham se voltado contra ele quando criança? Luca prometeu a si mesmo, há muito tempo, que ficaria longe dessas confusões, e a verdade é que nunca foi difícil. Até Kathryn. E a verdade permanecia: tinha sido ele quem a beijou. Aceitava aquele fracasso, mesmo não conseguindo entender. O problema era como ela correspondeu ao beijo. O modo como se derreteu contra ele. Como abriu a boca e o encontrou. Como se derramou nele até que Luca quase esquecesse quem eram e onde estavam. Que ela era sua madrasta, a viúva de seu pai, e que eles estavam muito perto do mausoléu onde o velho acabara de ser sepultado. Luca estava doente, não havia dúvidas... e o fato de ainda enrijecer diante da simples lembrança provava a teoria. Mas, qual era o jogo de Kathryn?


Ela era boa, ele admitia. Tinha gosto de inocência. Ele ainda podia sentir o sabor em sua boca. O que era, de longe, o aspecto mais exasperador. E Luca jurou, quando o sol de inverno se pôs no horizonte de Roma, que ele não só tornaria esta aventura corporativa da jovem esposa de seu pai o mais desagradável possível... mas também faria bem pior. Ele destruiria a auréola da Santa Kate. E a destruiria. De maneira irremediável. QUANDO KATHRYN chegou aos belos escritórios da Castelli Wine em uma das vizinhanças mais charmosas de Roma, naquela segunda-feira, pontualmente às 9h, estava preparada. Aquela era uma guerra. Ela podia ter perdido uma batalha na biblioteca, ao Norte nas montanhas nebulosas, mas isso não significava nada no esquema das coisas. Havia sido uma batalha pequena. Um beijo, só isso. A guerra era o que interessava. A recepcionista cumprimentou-a num italiano frio e fingiu não entender a tentativa de Kathryn de se expressar no idioma... Então pegou o telefone e falou em inglês perfeito, enquanto fitava Kathryn. Tinha a expressão impassível quando desligou, mas Kathryn teve certeza de ver triunfo nas profundezas do olhar da outra mulher. Ela ordenou a si mesma para não reagir. – Que ótimo – disse Kathryn friamente. – Você fala inglês, afinal. Por favor, diga a Luca que estou aqui. Ela não esperou resposta. Acomodou-se numa cadeira na sala de espera, fingindo estar perfeitamente confortável e aguardou.


E aguardou. E aguardou. Mas isso era uma guerra, lembrou-se. E ocorreu a ela, em algum momento do fim de semana, que, no meio de toda sua ameaça, Luca não tinha ideia de quem ela era ou com quem estava lidando. Via apenas a imagem dela que havia criado, de uma interesseira que fisgara seu pai. Kathryn entendeu que aquilo significava que ela possuía uma vantagem. Portanto, se ele queria deixá-la no purgatório a manhã inteira, como um gesto infantil de raiva, que deixasse. Ela não daria, a ele ou à recepcionista, a satisfação de parecer impaciente. Manteve a atenção em seu celular, a expressão tranquila enquanto enviava um e-mail a sua mãe para contar que havia começado a trabalhar na Castelli Wine, como planejado, e olhava as notícias. Por uma hora. Quando Luca finalmente apareceu, ela o sentiu antes de avistá-lo. Aquela eletricidade obscura que fazia os pelos de seu corpo se eriçarem preencheu a sala de espera, que, até aquele momento, estava iluminada pela manhã romana. Deliberadamente, ela demorou antes de encará-lo. E lá estava ele. Ainda mais devastadoramente lindo, num terno mais casual, o colarinho branco aberto oferecendo um vislumbre tentador da expansão da pele cor de oliva e do peito perfeito que ela sabia... das páginas dos tabloides dedicadas a ele e àquele passeio da família Castelli em Positano, envolvendo um barco e Luca sem camisa... que tinha uma penugem escura e aqueles músculos esculpidos no abdômen. – Você está atrasada – acusou ele.


Aquilo foi, no mínimo, absurdamente injusto, mas Kathryn nem precisou olhar para a complacente recepcionista para entender que não adiantava argumentar. Além disso, Luca a alertou para não reclamar. Kathryn não reclamaria. Levantou-se, alisando a saia. – Peço desculpas. Não acontecerá novamente. – De algum modo – respondeu Luca, parecendo quase feliz... o que era alarmante –, eu duvido disso. Kathryn não se incomodou em responder. Andou na direção dele, dizendo a si mesma que não lembrava nada da semana anterior, naquela biblioteca ao Norte. Nem do gosto de Luca. Nem da maneira imperiosa e excitante como ele havia tomado sua boca. Nem do calor impossível da mão grande em sua face e da profunda investida da língua... Ela não havia sonhado com aquelas imagens. Elas não a mantiveram acordada e ofegando para o teto, incerta de como lidar com a confusão que as imagens fervorosas e lembranças causavam em seu interior. A expressão de Luca estava indecifrável, enquanto ela se aproximava, e Kathryn detestou não ter ideia do que acontecia por trás dos brilhantes olhos escuros que a conduziam ao coração dos escritórios da Castelli Wine. Ela pensou tê-lo visto observar suas roupas, uma saia reta e uma blusa de seda conservadora que não ofendia ninguém, mas quando espiou, a atenção dele estava concentrada à frente. Ele parou diante da porta de uma enorme sala de conferências envidraçada e acenou para o grupo sentado à mesa. Meus colegas, pensou Kathryn... com o que percebeu ser uma onda de prazer


ingênua, quando notou que nenhum deles lhe dirigiu nada parecido com um sorriso. Ela congelou ao lado de Luca. – O que você disse a eles? – perguntou ela. – Para meu pessoal? – Ele pareceu triunfante, misturado com a usual despreocupação que ela começava a desconfiar que era somente aparência. – A verdade, é claro. – E que verdade é esta? – Há apenas uma – replicou Luca. Alegremente, ela percebeu. De novo. – A petulante esposa troféu de meu pai insistiu em ter um emprego que ela não merece. Não temos empregos disponíveis para quem quiser se candidatar, então precisamos nos reformular. – Presumo que você me designará às tarefas da portaria ou algo assim. – Ela ergueu uma sobrancelha. – A ideia não é tornar tudo o mais desagradável possível para mim? – Você será minha assistente executiva – respondeu Luca calmamente, com os olhos brilhando. – É o cargo mais cobiçado nesta parte da empresa. – Ela percebeu que ele havia relaxado. Porque obviamente estava se divertindo. Aquilo enviou um tremor gelado à coluna de Kathryn. Assim como o sorriso que, ela percebeu, não alcançava os olhos dele. – É o segundo cargo mais importante abaixo do meu. É bastante poder. Ela franziu o cenho. – Por que você faria isso? Por que não me obriga a arquivar papéis em algum porão? – Porque, madrasta – falou Luca daquela maneira cruel que não deveria ter se emaranhado com as lembranças daquele beijo, não quando era para ser uma ofensa –, você iria apenas atrasar o


inevitável. Tenho quase certeza que você não vai durar os três anos. Mas, se sair depois de três dias ou três semanas, tanto melhor. Ela enrijeceu. – Eu não vou sair. Ele gesticulou a cabeça em direção ao grupo de pessoas que a olhavam com uma hostilidade maldisfarçada. – Cada pessoa nesta sala foi escolhida por mim. Elas mereceram suas posições. Funcionam bem juntas, como um time coeso. Mas informei a todas que isso é parte do passado, já que você precisa ser encaixada, quer gostemos ou não. Como pode ver, elas estão animadas. O estômago de Kathryn se revirou, porque ela entendeu o que ele havia feito. Suas fantasias patéticas de se destacar através do trabalho árduo em algum canto esquecido do escritório, onde poderia brilhar em silêncio, se despedaçaram. Sua mãe ficaria furiosa. Diria que era exatamente o que acontecia quando Kathryn tentava desafiá-la, agindo sozinha. Kathryn sentiu uma onda de tristeza, como se, talvez, Rose estivesse certa. E talvez fosse desleal, talvez isso fizesse dela uma pessoa horrível e uma filha ingrata, mas Kathryn não queria, de jeito nenhum, que aquilo fosse verdade. – Você pintou um alvo em minhas costas de propósito. Desta vez, o sorriso atingiu os olhos de Luca, mas não foi nada caloroso. – Exatamente. Então ele abriu a porta da sala de conferências e a atirou diretamente aos lobos.


CAPÍTULO 4

TRÊS DIFÍCEIS semanas e dois dias depois, Kathryn embarcou no avião particular da família Castelli, desta vez no cargo de funcionária mais odiada do escritório de Luca. Subiu a escada com as costas eretas e a cabeça erguida... porque aquele título, é claro, era melhor que seu antigo papel da mais odiada madrasta na história da família Castelli. Ela achava que tinha este carma de ser odiada sob controle. Tudo se resumia no sorriso. Kathryn sorria sempre que a conversa era interrompida, quando ela entrava num cômodo. Sorria quando seus colegas fingiam não compreendê-la e a faziam repetir a pergunta para que ela se sentisse tola, enquanto as palavras pairavam no ar. Sorria quando era ignorada nas reuniões. Sorria quando era chamada para responder perguntas sobre projetos antigos que não tinha como responder. Sorria quando Luca a repreendia por permitir acesso irrestrito a ele, e sorria ainda mais quando ele próprio deixava as pessoas entrarem e saírem de seu escritório só para chamar a atenção dela novamente.


A vantagem de ter aparecido em centenas de tabloides e ser considerada tão boa e ter se sacrificado tanto é que ela percebeu que poderia usar a Santa Kate como uma diretriz através de cada fria interação no escritório. Especialmente porque sabia que quanto menos reagia, mas irritava os colegas. Luca, é claro, era um assunto completamente diferente. Ela entrou no avião e foi até a área de estar, sorrindo serenamente quando se sentou no sofá de couro. Luca já estava acomodado a uma das mesas laterais que acomodava três pessoas em luxuosas poltronas de couro, uma das mãos no cabelo e a outra segurando o telefone ao ouvido. Ele a fitou enquanto terminava a conversa em italiano. – Você ainda está aqui – disse ele. Ela sorriu mais abertamente. – É claro. Eu disse que não sairia. – Não é possível que você tenha apreciado estas últimas semanas, Kathryn. – Você certamente se esforçou para se certificar disso – concordou ela. E sorriu. – Muito obrigada. Ele franziu o cenho, e ela sorriu durante tanto tempo que ficou tentada a se virar para a enorme tela de televisão e ignorálo. Mas era assim que um empregado se comportaria, imaginou. – Você estava no escritório quando eu cheguei esta manhã – disse ele secamente. – Todas as manhãs. – Perdão? – Estou no escritório quando você chega todas as manhãs. Sua assistente não pode se atrasar como me atrasei no primeiro dia, não é?


Ela não esperava que Luca admitisse que a tivesse feito esperar de propósito naquele dia, só para poder puni-la pelo atraso. Ele não a decepcionou, embora houvesse um brilho incompreensível nos olhos escuros que a fitavam. – Certamente, você tem outras coisas para fazer com seu tempo. – Ele acenou, como se ela estivesse vestindo um biquíni, em vez de outro conjunto irrepreensível de saia e blusa, escolhido especificamente para se misturar com os outros sem levantar comentários. – Viagens a lugares frequentados por homens ricos, por exemplo. Para identificar sua próxima vítima. – Eu planejei tudo isso para esta semana, é claro – disse Kathryn em seu tom profissional mais doce. – Mas você marcou esta viagem para a Califórnia. Acho que a caça ao tesouro terá de esperar. Ele não voltou a falar com ela até que o avião alcançasse altitude e o comissário colocasse as bandejas com os jantares na mesa posicionada no centro da confortável sala de estar. O estômago de Kathryn roncou, lembrando-a de que havia trabalhado na hora do almoço. E do café da manhã também, não que sua dedicação parecesse fazer diferença na rampa escorregadia que era o escritório de Luca, onde ela literalmente não fazia nada certo. Você está acostumada com isso, não está?, perguntou uma voz interior, mas Kathryn reprimiu-a. A decepção de sua mãe em relação a ela magoava, é claro, mas possuía seu valor. Kathryn tinha plena consciência de seus defeitos, e não apenas porque estes eram frequentemente apontados. Se ela não fosse tão deficiente, pensou, não teria achado o casamento com Gianni uma opção tão perfeita. Teria


encontrado sucesso com seu diploma em Administração de Empresas. – Conte-me a história – disse Luca, depois que eles estavam comendo em silêncio por algum tempo, surpreendendo-a. Ele beliscava de seu prato, confortavelmente acomodado em sua poltrona, mas a aparente indiferença não fez o coração de Kathryn bater mais devagar. Nem ajudava o fato de estarem presos num avião, e Kathryn não parecer conseguir pensar em outra coisa. Nem toda a decoração e ambientação não comercial do mundo poderia mudar o fato de que ela e Luca estavam suspensos acima do Oceano Atlântico, sem nada entre eles. Sozinhos. Aquilo a atingiu como um soco, a sensação descendo para sua barriga e pulsando ali, preocupante e sensual. Ela nunca havia ficado verdadeiramente sozinha com Luca. Sempre houve alguém por perto. Gianni. Algum outro membro da família. Empregados. Todas as pessoas do escritório, especialmente porque todos viviam para pegar algum deslize seu, enquanto ela encontrava seu caminho confuso durante as primeiras semanas no emprego. Rafael e a família dele, na semana do funeral, sempre por perto, podendo aparecer a qualquer momento. Esta era a primeira vez, em mais de dois anos, que eles estavam completamente a sós. Há o piloto, disse a si mesma enquanto seu pulso desacelerava e voltava a acelerar. Vocês não estão verdadeiramente sozinhos. Mas ela sabia que isso não significava nada. Nem o piloto nem o comissário incomodariam Luca, a menos que ele os convocasse.


Esta, refletiu ela com a cabeça repentinamente cheia de imagens de um Luca seminu, brilhando debaixo de algum paraíso tropical distante, não é uma linha de pensamento muito útil. E havia um certo voracidade naquele olhar que a fazia pensar que ele estivesse imaginando as mesmas coisas. – Que história? – perguntou ela, detestando como sua voz soou fraca. – O emocionante conto de fadas onde uma jovem obviamente virtuosa como você apaixonou-se por um homem que poderia facilmente ser seu avô, é claro. O que mais poderia ser? Ele falou para insultá-la, Kathryn sabia. Mas Luca nunca havia feito aquela pergunta antes. Ninguém fizera. O mundo inteiro pensava que sabia exatamente como uma jovem se casava com um velho... e não era uma completa inverdade, é claro. Havia razões, e algumas delas eram financeiras. Mas não significava que havia sido tão fria e calculista quanto Luca estava determinado a acreditar. – Não foi um conto de fadas – respondeu ela, alisando a saia para cobrir os joelhos. – Foi apenas... agradável. Eu o conheci por acaso, numa instituição que cuida de idosos e pessoas com deficiências degenerativas. Ele bufou levemente. – Que tocante. – Certamente, você sabe que seu pai não estava bem. – Ela deu de ombros. – Ele estava consultando um especialista. Eu estava na sala de espera e começamos a conversar. – Você estava ali, posso assumir, para polir um pouco mais sua auréola e se gabar disso nos tabloides.


Kathryn pensou em sua mãe e em como seu corpo a traiu, envelhecendo antes do tempo. Pensou nas mãos deformadas que haviam esfregado pisos para dar a Kathryn todas as chances possíveis... Eu tinha planos para minha vida, Kathryn. Rose sempre dizia em sua maneira aguda. Mas coloquei-os de lado por você. Como poderia Kathryn fazer qualquer coisa, exceto se esforçar ao máximo para retribuir? – Algo assim – replicou ela a aquele homem que não merecia saber nada sobre sua mãe e suas lutas, ou as escolhas que Kathryn tinha feito para honrar os sacrifícios que foram feitos por ela. – Realmente prefiro minha auréola brilhando, sabe. Luca riu... e foi aquela risada. Aquele famoso jorro de luz, vida e perfeição iluminando seu rosto e fazendo com que o ar entre eles dançasse e estremecesse por um longo momento, até que ele parou de rir, como se não tivesse percebido o que estava acontecendo. Mas Kathryn pensou que podia guardar aquele momento. Podia se apegar a ele. Um presente inesperado ao qual poderia recorrer para se aquecer durante suas noites insones... e não era o momento certo para se perguntar por que achava que tudo que aquele homem fazia era um presente. Não quando sabia que ele a odiaria ainda mais por pensar assim. – E uma paixão avassaladora por um septuagenário tomou conta de você na sala de espera? – ironizou ele com a voz ainda mais sombria e o olhar bastante sagaz. – Ouvi dizer que isso acontece. Embora nem sempre com mulheres de 20 anos, a menos, é claro, que estivessem conversando sobre o patrimônio líquido dele.


– Eu gostei dele – disse Kathryn, e era a verdade, independentemente das circunstâncias extenuantes. Ela deu de ombros. – Ele me fazia rir e eu o fazia rir também. Não foi tudo por interesse, Luca, não importa o quanto você queira que fosse. Ele era um bom amigo. Melhor que a maioria, se ela fosse honesta. – Um bom amigo. – Sim. – Meu pai. Gianni Castelli. Um bom amigo. Kathryn suspirou e afastou o prato. Perdeu o apetite. – Suponho que você decidiu, em sua infinita sabedoria, que isso, também, deve ser impossível. O riso de Luca, desta vez, não foi nenhum presente. – Meu pai nasceu na riqueza, e seu único objetivo era expandi-la – declarou ele, com o sotaque italiano mais forte que nunca. – Expandir riquezas era a arte e o dom de meu pai, e ele se dedicou a isso com um único propósito, desde o momento em que aprendeu a andar. Seu passatempo preferido era o casamento... quanto mais inapropriado, melhor. Não se castigue. A maioria de suas esposas interpretou mal a afeição e a atenção dele. – Acho que você não conhecia seu pai muito bem – sugeriu Kathryn. Ela levantou as mãos quando viu a chama no olhar dele. – Não do modo como eu conhecia. É o que quero dizer. – Está falando de dois anos de convivência em oposição a minha vida inteira? – Um filho não tem possibilidade de conhecer o homem que seu pai foi. – Kathryn deu de ombros. – Pode apenas saber que tipo de pai ele foi ou deixou de ser, e reunir as peças que


conseguir a respeito do homem, a partir disso. Não é assim a história do mundo? Ninguém conhece seus pais. Não de verdade. Ela certamente não conhecia os seus. Seu pai foi embora antes de ela nascer, e sua mãe desistiu de tudo que importava para ela, de modo que a filha não tivesse que suportar o peso daquilo. Kathryn conheceu o sacrifício. Sua mãe a lembrava do que havia deixado para trás pelo bem da filha, em todas as oportunidades. Mas ainda não podia dizer que entendia a mulher... muito menos a maneira com que ela a havia tratado durante toda sua vida. Um músculo saltou no rosto de Luca. – Eu conhecia meu pai bem mais do que você – ralhou ele depois de um momento. – Ele não tinha amigos, Kathryn. Tinha sócios e uma coleção de esposas. Cada pessoa em sua vida tinha um papel que ele esperava que cumprissem, e pobre do tolo que não atendesse suas expectativas. – É isso que vem acontecendo todo esse tempo? Todo o ódio e maldade, as ameaças e tudo mais? – perguntou ela. Então, inclinou a cabeça para o lado e disse o que não deveria dizer. Mas não pareceu conseguir evitar. – Você... tem questões paternais não resolvidas? A ruptura no humor de Luca foi quase audível. Se o avião tivesse mudado de curso, iniciando um mergulho espiralado em direção ao oceano, ela não teria ficado surpresa... e Kathryn levou um longo momento para entender que o avião estava bem. Continuava nivelado diante da pequena explosão que aconteceu na cabine... e dos abalos secundários que ainda a atingiam.


A única queda livre terrível acontecia em seu estômago, que mergulhava em direção a seus pés. Luca não havia se movido. Ela observou, tão fascinada quanto alarmada, enquanto ele impedia a forte corrente de fúria. Ainda imóvel, voltou a fitá-la como se a quisesse estrangular. Uma das mãos torcida, como se considerasse mesmo aquilo. O que sugeria que ela fora era um alvo perfeito, mais do que podia suspeitar. Mas então ele piscou e a crise passou. Apenas a força usual do desgosto dele continuava encarando-a. Somada à adrenalina que ainda pulsava nas veias de Kathryn. – Por que eu? – perguntou ele com aquela voz sombria. – Não escondi minha opinião sobre você. Que tipo de masoquismo a levou a se atirar em meu caminho, quando deve saber que teria sido muito mais feliz em qualquer outra filial da empresa? – Esta é sua maneira velada de perguntar se estou perseguindo você pelos meus propósitos interesseiros usuais? – devolveu ela, incapaz de desviar o olhar e sem ter nenhuma ideia do motivo. Por que ele a invadia deste modo? Por que Kathryn tinha a sensação que ele possuía mais controle sobre ela do que ela própria? – Foi assim tão velada? – questionou ele, brandamente. – Eu devo estar fazendo isso errado. O sorriso de Kathryn pareceu forçado, mas ela não o deixou esmorecer. De repente, percebeu que aquilo era tudo que tinha. – Eu considerei trabalhar com seu irmão, é claro – disse ela. – Duvido que ele particularmente gesticulou uma mão entre eles, indicando a eletricidade tensa que carregava o ambiente. – Teria sido mais fácil, sem dúvida.


– Então, por quê? – A boca de Luca se torceu em algo bem mais sombrio do que um sorriso, e o eco do gesto pulsou dentro de Kathryn. – Para nos punir? – O fato é que seu irmão mantém os negócios e é muito bom nisso – replicou Kathryn. – Ele se certificará que o nome Castelli perdure, que nenhum terreno seja perdido durante sua gestão. Ele mantém as rédeas firmes nos negócios. – E o que eu sou? – Luca não sorriu. – O motorista bêbado da história? – Você é o inovador – disse ela. Pareceu... perigoso elogiá-lo. Tinha de fazer qualquer coisa, exceto sofrer com a atitude dele. – É a força criativa da companhia. Nunca está satisfeito. Sempre forçando uma nova barreira. – Ela deu de ombros, mais desconfortável do que já se lembrava de se sentir perto dele, e aquilo possuía algum significado. – Deixando de lado meus sentimentos pessoais em relação a você, não há nenhum lugar mais excitante para trabalhar. Deve saber disso. Suponho que é por isso que todos os seus funcionários são tão... – Kathryn sorriu com mais brilho, e aquilo também foi mais difícil do que deveria ser. – ...ferozmente protetores. Luca pareceu abalado, o que ela podia ter considerado uma vitória em qualquer outro momento... mas havia algo na maneira como ele a olhava agora. Parecia penetrá-la, envolvendo-a e apertando-a. – Você pode fazer isso? – perguntou ele com a voz suave, mas que tinha algo escondido. – Colocar seus sentimentos de lado? Ela o encarou e não recuou. – Eu preciso, se quiser que este emprego signifique algo – disse Kathryn, ciente de que aquela devia ser a ocasião em que


era mais honesta com ele. Como se não tivesse nada a perder, quando não estava tão longe da verdade. Era sua única chance de provar que podia fazer algo de si mesma, sem as ordens de sua mãe. Era sua única chance de honrar os sacrifícios da mãe... e também de se libertar. – E consigo. Diferentemente de você, não tenho escolha. O CHÂTEAU Castelli, o centro das operações americanas da Castelli Wine, empoleirava-se como uma grande dama no alto de Sonoma Valley, ao Norte da Califórnia. Os vinhedos estendiam-se como saias volumosas, desenrolando-se pelas colinas em todas as direções, parecendo dominar aquela parte do vale até o horizonte. Na noite fria, a vinícola brilhava lindamente, luzes em todas as janelas e uma fila de carros serpenteando pelas fileiras de ciprestes. Luca amava aquele espetáculo indesculpável... O grande drama italiano em cada detalhe, da épica extensão das casas ao solo mantido em condições de rivalizar com os Boboli Gardens em Florença, encantando os turistas em suas viagens para degustar vinhos. Naquela noite, aconteceria o Baile Anual de Inverno da Castelli Wine. Por isso, Luca havia voado desde o outro lado do mundo, chegando apenas uma hora antes do evento. Ele e Rafael precisavam deixar claro a todos que nada havia mudado com a morte de Gianni. E, como quase tudo na vida, quanto mais elegante, relaxado e atraente algo parecesse, mais probabilidade de as pessoas acreditarem.


Kathryn, pensou Luca com rancor, certamente aprovava aquela regra. E ele também. Apoiava-se nisso, na verdade. Ele consultou o relógio pela quinta vez em poucos segundos, irracionalmente irritado que ela já não o estivesse esperando quando ele saiu de sua suíte, banhado, vestido e tão recuperado do voo quanto era possível. Já podia ouvir a banda tocando no salão de bailes e o som do grande divertimento, do tinir dos copos e das risadas graciosas adentrando a longínqua ala da família pelo longo corredor até aquele remoto conjunto de suítes separadas do resto. Luca olhou para a porta de Kathryn como se pudesse fazê-la aparecer. E quando a porta realmente começou a se abrir, ele adotou uma carranca ainda mais severa. Até que ela saiu no corredor, e então, ele teve plena certeza de que todo o sangue de sua cabeça tinha descido com um som audível para seu sexo. – Que... – A voz de Luca soou estrangulada. – ...diabos você está usando? Kathryn o fitou com aquela expressão fria que ele começava a achar que seria sua morte. Fazia com que ele quisesse esquentála para ver o que se escondia por baixo. – Acredito que se chama vestido – disse ela alegremente. – Não. Ela ficou parada por um momento. Piscou. – Não? Tem certeza? Da última vez que olhei no dicionário, a palavra definitivamente era vestido. Ou, talvez, vestido de noite? Pode haver uma peculiaridade para cada um, embora eu ache... – Fique quieta.


Ela fechou a boca e não tinha ideia de quão sortuda era que ele não a tivesse silenciado do modo como preferia. Luca já podia sentir o gosto dela novamente. Apoiou-se na parede, incapaz de se controlar. Incapaz de pensar. Uma bruma vermelha de puro desejo o atingiu, fazendo com que todo o resto desbotasse. Sim, Kathryn usava um vestido. Era de um tom quase branco que deveria tê-la feito parecer um fantasma, com aquela sua compleição inglesa, mas, em vez disso, ela parecia brilhar. Como se tivesse sido iluminada por dentro. Tinha um decote alto delicado, e era sem mangas, com um tipo de cinto largo envolto na cintura, antes que a saia cascateasse até o chão. Nada daquilo era um problema. Aquela poderia ser Grace Kelly, tudo de muito bom gosto e elegante. Os recortes é que faziam seu corpo inteiro doer. Duas enormes aberturas angulares cortando o corpete do vestido, mostrando metros da pele do ponto abaixo dos seios até acima do umbigo, abrindo-se na direção das laterais. Luca queria experimentar cada ponto em que a pele podia ser avistada. Ali mesmo. Agora. Ele não percebeu ter dito aquilo em voz alta até que ela arregalou os fascinantes olhos esverdeados, e então já não importava mais, porque ele havia perdido a cabeça... e, pior, o controle. Ele a pressionou contra a porta do quarto, segurando os lados de sua cabeça. – Você não pode – disse Kathryn. Sussurrou, mais precisamente. Um sussurro fraco que ele sentiu em todas as partes do seu corpo. – Luca. Nós não podemos.


Luca não se perguntou o que estava fazendo. Não se importava. O vestido a envolvia sedutoramente, e ele se perdeu na linha elegante do decote e no cabelo que ela havia prendido em um elegante coque na nuca. – Foi meu pai que lhe deu estes diamantes? – perguntou ele tentando forçar a luxúria para fora de si de qualquer jeito. Mas não adiantou nada, nem mesmo quando levantou o dedo para tracejar as pedras brilhantes que ela usava nas orelhas. Tudo isso era errado. A dor pulsante em seu sexo. Esse desejo impossível, invadindo-o violentamente, deixando todo o resto de lado... incluindo suas boas intenções. Ele sabia. Ainda assim, não parecia conseguir se importar como deveria. – Responda – demandou ele com a boca perto demais da doce tentação daquela orelha delicada, e não conseguiu identificar a motivação obscura que o dominava. – O que você teve de fazer para ganhá-los, Kathryn? Ela puxou a cabeça para o lado e para longe dos dedos dele e do modo como brincavam com sua orelha, mas era tarde demais. Ele pôde ver o jeito como Kathryn havia estremecido. Pôde sentir a pulsação frenética no pescoço elegante. Pôde ver o arrepio nos braços delgados. Não havia como fingir não ter visto tal reação. Ou não saber o que ela significava. – Você está aqui como minha assistente, nada mais. – Luca a relembrou, com a voz trêmula e baixa. – Esta não é uma oportunidade para você conseguir novos clientes. – Você é desprezível. A condenação gelada na voz dela foi como gasolina para as chamas.


– Escolha interessante de palavras – murmurou Luca com os lábios próximos demais do pescoço dela, e Kathryn estremeceu. – O que considera mais desprezível... o fato de eu não querer você desfilando pelo château, contaminando o lar de minha família e a memória de meu pai? Ou o fato de não ter vergonha em usar um vestido que fará todos os homens pensarem em você nua? Ela virou a cabeça para encará-lo e colocou as mãos no peito dele. Luca não se mexeu, e teve o distinto prazer... ou seria dor... de observar a cor pintar o lindo rosto de Kathryn. – Somente você pensa assim – retrucou ela com um olhar carregado de revolta, consciência feminina e algo ainda mais sensual. – Porque somente você vive sua vida com a cabeça na sarjeta. Todos os outros verão um belo vestido de um costureiro famoso, e nada mais. – Eles verão a viúva de meu pai vestida de branco, com seu corpo nu à mostra – corrigiu Luca. – Verão seu completo desprezo pelo que é apropriado, sobretudo pela memória de seu velho e querido amigo. Ela riu. Um som alto e ultrajado. – O que eu deveria ter vestido, então? – demandou ela. – Uma mortalha negra? O que faria você feliz, Luca? Uma tenda de vergonha? As mãos de Luca tremeram, e ele as espalmou contra a parede, porque sabia. Sabia que, se a tocasse novamente, não pararia. Mesmo que se odiasse por isso. Nem mesmo tinha certeza que tentaria impedir-se. – Contou sua história cômica – lembrou ele. – Uma amizade improvável, que começou por acaso em uma sala de espera entre


um dos homens mais ricos no mundo e você, nossa santa favorita. – Ele estudou a maneira como a boca deleitável de Kathryn se firmou diante daquilo, o jeito como os olhos flamejaram e escureceram. – Acho que assisti ao filme melado em que você baseou esta história absurda. Qual será a verdadeira história? – Não tenho culpa que você seja tão cínico e tão aborrecido que só enxerga no mundo o que coloca nele – retrucou ela com algo mais que simples raiva nos olhos... e ele ficou fascinado. Essa era sua maldição. Ela o fascinava. Talvez o tivesse fascinado desde o princípio. Talvez, esta fosse a verdade que ele vinha enterrando por dois anos. – Aqui vai uma notícia, Luca. Se passar sua vida procurando por razões ocultas e crueldade, irá encontrar somente isso. É uma profecia para si mesmo. – Sabe por que eu a odeio, Kathryn? – Ele não esperou pela resposta. – Não é por você ter casado com meu pai por dinheiro. Todas as outras fizeram a mesma coisa. É que você ousa ficar ofendida quando alguém aponta esta verdade. É que você acredita em sua própria história dos tabloides. Santa Kate é um mito. Você não é nenhuma santa. Ela emitiu um som frustrado e o empurrou novamente. – Não posso controlar o que você pensa de mim. E pode parecer um grande choque para você, mas eu não me importo se me odeia ou não. De algum modo, ele não acreditava nisso, e não saberia dizer por quê. E algo se partiu dentro de Luca. Uma corrente se quebrou; ele se aproximou ainda mais e tracejou a abertura do vestido mais próxima. Traçou uma linha do ombro para baixo, deslizando em


volta da curvatura dos seios e adentrando a linha do tecido em direção à barriga. A respiração de Kathryn acelerou. Mas ela não pediu para ele parar. Não o afastou novamente. Em vez disso, fechou as mãos em suas lapelas, incentivando-o. Luca concentrou-se em sua tarefa. De seus dedos contra a suavidade louca do corpo feminino. Do fogo dançando entre eles, as chamas se espalhando, até que ele estivesse envolto pela sensação da pele e dos aromas de Kathryn. O toque de algo tropical no cabelo e a sutil fragrância de um perfume caríssimo que ele agora associava a ela tão fortemente que a percepção de tal cheiro em lugares que ela não estava fazia seu corpo enrijecer com consciência. Uma vez, num resort distante nos Alpes Austríacos. Outra vez, num hotel à beira-mar nas Bahamas. Ela não esteve em tais lugares, mas estava ali. Naquela noite, estava ali. E não havia diferença. Isto é loucura, disse a si mesmo. Ele não a beijou. Não ousou arriscar a possibilidade de não parar, desta vez. Mas inclinou-se para mais perto, até que suas respirações se misturassem. Até que ele pudesse ver tudo que ela sentia através dos olhos expressivos. Até o fato de que ele não a estava beijando, que o único ponto de contato era seu dedo que dançava por onde o tecido encontrava a pele, se tornasse erótico. Ele a queria tanto. Queria se perder dentro de Kathryn, queria arremessá-los diretamente dentro do coração daquela fogueira que os consumia vivos. – Isto... – disse ele suavemente. – ... é o que uma vadia usa quando deseja anunciar que está disponível de novo. Discretamente, eu confesso. Mas a mensagem é a mesma.


Ele a sentiu enrijecer, e então cedeu ao seu desejo e envolveu a palma inteira na curva exposta da cintura dela, o que o incendiou ainda mais. Mas, embora pudesse sentir os tremores do corpo de Kathryn, que indicavam que ela sentia a mesma necessidade, ela o afastou novamente. Com mais força, usando os punhos, desta vez. Ele resmungou e recuou. Mas não removeu a mão. – Qual é o seu plano, Luca? – Ela lhe deu um olhar que ele não conseguiu decifrar. O pequeno queixo estava erguido, a voz feminina fria e ríspida. Foi o que penetrou a bruma vermelha como fragmentos de gelo. – Você vai provar que sou uma vadia, agindo como um? Acha que é assim que se faz? Luca baixou a mão, com bem mais relutância do que gostaria de examinar naquele momento. Afastou-se, a luxúria, o desejo e aquela necessidade voraz o fazendo fechar o semblante. Levando-o a desejar muitas coisas que não deveria. Fazendo com que se perguntasse por que Kathryn era a única coisa que ele parecia não controlar... ou, mais especificamente, sua reação a ela. – Eu não preciso provar a verdade – respondeu ele. Que diabos estava lhe acontecendo? Como Kathryn havia tirado seu controle? Luca tentou se livrar da ideia. – Ela simplesmente existe, não importa que você finja outra coisa. Kathryn endireitou o corpo, com as faces coradas e o brilho nos olhos indicando o que havia acontecido lá. O que quase havia acontecido. – Acho que você perceberá que essa matemática não funciona – disse Kathryn amargamente, e foi como enfiar uma faca nele.


– Comportamentos indecentes necessitam de dois pervertidos, Luca. Não uma vadia suja e um inocente com mãos sujas por acaso, quase corrompido por fazer exatamente a mesma coisa. Independentemente das mentiras que você conta a si mesmo. Então ela passou por ele e seguiu pelo corredor, cada movimento gracioso e elegante, como se fosse uma rainha, e não a interesseira que ambos sabiam que ela era.


CAPÍTULO 5

A FESTA foi longa, resplandecente e dolorosa. É claro, sempre tinha sido. Kathryn disse a si mesma que, na verdade, aquela não era diferente das outras vezes em que ela precisou desfilar pelo Château Castelli, agindo como se não visse nem ouvisse os olhares e sussurros especulativos. Isso fazia parte da fama. Algo com que cada membro da família Castelli encontrava sua própria maneira de lidar. Por que ela não poderia fazer o mesmo? Mas, é claro, ela sabia. Por causa de Luca. Em todas as outras festas em que esteve com ele, Luca havia mantido a maior distância possível entre ambos, como se temesse que o contato com ela pudesse contaminá-lo. Mas, daquela vez, ela era sua assistente, não mais sua madrasta. Significava que seu lugar era ao lado dele, independentemente do que havia acontecido no corredor. Pior, o que quase havia acontecido. O que disse a si mesma que jamais permitiria que acontecesse... Mas podia sentir o vazio da afirmação dando nós em seu estômago.


Ele a alcançou na escada que levava ao salão de bailes e deu a ela um olhar obscuro e fulminante. – Acho que você deveria me deixar em paz. – Kathryn havia dito. – Com prazer. – Luca respondeu, suavemente. – Quer dizer que se demite? Ela o fitou, e ele a segurou pelo braço quando ela quase tropeçou, apertando-o mais quando ela tentou se desvencilhar. – Cuidado – alertou ele. – Não estamos mais sozinhos. E, em público, você é a viúva de meu pai e minha atual assistente. – Na verdade, é isso que sou em qualquer lugar. Exceto no esgoto dentro da sua mente, é claro. – Um escândalo de cada vez. – Luca tinha falado com irritação. Ele a soltou assim que chegaram ao andar de baixo. – Esta noite, acho que o fato de a viúva Castelli ter se unido à força de trabalho terá de ser o assunto das fofocas, não acha? A menos que queira usar a ocasião para anunciar ao mundo que sua caçada por um protetor começou novamente. – E posso presumir que, por caçada – retrucou ela friamente –, quer dizer você me agarrando num corredor? Esta foi a sua versão de um teste? Luca curvou a boca daquele modo letal que não se parecia em nada com um sorriso. – Sem dúvida, não conseguir me manipular é uma tragédia para você – disse ele, soando completamente trágico. – Certifique-se de reservar um horário em minha agenda para eu me preocupar com isso. Talvez no mês que vem? Enquanto isso... – Então ele havia se transformado de sua versão detestável para a versão Chefe de Operações que ela havia visto em ação


apenas nas últimas semanas em seu escritório. – ... você fica ao meu lado. Não fale, a menos que lhe dirijam a palavra diretamente. Apenas sorria e lembre-se de cada detalhe de cada conversa que tivermos. Ela piscou. – Uh, que detalhes estou procurando? Ele a fitou, tornando cada vez mais difícil para Kathryn imaginar como alguém o enxergava como um playboy despreocupado, quando a verdade sobre ele era dura e óbvia, e estava estampada bem ali no rosto intensamente bonito. – Todos, Kathryn – respondeu ele como se ela fosse uma idiota. Ela odiava que Luca a fizesse se sentir assim... ao mesmo tempo em que sentia que precisava provar o contrário. Como sempre, tinha bastante experiência com aquele sentimento. – Você nunca sabe que detalhe fará a diferença. Então ele caminhou na sua frente para dentro do salão e, no momento em que entrou, transformou-se imediatamente no outro Luca. Afável e amistoso. Rápido em fazer com que todos ao seu redor sorrissem. Tinha sempre uma bebida nas mãos e parecia estar sempre levemente embriagado, embora, assim tão perto, Kathryn descobriu que, na verdade, ele não bebia muito. Dava tapinhas em costas e beijava rostos. Flertava com todo mundo. Era encantador e parecia totalmente inofensivo. Kathryn entendeu quase que instantaneamente por que ele se incomodava em fazer um teatro tão elaborado. Ela também passou bastante tempo sorrindo graciosamente ao lado de Gianni, e ninguém o achava encantador. As pessoas


estavam sempre em guarda. Especialmente se estivessem envolvidas nos negócios. Mas era como se ninguém pudesse acreditar que aquele Luca Castelli, que comandava a atenção de uma festa inteira, simplesmente entrando nela, era o mesmo que gerenciava o escritório em Roma com tanta habilidade. Uma criatura vibrante e despreocupada. Kathryn tinha ouvido os rumores. Que o próprio Gianni havia apoiado o escritório de Luca... Exceto, é claro, pelo pequeno detalhe que um velho demente não poderia gerenciar coisa alguma. Talvez ele apenas tivesse uma boa equipe de apoio. Todavia, independentemente do que as pessoas especulavam, quando estavam na presença de Luca, deleitavam-se nela. Nele. Naquele raio de sol que emanava à sua volta tão facilmente. E contavam tudo a ele. Segredos. Boatos. Detalhes pelos quais seus supervisores, que normalmente estavam do outro lado da sala, os matariam, se soubessem que estavam contando. Todos sucumbiam ao mito dourado Luca Castelli, percebeu Kathryn. Todos. Donos de indústrias, conhecedores de vinhos e garçons perdidos na perfeição daquele sorriso convidativo. Observá-lo em ação lhe ensinou muitas coisas, mas a melhor delas é que a fazia se sentir melhor a respeito de si mesma por cair tão facilmente no feitiço dele, cada vez que chegava tão perto. Não era um defeito seu, como imaginava. Não era a fraqueza que sua mãe sempre fazia tanto esforço para atribuir a ela. Era ele. Ela entrou no banheiro mais escondido do salão de bailes quando Luca começou uma discussão intensa sobre um


documentário que Kathryn nunca havia assistido com alguns intelectuais que deixaram claro que a reconheciam e que a julgavam inferior. Ela ficou feliz em deixá-los pensar daquela maneira. Dentro do luxuoso banheiro, Kathryn sentou-se no sofá e respirou. Longe da multidão, cuja maioria a olhava com expressões suspeitas. Longe de Luca, a quem ela realmente deveria odiar. Por que não o odiava como deveria? Como ele a odiava? – Estar fascinada por ele só vai piorar as coisas – disse a si mesma duramente em voz alta... e assustou-se quando a porta do banheiro se abriu. – Oh – exclamou Lily. Ela olhou em volta, procurando alguém e, obviamente concluindo que Kathryn estava falando sozinha. Kathryn sorriu automaticamente. – Eu não sabia que havia alguém aqui. – Somente eu – disse Kathryn, brandamente. – Dependendo de seu ponto de vista, isto pode ou não contar. A esposa de Rafael riu e alisou a barriga grávida que resplandecia num deslumbrante vestido azul. Parecia feliz. Levar um momento para reconhecer o que aquela expressão significava causou um aperto do peito de Kathryn. Como se a felicidade fosse tão estranha a ela. – Não ligue para Luca – disse Lily, fitando Kathryn pelo espelho. – O homem é muito controlador. Não sabe lidar com surpresas. Ela abriu a torneira e passou as mãos molhadas pelas tranças que usava presas em um enorme coque na nuca. Kathryn sempre gostou de Lily. Era o membro menos crítico da família


Castelli. Foi quem melhor a acolheu, e Kathryn imaginava que, sob outras circunstâncias, elas poderiam ter sido amigas. Talvez aquilo também fosse ingênuo. Estava começando a perceber que ela era ingênua de todas as maneiras possíveis... algo que achava impossível, considerando como sua mãe havia trabalhado arduamente para que ela não fosse. Entretanto... – Eu sou uma surpresa? – perguntou ela quando estava certa de poder controlar a voz. – Não acho que Luca usaria esta palavra. Lily lançou um olhar divertido. – Tudo a seu respeito é surpresa. Desde o dia em que chegou. Você se recusa a entrar numa das caixas depressivamente funcionais de Luca. Ele detesta isso. – Ele detesta surpresas? – Kathryn riu. O que não combinava com a maneira como seu coração batia, como se tal informação sobre Luca fosse o detalhe mais importante de todos que ela havia coletado naquela noite. – E eu pensei que a única coisa que ele detestasse fosse eu. Foi a vez de Lily rir, apesar de sua risada não ser apenas de fachada. – Luca detesta confusões – disse ela. – Sempre detestou. Se ele a detesta? É porque você está desorganizando as coisas para ele, e ele não sabe como lidar com algo que não pode higienizar e colocar em uma prateleira qualquer. E, cá entre nós, provavelmente isso é muito bom. Então ela sorriu e se despediu, deixando Kathryn remoendo a informação.


Mas não por muito tempo. Seu celular vibrou, e ela sabia que era Luca, o que a fez sair do banheiro e voltar para a festa. – Está de férias? – ralhou ele furiosamente ao telefone quando ela atendeu. – Quero você ao meu lado, assim que me virar. Não estou lhe pagando para vagar pelo château como uma convidada. – Você está me pagando? – perguntou ela, avistando-o ao longe e movendo-se por entre os grupos enquanto falava. – Pensei que seu pai tivesse deixado um fundo para mim, de modo que você não pudesse esfregar um salário na minha frente. Ou talvez por outras razões, e este seja apenas um feliz acidente? – Estou me virando – disse ele enquanto ela parava bem na sua frente. Os olhares deles se encontraram. Sustentaram-se. Foi mais difícil desviar do que deveria. Dizer a si mesma que não havia nada naquele olhar escuro, além do que sempre houve: alguma forma de fúria iluminada pelo desgosto. Ela não entendia como ninguém enxergava a verdade sobre Luca. Disse a si mesma que estava inventando aquilo. Que a expressão não estaria ali quando ela levantasse o olhar para ele. Que ele seria aquele homem meio despreocupado, meio antipático que deveria ser e nada mais. Mas aquela fúria, aquela necessidade... ainda estavam lá. Aquele desejo que a aterrorizava e intrigava na mesma proporção. Um mundo contido naquele olhar, e Kathryn não tinha ideia do que fazer a respeito. – Acho que você está sendo observado – disse ela, gesticulando a cabeça em direção a uma mulher que usava um vestido justo todo feito de lantejoulas e olhava para Luca de


longe. – Não vai querer desapontar suas fãs com esta demonstração de seriedade, vai? – Não é uma demonstração. São negócios. Não é um conceito que espero que entenda. – Estou certa de que é o que você diz a si mesmo – murmurou ela com imprudência. – Mas é interessante que esteja tão determinado a esconder parte de si mesmo onde quer que vá, não acha? Ela não sabia por que havia dito aquilo. Luca pareceu congelado por um momento longo e tenso, com uma expressão apreensiva. Então piscou, e não havia nada além de sua obscuridade comum, deixando Kathryn tonta. – Cuidado, madrasta – disse ele de maneira mortal. – Ou posso ficar tentado a dar a eles alguma coisa sobre o que falar esta noite. Ela não acreditava que ele faria algo do tipo... claro que não. Mas ainda precisou lutar para impedir um tremor diante da ideia. E tinha certeza que Luca sabia, que o brilho nada sagrado naqueles olhos escuros era aquela sabedoria puramente masculina que Kathryn temia ser sua ruína. Então ele virou-se, seu sorriso público pronto, a intensidade sumida, como se jamais tivesse existido. E Kathryn lembrou que não importava o que a cunhada daquele homem, que um dia já tinha sido irmã de criação de Luca, havia dito no banheiro. Não importava o que havia acontecido nos corredores escondidos do château. A única verdade que importava é que ela era sua assistente agora, e que, se não pudesse desempenhar esta tarefa tão bem quanto deveria,


todas as outras coisas que ele havia dito sobre ela seriam verdade. Você teve mais oportunidades do que eu poderia ter sonhado em ter!, sua mãe havia falado com aquela expressão que dizia a Kathryn, mais uma vez, que ela decepcionara Rose terrivelmente, como sempre conseguia fazer. E veja o que fez com elas. Kathryn não soube como se defender. Porque Rose havia sido a primeira a encorajá-la a se casar com Gianni. – O mundo está repleto de pessoas que se casam por motivos bem menores que este – argumentou ela. – Mas é claro, Kathryn, é a sua vida. Deve fazer o que acha que é melhor para você, não importa quem mais vai se beneficiar. E Kathryn não foi capaz de pensar numa boa razão para não se casar com o senhor bondoso, quando sua mãe expôs a situação daquela maneira... especialmente sabendo o que ganharia com isso. O custo seria muito pequeno. Tudo que ela teria de sacrificar seriam alguns anos. Não sua vida toda, como sua mãe havia feito, e por muito pouco em troca. Embora Rose certamente não protestou quando o dinheiro de Gianni permitiu que Kathryn comprasse um chalé para ela no adorável vilarejo de Yorkshire. Ela jamais a agradeceu, disse uma pequena voz dentro de Kathryn. Mas sentia-se ingrata, mesmo pensando aquelas coisas. Muitas mulheres não teriam tido um filho sozinhas. Rose jamais enfraqueceu. O que significava que Kathryn não poderia fazer menos... independentemente da provocação.


Era hora de parar de se preocupar com Luca Castelli e o que ele pensava a seu respeito, e começar a trabalhar. OS DIAS azuis e dourados da Califórnia foram passando, com reuniões, visitas pelos vinhedos e jantares intermináveis de negócios, e Luca se viu mais descontente do que deveria estar pelo fato de Kathryn ser boa em sua função. Mais que boa, na verdade, pelo estranho papel que precisava desempenhar, embora ele detestasse admitir. Marco tinha sido um assistente administrativo brilhante, mas sempre foi um pouco autocentrado ao tentar atrair clientes em potencial. Por outro lado, Kathryn... que Luca teria afirmado não possuir a menor chance de se harmonizar com os outros, e que não era nada além de charmosa... realizava o trabalho brilhantemente. – Não – esbravejou ele quando ela entrou na área de café da manhã que compartilhavam, vestida em um de seus usuais trajes de trabalho: saia, saltos altos e uma daquelas blusas que o deixavam incapaz de pensar em qualquer coisa, a não ser nos seios bem ali atrás da seda. Kathryn parou com um olhar de realeza ofendida, irritando-o. – Você não pode vestir isso – reprovou ele, sentindo-se como uma criança mal-humorada, o que era insuportável. Ele não era um de seus sobrinhos tendo um acesso de raiva. Por que não conseguia se controlar perto daquela mulher? – Vamos caminhar pelos vinhedos com um dos nossos representantes. Eles já acham a família Castelli quase europeia demais para seus gostos, portanto, devemos impressioná-los com nosso charme de pessoas simples. – Acho que nem você pode convencer alguém de ser simples.


– Sou um camaleão – retrucou ele, secamente. E ficou desconfortável como aquilo pareceu tão verdadeiro, quando não quis que tivesse tal significado. É interessante que esteja tão determinado a esconder parte de si mesmo onde quer que você vá, tinha dito ela. Luca fez uma careta. – Mas duvido que você possa dizer o mesmo. Ele estava errado. Kathryn saiu da sala, e quando reapareceu, estava transformada. Vestia jeans, um par de botas e uma camisa de mangas compridas. Havia deixado o cabelo solto espalhado pelos ombros e tirado a maquiagem. Ela parecia uma anfitriã de fantasias que ele nem percebeu que tinha. Parecia um comercial do estilo de vida saudável da Califórnia. Um sonho tornado realidade. Os representantes concordaram, apoiando-se em cada palavra de Kathryn, e agindo como se Luca fosse o assistente dela, algo que não o irritou tanto quanto deveria... pois ele caminhava atrás dela, admirando a curva de seu traseiro no tecido desbotado. E imaginando como seria derrubá-la entre as vinhas e sentir o gosto daquela pele macia e da boca que o estava levando à loucura. E quando eles finalmente ficaram a sós de novo, tendo se despedido dos entusiasmados representantes que dobrariam seus pedidos, baseados inteiramente na força do sorriso de Kathryn, Luca se viu observando-a com proximidade demais. Como se pudesse atacar. – Eu lhe disse que poderia fazer este trabalho – murmurou Kathryn, e ele imaginou se ela sabia como soava feroz. – Qualquer trabalho. – E você fez.


– Mas não se preocupe, Luca – continuou ela, dando a impressão de ter se recomposto, lembrando-se de quem eles eram. Luca detestou a sensação de perda que isso lhe causou. – Eu não vou deixar que isso atrapalhe minha imagem de vadia. Sei que você precisa disso para se sentir melhor consigo mesmo, e, é claro, meu único objetivo é satisfazê-lo. Ele sentiu seu maxilar travar e cada músculo de seu corpo enrijecer. Mas havia algo na maneira como Kathryn ficava ali parada ao sol de inverno, com as mãos enfiadas nos bolsos de trás do jeans, com o vento brincando com seu cabelo escuro. Ele sentiu um estranho aperto no peito. Não sabia como lidar com a sensação. Ou com ela. Ou, pior ainda, consigo mesmo. – Por que você se casou com ele? Os maravilhosos olhos de Kathryn estavam de cor cinza-claro na luz azul da Califórnia, e ela não desviou o olhar. – Não entendo por que isso importa. – Mas importa. – Acho que você quer que haja alguma lógica. Algo que possa fazer sentido em sua mente. Pois, do contrário, você será apenas um homem que agarrou a viúva de seu pai. Duas vezes. – Então existe uma? Lógica? Você era uma menina de rua que ele salvou? Sustentava pessoalmente um orfanato ameaçado, e o dinheiro de meu pai salvou crianças de irem para a rua? Kathryn sorriu e não foi seu sorriso habitual. Não foi aquele sorriso à prova de balas que ela exibia no trabalho e para ele, centenas de vezes nas últimas três semanas. Este continha tristeza e estava refletido nos olhos, e Luca não entendia o que estava acontecendo.


O que já tinha acontecido, se fosse honesto. Luca decidiu que a honestidade era supervalorizada. Mas era tarde demais. Ela estava falando. – Não – disse ela. – Casei-me com ele porque eu quis. Ele era rico e eu estava com dificuldades de me formar e em outros assuntos pessoais, e ele disse que poderia fazer meus problemas desaparecerem. Eu gostei da ideia. Queria aquilo. – Ele torceu a boca, mas ela apenas aprofundou o sorriso ainda magoado. – É isso que você queria ouvir? – Não estou surpreso. – O que acha que é o casamento, Luca? – perguntou ela, inclinando a cabeça de lado. Ele ficou hipnotizado pelo gesto, por ela, e lhe ocorreu que eles nunca tinham conversado de verdade. Foram apenas insultos e olhares, aquela cena na biblioteca ou no corredor, o que ele achava que era mais uma história ensaiada no avião. Kathryn balançou o cabelo para longe do rosto, e ele quis fazer aquilo para ela. Queria tocá-la, percebeu, mais do que podia se lembrar de querer qualquer outra coisa. E nada foi mais impossível. – Não a transação que foi para você – respondeu ele, ciente de que sua voz soava dura demais. Entregava-o. – Não acho que casamento seja um cálculo frio com um objetivo monetário. Mas Kathryn continuou sorrindo daquele mesmo jeito, como se ele a deixasse triste. Como se ele estivesse fazendo algo para ela. O aperto em seu peito pareceu aumentar. – Quem é você para julgar? – perguntou ela suavemente e foi mais como um golpe, talvez porque não tivesse calor ou acusação. Ela simplesmente perguntou. – Estávamos felizes com


nosso acordo. Cumprimos as promessas que fizemos um ao outro. Luca não pôde aguentar. Caminhou em direção a ela, ciente, mas sem se importar que estivessem em frente ao château, onde qualquer um poderia vê-los, e segurou a cabeça dela entre as mãos. Aquilo seria bem mais fácil se Kathryn não fosse tão bonita, disse a si mesmo. Se ela fosse um pouco mais artificial e bem menos polida. Se ela não causasse um curto-circuito em todo controle que ele já possuía. – Conte mais sobre como vocês eram felizes – desafiou ele, sabendo que estava furioso. Mais que furioso. – Como seu casamento era feliz... a união de duas almas idênticas, certo? Mas ela não recuou. Não corou nem pareceu envergonhada. Colocou as mãos em volta dos pulsos dele, mas não o afastou. – Vá em frente – incentivou Luca. – Conte-me como cumpriu estas promessas para o velho. Era obrigada, por um contrato, a ajoelhar-se diante dele e satisfazê-lo um certo número de noites por semana? Ou ele já havia passado deste ponto, e pedia para você satisfazer a si mesma enquanto ele observava? Que promessas cumpriu, Kathryn? Os olhos acinzentados escureceram com raiva, mas ela não se afastou. – Sabe o que mais me impressiona sobre você? – Ela perguntou, sussurrando. – É como acha que tem o direito de fazer essas perguntas. Você não tem de saber o que acontecia em meu casamento. Pode enlouquecer com sua imaginação sombria, e espero que enlouqueça. Pode sussurrar seus pensamentos sujos para qualquer um que queira ouvir. Isso não


os torna verdade, e certamente não me obriga a comentá-los. Se quer acreditar que era isso que acontecia entre eu e seu pai, vá em frente. Acredite. Havia uma resolução no olhar de Kathryn de que Luca não gostava, e ele não sabia o que poderia ter feito, mas lá embaixo, na entrada do château, um ônibus com degustadores de vinho estacionou, e as pessoas começaram a vir na direção deles. Luca não teve escolha, senão soltá-la. KATHRYN ACORDOU quando o luar adentrou sua janela, fazendo-a piscar confusa diante do relógio. Era quase 4h, e aquilo era, ela percebeu depois de alguns momentos de incerteza, definitivamente a lua, e não o sol. Seu relógio interno ainda estava confuso, mesmo depois de quase uma semana na Califórnia, e ela apenas teve de ficar deitada ali mais alguns momentos, antes de aceitar que não voltaria a dormir. Não aquela noite. Balançou os pés para o lado da enorme cama de dossel e vestiu rapidamente as roupas que havia deixado penduradas na cadeira, uma calça de moletom e uma blusa com capuz. Prendeu o cabelo atrás da nuca. Envolveu um xale lã ao seu redor para espantar o frio, abriu a porta de vidro que levava ao terraço e saiu. A lua estava enorme e tão brilhante que iluminava todo o vale, caindo sobre os ciprestes e dançando sobre as fileiras de vinhas. Tornando os lugares que não tocava ainda mais escuros, e deixando o mundo prateado. A brisa estava forte, chicoteando-a, fria o bastante para dar a sensação de regozijo. Ela fechou os olhos e entregou-se à sensação.


– Não conseguiu dormir? – perguntou uma voz masculina próxima demais. – Talvez seja sua consciência. Kathryn olhou na direção da voz, o mais vagarosamente possível, em contrapartida à velocidade das batidas de seu coração. Havia esquecidoa que os terraços dos quartos se juntavam naquela parte do château, apesar das paredes pela metade que não a escondiam de Luca. Ele estava espalhado num sofá, vestindo apenas calça esportiva, como se fosse imune ao inverno. E o luar o banhava, deslizando pela vasta expansão do peito, dançando nas saliências e reentrâncias, iluminando cada centímetro da impressionante beleza masculina. E não fazendo nada para apaziguar a rigidez de sua expressão ou o desejo em seus olhos. – Diz o homem que claramente está aqui há algum tempo – replicou Kathryn. Muito suavemente. Como se ele não fosse nada para ela. Como se a voz dele não a afetasse. Como se este fosse como qualquer outro encontro com ele, à luz do dia, cercados de pessoas. Mas era como se ele soubesse exatamente o que ela estava tentando esconder, ou talvez, a lua o exibisse demais, porque Luca piorou a situação. Ele se levantou. – O que está fazendo aqui fora? – perguntou ela. – Não tenho ideia – respondeu ele em voz baixa, ainda a fitando. – Algo de que tenho certeza que vou me arrepender. Mas isso não é nenhuma novidade. O pulsar do coração dela se tornou ensurdecedor. Luca passou uma das mãos pelo cabelo. Então aproximou-se daquele modo que o marcava como o tipo de predador que ela


mais precisava evitar. Kathryn sabia que não deveria tentar resistir. Sabia que não haveria vergonha alguma em correr, trancando-se em seu quarto por causa de um homem que a olhava com tamanha intenção. Mas não conseguiu. Não podia deixá-lo ver o quanto a afetava. O quanto a atingia. Mais que isso, ela não parecia conseguir se mexer. Ele se aproximou, os olhos nunca deixando os seus, fazendo com que o interior de Kathryn se retesasse. E esquentasse, empoçando em seu baixo-ventre e levando-a a imaginar que poderia derreter. Luca não parou. Foi diretamente até ela e entrelaçou os dedos no seu cabelo, puxando-a para si. Em direção àquela boca perigosa, impossível e deliciosa. – O que está fazendo? – perguntou Kathryn novamente. Mas sua voz foi um sussurro e não um protesto, e ele sabia. Pelo modo como afundou os dedos no seu cabelo, imobilizandoa. – Acho que estou sonâmbulo – disse ele naquela voz baixa, deixando-a em chamas. – É um hábito terrível. Pior que álcool. Não tenho como saber o que farei no meio da noite, e então, esquecerei pela manhã. – Luca... – Vou lhe mostrar o que quero dizer. A voz dele foi pouco mais que um gemido. Então, ele cobriu a boca de Kathryn com a sua.


CAPÍTULO 6

KATHRYN DISSE a si mesma que aquilo era um sonho. O luar. Aquele homem. Era um sonho, portanto, não importava se ela simplesmente se abrisse para ele. Se o deixasse erguê-la até seu peito desnudo, frio ao toque, mas ainda tão sólido. Se ela não protestasse... Se tudo que fizesse fosse corresponder ao beijo com o mesmo ardor que ele mostrava. E tudo era quente. Fogo. Desejo se transformando em realidade na noite prateada. As mãos de Luca eram grandes e fortes, deslizando do cabelo para o rosto dela, segurando-a onde ele a queria. E ele aprofundou o beijo, usando lábios, dentes e língua de maneira voraz. Kathryn sentiu-se tonta novamente... e perdida... e estava apenas parcialmente cônscia de que ele a havia erguido do solo para os braços poderosos. Ela não se importava. Aquilo era um sonho, então, qual a diferença se Luca a estava levando para algum lugar, a boca ainda fundida a sua? Ele era alto e tão forte, e a sensação de tê-lo ao seu redor a fez tremer por dentro.


Ele andou de volta para a porta e direto para a cama de Kathryn, deitando-a ali e seguindo-a, e foi... incrível. Não havia outra palavra para descrever a sensação que aquele corpo másculo e esculpido roçando sobre o seu lhe causava. Fazendo-a se sentir nova. Como uma estranha criatura se apoderando do corpo que, até aquele momento, ela conhecia tão bem. Isso é só um sonho, disse a si mesma, e entregou-se. Luca continuou beijando-a, saboreando-a, e ela correspondeu. Entrelaçou os dedos no cabelo grosso e escuro, que estava quente ao seu toque. Traçou a linha magnífica das costas largas até os quadris estreitos, então, direcionou-se ao abdômen que a fascinou ao ponto da distração. Além desse ponto, talvez. Luca afastou a boca da sua, apoiou-se sobre um antebraço e deslizou a outra mão para a frente da blusa dela, subindo até o topo, então descendo o zíper. Kathryn sentiu o ar frio brincar com seus seios desnudos. E ela estava ofegando como se estivesse correndo. Como se tivesse corrido quilômetros. Luca murmurou alguma coisa em italiano que a banhou como uma carícia, então abaixou a cabeça e tomou um mamilo rijo na boca. Kathryn ouviu um som que não poderia ter produzido, tão agudo e lastimoso, ecoando do dossel acima deles. Sentiu os ombros largos sacudirem contra seus seios com a risada que Luca deu. A pura fisicalidade daquilo a impressionou, e então ele explorou seus seios, deixando-a em chamas e causando uma umidade entre suas pernas.


E Kathryn não sabia o que fazer. Tudo que podia pensar era que queria que aquele sonho louco continuasse para sempre. Ele emitiu um gemido baixo que ela reconheceu em algum lugar feminino em seu interior, cuja existência nunca conheceu. Enterrou as mãos no cabelo de Luca, mas não para guiá-lo... apenas para se ancorar, enquanto ele deslizava a palma por sua barriga exposta, pausando para provocar seu umbigo, antes de descer por baixo do elástico de sua calça de moletom. Kathryn abriu a boca para falar alguma coisa... para fazer alguma coisa... Mas Luca sabia exatamente o que queria. Ele não pausou. Simplesmente deslizou a mão mais para baixo e segurou seu centro úmido e quente na palma. Ela emitiu um som, e ele riu novamente, antes de roçar os dentes de leve em seu mamilo, enquanto pressionava o dorso da mão no lugar que mais ansiava ser tocado. E Kathryn desapareceu, subindo numa coluna de chamas que a despedaçou. Ela tremeu e tremeu, arqueando-se contra ele, incapaz de se conter ou de fazer qualquer coisa, exceto sobreviver à explosão... e quando finalmente voltou ao planeta Terra, foi com um disparo tão forte de seu coração contra as costelas que doeu. Doeu. Não havia como fingir que aquilo era um sonho. A mão de Luca ainda estava dentro de sua calça, traçando padrões preguiçosos em seu calor úmido, e ele ergueu-se sobre um cotovelo, ao seu lado, enquanto fazia isso. Observando-a. Conhecendo seu corpo. E Kathryn descobriu que não conseguia


respirar. Algo que piorou quando Luca parou de olhar para a própria mão brincando com ela e fitou-a nos olhos. Os olhos dele estavam escuros. Tão escuros. Havia algo de perigoso no jeito como Luca a olhava então, e ela tremeu de novo, como se não pudesse se impedir de desmoronar. Como se, agora, ele só precisasse olhá-la para que ela se abrisse. – Luca... – Mas Kathryn não soava como si mesma. Não reconheceu o desejo profundo que soou em sua voz. E não tinha ideia do que dizer. Ele murmurou alguma coisa em italiano, sílabas que pareceram dançar sobre Kathryn, enquanto Luca descia mais na cama, enganchava os dedos no elástico de sua calça e puxava-a, deslizando-a por seus quadris e removendo-a. Quando ele jogou a calça de lado, ela estava tremendo. Não conseguia parar de tremer. E ela ainda estava tão quente. Tão desejosa. Indefesa, de algum modo, diante de todas aquelas sensações e do olhar intenso no rosto lindo dele. – Luca – repetiu ela, forçando-se a falar, porque aquele não era um sonho, a realidade a estava atingindo com força total. – Eu preciso prová-la – murmurou ele, a voz mais rouca e grossa do que ela já ouvira antes, e isso também a atingiu como um raio. Então, ele falou algumas palavras em italiano, e foi pior. Ou melhor. – Eu não penso... – começou ela. – Ótimo. Não pense. Ele moveu-se para segurar seus quadris, então, acomodou-se entre suas coxas como se pertencesse àquele lugar. Usando os ombros esculpidos, apartou mais as pernas dela, emitindo um


gemido gutural que arrepiou todos os pelos do corpo de Kathryn. – Bellissima – sussurrou Luca diretamente no coração de seu desejo. E então, lambeu dentro do seu centro do prazer. O GOSTO dela era maravilhoso, e Luca deleitou-se com ele. Kathryn estava tremendo de novo sob ele, as mãos se agitando no seu corpo, como se não conseguissem decidir se queriam puxá-lo para mais perto ou empurrá-lo. Ele a lambeu e a provocou, jogando-a de volta naquele fogo, até que ela estivesse arqueando os quadris para mais perto de sua boca, suplicando por ele com seu corpo. Ele estava tão excitado que pensou que aquilo poderia matálo. E então, ela atingiu o clímax com um grito longo e selvagem que ecoou nas paredes, abalando-o até a alma, e Luca pensou que nunca tinha visto nada melhor em sua vida. Ele esperou. Ela soluçou alguma frase incompreensível, e ele gostou daquilo. Gostou muito. Luca ajoelhou-se, estudando-a espalhada diante de si, mais linda do que poderia ter imaginado... e a verdade era que ele havia imaginado exatamente aquela cena com mais frequência do que queria admitir para si mesmo. Os seios de Kathryn eram pequenos e perfeitos, com mamilos rosados, e o centro da feminilidade era escorregadio e quente. O gosto dela era doce e único, e o enlouquecia de desejo. E, pior ainda, deitada ali diante dele, aberta e tremendo, havia alguma coisa sobre ela. Certa inocência, por mais impossível que


parecesse, que o excitava ainda mais, seu desejo atingindo um nível que ele nunca conheceu. Ele afastou o cabelo do rosto e olhou em volta, perguntandose onde ela guardava os preservativos. Porque certamente Kathryn tinha alguns. Ou talvez, lidasse com controle de natalidade de um jeito diferente, o que significava que ele poderia... E Luca congelou então. Porque, se Kathryn estivesse tomando pílulas, seria para evitar engravidar de seu pai. Para evitar dar à luz uma criança que teria sido irmã de Luca. Desgosto e autodesprezo atingiram-no como um soco. Como um ataque. Ele se sentiu zonzo. Como podia ter esquecido quem ela era? Como podia ter deixado isso acontecer? Você não deixou isso acontecer, seu tolo, ralhou consigo mesmo. Você fez isso acontecer. Kathryn era uma aranha, na melhor das hipóteses, e agora ele sabia quão doce era sua teia, e estava arruinado. Arruinado. Luca saiu da cama e deixou que o frio da noite de inverno, mesmo dentro do quarto, o penetrasse pelos seus pés descalços. Não tinha conseguido dormir. Nenhuma surpresa, considerando a direção de seus pensamentos e o conhecimento que Kathryn dormia bem ali, do outro lado de sua parede. Ele se torturou com a temperatura, olhando para a lua do terraço, como se fosse uma forma de banho frio. Não tinha ideia de quanto tempo havia ficado lá fora, lutando uma batalha com um inimigo que sabia não ser Kathryn, em absoluto, mas ele. Era seu desejo voraz, dominando-o com força, mesmo agora,


fazendo-o querer esquecer tudo de novo e perder-se naquele esquecimento doce e perigoso entre as pernas dela. Você é o pior tipo de idiota, disse a si mesmo com dureza. Observou-a voltar à realidade, corada, saciada e mais linda do que qualquer mulher deveria ser. E muito mais irresistível do que esta mulher deveria ser, especialmente para ele. Luca se detestava. Disse a si mesmo que a detestava ainda mais. – É assim que você faz isso? – perguntou ele, a voz gelada como a noite do lado de fora. – Madrasta? Kathryn mexeu-se contra os travesseiros, como se ele tivesse jogado um balde de água fria sobre ela. Pareceu atônita por um momento, e Luca experimentou uma estranha emoção... algo que parecia vergonha... mas recusou-se a deixar aquilo detê-lo. Kathryn sentou-se lentamente, como se estivesse sofrendo. Como se não entendesse o que ele havia feito com ela... o que estava fazendo... e Luca detestava que ela pudesse continuar a farsa, mesmo agora. Quando ele ainda estava tão excitado que doía, e, pior, conhecia o gosto dela, agora. Kathryn estava desalinhada pela ação de suas mãos e sua boca. Entretanto, fitava-o com aqueles olhos acinzentados como se não compreendesse de que maneira aquilo tinha acontecido. Luca cerrou os dentes com tanta força que ouviu o barulho, então ajeitou as roupas dela de volta no lugar. E sua maldição era que queria despi-la e adorá-la, enterrar-se dentro daquele corpo deleitoso, até que a loucura em seu interior passasse. Até que ele pudesse pensar. – Eu estou tocado por esta performance – disse ele em tom gelado. – Realmente, estou. Você parece nada menos do que


violentada, entretanto, inocente, ao mesmo tempo, como se eu não tivesse acabado de levá-la ao clímax. Duas vezes. Ele observou o jeito como Kathryn tremeu. O jeito como abraçou mais a blusa à sua volta, como se pudesse usá-la como defesa. O jeito como não encontrou seu olhar. – Na verdade, eu preferiria não ter essa conversa agora – disse ela, cuidadosamente, como se estivesse incerta de sua própria voz. – Imagino que não. Kathryn engoliu em seco, e não havia nada, exceto sombras nos olhos, que, finalmente, encontraram os seus. – Você estava vivenciando um episódio de sonambulismo – murmurou ela, suavemente. – Eu estava sonhando. Isso nunca aconteceu. – Entretanto, aconteceu – retrucou ele. – Eu ainda posso sentir seu gosto. Ela puxou as pernas para si e abraçou-as, e Luca detestou-se. Ela parecia uma garotinha perdida, e ele ainda estava excitado e furioso, e, acima de tudo, ela ainda era a viúva de seu pai. A viúva de seu pai. – Por que você se casou com ele? Luca não pretendeu perguntar aquilo de novo. Não sabia por que o fez. Mas, desta vez, quando ela o encarou, os olhos acinzentados estavam tempestuosos. – Para torturar você – respondeu Kathryn, a voz ainda rouca, mas com alguma emoção maldisfarçada. – É isso que quer ouvir?


– Suspeito que isso não esteja longe da verdade, mesmo que seja tão pessoal. Ela deu um suspiro frustrado e saiu da cama, mas manteve distância. – Eu vou tomar um banho – disse ela em voz baixa. – Quero lavar esta noite inteira de mim. – Olhou para ele por sobre o ombro. – Torture-se quanto quiser, Luca. Mas eu agradeço se você fizer isso em qualquer outro lugar. E, desta vez, quando ela afastou-se, Luca disse a si mesmo que estava feliz por isso. Era melhor assim. Não importava se seu corpo ainda a quisesse. Mas essa era toda a informação que ele precisava, certamente. As coisas que queria sempre eram as que o destruíam, sua família sendo um bom exemplo. Motivo pelo qual, tanto tempo atrás, ele tinha parado de se permitir querer qualquer coisa. Superaria isso, também. KATHRYN DECIDIU tratar a situação inteira como se realmente tivesse sido um sonho. Todo mundo tinha sonhos potencialmente ardentes com colegas de trabalho, às vezes. O truque era agir como se aquilo só tivesse acontecido dentro de sua cabeça. Disse a si mesma que poderia fazer isso. Por que não? Luca era mestre em representar qualquer papel que melhor servisse aos seus propósitos. Ela poderia fazer o mesmo. Todavia, foi mais difícil do que ela imaginou ao entrar na sala de café da manhã do jeito que fazia todas as manhãs na Califórnia, e agir como se seu corpo não tremesse em consciência diante da visão dele.


Aquilo era tão injusto. Luca estava lindo e terrível, dominando seu lado da mesa com aquela autoridade preguiçosa, fazendo-a sentir como se a boca dele estivesse contra seu centro feminino novamente, ousada e insistente. Ele estava vestido num de seus ternos impecáveis, como se não tivesse passado metade da noite acordado, e Kathryn forçou-se a ficar ali de pé, com seu usual sorriso sereno no rosto. Ela estava determinada a fazer o possível para parecer tão calma e composta quanto ele. Mas não havia como controlar o fogo interno que a percorria, então se alojava em seu sexo de maneira consumidora. Você está tão encrencada, uma voz sussurrou na sua cabeça. Pior, Kathryn tinha certeza que ele sabia disso. Que ele podia ver tudo que ela tentava esconder. Quando tudo que ela podia ver nele era aquela luz dura nos olhos escuros e a expressão perigosa no rosto bonito. – Não fique parada aí. – O tom de voz de Luca continha algum tipo de ameaça que fez a pulsação de Kathryn acelerar. – Sente-se. Este será um encontro durante o café da manhã para descrever meus planos para o dia, Kathryn. – Ele esperou que ela o encarasse. Que encontrasse aquele olhar que parecia atravessar sua alma. Não agonia. Kathryn achou que poderia engolir a língua. Ordenou a si mesma para se recompor. Puxou a cadeira com encosto alto e gracioso, e sentou-se, da mesma maneira que vinha fazendo todas as manhãs durante aquela viagem. Uma viagem infinita, que ela temia que a tornasse uma mera concha de si mesma quando terminasse.


Talvez já a tivesse tornado, pensou com um tremor que lutou para reprimir quando ele não fez nada mais chocante do que encher sua xícara com um café rico e fragrante que parecia da precisa cor dos olhos furiosos de Luca... Ela precisava parar. – Esta noite, teremos um encontro de família. – Luca falou naquele tom controlado, enfatizando seu temperamento forte que estava escondido. – Eu, Rafael, Lily... e, consequentemente, você, como minha sombra pessoal... somos esperados em outra vinícola em Napa. – O próximo vale da região. – Sim. – Ele pôs o bule de prata sobre a mesa entre eles com um pouco de violência, mesmo que cuidadosamente contida. – Seu comando em geografia é impressionante. – Assim como seu sarcasmo. – Cuidado, Kathryn. – A voz profunda se tornou ainda mais sombria. Infinitamente mais perigosa. – Eu sei muito a seu respeito agora. Muitos segredos sobre o que a deixa... – Ele pausou, e ela enrubesceu. Kathryn não pôde evitar, por mais que visse o brilho de satisfação nos olhos escuros – ...excitada. – Ele a estudou. – Deveria manter isso na cabeça. Tudo aquilo era sobre sexo, o último tópico do mundo que ela queria discutir, especialmente com ele. Mas sentiu os efeitos, de qualquer maneira, o calor e umidade entre as pernas, como se ele ainda estivesse lá. Onde nenhuma quantidade de água e sabão, mais cedo no banho, tinha conseguido limpar a incrível sensação das mãos e da boca de Luca. Ela se sentia marcada. Embora preferisse morrer a deixá-lo saber disso.


– Que bom que você tocou nesse assunto – disse ela. – Obviamente, o que aconteceu ontem à noite nunca mais se repetirá. Você é o filho do meu marido falecido e meu supervisor, sem mencionar o fato de que não passa de um fã meu. Estou horrorizada que nos deixamos levar daquela maneira. – Se você pretende se agarrar às suas pérolas, deveria ter usado algumas. – A voz de Luca era profunda e rica, sem aquele tom preguiçoso, como se ele estivesse se divertindo. – É difícil levar a sério qualquer coisa que você diz quando posso ver como seus mamilos estão rijos, Kathryn. Não acho que a palavra que você estava procurando era horrorizada. Kathryn nunca saberia como conseguiu se impedir de olhar para seus próprios seios, onde podia sentir uma rigidez traiçoeira, sugerindo que ele estava certo. Como apenas o olhou de volta com um ar de piedade. – É inverno, Luca – murmurou ela, quase gentilmente. – Você está usando um terno. Eu não. Precisa que eu lhe explique como a biologia feminina funciona? E aquele sorriso impossivelmente dourado brilhou então, tão lindo quanto inesperado. – Você precisa? – devolveu Luca, e havia a mesma nota na voz dele que cada parte de Kathryn reconheceu. Ela levou um momento para posicioná-la. Eu preciso prová-la, ele havia murmurado na noite anterior, antes de fazer exatamente isso. Exatamente da mesma maneira. Kathryn ficou imóvel. Ou Luca ficou. Ou talvez, o mundo tivesse parado por um longo momento tenso, como se não houvesse nada, exceto as batidas de seu coração e o aperto


traidor em todos os outros lugares. Como se ele realmente pudesse ver através dela. Como se ele soubesse. Como se, caso Kathryn lhe desse o menor sinal, Luca estivesse pronto para jogar tudo de cima da mesa, erguê-la sobre o móvel e enlouquecê-la com sua boca. Como Kathryn podia temê-lo e desejá-lo, ao mesmo tempo? – Bom dia. A voz de Rafael vinda da porta quebrou a tensão entre eles. Kathryn disse a si mesma que aquilo era um alívio. Que era alívio que a envolvia. Virou-se para encará-lo, consciente de que Luca fazia o mesmo... inteiramente consciente de Luca, a propósito. O olhar frio de Rafael moveu-se entre os dois. De Luca para Kathryn, então de volta para Luca, e Kathryn subitamente teve certeza que ele sabia. Que podia ver o que havia acontecido entre eles, que podia ouvir o eco daqueles gritos que ela deu durante a noite, que ela estava vermelha e óbvia. – Lily e eu não iremos com vocês esta noite. – Ele disse naquele jeito distante que fazia de Rafael um diretor-executivo de tanto brilhantismo. – Ela está tendo algumas contrações, e é melhor que mantenha os pés elevados. – Ela está bem? – perguntou Kathryn, franzindo o cenho. – Não é um pouco cedo para contrações? – E então, arrependeuse, quando dois pares de olhos especulativos se fixaram nela. Ela forçou um sorriso. – Desculpem-me. Eu não tenho permissão de perguntar, agora que sou meramente uma funcionária de Castelli Wine? – Não – respondeu Luca, imediatamente. – Isso me leva a questionar os seus motivos.


– Você os questionaria, de qualquer forma – replicou ela, suavemente, sem olhá-lo. – Pelo que posso perceber, esse é seu passatempo favorito. Rafael sorriu, e Kathryn não gostou do jeito como ele sorriu. – Lily está bem, Kathryn. Obrigado por perguntar. Isso não é particularmente preocupante, mas o médico prefere que ela evite ficar muitas horas de pé por alguns dias, o que significa que outro evento de trabalho seria demais. Ele direcionou aquele sorriso para o irmão, então, e Kathryn percebeu Luca se mexendo em seu lugar do outro lado da mesa. Assim como percebeu o olhar analítico de Rafael, ainda parado junto à porta. – Mas parece que você tem tudo sob total controle, como sempre, irmão. Deixo isso em suas mãos.


CAPÍTULO 7

NO MEIO do jantar formal luxuoso em um dos salões privados da vinícola erguida sobre uma vertente, cada prato, copo e comida arranjados como uma coreografia de um balé refinado, Luca sentia-se tão furioso que não tinha ideia de como se manteve em seu assento. Disse a si mesmo que aquilo não era fúria. Ou não deveria ser. Que Kathryn estava apenas fazendo o que sempre fazia e o que sempre faria, e não havia sentido em reagir àquilo... Mas isso não ajudou. Toda vez que a risada musical dela vinha do outro lado da mesa, ele ficava tenso. Toda vez que o homem grisalho à esquerda dela a tocava, Luca pensava que fumaça sairia de suas orelhas. Uma coisa era saber que era isso que ela fazia. Que Kathryn, sem dúvida, selecionava candidatos em potencial para o futuro, onde quer que ela fosse. Ele nunca esperou nada menos. Entretanto, testemunhá-la em ação era algo bem diferente. Particularmente quando ainda podia senti-la. Ainda podia ouvir aqueles gritos em seus ouvidos. Ainda podia sentir o gosto dela, o botão rijo do mamilo e aquela umidade quente abaixo.


Luca não se lembrava das conversas que teve com as pessoas sentadas de cada lado seu. Quando o jantar infinito terminou e ele pôde, finalmente, ir embora, escoltou Kathryn para o carro deles, com uma das mãos que era, ele tinha de admitir, talvez um pouco insistente demais contra as costas dela. – Esta é uma tentativa de cavalheirismo ou de mostrar sua autoridade? – perguntou ela num sussurro, o sorriso ainda nos lábios, mesmo do lado de fora, no escuro, onde não havia ninguém para vê-la, exceto ele. Luca queria enterrar os dedos sob aquela fachada de Kathryn e ver o que ela escondia por baixo. Tudo que ele queria era errado. E perigoso. Ele segurou a porta aberta da limusine, de modo que ela entrasse, assentindo com um gesto de cabeça para o motorista. Então, seguiu-a para dentro do veículo, não se esforçando em ficar do seu próprio lado do banco largo, quando bateu a porta. Kathryn estava mexendo dentro de sua bolsa. Ao senti-lo se aproximar, ela olhou para ele, então congelou. – Qual é o problema? – perguntou ela. O mais leve franzido se formou entre as sobrancelhas delicadas, onde a franja de Kathryn quase tocava os olhos, e enlouqueceu-o com aquele mesmo desejo intenso que Luca estava achando cada vez mais impossível de controlar. Assim como parecia não conseguir mais se controlar. – O que aconteceu? – Você me diz. Ele sentia-se mais do que um pouco louco, esparramado ali ao lado dela, muito perto, porém, não a tocando. Seu sangue pulsava pelo corpo rápido demais. Seu coração parecia prestes a sair do peito. Ele estava se segurando por um fio.


A expressão de Kathryn tornou-se mais intrigada, o que era, pelo menos, melhor do que aquele bendito sorriso. – Eu não sei, Luca. Achei que tudo correu bem. Não tenho certeza do que você queria dessa reunião, mas tive a impressão de que todos os vinicultores nos dois vales estão impressionados com seus vinhos. O que mais você pode pedir? Pela primeira vez na vida, Luca não se importava nem um pouco sobre vinho, ou sobre qualquer aspecto relacionado a vinhos ou negócios. – Eu poderia pedir que, quando nós estamos conduzindo negócios, você tentasse manter sua mente nisso – disse ele, em tom de acusação, nem mesmo tentando esconder seu ultraje. – E não em criar sua armadilha para sua próxima vítima. Os olhos acinzentados esfriaram. – Sobre o que você está falando? – Você não foi particularmente sutil – retrucou ele, quando o carro começou a se mover, indo em direção à estrada principal e às montanhas ao Oeste. – Todos à mesa puderam vê-la se jogando sobre aquele pobre homem e fazendo seus joguinhos com ele. – E por joguinhos, presumo que queira dizer o trabalho que você e eu estávamos lá para fazer? Que eu estava fazendo, enquanto você remoía seu mau-humor? – Você passou um longo tempo no banheiro antes da sobremesa – continuou Luca, não se importando que pudesse ver o efeito de seu tom duro no jeito como Kathryn tremia de leve. – O que será que você estava fazendo? Seu alvo também desapareceu por uma quantidade similar de tempo. E só Deus


sabe o que vocês estavam fazendo debaixo da mesa, onde ninguém podia ver. Ele não conseguiu pensar em nada mais. Sabia que a refeição servida era da maior qualidade, e apresentada à perfeição, mas não teve gosto para ele. Kathryn balançou a cabeça, os lábios se comprimindo. – Isso é ridículo. Sem mencionar ofensivo ao extremo. – Os olhos acinzentados brilharam. – É claro, é uma atitude típica sua. Quanto mais horrível, melhor. – E aqui está o que eu me pergunto. – Ele se mexeu, aproximando-se, agigantando-se sobre ela, seu corpo emanando tensão, emanando aquele desejo voraz que Luca não conseguia entender ou controlar. Era isso o que ela fazia com ele: fazia-o perder o controle que ele sempre mantinha sobre si mesmo, sobre sua vida. O que era imperdoável. Talvez por isso Luca moveu seu rosto para muito mais perto do de Kathryn, de modo que ela pudesse sentir sua fúria em cada palavra que ele falasse: – Como uma prostituta de aluguel sela um acordo? De joelhos ou sobre as costas? Isso varia com cada cliente ou você segue uma rotina? Luca não a viu mover-se, o que lhe disse mais sobre sua fixação cega em relação àquilo do que qualquer outra coisa. Sentiu a palma dela contra seu maxilar, ouviu o barulho da bofetada preencher o interior do carro, e viu a fúria nos olhos acinzentados de Kathryn. A dor veio um momento depois, intensa e rápida. – Você é um homem vil. – Ela o acusou, e ele não discordou. – A única coisa mais desprezível do que sua imaginação é o fato


de que acha que pode jogá-la sobre mim quando lhe dá vontade, como uma bomba tóxica. Luca riu, um som mais sombrio do que a noite do lado de fora do carro, e testou seu maxilar com a mão. – Isso realmente doeu. – Ele a fitou, notando que ela claramente tremia de raiva. – É aqui que você brinca de virgem ultrajada e ofendida? Eu devo lhe dizer, Kathryn. Você não é uma atriz tão boa assim. Ela empalideceu. Ele achou que ela pudesse explodir, mas Kathryn pressionou os lábios, em vez disso. Então levantou uma das mãos, e Luca pensou que, talvez, ela tentasse esbofeteá-lo de novo... e a palavra operativa era tentasse... mas ela apenas pôs a mão no pescoço. Como se quisesse controlar sua própria pulsação. Ou sua própria respiração, a qual estava ofegante. Ou a si mesma. E Luca não sabia o que fazer com a ideia que lhe ocorreu subitamente, que talvez ela se encontrasse tão descontrolada no meio dessa confusão quanto ele claramente estava. – Se você me bater de novo – disse ele, suavemente –, eu devolverei o favor. – Você vai me bater? – Os olhos dela pareciam tristes no escuro. – Ainda bem que seu pai está morto, Luca. Ele teria ficado horrorizado com você. Ele ignorou a pequena onda do que parecia vergonha o preenchendo, mesmo quando esta causou um nó em seu âmago. – Vamos ser muito claros sobre isso – murmurou Luca, e estava ciente, num nível distante, de que a fúria que o havia dominado durante o jantar havia diminuído. Ele não se perguntou por quê. – O inferno irá congelar antes que eu me


preocupe com o que meu pai, entre todas as pessoas, pudesse ter pensado sobre qualquer coisa que eu falo. Muito menos com o que você pensa. Esse é o equivalente moral de aceitar sermões de bom comportamento do próprio demônio. – Ele a estudou nos confins do banco traseiro do carro, onde ainda invadia muito o espaço de Kathryn, e ainda não era o bastante. Nem de perto. – Mas eu não bato em mulheres. Nem mesmo quando elas me batem primeiro. Kathryn teve a graça de parecer envergonhada diante daquilo, e abaixou o olhar para a própria mão. Ela flexionou os dedos na sua frente, e ele se perguntou se a palma delicada havia doído tanto quanto seu queixo. A ideia não fez o nó em seu interior se afrouxar. Luca estendeu o braço e pegou a mão de Kathryn na sua, segurando-a quando ela tentou puxá-la de volta. Ele ignorou quando ela arfou, e moveu os dedos sobre a pequena palma, como se estivesse traçando-a. Como se quisesse tirar a dor dali. Como se não soubesse que diabos queria. – Bata-me outra vez, Kathryn – disse ele numa voz baixa, olhando para a mão, em vez de para o rosto, dela –, e eu entenderei isso como um convite para terminarmos o que começamos ontem à noite. Não importa quantos homens velhos você fez dançar de acordo com sua música à mesa do jantar. Não importa quem você está fingindo ser esta noite. Os dedos de Kathryn se curvaram, como se ela quisesse fechar a mão em punho. – Eu não estou fingindo ser ninguém – disse ela. – A única pessoa fazendo um jogo aqui é você. E nunca haverá um convite


para terminar qualquer coisa. Aquilo foi uma aberração. Um erro horrível. Eu não tenho ideia por que aconteceu e... – Não tem? Ele não pretendeu fazer essa pergunta, mas, uma vez que ela saiu, pareceu pairar entre eles, ameaçando tudo. Causando uma pulsação tão forte dentro de Luca que se tornou indistinguível das batidas de seu coração. – Não – sussurrou ela, mas os olhos acinzentados estavam muito grandes e muito escuros. A linda boca tremia com a mentira ali. E ele podia sentir o tremor, que ela lutava para reprimir, na mão que segurava entre as suas. – Eu não tenho ideia do que você está falando. Nunca tenho. E Luca sorriu. – Deixe-me lhe esclarecer algumas coisas. Ele soltou a mão e estendeu os braços para a cintura dela, erguendo-a do assento e posicionando-a no seu colo. Ouviu-a arfar quando ela se acomodou contra ele, as pernas para um lado. Então abaixou a cabeça e tomou a boca de Kathryn com a sua. Mais uma vez, aquele fogo louco. Mais uma vez, aquele desejo voraz querendo queimá-lo vivo. Tão ardente e selvagem como se eles ainda estivessem na cama dela. Como se nunca tivessem saído de lá, nunca tivessem parado. E Kathryn não lutou contra ele. Não fingiu. Luca a sentiu entregando-se ao desejo feroz que pulsava entre eles, sentiu-a se rendendo. Ela envolveu seu pescoço nos braços, como se não pudesse se controlar mais do que ele, então abriu a boca e correspondeu ao


beijo. E Luca perdeu o rumo de tudo. Esqueceu que estava tentando provar um ponto. Que eles estavam no banco traseiro de um carro em movimento. Que ela era a última mulher na face da Terra que ele deveria estar tocando. Que não deveria, em hipótese alguma, estar fazendo aquilo. Ele simplesmente perdeu-se na perfeição da boca de Kathryn. No calor doce com o qual ela o beijava e entrelaçava os dedos em seu cabelo. O peso do corpo delgado contra o seu, e o puro desespero no modo como eles se uniam. Mas aquilo não era o bastante. Luca gemeu contra a boca deleitosa, e ela se mexeu contra ele, como se estivesse em chamas, a curva feminina do quadril colidindo contra seu sexo dolorido. E Luca parou de fingir que tinha qualquer controle no que dizia respeito àquela mulher. Ele levantou o vestido que ela usava e a mudou de posição, colocando-a de pernas abertas em seu colo, e quase atingiu o clímax quando Kathryn gemeu dentro de sua boca, enquanto sua parte mais suave fez contato com a masculinidade. Luca podia senti-la tremer, ou talvez fosse ele, tão perdido naquela insanidade quanto ela. Não havia controle. E a parte mais assustadora era que Luca não se importava mais pela falta deste. Não havia nada, exceto suas mãos enterradas no cabelo dela e o encontro erótico de suas bocas. Ele podia sentir a umidade quente de Kathryn contra si, ciente de que apenas o tecido de


sua calça e da calcinha que ela usava os separavam. Deixou que o desejo glorioso se construísse. Não havia nada, exceto o gosto de Kathryn, tão viciante em sua língua. Ela o cercava, mais linda, com o vestido enrolado na cintura e o cabelo soltando do nó elegante, do que qualquer outra mulher que ele já tinha visto. Mais linda do que qualquer coisa. E Luca pegou-se murmurando coisas que não deveria dizer em voz alta, mesmo que estivesse falando em italiano: – Tu sei mia. – Você é minha. Ele não sabia de onde tinha vindo aquilo, que diabos estava fazendo. Por que falava aquelas coisas do fundo do seu coração, quando não deveria. Quando não poderia. Mas descobriu que não importava, naquele momento. Preencheu suas mãos com as curvas firmes do traseiro dela e guiou-a contra si num ritmo carnal, até que Kathryn inclinou a cabeça para trás e gemeu. Então ele fez aquilo com mais força, observando-a enquanto ela se balançava contra ele, enlouquecendo-o, deixando-o tão excitado que beirava a dor. Luca deslizou a mão do incrível traseiro para frente, encontrando o calor feminino através da barreira da calcinha. – Olhe para mim, Kathryn – ordenou ele, a voz pouco mais que um gemido. Ela obedeceu. E os olhos acinzentados estavam grandes. Brilhando com desejo. Os lábios dela estavam entreabertos, e as faces coradas. Luca experimentou uma emoção que não podia nomear, embora não pudesse fingir que não a sentia. Apenas


sabia que não era mais o mesmo homem que tinha sido cinco minutos atrás. Só havia Kathryn, montada sobre ele, os lindos olhos presos aos seus. E há isso, pensou ele, deslizando as mãos para dentro da calcinha, achando a parte mais sensível dela e pressionando com movimentos seguros e firmes. Ela tombou contra ele quando o prazer a inundou, emitindo gemidos baixos e enterrando os dedos nos seus ombros, a cabeça inclinada para trás e as costas adoráveis arqueadas. E tudo mudou novamente, mas, desta vez, toda a voracidade, a consciência corporal e todo o desejo estavam concentrados em seu sexo. Luca precisava estar dentro dela. Agora. Ela ainda estava tremendo, ainda sentada de pernas abertas sobre ele. Ainda ofegando, quando se inclinou para frente até que pudesse descansar a testa em seu ombro. E agora, além de sentir os pequenos ofegos, Luca podia também ouvi-los, e, de alguma forma, isso tornou tudo mais excitante. Mais louco. Melhor. Ele levou a mão entre os dois, impressionado ao descobrir que sua mão não estava firme, quando finalmente conseguiu se livrar da calça. Kathryn estava relaxada agora, ainda tremendo e arfando, e ele simplesmente puxou a calcinha para um lado e alinhou-se à entrada feminina. O calor era tão intenso ali que quase o levou ao clímax. Luca pensou ter praguejado em italiano, ou talvez fosse uma prece. Ela estava molhada e pronta, e ele não se importava onde mais ela esteve e com quem. Não se importava por quê. Não se


importava com nada, exceto com o jeito como Kathryn se encaixava em seus braços, no seu colo. Tinha passado dois anos de pura tortura com aquela mulher; podia admitir agora, quando a verdade parecia tão óbvia, finalmente. Luca a quis desde a primeira vez que pôs os olhos nela. Talvez, sempre fosse desejá-la. Mas isso não era algo no que queria pensar. Não agora, quando ela era tudo que ele sempre quis, e estava ali, sobre ele, quente e úmida, e era quase sua. Quase. Ele deslizou as mãos para os quadris de Kathryn, a fim de segurá-la onde a queria. Abriu a boca contra o pescoço elegante, onde podia provar seu gosto. E então, finalmente, penetrou-a. DOÍA. Deus, aquilo doía. Kathryn sentiu alguma coisa se romper, sentiu um grito de agonia querendo rasgar sua garganta, e então não havia nada além do volume dele em seu interior. Enterrado tão profundamente que ela descobriu que não conseguia respirar, não conseguia pensar, não conseguir fazer qualquer coisa, exceto ficar parada ali sobre ele, sentindo a possessão como se ele a estivesse marcando a ferro e fogo. Luca praguejou. Depois de novo, tanto em italiano quanto em inglês, e ela enrugou o rosto, de modo que não chorasse e o mantivesse enterrado no ombro largo, como se pudesse se esconder daquilo.


Como se isso pudesse fazer o peso que sentia em seu interior desaparecer. Mas não funcionou. – Olhe para mim – disse Luca com voz rouca. – Kathryn, endireite o corpo. – Eu não quero. Ele ainda estava enterrado em seu interior, embora não se mexesse. Então, o carro passou por um buraco na estrada e levou-o para mais fundo dentro dela, e Kathryn ouviu o gemido torturado de Luca, como se aquilo também não fosse fácil para ele. E aquele peso irradiou-se de onde a extensão rígida ainda a preenchia, afetando até mesmo seu peito. Como se seu corpo inteiro fosse uma dor gigante. – Endireite o corpo, cucciola mia – murmurou Luca numa voz que ela nunca o ouvira usar antes, num tom mais caloroso e indulgente do que qualquer um que ela associava com ele. – Agora, por favor. E foi a coisa mais difícil que ela já tinha feito: levantar a cabeça, sabendo que ele poderia ver o pânico e a dor em seu rosto. Senti-lo dentro de si, enquanto cuidadosamente mudava de posição. Fitar aqueles olhos escuros, tão perto dos seus, ciente de que ele sabia coisas a seu respeito agora que ela não queria compartilhar. Muitas coisas. Tudo aconteceu tão rapidamente. Ela esteve perdida nas sensações do orgasmo, tremendo e mal conseguindo respirar, e então tinha sido tarde demais. Tarde demais, pensou novamente com o que temeu ser um soluço.


Luca levantou a mão e afastou o cabelo de seu rosto ainda rubro. Kathryn contorceu-se contra aquela intrusão que os conectava tão intimamente, e ele apenas observou-a fazer isso. Ele não se mexeu, embora ela achasse que aquele maxilar forte tivesse enrijecido. – Por que você não me contou? – perguntou ele, com a voz mais baixa que Kathryn já tinha ouvido, e ela não sabia o que fazer daquilo. Não sabia como se sentir. Ela moveu os quadris, pensando que não entendia como as pessoas faziam isso, ou por que, quando não havia posição confortável, e havia muito daquela sensação dolorosa. – Eu não achei que você fosse notar. – Kathryn – disse ele naquela voz estranhamente carinhosa, enquanto polegares fortes roçavam suas têmporas, e seu nome na boca de Luca parecia poesia. – Você passou de prazer para dor num instante. Como eu poderia não ter notado isso? Ela se mexeu de novo, ainda tentando encontrar um jeito de se sentar no colo dele, quando ele estava dentro dela, e desta vez, os olhos de Luca escureceram. Kathryn arfou. O carro passou por outro buraco, e, desta vez, as sensações que decorreram daquela investida involuntária foram diferentes. A dor em seu interior mudou. Foi como se uma faísca tivesse sido acesa, criando algo além da dor. Ela se moveu experimentalmente, então mordeu o lábio inferior quando a sensação diferente se tornou ainda melhor, e observou desejo brilhar nos olhos de Luca. Kathryn sentiu como se o peso e a dor estivessem conectados com todo aquele calor delicioso que parecia passar de Luca para ela.


– Eu não sabia que importaria para você se me machucasse ou não – disse ela, sem pretender falar. As mãos de Luca subiram para segurar seu rosto, e os olhos escuros encontraram os seus. – Importa – respondeu ele com voz rouca. – Você deveria ter me contado. E aquele vazio no interior de Kathryn cresceu, inundando-a como uma onda terrível. Ela não sabia o que era. Apenas sentiu o ardor das lágrimas nos olhos e o pulsar de alguma coisa mais pesada no peito. E Luca ainda enterrado em seu corpo. – Contar para você? – sussurrou ela, porque sua voz a havia abandonado. – Como eu poderia lhe contar? Você não só acha que eu sou uma prostituta. Tem certeza disso. Nunca teve a menor dúvida. – Kathryn. – Você nunca teria acreditado. – Ela só percebeu que suas lágrimas tinham escorrido quando ele secou-as com os polegares, mais gentil com ela do que fazia sentido. – Teria rido na minha cara. Ele não negou aquilo, mas os olhos escureceram ainda mais. Luca puxou o rosto dela para o seu e a beijou, e aquilo foi quase demais, causando uma espécie de curto-circuito no cérebro de Kathryn. – Ah, cucciola mia – murmurou ele, afastando a boca da sua, mas ainda segurando seu rosto entre as mãos, quase como se a achasse muito preciosa. – Eu não estou rindo agora. E então, ele começou a se mover.


CAPÍTULO 8

KATHRYN FICOU tensa, mas Luca se retirou lentamente, então voltou a penetrá-la, com muito mais gentileza, desta vez. Não doeu. A sensação era... estranha, mas melhor do que a dor. – Respire – instruiu Luca daquele jeito mandão que não deveria ter acendido alguma coisa dentro dela, mas que acendeu, de qualquer forma. Ela respirou fundo e exalou o ar, e ele ainda se movia em seu interior. De maneira preguiçosa. Relaxada. Um tipo de balanço fácil. Aos poucos, quase contra sua vontade, Kathryn começou a sentir prazer. Ela o encontrava quando ele investia, movimentava os quadris de um jeito que causava um delicioso calor interno. A boca de Luca se curvou num sorriso, e ela pensou que mais tarde... muito mais tarde... teria de analisar por que aquele sorriso lhe causava tanto prazer. Ele manteve o mesmo ritmo preguiçoso, enquanto a tocava com mãos hábeis. Mãos que deslizaram pelas suas costas, que


testaram o peso dos seus seios através do vestido, ainda enrolado na cintura. Luca alcançou por baixo do tecido e traçou padrões na pele macia de sua barriga, no exterior de suas coxas. Kathryn descobriu-se se movendo mais, rolando os quadris e testando a profundidade das investidas dele. Isso levou o centro de seu sexo contra ele, e excitou-a, fazendo-a tremer. Ela tentou movimentos diferentes, se contorcendo contra ele, se balançando dentro dele, e Luca lhe permitiu fazer experiências, apenas as pálpebras pesadas e o leve rubor no rosto indicando que ele sentia o mesmo fogo que ela. E, de forma lenta e inevitável, ela esqueceu que alguma coisa havia doído em algum momento. Não havia nada, exceto o calor brilhante que se expandia pelo seu corpo quanto mais ele a preenchia. Havia uma sensação enorme e assustadora em seu interior, e Kathryn não sabia o que queria mais: esconder-se daquilo ou se jogar diretamente em seu centro. De qualquer forma, não importava, porque Luca emitiu uma risada deliciosa, como se soubesse exatamente como Kathryn se sentia, e assumiu o controle. Ele tomou-a na boca num beijo profundo e infinito, então aumentou o ritmo das investidas, tornando tudo mais louco e intenso. E ela não conseguia... – Você consegue – murmurou ele contra sua boca, e Kathryn percebeu que havia falado aquilo em voz alta. – Você vai conseguir. E Luca se mexeu sob ela, então deslizou dedos hábeis para o lugar onde eles se uniam, e massageou ali.


A próxima vez que ele investiu, ela implodiu. Um estremecimento brilhante pareceu rasgar a alma de seu corpo e despedaçá-la inteira. Ela ouviu Luca gemer seu nome, a boca sensual contra seu pescoço, e então ele caiu do mesmo penhasco ao seu lado. E, por um longo tempo, isso era tudo que havia. Quando Kathryn voltou à realidade, ainda estava sentada em cima dele, e o carro estava diminuindo a velocidade para entrar no vinhedo dos Castelli. Ela saiu do colo de Luca, sentindo a perda da extensão rija em seu interior como um golpe. O que a deixou ainda mais sem graça, enquanto arrumava o vestido no lugar. Ainda mais... desequilibrada. Ele não falou. Ela não ousou olhá-lo. Ouviu-o fechar o zíper da calça, e então, havia o longo trajeto pela estradinha até o château para suportar no silêncio pesado. Kathryn experimentou muitas sensações, pensou muitas coisas, todas elas atingindo-a como ventos fortes, mas não podia se permitir fazer isso. Não enquanto ele ainda estava ao seu lado, tão másculo e duro, agora inteiramente diferente do homem que tinha sido uma hora atrás. Ela não queria mudar. Não queria a mudança. Não entendia como simplesmente havia se rendido a ele, quando tinha 25 anos e nenhuma vontade de se entregar a ninguém durante toda sua vida. – Você é bonita demais. – Sua mãe havia falado quando Kathryn estava com 13 anos, com uma expressão que dizia que aquilo não era uma coisa positiva. – Espero que isso não a torne preguiçosa. Beleza não é nada mais do que uma sentença de


prisão. Lembre-se dessa verdade antes de deixar que isso lhe suba à cabeça. E Kathryn tentou. Tinha se enterrado nos estudos. Fugido das menores insinuações de interesse masculino, ou mesmo de amizades com garotas que levavam vidas sociais ativas, para não ficar tentada a acompanhá-las. Ela fazia todo o possível para provar à mãe que sua aparência física não era uma fraqueza, que podia tirar vantagem dos presentes que Rose lhe dava, com todas as suas economias e trabalho duro. Mas Rose nunca ficou convencida. – Eles lhe farão uma armadilha, se puderem. – Ela repetiu tal aviso para Kathryn diversas vezes ao longo de sua adolescência. – Dirão que é amor. Não existe isso, minha garota. Há apenas homens que deixarão você e os bebês que precisarão ser criados, depois que eles forem embora. Uma garota bonita como você será escolha fácil. E Kathryn decidiu que não seria isso. Mesmo na faculdade, ela havia sido boa em se manter à parte, em se manter segura. Não queria namorados, nem amigos do sexo masculino, que poderiam manipulá-la, quando suas defesas estivessem baixas. Kathryn evitava qualquer cenário que pudesse levar a diminuição de inibição ou ao perigo. Não ia a pubs com suas colegas. Não ia a festas. Mantinha-se em sua própria pequena torre, trancada seguramente, onde ninguém poderia tocá-la, arruiná-la ou torná-la uma decepção para sua mãe, que havia lutado tanto para tornar sua vida possível. Durante todo o tempo, pensou Kathryn agora, quando a limusine parou diante da grande entrada do château, Rose esteve certa. Aquela era realmente uma rampa escorregadia, na qual


Kathryn tinha mergulhado de cabeça. Um único trajeto de carro com um homem que a desprezava, e ela havia violado a moral que a definiu sua vida inteira. Tornou-se exatamente o que Luca sempre a acusava de ser, o que Rose sempre insinuava que ela seria algum dia, Kathryn gostasse disso ou não. O mundo inteiro estava diferente. Ela estava diferente. E não tinha a menor ideia do que isso significava ou de como lidar com a situação. O motorista abriu a porta, e Kathryn desceu rapidamente demais, chocada quando sentiu desconforto em lugares não familiares. Ela poderia ter caído, mas Luca estava lá, segurandoa pelo braço, como se antecipasse aquilo. Mantendo-a firme. Embora ainda não falasse uma palavra. Kathryn puxou o braço, ciente de que ele lhe permitiu fazer isso, e sentiu uma onda de embaraço inundá-la. Não podia ler a expressão no rosto de Luca, fazendo-o parecer feito de granito, na luz que vinha das janelas do château e da lua acima. Não podia imaginar como estava sua própria aparência: amassada e descabelada, usada e alterada, como uma propaganda ambulante de néon pelo que ela acabava de fazer. Aquilo estava escrito em seu rosto? O mundo inteiro seria capaz de ver o que havia acontecido naquele carro? O que havia permitido que ele fizesse? A ideia a deixou em pânico. Ela praticamente correu degraus acima e passou pela porta aberta, aliviada que não havia sinal de alguém por perto. Está tudo bem, disse a si mesma, apesar de não acreditar nisso. Apesar de poder ouvir o zumbido de pânico dentro de sua cabeça. Tudo está perfeitamente bem.


Dentro do foyer elegante, ela forçou-se a diminuir o ritmo dos passos. Estava consciente de que Luca a seguia, mas disse a si mesma para ignorá-lo. Fingir que ele não estava lá. Forçou-se a andar, não correr. Subiu a escadaria, e então seguiu o corredor que levava à ala da família. Caminhou para o final do château, e, finalmente, pôde ver a porta de seu próprio quarto. Não via a hora de entrar lá e... respirar. Ela tomaria outro banho longo, lavaria tudo aquilo. Depois, se curvaria em posição fetal e não se permitiria chorar. Não se permitiria. Luca chamou seu nome quando ela finalmente chegou à porta, quando ela estava com a mão na maçaneta e tão perto... E Kathryn não queria isso. Não queria ouvir nada que ele tivesse a dizer. Qualquer termo novo e criativo que ele usasse para chamá-la de prostituta e fazê-la se sentir como uma. Mas queria ainda menos que ele soubesse o quanto ela era frágil, então, virou-se e o encarou. Luca estava muito perto, os olhos escuros brilhando, uma expressão que ela não podia identificar no rosto lindo. Kathryn desejou que ele não fosse tão maravilhoso. Imaginava que isso tornaria as coisas mais fáceis, talvez dissipando o aperto em seu coração mais rapidamente. Ela deveria falar alguma coisa; sabia que deveria. Mas parecia incapaz de fazer sua boca funcionar. – Aonde você vai, cucciola mia? – perguntou ele, suavemente. Ela o detestava, disse a si mesma. Pior do que os insultos de Luca era aquela suavidade que ela não conseguia entender. – Eu não sei o que isso significa. Não falo italiano.


A boca dele se curvou naquele sorriso novamente, e os olhos escuros eram muito intensos. Luca estendeu o braço e pôs uma mecha de cabelo atrás da orelha dela, e Kathryn sabia que ele sentia que a fazia tremer. E perder o fôlego. – Suponho que significa minha querida, ou alguma coisa parecida – respondeu Luca, como se não tivesse considerado aquilo até aquele momento. E a verdadeira traição era o calor que se espalhou pelo corpo de Kathryn com aquilo, como se fosse a risada de Luca, engarrafada, a luz do sol em forma líquida penetrando-a. Porque, quando detestável, ele já era perigoso o bastante. Kathryn pensou que aquele outro lado dele, o qual teria chamado de amoroso, se fosse em qualquer outra pessoa, poderia matá-la. Sua garganta parecia inchada. Arranhada. Era por causa dos gemidos que emitiu dentro daquele carro, sobre os quais não podia se permitir pensar? Ou porque estava reprimindo o choro? Ela não sabia. Mas forçou-se a falar, de qualquer maneira: – Eu não quero ser sua querida. O sorriso de Luca se aprofundou. – Não sei se isso depende de você. Kathryn sentiu-se irrequieta. Nervosa. Como se estivesse prestes a explodir. Ou gritar. Ou simplesmente cair no chão... E ele parecia contente em ficar ali de pé para sempre, vendo expressões em seu rosto que ela preferia esconder. Ela o fitou com seriedade. – Eu não sei o que você quer de mim. Então, quando Luca estendeu as mãos, segurou-a pelos ombros e puxou-a para seus braços, ela se derreteu. Que Deus a


ajudasse, mas ela simplesmente... entregou-se ao calor e à força que a envolviam como algum tipo de bênção. – Venha – disse ele, baixinho, soltando-a. – Eu lhe mostrarei. Kathryn sabia o que precisava fazer. O que sua mãe esperaria que ela fizesse. Uma escorregadela tinha sido ruim o bastante. Um erro terrível. Ainda havia tempo para se salvar. Ainda havia a possibilidade de considerar aquela noite uma batalha perdida, e prosseguir para ganhar a guerra, certamente. Ela precisava apenas se afastar de Luca, entrar no seu quarto e trancá-lo do lado de fora, de modo que pudesse se recompor. Mas não conseguiu fazer isso. E quando Luca abriu a porta do próprio quarto e estendeu a mão, como se soubesse exatamente que batalhas ela estava travando, e, mais do que isso, como vencê-las, Kathryn ignorou o grande tumulto interior e pegou a mão dele. LUCA NÃO sabia como dar sentido a tudo aquilo. E aquela expressão perdida nos olhos acinzentados era demais para ele. Havia um milhão de perguntas que ele não fez. Tinha a sensação de que algo que não queria examinar o aguardava. Não aquela noite, quando descobriu que Kathryn era tão inocente quanto às vezes parecia. Não importava como ou por quê. Até mesmo o assunto do casamento dela com seu pai poderia esperar. O que importava, o que o atingia com uma pulsação que acelerava a cada respiração, era que, independentemente do que mais tinha acontecido, dos jogos que ela havia feito ou ainda estava fazendo, independentemente do que estava acontecendo naquela noite californiana, ela era sua.


Sua. Luca não queria se questionar sobre isso. Sobre o motivo pelo qual aquela onda de possessão o dominava, como se ela o tivesse marcado com o presente inesperado de sua inocência. Ele sabia apenas que ela era sua. Somente sua. E Luca não havia acabado com ela. Nem de perto. Ela pôs a mão na sua e deixou-o conduzi-la para o quarto dele, e não havia razão em particular para seu coração estar batendo tão freneticamente. Mas estava. O fato de ter tão pouco controle no que dizia respeito àquela mulher deveria horrorizá-lo, mas por aquela noite, ele não se importava. Sem pressa, parou-a aos pés da grande cama plataforma e despiu-a lentamente, não deixando que ela o ajudasse. Tirou seus sapatos. Encontrou o zíper lateral no corpete do vestido e desceu-o, depois tirou a peça inteira pela cabeça dela. Abriu o fecho do sutiã e permitiu que este caísse no chão com o resto das roupas. Quando ela estava diante dele apenas de calcinha e com aquele olhar incerto que ele pensou pudesse matá-lo, Luca entrelaçou os dedos no cabelo dela. Soltou as mechas que permaneciam presas ao penteado que ela havia usado no jantar, e deslizou as mãos por elas, confortando ambos. E somente quando ela soltou o ar que provavelmente nem sabia que estava prendendo, ele acabou de despi-la, deslizando a calcinha pelos quadris e pelas pernas perfeitamente formadas. Luca se permitiu olhá-la por um longo tempo, cedendo a um traço possessivo que desconhecia possuir. Porque nunca havia sentido nada como isso antes daquela noite. Removeu o paletó e os sapatos. Continuou olhando-a, deixando que a incrível beleza


dela fosse impressa em seu interior. Cada parte de Kathryn era adorável, tão perfeita que a visão lhe causou desejo e alarme em medidas iguais. Luca ergueu-a nos braços e carregou-a para o banheiro da suíte. Colocou-a do lado da banheira e abriu a torneira, jogando um punhado de sais de banho na água que começava a encher o recipiente. – Nós vamos tomar um banho? – A voz foi trêmula e ela enrubesceu; Luca entendeu que aquela era uma Kathryn que ele nunca tinha visto antes, uma criatura insegura que, de súbito, parecia muito mais jovem e mais vulnerável para ele. Ou esta sempre foi Kathryn, uma voz interna sugeriu, mais aguda do que era confortável. E você não foi nada além de um patife. Ele reprimiu o pensamento. Haveria tempo suficiente para abordar a grande confusão que o esperava com o amanhecer. Naquela noite, era sobre isto. Naquela noite, era sobre ela. Em vez de responder a pergunta de Kathryn, ele despiu-se, observando-a corar mais. Luca estava fascinado. Hipnotizado por aquele rubor que ia das lindas faces até o pescoço elegante, tornando o peito dela rosado, num tom um pouco mais claro do que os bicos dos seios. Ele queria deleitar-se nela. Quando estavam ambos nus, Luca conduziu-a para dentro da água quente, acomodando-a na sua frente e entre suas pernas, com as costas para ele. Pegou o volume do cabelo grosso e escuro e fez um novo nó, empilhando-o no topo da cabeça dela, antes de envolver os braços ao redor de Kathryn e segurá-la contra si.


Não se permitiu pensar sobre coisa alguma. Apenas na perfeição do corpo dela contra o seu. No deslize sedoso da água acariciando-os. Ele esperou que ela relaxasse, e até mesmo suspirasse. Somente então começou a lavá-la. Sem pressa, tocou-a em todos os lugares, guardando o calor escorregadio entre as pernas dela por último, e uma onda de satisfação o inundou quando Kathryn emitiu um gemido de desejo em reação ao seu toque. Apenas quando teve certeza absoluta de que ela havia relaxado completamente, Luca terminou, levantando-a e enxugando-a, então carregando-a de volta para o quarto e colocando-a em sua cama, finalmente. Os olhos de Kathryn nunca deixaram os seus, grandes e quase verdes, e ele a conheceu, naquela noite. Sabia o que o leve tremor no corpo dela significava. Como Kathryn corava quando ele começava a subir pelo seu corpo. E quando Luca estava totalmente estendido acima dela, pele com pele, explorou-a outra vez. Com as mãos, com a boca. Com a língua e com os dentes. Ela lhe deu alguma coisa que ele mal podia entender, e foi assim que Luca expressou sua gratidão. Seu fascínio. Todas as coisas em seu interior que ele não queria examinar. Trabalhou-as contra o corpo deleitoso, centímetro por centímetro perfeito. Kathryn arqueou-se sob ele, e Luca brincou com os seios incríveis. Ela se balançou contra ele, e ele traçou cada músculo e cada curva do corpo delgado, tornando-a sua. Inteira sua. E desta nova vez, quando Luca a preencheu, ela estava suave, trêmula e pronta para ele. Ela gritou seu nome.


Luca estabeleceu um ritmo mais intenso, perdido na sensação gloriosa dos quadris femininos batendo contra os seus. Construiu o prazer, a fez soluçar. E então, jogou-a diretamente daquele penhasco para dentro do êxtase glorioso. Uma vez, depois outra. E somente então, quando ela estava abalada por dois orgasmos, os olhos preenchidos com ele e nada mais, Luca a seguiu e liberou seu próprio prazer.


CAPÍTULO 9

NÃO FOI até a manhã seguinte... Depois que Luca acordou para descobrir que nada da noite anterior tinha sido um dos sonhos detalhados que ele teve com Kathryn ao longo dos últimos dois anos, porque ela ainda estava lá, deitada ao seu lado e totalmente irresistível, foi quando ele se permitiu pensar sobre o que a inocência dela significava. Primeiro, ele rolou sobre ela, instantaneamente desperto e tão excitado quanto se nunca a tivesse tido. Kathryn acordou um momento depois, e ele viu os olhos acinzentados passarem de sonolentos para desejosos, em segundos. Então, ele prendeu suas mãos acima da cabeça e se acomodou entre as coxas delgadas. Expressou seus sentimentos nos seios sensíveis, até que ela começou a arfar e se contorcer, e então Luca a preencheu mais uma vez, perdendo-se em toda aquela doçura quente. E ouviu-a sussurrar seu nome quando Kathryn convulsionouse à sua volta. Com esforço, conseguiu se controlar no banho que eles compartilharam, e talvez o fato de que isso fosse muito mais


difícil do que deveria ter sido fez seu cérebro voltar a funcionar. Kathryn estava se vestindo, a cabeça abaixada e uma expressão no rosto que ele não gostou. Luca estava junto à porta do banheiro, com apenas uma toalha em volta dos quadris, observando-a, ciente de que não deveria sentir nenhuma daquelas sensações. Conhecia a expressão que ela usava. Geralmente, gostava quando as mulheres com quem dormia lhe mostravam essa indiferença em particular, porque isso significava que planejavam ir embora sem dramas. E rapidamente. Ele não queria que Kathryn fosse embora. Queria-a bem ali, e não se importava quão louco era isso. Quão insana era a situação inteira. Que ninguém, exceto ele – que ninguém, especialmente ele – acreditaria que Santa Kate tinha sido virgem até agora. – Kathryn. – Ao ouvir seu nome, ela o fitou com olhos cautelosos. – Por que você se casou com ele? Ela pressionou os lábios daquele jeito que ele não deveria achar tão fascinante. Puxou o sutiã para o lugar e abaixou-se para pegar o vestido amassado. Luca pegou sua própria camisa descartada e olhou para ela, observando os olhos de Kathryn se arregalarem enquanto ele se aproximava. Os lábios sensuais se entreabriram, como se ela precisasse de mais ar, e Luca não podia fingir que não gostava daquilo. Gostava até demais. O pequeno corpo, naquele conjunto de lingerie de seda que realçava partes que o atormentavam. As marcas leves da boca dele, de seu maxilar não barbeado. Ele era uma criatura primitiva, entendeu então, embora nunca tivesse


pensado em si mesmo nesses termos, antes. No que dizia respeito a Kathryn, ele não passava de um animal. Luca apreciava sua marca nela. Tanto que quase doía. Ele colocou sua camisa em volta dos ombros dela, então, enfiou seus braços nas mangas. Depois, abotoou-a sem pressa, observando a camisa que era muito grande para Kathryn, mas que era, de alguma maneira, outra marca. – Você vai me responder? – insistiu ele, enquanto enrolava as mangas longas demais da camisa. Kathryn engoliu em seco, os olhos mudando de cor novamente, para aquele tom esverdeado que significava que ela estava excitada. Ótimo, pensou ele. Luca sabia que ficaria sempre excitado na presença dela agora. Na verdade, sempre ficava. Mas ela piscou e deu um suspiro trêmulo. – Ele disse que poderia ajudar – respondeu ela, afastando-se dele, e a visão de Kathryn em sua camisa teve um efeito em Luca que ele não conseguia explicar. Não queria explicar. Essas coisas apenas se instalaram em seu interior, como luz. – Por que você precisava de ajuda? Kathryn mordeu o lábio. – Minha mãe era solteira quando me teve – começou ela, e Luca piscou. Ele não sabia o que tinha esperado, mas não era isso. Algo tão... mundano. – Ela nunca esperou aquilo, ou quis ter um bebê, mas lá estava ela, grávida. O parceiro de minha mãe deixou claro que não podia ser incomodado, e, para que não restassem dúvidas, ele mudou-se do país, de modo que ninguém esperasse que ele contribuísse de alguma maneira para a vida de uma criança que não queria. – Ele parece charmoso.


Kathryn sorriu, muito brevemente. – Eu não saberia. Nós nunca nos conhecemos. Luca observou quando ela andou até a cama e sentou-se, com as pernas cruzadas e com a camisa dele rodeando o corpo delgado. O que a fez parecer muito mais frágil. E o fez querer protegê-la, de alguma forma, mesmo contra essa história que ela estava lhe contando. – Minha mãe tinha grandes sonhos – continuou Kathryn, após um momento. – Ela trabalhou tão arduamente para chegar onde estava. Queria uma vida inteira, rica, e, em vez disso, recebeu uma filha para criar, quando realmente poderia fazer algo de si mesma. Alguma coisa no jeito como falou o irritou. Luca franziu o cenho. – Certamente, criar um filho é apenas um tipo diferente de vida rica. Não a falta de uma. Os olhos de Kathryn encontraram os seus por um momento, então baixaram. – Ela trabalhou tão duro para ser bem-sucedida financeiramente, mas não foi capaz de continuar com as horas requeridas, depois que me teve. E, uma vez que deixou o emprego que adorava, num banco de investimento, não podia pagar uma creche, então precisou se virar sozinha. – Kathryn torcia as mãos à sua frente. – Todas as minhas lembranças de minha mãe eram de ela trabalhando. Ela geralmente tinha mais de um emprego, na verdade, de modo que não me faltasse nada. Não se sentia muito orgulhosa de fazer as coisas que outros se recusavam a fazer. Ela ficava de quatro para limpar casas...


qualquer coisa para tornar minha vida melhor, e, apesar de tudo, eu fui um desapontamento terrível. Luca tinha a impressão de que se ele contestasse essa história, se a questionasse... e não entendia porque sentia que essa era uma história que precisava ser contestada, quando, até horas atrás havia sido o maior crítico de Kathryn... ela pararia de falar. Era alguma coisa na linha do queixo dela, na cor tempestuosa dos olhos. Então, ele não disse nada. Meramente trocou sua toalha por uma calça de moletom, antes de cruzar os braços sobre o peito e esperar. Kathryn suspirou. – Ela queria que eu fosse investidora de banco, também. Essa sempre foi a preferência de minha mãe, porque ela podia me ensinar tudo que eu precisava saber, e porque a experiência dela significava que ela poderia me dirigir. – Eu acredito que isso se chama viver através de um filho. Não é a melhor forma de ser pai ou mãe, eu acho. Ela franziu o cenho. – Não neste caso. Eu nunca conseguir ir bem em matemática. Minha mãe tentou me ensinar, mas foi perda de tempo. Não consigo pensar que nem ela. Meu cérebro simplesmente não funciona como o dela. – Meu cérebro não funciona como o do meu irmão – apontou Luca suavemente. – Entretanto, nós nos organizamos, dirigindo uma companhia bem-sucedida, juntos, por algum tempo. – É diferente. – Kathryn deu de ombros. – Eu quase me matei para conseguir um diploma em Economia. Passava horas e horas me torturando com os deveres e trabalhos da faculdade. Mas consegui. Então, fui fazer o curso de Administração de


Empresas, porque era o que minha mãe considerava o melhor caminho em direção a um futuro brilhante. – Ela assoprou, fazendo a franja dançar sobre sua testa. – Mas o curso de Administração era mais torturante ainda. Eu passava horas estudando, mas não era o bastante. Não importava o que eu fizesse, não era suficiente. Kathryn balançou a cabeça, olhando para as próprias mãos, e Luca nunca sentiu tanta vontade de tocar outra pessoa como naquele momento. Ela parecia tão pequena e derrotada, e aquilo causou um nó no seu peito. Ocorreu então que ele nunca a tinha virsto assim. Que ela sempre havia lutado contra ele, mesmo se, às vezes, apenas com a coluna ereta e a cabeça erguida. Mas derrota não era uma palavra que ele associasse a Kathryn antes. Descobriu que detestava isso. Kathryn encontrou seu olhar novamente, então. – E foi quando eu conheci seu pai. Luca mudou de posição e percebeu que estava mal se contendo. Como se ainda tivesse muito pouco controle no que dizia respeito a Kathryn, embora isso não envolvesse sexo. Não poderia dizer que apreciava a sensação. Mas uma confusão de cada vez, pensou ele com raiva. – Ah, sim. Naquela sala de espera, o lugar de nascimento de sua amizade épica. A única amizade que o velho homem teve na vida, pelo que ouvi dizer. – Você me pediu para lhe contar esta história – apontou ela. – Repetiu várias vezes a mesma pergunta. Luca não confiou em si mesmo para falar, mais uma experiência nova no que dizia respeito àquela mulher... e uma


sobre a qual sabia que teria de pensar mais tarde. Inclinou a cabeça, silenciosamente convidando-a a continuar. – Aconteceu como eu lhe contei – disse Kathryn, o olhar reprovador. – Nós começamos a conversar. Seu pai era charmoso. Engraçado. Luca bufou. – Velho. – Talvez nem todos tenham tanto preconceito com a idade quanto você – retrucou ela. Ele passou a mão pelo cabelo, irritado e frustrado em iguais proporções. – É hora da verdade, cucciola mia – murmurou ele. Então, moveu-se antes que soubesse que pretendia fazer isso, atravessando o cômodo para parar na frente dela, aos pés da cama. Ela inclinou o queixo, como se esperasse que ele fosse atacá-la, e o fato de um gesto assim excitá-lo provava que Luca era obviamente muito perverso. Ou talvez, apenas gostasse quando ela lutava. Quando ela o enfrentava. Quando não parecia nem remotamente derrotada. – Eu estou lhe contando a verdade. Não posso fazer nada se essa não é a verdade que você quer ouvir. – Kathryn o encarou, como se a sua proximidade a perturbasse. Ele esperava que sim. Isso os deixaria empatados. – Acho que nós já estabelecemos que você tem uma história de acreditar no que quer acreditar, independentemente de qual possa ser a verdade. Ele sentiu sua boca se curvar em reconhecimento. – Mas isso não é uma questão de inocência. É uma questão de como uma mulher jovem conhece um homem muito mais velho num hospital, de modo que ela não poderia ter fantasias que


houvesse algo viril sobre ele, e decide desposá-lo, de qualquer maneira. Não tenho dúvida de que meu pai a pediu em casamento. Isso foi o que ele sempre fez. Mas o que a levou a aceitar? Kathryn sustentou seu olhar, e Luca não se mexeu. Ele nem piscou, ciente, de alguma maneira, que ela estava tomando uma grande decisão. E ele precisava que fosse a decisão certa. Precisava... e não sabia se queria investigar por que essa necessidade era tão intensa. Após um longo tempo, ela suspirou. – Minha mãe tem artrite severa – explicou Kathryn. – Quando está atacada, mal consegue se mexer. Tinha se tornado muito difícil para ela cuidar de si mesma. – Ela meneou a cabeça, mais como se estivesse espantando uma onda de emoção do que negando alguma coisa. – Eu deveria ter estado lá para ajudá-la, mas entre as aulas da minha faculdade e tudo que eu tinha de estudar para conseguir acompanhar o curso, não conseguia fazer isso direito. Eu morava com ela, e mesmo assim, estava muito complicado. – Ela respirou fundo. – Mas quando minha mãe saiu da consulta no hospital, reconheceu seu pai instantaneamente. Uma coisa levou à outra, e nós três saímos para uma refeição. Luca esperou. – Seu pai era uma pessoa muito fácil de conversar. – Não é um sentimento comum. – Minha mãe contou tudo para ele. Sobre meus esforços com os estudos, sobre sua batalha com artrite. Ele foi muito gentil. – Os olhos acinzentados se tornaram distantes. – No final da noite, ele perguntou se poderia sair comigo... somente comigo... de novo.


– É aí onde eu acho que preciso de esclarecimento – murmurou Luca. – Você saía com muitos homens? – Eu não saía com homens, em absoluto – replicou ela, e ele quase não reconheceu o sentimento feroz de posse, misturado com triunfo, que o assolou. – Mas você saiu com meu pai. Pela primeira vez, ela pareceu desconfortável. – Eu não queria necessariamente sair com ele – disse ela. – Mas ele parecia tão gentil, e tão doce, e não vi mal algum em jantar com ele novamente. Achei que eu estava fazendo uma boa ação. – O que sua mãe achou? Ela não se encolheu, mas ele viu os olhos acinzentados se estreitaram. – Minha mãe sempre se preocupava que eu tinha mais beleza do que bom senso – murmurou Kathryn. – O que, infelizmente, eu provei ser verdade através de meus fracassos nos estudos. – Um diploma em Economia, por definição, não é um fracasso. – Eu precisava me esforçar dez vezes mais que todo mundo, e mesmo assim, passei raspando. – Ela gesticulou uma das mãos no ar. – Mas quando nós conhecemos seu pai, pareceu a oportunidade perfeita de parar de me preocupar com o cérebro e deixar minha boa aparência fazer algum bem, para variar. – O que isso significa? – perguntou Luca entre dentes. – Significou que nós duas sabíamos que ele gostava da minha aparência – respondeu Kathryn, com nervosismo na voz. – E quando saímos sozinhos, ele foi engraçado, gentil e charmoso.


Entretanto, quando me pediu em casamento no terceiro encontro, eu ri. A expressão dela se tornou feroz. Protetora, pensou Luca. – Ele me disse que sabia que era um velho tolo e vaidoso por pensar que uma garota jovem como eu iria querer se prender a um homem como ele. Seu pai sabia que não lhe restava muito tempo de vida. Assegurou-me que tudo que queria era companheirismo, porque não tinha mais o resto nele. Falou que eu era a coisa mais linda que ele já tinha visto em anos, e que não podia pensar numa maneira melhor de partir deste mundo do que ter a mim segurando sua mão. – Ele a bajulou. – Ele precisava de mim – retrucou ela. – Estava velho, com medo e solitário. Contou que tinha filhos dos quais não era próximo, e que não tinha motivos para imaginar que isso mudaria. Seu pai não queria morrer sozinho, Luca. Eu não achei que isso fizesse dele um monstro. Luca sentiu como se tivesse se transformado em pedra. – E foi por isso que você se casou com ele? Por pena? Por bondade de seu coração? Para salvar um homem velho da solidão? Você é uma santa, realmente. – Ela arfou. Luca continuou: – Mas ele era um homem muito rico, Kathryn, e não precisava de santas e piedade. Poderia ter comprado uma frota de enfermeiras para lhe fazer companhia, se fosse isso que ele quisesse para terminar seus dias. Então, eu perguntarei novamente: por que ele comprou você? – Ele não me comprou, Luca. – Ela soou tão furiosa quanto vulnerável. – Ele me salvou.


KATHRYN QUERIA retirar as palavras no momento que as falou. Elas pairaram no ar entre eles, e um silêncio pesado se estendeu. Ela não sabia o que esperava que Luca fizesse, mas não era ficar ali imóvel, olhando-a com intensidade perturbadora, de um jeito que ela entendia de modo diferente, então. A verdade era que ela entendia muitas coisas de modo diferente, então. Seu próprio corpo. O corpo de Luca. As coisas que ele podia fazer com ambos. O que aquela expressão nos olhos dele significava... e mais, o que sempre significou, todos aqueles anos, embora ela nunca tivesse imaginado. Para onde aquilo sempre os levava, para esta loucura entre os dois, que nem mesmo uma noite juntos havia acalmado. Mas Kathryn nunca havia dito essa verdade sobre seu casamento em voz alta, antes. Não sabia bem por que tinha falado agora. – Continue então – murmurou Luca depois do que pareceu séculos. – Explique-me. Ele estava parado ali como algum tipo de deus antigo do julgamento, esculpido e distante, os braços cruzados e a boca comprimida numa linha fina. E não parecia importar que aquela boca esteve em partes do corpo de Kathryn que ela não imaginava pudessem ser tão sensíveis. Que ele a conhecia agora de num jeito que ninguém mais a conhecia. Que ele era a única pessoa do mundo que já esteve dentro dela. Tudo aquilo a deixou tonta. E nada mudava o fato de que ele a encarava como se fosse esculpido de pedra. Ou a compulsão que Kathryn sentia, e não


entendia, de querer lhe dar qualquer coisa que ele pedisse. Qualquer coisa. Até mesmo aquela confissão. – Minha mãe estava radiante – disse ela, a voz fraca, como se sua própria rendição a estivesse sufocando. – Ela ganhou um chalé e enfermeiras 24 horas com o acordo, de modo que nunca mais precisaria trabalhar na vida. A situação com sua mãe tinha sido um pouco mais complicada do que ela ter apenas ficado radiante, pensou Kathryn, embora não soubesse como explicar aquilo para o homem à sua frente. Nem mesmo sabia o pensar sobre aquilo. Depois de todos esses anos. – Ser esposa de um homem como Gianni Castelli é um emprego de período integral. – Rose disse imperiosamente, sentada à mesa da cozinha de seu apartamento precário, com a lista de imóveis do corretor diante de si. Ela não tinha dúvidas de que Kathryn aceitaria a proposta de Gianni. – Irá requerer estudo e prática, é claro, se você quiser fazer disso uma carreira. – Uma carreira? – Kathryn não entendeu. – Ele não está bem, mamãe. É provável que não dure cinco anos. – Você precisa ver isso como um estágio, minha garota. Um passo para coisas maiores e melhores. – Rose a olhava, meneando a cabeça. – Você é muito bonita, não há como negar. E, embora não tenha se provado ser tão inteligente quanto esperávamos, eu imagino que pode ter sucesso nesta área. O único número que precisará conhecer é o tamanho de sua pensão. – Mamãe, eu não sei...


– Ouça-me, Kathryn. – Rose interrompeu, e não aumentou o tom de voz. Não precisava, não quando usava aquele tom seco. – Eu sacrifiquei tudo por você. Trabalhei tanto que fiquei neste estado. E o que nós teríamos feito se Gianni Castelli não tivesse aparecido e se encantado por esse seu rostinho? Você precisa investir nisso. Por mim, se nada mais. A verdade é que você provou ser incapaz para uma carreira em finanças. Como nós pagaremos as contas sem este casamento? – Mas... – Ela sentiu todas as sensações usuais que sempre sentia quando Rose falava assim. Vergonha. Culpa. Desespero por ser tão deficiente. Angústia por não poder corresponder às expectativas de sua mãe. E aquela outra: o fato de não entender por que nada que ela fizesse, por mais que se esforçasse, era bom o bastante. – Não é “nós”, mamãe. Sou eu. Eu tenho de me casar com um homem que não amo... – Amor? Este não é um conto de fadas, Kathryn. É sobre dever e responsabilidade. – Sua mãe agitou as mãos no ar, mostrando os dedos nodosos. – Olhe o que eu fiz comigo mesma por você. Veja como eu me arruinei e joguei fora tudo que era importante para mim. Como quer me recompensar é sobre você e sua consciência. E, colocado daquela maneira, Kathryn não teve escolha. – Parece que sua mãe ficou com a melhor parte da barganha – comentou Luca, levando-a de volta para o presente. – Ela teve o que merecia, depois de tudo que fez por mim – replicou Kathryn, de forma decisiva. – E eu certamente não poderia lhe dar isso. Graças ao seu pai, minha mãe pode viver o resto de seus dias em paz. Ela ganhou isso por merecimento.


Havia certa tensão em Luca sugerindo que ele não concordava, e Kathryn colocou-se instantaneamente na defensiva, mas ele não pressionou o assunto. Inclinou a cabeça para um lado. – E o que você ganhou? – questionou ele. – Como salvar sua mãe salvou você? – Eu pude interromper a faculdade de Administração de Empresas – disse ela apressadamente, e sentiu o calor da admissão inundá-la. – Fui embora e nunca mais precisei voltar, e não importava que estivéssemos usando empréstimo estudantil. Todas as dívidas foram saldadas. Toda aquela luta, todos aqueles anos nunca correspondendo às expectativas foram perdoados, simplesmente porque seu pai queria se casar comigo. E talvez, apenas talvez, ela apreciou umas pequenas férias da submissão aos desejos de sua mãe. Talvez, tivesse gostado de ter alguém a tratando como um tipo de prêmio, para variar. – Kathryn – murmurou Luca, a voz tão gentil que a fez tremer. – Você precisa saber... Mas ela não queria ouvir o que ele ia dizer. Não queria qualquer devastação que podia ver nos olhos dele, iluminados agora com algo muito parecido com compaixão. Kathryn inclinou-se para frente, ajoelhando-se diante dele e jogando as mãos no peito largo de Luca. Ele nem balançou com o impacto. Apenas a estudou. – Ouça – disse Kathryn, consciente de que soava desesperada. – Você pode pensar o que quiser sobre as intenções de seu pai. Mas, para mim, ele foi um sonho que se tornou realidade. Você não precisa gostar disso – acrescentou ao ver a careta de Luca –, mas é a verdade. É um fato.


E ela estava tão perto dele, agora. Tocando-o novamente. Sentindo aquele calor delicioso banhá-la. Mas essa febre ela reconhecia. Kathryn não queria falar sobre seu casamento. Não queria falar sobre as famílias complicadas deles. Não sabia o significado da expressão sombria no rosto de Luca, e não queria saber. Ela tomou a única atitude que sabia tomar. A única atitude que fazia sentido. Inclinou-se mais para frente e pressionou sua boca à dele. E o gesto pareceu simples e tolo, nada como o jeito como ele a havia beijado... e, por um momento que pareceu eterno, Luca ficou apenas ali, como se estivesse perplexo... mas então se moveu. Segurou-a pela nuca e abriu a boca, beijando-a com ardor delicioso e assumindo o controle. Ele a beijou e a beijou. Beijou-a até que ela estivesse se pressionando contra ele, desesperada e selvagem... Porque agora ela sabia o que mais havia. Para onde eles poderiam ir. Todas as coisas mágicas que podiam fazer. Mas Luca se afastou, ainda lhe segurando a nuca, os olhos brilhando. – Você fez isso para me distrair? – perguntou ele, a respiração não muito regular, o que fez um fogo inteiramente distinto ganhar vida dentro de Kathryn. – Sim – respondeu ela. Sentia sua boca inchada, novamente. E, embora usasse a camisa dele, que a cobria mais do que suas próprias roupas, sentia-se nua. Nua, vulnerável e aberta para ele de todas as maneiras. – Essa foi a única razão? – Se possível, a voz de Luca estava ainda mais rouca.


Kathryn levantou as mãos e segurou o rosto dele entre as palmas. E estava tão perto que podia sentir que Luca também tremia. Aquilo a fez sentir como se ela fosse feita de luz. Como se estivesse preenchida com poder. – Você deve ter notado que eu gosto de beijá-lo, Luca – murmurou ela, e sua voz foi solene. Porque, de alguma forma, tudo entre eles havia mudado, e havia algo muito sério nos olhos dele. – Você foi o meu primeiro. – Seu primeiro na cama. Ela esperou, ainda o segurando. Viu o exato momento que Luca entendeu, deixando-o atônito. E então, alguma coisa incrivelmente máscula iluminou-o, fazendo os olhos escuros brilharem. – Cucciola mia – murmurou ele contra seus lábios. – Acho que podemos nos matar. E então, ele empurrou-a deitada na cama e mostrou exatamente o que queria dizer.


CAPÍTULO 10

UMA

depois, eles concluíram seus negócios na Califórnia e voltaram para a Itália com Rafael, Lily e uma enfermeira particular para Lily e seu bebê não nascido. Luca teria preferido viajar sem a multidão. Aquela tinha sido uma semana de tortura, em particular para Kathryn que, entretanto, fingia, em público, que nada havia acontecido entre eles. Que ela era a assistente que ele não quis, sendo o Castelli que mais a odiava. Luca descobriu que seu controle tão louvável o havia deserdado quase inteiramente, deixando-o desconfortável sobre para onde esta loucura o estava levando. Mas ele não podia parar. Em qualquer momento de privacidade que eles tinham, ele se deleitava em Kathryn. Carros. Cantos escuros. Do lado de fora da propriedade. Continuava esperando que o desejo desenfreado diminuísse, mas isso ainda não havia acontecido. Ao contrário, aumentava a cada dia. Seria diferente quando eles estivessem de volta a Roma, disse a si mesmo. Ele não precisaria se esconder para evitar seu irmão, ou esse tipo de coisa. Sem o elemento do proibido, Luca estava SEMANA


certo de que o desejo voraz se acalmaria. Ele não era o tipo de homem que formava elos, e não se permitia querer coisas que não podia ter. Aprendeu isso quando criança, e nunca esqueceu a lição. Na verdade, aquilo nunca tinha sido um problema antes. Mas, primeiro, eles precisavam chegar em Roma, e se separarem de seu irmão e Lily, que viajariam para a casa da família nas Dolomitas. Ao longo das diversas horas no voo noturno, apenas Rafael e Luca permaneciam acordados na área de estar do avião, os outros tendo se recolhido nas cabines de hóspedes. Rafael estava falando sobre seus próximos passos como diretor da companhia, enquanto Luca passava mais tempo do que queria admitir imaginando Kathryn deitada contra os travesseiros no final do corredor do avião, o longo cabelo escuro... – Kathryn – disse Rafael, entoando o nome dela, como se pudesse ler a mente de Luca. Luca olhou para seu irmão do outro lado da saleta e manteve sua posição preguiçosa, estendido em um dos sofás, como se fosse algum tipo de príncipe. – Sim – disse ele. – Kathryn. Minha assistente pessoal, cumprindo o testamento de nosso adorado patriarca. Eu não reclamei, reclamei? – Não – concordou seu irmão, parecendo sério e austero. – Isso é o que me preocupa. Luca forçou uma risada. – Eu sou uma pessoa adaptável. E obediente.


– Mas aí está a questão. – Rafael arqueou as sobrancelhas. – Você não é nenhuma dessas coisas, apesar da alegria que lhe dá fingir o contrário. – Você está enganado, irmão. Eu não passo de um playboy com um excelente staff, todos muito bem pagos para cobrirem minha incompetência. Os tabloides decretaram isso, consequentemente, deve ser verdade. Rafael não disse nada por um momento que se arrastou por tempo demais. Luca descobriu-se travando o maxilar e forçou-se a relaxar. – Eu esperava que você a fizesse correr dentro de uma semana. Luca deu de ombros. – Ela provou ser mais tenaz do que eu previ. Rafael considerou aquilo. – Ela também se provou uma surpresa boa nas duas últimas semanas. Os contadores a adoraram. Suspeito que metade deles correu para os tabloides a fim de contar sua própria história da Santa Kate horas depois de conhecê-la. – Ele estendeu as pernas à frente. – Desnecessário dizer que isso colocou uma perspectiva positiva nas coisas. Eu recebi mais elogios do que posso contar pela nossa magnanimidade em contratá-la. Talvez ela seja a mascote da companhia. – Esta é uma situação temporária – disse Luca com voz tensa. – Nós concordamos com isso. – Talvez, devêssemos reconsiderar. – Rafael deu de ombros quando percebeu o olhar raivoso de Luca. – Se usar Santa Kate nos traz lucros, não vejo por que não poderíamos usá-la pelo máximo de tempo possível.


– Talvez, a moça não queira mais ser usada – retrucou Luca, friamente. – É possível que ela tenha tido sua cota disso durante a transação comercial de um casamento. Talvez, tudo que Kathryn queira seja fazer o trabalho dela. Aquilo foi, é claro, um grande erro. Ele soube disso no momento que falou sem pensar... o que não lembrava de ter feito diante de qualquer membro de sua família desde que era criança. Rafael piscou. – Eu não me importo com o que ela quer, contanto que isso beneficie a companhia. – A companhia. – Luca murmurou, outra vez sem pensar. Quase como se não pudesse se controlar. – Sempre a companhia. Ele não se importou com o jeito como seu irmão o olhou então. – Nossos objetivos mudaram sem o meu conhecimento, Luca? – Ele pausou, a expressão no rosto muito perspicaz para a paz mental de Luca. – Os seus mudaram? APENAS QUANDO estava seguramente fechada em seu pequeno apartamento italiano que Kathryn realmente respirou. E depois de inalar profundamente, ela sentou-se no tapete macio de sua sala de estar aconchegante, como se os joelhos que a tinham carregado até a Califórnia e de volta não aguentassem mais. Como se tudo que tivesse acontecido nas duas últimas semanas a tivesse finalmente golpeado. Ela olhou em volta do seu apartamento, a luz da manhã se infiltrando pelas janelas altas, como se nunca o tivesse visto


antes. Era difícil imaginar a pessoa que ela havia sido quando partira de lá. A pessoa que deixara em algum lugar de Sonoma. Como seu mundo inteiro podia mudar tão rapidamente? Seu casamento com Gianni tinha sido uma mudança, certamente, mas uma mudança de circunstâncias, não de quem ela era por dentro. Kathryn apenas trocou um conjunto de deveres e obrigações por outro, e a verdade era que achava cuidar de Gianni infinitamente mais prazeroso do que as estatísticas. Ou do que cuidar de sua mãe difícil, se fosse honesta consigo mesma. Isso era diferente. Ela estava diferente. E não sabia se precisava voltar ao que havia sido, ou simplesmente encontrar uma maneira de aceitar quem havia se tornado. Kathryn respirou fundo algumas vezes, então se levantou, e uma xícara de chá era toda a resposta que ela necessitava no momento. Tudo o mais poderia esperar. Estava acabando de tomar o chá, sentada em seu pequeno terraço, com vista para os telhados romanos que faziam seu coração cantar no peito, quando ouviu uma batida à porta. Luca, pensou imediatamente. Quem mais poderia ser? E o fato de seu coração ter disparado disse a ela mais do que precisava saber sobre aqueles sentimentos que o chá não tinha suprimido. Ela considerou não atender, mas dispensou o pensamento no ato. Aquele era Luca. Não era como se ele fosse simplesmente dar de ombros e ir embora. Kathryn andou descalça para a porta e abriu-a, não surpresa ao encontrá-lo apoiado contra o batente, um braço sobre a


cabeça e uma carranca no rosto. – Aonde você foi? – demandou ele. – Eu vim para casa – replicou ela. – Obviamente. Ele ignorou a resposta. – Por que saiu correndo daquele jeito? Eu olhei em volta e você tinha desaparecido. Ela não queria deixá-lo entrar em seu apartamento, e não sabia dizer por quê. Cruzou os braços sobre o peito e permaneceu ali, bloqueando a porta. – Eu vim para casa, Luca. Você me disse que eu não precisava trabalhar hoje. Alguma coisa mudou? Olhando-a fixamente, Luca afastou-se do batente. Tecnicamente, ele havia se movido para trás, entretanto, ainda parecia preencher o vão da porta. – O que você acha que está acontecendo aqui, Kathryn? Ela recusou-se a lhe mostrar sua insegurança. Aquilo tinha sido circunstancial, assegurou a si mesma. Havia perdido sua virgindade para aquele homem, e ele era um amante muito exigente, muito determinado. Qualquer pessoa teria dificuldade em encontrar o equilíbrio depois desse tipo de combinação. – O que está acontecendo é que, depois de uma viagem de negócios de duas longas semanas, meu chefe está parado à minha porta – disse ela em tom ríspido. – Se você não tem trabalho para mim, acho que deveria ir embora. Ela esperou pela raiva dele, preparou-se para isso. Luca pareceu perplexo por um momento, mas então riu. E foi aquela mesma risada encantadora dele, que rivalizou com o próprio cenário italiano e fez coisas muito piores com seu pobre coração.


Determinada a mandá-lo embora, Kathryn franziu o cenho. Para se impedir de rir também. Mas era como lutar contra a luz do sol. Não importava o que ela quisesse, o que dissesse, a risada de Luca a preenchia. – Venha aqui, cucciola mia – disse ele quando parou de rir. Ele dobrou um dedo para chamá-la, e ela quis mordê-lo. Ele já estava perto demais. – Eu estou aqui – respondeu ela. – Não preciso me aproximar mais, e não sou seu bichinho de estimação. – É aí que você se engana. – A voz profunda e sensual causou um friozinho na barriga dela. – Venha, Kathryn. Beije-me. Vai se sentir muito melhor do que usando sua boca para me mandar embora, quando sei que você não quer isso. – Eu quero. – Não quer – corrigiu ele. Então, aproximou-se com aquele olhar intenso que ela agora sabia que era desejo. E com os ecos remanescentes da risada que o tornavam ainda mais lindo do que ele já era. – Você está com medo. – É claro que não estou – negou ela, mas então não conseguiu se afastar. Luca a impulsionou para dentro do apartamento e para a parede do pequeno foyer, e Kathryn nem sequer notou. Engoliu em seco. – Eu não estou com medo – disse ela muito distintamente. – Mas preciso de algum tempo para clarear minha cabeça. – Por quê? – Eu não preciso justificar como passo meu tempo livre para você.


– Não. Mas você poderia passá-lo embaixo de mim, enlouquecendo nós dois com o jeito com que move seus quadris. Kathryn abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu. Luca sorriu. – Nós não podemos... fazer sexo o tempo inteiro – protestou ela, mas sua voz soou fraca até para seus próprios ouvidos. Desta vez, aquela risada maravilhosa permaneceu nos olhos dele, tornando-os dourados e fazendo-a tremer. – Por que não? – Sexo é uma fraqueza – disse ela, muito seriamente, as palavras vindas de alguma parte em seu interior cuja existência ela não conhecia. – Uma arma. – Parece uma fala de alguém que não é muito bom nisso, cucciola mia, e, portanto, não gosta disso. – Ele deu outra risada, obviamente não consciente de que acabava de citar um dos ditados favoritos da mãe dela. Kathryn não sabia que expressão usava agora, mas o rosto duro suavizou-se, e ele a puxou contra si, como se ela fosse frágil, feita de vidro. Tirou o cabelo do seu rosto, como ela já havia descoberto que Luca adorava fazer. E, quando ele olhou para baixo, havia algo tão brilhante nos olhos escuros que a fez tremer. E seu coração se partiu dentro do peito, dizendo a ela coisas que ela não queria aceitar. Fazendo-a sentir coisas que nunca achou que sentiria por alguém, e muito menos por ele. No entanto, podia ter sido virgem antes de encontrar Luca, mas não era idiota. Somente uma idiota diria a Luca Castelli que estava se apaixonando por ele, ela censurou a si mesma. Ele não quer saber.


– Eu não posso pensar quando estou perto de você – sussurrou Kathryn, embora soubesse que não deveria. Aquilo estava muito perto de uma verdade que ela queria fingir que não era real. – Sexo apenas piora a situação. Ela sentiu o peito de Luca se mover contra o seu, como se ele estivesse rindo, embora ele não tivesse feito um único som. Bem lentamente, a boca perfeita se curvou. – Eu sei – disse ele e deslizou as mãos ao longo das costas dela, então sobre as curvas de seu traseiro, puxando-a contra si. – Sexo torna tudo terrível. Ele estava quente e rígido contra sua barriga, e Kathryn achou que ele soube o momento preciso quando ela... derreteu-se. Luca sorriu, então. – Mas, então, sexo torna tudo muito, muito melhor. E quando ele se pôs a provar isso, Kathryn rendeu-se. Porque o queria mais do que queria resistir a ele. E achou que ele sabia disso, também. APROXIMADAMENTE DEZ dias após terem retornado da Califórnia, Luca passou em seu escritório. Depois de terminar uma série de telefonemas para os Estados Unidos, franziu o cenho. Já era noite e todo seu staff tinha ido embora. Exceto Kathryn. Ela estava sentada à sua mesa, no espaço aberto do lado de fora da sala dele, digitando furiosamente, o que não fazia o menor sentido. Ele não havia lhe dado nenhum trabalho que precisasse ser terminado naquele dia. – Você deveria ter ido embora, horas atrás – disse ele, e a fera que ainda existia em seu interior no que dizia respeito a Kathryn gemeu em aprovação quando ela teve um sobressalto ao som de


sua voz, então se derreteu num sorriso. – Eu não mencionei alguma coisa sobre nadarmos nus sob as estrelas? Isso acontece lá em cima, Kathryn. Longe do computador. – Eu preciso terminar isto – replicou ela, os dedos voando sobre as teclas. – Depois podemos olhar quantas estrelas você quiser. – É a parte da nudez que me interessa, cucciola mia. As estrelas são uma tática. Talvez, você não tenha notado, mas estamos no meio da cidade. Ela torceu o nariz, mas continuou digitando. Luca aproximou-se e parou atrás dela, pondo as mãos sobre os ombros delgados e puxando gentilmente o rabo de cavalo elegante de Kathryn. Ela deu um suspiro contente, mas não parou, e ele leu sobre o ombro dela. E, desta vez, ficou zangado. – Esse é o relatório de Marco. Ele me disse que me entregaria amanhã cedo. – E ele entregará – disse Kathryn. – Assim que eu terminar. Luca puxou a cadeira dela da mesa, forçando-a a parar, então, girou-a de modo que pudesse ver seus olhos. Os olhos acinzentados que encontraram os seus estavam calmos demais. – Você não é assistente de Marco – disse ele, talvez mais ríspido do que o necessário. – Você é minha assistente. Kathryn era muito mais do que isso, embora Luca não tivesse as palavras para lhe dizer. Ela era aquela batida acelerada em seu coração. Era aquele calor que nunca o deixava. E tudo o que estava nos olhos acinzentados, o sorriso sereno, o pacote inteiro que era Kathryn. Sua.


– Talvez você não saiba que é parte do trabalho de sua assistente embelezar todos os relatórios que chegam à sua mesa – Kathryn falou suavemente. – Não é. – Que estranho – murmurou ela. – Eu fui informada por seis diferentes membros da equipe que é. É claro que ela havia recebido aquela informação, e só Deus sabia quais outras. Ele essencialmente tinha declarado perseguição aberta em relação a Kathryn, quando a pôs lá dentro. Como esqueceu isso? Mas sabia. Porque todos os pensamentos envolviam colocar as mãos nela... e ela nunca, jamais, reclamava. Em vez disso, sorria. Ele passou uma das mãos impacientes pelo cabelo. – Eu falarei com eles. – Não – protestou ela. – Você não vai fazer isso. – Eles não podem continuar abusando de você dessa forma. Ela recostou-se e cruzou os braços. – Você não pode interferir. Isso irá se resolver por si mesmo. – Esta não é uma causa pela qual vale a pena se martirizar – disse ele. – Eu coloquei esse alvo nas suas costas. Eu o tirarei. – E se você fizer isso, talvez atire em mim – argumentou Kathryn. – Eu não preciso que me dê tratamento especial. Todos sabem que você foi forçado a me contratar. Interferir agora apenas piorará a situação. – Kathryn... – Eu lhe disse que seria boa no trabalho, e sou – declarou ela, erguendo o queixo. – Meu trabalho fala por si mesmo, e irá conquistar sua equipe. E, se isso não acontecer, fazer todo


trabalho que eles não querem fazer significa que eu conhecerei o trabalho deles tão bem quanto o meu. O que só me ajuda. – Você não precisa de ajuda. – Eu não fui capaz de realizar o trabalho que treinei minha vida inteira para fazer – murmurou Kathryn, ferozmente. E Luca sabia que ela se referia ao emprego que a mãe quis para ela. – Esta é a minha chance. Eu não vou desperdiçá-la, e também não vou deixar você me salvar. Alcançarei o sucesso ou o fracasso sozinha. Luca a estudou, vivenciando um tipo de batalha interna que não entendia. Talvez o que o estivesse abalando fosse tão diferente de sua experiência que entender a verdade pudesse parti-lo em dois. – Você deixou meu pai salvá-la uma vez – murmurou ele, suavemente. Ela não se encolheu. Prendeu o olhar dele, a expressão solene. – E agora eu quero salvar a mim mesma – disse ela com suave determinação. – E quero que você me deixe fazer isso.


CAPÍTULO 11

MAIS UMA semana se passou, então outra, e Luca foi forçado a encarar o fato de que seu desejo por Kathryn não ia desaparecer. Ele passava mais tempo com ela do que com qualquer outra mulher com quem esteve. Ela trabalhava com ele. Viajava com ele. Dormia com ele. Luca imaginava que tanta familiaridade poderia apenas cultivar desprezo, mas Kathryn era uma revelação. Diariamente. Ela o fascinava, desde sua competência fria no escritório até o deleite desinibido em tudo que eles faziam juntos na cama. Era perfeito demais. Bom demais. E Luca aprendeu, da maneira difícil, que não existia na prática a ideia de “bom demais para ser verdade”. Teria apenas que pagar por isso. Sua infância o havia ensinado bem. Ele lembrava daquilo vividamente, as várias maneiras de agir na vã esperança de conseguir a atenção de seu pai. A comoção que ele causava. Os objetos preciosos que havia quebrado. Os ataques de nervos, a fuga, as respostas malcriadas. Tudo para que alguém lhe mostrasse que se importava com ele. Mas isso nunca aconteceu.


E Luca não era mais um menino abandonado. Há muito tempo, havia perdoado seu irmão, que lidou com a situação da família da melhor maneira que soube... e então se envolveu num relacionamento louco com Lily. Sua mãe tinha se matado. O hospital informou ter sido um acidente, mas Luca nunca duvidou que sua mãe havia tirado a própria vida, em vez de enfrentar os filhos que tinha feito. E Gianni jamais deu a menor atenção a Luca, que foi de reserva esquecido a herdeiro. Ele não sabia como acreditar na possibilidade de que Kathryn pudesse realmente querê-lo. Que ela havia escolhido trabalhar com ele. Que nada disso era uma grande trama. – Que reação você está procurando? – Uma de suas madrastas havia lhe perguntado anos atrás, quando Luca quebrou todos os pratos no jantar, uma noite. Gianni meramente havia saído da sala, como se Luca fosse um animal indigno de ser notado. Sua madrasta permaneceu, crítica e fria. – Eu odeio você. – Luca gritou com ela, com toda a fúria em seu coração de 10 anos. – Ninguém odeia você. – Ela replicou. – Ninguém se importa com você. Quanto antes reconhecer isso, mais feliz será. Ele nunca esqueceu aquilo. E nunca mais suplicou por atenção. Aquele era um domingo preguiçoso com cara de primavera. Ele respirou fundo. Havia acordado Kathryn de seu jeito característico, enquanto ainda estava escuro: deixou-a tremendo em sua cama e saiu para correr em volta daquela linda cidade. Correu pelas praças emolduradas por multidões, passando por fontes famosas e monumentos, tudo deserto àquela hora do dia, como se Roma fosse inteiramente sua.


Cedinho pela manhã, era sua hora favorita de correr. Ele geralmente não se apressava. Mas, sabendo que Kathryn o esperava em sua cobertura, ele apressou o passo no seu caminho de volta para casa. Não a encontrou no primeiro piso da cobertura, onde ela frequentemente estava, fazendo café ou preparando algo para comer. Ele subiu a escada em espiral para seu quarto, esperando encontrá-la ainda deitada na cama. Mas a cama estava vazia, também, a colcha virada e os travesseiros ainda afundados. Luca espiou pela janela e viu-a na parte mais distante do terraço, de costas para ele, os olhos na cidade abaixo. Ele tomou um banho rápido e vestiu uma calça que havia deixado aos pés da cama, antes que saísse. Ela não se virou quando ele fechou a porta de vidro, e nem mesmo quando ele desviou da piscina. Kathryn permaneceu no lugar, as costas eretas demais, pensou ele, aproximando-se. – Espero que você não esteja pensando em pular – disse ele, parando atrás dela. – Eu não acharia isso nem um pouco divertido. – Kathryn não respondeu, nem quando ele parou ao seu lado na balaustrada. Ela parecia pálida. Quase... com medo, ele teria dito, se ela fosse qualquer outra pessoa. Se aquilo fizesse algum sentido. – Aconteceu alguma coisa? Ela engoliu em seco, e estava abraçando a si mesma, como se precisasse se proteger. Lentamente, virou-se para encará-lo. – Eu não sei como lhe contar isso – murmurou ela com uma voz estranha. Os olhos acinzentados estavam mais escuros do que o normal. A boca adorável estava pressionada em uma linha fina. E quando Luca estendeu a mão para lhe tocar o rosto, ela recuou.


– Sugiro que você faça isso logo – disse ele, franzindo o cenho. Kathryn pareceu perdida por um momento. Então, recompôs-se. – Depois que você saiu – começou ela, como se estivesse falando de uma grande distância –, eu enjoei. – Então, o que está fazendo aqui? – demandou ele, um impulso protetor que não sabia possuir o dominando. – Venha. Vou colocá-la de volta na cama. – Tenho tido esses enjoos estranhos por um tempo, agora – disse ela, sem se mover. – Eles vêm e vão. Eu pensei que fosse ansiedade. – Luca esperou, notando a expressão de desespero no rosto dela. – Mas, hoje, outra coisa me aconteceu. Então eu fui ao mercado e comprei um teste. E tive minha resposta num instante. Luca se sentiu congelar. Estava consciente de tudo. Da brisa que dançava entre eles e brincava com o cabelo de Kathryn. Do jeito que o dourado do sol fazia a cidade brilhar ao seu redor. Do barulho do trânsito a distância. E das coisas que ela estava prestes a dizer, que formavam tudo aquilo. Tudo que ele sentiu e que aconteceu desde aquela noite no carro, na Califórnia: uma mentira. Uma fraude. O ato final de uma criatura que o havia enganado completamente, que o havia impressionado muito. Fazendo-o acreditar que ele poderia ser um homem diferente. Fazendo-o imaginar que ele poderia levar uma vida diferente. Luca nunca havia aberto mão de seu controle. Até Kathryn. Nunca havia suplicado pela atenção de alguém. Nunca quis nada. E o motivo era esse.


Luca descobriu que o que considerava mais imperdoável era que, mesmo agora, mesmo com sua percepção insuportável de que tinha sido feito de tolo, ele teria dado tudo para que ela falasse alguma outra coisa. Qualquer coisa. Qualquer coisa que lhe permitisse continuar fingindo que podia ser essa outra versão mais suave de si mesmo. Mas esse não era seu destino. E ela era uma ilusão. Ele deveria ter sabido disso desde o começo. Mas teve esperança. – Luca. – Seu nome na boca de Kathryn foi como um soco. A traição final numa guerra que ele sequer percebeu que estava lutando. Uma guerra que, entendeu finalmente, havia perdido no momento em que parou de vê-la como sua inimiga, quando ela nunca foi outra coisa. Nunca. E isso significava que ele a feriria de qualquer maneira que pudesse. – Eu estou grávida. KATHRYN DESCOBRIU que estava apertando as mãos unidas à sua frente, e parecia não conseguir parar, independentemente de quão revelador o ato fosse. Independentemente do fato de que o homem por quem ela havia se apaixonado tinha ficado tão imóvel que poderia ser parte da parede de pedra que cercava o terraço da cobertura. Ela não sabia o que esperar. Que Luca empalidecesse. Que gritasse. Que reagisse de alguma maneira horrível. Ele não teve nenhuma dessas reações. Apenas a olhava, imóvel.


O olhar dele baixou de seu rosto para sua barriga, onde ele saberia muito bem que não haveria sinal de nada. Não tão cedo. Após um longo momento, Luca voltou a fitá-la, um músculo saltando no maxilar, e cada terminação nervosa no corpo de Kathryn enrijeceu de maneira dolorosa. Entretanto, quando Luca finalmente falou, a voz parecia preguiçosa. Repleta de desinteresse e insulto. Ela reconheceu aquela voz instantaneamente. Havia esquecido o quanto a detestava. – Você tem a papelada necessária, eu presumo, para apoiar esta alegação. Kathryn piscou. – Papelada? Eu fiz um teste de gravidez. É uma... vareta, não um papel. Os olhos de Luca brilharam com raiva. – Kathryn, por favor – disse ele com uma risada sarcástica. – Certamente, você não imagina que é a primeira mulher a compartilhar minha cama e depois decidir que seria bom mamar na teta de Castelli pelo resto de sua vida. – Ele deu de ombros. – Eu gosto de sexo, como você descobriu, e nessas coisas há sempre risco. Eu nunca descartaria uma alegação de paternidade, mas insisto em provas concretas. Ela percebeu que havia fechado as mãos em punhos. – Você tem muitos filhos acidentais, então? – Não tenho nenhum, na verdade – respondeu Luca em tom agressivo. – Tamanha é a deslealdade da maioria das mulheres. – A maioria das mulheres com quem você escolhe dormir – corrigiu Kathryn, porque não pôde evitar. Quando ele saiu para correr, horas antes, ela brincou com a ideia de contar como se


sentia, porque o sentimento era tão grande que era difícil contêlo. Agora, pensou que preferiria morrer a declarar seus sentimentos. – Talvez o denominador comum seja menos a traição delas, e mais você. Ele a encarou com a mesma fúria e desgosto que sempre a faziam se sentir... irrequieta antes. Quando Kathryn não o conhecia. Quando ela não entendeu o que era aquela coisa entre os dois. Agora, isso apenas deixou-a desgostosa. – Montarei a equipe usual de advogados e médicos – disse Luca, soando profundamente entediado. – Eu os informarei que você fará os exames adicionais de praxe amanhã. Terá muito tempo livre, se isso ajudar. Pelo testamento de meu pai, eu não posso demiti-la, mas acho que você descobrirá que trabalhará melhor de casa de agora em diante. – Eu... – Kathryn balançou a cabeça, recusando-se a sucumbir à onda de tontura que a assolou. Não deveria estar surpresa por aquilo, também. Quando teve a vantagem com Luca? Por que nutriu a tola esperança de que ele reagiria melhor? Não percebeu o quanto se agarrava a tal esperança até agora. Quando ele a destruiu. – Mas... – Lamento se isso não corresponde às suas fantasias de melodrama, madrasta – disse Luca num tom tão cruel que ela sentiu como se tivesse sido esbofeteada. – Você deveria saber que 80 por cento das mulheres que fazem essas alegações não retornam para o compromisso que provaria suas mentiras. Os outros 20 por cento devem imaginar que eu estou brincando quando digo que vou submetê-las aos exames. Mas não estou. Em qual categoria você se encaixa, me pergunto?


Kathryn sentiu perder o equilíbrio, e, pior, sentiu um vazio horrível. Além disso, tinha a sensação de que tudo aquilo havia acontecido antes. Não com ela, mas por causa dela. Sua própria mãe foi forçada a ter uma conversa exatamente como aquela. Kathryn também havia sido um acidente. De súbito, a sensação de déjà vu era intensa demais. Mas uma coisa estava perfeitamente clara. Ela havia decepcionado sua mãe. Novamente. E, desta vez, de um jeito que, sabia, Rose nunca perdoaria. O que era justo. Kathryn provavelmente também nunca se perdoaria. – Luca – disse ela, e não se importou que sua voz tremia, e que seus olhos estavam embaçados com lágrimas. – Você não precisa fazer isso. Ele riu. Com desdém. – Suas habilidades em atuar são impressionantes, Kathryn. Talvez mais do que eu percebi. Ela cerrou os dentes. – Você sabe muito bem que eu era virgem. – Eu sei que é isso que você queria que eu pensasse – retrucou ele. – Mas quem pode dizer o que é verdade e o que é mais teatro, vindo de uma pessoa como você? Um teste de DNA é muito mais confiável. Kathryn meneou a cabeça, furiosa consigo mesma por ser tão suscetível a ele. Furiosa porque Luca sempre vencia. Sempre. Furiosa que, apesar de tudo, ela havia esquecido que, no fundo, aquele homem a odiava. Todo o resto era sexo. A verdade era que Luca sempre a odiou e sempre a odiaria. E eles tinham feito um filho disso. Da profunda estupidez diante da única tentação que ela não negou a si mesma.


É preciso um único erro, sua mãe sempre lhe dizia. E Kathryn o havia cometido. Mas isso não significava que precisava repeti-lo Ela disse a Luca que queria salvar a si mesma. Agora, tinha mais alguém em quem pensar, e o melhor que poderia fazer por seu bebê era mantê-lo longe de Luca Castelli e de todo aquele ódio que queimava dentro dele e nunca se extinguia. Não importava que ela achasse que o amava. Talvez, o amasse. Todavia, o que importava era o tipo de vida que poderia proporcionar para o bebê que carregava. Aquilo a percorreu com toda a graça e convicção de um plano, como se o que aconteceu não fosse um erro, em absoluto. Como se ela tivesse tomado uma decisão, em vez de ter uma bomba jogada sobre si. Kathryn supôs que nada daquilo importava. Algum dia, seu filho ou filha contaria a história do pai com um dar de ombros, como Kathryn fazia, e as coisas se acertariam. Seu coração partido não importava para ninguém. Nunca importou. – Deixe-me simplificar as coisas, então – disse Kathryn, satisfeita que sua voz soou quase firme. – Eu me demito. Vou contatar Rafael e dizer a ele que prefiro a quantia que seu pai me deixou, e você nunca mais me verá. Está feliz agora? Como se fosse possível, o olhar de Luca se tornou mais intenso, mais ameaçador. Ela abraçou a si mesma, esperando que ele a atacasse, porque as mãos fortes se fecharam em punhos nas laterais. Mas ele não bateu nela. É claro que não. Isso teria sido mais fácil de suportar.


Em vez disso, Luca curvou uma das mãos em seu pescoço e puxou a boca de Kathryn para a sua. Ele tinha gosto de pecado e redenção, fúria e traição, e Kathryn era uma tola. Uma tola indesculpável, mas foi incapaz de não corresponder ao beijo. Mesmo se aquela fosse a última vez. Ou, especialmente, porque era a última vez. Ele angulou o queixo, tomando a boca feminina como se a possuísse, e o calor a inundou, fazendo-a se arquear contra o peito largo. Seu coração bombeava freneticamente. Ele beijou-a com fúria e paixão. E somente quando ela estava entregue, beijando-o com o mesmo ardor, ele a liberou. – Luca... – sussurrou ela. Mas o rosto dele se contorceu com desgosto. – Vá embora – disse ele com uma voz tão dura que a abalou com a força de um terremoto, destruindo tudo em seu caminho. Kathryn sabia que carregaria a marca daquilo para sempre, sua própria cicatriz secreta. – E, Kathryn... Ela esperou, incapaz de ver através do sofrimento que nublava seus olhos. Ciente de que estava tremendo, e incerta se algum dia conseguiria parar de tremer. A expressão no rosto dele devastou-a, mas, quando Luca falou, a voz era gélida: – Não volte aqui. Nunca mais. TRÊS DIAS depois, Luca estava na sala de reuniões quando todos os celulares em seu escritório vibraram, com mensagens de texto e ligações. O seu, particularmente.


Ele ignorou o som, gesticulando para o homem à sua frente continuar a apresentação. Mas, enquanto a reunião prosseguia, ele viu um excesso de atividades do outro lado do vidro. Seu celular continuou vibrando. E, finalmente, seu relações-públicas sênior parou à porta com uma expressão que prenunciava algo terrível. – Com licença – disse Luca. – Parece que precisam de mim. Ele pegou seu telefone de cima da mesa e entrou em seu escritório, franzindo o cenho para Isabella. – O que é isso? – Ah, bem... – Ela deu um passo atrás. – Os tabloides. Acho melhor você dar uma olhada. Luca recusou-se a pensar no nome dela, mesmo que esse o penetrasse como uma música. Sentiu isso como outra traição. Seu celular vibrou na sua mão, mas ele não olhou para o aparelho. Não com todas as pessoas em seu escritório tentando tão arduamente não encará-lo. Luca seguiu em direção à sua sala, passou pela mesa vazia de Kathryn, que ainda não conseguira substituir, porque ela o arruinara, e fechou-se do lado de dentro. Sentou-se diante de seu computador e achou sua caixa de email cheia. Cerrando os dentes, clicou nos links que tantas pessoas haviam lhe enviado. E lá estava. SANTA KATE EM AVENTURA SEXUAL COM O FILHO PLAYBOY DE GIANNI! SANTA KATE APRIMORA DE PAI PARA FILHO! DRAMA DA MADRASTA SANTA KATE!


E, abaixo das manchetes gritantes, estavam as fotos. Kathryn no terraço de sua cobertura. Mais precisamente, Luca, seminu, em seu terraço com ela, beijando-a como se sua vida dependesse disso. Como se Kathryn não tivesse se revelado a vadia mercenária que era. Como se aquela não fosse uma cena de desespero e traição, e nada mais. Ao seu lado, seu celular vibrou novamente, desta vez com um texto de Rafael: Conserte isso. Era uma mensagem sucinta e direta, que nada fez para acalmar a fera que havia tomado conta do interior de Luca. Aquilo pedia sangue. Pedia vingança. Desta vez, ele jurou, não descansaria até que a destruísse, também.


CAPÍTULO 12

KATHRYN NOTOU

o carro preto, luxuoso demais para a rua tranquila do vilarejo inglês que ele bloqueava, no momento em que rodeou a esquina voltando de sua caminhada de compras. Fazia 12 dias desde que ela havia saído de Roma e voltado para a Inglaterra. Nunca, em toda sua vida, havia se sentido tão feliz em retornar para sua Yorkshire nativa. As áreas descampadas e vielas. As nuvens e o verde. As casas com telhados de tijolo vermelho que alinhavam o pequeno vilarejo, aproximadamente a oito quilômetros do centro de Hull. Mesmo sua mãe irascível era melhor do que alguém chamado Castelli, pensou ela. Diminuiu os passos ao se aproximar do carro, parado num ângulo estranho bem na frente do chalé. Sua sacola batia contra sua coxa. Acima, nuvens gordas se reuniam no céu de inverno. E então, Luca abriu a porta do motorista e desceu, revelandose como um pesadelo se tornando realidade. Um pesadelo, Kathryn disse a si mesma com firmeza, enquanto seu coração se apertava dentro do peito. Definitivamente um pesadelo.


Ela não podia fingir que estava inteiramente surpresa. Tinha visto todos os jornais. Assim como todo mundo neste pequeno vilarejo... e a maior parte das pessoas da Inglaterra, na verdade. Para não mencionar do mundo. Kathryn disse a si mesma que, se era possível superar a tempestade de um tabloide num vilarejo tão pequeno quanto aquele, era possível superar qualquer coisa. Inclusive ter uma segunda geração de filhos ilegítimos, como sua mãe antes dela. Imaginou que, quando se tornasse impossível esconder sua gravidez, aquilo pareceria indigno de comentar, em comparação. – Desistir é bem típico de você, não é? – Sua mãe falou quando Kathryn tinha chegado em casa. – Ambas sabemos que é o sangue do seu pai em você. Tornando-a fraca como ele era. Kathryn não viu sentido em responder àquilo. Ou aos comentários mais cruéis que Rose fez quando os tabloides haviam espalhado fotos por toda parte. Ela decidiu que poderia andar pelas ruas geladas de Yorkshire com casacos e botas pesadas e fingir que era invisível, até que não fosse mais. Luca, em contraste, parecia letal. Não invisível, em absoluto. Ele usava calça esporte e uma camisa que teria passado despercebida em qualquer homem que Kathryn visse na rua, mas aquele era Luca. Ele parecia tão poderoso quanto ficava num terno impecável. O cabelo desalinhado, como de costume, suavizava a beleza austera do rosto, tornando-o ainda mais maravilhoso. E ele a estava olhando com expressão furiosa. Mas, agora, Kathryn não ligava a mínima. Ele não podia quebrar o que já estava quebrado. O que ele havia esmagado em pedaços naquela cobertura.


– Oh, adorável – disse ela, friamente ao se aproximar. Não sorriu para ele, nem mesmo um sorriso forçado, e disse a si mesma que era um pouco triste que aquilo parecia rebeldia. – Isso significa que é minha vez de acusá-lo e destruir seu caráter? Eu estava economizando insultos, no caso de serem necessários. – Você teve sua vez nos tabloides – disse ele. – Então, aqui estou eu, e não importa que levei uma semana para achá-la neste lugar esquecido por Deus. O que você quer? Kathryn piscou. – Eu não quero nada. Eu teria gostado de alguma compaixão quando lhe dei a grande notícia, mas isso é passado. – Que jogo é este? – A voz dele era suave, mas Kathryn podia ouvir a raiva embutida. – O que você espera ganhar? Kathryn enfiou as mãos nos bolsos e estudou-o. Ele parecia... louco. Nunca tinha visto aquela expressão selvagem nos olhos de Luca, nem toda aquela tensão que parecia enrijecê-lo. Luca bateu a porta do carro com mais violência do que o necessário, e Kathryn pensou que ele poderia tocá-la então, e se preparou para isso... Mas ele apenas olhou-a daquele jeito predatório que fez seu sangue ferver nas veias. Então, ele inclinou as costas contra o carro, cruzando uma bota sobre a outra, e os braços sobre o peito, como se estivesse inteiramente à vontade e indiferente ao vento frio de Yorkshire, que balançava as árvores e batia neles com força. Como se fosse ficar parado ali para sempre, se ela não lhe respondesse. – Eu não quero nada de você. – Kathryn encontrou o olhar dele e sentiu aquele velho friozinho na barriga. Talvez ela sempre tivesse esse estranho desejo, essa esperança bizarra de que ele pudesse provar ser um homem diferente. Mas ele não


era. E ela não tinha de tolerar o jeito como Luca lhe falava. – Eu lhe disse que você vai ser pai. O que escolhe fazer com essa informação depende unicamente de você. – E esta postura indiferente não tem nada a ver com o fato de que, se eu não reivindicar esta criança, você pode tentar passá-la como filho de meu pai, tenho certeza. – Os olhos de Luca brilharam. – E, ao fazer isso, potencialmente ganhar um terço da fortuna Castelli que meu irmão e eu agora dividimos. É uma vida bastante luxuosa que você planejou para si mesma, madrasta. Deixe-me adivinhar. Você passou seu casamento inteiro tentando engravidar, mas fracassou. Então, quando meu pai morreu, você percebeu que lhe restava uma chance. Rafael nunca teve olhos para qualquer outra mulher, exceto para Lily, nem mesmo quando ele pensou que ela estivesse morta, portanto, só restava eu. Kathryn pensou que gostaria de atropelá-lo com o carro ridículo dele. – Certo – disse ela numa voz neutra. – Você entendeu tudo. Exceto pelo fato de que eu era virgem, como sabe muito bem. – Há palavras para o que você é – retorquiu ele com a mesma agressividade usada em Roma. – Mas virgem não é uma delas. – Sim – concordou ela. – Você se certificou disso. – Você não pode perder, pode? – Luca estava furioso, ela percebeu. – Se eu não fizer nada, como eu não faria com qualquer outra mulher que tentasse declarar que eu a engravidei, o mundo irá assumir que esta criança é de meu pai. Você garantiu a si mesma um belo salário pelo resto de sua vida mercenária.


Kathryn abriu a boca para se defender, mas, em vez disso, encontrou-se inundada por uma onda de emoções fortes. Tentou reprimi-las. Havia jurado para si mesma que aquele homem nunca mais a veria chorar, que ele não merecia isso... Mas não adiantou. Suas emoções a traíram, como ele a havia traído. Totalmente contra sua vontade, Kathryn soluçou. Todas os nomes pelos quais ele a havia chamado ao longo dos dois últimos anos, e nos últimos 12 dias em particular. Todas aquelas mentiras horríveis nos jornais. Todos os avisos cruéis que sua mãe lhe fez sobre a história se repetir, todavia, agora pior. E o jeito como Luca se voltou contra ela completamente. Tão certo de que ela era cada coisa terrível das quais ele a chamara. O mesmo homem que a tratou tão gentilmente naquela noite em Sonoma. Que a havia abraçado e banhado. Ela chorou e chorou. – Como você pôde? – demandou Kathryn, quando conseguiu falar através das lágrimas. – Você estava lá, Luca. Sabe muito bem que este bebê não pode ser de ninguém, exceto seu! – Por quê? – devolveu ele, e não estava mais parado lá naquela postura preguiçosa. Não parecia mais divertido ou relaxado. Aproximou-se, segurando-a pelos braços e puxando seu rosto para o dele. – Você se agarrou a sua virgindade contra todas as probabilidades por 25 anos, até mesmo conseguiu deixá-la intacta durante seu casamento inteiro, então, entregou-a no banco traseiro de um carro para um homem que costumava ser seu enteado? Por que alguém faria isso sem um motivo maior? Como isso poderia ser qualquer coisa senão uma trama?


Kathryn tremeu com os sentimentos que a abalavam. Não sabia quando havia derrubado sua sacola de compras. Ou quando começou a socar o peito sólido com os punhos fechados. – Porque eu amo você, seu idiota! – gritou ela. Luca fechou as mãos sobre seus punhos e segurou-as longe dele, e alguma coisa na expressão do rosto lindo a imobilizou. Ela parou de tentar socá-lo. Parou de lutar. Tudo que podia ouvir era sua própria respiração ofegante. – Então, você foi a única que já me amou – disse Luca de maneira indiferente. E Kathryn descobriu que um coração partido podia quebrar novamente, afinal de contas. LUCA SENTIA-SE fora de si. Ele soltou as mãos de Kathryn, e ela enxugou o rosto. E ele não entendia como podia se sentir um estranho para si mesmo, e ainda apreciar quando ela endireitou o corpo e o fitou com expressão zangada. Ele realmente tinha ido lá para feri-la? Esteve mentindo para si mesmo. Entendia ter usado qualquer desculpa para ir atrás de Kathryn. Qualquer motivo para vê-la novamente. Qualquer coisa para sair daquele estado melancólico do qual somente ela poderia tirá-lo. – Isso é ridículo – murmurou ela, com raiva, agora. – É claro que você é amado. O mundo inteiro o ama. Você é amado onde quer que vá. – Eu sou conhecido. Não é a mesma coisa. – Sua família... – Ouça-me – interrompeu Luca, a voz mais ríspida do que pretendeu, e muito mais urgente. – Meu pai amava seu dinheiro


e sua busca por novas esposas. Minha mãe amava a própria doença. Rafael ama Lily. Eu decidi cedo que não queria fazer parte de nada disso, porque não havia espaço para mim, de qualquer maneira. Eu queria controle, não amor. Queria me certificar de que nada nem ninguém pudesse me machucar, do modo que todos eles machucavam outros ou eram machucados. Talvez a verdade seja que eu não sei como. Isso não está em mim. – Luca... – E então, você apareceu – continuou ele. – Mexeu comigo desde o começo. Passou dois anos casada com meu pai, e ainda me enlouquecia. Nunca conheci alguém que me incomodasse mais. – Você mencionou isso. – Mas eu não conseguia ficar longe de você, Kathryn. – Ele balançou a cabeça. – E então, quando eu a toquei, não consegui parar. Achei que talvez tivesse descoberto a dor que machucava cada membro de minha família. Pensei que talvez eu pudesse ser diferente. – Ele suspirou. – Então você me traiu, e eu soube. Os olhos acinzentados de Kathryn estavam escuros e solenes. – Soube o quê? – Que isso não é mais do que eu mereço – replicou ele. – Eu não a culpo por querer criar seu filho, sozinha. Você não deveria me querer, Kathryn, e certamente não deveria me querer perto de qualquer criança. O que eu ensinaria para uma criança? A ser como eu? – Pare – comandou ela. – Eu a apoiarei de qualquer maneira que você quiser – disse ele com voz rouca. – Mas não ficarei surpreso se você achar que


essa é uma péssima ideia. Kathryn o olhou por um longo momento, então, inclinou-se para frente, envolvendo os braços ao redor dele. E Luca não foi capaz de se impedir de abraçá-la de volta, de mantê-la ali. – Minha mãe vive inteiramente no passado, Luca – sussurrou ela em tom feroz. – Nada é bom o bastante para ela, certamente não eu. – Kathryn pegou a mão dele e levou-a para sua barriga ainda reta. – Mas este bebê não viverá assim. Este bebê será amado. Já é. Ele meneou a cabeça. – Vocês dois ficarão melhores sem mim. – Luca – sussurrou ela. – Eu o amo. O sentimento não vai desaparecer, não importa o que você faça. – Eu não sei o que amor é – disse ele. – Sou um homem horrível, Kathryn. Horrível o bastante para deixá-la me aceitar de volta, porque eu a quero demais. Horrível o bastante para mantê-la, quando sei que deveria libertá-la. Do que você chamaria isso, se não de loucura? – Amor, seu tolo – murmurou ela, as lágrimas escorrendo pelas faces novamente. – Eu chamaria isso de amor. Luca estendeu os braços e segurou o rosto dela nas mãos, puxando-a para mais perto. Para junto de si, onde achou que nunca mais a teria novamente. Onde faria de tudo para tê-la. – Eu acho – começou ele contra a boca de Kathryn –, que você terá de me mostrar o que quer dizer. E isso pode levar um tempo. E ele pôde senti-la sorrindo, bem ali contra seu próprio sorriso, e foi como chegar em casa. – Eu tenho uma vida inteira. – Ela lhe falou.


O que, Luca decidiu enquanto lhe cobria a boca com a sua, era um começo muito bom. A SEGUNDA vez que ela se casou com um Castelli, foi num dia brilhante de junho, com um céu de verão inglês tão azul acima deles que ninguém precisou dizer a Kathryn que aquilo era um milagre em si. Ela estava começando a acreditar em milagres. Kathryn escondeu sua gravidez, que estava no começo do segundo trimestre, atrás do lindo vestido branco que tinha usado no primeiro casamento. Os sinos tocaram, e a multidão que Luca insistiu em convidar enchia a igreja do vilarejo e se expandia para a rua. Era muito diferente da rápida ida ao cartório em que consistiu seu primeiro casamento. Os paparazzi os tinham perseguido depois daquelas fotos, depois que Luca tinha ido a Yorkshire, e eles se entenderam. A perseguição beirou a histeria quando Luca deu de ombros, um dia, diante das perguntas gritadas pelos repórteres, e anunciou que sim, ele e Kathryn Castelli, a viúva de seu pai, anteriormente conhecida como Santa Kate, estavam noivos. Eles estavam de volta em Roma, então, aconchegados na cobertura, onde Luca insistiu que ela morasse com ele, e Kathryn decidiu deixar o ambiente mais caloroso. Começou com flores. Muitas e muitas flores, as cores espalhando calor e alegria ao redor do espaço de aço elegante. – Quantas flores são muitas? – Ele perguntou outro dia, virando num círculo no centro do espaço imenso. – Elas são uma metáfora – replicou ela, digitando em seu tablet. – Quanto mais cor neste apartamento, mais amor em seu


coração frio. – Então, é melhor você ligar para a florista e encomendar mais. – Luca tinha respondido, aquele brilho nos olhos que ainda fazia o coração dela disparar. – Eu me sinto quase vazio. Então ele mostrou a ela como aquilo era mentira, ali mesmo no sofá sofisticado. – Você não me pediu em casamento. – Kathryn apontou depois que o anúncio de noivado saiu publicado em todos os jornais. – Eu estou me preparando para isso. – Luca a observou arranjar outro buquê de flores. Ele havia feito o jantar, algo que Kathryn não imaginava possível. – Assim como você estava se preparando para me contar que é um cozinheiro gourmet? – Eu sou um homem misterioso e de muitas facetas, cucciola mia. E não posso comer em restaurantes todas as noites da minha vida. – Isso não tem nada a ver com você e seus problemas de controle, tenho certeza – replicou ela, então gargalhou quando ele lhe jogou um punhado de nozes picadas. Os paparazzi os tinham perseguido em Roma, até o dia que Luca parou durante uma de suas corridas e respondeu uma das perguntas impertinentes deles. – Como você pode conviver consigo mesmo, agora que seduziu a esposa de seu pai? – questionou um repórter. Luca sorriu daquele jeito glorioso. – Você a viu? – Ele perguntou. – Eu convivo comigo mesmo muito bem.


Kathryn apenas fez uma careta. Estava mais preocupada de que fosse capaz de continuar trabalhando, fazendo as coisas que queria fazer na companhia. E não esteve acima de vencer aquela discussão usando a artilharia pesada. Quando terminou com Luca, ele tinha rido e lhe dito que lhe daria qualquer coisa se ela se ajoelhasse à sua frente e fizesse tudo aquilo de novo, usando mãos e boca, todos os dias. – Tudo que eu quero é minha própria campanha de marketing – disse ela. – Isso é apenas um benefício lateral. – Continue assim – replicou Luca, preguiçosamente. – E eu lhe darei a empresa inteira. Finalmente, Kathryn ganhou o respeito da maioria de seus colegas de trabalho. E aqueles que não podiam lidar com sua presença no escritório pararam de importar para ela. O dia em que Luca lhe sorriu do outro lado da sala de conferência, após uma apresentação sua e a chamou de brilhante, era tudo que importava. Porque ela estava certa. Estava destinada a fazer aquele trabalho. Foi Luca quem reservou a igreja e cuidou de todos os detalhes do casamento. – Você poderia participar, cucciola mia. – Ele falou uma vez, numa viagem para a Austrália, a fim de fazer um tour por Barossa Valley. – É o seu casamento, também, devo lembrá-la. – Casamento? – perguntou ela, suavemente. – Que casamento? Ninguém me pediu em casamento. Como pode haver um casamento? Ele apenas sorriu.


Rose, é claro, tinha agido de sua maneira cruel usual. Mas, numa de suas visitas ao pequeno chalé em Yorkshire, Kathryn a cortou abruptamente, quando ela começou a destilar seu veneno. – Você se sacrificou por mim, mamãe – murmurou ela, prendendo o olhar de Rose, de modo que não houvesse engano. – Eu nunca poderia agradecê-la o suficiente. Isso é o que mães fazem. E eu dei o melhor de mim para fazer minha parte, também. – Kathryn gesticulava, indicando o chalé onde elas estavam. – Nada irá lhe faltar, nunca mais. E eu sempre cuidarei de você. – Você não está presunçosa, agora que se deitou não com um, mas com dois... – Cuidado. – Luca avisou de sua posição perto da porta, onde gostava de ficar enquanto ela visitava a mãe. Como seu guardacostas emocional. – Muito, muito cuidado, por favor. E Kathryn entendeu que tinha sido Luca quem lhe deu forças para fazer aquilo, finalmente. Para entender que não precisava sofrer a raiva e crueldade de sua mãe. Que não precisava participar daquela disfunção. Luca a amava. Ele queria se casar com ela. Eles teriam um bebê, e, na maior parte do tempo, estavam felizes juntos. Ela não tinha nada para provar a ninguém, muito menos para a mulher amarga e zangada que mais deveria tê-la amado. – Se você não aprender a guardar suas críticas para si mesma, nunca verá seu neto ou neta. – Kathryn lhe falou. – Talvez, eu escolha me sujeitar a isso por obrigação e devoção, mas nunca permitirei que você incuta culpas no meu filho, como fez


comigo. – Rosa protestou, se sentindo ameaçada. – É uma promessa, mãe. Não uma ameaça. A escolha é sua. E então, mais tarde, Luca a abraçou apertado e não a julgou por chorar por causa da infância que nunca teve com Rose. Kathryn achou que não poderia fazer menos por ele. Então, certificou-se de que eles passassem o máximo de tempo possível com Rafael e Lily, porque eles eram o futuro da família Castelli, não o passado triste que Luca já havia superado. Kathryn passou a entender que, por mais adorável que Gianni tivesse sido com ela, foi um pai negligente para Luca. Mas Luca e Rafael eram irmãos, e comandavam a empresa, juntos, e se amavam. Era isso que importava, agora. Eles haviam ido visitá-los logo depois que Lily deu a luz ao bebê Bruno, outro Castelli de cabelo escuro, e ficado na velha mansão por alguns dias. – Eu detesto este lugar. – Luca comentou quando ela acordou uma noite para encontrá-lo diante da janela, em vez de na cama. – Sempre detestei. Ele lhe contou sobre sua infância solitária, sobre todas as maneiras como tentou chamar a atenção da família. Sobre todos aqueles anos tristes, onde foi deixado sozinho, ou aos cuidados de empregados, sofrendo as frustrações de suas madrastas. – Você não é mais criança. – Kathryn lhe disse, saindo da cama, abraçando-o pelas costas e descansando o rosto ali. – Esta casa é o que você fizer dela. É apenas uma casa. – Sempre pareceu uma maldição. – Você pode quebrar a maldição. – Ela lhe prometeu. – Tudo que precisa fazer é me amar. – Isso, cucciola mia, não é problema, em absoluto.


E eles haviam quebrado mais do que algumas maldições naquela noite, enlouquecendo-se mutuamente na grande cama. Pela manhã, tinham se reunido na biblioteca com Rafael, Lily e os meninos, todos eles explodindo com orgulho da nova adição. Aquela era a nova versão dos Castelli, Kathryn pensou. Não o jeito formal como tudo havia sido quando ela foi lá com Gianni. Não o terrível e furioso Luca. Nenhuma daquela confusão porque ela esteve com o homem errado. Nada, exceto amor. Tanto amor, em tantas formas. – Vocês vão mesmo se casar em junho? – perguntou Lily, quando eles estavam sentados em sofás, observando o novo filho de Rafael, aquele sorriso Castelli parecendo iluminar toda a Itália. – Só falta um mês. – Luca está planejando um grande casamento para alguém. – Kathryn replicou com uma risada. – Mas ele ainda não a pediu em casamento, pelo que eu sei. É muito misterioso. – Sobre isso... – começou Luca. Ela olhou para cima para encontrar Luca de pé à sua frente, o mundo inteiro nos olhos escuros. Então ele se ajoelhou, e Kathryn levou as mãos à boca, ouvindo Lily arfar no sofá ao seu lado, e sentindo Rafael virar aquele sorriso na direção deles. – Eu a amo. – Luca declarou. – Quero lhe dar o mundo. Quero este bebê e quero que você, Kathryn, cucciola mia, seja minha esposa, mãe dos meus filhos e a melhor coisa na minha vida, para sempre. Aceita se casar comigo? – Eu não sei – brincou ela, abraçando-o pelo pescoço e sorrindo com tudo que era. – Eu me acostumei tanto com você me chamando de madrasta. Como posso abrir mão disso?


– Você não vai se arrepender – prometeu ele, a boca sorridente e tanta luz nos olhos escuros. – Eu tenho nomes muito melhores para você. – Eu amo você – sussurrou ela. – Acho que sempre o amei. – Você é o amor da minha vida. – Luca tirou a mão dela do seu pescoço e deslizou um anel no seu dedo, onde brilhou tanto que a deixou tonta. Ou talvez o motivo da tontura fosse ele. – Você é a razão pela qual eu sei que tais coisas existem. Você é meu coração, Kathryn. – Sim – sussurrou ela, lágrimas caindo livremente pelo rosto. – Sempre sim, Luca. Sempre. E ela se casou com ele, com Rafael ao lado do noivo e sua nova cunhada ao seu lado, porque família era o que importava. A família deles. Aquela que eles haviam formado, tomando o que precisavam do que tinham recebido e deixando o resto para trás, onde pertencia. – A vida é tão linda. – Ela falou para Luca naquela noite, a primeira dos dois como marido e mulher. – Como pode ficar melhor do que isso? Quatro meses depois, eles descobriram juntos, quando Kathryn deu à luz uma criatura maravilhosa que a família Castelli não via há gerações. Uma garotinha. – Aguente firme, cucciola mia – murmurou Luca quando eles estavam sentados, juntos, na primeira noite como uma pequena família. Ele segurava a filha perfeita nos braços, os olhos escuros preenchidos com amor e luz, e o futuro deles bem diante de seu alcance.


O sorriso que Luca deu então foi grande o bastante para iluminar a noite. – Só vai ficar melhor a partir de agora. E ficou.


LEVADOS AO ALTAR Michelle Conder – Eu sei que você não está dormindo – murmurou uma voz baixa e sexy, enviando ondas de consciência através de sua pele. Mas que inferno, que bela voz esse soldado tinha, e ele foi abrindo os olhos lentamente, a curiosidade levando a melhor. Ele notou os coturnos com biqueira de aço e a calça camuflada, e captou a visão da figura esbelta sob a túnica empoeirada de comprimento médio que cobria um pequeno par de seios ressaltados por braços cruzados. Seu olhar captou um rosto sério, porém feminino, sombreado pelo keffiyeh vermelho tradicional da tribo. – Sei que você não é homem, mesmo que esteja vestido como um. Eu não sabia que Hajjar permitia mulheres em seu exército de rebeldes. Farah enrijeceu um pouco. – Quem eu sou não é importante. Quero fazer um acordo com você – disse ela. Um acordo?


A raiva que ele vinha sentindo e que fora momentaneamente eclipsada pela curiosidade voltou com força total. Ele a controlou, mas muito mal. – Não estou interessado. – Zach sabia que Nadir estaria procurando por ele e, se seu irmão não chegasse ali em breve, ele tinha seu plano de fuga, e aí ia acabar com Mohamed Hajjar por prendê-lo assim. – Você ainda não ouviu o que eu estou oferecendo. – Se você queria minha atenção, deveria usar menos roupa. – Ele analisou o corpo dela com o olhar impassível. – Muito menos. Possivelmente nada, mas mesmo assim não tenho certeza se você tem o que é preciso para manter meu interesse. Uma mentira, porque, por algum motivo, ela já o interessava. Mas sua provocação tinha cumprido seu intento e o leve arfar dela foi digno de nota. – Meu pai está certo. Você é um cão fraco que não merece governar nosso país. – Seu pai? Farah Hajjar? A filha de Mohamed? Ora, ora, isso não era interessante? Zach não esperava que o velho fosse enviar sua filha para fazer sua oferta. – Se você concordar em deixar que nossa região se separe formalmente de Bakaan – disse ela –, eu solto você. – Você vai me soltar? Ele gargalhou e ela se afastou dele, em passadas longas, e ele percebeu que ela não era tão pequenina quanto ele presumira: algo entre 1,60m e 1,65m. Ela parou abruptamente, de frente para ele. – Sua família tem reprimido nosso povo por tempo suficiente.


Eis aí algo sobre o que ele não podia discutir. Zach não tolerara o modo como seu pai havia governado Bakaan, e ele mesmo tinha cogitado dar um golpe de Estado, mas sua mãe teria ficado arrasada. – Eu não fiz nada para o povo de Bakaan. – Mas ele não podia permitir que a tribo dela se separasse do reino porque outras poderiam acompanhar e o país seria dominado pelos vizinhos, que buscavam garantir o monopólio das reservas de petróleo de Bakaan. – Você não fez nada por eles também – rebateu ela –, muito embora tenha voltado e controlado o exército durante os últimos cinco anos. – E quando foi a última vez que o exército atacou qualquer um de seu povo, ou qualquer outro país, para começo de conversa? – soltou Zach, surpreso por ter sido contaminado pela postura dela. – Você está dizendo que é o responsável pela paz? – zombou ela. – Estou dizendo que, apesar de todo esse seu discurso, seu pai potencialmente instigou uma guerra com suas últimas ações. Não eu. – O rosto dela empalideceu quando ele estreitou os olhos. – Algo em que se pensar, querida, antes de sair fazendo um monte de acusações ignorantes! – Você só acha que são ignorantes porque sou mulher. Eu sei mais do que você pensa, Sua Alteza. Ela pronunciou as últimas palavras com o máximo de desdém que conseguiu, e foi uma quantia bastante impressionante. Mas sua petulância só fez irritá-lo mais.


– Mulher? – provocou. – Conheço gambás que cheiram melhor do que você. Eu não aconselharia a comercialização desse perfume. Não é nada atraente. Os olhos dela brilharam à penumbra. – Como se eu fosse querer atrair você – retrucou ela com sarcasmo. Zach quase riu ao tom arrogante. Ele ergueu as mãos e levantou uma sobrancelha. – Desamarre minhas mãos, coisinha bárbara, e logo vou fazer você mudar de ideia.

E leia também em Escolha Inevitável, edição 272 de Harlequin Jessica, Desejo feroz, de Lucy Ellis.


Lançamento do mês: JESSICA 271 – EXTREMOS DO AMOR O sorriso de um playboy – Kelly Hunter Pete Bennett jamais se apaixona pelas mulheres que leva para a cama. São elas que acabam se envolvendo… e Pete as deixa para trás. Até a doce Serena virar seu mundo de cabeça para baixo. Será que Pete finalmente dará uma chance ao amor? Corrida de emoções – Victoria Parker Serena Scott ganhou a difícil missão de fazer com que o rebelde piloto de corridas Finn St George entre novamente na linha. Ele está determinado a seduzi-la. Serena, a resistir. Quem será que vai vencer essa deliciosa batalha? Próximos lançamentos: JESSICA 272 – ESCOLHA INEVITÁVEL Levados ao altar – Michelle Conder O príncipe Zachim conseguiu escapar das garras de seu maior inimigo… e levou a filha dele como prisioneira! Mas Farah Hajjar não se curva perante homem algum. E à medida que o jogo de poder aumenta, eles ficam tentados a se render a essa atração proibida. Desejo feroz – Lucy Ellis Quando Gigi Valente e Kahled são flagrados pelos paparazzi, ele acha que fora um plano Gigi para impedi-lo de vender o cabaré


onde trabalha. Então, a leva para a Rússia a fim de afastá-la da mídia. Porém, Khaled logo descobre que tê-la ao seu lado seria muito mais proveitoso do que imaginara… JESSICA ESPECIAL 003 – NATUREZA APAIXONADA União de sentimentos – Anna Cleary Cate Summerfield ouviu uma conversa sigilosa do poderoso Tom Russell. Agora, ele fará o que for preciso para impedi-la de revelar detalhes de um importante acordo. Tom a manterá por perto… e irá seduzi-la para que não cause problemas. Jardim da paixão – Louise Fuller Massimo Sforza está determinado a convencer Flora Golding a vender o palazzo onde vive. Porém, ele não esperava que a paixão dela pelo lugar o fizesse desejar cruzar a linha entre negócios e prazer. Domando corações – Rachael Thomas Destiny Richards sabe que está brincando com fogo ao aceitar a proposta de emprego do carismático sheik Zafir, mas ela precisa recomeçar a vida. E não demora para que a intensa atração que eles sentem resulte em uma noite inesquecível de pura rendição.


Próximo lançamento: JESSICA MINISSÉRIE 009 – IRRESISTÍVEL PAIXÃO – CAROL MARINELLI O preço para a redenção Daniil Zverev é conhecido como o magnata mais implacável do mundo. E ninguém soubera da crueldade e rejeição que estão por trás de seu enorme sucesso. Contudo, a sedutora bailarina Libby Tennent está cada vez mais perto da verdade… O preço do proibido O CEO Sev Derzhavin é um mestre em conseguir o que deseja. E quando sua assistente pessoal pede demissão, ele não resiste ao desafio de fazer com que Naomi Johnson mude de ideia. Ele fará o que for preciso para convencê-la a ficar, até mesmo seduzi-la. Último lançamento: JESSICA MINISSÉRIE 007 – DOCES MENTIRAS – DANI COLLINS Para manter um casamento Alessandro Ferrante se casou com Octavia por dever, mas ela logo conquistou seu coração. Contudo, um acontecimento trágico abala a relação desse casal. E Alessandro terá de usar todo o seu poder de sedução para reconquistar sua esposa! Para conquistar uma paixão


Sorcha Kelly sabia que deveria se manter afastada do seu estonteante chefe. Contudo, seu pedido de demissĂŁo abriu as portas para o desejo perigoso que tentavam ignorar. Mas logo Kelly descobriria que existem consequĂŞncias de se entregar ao prazer.


CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C945i Crews, Caitlin Os irmãos Castelli [recurso eletrônico] / Caitlin Crews; tradução Ligia Chabú. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Harlequin, 2016. recurso digital HB Tradução de: Unwrapping the Castelli secret; Castelli's virgin widow Formato: epub Requisitos do sistema: adobe digital editions Modo de acesso: world wide web ISBN 978-85-398-2251-5 (recurso eletrônico) 1. Romance americano. 2. Livros eletrônicos. I. Chabú, Ligia. II. Título. 16-33821

CDD: 813 CDU: 821.111(73)-3

PUBLICADO MEDIANTE ACORDO COM HARLEQUIN BOOKS S.A. Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução, o armazenamento ou a transmissão, no todo ou em parte. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Título original: UNWRAPPING THE CASTELLI SECRET Copyright © 2015 by Caitlin Crews Originalmente publicado em 2015 por Mills & Boon Modern Romance


Título original: CASTELLI'S VIRGIN WIDOW Copyright © 2016 by Caitlin Crews Originalmente publicado em 2016 por Mills & Boon Modern Romance Gerente editorial: Livia Rosa Assistente editorial: Tábata Mendes Editora: Juliana Nóvoa Estagiária: Caroline Netto Arte-final de capa: Isabelle Paiva Produção do arquivo eBook: Ranna Studio Editora HR Ltda. Rua Nova Jerusalém, 345 Bonsucesso, Rio de Janeiro, RJ – 21042-235 Contato: virginia.rivera@harlequinbooks.com.br


OS IRMÃOS CASTELLI Texto de capa Teaser Querida leitora Rosto Sumário SENTIMENTOS MASCARADOS Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 SENTIMENTOS OCULTOS Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5


Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Próximos lançamentos Créditos


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