VOX IURIS - 2ª Edição 2022

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DIRETOR

Miguel Santos SUBDIRETORES

Rúben Azevedo Gabriela Lemos Catarina Lêdo Francisco Casanova COLABORADORES

Júlio Eiras-Novo Alexandra Gonçalves COORDENADOR EDITORIAL

Miguel Santos ILUSTRAÇÕES

Claúdia Bonnet Sá DESIGN EDITORIAL

Madalena Cordeiro


Editorial

FEV.MAR 2022

004

in Memoria

A Cooperativa

009

O Recurso ao princípio da Dignidade da pessoa Humana na Jurisprudcência do Tribunal Constitucional de Jure

Cogito

011

E-Health e o RGPD: um puzzle a ser resolvido?

020

Um acidente de viação no processo cível contemporâneo

024

Os vários ramos jurídicos enquanto concretizadores do Estado de Direito

031

Angola, Eleições e o seu Presidencialismo

035

O relacionamento entre a vida laboral e vida privada do praticante desportivo: a aliança que as (des)une

041

Direito à Liberdade de Querer Ter Saúde

048

Reflexões sobre o dia de reflexão – ainda se justificará a sua existência?

053

Uma Justiça do contraditório na sociedade na sociedade do imediato

057

Porque é que Portugal é um Estado de Direito?

063

O consentimento e os crimes sexuais

069

O estranho caso das empresas familiares em Portugal

075

A celeridade judicial: Inteligência artificial e juiz administrativo

079


Breve reflexão sobre o ensino do Direito das Crianças

084

“Só uma certeza sobre a questão do Rendimento Básico Incondicional. É que, aparentemente, é a melhor cura para a Prisão Perpétua”

086

O processo de regionalização em Portugal

090

Ecologia: Movimento ou Marketing?

094

Personna

Entrevista com a Professora Ana Rita Simões

100

O Legislador és tu

O Teletrabalho: uma alternativa para alguns

108

Direito Ao Clima Estável

121

Cogito



FEV.MAR 2022

Porque é que a Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho, deve compor uma revista para os seus estudantes?

Miguel Santos


A primeira e imediata resposta será sempre, porque nós, estudantes de Direito, gostamos de ler. Gostamos de ler romances, gostamos de História e de histórias, gostamos de saber sobre o passado, pensar o presente e projetar sobre o futuro. É simples, gostamos de ler, pois somos apaixonados pelo saber, e queremos saber além da lei. E como esta paixão existe, faz todo o sentido que a Associação de Estudantes, enquanto representante dos alunos e dos seus interesses, se organize em função de criar uma outra oportunidade para alimentar este nosso saudável vício. Contudo, não diria que é este O motivo. Vox Iuris

editorial

005

Miguel Santos

O motivo, é o facto de querermos dar voz à Escola de Direito da UM, a todos nós, aos estudantes, mas também aos docentes, e atrevo-me ainda a dizer, à comunidade académica no seu todo. O estudante de Direito não quer aprender o que está por trás dos artigos ou o que ‘Estado de Direito’ significa, para ter esse conhecimento armazenado num canto do nosso baú de sabedoria, ao qual costumamos chamar ‘cérebro’. Queremos ter os conhecimentos que estes anos de aprendizagem proporcionam, porque queremos participar ativamente na construção de uma sociedade melhor. Porque desde o primeiro dia


que chegamos a esta casa, começamos a entender a importância em ter uma perspetiva mais justa e séria sobre aquilo que é o nosso quotidiano, a nossa sociedade, e, perdoem-me a repetição, sobre o que é justiça. E essa construção faz-se através do pensamento, da reflexão, da crítica, da ponderação e da interrogação! Com esta edição da Vox Iuris, nada mais quisemos obter do que uma plataforma para projetar essas reflexões e problematizações, onde todos os que quiseram dar a sua palavra, tiveram essa oportunidade, como devem sempre ter.

Obrigado a todos os participantes, aos meus colegas e amigos que me ajudaram a conseguir este trabalho e nada mais resta além de vos desejar uma boa leitura.


IN MEMORIA

(007)



A COOPERATIVA Sofia Pinto Oliveira Vox Iuris

cogito

Não queria escrever este texto. Por uma razão óbvia: não queria que o acontecimento que lhe dá origem tivesse acontecido. E também por outra razão, mais pessoal: perante a morte, prefiro o silêncio. Fico esvaziada de palavras. Todas me parecem vãs. Estou, porém, convencida de que, se tivesse sido eu a primeira a partir, a Benedita não se pouparia a esforços para que se resistisse um pouco mais ao esquecimento, para manter viva a minha memória. Por isso, não podia falhar e tinha de dizer sim ao convite da Associação de Estudantes de Direito. Aqui estou. Presente. A lembrar a Benedita. Entre tantas coisas que poderiam ser recordadas, de uma relação que foi longa,

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Sofia Pinto Oliveira

intensa e que foi muito para além do plano profissional, escolhi escrever sobre uma das coisas únicas que existia entre nós: uma verdadeira cooperativa de trabalho. Tínhamos interesses comuns, trabalhávamos nas mesmas áreas, mas também temas de predileção pessoal diferentes. A Benedita interessava-se muito pelo domínio dos Direitos Humanos e Biomedicina, que nunca me fascinou do ponto de vista jurídico. Nessa área, dominava naturalmente. Nas outras, escrevíamos muitas vezes em coautoria, preparávamos as aulas em conjunto. São textos em que não sei já onde estão os contributos de uma ou de outra. Estão ali entrelaçados os trabalhos de ambas, juntos sempre para benefício do resultado final. Em todos os nossos estudos, gostávamos muito de falar as duas sobre o que estávamos a fazer, sobre


aquilo em que vínhamos pensando, de mostrar os rascunhos do que queríamos publicar. Podíamos fazê-lo sem receios, sem reservas. E estávamos sempre atentas à opinião uma da outra, à dica, à sugestão de leitura que nos era oferecida. Era assim que trabalhávamos. Um dos muitos momentos em que a nossa cooperativa entrou em ação foi no Moot Court de Direito Constitucional, que se realizou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em 2017 (ocasião em que foi tirada a fotografia que acompanha este texto). A Benedita gostava de proporcionar aos estudantes experiências diferentes, de replicar atividades que tinha desenvolvido enquanto aluna da Universidade do Porto. As visitas de estudo ao Tribunal Constitucional, à Assembleia da República e à Presidência da República são um bom exemplo dessa prática. Em 2017, realizou-se aquele Moot Court, no qual só podiam participar estudantes de 1º ano, e nós decidimos que iríamos incentivar os nossos alunos a inscrever-se. Conseguimos que se constituíssem duas equipas, a Benedita ficou como “coach” de uma. Empenhámo-nos ambas na preparação das duas equipas, convidámos colegas a ajudarem no “treino” dos oito estudantes que iam representar a Universidade do Minho naquela competição. As equipas portaram-se ambas muito bem, mas o grupo da Benedita destacou-se e passou à final. Quando lhe dei os parabéns, satisfeita pelo resultado coletivo alcançado pela Universidade do Minho, mas também pela vitória pessoal – na final, que iria decorrer na vetusta Universidade de Coimbra, a Benedita teria um papel destacado e era natural que essa circunstância lhe trouxesse particular alegria e orgulho -, a Benedita respondeu prontamente:

“Não vejo as coisas assim. Fizemos isto em conjunto.” Era isto. Sempre. E era muito bom. Sei que agora há que seguir em frente. Mais algum tempo. Sei que temos Colegas cheios de qualidades académicas e também pessoais. A Benedita, porém, é insubstituível. E a nossa cooperativa, irrepetível.

Vila Nova de Famalicão, 4 de fevereiro de 2022


O RECURSO AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL1 Benedita Mac Crorie I. Introdução

Neste artigo propomo-nos fazer uma análise das decisões do Tribunal Constitucional (TC), nas quais este tenha feito referência directa ou indirecta ao princípio da dignidade da pessoa humana, na fundamentação da sua decisão. É nosso propósito, em primeiro lugar, tentar discernir qual a orientação de método que este Tribunal tem seguido quando invoca o princípio da dignidade da pessoa humana, isto é, se o aplica sempre da mesma forma ou se, pelo contrário, lhe confere e uma multifuncionalidade. Em segundo lugar, e partindo da jurisprudência analisada, determinar qual o sentido atribuído a este princípio pelo TC. Nos anos mais recentes tem tido lugar um debate referente à justificação racional do conceito de dignidade2, uma vez que existem quase tantas interpretações deste conceito como doutrinas ou correntes filosóficas3. Consequentemente, nos documentos modernos relativos aos direitos fundamentais, a questão de saber como se justifica a dignidade do ponto de vista teórico é deixada em aberto. O legislador não dá qualquer definição explícita deste conceito, preferindo uma abordagem pragmática, de forma a facilitar o acordo nesta matéria4. Assim também o nosso legislador constituinte5 deixou essa tarefa nas mãos do julgador, pelo que procuraremos aferir se o TC tem interpretado o conceito de dignidade da pessoa humana da forma que consideramos mais adequada. Para isso tentaremos densificar este conceito, uma vez que, sem uma ideia geral razoavelmente clara do seu sentido, não podemos rejeitar as suas más utilizações6. Não temos a pretensão de fazer uma análise exaustiva de todos os acórdãos que dizem respeito a esta matéria, mas pensamos ter conseguido reunir um número suficientemente exemplificativo das diferentes situações em que o Tribunal tem aplicado este princípio.



I. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 01. Consagração constitucional

Um dos aspectos característicos da técnica legislativa actual é a declaração e utilização de princípios pelo legislador. Esta metodologia constitucional veio potenciar a renovação do método jurídico, uma vez que se passa a confiar aos tribunais a concretização das disposições constitucionais, dando-se a superação da divisão tradicional do trabalho jurídico nas funções de criação, interpretação e aplicação da lei, e da supremacia do poder legislativo sobre o poder de julgar7. Na parte introdutória da Constituição da República Portuguesa de 1976 podemos identificar vários princípios jurídicos. Esta Constituição deve ser compreendida como um sistema interno assente em princípios estruturantes fundamentais que, por sua vez, assentam em sub-princípios e regras constitucionais que os concretizam8. Estes princípios são verdadeiras normas jurídicas na medida em que, tal como as regras, estabelecem o que “deve-ser”. Distinguem-se, no entanto, destas porque são normas jurídicas impositivas de uma optimização. Os princípios ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades

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in memoria

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Benedita Mac Crorie

jurídicas e fácticas existentes. As regras, por seu lado, são normas de tudo ou nada, que só podem ser ou não cumpridas9. Um dos princípios estabelecidos na parte introdutória da Constituição, que tem como epígrafe “Princípios fundamentais”, é o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.°). Este é estruturante do ordenamento jurídico português, uma vez que é constitutivo ou indicativo de uma ideia directiva básica de toda a ordem constitucional, ou seja, a concepção que faz da pessoa fundamento e fim do Estado e que vem na linha da tradição cultural do Ocidente e marca o seu constitucionalismo democrático10. É esse o entendimento do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.° 16/8411. Neste Acórdão o Tribunal Constitucional estabelece que “(…) a nossa actual Constituição, partindo da dignidade da pessoa humana, princípio estrutural da República Portuguesa, (...) intentou retirar às penas todo o carácter infamante (...). Também no Acórdão n.° 43/8612, o Tribunal considera que: “(...) ao instituir a pena relativamente inderterminada, o legislador pretendeu que o Estado se assumisse como um Estado de Direito democrático, actuando no respeito do basilar princípio da dignidade da pessoa humana (...).” Este princípio estruturante ganha densidade através


das suas concretizações, em princípios especiais ou regras que com ele formam uma unidade material13. O princípio da dignidade é um princípio jurídico fundamental na medida em que é historicamente objetivado e progressivamente introduzido na consciência jurídica, encontrando uma recepção expressa no nosso texto constitucional. Os princípios jurídicos fundamentais reconduzem-se àquele património axiológico-normativo e jurídico que, uma vez revelado fica verdadeiramente adquirido para sempre pelo menos no âmbito de uma mesma intencionalidade culturalmente fundamental. Estes princípios transcendem o plano da existência jurídico-positiva em que os direitos positivos se manifestam e se sucedem uns aos outros, e isto porque se trata de princípios que, ao serem uma vez intencionalmente assumidos, se compreendem como determinações da própria intenção axiológica constitutiva do direito enquanto tal14. Este princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é um princípio ético-jurídico, uma vez que radica numa “ideia jurídica material”, sendo uma manifestação especial da ideia de direito15.

02. A multifuncionalidade do princípio

Aos princípios constitucionais e, neste caso concreto, ao princípio da dignidade da pessoa humana, não é atribuída apenas uma função. Também os princípios, enquanto normas constitucionais, são dotados de multifuncionalidade16. Ao princípio da dignidade da pessoa humana cabem funções diferenciadas; umas vezes, este é fundamento de regras ou princípios, desempenhando uma função normogenética, ou seja, é um princípio gerador de outras normas17; outras vezes, serve como critério de interpretação ou de integração18, atribuindo um significado coerente aos enunciados de interpretação dúbia ou explicitando as normas que o legislador constituinte não exprimiu cabalmente19, e, outras vezes ainda, é utilizado como fonte directamente aplicável, uma vez que, como entende ALEXY, a norma da dignidade da pessoa humana é tratada em parte como regra e, em parte, como princípio20. Esta distinção que, em termos teóricos, parece clara e precisa, na experiência concreta é mais difícil de ser feita21. Pudemos constatar isso na análise jurisprudencial que fizemos, uma vez que o princípio da dignidade da pessoa humana é, por vezes, utilizado num mesmo acórdão de forma diferenciada. Vamos, agora, procurar identificar estas diferentes funções na jurisprudência do Tribunal Constitucional.


02.1. A função normogenética 02.1.1. A dignidade da pessoa humana como fundamento para os direitos fundamentais.

O princípio da dignidade da pessoa humana exerce uma função normogenética na medida em que, por um lado, é fundamento de regras ou princípios já expressamente consagrados no nosso ordenamento jurídico constituindo a sua ratio, e, por outro, é dotado de uma vertente criadora, sendo princípio gerador de novas normas. Esta função assume uma particular importância no que se refere a matéria de direitos fundamentais. De facto, a raiz ética dos direitos fundamentais reside na dignidade da pessoa humana22. Esta é o fundamento destes direitos, não só dos direitos liberdades e garantias, mas também dos direitos económicos sociais e culturais, uma vez que estes visam garantir as bases da existência humana23. É o caso do direito à habitação, como constatamos no Acórdão n.° 151/9224. Afirma o Tribunal: “(...) fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana, ou seja, naquilo que a pessoa realmente é: um ser livre com direito a viver dignamente, existe aí um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer.” Também no Acórdão n.° 420/0025, o Tribunal, na sua fundamentação se refere mais uma vez ao direito à habitação, considerando que “(...) o

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cogito

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Benedita Mac Crorie

direito à habitação, embora seja um direito cuja realização — uma realização gradual, pois é um direito colocado sob reserva do possível — constitui, essencialmente, tarefa do Estado (...), funda-se na dignidade da pessoa humana.” No Acórdão n.° 951/9626, o direito em causa é o direito ao trabalho. Aqui, o Tribunal estabelece que, “com efeito, a nossa lei fundamental assenta na dignidade da pessoa humana, que é o fundamento de todo o ordenamento jurídico, base do próprio Estado, ideia que unifica todos os direitos fundamentais e que perpassa também pelos direitos sociais, que incluem o próprio direito ao trabalho.” Por outro lado, ainda dentro da função normogenética, este princípio serve para atribuir a outros direitos, que não os expressamente consagrados na Constituição, o carácter de direitos fundamentais. De facto, para aferir se um determinado direito tem uma natureza análoga a direitos, liberdades e garantias (artigo 17.° da Constituição), um dos elementos a respeitar é “tratar-se de uma posição subjectiva individual ou de uma garantia que possa ser referida de modo imediato à ideia da pessoa humana (...)”27, É o caso do Acórdão n.° 6/8428. Neste caso, o Tribunal considerou


que a Constituição admite um direito geral de personalidade, o qual, nesta altura, não estava consagrado de forma expressa na Constituição:29 ”(...) tudo parece levar à conclusão de que a nossa Constituição admite e consagra um direito geral de personalidade. O mais poderoso argumento pode equacionar-se assim: a nossa Constituição declara que Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana, logo acolhe o princípio de que a todo e qualquer direito de personalidade, isto é, a todo e qualquer aspecto em que necessariamente se desdobra um direito geral de personalidade, deve caber o maior grau de proteção do ordenamento jurídico, ou seja, o que assiste aos direitos fundamentais, pois os direitos de personalidade são inerentes à própria pessoa, não podendo, por isso, ser postergados por qualquer modo, sob pena de se negar o papel da pessoa como figura central da sociedade. No Acórdão n.° 436/0030 o Tribunal utiliza a mesma argumentação: ”(...) o direito geral de personalidade radica no princípio da dignidade da pessoa humana que o artigo 1º da Constituição proclama”. É também neste princípio que se fundam os direitos de informação sobre o andamento dos processos em que cada cidadão seja interessado e o direito ao conhecimento das resoluções definitivas através da sua notificação ou publicação, enquanto direitos de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias, o que podemos constatar no Acórdão n.° I 93/9231, no qual se afirma que o princípio constitucional do respeito pela dignidade da pessoa humana (é o) princípio inspirador dos direitos fundamentais (...)”. Aqui, o Tribunal julga inconstitucional a norma constante do n.° 4 do artigo 9.° do Decreto-Lei n.° 498/88, de 30 de Dezembro, que restringe o direito de acesso de candidatos a concurso de provimento a parte das actas do júri em que são definidos os critérios de apreciação aplicáveis a todos os candidatos e aquela em que são directamente apreciados.” É também o princípio da dignidade da pessoa humana que serve de fundamento a um direito à existência mínima, enquanto direito fundamental. No Acórdão n.° 232/9 o Tribunal afirma que “não pode esquecer-se que o respeito incondicional da dignidade da pessoa humana exige, antes de mais, a garantia de um mínimo de sobrevivência.” Igualmente no Acórdão n.° 349/9133 o Tribunal reconheceu um direito à existência mínima, utilizando os seguintes argumentos: ”(...) o artigo 63.°, n.° 1 da CRP reconhece a todos os cidadãos um direito à segurança social (...) Este preceito poderá, desde logo, ser interpretado como garantindo a todo o cidadão a perceção de uma prestação proveniente do sistema de segurança social que lhe possibilite uma existência condigna (...). Mas ainda que não possa ver-se garantido no artigo 63.° um direito a um


mínimo de sobrevivência, é seguro que este direito há-de extrair-se do princípio da dignidade da pessoa humana, condensado no artigo 1 .° da Constituição.” Finalmente, no Acórdão n.° 583/0034, o Tribunal considerou o “direito à existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana.”

A versão completa do artigo pode ser consultada através do seguinte link ou QR Code.

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cogito

1 Este artigo tem como base o relatório elaborado para o seminário de Metodologia do Direito. do 4.° Programa de Doutoramento da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. no ano lectivo de 2001/2002 2 ROBERTO ADORNO, The paradoxical notion of human dignity. in Rivista Internazionale di filosofia del Diritto , serie V, anno LXXVIII, n. 2, aprile/giugno 2001, p.151 3 FRANZ JOSEF WETZ, Die Würde der Menschen ist anstabar. Eine Provokation, Klett-Cotta, 1998, p.14. 4 ROBERTO ADORNO, The paradoxical notion of human dignity, cit., p. 156. 5 Neste sentido, MARCOS KEEL PEREIRA, “O lugar do princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência dos tribunais portugueses. Uma perspectiva metodológica”, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Working Papers, Working Payee 4/02.

6 Neste sentido, OSCAR SCHACHTER, “Human dignity as a normative concept” in American Journal of International Law, Vol. 77, October 1983, p. 849. 7 ANTÓNIO PEDRO BARBAS HOMEM, “A utilização de princípios na metódica legislativa”. in Separata de Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, n.° 21, INA, 1998, p. 93-S5 e p. 102 e 103.

JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitutional e Teoria da Constituição. 4ª edição, Livraria Almedina, Coimbra, 2000, p. 1137. 8

9 Nesse sentido, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1124 e 1125 ; ROBERT ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1993, p. B3; IDEM, El concepto y la validez del derecho, Gedisa, Barcelona, 1994, p. 162. 10 JORGE MIRANDA. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra Editora, 2000. p. 180: também JOSÊ

Benedita Mac Crorie MANUEL CARDOSO DA COSTA, “O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Constituição e Jurisprudência Constitucional Portuguesas”, in Direito Constitucional, Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Dialéctica, S. Paulo. 1999, p. 191. 11 Publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Maio de 1984. 12 Publicado no Diário da República, 2.ª série, n.° 111, de 15 de Maio de 1986. 13 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição cit., p. 1137-1 139. 14 A.CASTANHEIRA NEVES, “Justiça e Direito”, in Separata do Volume LI do Boletim da faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1976, p. 51 e 52; JOSÉ GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p.1128. 15 KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 487 e 674 .


Na doutrina italiana, SERGIO BARTOLE considera que são atribuíveis três funções distintas aos princípios: uma função integrativa, uma função interpretativa e uma função programática. Estes exercem uma função integrativa quando são utilizados para dar regulamentação a casos que não correspondem a nenhuma norma específica; por sua vez, a função interpretativa consiste na atribuição de um significado coerente com o próprio princípio às disposiçõs já vigentes e de sentido incerto; finalmente, a função programática dos princípios traduz-se na utilização destes como ordens e orientações a prosseguir na actividade legislativa. Nesse sentido, ver SERGIO BARTOLE, “Principi del diritto”, in Enciclopedia del Diritto, XXXV, Giuffrè Editore, p. 514-516. 16

Acerca da função normogenética dos princípios, ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p, 1125; também JORGE MIRANDA Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1991, p. 227, parece reconhecer esta função aos princípios atribuindo-lhe o nome de função prospetiva, dinamizadora e transformadora. 17

JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, cit., p.227. 18

O que parece resultar daquilo a que JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1 127 designa por função sistémica dos princípios, uma vez que estes têm uma idoneidade irradiante que lhes permite ligar ou cimentar objectivamente todo o sistema constitucional. 19

JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO - VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra Editora, 1993, p. 58 e 59. 23

Publicado no Diário da República, 2ª série, de 2 de Maio de 1984. 24

25

link.

Publicado em Diário da República, n.° 292, 2ª série, de 2 de Novembro de 1995. 26

JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2001. p.193. 27

Publicado no Diário da República, 2ª série, de 2 de Maio de 1984. 28

Concordamos aqui com PAULO MOTA PINTO, “O Direito ao livre desenvolvimento da personalidade”. in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal- Brasil, ano 2000. Coimbra Editora. 1999. P.173. onde o autor considera que ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 26. º. nº1 da Constituição, na Revisão Constitucional de 1997, passou a constituir o fundamento constitucional expresso do direito geral de personalidade no direito português. 29

30

link.

Publicado no Diário da República, 2ª série, de 25 de Agosto de 1992. 31

Publicado no Diário da República, 2ª série, de 17 de Setembro de 1991. 32

20

ROBERT ALEXY, Teoria de los deretchos fundamentales, cit. , p. 106.

Publicado no Diário da República, 2ª série, de 2 de Dezembro de 1991.

SERGIO BARTOLE, “Principi del diritto”, cit., p. 51.

34

21

JORGE MIRANDA, A Constituição de 1976. Formação, estrutura princípios fundamentais, Livraria Petrony, Lisboa, 1978, p. 348. 22

33

link.


DE JURE

(019)


Artigo

001.

E-HEALTH E O RGPD: UM PUZZLE A SER RESOLVIDO? Maria Bahia

Marlene Ribeiro

001.


A evolução tecnológica e todas as transformações inerentes estão a mudar o modo como encaramos a saúde. Com o passar dos anos, o setor da saúde tornou-se cada vez mais digitalizado e interligado, através da utilização de tecnologias da informação e comunicação (e-Health). Isto levou a uma transformação na prestação e gestão dos cuidados de saúde, algo observável em situações comuns como: o registo de saúde dos pacientes estar inteiramente disponível para as equipas médicas como informação eletrónica, ou os resultados de um exame serem facilmente introduzidos na cloud, ou ainda o atendimento remoto ao paciente através da telemedicina ser uma realidade cada vez mais comum. Ainda assim, tudo isto implica o tratamento de dados considerados sensíveis, sendo necessário assegurar a sua segurança e privacidade. Para isso, temos de perceber qual a base legal que baseia tudo isto. O Regulamento Geral de Proteção do Regulamento Geral de Proteção de Dados (EU) Vox Iuris

de jure

digital; e, por último, o reforço dos direitos das pessoas singulares, protegendo-os dos riscos e ameaças associadas ao uso indevido dos seus dados pessoais. No âmbito do RGPD, consideram-se dados pessoais toda a informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável com base nesses dados. Uma pessoa é identificada quando é diferenciada de todas as outras e, por sua vez, é identificável quando, apesar de não ter ainda sido identificada, poder vir a sê-lo. É de salientar que existem alguns dados que se enquadram em categorias especiais, uma vez que revelam informação de foro íntimo e privado dos cidadãos. Por sua vez, é considerado tratamento de dados pessoais qualquer tipo de operação efetuada sobre dados pessoais, podendo haver recurso (ou não) a meios automatizados. Para que haja recolha e tratamento de dados pessoais, temos de ter em mente alguns princípios fundamentais, presentes no art. 5o do RGPD,

021

2016/679 do P.E. e do Conselho (doravante RGPD) vem substituir a Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de outubro de 1995. Este tem como mote o reforço e a uniformização das medidas de proteção dos dados pessoais de todos os cidadãos da União Europeia. De facto, até então, os dados das pessoas singulares eram processados de forma completamente indiscriminada, sem se saber qual a sua finalidade ou qual o tempo de processamento. A ideia chave é assim devolver aos indivíduos o controlo da sua informação pessoal, tornando-os menos vulneráveis a todas as alterações tecnológicas e a novas formas de tratamento de dados. Os três pilares principais da sua aplicação são: a atualização da legislação relativa à proteção de dados pessoais, tendo em consideração toda a evolução tecnológica; a harmonização de toda a legislação existente nos diversos EstadosMembros, caminhando para um mercado único

Maria Bahia & Marlene Ribeiro

mais concretamente: o princípio da licitude, lealdade e transparência, o princípio da limitação das finalidades, o princípio da minimização dos dados, o princípio da exatidão, o princípio da limitação da conservação , o princípio da integridade e confidencialidade e o princípio da responsabilidade. Para além disto, o RGPD reforça os direitos dos titulares elencado um conjunto de direitos, nomeadamente: o direito à transparência, o direito à informação, o direito de acesso, o direito de retificação, o direito ao apagamento, o direito à limitação do tratamento, o direito de oposição, o direito à notificação, o direito à não sujeição a decisões automatizadas e o direito à portabilidade. Como já mencionado, existem categorias especiais de dados (art. 9o RGPD) que necessitam de um grau elevado de proteção, como é o caso dos dados de saúde. São considerados dados pessoais relativos à saúde todos os dados relativos ao estado de saúde de um titular de dados que


revelem informações sobre a sua saúde física ou mental no passado, no presente ou no futuro (Considerando 35). O setor da saúde requer um tratamento de dados exímio e de alta responsabilidade, devido à sua extrema sensibilidade, devendo apenas ser objeto de tratamento para fins relacionados com a saúde, nomeadamente, para atingir objetivos no interesse dos próprios titulares e da sociedade. Analisando o artigo 3o da Lei no 12/2005 de 26 de janeiro, facilmente entendemos que qualquer informação de saúde é propriedade da pessoa e esta reserva o direito de ter acesso e ser informada sobre o tratamento destes dados e quais as finalidades adjudicadas. Aliás, o Considerando 63 do próprio RGPD, admite que os titulares dos dados devem ter o direito de aceder aos dados recolhidos que lhe dizem respeito e de exercer esse mesmo direito com facilidade e num prazo razoável, de modo a tomar conhecimento do tratamento e verificar a licitude do mesmo. O consentimento é um dos requisitos essenciais para o processamento deste tipo de dados, sendo imposto um padrão exigente, nomeadamente, um ato positivo claro que manifeste a vontade livre, específica, informada e inequívoca (artigo 6o no 1 a) e artigo 9o no 1 a) RGPD). Aqui é de salientar que o silêncio, as opções pré-determinadas ou as omissões não constituem consentimento, podendo o titular dos dados retirar o seu consentimento a todo o tempo. No caso de tratamento de dados de saúde, incluindo dados genéticos, e não obstante constituírem dados sensíveis, o seu tratamento está sujeito a mera notificação à Comissão Nacional de Proteção de Dados, na medida em que tal tratamento será necessário para efeitos de medicina preventiva, de diagnóstico médico, de prestação de cuidados ou tratamentos médicos ou ainda de gestão de serviços de saúde. A crescente dependência com sistemas interligados no âmbito da saúde apresenta também um sem número de desafios, nomeadamente, no que se refere à segurança digital. Assim, os profissionais de saúde e os pacientes necessitam de confiar

nos serviços disponíveis, onde os dados pessoais sensíveis do paciente serão sempre confidenciais e inalterados. Com a pandemia, a segurança digital tornou-se num puzzle muito mais difícil de resolver, havendo mesmo um aumento no que se refere aos crimes cibernéticos. Assim, todos os desafios que o setor de saúde enfrenta estão muito relacionados com desafios antigos, isto associa-se muito às baixas maturidades dos sistemas de segurança nos hospitais (como na falta de um Chief Information Security Officer, bem como políticas de segurança e controlos de acesso), a falta de consciencialização sobre a segurança, a vida útil dos dispositivos médicos utilizados ser muito maior do que a prevista pelo fabricante e também a vulnerável natureza dos dispositivos médicos (falhas identificáveis nos dispositivos desenvolvidos)1. Isto é observável, por exemplo, no caso do Centro Hospital Barreiro-Montijo (CHBM), onde a Ordem dos Médicos denunciou várias irregularidades, nomeadamente, pela existência de perfis médicos falsos que tinham acesso ao sistema informático clínico do hospital (existiam utilizados não médicos que podiam consultar o sistema). A Comissão Nacional de Proteção de Dados procedeu às devidas investigações e acabou por aplicar três coimas no valor global de 400 mil euros (mais tarde anulada) por violação do princípio da minimização de dados (art. 5o no1 c)), violação do princípio da integridade e confidencialidade (art. 5o no1 f)) e pela incapacidade do responsável pelo tratamento dos dados de assegurar a confidencialidade e a integridade dos dados (art. 32o no1 b))2. É de salientar o papel da ENISA (Agência da União Europeia para a Cibersegurança) como centro especializado que promove a cibersegurança na Europa. Esta tem trabalhado com as várias partes, desenvolvendo boas práticas e partilhando diversas informações de forma a uma resposta mais rápida e célere no caso de ocorrência de incidentes cibernéticos. Neste sentido, a consciencialização e a educação são elementos fundamentais contra as ameaças cibernéticas e para a


proteção dos dados pessoais dos indivíduos. Tal é deveras importante, uma vez que as equipas médicas tendem a observar os controlos de segurança como obstáculos na realização do seu trabalho. Desta forma, entendemos que muitas vezes o conhecimento sobre a arquitetura informática de suporte ao setor da saúde é pouco. É de admitir que as TIC aplicadas à saúde melhoram a qualidade de vida e estimulam a inovação constante deste setor. Para que todos estes desafios sejam superados com sucesso, é necessário que os titulares dos dados depositem confiança nos responsáveis pelo tratamento (e claro, os subcontratados), para que se possam criar práticas seguras no que toca ao tratamento de dados de saúde conforme o novo Regulamento.

Vox Iuris

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023

Price, S. (2020). ENISA discusses cyberchallenges in digital health. Health Europa. Disponível no link. 1

Vicente, R. (2019). RGPD: O que retirar da multa ao Hospital do Barreiro - Notícias na Cloud. Knowledge Inside. Disponível no link. 2

Maria Bahia & Marlene Ribeiro


Artigo

002.

UM ACIDENTE DE VIAÇÃO NO PROCESSO CÍVEL CONTEMPORÂNEO

André Francisco Soares Teixeira [revisão do Juiz de Direito Dr. Dionísio Oliveira]


Os casos cíveis que vão parar aos nossos tribunais contemporâneos são bastante diversificados em razão da sua natureza e valor. Irei passar a explorar um caso em particular, cuja sentença tive a oportunidade de estudar, de modo a tirar algumas ilações sobre as matérias nele inclusas e sobre o funcionamento dos processos cíveis atuais. Uma nota introdutória sobre o caso é que este assumiu a forma de processo ordinário e não comum, tendo dado entrada antes da mais recente revisão do Código de Processo Civil (CPC) que entrou em vigor em setembro de 2013. O processo em questão1 consiste numa ação declarativa de condenação intentada pela mulher e filho de um condutor que havia falecido num acidente de viação, contra uma agência de seguros portuguesa representante da agência de seguros espanhola do condutor do veículo que havia chocado contra o veículo do familiar dos autores em Zafra, Espanha. Esta escolha de sujeito passivo teve em conta a ideia de que a responsabilidade Vox Iuris

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civil por danos causados a terceiros com o referido veículo, no caso um trator com um semirreboque atrelado, se encontrava transferida para a representada da ré seguradora, mediante o contrato de seguro que é aliás, obrigatório segundo o regime em vigor em Portugal2. Os autores concluíram as suas alegações com um pedido de indemnização alargado. Já a ré na sua contestação arguiu a sua ilegitimidade processual passiva, aceitando a ocorrência do embate em questão e a existência do contrato de seguro invocado, mas impugnando os restantes factos alegados relativos à dinâmica do acidente e os danos dele decorridos, essencialmente imputando a conduta culposa ao familiar dos autores e não ao condutor do trator. Os autores replicaram, impugnando a versão apresentada e deduzindo um incidente de intervenção principal provocada, descrito nos artigos 311º e sucessivos do CPC3, relativo a uma seguradora portuguesa, representante de uma

André Francisco Soares Teixeira


seguradora espanhola, para a qual teria sido transferida a responsabilidade civil decorrente da circulação do reboque em questão. Esta nova seguradora contestou também os factos, invocando ainda a anulação da apólice do seguro do reboque por falta de pagamento, rejeitando, portanto, a responsabilidade emergente da circulação. O Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) veio intervir espontaneamente nos autos, alegando que o acidente em questão fora também laboral, tendo o FAT tido de proceder ao pagamento4 de prestações vencidas e em falta segundo um processo anterior, pretendendo deste modo obter da ré o reembolso, intervindo a companhia de seguros da entidade patronal do falecido do mesmo modo e com um pedido semelhante. Como podemos observar de imediato existem várias particularidades que fazem deste um caso interessante. A localização extranacional do acidente, a intervenção de ambas as seguradoras enquanto representantes das suas congéneres espanholas, assim como do FAT e de uma terceira seguradora em consequência de um outro processo laboral já findo e finalmente a rede de indemnizações e reembolsos presentes entre os intervenientes, tornou o que parecia um simples acidente rodoviário num emaranhado de direitos civis sujeitos a dois ordenamentos jurídicos diferentes. Sendo necessário acima de tudo identificar o que cumpre ao tribunal solucionar, identificamos como essenciais as seguintes questões: a lei aplicável na presente ação, tendo em conta o local de ocorrência do delito; a prescrição do direito dos autores; a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil geradora da obrigação de indemnizar; o responsável ou responsáveis pelo pagamento da indemnização devida aos autores e dos reembolsos devidos aos intervenientes espontâneos; a quantificação dos montantes indemnizatórios; e finalmente os reembolsos devidos aos intervenientes espontâneos. Vejamos então como decidiu o tribunal. Começando pela questão da lei aplicável, essencial tendo em conta que a situação de facto entra em contacto com diferentes ordenamentos jurídicos. O Código Civil consagra que a responsabilidade extracontratual fundada em atos ilícitos é regulada pela lei do Estado onde decorreu a principal atividade causadora do prejuízo5. É, no entanto, essencial conferir prevalência nesta matéria ao Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, por força do primado do direito comunitário sobre o direito nacional consagrado na Constituição da República Portuguesa6. Este Regulamento está centrado na noção de dano, sendo que salvo disposição em contrário do próprio regulamento, a lei aplicável a este tipo de obrigações é a lei do país onde ocorre o dano7, na falta de escolha aplicável pelas partes (autonomia privada), sendo esta regra afastada apenas em situações discriminadas.


Identificando o lugar da colisão o lugar do dano real, e tendo tanto a colisão e os danos ocorrido em Espanha, não restam dúvidas de que o critério geral previsto no Regulamento em questão determina a aplicação da lei espanhola, mesmo que aplicável por um tribunal português. Quanto à alegação da prescrição do direito advindo da apólice do reboque, observamos que foi baseada pela companhia de seguros na noção de que teria passado um período de tempo de relevo entre a data da sua cessação e a data da ação. De facto, e segundo o Código Civil Espanhol (CCE), o prazo de prescrição aplicável às ações baseadas na responsabilidade civil extracontratual é de um ano8. No entanto, o tribunal verificou que nos termos da lei espanhola o prazo de prescrição das ações não se interrompe apenas pelo exercício judicial do direito9, mas com uma mera interpelação extrajudicial. Este é, portanto, muito mais curto do que o vigente no nosso ordenamento jurídico, sendo que em contrapartida está muito Vox Iuris

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mais facilitada a interrupção do prazo. Acontece que o acidente de viação em apreço dera origem a uma ação penal instaurada pelos mesmos autores, não constando dos autos, no entanto, o desfecho da ação. Assim, e tendo em conta a tramitação anterior do processo, o prazo não se podia considerar terminado antes da citação da ação em questão. A prescrição invocada foi, portanto, julgada como improcedente pelo tribunal. Pretendendo os autores ser indemnizados pelos danos de natureza não patrimonial que sofreram em virtude do acidente, e atribuindo estes o comportamento culposo exclusivamente ao condutor do veículo pesado articulado, surgiu a necessidade de averiguar o preenchimento dos pressupostos da obrigação de indemnizar com base em responsabilidade civil por factos ilícitos. O CCE estabelece um regime de responsabilidade civil por facto próprio10, excluindo do sistema responsabilidade por factos naturais, em termos muito próximos do nosso próprio

André Francisco Soares Teixeira


Código Civil11. A imputação está sujeita a um juízo de previsibilidade e de evitabilidade12, só existindo culpa se o dano fosse previsível e se o agente não tiver usado todos os meios possíveis para o evitar. A responsabilidade contratual espanhola mantém assim o pressuposto de nexo causal entre o facto do agente e o dano sofrido pela vítima. No caso em questão existia claramente uma ação consciente e voluntária, a condução do veículo, um dano ilícito e ressarcível, a morte do condutor, e um nexo de causalidade entre o facto e o dano. Averiguou-se também que devido às características da via o condutor do pesado omitiu a diligência13 a que estão obrigados os automobilistas, pelo que agiu com negligência, sendo esta suficiente para fundamentar o juízo de culpa e, portanto, para preencher os pressupostos da indemnização. O tribunal concluiu também que o comportamento imprudente do lesado contribuiu para a ocorrência do embate e dados subsequentes, pela forma como imobilizou o veículo na via. Apesar da necessidade de paragem do veículo teria sido possível estacioná-lo no limite da linha da estrada em questão, facilitando o desvio de outros condutores como o do pesado. Estando em análise um concurso de culpa, o tribunal acreditou não existirem razões para distinguir o grau de contribuição de cada interveniente, revelando-se adequado valorar a contribuição do comportamento de cada condutor em 50%. No que toca à responsabilidade das seguradoras demandadas, e alegando estas factos impeditivos ou extintivos do direito que os autores pretenderiam fazer valer, cabia-lhes o ónus da respetiva prova14, sendo que não tendo cumprido com esse ónus a exceção invocada soçobrou, excetuando a concorrência de culpas. Deste modo, cada seguradora deveria contribuir para a reparação dos danos nos termos do disposto nos acordos celebrados. Não sendo possível nem adequado distinguir a contribuição de cada veículo para a produção dos danos, a responsabilidade das seguradoras assumiria 50% na sua relação interna, sendo, no entanto, solidária no plano externo. Há que dar atenção ao facto de que a jurisprudência


espanhola não reconhece a privação da vida como um dano do próprio sinistrado indemnizável automaticamente, ao contrário da nossa própria prática. No entanto, é maioritariamente aceite a ressarcibilidadde dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima entre o momento do facto lesivo e mote, aplicável no caso em questão tendo a vítima falecido a caminho do hospital. Assim sendo, as indemnizações devidas aos autores foram calculadas e atribuídas, de acordo com o pedido e o direito. Já os direitos de reembolso que os intervenientes espontâneos pretendiam fazer valer contra a ré seriam regulados pela lei portuguesa, não se afigurando necessário recorrer às normas previstas nos regulamentos europeus. O concurso de responsabilidades alegado aqui preenche a figura da solidariedade imprópria ou imperfeita, sendo ambas as rés seguradoras solidariamente responsáveis. Estando, no entanto, os pedidos de reembolso deduzidos apenas contra a ré originária, esta Vox Iuris

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responderia apenas por metade dos valores identificados como reembolsáveis, tendo em conta a concorrência da culpa explorada anteriormente. Assim, o tribunal julgou parcialmente procedentes os pedidos de reembolso dos intervenientes. Como podemos concluir, aquele que aparentava ser um mero acidente de viação deu origem a um processo civil de elevada complexidade. A sentença em questão envolveu análises extensas de direito comparado, devido à aplicabilidade da lei espanhola, e de direito europeu, devido à atuação de normas presentes em regulamentos europeus que se aplicam à luz do primado do direito da União. A demora na resolução da questão foi em grande parte devida às diligências probatórias e diversos incidentes de intervenção de terceiros e habilitação de herdeiros, estando ainda em fase de recurso. O facto de que um processo civil do género ainda não tenha transitado em julgado, doze anos após os factos que o substanciam,

André Francisco Soares Teixeira


comprova quer a densidade do mesmo quer as dependências que o sistema jurídico e as partes sobre ele impuseram. Não sendo este um caso exemplificativo de todo o processo civil, mesmo que em juízos centrais, creio que podemos tirar daqui a ilação de que o Direito Civil na prática acaba por ser bastante mais envolvente e complexo do que aparenta ser no meio académico, envolvendo múltiplas áreas, doutrinas e fontes legais, estando vivo e de boa saúde nos tribunais da modernidade, que procuram dar a resposta adaptável e dinâmica que a realidade da vida do dia a dia exige deles.

Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível, P. nº 888/13.0TBBCL. 1

Decreto-Lei nº 291/2007 – Regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. 2

3

Código Processual Civil, artigo 311º e ss.

Tribunal do Trabalho de Barcelos, P. nº 501/10.2TTBCL. 4

5

Código Civil Português, artigo 45º.

Constituição da República Portuguesa, artigo 8º. 6

Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11.07.2007, artigo 4º, nº1. 7

Código Civil Espanhol, artigo 1968º, parágrafo 2º. 8

Código Civil Espanhol, artigo 1968º, parágrafo 2º. 9

10

Código Civil Espanhol, artigo 1902º.

11

Código Civil Português, artigo 483º.

12

Código Civil Espanhol, artigo 1105º.

Real Decreto Legislativo 339/1990, artigos 11º e 19º. 13

Ley de Enjuiciamiento Civil 1/2000, artigo 217º, nº3. 14


003.

OS VÁRIOS RAMOS JURÍDICOS ENQUANTO CONCRETIZADORES DO ESTADO DE DIREITO

Ana Miguel Ferreira Tomás Antunes Ribeiro 003. Artigo031 de jure Vox Iuris

Nome

O Constitucionalismo é entendido como um fenómeno histórico limitador da atuação estadual, contrapondo-se aos regimes absolutistas, que garantiam à Administração Pública uma forte intervenção em vários domínios da vida social dos cidadãos. No que a Portugal concerne, o primeiro texto constitucional surgiu em 1822, procedendo, preponderantemente, a uma juridificação da Administração. Atualmente, encontra-se vigente a Constituição da República Portuguesa de 1976, que é o culminar de várias alterações e revisões, exigidas pelas diferentes realidades político-normativas vivenciadas no nosso país. Um garante essencial desta realidade é o princípio do Estado de Direito, do qual decorre a subordinação de todas as atuações, sejam públicas ou privadas, ao Direito. É de tal modo estruturante que se encontra integrado no leque dos preceitos jurídico-fundamentais do ordenamento jurídico português, consagrando-se no segundo artigo da Constituição da República Portuguesa. A conformidade às normas legais e constitucionais tem como finalidade a realização da dignidade da pessoa humana, princípio inaugural da nossa Lei Fundamental. Efetivamente, o princípio do Estado de Direito comporta duas dimensões: uma formal e uma material.


Numa perspetiva formal, densificam-se quatro subprincípios. Em primeira linha, o da constitucionalidade, que encara a Constituição como padrão aferidor da validade de todas as atuações estaduais; em seguida, o da separação e interdependência de poderes, preceituador da dispersão dos poderes do Estado em mais do que uma entidade; o da legalidade da atuação administrativa, que se manifesta por via de um trio de exigência da Lei – reserva, prevalência e precedência; e o da segurança jurídica e proteção da segurança legítima. Este último renega a arbitrariedade, ao assegurar aos destinatários das normas jurídicas, uma antecipação razoável dos efeitos dessas normas, através de cinco exigências essenciais, sendo estas: clareza e determinabilidade das normas jurídicas; proibição da retroatividade, nos casos constitucionalmente previstos; proibição de pré- efeitos; irrevogabilidade de atos administrativos constitutivos de direitos e intangibilidade do caso julgado. Materialmente perspetivado, o Estado de Direito vai, do mesmo modo, ao encontro de um duo de subprincípios, particularmente basilares ao ideal de justiça. Podemos apontar, primeiramente, o princípio da Igualdade, que dita que a Lei é igual para todos e todos são iguais perante a Lei. Por conseguinte, não só é compreendida uma vertente horizontal, no sentido de “tratar igual o que é igual”, como também o é uma vertente vertical, pautada pela necessidade de “tratar diferente o que é diferente, na medida dessa diferença”. Isto posto, este eventual diferenciamento por parte do legislador deve obedecer às características de razoabilidade, racionalidade e fundamentação objetiva. É por isso que o Tribunal Constitucional considera que “existe violação do princípio da igualdade quando [...] não existe adequado suporte material para a diferença”1. A par deste, é de referir o princípio da proporcionalidade, que se traduz na ideia de “justa medida” “pretende-se saber se os resultados obtidos estão numa relação de «medida» ou de «desmedida» com a carga lesiva que acarretam”2. Por isso, abrange três exigências, sendo elas: a idoneidade, num sentido de existir uma ponderação qualita-

tiva; a necessidade, reconduzida ao conceito de ultima ratio; e a proporcionalidade em sentido estrito correspondente ao critério quantitativo. A sua verificação cumulativa garante a adoção, por parte do Estado de Direito, de medidas ajustadas. Compete-nos, neste momento, questionar-nos: a que nos referimos, na verdade, quando frequentemente adjetivamos o nosso Estado de Direito, de Democrático e Social? Ora, parece-nos tentador igualar a ideia de Democracia à de Estado de Direito. Embora, na prática e a nosso ver, estes dois conceitos devam andar lado a lado, são, em termos teóricos, distintos. Isto porque podem ou não convergir, na medida em que podem existir Estados de Direito democráticos ou não democráticos. Um Estado Democrático consiste, portanto, na subordinação do Estado à vontade popular – retiramos que Portugal é um Estado de Direito Democrático, movido por uma democracia representativa. A dimensão social do Estado de Direito, por sua vez, reforça a exigência da igualdade material suprarreferida, ao impor que o Estado procure soluções eficientes para suprir as diferenças reais entre os cidadãos, por via da promoção de oportunidades igualmente acessíveis a todos. Não é de esquecer, por isso, que esta dimensão pressupõe que não está na livre disponibilidade do Estado a garantia dos direitos económicos, sociais e culturais dos seus cidadãos. Finda esta análise, na qual nos debruçámos acerca da raiz conceptual de Estado de Direito, cabe-nos relacioná-la com a relevância que os vários ramos do nosso ordenamento jurídico assumem enquanto sustentáculos da mesma. Segundo a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, Direito define-se por ser uma pirâmide coerente, constituída por normas que se sustentam mutuamente, de forma hierárquica. Estas validam-se com base numa norma fundamental – no caso, a Constituição da República Portuguesa. Quer isto dizer que os vários ramos do Direito devem, incondicionalmente, obedecer ao consagrado constitucionalmente, prevendo os mecanismos legais necessários para tal, sob pena


de inconstitucionalidade. Neste sentido, demonstraremos em que medida alguns dos ramos jurídicos podem ser tidos como Direito Constitucional aplicado. Consideramos pertinente trazer a discussão o ramo do Direito do Trabalho, cujas soluções jurídico-normativas podem ser entendidas como destinadas a promover a autodeterminação do indivíduo e a sua autonomia, enquanto sujeito jurídico individual. Por isso, na nossa ótica, o direito a trabalhar só pode ser concretizador da dignidade da pessoa humana e, consequentemente, do princípio do Estado de Direito. Dadas essas razões, a Constituição positiva o Estado como prossecutor principal de uma igualdade de oportunidades e de tratamento dos trabalhadores ou candidatos a emprego. Como se sabe, questão igualmente relevante no que toca ao Estado de Direito, retratada em várias áreas jurídicas, prende-se com a irretroatividade da lei. De facto, a nossa Constituição não Vox Iuris

de jure

033

Ana Ferreira e Tomás Ribeiro

proíbe expressamente que a lei, aqui entendida no seu sentido amplo e material, produza efeitos ex tunc. Contudo, preveem-se três situações especiais, associadas aos Direitos, Liberdades e Garantias; ao Direito Fiscal; e ao Direito Penal. Isto é, veda-se, manifestamente, a retroatividade, em termos de leis restritivas de DLGs (n.o 3 do artigo 18o da CRP), de criação do ilícito criminal (artigo 29o da CRP) e de criação de impostos (n.o3 do artigo 103o da CRP). Aproveitando a alusão ao domínio tributário, parece-nos de equacionar as particularidades que o mesmo dispõe enquanto pilares do princípio do Estado de Direito. Efetivamente, o próprio ato de pagamento do imposto é considerado como uma intromissão na esfera jurídica do sujeito passivo. Todavia, o exercício deste dever não se desvia das proteções jurídico-constitucionais com as quais já nos encontramos familiarizados. À partida, todos devem ser tributados de


acordo com o mesmo critério, pelo que, ao longo do tempo, a doutrina desenvolveu vários parâmetros para o aplicador normativo entender quando estamos perante situações fiscais que devem ser alvo do mesmo tratamento ou o contrário. O nosso sistema fiscal acolhe o princípio da capacidade contributiva, uma manifestação material do princípio da igualdade, na medida em que apela a uma tributação progressiva, impondo que taxa média do imposto aumente quando o rendimento também aumente. Assim, tem-se em conta as circunstâncias individuais de cada um, remetendo-se para a dimensão pessoalizante do tributo. De modo a finalizar os exemplos que temos vindo a explicitar até aqui, falta-nos apontar a realidade penal - em específico, as finalidades das reações jurídico-criminais. Com efeito, a nossa lei criminal espelha um pensamento humanista, isto é, rejeita a ideia de que as penas têm um carácter meramente punitivo. Na verdade, acontece exatamente o inverso: visa-se uma prevenção geral positiva – a pena visa promover e proteger os bens jurídicos nas normas jurídico-penais – e uma prevenção especial positiva – procura-se ressocializar o agente do crime. O Direito Penal assenta, então, no ideal da realização da pessoa humana enquanto sujeito de Direito, assim como nas relações com os seus pares. Entende-se, portanto, que o Estado de Direito é muito mais do que a própria definição formal que lhe é dada, já que fornece normatividade protetora, não só a quem a si se subordina, como também a quem a viola, sendo um elemento que assegura, necessariamente, a personalidade humana. Em jeito de conclusão, o modo como Estado de Direito é alicerçado reconduz-nos, indubitavelmente, ao pressuposto de dignidade humana como núcleo inatingível do Direito. Na falta do devido suporte que os diversos ramos jurídicos prestam neste sentido, arriscar-nos-íamos a cair num completo vazio jurídico, na sua conceção mais ampla. Por isso, não nos parece descabido deixar-vos com a seguinte reflexão: o que seria de nós sem o Direito?

1

Acórdão do TC, no 563/96.

2

Acórdão do TC, no 231/16.


004.

Artigo

ANGOLA, ELEIÇÕES E O SEU PRESIDENCIALISMO – UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL

Davi N. Gomes Angola é uma república filiada da luta do povo angolano, resistente à ocupação colonizadora, conquistador da independência e soberania, que permitiram a edificação do Estado de Direito e Democrático inspirado na tradição e história comum africanas. Dessa forma, o preâmbulo constitucional angolano indicia fundamentos que sustentam a lei constitucional em vigor e legitimam a iniciativa constituinte, assentes num espírito de aceitação e explicitação da vontade popular1. Uma vontade, diga-se, sui generis, refletida no (I) mecanismo eleitoral constitucionalmente estabelecido, assim como também, no (II) carácter acentuado do sistema presidencialista adotado. Nesta medida, importa traçar as linhas destes dois aspetos da opção politico-constitucional angolana, por via a que se possa compará-los com outras opções e realidades constitucionais, a fim de extrair uma visão atual do Estado Democrático e de Direito angolano, desenhada, digamos, com duplo traço para os referidos aspetos.


I. O mecanismo eleitoral constitucionalmente estabelecido

Convirá, em primeiro lugar, traçar as linhas do mecanismo constitucional eleitoral angolano, e apenas posteriormente, eleito um presidente, traçar as linhas desse presidencialismo. Coisas vistas desse modo, passamos a densificar o Princípio Democrático (consagrado no artigo 2.º da Constituição da República de Angola - CRA), no sentido em que, a ideia da participação popular para legitimação do ente político no exercício dos poderes ou da soberania que, originariamente pertencem à comunidade2, daquele princípio advém, jusfilosófica3 e constitucionalmente4 (embora, como sabemos, a questão da democraticidade política das comunidades, já tivera sido explorada, muito antes do aparecimento primeiro da sua expressão principiológica numa vertente constitucional, entre outros, por Platão5). Neste sentido, uma das dimensões do referido princípio é o subprincípio do Sufrágio (um garante procedimental da operacionalidade do princípio democrático6, consagrado no art. 3.º da CRA), que será a via por meio da qual, se legitimam democraticamente as posições de poder e transferem-se “todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem se conferiu o poder soberano pelo consentimento do povo reunido”7. Tal se fará, exercendo o direito de sufrágio (art. 54.º da CRA), um direito que, para que validamente seja levado a efeito, deve ser universal, livre, igual, directo, secreto e periódico, e que comporta a capacidade eleitoral ativa e passiva (o legislador constitucional angolano consagra, no art. 54.º, ambas as formas de exercício desse direito8 algo que entendemos ser positivo, pois a consagração explicita desse direito, a ser exercido ativa e passivamente, dentro do catálogo dos Direitos Liberdades e Garantias, trará, tanto para o voto como para a capacidade de eleger-se, o regime jurídico aplicável aos DLGs), além de ser limite material de revisão (236.º/h) CRA). Dito isto, será com base em tais fundamentos materiais que, grosso modo, em Angola, um cidadão poderá votar e/ou ser eleito.


Quanto às dimensões formais, destaca-se a opção de sistema eleitoral feita pela CRA. A exigência da adoção de um sistema eleitoral, emana do próprio princípio democrático que exige a criação de processos que oferecem aos cidadãos possibilidades efetivas de participação democrática ativa e passiva, um deles, o processo eleitoral, regulado não só pela constituição, como por outros diplomas legais. Dito isto, candidata-se à Presidência da República quem (i) obedecer às condições de elegibilidade (art. 110.º CRA) e (ii) integrar uma lista de um partido político (não obstante, a ressalva do nº 2 do 111.º estabelecer que a candidatura pode ser apresentada pelo partido ou coligação concorrente, apesar do candidato, àqueles, poder não ser filiado). O Presidente da República, é eleito por via do Sistema Eleitoral Maioritário de uma volta, encabeçando uma Lista Uninominal de Círculo Eleitoral Nacional no quadro das Eleições Gerais (o art. 106.º e 109.º da CRA que remete para o art. 143.º, bem como, Vox Iuris

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Art. 21.º da LOEG9). Dito de outro modo, ele será, (iii) o primeiro nome de uma lista de, em verdade, candidatos a Deputados10 pelo círculo nacional, apresentada pelos partidos políticos, seguido do seu Vice, que será o segundo nome desta lista (23.º da LOEG). Ou seja, desta lista, eleger-se-ão, presidente, vice e deputados. Ponto positivo, seria o facto de que, uma lista partidária, ainda que não eleja um presidente, a depender do quantitativo de votos que receba, poderá garantir certa representatividade parlamentar proporcional (art. 27.º LOEG), todavia, quanto aos pontos acima destacados (i, ii, iii) nos parece que (i) as condições de elegibilidade da constituição angolana carregam certo grau de exigência, bem como, uma panóplia de casos de inelegibilidade, fatores que podem individualizar o cargo; (ii) aqui, temos um fator diferenciador11 do ordenamento angolano e, entretanto, entendemos que a candidatura ao cargo da presidência

Davi N. Gomes


da república não deve necessariamente estar vinculada ao partidarismo (sem pretender descurar da sua importante função como elemento constitutivo do princípio democrático e da República de Angola – art. 2.º CRA), mesmo ressalvados os casos do 111.º/2, que acabam por ter efeito não muito útil, pela (a) natureza da figura político-partidária12 e pela (b) exigência taxativa e direta de legitimidade democrática (em especial, na realidade jurídica angolana, por se tratar de um órgão de soberania com larga fasquia competencial, como veremos adiante). Esta última (b) vale também para o último ponto (iii), quanto a democraticidade do processo, e que se admite colocar, pela não separação dos processos eleitorais de órgãos de soberania distintos, algo que poderá influir na ordenação constitucional das funções dos órgãos, em especial, o presidencial, vejamos.

II. O caráter acentuado do seu presidencialismo

O Presidente da República, eleito nos termos já vistos, é o Chefe de Estado, o titular do Poder Executivo e o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas (nº.1 do art. 108.º da CRA), que inicia um mandato de 5 anos após a tomada de posse (113.º). Destacam-se, para este presidencialismo (i) a larga fasquia competencial do cargo, tal quanto, a (ii) ordenação constitucional das funções dos órgãos. Em primeiro lugar (i), enquadramos a fasquia competencial de um órgão no âmbito do “conjunto de regras constitucionais atribuidoras de poderes políticos”, nomeadamente, a forma de governo13. Dessa forma, o governo é assegurado pelo presidente, enquanto titular do poder executivo, ao qual compete, entre mais, definir a orientação política do país, dirigir os serviços e a actividade da Administração directa do Estado, civil e militar, superintender a Administração indirecta e exercer a tutela sobre a Administração autónoma (art. 120.º da CRA). O presidente assegura também, a Chefia do Estado, e aqui residirá a pedra de toque


do presidencialismo angolano, ao qual compete, por exemplo, nomear o Juiz Presidente do Tribunal Constitucional e demais Juízes do referido Tribunal – Art. 119.º/e (tribunal para onde submeterá os atos da Assembleia Nacional para fiscalização preventiva da constitucionalidade – art. 124.º/4), bem como, os juízes presidentes do Tribunal Supremo (assim o fará, sob proposta do Conselho Superior da Magistratura, órgão para o qual também tem poder de nomeação – Art. 119.º/t – para os juristas que o integram e para o presidente deste Conselho, que é o presidente do Tribunal Supremo – 184.º/2 e 119.º/f), do Tribunal de Contas e do Supremo Tribunal Militar – et al 119.º. Ademais, nomeará o Governador e Vice do Banco Nacional (119.º/j); presidirá o Conselho da República (119.º/s), composto por membros por ele designados (119.º/u). Destacam-se também o controle policial e militar (122.º) e a sua parcela de poder legiferante com força de lei (ainda que dito provisório e balizado Vox Iuris

de jure

039

pelos requisitos do art. 126.º). Não restam dúvidas que estamos perante forma de governo presidencial (presidencialíssima, diríamos). Restará, em segundo lugar (ii) traçar algumas linhas da ordenação das funções constitucionais dos órgãos, nomeadamente, dos freios e contrapesos. De notar a este respeito, primeiramente, que a República de Angola é comprometida com separação e equilíbrio de poderes dos órgãos de soberania (preâmbulo), e que consagra constitucionalmente 3 órgãos de soberania Presidente da República (PR), Assembleia Nacional (AN) e Tribunais (105.º). Todavia, como já anteriormente visto, dois destes órgãos (AR e PN) gozam de legitimidade democrática equivalente, isso porque eleitos no mesmo ato de votação por parte dos cidadãos, dessa forma, ao legislador constituinte restaria optar pela distribuição do poder político por um ou outro órgão, e fá-lo de modo legítimo, contudo, em nosso humilde

Davi N. Gomes


entender, sem observar da melhor maneira o Princípio da Separação de Poderes. Isso porque, (a) a nível funcional, já que decorrentes da mesma lista partidária, o partido político que eleger um presidente (obtendo maioria dos votos), garantirá também, em princípio, maioria parlamentar (convertidos proporcionalmente os votos obtidos em mandatos), o que poderá dificultar o entrave frontal e efetivo balanço de algumas medidas do governo. A (b) nível sociocultural, algumas tarefas estaduais prendem-se a estruturas sociais como a dos partidos políticos. Ambiente onde, um deputado, poderá estar posicionado infra hierarquicamente em relação ao presidente do partido (em regra, também PR) e, apesar de no mesmo partido, uma desavença lhe poderá custar o seu mandato, caso deixe de estar filiado a este partido (por força do art. 152.º/2, c) da CRA).

Conforme nos ensinou a Escola Histórica do Direito alemã, “Volksgeist”. 1

Leia-se, comunidade política, conforme definiu AMARAL, Maria Lúcia in “A Forma da República” – Coimbra Editora, Coimbra, 2005, Pág. 14 a 18. 2

Assim, pois que, o princípio democrático é ínsito ao movimento constitucionalista, este que expressa (em concordância com Rogério Soares), um caris ContratualSocial, cujo estado natural (caos social) será apaziguado pela transferência dos poderes do povo para um ente da comunidade, cujo exercício desse poder de modo legítimo, embora, mais centralizado, permitirá a fruição da comunidade, agora, num estado social, por via de um contrato social. A constituição, entre outras coisas, seria então uma expressão desse contrato, isso porque, constitui e organiza o Estado, bem como, as formas legítimas de transferência dos poderes do povo para aquele. Cfr. HOBBES, Thomas in “Leviatã...” (Tradução: João Monteiro e Maria da Silva – Imprensa Nacional, Lisboa, 1995). Cfr. SOARES, Rogério E. in “O Conceito Ocidental de Constituição” – Revista de legislação e Jurisprudência nº 3743, Pág. 70 e ss. 4 Se nos diz no art. 2.º da CRA, que o Estado de Direito Democrático angolano, funda-se, entre outras coisas, na soberania popular. Por conseguinte, 3

o art. 3.º estabelece que “A soberania, una e indivisível, pertence ao povo...” e os mesmos exercem-na escolhendo representantes seus (para os quais, “transferem-na”, em representação), e o art. 4.º condiciona o exercício do poder político a quem obtenha legitimidade tal, mediante processo eleitoral. Opções semelhantes fizeram, entre outros, Portugal (Art. 3.º, 10.º/1 da Constituição da República Portuguesa) e França (Art. 3.º, Constitution Française). PLATÃO et al “A República” (Tradução: Maria H. R. Pereira - Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001). 5

Concordamos aqui com CANOTILHO, JJ. Gomes in “Direito Constitucional” – 7ª edição, Almedina, p. 292. 6

Nas palavras de HOBBES, Thomas in “ibidem” Cap. XVIII. 7

Em caminho diverso de Angola, vão o legislador constituinte português (art. 10.º, 49.º, 113.º) e francês (art.3.º, 4.º, 6.º, 24.º), que nos parecem ter apenas “implicitamente” consagrado a capacidade eleitoral passiva deixando à doutrina a tarefa de densificar o princípio da universalidade do sufrágio e lá enquadrar ambas as formas de capacidade eleitoral. Como faz CANOTILHO, JJ. Gomes in “ibidem” p. 302. 8

Lei nº 36/11 de 21 de Dezembro (Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais – LOEG). 9

Em caminho diverso de Angola, por exemplo, Portugal onde a candidatura aparece desvinculada do partidarismo político (124.º/1 CRP) apesar da exigência de maioria absoluta (126.º/2), no mesmo sentido, entre mais, Cabo Verde (110.º da Constituição da República de Cabo Verde). 10

Em caminho diverso de Angola, por exemplo, Portugal onde a candidatura aparece desvinculada do partidarismo político (124.º/1 CRP) apesar da exigência de maioria absoluta (126.º/2), no mesmo sentido, entre mais, Cabo Verde (110.º da Constituição da República de Cabo Verde). 11

Embora, na CRA, os partidos recebam larga importância no cenário político angolano (Cfr. Art. 17.º/3,4; 45.º/2; 111.º/1; 135.º/2, f); 220.º/5), não há grandes indícios da sua descaracterização como, no fundo, entes de direito privado (et al art. 55.º) com funções constitucionais, uma delas, a da organização e expressão da vontade popular, digamos, função de representatividade eleitoral. 12

Nas palavras de CANOTILHO, JJ. Gomes in “ibidem” p. 573 e ss. 12


005.

O RELACIONAMENTO ENTRE A VIDA LABORAL E A VIDA PRIVADA DO PRATICANTE DESPORTIVO: A ALIANÇA QUE AS (DES)UNE

Ana Margarida Silva 005. Artigo

[revisão do Prof. Doutor João Leal Amado e da Prof. Dra. Patrícia Borges]


Atualmente, “o desporto pauta a vida quotidiana do planeta, enquanto fenómeno quase omnipresente, para os que o praticam (e são bastantes), para os que a ele assistem (e são muitos) e para os que dele falam (e são quase todos)1”. Deste modo, não poderíamos estar mais de acordo com o Prof. R. Ferrer quando diz que “sem regras, sem normação, o Desporto não pode existir2”, já que, com a crescente “desportivização do planeta3”, o legislador não pode permitir que, nem os indivíduos saiam prejudicados, nem que a essência do Desporto se vá desmoronando. Assim, com o passar dos anos, o Direito viu-se obrigado a evoluir e a especializar-se em determinadas matérias, como é o caso da vertente laboral desportiva. Aliás, constatação disso é o próprio Código do Trabalho reconhecer a existência de contratos de trabalho regulados por um regime especial4, como é o caso dos contratos de trabalho dos praticantes desportivos. O facto da relação laboral desportiva ser dotada de diversas particularidades distintas da relação laboral comum5, fez com que o Decreto-lei nº 305/95 de 18 de novembro viesse tentar colmatar certas lacunas do regime geral, muito for força da imposição que havia sido estipulada na Lei de Bases do Sistema Desportivo de 19906. Note-se que, mais tarde, surge a Lei nº 28/98 de 26 de junho que acabou por ser revogada pela Lei nº54/2017 de 14 de julho que se encontra atualmente em vigor e que apresenta algumas alterações/inovações face à anterior. Foi, precisamente, aquele regime especial que atribuiu um conjunto de direitos e deveres, quer às entidades empregadoras desportivas, quer aos praticantes desportivos, no entanto, merecerá dar particular destaque ao dever do praticante desportivo preservar as condições físicas que lhe permitem participar na competição desportiva objeto do contrato, previsto na alínea c) do art. 13º da Lei nº54/2017 de 14 de junho. Desde logo, parece saltar do banco um conflito entre este dever e o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, que aliás, é um direito de personalidade previsto no art. 80º do Código

Civil. Senão tomemos como exemplo o de alguns praticantes desportivos que são punidos (e, em alguns casos, acabam mesmo por ser afastados) pelo clube onde exercem a sua atividade desportiva por terem ido “sair à noite” ou terem ido a uma festa; ou, então, dos rigorosos horários de descanso que os atletas têm de cumprir; ou até mesmo da exigente e criteriosa dieta que têm de seguir à risca; ou, ainda, dos casos em que os clubes conseguem controlar e saber, através de mecanismos de controlo dos batimentos cardíacos, se os jogadores tiveram relações sexuais ou até fazerem recomendações e/ou imposições sobre a sua vida sexual; ou do impedimento de fazerem viagens demasiado longas; ou dos casos em que os atletas são afastados por se encontrarem com excesso de peso. Estes são alguns dos muitos casos em que, a céu aberto, parece haver uma clara e evidente colisão entre o relacionamento da vida profissional do praticante desportivo e da vida extralaboral do mesmo, ou seja, entre a sua vida laboral e a sua vida privada7, mas será que essa colisão se verifica em todos os casos mencionados anteriormente?

Será que, em virtude das especificidades da relação laboral desportiva, não será aceitável que se imponham aos atletas determinadas regras de conduta e cuidados, de modo a que a competição não saia prejudicada?


Em princípio, a vida privada/extralaboral de um praticante desportivo deveria ser autónoma, relativamente à sua vida laboral, já bastam as obrigações e limitações a que o atleta está sujeito durante o seu horário de trabalhado, não precisando de mais intromissões na sua vida pessoal e privada por parte da sua entidade empregadora desportiva. Todavia, bem se sabe que, há determinados cuidados que o praticante desportivo deverá manter e conjugar, de modo a que esteja apto a exercer a sua atividade profissional, daí o legislador ter sentido a necessidade de exigir o disposto na alínea c) do art. 13º do diploma em análise. Ainda assim, será de difícil aceitação uma intromissão extremamente abusiva na sua vida íntima e privada. JORGE LEITE, defende que, na relação laboral comum, o princípio será “o da irrelevância disciplinar do comportamento extraprofissional do trabalhador: só no caso de os excessos extralaborais se refletirem negativamente na vida de Vox Iuris

de jure

043

trabalho poderá este reflexo, e não aqueles excessos, ser objeto de valoração e eventual sanção”8. Ora, deverá ser feita uma análise casuística, de maneira a que se possa concluir - ou não - pelo reflexo negativo de determinada conduta e, consequentemente, em caso afirmativo, se possa aplicar a devida sanção ao trabalhador pelo seu mau desempenho, mas, destaque-se, nunca pela conduta que teve na sua vida extralaboral, esta nunca poderá ser sancionada, fruto do direito fundamental - direito à liberdade. Conquanto, será este princípio compatível com o dever de preservação das condições físicas fundamentais que permitam ao atleta participar na competição desportiva objeto do contrato? Muito dificilmente se entende que o seja, uma vez que, se assim fosse, estar-se-iam a esvaziar as razões que levaram o legislador a criar a norma em análise, isto é, o art. 13º c) do atual regime deixaria de ter qualquer efeito útil. Aprofundamos mais adiante.

Ana Margarida Silva


A propósito das condutas extralaborais dos jogadores de futebol, são frequentes os títulos dos jornais através dos quais o público toma conhecimento de certos comportamentos que, aos olhos de muitos, são tidos como censuráveis e incompreensíveis, pelo que tomamos a liberdade de filtrar alguns títulos de alguns jornais desportivos. Neymar, jogador do PSG, foi, há uns meses, notícia por ter sido “apanhado em festa até altas horas da madrugada9”; Paulinho, jogador do Sporting CP, foi título de jornal por “surgir numa fotografia partilhada nas redes sociais de uma discoteca em Sevilha na passagem de ano10”; o Sevilha FC rescindiu contrato com Gnagnon, uma vez que “entendeu como «inadequada» a falta de profissionalismo do atleta que estaria fora da forma física, não tendo o seu comportamento sido ajustado à disciplina desportiva de um clube profissional11”; e, mais recentemente, Rúben Semedo chegou ao FC Porto, mas “está com cinco quilos a mais e Sérgio Conceição deu-lhe o primeiro tratamento para o problema: dieta e treino, antes de criar mais laços com o grupo12”. Estes são alguns dos casos em que jogadores de futebol viram a sua vida privada ser questionada e censurada, principalmente, pela massa adepta e pela comunicação social, quando, na verdade, tiveram comportamentos que, frequentemente um trabalhador comum tem. Mas, a questão que se coloca é: será que estes comportamentos afetam significativamente ou de algum modo a prestação dos atletas nas respetivas competições desportivas que disputam? Afinal, que comportamentos poderão ser prejudiciais para o desempenho do atleta na competição? Será que, no Desporto, o princípio da irrelevância disciplinar dos comportamentos extraprofissionais poderá ser aplicado? Em princípio, parece que uma saída noturna para festejar o final de ano em nada comprometerá o desempenho do jogador, desde que, obviamente, não tenha jogo no dia seguinte ou compromissos profissionais similares, não obstante, na eventualidade de isso se verificar, então, o jogador deveria ter acionado o dever de diligência

que lhe é exigido na sua profissão e abster-se de frequentar esse tipo de festas e estabelecimentos que projetam em si um maior desgaste e cansaço que, no(s) dia(s) seguinte(s), se repercutirá no seu desempenho físico (e psicológico). É, aqui, que entra o dever do atleta em preservar as condições físicas que lhe permitam participar na competição em ótimas condições, mesmo que isso derive de comportamentos que não estejam diretamente relacionados com a própria prática da atividade desportiva. Retomando a teoria dos efeitos reflexos, de acordo com esta, o atleta apenas seria sancionado disciplinarmente na eventualidade de comportamentos como os referidos anteriormente terem, comprovadamente, reflexos negativos no desempenho da sua atividade. Ainda assim, se tal teoria se aplicasse, também, no mundo do Desporto, então deixaria de fazer sentido termos uma norma especial como a que temos vindo a comentar. Ademais, no Desporto será de abdicar da necessidade de fazer prova de que, realmente, esses reflexos se verificaram, uma vez que, por si só, comportamentos como uma saída noturna, muitas vezes até altas horas da madrugada e com consume de bebidas alcoólicas envolvidas, são violadores dos seus deveres e, consequentemente, têm de ser considerados como censuráveis e suscetíveis de punição disciplinar, ainda que daí possam não advir reflexos negativos. O mesmo se passa com o excesso de peso que levou o Sevilha FC a rescindir contrato com o jogador. Este deveria ter tido um cuidado acrescido, por exemplo, com a sua alimentação e preparação física e, consequentemente, com as mudanças corporais, de modo a que o seu rendimento não saísse afetado devido a essa conduta irresponsável. A atividade laboral do praticante desportivo, bem como a alta competição, como se sabe, requerem uma boa preparação física, sendo que esta está diretamente relacionada, por exemplo, com o peso e/ou massa gorda, ou seja, está diretamente relacionada com os tais deveres a que o praticante desportivo se encontra sujeito, a partir do momento em que celebra um contrato de trabalho desportivo. Ora, se um indivíduo


celebra um contrato de trabalho cujo objeto passa por praticar uma atividade física desportiva, então, aquele deverá ter um cuidado acrescido com a sua preparação física que é essencial para o seu desempenho nas competições.

Vox Iuris

de jure

Contrariamente há exigências feitas pelas entidades empregadoras desportivas que interferem expressamente com a liberdade do praticante desportivo, como é o caso da intromissão na sua vida sexual através, por exemplo, dos tais mecanismos de controlo dos batimentos cardíacos ou das recomendações e/ou imposições no que concerne à própria vida sexual. Nestes casos parece não haver uma justificação plausível para o clube se imiscuir na vida extralaboral do praticante desportivo, pelo que essas recomendações/imposições serão consideradas como desproporcionais e desadequadas. O mesmo se poderá passar com a imposição, por parte da entidade empregadora desportiva, do destino onde o praticante desportivo deverá passar os seus dias de descanso. Claramente que há uma entrada para cartão vermelho na vida privada do atleta, já que o local onde o mesmo passará as suas férias em nada interferirá com o seu desempenho na competição, aliás, se está de férias, é sinónimo que houve

045

O atleta pode ser dotado das melhores técnicas, qualidades e habilidades, no entanto, se não estiver em condições de as exercitar, de nada aquelas lhe valerão.

Ana Margarida Silva

uma pausa na competição ou que foi dispensada da mesma, pelo que o clube não terá de opinar sobre tal assunto. Assim sendo, o praticante desportivo deverá pautar muitos dos seus comportamentos na medida do razoável, proporcional e dentro dos limites do bom senso, de modo a que aqueles não comprometam os deveres aos quais está sujeito. Por outro lado, também a entidade empregadora deverá fazê-lo na forma como se envolve na vida do praticante desportivo. É certo que um atleta profissional e/ou de alta competição tem de estar apto para desempenhar a atividade objeto do contrato de trabalho nas suas melhores condições, aliás, nas melhores condições possíveis, algo que exige muito trabalho, dedicação e profissionalismo, enfim um trabalho conjunto entre a vida laboral e a vida extralaboral, não obstante, fazer com que - a aliança - que desune as suas duas vidas - laboral e privada - se adapte ao anelar,


como que se de uma aliança feita à medida se tratasse, leva-nos a crer que se estará a compactuar, como é o caso da intromissão na vida sexual do praticante desportivo, com uma clara e expressiva violação do tão célebre direito à liberdade, bem como do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada. A aliança que une estas duas vidas do praticante desportivo é um tema muito sensível no mundo do Desporto, pelo que se deverá ter muito cuidado com os juízos de valor e de direito que se fazem a este propósito, cabendo ao clube/ sociedade desportiva e, em ultima racio, ao julgador um cuidado acrescido quando está em causa a análise de comportamentos suscitáveis de prejudicar a competição por parte do praticante desportivo e eventuais sanções disciplinares.

Cf. AMADO, João Leal, Contrato de Trabalho Desportivo, Lei nº 54/2017 de 14 de junho Anotada, Almedina, 2021, p. 9. 1

Cf. MESTRE, Miguel Alexandre, Enciclopédia de Direito do Desporto, Gestlegal, 2019, p. 5. 2

Cf. CAILLAT, Michel, Sport et civilisation: histoire et critique d’un phénomène social de masse, Paris, Éditions l’Harmattan, 1996. 3

4

Cf. Art. 9º Código do Trabalho.

Cf. Presença de sujeitos muito sui generis, carreira de curta duração e desgaste rápido, presença de empresário, entre outras especificidades. 5

Cf. Art. 14º/4 da Lei nº 1/90 de 13 de janeiro. 6

Cf. AMADO, João Leal - Contrato de Trabalho Desportivo… ob. cit. p. 84. 7

Cf. AMADO, João Leal - Contrato de Trabalho Desportivo… ob. cit. pp. 84 e 85. 8

Disponível para consulta no link. (consultado em 17/01/2022). 9

Disponível para consulta no link. (consultado em 17/01/2022). 10

Disponível para consulta no link. (consultado em 17/01/2022). 11

Disponível para consulta no link. consultado em 07/02/2022). 12


COGITO

Vox Iuris

de jure

047

(047)

Nome


Artigo

001.

DIREITO À LIBERDADE DE QUERER TER SAÚDE Catarina Silva Lêdo

001.


Automaticamente, aquando do conceito de saúde é proferido no nosso quotidiano é, naturalmente, associada ao objeto de estudo médico. No entanto, o Direito é um acompanhante nato da evolução da sociedade, devendo este, dentro de limites legais base, como os princípios constitucionais, regular o que seja necessário para que a saúde e o direito à saúde, a ela intrinsecamente associado, sejam protegidos e devidos aos cidadãos. Por conseguinte, este bem jurídico e a sua conceção têm sofrido várias variações devido à comunidade em que nos inserimos e à maneira como são legisladas as matérias relacionadas com a saúde e a saúde pública. Nesta medida, cabe perceber se cada pessoa está (e continua) entregue à sua própria condição física e psicológica de acordo com os meios socioeconómicos que lhe estão atribuídos e que detêm e que influenciam, ou não, a liberdade de escolha a ter saúde. Vox Iuris

cogito

049

Vejamos, ao longo do tempo a preocupação perante as políticas públicas de saúde tem vindo a abandonar a ideia individualista presente no século XIX, havendo uma reviravolta, especialmente após Segunda Guerra Mundial, no sentido de se tornar uma situação que deva ser tratada a nível estadual e não no âmbito reservado de cada um – em que cada pessoa é dono do seu corpo e o estado é apenas assistencialista. Estamos, agora, a par de um Estado e de uma Administração que assenta num comportamento de facer e à qual tem de dar respostas à figura do direito à saúde e de non facere quando atinja negativamente a esfera jurídica deste bem. Esta imposição é perfeitamente visível e retirada da Constituição da República Portuguesa, no seu art. 64o, número 01, quando refere “direito à proteção da saúde” e “o dever de a defender”.

Catarina Silva Lêdo


Daí que, para além de um direito à saúde tenhamos também um direito à saúde pública, na exata medida em que o Estado intervém e tem de intervir para a proteção destes, sem prejuízo de os privados atuarem neste sentido de forma solidária.


No entanto, é necessário distinguir que o Estado e as demais entidades administrativas têm o compromisso constitucional de defender e promover a saúde mas, em concordância, o indivíduo não perde a sua autodeterminação neste campo, podendo escolher manter-se ou não de boa saúde, de forma consciente, não havendo qualquer restrição estatal aos direitos, liberdades e garantias do cidadão como pessoa livre e responsável de si. Mas, um Serviço Nacional de Saúde pode ter ficado aquém de todos os desafios sociais. Novas doenças, mais consciência de direitos, novas áreas do saber e sistemas de informação, envelhecimento da população. O Estado teve e tem, frequentemente, de procurar soluções para a decadência de respostas. Ora, estas incapacidades traduzir-se-ão num maior gasto económico que se prolongará para as capacidades financeiras dos cidadãos. Não é suficiente haver a consagração constitucional do direito. Em adição, é necessário garantir a efetiva Vox Iuris

cogito

com o direito fundamental à vida, integridade física, saúde, autodeterminação da pessoa, o acesso a um tratamento equitativo, qualidade de vida, - direitos reconhecidos e protegidos tanto no âmbito interno de um Estado como na ordem internacional – conjugado com deveres como de informação e esclarecimento para um consentimento atual, prévio, informado, adequado e claro. Desta maneira, todo o cumprimento do dever de informação e esclarecimento vão fomentando a base de uma relação de confiança entre os cidadãos e os serviços de saúde, o que lhes permite uma maior liberdade de decisão. Claramente, sem nunca esquecer a proteção de dados que tem de estar associado a todo o processo de informação a tratamento dos sujeitos. Por exemplo, a livre escolha de não fazer tratamento físico mesmo que este assegura a sobrevivência da pessoa. De modo curioso, e em concordância com o princípio da universalidade, foi afastada expressões como utentes, doentes ou pacientes que

051

realização deste, criando e mantendo um Serviço Nacional de Saúde com todos os meios necessários, bem como legislar toda a matéria que à saúde é conexa. Daí a tão imperativa e desejada Lei de Bases da Saúde. Sendo a dignidade da pessoa humana o cerne das políticas administrativas no ordenamento jurídico português, está também intrinsecamente ligado o princípio da igualdade. Daí que, na Lei de Bases da Saúde, no seu artigo 1º, consagra que este é um “direito de todas as pessoas” com o imperativo de “criação e desenvolvimento de condições económicas, sociais”, sendo o Serviço Nacional de Saúde a trave-mestra – ou deveria ser. Isto porque o SNS é “um projeto de realização de justiça, de solidariedade (…) que garanta, a todos e em condições de igualdade, o acesso equitativo a todos os cuidados de saúde”3. Assim sendo, deve toda a prestação de saúde pautar-se pela assistência célere, eficaz e de acordo

Catarina Silva Lêdo

restringiam o âmbito de aplicação das normas de Direito da Saúde apenas ao grupo de pessoas que utilizariam os serviços públicos, ou que já possuíam doença, que afastavam a ideia de que o direito cabe a todos os cidadãos e de que não deve haver uma prestação de serviços de saúde pautados pela intervenção e detenção atempada. Assente também num princípio de proporcionalidade, as medidas políticas na saúde devem, não só atender ao direito à saúde, como a todos os direitos a ela associados da pessoa e não esquecendo a imperatividade de ponderar a continuidade que estas devem ter pois os direitos não se esgotam, tendo de haver uma constante prestação para proteção destes. Assim, deve o Estado Social continuar a promover a igualdade na saúde respeitando os limites de cada pessoa em ponderação com todas as exigências comunitárias, de modo que o Direito à e da Saúde seja continuamente uma posição


jurídica ativa e presente na nossa sociedade. Daí defendendo a avaliação periódica e contínua dos serviços públicos de saúde. No entanto, nesta promoção deve haver limitação – ou até agora, defende-se que sim. As utilizações de taxas moderadoras não devem, em nenhum momento, ser um impeditivo para que uma pessoa não possa escolher ter saúde por motivos económicos, daí que as políticas de saúde se pautem pelo “tendencialmente gratuito”. Deve sim, impedir procuras desnecessárias e que produzem uma sobrelotação dos serviços de saúde desnecessários. É a chamada solidariedade social. Concluindo, deve o Estado continuar a promover, não só a nível teórico, mas com real eficácia prática, a promoção da dualidade que o Direito da Saúde tem nos dias hodiernos. A dimensão positiva de ter de estar ao alcance de todos e, por outro, a dimensão negativa de não interferir na esfera pessoal de cada pessoa, privilegiando a sua individualidade como pessoa única e responsável, consciente de escolhas e autodeterminada. Não só o Estado mas também as entidades privadas devem respeitar esta dimensão negativa pois são e serão sempre direitos fundamentais da pessoa humana. Por fim, e como não podia deixar de pertencer a Direito: deverá este opor-se à colocação em risco da própria pessoa? Solidariedade do Estado, com limites? Que belas reflexões podem sair daqui para um Estado Democrático.

Miglino, A. (dezembro, 2010). The Right to Health: A Freedom with negative and Positive Characteristics. Bol. Saúde, 24. 37–41 1

Gomes, C. (1999). Defesa da Saúde Pública VS Liberdade Individual: Casos da Vida de um Médico de Saúde Pública. Instituto de Ciências Jurídico-Políticas. Disponível no link. 2

Monge, C. (2019). O direito fundamental à proteção da saúde. E-pública Revista Eletrónica de Direito Público, 5(2) 3


Artigo

002.

REFLEXÕES SOBRE O DIA DE REFLEXÃO ‒ AINDA SE JUSTIFICARÁ A SUA EXISTÊNCIA?

Gonçalo Martins de Matos


Acabados de sair de mais umas eleições legislativas, e de todos os passos que as caracterizam, ressurgiu o debate sobre a Lei Eleitoral portuguesa. A principal crítica que se aponta à nossa Lei Eleitoral é o facto de estar, neste momento, consideravelmente desfasada do que é a realidade, seja a nível social, seja a nível tecnológico. Portanto, aproveitando o ímpeto das eleições, propomo-nos a refletir sobre um aspeto que consideramos encontrar-se verdadeiramente ultrapassado: a existência de um dia de reflexão no dia anterior ao dia do ato eleitoral. Para tanto, olharemos para o contexto histórico por trás da existência do dia de reflexão; analisaremos a sua consagração legal atual; e, por fim, refletiremos e formularemos as nossas conclusões. A efervescência política e revolucionária que se fazia sentir em Portugal no pós-25 de abril levava a que todos os passos que se tomassem no desenho do novo sistema político português se revestissem da maior cautela, pois um passo dado em falso poderia levar a uma regressão ou a uma inversão do caminho democrático que se pretendia inaugurar. Nessa medida, os atos legislativos e regulamentares que se tomaram até ao final da década de setenta e inícios da década de oitenta tiveram sempre essa preocupação de acalmar os potenciais ânimos exaltados. Também assim foi com o processo eleitoral. Desde 1974 que a realização de eleições impõe um dia de proibição de qualquer tipo de propaganda política no dia imediatamente anterior ao da realização do ato eleitoral. Em abril de 1979 entra em vigor a atual lei eleitoral para a Assembleia da República, a Lei n.º 14/79. Com a consolidação do regime democrático, através da extinção do Conselho da Revolução em 1982, a efervescência revolucionária sossegou, mas a regra legal de proibição de propaganda continuou. O dia de reflexão em si não encontra consagração expressa na lei eleitoral, sendo apenas uma regra legal cuja existência é permitida pela redação da mesma lei. Com efeito, o artigo 53.º da Lei n.º 14/79 determina que o período da campanha eleitoral se inicia no 14.º dia anterior e finda às 24 horas da antevéspera do dia designado para as eleições”. É deste período de 24h entre o fim da


campanha e o dia do ato eleitoral que se deduz o acolhimento do dia de reflexão no nosso processo eleitoral. O incumprimento desta disposição constitui uma infração eleitoral, sendo o infrator punido com pena de prisão até seis meses e pena de multa entre os 2,49 euros e os 24,94 euros, nos termos do n.º 1 do artigo 141.º da Lei n.º 14/79. No entanto, a epígrafe deste artigo leva a entender que apenas se verifica o incumprimento se estiver em causa a realização de propaganda depois de encerrada a campanha eleitoral. Nos termos do artigo 61.º da Lei n.º 14/79, entende-se por propaganda eleitoral “toda a actividade que vise directa ou indirectamente promover candidaturas, seja dos candidatos, dos partidos políticos, dos titulares dos seus órgãos ou seus agentes ou de quaisquer outras pessoas, nomeadamente a publicação de textos ou imagens que exprimam ou reproduzam o conteúdo dessa actividade”, pelo que poder-se-ia deduzir que tudo o que se encontra fora desta definição será permitido. Não obstante, desde Vox Iuris

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permitindo assim que os eleitores possam respirar da intensidade propagandística que caracteriza normalmente as campanhas eleitorais para a Assembleia da República. No entanto, apenas faria sentido se não se tratasse de uma verdadeira proibição de qualquer tipo de propaganda. Faria sentido conceber uma espécie de “dia de descanso”, de forma a poder haver um abrandamento da campanha eleitoral de forma a não enfastiar os eleitores. Apresentada a vantagem, olhemos para as razões da desnecessidade do dia de reflexão. O dia de reflexão é mais um anacronismo que deriva da antiguidade da nossa lei eleitoral. Se entre 1974 e 1982 fez sentido a imposição do refreamento da propaganda política orientado ao apaziguamento dos ânimos políticos, hoje em dia já não se justifica.

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1982 que a Comissão Nacional de Eleições oferece uma interpretação mais restritiva destas normas, afirmando que a proibição se estende a toda a atividade passível de influenciar, ainda que indiretamente, os eleitores quanto ao sentido de voto, nomeadamente a divulgação de imagens ou de conteúdo político para não prejudicar ou favorecer qualquer candidato. É por estes motivos que atualmente retiramos do período de campanha eleitoral consagrado na lei eleitoral um dia de reflexão durante o qual está proibido qualquer tipo de conteúdo ou propaganda passível de poder influenciar o sentido de voto dos eleitores. Mas a questão permanece: será necessário um dia assim? A nossa resposta abreviada é que não precisamos de um dia assim. Mas antes de indagarmos as nossas reflexões, cumpre expor a vantagem que, para nós, nos parece justificar o dia de reflexão. O atual modelo de dia de reflexão força uma paragem na campanha eleitoral,

Gonçalo Martins de Matos

Já existe em Portugal experiência eleitoral suficiente para que os processos eleitorais decorram de ânimos contidos e na paz do maior respeito democrático, sem que haja necessidade de impedir a expressão de opiniões relativas aos aspetos políticos das eleições.


A existência das redes sociais e outros fóruns online põem ainda mais em evidência o anacronismo do dia de reflexão. Já para não falar que inexistem evidência científicas ou psicológicas que comprovem que o dia de reflexão tenha qualquer influência, positiva ou negativa, no sentido de voto dos eleitores. Mas talvez um dos maiores indicadores da irracionalidade e da obsolescência do dia de reflexão seja mesmo a realização da votação antecipada. Muito debatida igualmente nestas eleições legislativas, a votação antecipada decorreu no domingo anterior ao dia do ato eleitoral, ou seja, em plena campanha eleitoral. O que significou que 5,44% (número de eleitores que votaram antecipadamente) dos eleitores efetuaram o seu voto sem usufruírem do dia de reflexão. O que cria uma duplicidade de critérios quanto ao voto realizado antecipadamente e o voto realizado na sua devida data.

Se os votos efetuados antecipadamente o foram de forma consciente e refletida pelos eleitores, a meio da campanha eleitoral, então os votos efetuados pelos eleitores no dia das eleições, no final da campanha eleitoral, também o serão.

Esta situação cria ainda uma contradição sistemática no nosso sistema eleitoral, contradição cuja resolução facilmente se operaria com o fim do dia de reflexão. É por estas razões que entendemos que o dia de reflexão constitui um anacronismo na nossa lei eleitoral, cuja necessidade se esgotou aquando da consolidação do regime democrático em Portugal e da maturidade eleitoral que advém da repetição de atos eleitorais.


003.

UMA JUSTIÇA DO CONTRADITÓRIO NA SOCIEDADE DO IMEDIATO

André Francisco Alves Teixeira 003. Artigo A Justiça leva o seu tempo. A falta de eficiência do nosso sistema de Justiça é uma das mais populares questões do discurso político atual. A distância temporal entre o momento em que um caso é introduzido no sistema e o momento em que é dado como concluído impacta diretamente todos os envolvidos e cria nos cidadãos a ideia de que recorrer à Justiça para resolver um problema é demasiado caro e moroso. No que toca à parte do preço, não tenho nada a opor. Quer gostemos quer não, na Justiça o dinheiro interessa. Quem tem uma carteira mais recheada irá fazer uso de todas as possibilidades e ferramentas jurídicas possíveis para satisfazer as suas necessidades, através de representantes e conselheiros legais desejosos de provar que valem o seu peso em ouro. Um processo longo não sai barato, já que o esforço de obter soluções que não sejam imediatamente óbvias apenas pode ser atingido através de remuneração adequada e do pagamento das taxas de justiça necessárias para as financiar. Quem tem patrocínio judiciário nunca terá acesso à versatilidade e disponibilidade necessárias para explorar todas as intervenções, testemunhas, peritagens, instâncias e recursos que apenas fundos em quantidade conseguem trazer. Esta é uma desigualdade estrutural que seria importante corrigir, não tendo, porém, qualquer ideia de como o fazer realisticamente.


É, no entanto, importante desmistificar ideias erradas que circulam na mente do público, no que toca ao tempo que um processo demora. Comecemos por afirmar perentoriamente que a Justiça em Portugal não é, em geral, demorada demais. Digo em geral porque existem dois casos específicos onde isto não é verdade: nos Tribunais Fiscais e Administrativos (TAFs) e nos megaprocessos. Antes de abordar estas exceções, fundamentarei a minha defesa do nosso sistema judicial. Acontece que os tribunais judiciais portugueses possuem dos melhores indicadores europeus no que toca a número de casos conclusos e a duração média de processos, algo que aparentemente escapa a grande parte da população. Não nos enganemos: o nosso sistema de Justiça funciona melhor que muitos dos nossos congéneres europeus, sendo infinitamente mais funcional e, atrevo-me a dizer, até moral, do que o que encontramos do outro lado do Atlântico. O leitor atento a estas questões estará por esta altura a pensar que um processo que demore um ano, ou mais, é de longe longo demais, não percebendo bem a minha recusa admiti-lo. Examinemos, então, o normal decorrer de um processo comum, num tribunal de primeira instância, para verificar a sua razoabilidade. Num primeiro momento o processo dá entrada, sendo analisado pelo tribunal e distribuído ao juízo adequado, de acordo com os recursos humanos disponíveis e a substância em questão. A petição inicial é analisada, procurando o juiz determinar quais as matérias em discussão e qual a prova a produzir. As partes envolvidas são citadas, podendo este prazo aumentar, dependendo do modo como o forem. Podendo contestar, os réus produzem os seus documentos de contraditório, fazendo uso dos prazos estabelecidos para tal. Entretanto, as partes interessadas podem deduzir intervenções, fazendo os seus pedidos e alegando os seus direitos. Os processos têm de ser sanados através de despacho e as suas falhas resolvidas. Todas as partes têm de constituir mandatários, e todas as testemunhas têm de ser notificadas. Perícias têm de ser pedidas, podendo

esclarecimentos ser requisitados. Finalmente, o julgamento pode iniciar-se, mas não chegar a terminar facilmente devido à falta de algum interveniente ou à necessidade de mais tempo, sendo necessário encontrar lugar nos calendários sobrelotados de todas estas pessoas.

Apesar desta descrição pouco científica, podemos concluir que a principal razão de demora judicial é a necessidade de assegurar que todos têm direito ao contraditório e a um recurso da decisão atingida.


Com exceção de atrasos que poderiam ser evitados graças à maior eficiência das secretarias, quase nenhuma das partes do processo poderia ser suprida sem perdas substanciais ou desrespeito pelos princípios pelos quais se rege o nosso Estado de Direito. Claro que existem várias razões pelas quais o processo é muitas vezes mais demorado do que necessário, com a ressalva de que estas são obviamente subjetivas e dependem em grande parte de relatos dos vários magistrados com que me cruzei. Existem por exemplo muitos processos que apenas os juízes têm interesse em desenvolver. Muitos são os advogados que procuram fazer uso dos julgamentos para justificar as suas custas, através de desempenhos de teatro jurídico, fazendo uso de todas as ferramentas possíveis para procurar obter uma vitória, ou pelo menos a aprovação dos seus clientes. Um processo inicialmente simples pode complicar rapidamente se as partes assim o desejarem, e muitas desejam-no ativamenVox Iuris

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te. Isso liga-se à dificuldade em atingir acordos que muitos processos enfrentam. Litigâncias que seriam facilmente solucionáveis através de acordos proveitosos para ambas as partes estão permeadas de farpas emocionais, que impedem os autores e réus de chegarem à conclusão racional, num acordo que seria simultaneamente mais fácil para o tribunal executar e para as partes cumprir. Claro que se o objetivo for comparecer numa fulgurante audiência com todas as formalidades que vemos nos filmes, um acordo não irá, obviamente, satisfazer ninguém. Aliemos a facilidade de acesso aos recursos, mesmo para casos cujos valores fixados são tão baixos que as próprias custas do processo e os honorários dos representantes os esgotam ou ultrapassam, e elevamos consideravelmente o tempo que um caso demora a tramitar. Finalmente, temos demoras consideráveis em fases que são em grande parte alheias ao tribunal, nomeadamente nas perícias, que dependendo


muitas vezes de hospitais, universidades, engenheiros, cientistas ou apenas do Instituto de Medicina Legal, entopem o processo devido ao altíssimo período de espera pelo resultado. Isto, claro, quando as partes não entram numa guerra aberta de peritos, em que o perito de um lado é hostilizado com “clarificações” pelo outro, sendo o perito nomeado pelo tribunal fustigado por ambos. A isto podemos adicionar prazos para contestações, intervenções espontâneas de outros agentes externos à petição inicial, adiamentos requisitados pelas partes ou pelo tribunal (frequentes nestes tempos pandémicos) e suspensões motivadas pela dependência de outros processos, e temos em mãos demoras substanciais que em pouco ou nada dependem da vontade dos magistrados ou oficiais de justiça.

Para que o sistema funcione, todas as suas partes têm de estar em sintonia, e isto raramente acontece numa atividade que implica choque de vontades. Aqui chegados temos de abordar os dois elefantes na sala. A demora nos TAFs é tão lendária quanto atroz, motivada por décadas de desinvestimento e relegação destes tribunais para as piores das condições. Todos os problemas presentes nos restantes tribunais são multiplicados por dez nos tribunais mais intimamente estatais, e não devido à suposta maldição do envolvimento estatal que os neoliberais e libertários tanto adoram, mas devido à dificuldade aparente de coadunar a natureza administrativa interna dos processos presentes com a resposta por parte do Estado aos seus requisitos. Temos de aceitar que existe um problema sério com os TAFs, e que este deverá ser enfrentado sem vergonha, se temos esperança de o solucionar. Já no que toca aos megaprocessos a questão é bem diferente. A falta de recursos do Ministério Público, o tempo necessário para realizar uma investigação criminal decente e o apetite por exposição mediática que proporcione uma boa imagem públi-


ca criam um pequeno conjunto de processos que chama muito a atenção devido às personalidades e crimes envolvidos, mas que são de tamanha dimensão que dificilmente têm solução adequada. Para um corpo de procuradores exausto, a aglomeração de centenas de arguidos, testemunhas e fontes de prova numa única acusação dificulta a obtenção de condenações que seriam de outro modo muito mais facilmente atingíveis, criando por sua vez uma imagem de espera interminável por resultados que o público acha adequados a todo o sistema. Megaprocessos deveriam ser reduzidos a processos mais pequenos, mais facilmente tramitáveis, que atrairiam menos atenção mas produziriam melhores resultados. Esta lição aparenta ser óbvia mas ainda não produziu resultados palpáveis, como podemos observar nas manchetes dos jornais. Como podemos então solucionar este excesso de tempo de tramitação nos tribunais judiciais? Podemos modificar a legislação para assegurar Vox Iuris

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que certas fases são mais controladas ou limitadas, cumprindo com as recomendações dos agentes jurídicos no terreno. Esta solução dificilmente interessa a uma fatia da classe política, para a qual a “demora na Justiça” é uma bandeira demasiadamente apetecível para ser abandonada. Que fariam as forças de extrema-direita se os eleitores considerassem que os seus direitos estavam a ser adequadamente exercidos e protegidos no sistema atual, se não perder votos e definhar? A reforma do sistema judicial de 2014 veio provar que, com ingenuidade e vontade política, é possível melhorar o sistema, através da introdução de mecanismos mais especializados e limitações ponderadas na utilização de procedimentos jurídicos. É clara também a necessidade de um maior investimento no sistema, tendo em conta que o número de processos é francamente avassalador quando comparado com o número de magistrados disponíveis. Precisamos de mais juízes, mais

André Francisco Alves Teixeira


procuradores, mais oficiais de justiça, melhores sistemas informáticos e melhores instalações. Esta insuficiência de recursos é uma praga eterna dos serviços públicos, sendo que deve ser constantemente combatida, tal como a ferrugem, inevitável no metal imóvel exposto ao oxigénio, a exigir ser que ativamente raspada. Finalmente, a formação adequada dos agentes no nosso sistema jurídico melhoraria todas as facetas do mesmo. Oficiais de justiça de qualidade nas secretarias asseguram que as partes administrativas correm adequadamente, advogados com conhecimento aprofundado dos pontos de vista teórico e prático e que respeitam o seu código deontológico facilitariam as escolhas dos seus clientes, e magistrados capazes e imparciais assegurariam que as falhas dos restantes seriam menorizadas. Com isto não quero dizer que a atual comunidade jurídica é incapaz, mas a aceitação da mediocridade nos nossos profissionais jurídicos levará o sistema à ruína mais rapidamente do que qualquer tribunal com infiltrações de chuva nas salas de audiências. Após tudo isto, chego à conclusão de que a Justiça portuguesa tem muitos e variados defeitos, mas que não é particularmente demorada. Os défices temporais que existem terão de ser solucionados, sendo essencial não ceder a populismos vazios e proteger sempre os princípios que tornam o nosso um dos melhores sistemas jurídicos da Europa. Pois se nas autocracias as decisões são extremamente rápidas, mas invariavelmente injustas e unidirecionais, em democracia as coisas levam tempo.

Mas apenas em democracia podemos chegar ao fim do dia e afirmar, com uma margem razoável de dúvida, que se fez Justiça.


004.

Artigo

PORQUE É QUE PORTUGAL É UM ESTADO DE DIREITO?

Beatriz Gama A mais pura e dura das realidades é que tal questão não me faria sentido até entrar em contacto direto com o estudo do jurídico, porque, efetivamente, parece-me óbvia a resposta. Se me tivesse deparado com esta pergunta há uns anos, retorquiria afirmativamente, mesmo não sabendo ao certo o seu significado. Numa análise excessivamente simplória e deduzida a partir de um mero vislumbre sobre a expressão, muito provavelmente teria concluído pela vinculatividade do Direito sobre o Estado. Mas o que me surpreende é o modo como daria tal aceção por adquirida e praticamente irrefutável. Hoje percebo o perigo que tal abarca. Imagino que o meu eu do passado não seria espécie única que agiria com esse ingénuo comodismo relativamente a este facto basilar do nosso país.


Um problema que o Direito sempre terá de deslindar é o grosso da população o dar por garantido quando tudo corre bem e massacrá-lo fervorosamente quando tudo corre mal. Nesta dualidade de comportamentos o conceito de Estado de Direito também flutua. A sua sorte é que, desde a Revolução de Abril, em Portugal não parece ter havido acontecimento que fizesse o ingénuo comodismo nacional tremer até rachar.


Ainda assim, o ser humano tem a incrível predisposição para debater, discutir e opinar, nunca pondo de parte aqueles assuntos dos quais nenhum conhecimento ou suporte argumentativo possui. “Portugal não é um Estado de Direito” por esta razão ou por outra é frase que pode muito bem surgir numa tertúlia informal entre sujeitos. Não me pasmo em ouvir tal coisa. Afinal, o que seria do futebol sem o fenómeno dos treinadores de bancada, ou do mundo da saúde mental sem os especialíssimos terapeutas que prescrevem os velhos clássicos “amanhã isso passa” e “não estejas triste; anima-te só”. Negar a natureza da República Portuguesa, cuja importância assume tamanha dimensão ao ponto de merecer consagração constitucional logo no artigo 2.º, é cair num insensato contrassenso, todavia, infelizmente, mais recorrente daquilo que seria o expectável. Contudo, parece ser esta a estranha e esotérica forma como a sociedade funciona: refutar axiomas a fim de provar um ponto infundado e incongruente. Vox Iuris

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Sem embargo, é graças ao suor dos juristas que essas opiniões infundamentadas não sobrelevam o crédulo conforto da generalidade dos indivíduos em inconscientemente agradecerem por viverem num Estado de Direito. No seu imperecível esforço por aprofundar cada vez mais a ciência humana e social que ordena a vida das pessoas, legitimada numa ideia de Justiça, é que este e muitos outros conceitos se densificam, se solidificam e se tornam pedra angular do nosso ordenamento jurídico. Nunca se cai na tradição académica em que se sabe cada vez mais sobre cada vez menos, até se saber tudo sobre nada. Antes pelo contrário, sem especialistas que estudam impetuosamente o mundo e a nossa existência não seríamos mais que organismos vivos a pairar no planeta durante um determinado período de tempo, sem propósito algum. Posto isto, cabe-me, então, encarnar a minha personagem de jurista e autopsiar a expressão de Estado de Direito, contribuindo para o sossego dos que dormem tranquilamente nele.

Beatriz Gama


Nos primórdios do seu surgimento e nos inícios da sua séria conceptualização, o Estado de Direito funda-se no projeto de limitar juridicamente a forma de agir do Estado a um conjunto de valores que se consubstanciavam na garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. As exigências conjunturais do positivismo jurídico levaram a que fosse necessária uma formalização do conceito, procurando uma neutra submissão do Estado à Administração e à Lei. Porém, cedo se percebeu que essa neutralidade, em última instância, descoraria o objetivo de proteção dos direitos fundamentais, na medida em que, não relevando o conteúdo, desde que obediente à Lei, qualquer Estado seria Estado de Direito (cobrindo a sua autêntica pele – um Estado legicêntrico). Por isso é que a definição de Klaus Stern tem vindo a ser considerada consensual no foro académico, pois constitui uma aliança entre o formal e o material – entre a vinculação à constitucionalidade, à separação (e interdependência) de poderes, à legalidade da Administração, à independência dos Tribunais e à segurança jurídica e a subordinação impreterível à dignidade da pessoa humana, à igualdade e à proporcionalidade. Esta é a explicação científica, interessante para a tecnicidade jurídica, mas inútil (embora não deveria ser) para um leigo. Para a pessoa comum, fundamentação teórica não é suficiente para a acordar do seu sono profundo face a viver num Estado de Direito. Desdobrar a formalidade e materialidade do conceito em termos práticos é o real ponto de viragem. Sendo assim, remeto novamente para a questão – por que razão Portugal é um Estado de Direito? Em primeiro lugar, porque a relação Estado/ Direito nunca se poderia somente conformar numa adição, ou seja, em Estado e Direito. A sua conexão tem de ir para além disso, sendo, nessa sequência, uma ligação de complementaridade e, simultaneamente, de submissão. O trabalho do Estado é apoiado e ancorado na máquina jurídica, mas este é limitado por aquela, impedindo que o absolutismo e arbitrariedade dos poderes públicos triunfem, em qualquer circunstância,


em relação à juridicidade. Assim, em boa verdade, parece correto caligrafar a expressão do seguinte modo: Estado (d)e Direito, salientado a bidimensionalidade que a carateriza. Não obstante, Direito que balize um Estado só se pode fundir na axiologia valorativa que está no íntimo da consciência jurídica geral. O ser humano tem gene particularmente sensível à Justiça e justeza das situações – logo, qualificar um Estado que antemura leis más ou formas de atuação estaduais injustas nunca poderá prevalecer. Seguidamente, porque é a maneira ideal e mais coerente de resguardar e afiançar os tão queridos direitos fundamentais. Um Estado subjugado ao Direito é sinónimo de um Estado que jura proteção acérrima dos direitos inerentes à comunidade organizada que o compõe. Isto pressupõe que todas as estruturas de poder aceitam estar subordinadas à salvaguarda de direitos, liberdades e garantias e de direitos económicos, sociais e culturais, todas eles florescidos da semente da dignidade da pessoa humana. Veja-se que não é por acaso que os direitos fundamentais são comummente apelidados de “trunfos”. Em qualquer jogo de cartas, quem tem o trunfo é quem automaticamente obtém maior vantagem face aos oponentes, visto que essa carta detém de valor reforçado. Ora, curioso é que, no jogo da vida e convivência social, todos Vox Iuris

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Beatriz Gama

os participantes possuem os seus próprios “trunfos”, unicamente pelo facto destes lhes serem intrínsecos. Mas se todos têm trunfos, que benefício se adquire? Esse reside na faculdade de cada um os poder utilizar de forma autónoma e livre porque está o Estado de Direito a assegurá-los de antemão, sendo tal evidente nas relações com os seus pares em pé de igualdade, nomeadamente quando o “trunfo” de um participante se vê ameaçado ou lesado. Ilustre-se o paradigmático caso do direito à vida: quando este é violado, por estar sob o escudo dos poderes públicos é que se operacionalizam os meios legais que atuam em sua defesa, por excelência o recurso aos tribunais. Num tom de ânimo indolente me obrigo a concluir. Nesta sensação antitética reside o meu parecer, visto que, por um lado, uma grande porção de sujeitos subsiste aconchegado na hibernação cognitiva, no ócio das artificiais críticas e da ignorância; por outro, dá-me alento o admirável radar genético do ser humano para a Justiça, aliada àqueles que devotamente se dedicam em corporizar, de modo são, a efetiva e empírica essência da República Portuguesa – ser um Estado de Direito.



O CONSENTIMENTO E OS CRIMES SEXUAIS

005.

Cláudio Sampaio 005. Artigo

Os crimes sexuais exigem cada vez mais uma maior atenção nas sociedades de todas as latitudes e longitudes. Sem nunca deixarem de ser uma realidade fraturante, desde logo pela evolução da conceção social dominante quanto a estes tipos de crimes, como pelo aumento do número de denúncias e queixas relativas a estes e às suas tentativas, tratam-se, por isso, de um assunto capaz de fazer desviar olhares, seja por repulsa, por medo, trauma ou fúria.


Contudo, como o objetivo deste texto se prende com a ciência jurídica, tentarei afastar considerações morais de considerações jurídicas, se bem que, o Direito e a Moral são como azeite e vinagre… Não se misturam (nem devem), contudo, juntos formam uma “dupla maravilha”.


O Código Penal (CP) português, apresenta-se como “dualista” quanto à natureza dos crimes sexuais desde 1995, altura em que deixou de considerar os crimes sexuais como “crimes contra a moral sexual ou os bons costumes” e passou a considerá-los como crimes contra as pessoas. Por um lado temos os crimes contra a liberdade sexual (previstos entre os arts. 163.º a 170.º do CP) e, por outro, os crimes contra a autodeterminação sexual (previstos entre os arts. 171.º e 176.º-B do CP). Aqueles penalizam qualquer atividade sexual praticada sem o consentimento da vítima, independentemente da idade e estes penalizam, em particular, todas as atividades sexuais com menores de 18 anos. Estes últimos existem precisamente para proteger o livre desenvolvimento da criança/jovem no domínio sexual (domínio esse que assume uma suma importância no âmbito da evolução intelectual, social e emocional da criança/jovem).

Vox Iuris

cogito

Relativamente a esta questão do consentimento, compete-me fazer uma pequena abordagem relativamente aos modelos que existem quanto ao mesmo no âmbito dos crimes sexuais. Por um lado, temos o modelo do consentimento, presente nos ordenamentos jurídicos inglês e irlandês – neste modelo, o “sim, é sim” e portanto, sempre que houver consentimento, não haverá crime e, a contrario sensu, sempre que não houver consentimento, haverá crime. Ou seja, se, por exemplo, A, casado/a com B, tentar algum ato sexual, sem que B expressamente consinta, estaremos perante um crime (parece algo radical). Por outro lado, temos o modelo do constrangimento/dissentimento, presente nos ordenamentos jurídicos alemão e austríaco – neste modelo, o “não, é não”, e por isso, haverá crime sempre que houver um dissentimento ou algum constrangimento. Assim, A, casado/a com B, apenas cometerá um crime se B expressamente rejeitar

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Antes de densificar nos aspetos mais jurídicos destes crimes, a verdadeira pedra de toque para saber se estamos perante qualquer crime de natureza sexual é, essencialmente o consentimento.

Cláudio Sampaio

o ato sexual, ou então se A, de alguma forma forçar esse ato. À partida, ambos os modelos levam à mesma conclusão, contudo, como procurei ilustrar com o anterior “caso prático”, existem cenários que não são tão “preto no branco”, e por isso, casos de indecisão ou incerteza quanto ao consentimento da outra pessoa, à luz do modelo do consentimento, seriam sempre crime (na medida em que não há um “sim”), já à luz do modelo do constrangimento/dissentimento, só estaríamos perante um crime se houvesse uma divergência entre as vontades das partes ou então o consentimento não fosse livre. Dito de outra forma, o modelo do consentimento não permite, por exemplo, o consentimento tácito, enquanto que o modelo do constrangimento/dissentimento já o permite. Assim, a verdadeira questão prende-se com os casos de ausência de consentimento livre, como veremos adiante.


Contudo, como se mudam os tempos e se mudam as vontades, o legislador não poderia ficar indiferente ao aumento do número de crimes sexuais (afinal de contas, o Direito deverá ser sempre uma verdadeira Régua de Lesbos), e por isso, o facto de estes crimes terem passado a ser considerados crimes contra as pessoas revela que o legislador se adaptou e procurou tutelar de forma mais eficaz o bem jurídico em causa. Contudo, a redação dos crimes de coação sexual e de violação (arts. 163.º e 164.º do CP), durante 20 anos (entre 1995 e 2015), configurou estes tipos legais como crimes de execução vinculada (crimes em que “a lesão do bem jurídico tem que ocorrer como consequência dos comportamentos típicos definidos pelo legislador”, nas palavras do Dr. Barreto do Carmo, no Ac. 1318/02 do TRC), na medida em que o legislador exigia como meios típicos “a violência, a ameaça grave ou a colocação da vítima na impossibilidade de resistir”, deixando assim de fora casos como aquele (infelizmente comum) em que a vítima se encontra num estado de embriaguez e o autor se aproveita dessa circunstância (cenário atualmente tipificado no art. 165.º do CP, sob a epígrafe “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”). Nestes casos, em tese, pode não existir violência, ameaça grave, e muito menos a colocação da vítima na impossibilidade de resistir, visto que esta se embriagou por livre e espontânea vontade. É evidente que isto esbarra com as necessidades de prevenção geral (principalmente positiva). Assim, por força do artigo 36.º da Convenção de Istambul (CI), que exigiu a criminalização de comportamentos sexuais não livremente consentidos, o legislador viu-se forçado, e bem, a proceder a uma reforma legislativa em 2015, através da qual se acrescentou no n.º 2 (atual n.º 3) dos arts. 163.º e 164.º, que se entende “como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior”. Esta “pequena” alteração legislativa, fez com que os crimes de coação sexual e de violação passassem a ser crimes de execução livre, o que, por sua vez, permitiu abranger um leque de casos maior, nomeadamente os casos de constrangimento por


meio de ameaça e ainda os casos de dissentimento, ou seja, casos em que o autor do crime impõe a sua vontade à vitima (é de notar que a existência de um dissentimento e a falta de consentimento livre não são a mesma coisa, no primeiro, existe uma clara divergência entre as vontades das pessoas, no segundo, há uma omissão, na medida em que a vontade de uma das partes (vítima) não é livremente declarada, mas não quer dizer que seja divergente, pese embora também não quer dizer que seja convergente, daí que seja necessária uma avaliação casuística). Ainda assim, ficaram excluídos os casos de ausência de consentimento livre, como por exemplo, os casos de consentimento viciado por indução em erro, aproveitamento de erro, as situações de vítimas com fragilidades na formação e/ou expressão da vontade e ainda os casos em que o constrangimento é praticado por terceiro. Se, com esta alteração legislativa de 2015, o CP mencionasse a ausência de consentimento livre (sendo livre, pode ser expresso tacitamente), como é o caso do art. 36.º da CI, o leque de crimes abrangido por este preceito legal seria muito mais claro e evidente pois esta redação enquadrar-se-ia no modelo do consentimento mas não alargaria a criminalização de forma desproporcionada na medida em que não seria necessário um mero “sim” para excluir a tipicidade, e, por isso, o acordo tácito seria considerado, tendo em Vox Iuris

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Cláudio Sampaio

conta as circunstâncias do caso (escusado será dizer que a roupa da vítima não constitui um acordo tácito para a prática de atos sexuais). Neste caso, poderíamos ter casos de consentimento livre tácito (não declarado) e daí resulta que só estaríamos perante um crime se o consentimento livre declarado não fosse respeitado ou se o consentimento (ainda que declarado) fosse viciado. Portanto, esta seria sem dúvida a via que o legislador deveria adotar no sentido de garantir o máximo respeito pelo bem jurídico que é a liberdade sexual e pela tutela da mesma. Esta redação da norma de 2015 foi alvo de várias críticas, de facto foram até apresentadas propostas pelo PS e pelo PAN, e mais tarde, com a Lei n.º 101/2019, seguindo a recomendação do GREVIO (Group of Experts on Action against Violence against Women and Domestic Violence), o legislador estabeleceu que os crimes de coação sexual e de violação através dos meios típicos (que anteriormente eram exigidos para que se preenchesse o tipo legal), passariam a constituir um crime agravado. Em todo o caso, o consentimento da vítima deve ser avaliado em função de todo o contexto envolvente, e deve ser especialmente considerado para cada ato, desde logo porque a vítima pode permitir cer-


tos atos e não outros (as chamadas boundaries), ou então porque pode começar por permitir, e a determinada altura, impedir ou dissentir. Por outro lado, a resistência da vítima nunca fez parte da tipicidade do tipo legal, desde logo porque muitas das vezes o medo ou a repulsa da vítima, durante o próprio ato, podem levar a uma passividade (ou até “petrificação”) da vítima, tendo em conta os muito frequentes climas de intimidação que se vivem durante estes momentos. Ou seja, a passividade, o silêncio, a imobilidade, a falta de um “não”, não equivalem a um consentimento tácito; quanto muito trata-se de um dissentimento tácito, ou seja, uma clara divergência entre as vontades das partes que não precisa de ser expressamente declarada. A ausência de um “não” nem sempre é um “sim”, mas a ausência de um “sim” deve ser sempre encarada como um “não”. Assim, apesar de óbvio, tendo a seguir o modelo do consentimento livre, e acredito que este deveria de ser o modelo adotado pelo CP português, sem prejuízo do consentimento tácito, mas mais uma vez, é uma questão muito casuística… Apenas face às circunstâncias do caso concreto seria possível aferir se estaríamos perante um “sim, não declarado” (aceitação tácita) ou um “não, não declarado” (recusa tácita) e sem dúvida que nestes últimos, não sendo essa recusa respeitada, estaremos perante um crime. Não obstante tudo o que foi dito acima e a perda de tempo que impus aos leitores, apraz-me dizer que as alterações legislativas que tem sido levadas a cabo nos últimos anos, acrescidas das diversas propostas que têm sido apresentadas, me fazem crer que a frequência crescente com que o sistema penal português está a ser “aperfeiçoado”, nos permite a todos, a nós e às gerações futuras, encarar o futuro dos crimes sexuais com uma maior segurança e com algumas prospetivas, no sentido de se tornar um sistema mais eficiente e mais protetor das vítimas destes crimes. Poderíamos ainda abordar a questão da natureza pública ou semipública de alguns crimes sexuais, mas isso… fica para o próximo episódio.


Artigo

006.

O ESTRANHO CASO DAS EMPRESAS FAMILIARES EM PORTUGAL Prof. Dr. João Nuno Barros

006.


As empresas familiares ocupam um lugar de destaque nas economias mundiais, nas quais se inclui a economia europeia. De facto, pese embora não seja possível determinar, com exatidão, a representatividade deste tipo de empresas no tecido empresarial, estudos recentes apontam para a circunstância de as empresas familiares representarem cerca de 70% de todas as empresas a operar na União Europeia. Ora, Portugal não foge a esta regra, e de acordo com uma notícia recentemente publicada por parte da Associação Portuguesa de Empresas Familiares, datada de 24 de outubro de 2018, mais de 50% do tecido empresarial nacional é composto por grupos familiares, aqui se incluindo tanto pequenas, como médias e grandes empresas. Antes de iniciar qualquer tipo de comentário relativamente à realidade das empresas familiares, importa delimitar o conceito de empresa familiar, de modo a corretamente enquadrar o raciocínio que infra se realizará. De tal modo, de entre várias definições avançadas tanto por parte da doutrina nacional, como internacional, para efeitos da presente indagação entenderemos por empresa familiar uma empresa (ou grupo de empresas) controlada(s) por uma família ou, alternativamente, por mais do que uma família interligadas entre si, a qual, ou as quais, detêm uma maioria absoluta ou relativa do capital da(s) sociedade(s) titulares da empresa familiar, de tal modo assegurando um bloco de controlo acionista/quotista relevante que permita, entre outras, a possibilidade de a(s) família(s) designar(em) a maioria dos cargos de administração da referida sociedade. Da presente delimitação conceptual resulta evidente que as empresas familiares tanto podem apresentar-se sob a forma de micro, como pequenas e médias, como também de grandes empresas a operar no âmbito do tecido empresarial nacional. Em face da interseção, no quotidiano das empresas familiares, de diversas dinâmicas e realidades jurídicas – pense-se que relevam, no âmbito da família empresária, áreas do Direito tão diversas como o Direito da Família, o Direito das Sociedades Comerciais, ou o Direito das

Sucessões –, estas tornam-se titulares de características específicas que importa considerar. Para uma perceção acerca da complexidade das relações interpessoais subjacentes à existência de uma empresa familiar, basta pensar que poderão existir, no seu seio, membros da família que não são sócios nem administradores da empresa familiar, sócios que não são membros da família nem administradores e quadros não-membros da família, e que não são sócios, membros da família, sócios, mas não envolvidos na gestão da empresa, administradores/gestores profissionais, não-membros da família, mas que detêm uma parte da empresa familiar, membros da família que são administradores ou quadros da empresa, mas que não têm a sua propriedade, e ainda membros da família que são simultaneamente sócios e administradores da empresa familiar. Ora, de um tão complexo enredo ao nível do substrato pessoal resultam algumas especificidades que devem ser tidas em consideração aquando do estudo da realidade das empresas familiares. Alguns pontos característicos destas mesmas empresas, entre outros, passam pela presença de um ou mais membros da(s) família(s) proprietária(s) da empresa nos órgãos de administração da sociedade comercial titular da empresa familiar, pela preocupação pelas relações familiares subjacentes aos seus sócios e/ou aos seus membros dos órgãos de administração, pela sobreposição entre a gestão e a propriedade da empresa, pelo desejo dos seus fundadores de transmissão da empresa às gerações vindouras da(s) família(s), com a inerente continuidade do negócio entre gerações, pelos problemas emocionais subjacentes à condução do(s) negócio(s) familiar(es). Posto isto, resulta por demais evidente que as empresas familiares são um palco privilegiado de aparecimento de conflitos, os quais surgem em resultado das diferentes perspetivas de cada um dos seus membros – algo característico do mundo empresarial –, com a peculiaridade de que nas empresas familiares acrescem os conflitos decorrentes das relações familiares, em face do choque verificado entre relações familiares e relações


profissionais: o que aparenta ser o melhor para a sociedade pode não o ser para a família, ou vice-versa. Efetivamente, é de fácil perceção de que empresa e família regem-se, por via de regra, por princípios antagónicos – e, consequentemente, conflituantes – entre si: a empresa prossegue o lucro e a produtividade, enquanto a família presta um serviço desinteressado, solidário e altruísta. Deste modo, a realidade das empresas familiares reclama a existência de mecanismos de governação especificamente previstos para efeitos de uma adequada administração empresarial, tendentes a dar resposta ao manancial de hipotéticos obstáculos que podem surgir no seu quotidiano. No que respeita à governação corrente da empresa familiar e do respetivo negócio, importará ter presente que devem existir instrumentos de corporate governance – como é o caso do protocolo familiar – que estabeleçam as regras que devem ser observadas por cada um dos membros da família empresária, tanto no que concerne às Vox Iuris

cogito

papel de destaque, desde logo em face de uma das características supra elencadas: existe, entre os fundadores das empresas familiares, um desejo de continuidade da empresa no longo prazo, através da transmissão da mesma às gerações vindouras das suas famílias. No entanto, a verdade é que o ordenamento sucessório nacional, dotado de uma imperatividade acentuada, impede que os titulares das empresas familiares planifiquem da forma mais adequada e livre a transmissão geracional da empresa de que são titulares, com as nefastas consequências que daí podem decorrer para a família, para a empresa, assim como para o interesse público em geral (de facto, cumpre recordar que as empresas familiares, representando uma grande parte do tecido empresarial nacional, são responsáveis pela criação de emprego, pelo pagamento de impostos, pelo incremento do Produto Interno Bruto, etc.).

077

relações entre os próprios, como em relação à própria empresa. Por outras palavras, importará delimitar como que um acordo consensual entre todos os membros da família com participação – direta ou indireta – na empresa, tendo em vista estabelecer de que forma se deve a família relacionar entre si, por referência à empresa, mas também entre si e a própria empresa familiar. Não obstante, ainda que tais instrumentos se afigurem passíveis de ser criados e implementados à luz do princípio da autonomia da vontade, concretizado no subprincípio da liberdade contratual, a verdade é que há limites que devem ser observados. Ora, um dos que mais entraves coloca ao nível da governação das empresas familiares coloca-se precisamente ao nível dos limites decorrentes da imperatividade característica do ordenamento jus-sucessório português. Como sabemos, as matérias sucessórias ocupam, no quotidiano das empresas familiares, um

Prof. Dr. João Nuno Barros

Para o efeito, basta pensar em alguns dos entraves com que os titulares de empresas familiares se podem deparar em sede de planeamento sucessório empresarial: traga-se à colação o regime imperativo da sucessão legitimária, que forçosamente atribui aos herdeiros legitimários do titular da empresa familiar a legítima, uma porção de bens que lhes está legalmente reservada, mas também a proibição generalizada de pactos sucessórios constante do art. 2028.º/2 do Código Civil, o diminuto espaço conferido à autonomia da vontade em matéria de transmissão mortis causa de património, a proibição de fideicomissos e de cláusulas de inalienabilidade em segundo grau, e ainda o regime das indisponibilidades relativas sucessórias constantes dos arts. 2192.º e seguintes do Código Civil. Por outras palavras, ainda que existam institutos alternativos que permitam, de certo modo, e dentro de limites rígidos, planear a transmissão


da empresa familiar em termos adequados – o recurso ao testamento, a criação de fundações e trusts para esse mesmo efeito, a utilização de mecanismos de transmissão da empresa familiar em vida, através de doações ou do próprio instituto das partilhas em vida –, a verdade é que as disposições legais vigentes em matéria sucessória encontram-se desatualizadas e desajustadas à realidade de um tipo empresarial que carece de uma maior flexibilização no que respeita ao seu tratamento sucessório. Aliás, pelo contrário, o Livro V do Código Civil antes parece obstar e colocar entraves à transmissão mortis causa das empresas às gerações vindouras das famílias, com claros prejuízos para todos aqueles que, direta ou indiretamente, de tais empresas dependem e com as quais se relacionam.

Nessa medida, impõe-se uma verdadeira revisão do Direito das Sucessões em Portugal, reformulação essa há muito reclamada por parte da doutrina nacional por referência a diversos aspetos, e que encontra também na necessidade de dar resposta à realidade das empresas familiares um fundamento premente.

De facto, atenta a relevância das empresas familiares a nível nacional, europeu e internacional, muito se estranha que o legislador português ignore por completo a sua existência, em nenhum momento se referindo a elas expressamente, bem como que não propicie um sistema legal que vá de encontro às suas necessidades de regulação específica. Caberá, então, aos estudiosos do tema reclamar a tão desejada revisão legislativa, identificando não apenas os obstáculos verificados e supra expostos, como também indicando possíveis caminhos que o legislador nacional possa seguir no futuro.


Artigo

A CELERIDADE JUDICIAL: INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E JUIZ ADMINISTRATIVO

Camila Gonçalves Silva

007.


O universo jurisdicional vive uma onda de transformação digital, na qual a justiça clama por inovação. São tendências como inteligência artificial, big data, robótica e automação, que se expandem em velocidade e intensidade de desenvolvimento. Também as funções preservadas são desafiadas a interagirem com as novas tecnologias no desempenho das suas atividades quotidianas. Compreender e moldar-se as tais mudanças é o grande desafio do profissional da área jurídica hodierno. Importa, desde logo, desvendar qual o impacto desta nova infraestrutura tecnológica no universo jurídico, nomeadamente, os seus impactos no, por exemplo, método tradicional de decidir, fazendo aqui um recorte metodológico no campo da inteligência artificial (IA). Assim, verificamos a possibilidade da inteligência artificial poder ser utilizada na técnica decisória, como uma ferramenta de apoio para identificar padrões de decisão e previsão do resultado de julgamentos, elevando a eficiência do Poder Judiciário, conjuntamente com a analise de um acórdão acerca do atraso da justiça. O próprio Estado foi uma entidade maquinal criada pela sociedade como maneira eficiente de se organizar. A burocracia estatal, como ressalta Max Weber (1999, p. 198-204), é a síntese da racionalidade no alinhamento dominante de engrenagens humanas e institucionais na busca de uma finalidade coletiva. Daqui concluímos que a tecnologia é fruto da cultura (MAGRANI, 2018, p. 44). Na decisão judicial a utilização de sistemas computacionais baseados em algoritmos de IA passa pela discussão sobre os riscos e possibilidades inerentes aos modelos que têm vindo a ser pensados. Dessa forma, o presente artigo foca-se na legitimidade da inteligência artificial como forma de incrementar a celeridade processual e a transparência do Poder Judiciário, sendo que, existem riscos à independência do julgador e ao adequado tratamento dos casos trazidos a julgamento pelos cidadãos jurisdicionados. Desde 1987 que a International Association for Artificial Intelligence and Law tem realizado uma compilação das pesquisas acerca da relação entre o direito e a IA, sendo que, naturalmente, as pesquisas avançam de maneira a acompanhar as novas


tecnologias. Logo, a preocupação da integração da tecnologia à aplicação do direito e a IA não sãoalgo tão recente quanto possa aparentar, pois já têm vindo a desempenhar um papel de destaque há algumas décadas, especialmente os estudos e a aplicação da inteligência artificial, o qual se vem avolumando e acelerando. Isto pode ser sentido nos estudos elaborados nos últimos anos acerca das soluções de inteligência artificial baseadas em algoritmos de machine learning (aprendizagem da máquina) que se têm mostrado aplicáveis, deep learning (redes neurais) e processamento de linguagem natural, por exemplo, para soluções em e-discovery e automação na produção de documentos (LINNA JR, 2016, p. 409) para a elaboração de contratos, petições e minutas de decisões judiciais. Há muito que se discute e se escreve que o Poder Judiciário precisa de se modernizar para prestar mais e melhores serviços à população. A ineficiência da máquina pública colocada a serviço da Justiça traz enormes prejuízos ao país, no sentido em que torna a prestação jurisdicional inacessível para uma grande maioria da população, transformando a vida daqueles que tem acesso ao Judiciário numa luta sem fim pelo reconhecimento de direitos, dificulta o exercício e penaliza injustamente os magistrados na sua missão de fazer justiça. Vox Iuris

cogito

081

Camila Gonçalves Silva

Existem diversos aspetos e aplicabilidades da IA junto à atividade jurisdicional, como no caso das atividades de movimentação processual, controle de prevenção de nulidades processuais, conciliação, mediação, classificação de processos e, até mesmo, elaboração de minutas de decisões (judiciais ou de arbitragem). Neste ponto, a elaboração de decisões judiciais pode beneficiar-se de diversas tecnologias de inteligência artificial (já desenvolvidas ou a serem implementadas), uma vez que essa é a fronteira a ser perseguida na relação entre campos eminentemente jurídicos (teoria da interpretação e teoria da decisão) e inteligência artificial (a qual é dotada de subcampos próprios de estudo). Dessa maneira, a figura do juiz de carne e osso, dotado de humanidade, consciência e autoridade (CLÈVE; LORENZETTO, 2016, p. 164) não pode ser simplesmente substituída ou driblada por um modelo puramente maquinal, o que será tratado de seguida. Legalmente, em Portugal, a implementação da informática computacional no processo pode ser observada, por exemplo, através do Decreto-Lei nº 303/2007 de 24 de Agosto, que possibilitou aos desembargadores responsáveis pelo julgamento do respetivo recurso o acesso simultâneo ao processo em formato virtual. Com


relação a outra implementação dessa tecnologia, a Portaria nº 1538/2008 de 30 de Dezembro, que alterou a Portaria nº 114/2008 de 06 de Fevereiro, regula vários aspetos da tramitação eletrónica dos processos judiciais. O programa CITIUS é atualmente o grande responsável pela informatização processual, esse programa é o que mais colabora e viabiliza a virtualização do processo. A iniciativa do Ministério da Justiça português de investir em um programa que possibilita a informatização do processo judicial é importante para o desenvolvimento do Direito processual. Esse ato demonstra o interesse do país de se posicionar entre os demais países que já implementaram a tecnologia informática computacional no processo judicial. Dessa forma os benefícios dessa implementação já estão a ser aproveitados pelos operadores do Direito, assim como pela população que se utiliza da via judicial. Os benefícios trazidos pela informatização processual foram logo aproveitados pelos usuários do processo judicial, porém os riscos provenientes da utilização da tecnologia informática computacional sempre irão existir, principalmente por causa de sua rápida e constante evolução, tal como foi suprarreferido. A implementação da tecnologia informática computacional no serviço processual judicial rompe barreiras e tem ajudado a proporcionar maior rapidez e agilidade no trâmite processual. No entanto, ao considerar sua incorporação no processo, os princípios de aceso à justiça, do contraditório e do processo legal necessitam de uma específica análise a fim de prevenir a ocorrência de faltas inadmissíveis ao processo judicial, uma vez que estes são princípios de importância intrínseca ao processo judicial e por serem atingidos diretamente pela informatização processual. Tal como sabemos, a base do Cittius não era suficiente para as necessidades dos juízes. Deste modo, atualmente, para responder a esta lacuna, o Ministério da Justiça tem dois projetos em curso, um destinado a juízes, em que uma ferramenta tecnológica, desenvolvida pela Watson (IBM) – do ponto de vista comercial uma das

mais avançadas - que foi adaptada às necessidades dos juízes e que opera, sobretudo, na área da pesquisa, permitindo rapidamente chegar a jurisprudência, conhecer interconexões entre acórdãos ou processos, entre outros, apresenta funcionalidades diferentes nos tribunais administrativos; e outra na área do cadastro do território, lançado após os incêndios de Pedrógão Grande (2018). No nosso ponto de vista, o maior risco no uso e emprego de entidades de IA está na autonomia que se dá para a tomada de decisões e, consequentemente, na imprevisibilidade que estas podem ter, especialmente quando consideradas aquelas formas de aprendizagem autônoma da IA. Por outro lado, barrar totalmente tecnologias e algoritmos que permitam o auto aprimoramento de sistemas e a capacidade destes de tomar de decisões sem intervenção humana seria um retrocesso tecnológico, algo que vai totalmente de encontro ao progresso da IA e da robótica e, porque não, do próprio bem-estar do ser humano. Não há dúvidas de que o emprego de IA e de robôs já trouxeram inúmeros benefícios ao ser humano. Nessa linha, David Runciman (2018, p. 212) lembra que o pensamento futurista que permeou o século XX está a evoluir para o que convenciona chamar de aceleracionismo, sendo que para tal corrente de pensamento a crítica à tecnologia estaria a se preocupar com questões equivocadas, haja vista que as mudanças tecnológicas deveriam ser recebidas abertamente, pois ao invés de “evitar um salto no escuro, devíamos reconhecê-lo como a precondição de qualquer mudança significativa” (RUNCIMAN, 2018, p. 212). Assim, apesar de ser necessário um conhecimento específico sobre a aplicação da informática e da telemática no Direito processual, há uma dificuldade de se achar material sobre essa implementação da tecnologia computacional no processo judicial, uma vez que existe um número torna-se demasiadamente reduzido quando a matéria é a informática jurídica. Os estudos que envolvem essa área do Direito são mais estimulados em países como Alemanha e Espanha, pelo que encontrar uma obra de um autor português nesse


campo é uma árdua tarefa, e muitas vezes sem frutos. Tendo em vista essas dificuldades bibliográficas, constatamos que é importante preencher essa lacuna, pois, com a escassez de material sobre a informática jurídica em específico, o país que iniciar estudos nessa área será pioneiro e poderá ditar a melhor maneira com que se deve ocorrer a aplicação dessa tecnologia no Direito. Essa lacuna está presente também na abordagem da informatização processual em sobreposição aos princípios processuais. Em face de uma modernização tão drástica no sistema processual, vimos que é necessária a realização de uma análise que contraponha as modificações implementadas frente aos princípios que orientam o ramo do Direito processual. Caso esse estudo não se realize, corre-se o risco de serem abaladas as verdadeiras estruturas do processo judicial.

Vox Iuris

cogito

083

Camila Gonçalves Silva


008.

Artigo

BREVE REFLEXÃO SOBRE O ENSINO DO DIREITO DAS CRIANÇAS

Prof. Rossana Martingo Cruz


Cada vez mais, as matérias do Direito das Crianças conquistam espaço nos conteúdos programáticos do ensino do Direito da Família. A ótica no âmbito do ensino destas matérias será sempre a do superior interesse da criança. Este conceito indeterminado será imperioso nesta matéria. A noção de superior ou melhor interesse da criança dependerá sempre das circunstâncias reais em que a criança em questão se encontra, sendo a sua ponderação casuística essencial. Esta técnica de conceitos indeterminados é frequentemente usada no Direito da Família e das Crianças, como forma de moldar o conceito jurídico à realidade a que ele se destina. Será, igualmente, imperativo despertar a consciência de que a criança – muito para além de menor e incapaz para o exercício de direitos (perceção já ultrapassada) – será, acima de tudo, um verdadeiro sujeito de direitos. E, nesse contexto, será fundamental alertar para a importância que deve ser dada à visão da Vox Iuris

cogito

criança; dar-lhe essa oportunidade de se expressar e manifestar a sua perceção denota um respeito pela sua autonomia enquanto um verdadeiro sujeito de direitos. Dar a conhecer a evolução jurídico-normativa nestas matérias e as circunstâncias em que estes diplomas foram idealizados concederá uma perspetiva mais abrangente e uma compreensão crítica aos estudantes. Por outro lado, confere-lhes uma ótica realista importante para uma prática futura. O ensino do Direito das Crianças deve favorecer uma reflexão teórica e prática dos conteúdos programáticos. Este equilíbrio é fundamental e difícil de concretizar. Não devemos querer (apenas) filósofos e pensadores do Direito, mas também não devemos potenciar (meros) operários do saber jurídico, respondendo com automatismos jurídicos não problematizados.

085

criança nas questões que lhe dizem respeito. A criança não deverá ser alheia às decisões importantes que a rodeiam e, por isso, deve ser-lhe conferida uma voz adequada à sua maturidade. O art. 12.º/1 da Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece que os Estados “garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade”. Há, assim, uma preocupação em que a criança seja ouvida sempre que seja possível. Tal decorre, aliás, de vários outros preceitos normativos (internacionais e também nacionais). Permitir a voz da criança nas questões que lhe dizem respeito será demonstrativo do protagonismo que lhe devemos propiciar. A audição torna-se um vetor essencial de compreensão do âmago do pensamento e circunstâncias da

Prof. Rossana Martingo Cruz


009.

Artigo

SÓ UMA CERTEZA SOBRE A QUESTÃO DO RENDIMENTO BÁSICO INCONDICIONAL. É QUE, APARENTEMENTE, É A MELHOR CURA PARA A PRISÃO PERPÉTUA” José H. Rocha


A frase citada foi proferida pelo líder de um partido político1 pouco conhecido da maioria dos portugueses, que teve, até agora, o seu momento de fama ou infâmia com a eleição de Joacine Katar Moreira como deputada, e que mais tarde viria a não continuar no LIVRE, o partido político de Rui Tavares2. A citação vem no contexto do debate com o líder do CDS/PP, não porque haja ligação dialógica ou qualquer efeito de um Rendimento Básico sobre o sistema de justiça punitiva3, mas porque o líder do PPD/PSD e o líder do CHEGA trouxeram o tema da Prisão Perpétua para os temas das Eleições Legislativas de 2022, pelo menos, sem essa intenção o seu programa eleitoral. O presente escrito não terá por objeto nem a privação de liberdade por um período vitalício ou potencialmente vitalício, a Prisão Perpétua, nem o advogar pela implementação de uma prestação pecuniária positiva permanente de acesso universal pelos cidadãos que seja, um mínimo, suficiente Vox Iuris

cogito

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José H. Rocha

para sobreviverem, um Rendimento Básico Incondicional ou Rendimento Básico Universal4. Contudo, numa oportunidade de falar como texto de opinião, veiculado como jurista e para juristas ou futuros juristas, e “valendo” o recurso ao satírico, não resisto a traçar dois pontos importantes (para mim, pelo menos). O primeiro ponto, é que, de facto, esta configuração acaba por traçar uma dicotomia importante e que afeta a política legislativa atual. Ainda existe população suficiente para se fazer representar na Assembleia da República a não excluir uma punição que não existe em Portugal desde 18845, e não baseado em resultados melhores no sentido da Prevenção Geral provindos de além fronteiras. E, por outro lado, já existe população a “desafiar” alguns dogmas estruturais da configuração do Estado, neste caso algo que poderá ser descrito como uma Segurança Social Preventiva, por oposição ao atual modelo que prevê a situações a que


a Segurança Social reage, no que é comumente aceite e está documentado como com falhas e alguma fraude, um processo moroso e burocrático e que proporciona desincentivos à procura por uma vida ativa. Fazendo-o, pelo menos atualmente, nos programas de dois partidos com representação parlamentar, não por imposição de modelo ideológico, mas como experiência a financiar mas sujeita ao método científico que permita determinar se o outcome é positivo e como deve ser implementado para acautelar possíveis efeitos colaterais mais nefastos, sendo estes por regra preocupações inflacionárias, queda da estrutura do “mercado” de emprego, endividamento estrutural, as quais, sendo preocupações legítimas de oposição, não vimos ainda que fundamento empírico terão. Ou seja, por um lado ainda discutimos medidas baseadas em determinações políticas pouco aprofundadas, a chamadas “conversas de café”, que trazem instrumentos jurídicos ultrapassados e pouco, a nada, compatíveis com o Projeto Constitucional Português, e por outro, temos os que já vão na “vanguarda” da governabilidade e, portanto, já lançam ideias políticos cujo método até pode ser científico mas para o qual o Programa Constitucional não se viu vislumbrado por antecipação, o Direito ainda não alinhavou nem traçou doutrinariamente conceitos, ligações estruturais normativas, problemas intrasistemáticos decorrentes e, ainda lá estão, todos os “moderados” que vivem, ainda tendo uma ambição de progresso, ideológico ou meramente material, mas não saem da “caixa” do sistema, tal qual existe. Não estou a reduzir nenhuma destas posições… bem… talvez a que ressuscita instrumentos dos quais a Humanidade já se vê madura demais para não ir retirando… mas há algo que dizer em favor de todas as posições. O que resulta daqui, sendo o ponto principal nesta questão, é que este choque explica a não melhoria política e os problemas jurídicos de não haver, pelo menos, um sentido das cedências legislativas e normas jurídicas.

Imaginando que existe apenas os que estão “na caixa” e os que “vêm à frente”, poderemos ter um sistema coeso que experimenta em função de necessários avanços da Sociedade, tendo os três, mesmo com o “normal” no comando, haverá uma anulação de forças que ao “normal” não permite avançar para um “novo normal” e, simultaneamente, embala numa inútil discussão “para a frente e para trás” o sistema, estabilizando-o. Neste primeiro ponto, se denota esta realidade dicotômica e que empobrece o sistema político o que, não raras vezes, empobrece o sistema jurídico, mesmo quando enriquece o debate académico. O segundo ponto, em estrita ligação com esta ideia, vem no sentido de: onde se deve colocar quem se preocupe com o sistema jurídico, político e com a Sociedade em Geral!? Não é se evita discutir a Prisão Perpétua, não é se devemos experimentar, ou discutir experimentar, um Rendimento Básico Universal, mas sim,

(...) se não devemos ter em cada cidadão uma pessoa capaz de ver uma construção ideológica política, um sentido histórico do Direito, um espírito científico, suficientemente, denso para não excluir sem base fática uma solução “fora da caixa”,


(...) um cidadão que perceba que nem sempre não gastar, é poupar, que entenda que não há castigo que impeça ou vá dissuadir alguém de fazer o que acha necessário para sobreviver ou para os seus amados sobreviverem e prosperarem… alguém que consiga essa hercúlea tarefa de ouvir debates com mais do que 30 minutos, e que retire mais do que chavões e vitórias em debate (que, sublinhe-se, nem são dadas por avaliação formal, nem por adesão do auditório, sendo que não me atrevo a dizer em que base são avaliadas). O foco deverá então passar, nesta arrogante opinião (para variar da abundância de modestas opiniões que vão aparecendo), pelo estudo do Direito, nesta visão Macro, descer ao ensino básico e secundário. No fundo, parafraseando (ou mutilando) o grande pensador grego, Pitágoras, educai… no Ensino Básico Universal… as crianças para que não tenhamos de punir… Perpetuamente… os adultos.

Vox Iuris

cogito

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Para melhor observação da frase citada consultar o seguinte link. (Disponível a 12 de janeiro de 2022) 1

“de” no sentido de Liderado por e/ou fundado por. 2

Não excluindo os efeitos que possa ter, em termo de criminalidade, desde logo porque a falta de necessidade básica (numa organização tipo Maslow´s) de recorrer ao crime para assegurar condições básicas de vida poderá e parece, a priori, tem um efeito dissuasor por prevenção geral, se durante o período de prisão não receber a prestação. 3

Sobre esta ideia, e em português apontamos o seguinte link (1) e link (2). (Disponível a 12 de janeiro de 2022). 4

5

Vide: link.

José H. Rocha


O PROCESSO DE REGIONALIZAÇÃO EM PORTUGAL

010.

Rosa Maria Lopes Teixeira A organização democrática do Estado compreende o poder local1 dividido por freguesias, municípios e regiões administrativas para o território continental, e em regiões autónomas2 para o território insular. A Constituição de 1976 já previu a possibilidade de criar regiões administrativas3, no entanto apenas foram instituídos as freguesias e os municípios. Em 1997, a Assembleia da República aprovou a Lei nº19/98, de 28 de abril de 1998, que determinava a criação da Região de Entre Douro e Minho, Região de Trás-os-Montes e Alto Douro, Região da Beira Litoral, Região da Beira Interior, Região da Estremadura e Ribatejo, Região de Lisboa e Setúbal, Região do Alentejo e a Região do Algarve. Porém, a sua instituição foi rejeitada em referendo nacional, realizado em 1998. A criação de regiões administrativas, com a respetiva aprovação da lei de instituição de cada uma delas, dependerá sempre do voto favorável expresso pela maioria dos cidadãos eleitores num referendo nacional, com uma questão de alcance nacional e outra sobre cada área regional.

010. Artigo


I. Portugal, um país «centralizado» ou “descentralizado”?

Em termos jurídicos, quando o exercício da função administrativa é conferido por lei inteiramente ao Estado estamos perante um sistema centralizado. Por outro lado, existe um sistema descentralizado quando outras pessoas coletivas públicas para além do Estado estão incumbidas do exercício da função administrativa4. No plano jurídico, o sistema administrativo português tem necessariamente de ser um sistema descentralizado, na medida em que a descentralização surge referenciada no texto constitucional5, nomeadamente no art.6º nº1 e 267º nº2 da CRP. Em termos político-administrativos estes conceitos relacionam-se, pelo que não podemos afirmar que em Portugal vigora um sistema totalmente centralizado ou totalmente descentralizado. Ou seja, como refere Freitas do Amaral, “poderá haver mais ou menos centralização, haverá mais ou menos descentralização, é tudo uma questão de grau”6. Vox Iuris

cogito

091

Rosa Maria Lopes Teixeira

Em suma, não se deve encarar a centralização e a descentralização unicamente em sentido jurídico, e poderemos caracterizar o sistema administrativo português como tendencialmente descentralizado.

II. A regionalização administrativa em Portugal

O processo de regionalização, isto é, o processo jurídico-administrativo conducente à criação de regiões administrativas em Portugal continental, apresenta vários obstáculos para conceber uma regionalização que venha a ser bem-sucedida7. A criação de regiões administrativas que se enquadram não ao nível do município8, mas sim entre o município e o Estado, implica necessariamente a criação de novas entidades públicas (regiões), com órgãos de decisão próprios que


deverão ser eleitos por sufrágio direto e universal pela população residente em cada região. As funções e competências dos seus órgãos deverão ser suficientes para administrar os seus próprios bens e serviços9. O núcleo de atribuições próprias que a caracteriza deverá conseguir responder aos seus próprios assuntos e problemas, através dos seus próprios funcionários, património e recursos financeiros10. O diploma legislativo necessário para a concreta instituição das regiões, em consonância com a Lei-quadro das regiões administrativas, poderá também estabelecer diferenciações quanto ao regime aplicável a cada uma das regiões (art.255º da CRP).

No que concerne à descentralização de competências da Administração Pública é também de realçar, embora que de forma breve, o papel das cinco Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR’s). Contrariamente ao que sucede com as regiões administrativas, estas não estão constitucionalmente previstas, no entanto desempenham tarefas de promoção do desenvolvimento económico e social do país, sobretudo de desenvolvimento regional, proteção do ambiente, ordenamento do território e das cidades. Com a regionalização, o papel desempenhado pelas CCDR’s poderá ser entregue às novas regiões administrativas que vieram a ser instituídas.

Notas Finais: Conclusão

Estas pessoas coletivas territoriais, com os seus próprios órgãos representativos, dotadas de autonomia administrativa e financeira, visam a prossecução do interesse público, no entanto apenas a nível «regional». Ou seja, prosseguem interesses próprios das populações respetivas, como fator da coesão nacional11.

É certo que se deve promover a transferência de atribuições e competências da Administração central (do Estado) para outras entidades públicas que melhor estão vocacionados para resolver determinados assuntos, confiando a responsabilidade das decisões de interesse público nas regiões, municípios e freguesias. As regiões administrativas estão constitucionalmente previstas e devem ser instituídas, no entanto o processo de regionalização pela sua complexidade e particularidade tende a ser um processo imperfeito. Desta forma, exige sempre um cuidado acrescido e continuado para não terminar num processo desastroso. Em suma, são várias as questões que ficam por responder: conseguir-se-á proporcionar o crescimento equilibrado de todas as regiões e o aceleramento do desenvolvimento económico e social? Será que a criação das regiões administrativas permitirá a progressiva correção das assimetrias regionais? Existirão órgãos eleitos e politicamente responsáveis para prosseguir os interesses das populações das respetivas regiões? A regionalização administrativa será suficiente para ter um impacto significativo, aos olhos dos cidadãos,


com uma Administração Pública mais eficiente, menos lenta e burocrática? Após o resultado do referendo realizado em 1998, os cidadãos portugueses quando forem chamados a pronunciar-se, por sufrágio direto e secreto, terão interesse em proceder à divisão da nação em regiões? É verdade que a autoridade democrática do Estado português estará em risco? Serão criados «impostos regionais»? Está assegurada uma alternativa para criar novas sedes e contratar novos funcionários públicos sem aumentar consideravelmente a despesa pública? Qual deverá ser o montante permitido de défice orçamental e capacidade de endividamento das regiões administrativas? Por fim, é certo e quase irrefutável prever que a regionalização implicará o aumento da corrupção.

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cogito

1 Cf. art.235º da Constituição da República Portuguesa (CRP). 2 Em Portugal existe as regiões autónomas dos Açores e da Madeira como pessoas coletivas territoriais que possuem um regime político-administrativo próprio e determinada autonomia legislativa (art.225º a 234º da CRP).

Cf. Parte III, Título VIII, Capítulo IV (art.255º e ss.) da CRP. 3

4 Freitas do Amaral, D. (2016). Curso de Direito Administrativo (4a edição). Editora Almedina. Vol. I, p. 723. 5 Portugal é um “Estado unitário” (não federal) que respeita o princípio descentralização democrática da Administração Pública e autonomia das autarquias locais.

Freitas do Amaral, D. (2016). Curso de Direito Administrativo (4a edição). Editora Almedina. Vol. I, p. 723. 6

7 E como refere Diogo Freitas do Amaral, “pior do que não ter a regionalização, será

fazer uma má regionalização, isto é, uma regionalização mal estudada, mal concebida ou mal-executada”, Freitas do Amaral, D. (2006). Curso de Direito Administrativo (3a edição). Editora Almedina. Vol. I, p. 666–672. 8 Até porque vão compreender um determinado número de municípios.

Como refere Diogo Freitas do Amaral, os cidadãos portugueses estarão a apostar “na sua capacidade de assumirem a decisão dos seus problemas e de passarem a tratar desses problemas em regime de autoadministração, isto é, administrando-se a si próprios, administrando-se por intermédio daqueles dirigentes que por eles foram eleitos ao nível de cada região”, Freitas do Amaral, D. (2006). Curso de Direito Administrativo, op. cit., p.671. 9

10 Freitas do Amaral, D. (2006). Curso de Direito Administrativo, op. cit., p.669. 11 Art.1º da Lei-quadro das regiões administrativas, Lei nº 56/91, de 13 de agosto.

Rosa Maria Lopes Teixeira Está constitucionalmente previsto que o Governo deve defender a legalidade democrática e exercer a tutela sobre as regiões administrativas que serão instituídas (art.199º d) e f) da CRP). Logo, não se pode no imediato acreditar que a autoridade do Estado não poderia ser aplicada de igual forma a todo o território português.

12

Nos termos do art.238º nº4 da lei constitucional, as regiões administrativas poderão dispor de poderes tributários “nos casos e nos termos previstos na lei”.

13

Ou seja, nas regras orçamentais das regiões administrativas que vieram a ser implementadas, quais deverão ser os limites financeiros que têm necessariamente de existir para corrigir as desigualdades e executar uma justa repartição dos recursos públicos do Estado.

14

O importante será projetar medidas eficazes para a combater. Será que neste caso a criação de uma «lei de prevenção da corrupção nas regiões administrativas» será suficiente?

15


ECOLOGIA: MOVIMENTO OU MARKETING?

011.

Miguel Gonçalves 011. Artigo


A ecologia enquanto ciência estuda a relação entre os seres vivos e o meio ambiente. Deste modo, o desenvolvimento humano deveria ser acompanhado de políticas que asseguram a manutenção do equilíbrio ecológico. Por sua vez, sustentabilidade pode ser definida nos termos de seguir em frente (progresso) e garantir um futuro. Já no século XIX existia a necessidade de conciliar o progresso humano com a comunidade ecológica ao seu redor. É nesta conjuntura que os primeiros grupos protecionistas, a partir dos quais são criados os primeiros parques nacionais, como é o exemplo de Yellowstone nos EUA em 1872. O desenvolvimento urbano atroz fez surgir a necessidade de conservar a relação do homem com o meio ambiente e com isto travar a extinção de várias espécies e o reflorestamento que estava a acontecer. Acordos como os firmados pela RSPB (Royal Society for the Protection of Birds) demostravam a necessidade de globalizar o papel da ecologia como forma de assegurar a manutenção efetiva destas políticas. Vox Iuris

cogito

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Miguel Gonçalves

Quando Koskeniemi afirma que “A lei das nações – “Direito Internacional” - é o último refúgio do idealismo político”, este autor reflete sobre a ação que as várias comunidades, globalmente, têm feito esforços de maneira a estruturar as suas sociedades para resposta aos vários desafios que a globalização tem apresentado, desde crises económicas ou sociais, as crises dos refugiados, terrorismo ou alterações climáticas. Apesar do esforço da Lei para alcançar paz, segurança, direitos humanos e o desenvolvimento internacional, a verdade é que estes esforços ficam aquém do que se espera. Isto porque existe a regionalização dos problemas. Tomando de exemplo o problema das alterações climáticas que, como afirmado pela maior parte da comunidade científica, é um problema global, vemos que a maioria dos regulamentos, acordos, tratados e encontros internacionais, não possuem caráter vinculativo e são ditados, convocados ou guiados pelos Estados com maior poder internacional (como é o caso da Agenda 30 da EU ou as várias conferências do Meio Ambiente e do Clima promovidas pela ONU).


Atualmente, fica bem ser-se “verde” e o ambiente conquistou um lugar privilegiado nas prioridades de todos. A forma como os partidos empenham-se em demonstrar que as suas propostas são “amigas do ambiente” é um bom testemunho do interesse com que a opinião pública vem acompanhando a evolução dos problemas ambientais.


Os esforços das agências publicitárias para conquistar o “consumidor verde” constituem uma fonte rica de informação para o analista atento à mudança de atitudes, quer porque se trata de uma atividade cujo objetivo é convencer pela sedução, quer porque os anúncios quase sempre arrastam consigo uma grande carga de conotações implícitas. O aumento da consciencialização em torno das questões “verdes” é óbvio, e a procura pelo produto mais sustentável incentiva a esta consciencialização. Recuando no tempo, a visão ecológica surge num contexto sócio-económico de consolidação de consumo e produção para as massas do pós-guerra fria. Na década de 1970, a visão ecológica começa a se traduzir em ações governamentais. Nos EUA foram promulgadas as leis ambientais básicas para o controle da poluição do ar e da água, tal como a Lei Nacional da Política Ambiental NorteAmericana, e foi criada a Agência de Proteção Vox Iuris

cogito

científica, levou-nos a precipitação para medidas pouco eficazes para uma solução presente, com graves riscos para o futuro, tal como observado pelas respostas à descarbonização ou à crescente urbanização. Isto levou-nos a pensar sobre qual o sentido a tomar, num mundo acelerado pelo crescimento urbano desenfreado, insustentável e que está em constante dualidade de forças entre os limites do indivíduo e dos Estados, incentivado pelas economias mais poderosas. A discrepância da qualidade de vida é cada vez maior entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, fruto da concorrência global e da exploração dos recursos humanos e espaciais dos segundos em prol dos primeiros. Para responder a esta capitalização por parte dos “países desenvolvidos” surge uma urbanização irregular apoiada na desflorestação e no trabalho explorado. Existe um consenso global que todas as cidades passam atualmente por crises sociais, de adaptação e de sustentabilidade, mas existe igual

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Ambiental Norte-americana (EPA). Outros países seguiram rumos semelhantes, reflexo dos compromissos assumidos internacionais em 1972, na Conferência da ONU sobre Meio Ambiente, em Estocolmo, que difundiu os resultados da reunião do Clube de Roma e do Relatório Meadows. No entanto, estes problemas mais uma vez são regionalizados, não focando o seu esforço num desenvolvimento global, realmente sustentável. É evidente que são todas situações que podem ser interpretadas como problemas centrais do ambiente e não é difícil chegar a uma lista consensual de problemas de caráter ambiental. Chakrabaty, com base na experiência de Weisman, assume que “a atual crise climática pode precipitar-nos a um presente que desconecta o futuro do passado”. A indiferença para a resolução dos problemas do passado, comumente encontrados nos países menos desenvolvidos e considerados urgentes pela maior parte da comunidade

Miguel Gonçalves

consenso de que as respostas a essas crises só podem ser encontradas no futuro. As políticas da ecológicas foram importantes para a construção de uma consciência ecológica, para o entendimento dos processos ecológicos e de como as atividades humanas se inserem e as afetam, isso ninguém nega. É a perpetuação da negação da gravidade dos problemas, apesar do seu consenso, que incomoda. Na reunião para o Clima e o Ambiente da ONU 2019, os líderes mundiais reconheceram que era necessário baixar as emissões de carbono para 0, no entanto, como tal Greta Thunberg reconhece “estas reduções não incluem reduções imediatas”, nem penalizam os principais poluidores. É verdadeira a comercialização da sustentabilidade, presente em taxas, penalizações e impostos. Os alarmes são reais, porém os objetivos são turvos: o foco devia estar em como progredir para uma economia sustentável (economicamente e ecologicamente),


e não em penalizar a atual economia com vista a reduções ecológicas. Como afirma Paul James “a sustentabilidade urbana é positiva quando os termos para o seu desenvolvimento são negociados com cuidado e transparência”, caso contrário estaremos a incentivar a criação bairros sem condições, com promessas de inclusão, que leva a degradação urbana, a exclusão e a insustentabilidade económica e ambiental. Se existe reconhecimento destas crises por parte dos principais atores atuais, é necessário que haja igualmente uma responsabilidade global atual, e não o seu cumprimento no futuro. A sustentabilidade implica continuidade, e a sustentabilidade do mundo é uma necessidade. O “liberal cosmopolitano “moderno”, que embora vivesse num mundo divido por Estado-Nação, acreditava que a liberdade individual era o objetivo do Direito Internacional,” descrito por Koskeniemi é-nos mais relacionável, mas cada vez mais distante. Isto nota-se quando notamos que até as cidades “maís vivíveis” não são de todo sustentáveis. Olhemos para o caso da Austrália que ano após ano vive períodos de seca ou as cheias no centro da Europa, cada vez mais comum. Atualmente vivemos num mundo em que nos é possível, dentro de certas condições, fazer o imaginável e extrapolar a liberdade individual. Mas o crescimento insustentável irá levar-nos a um futuro em que a limitação da liberdade será a única solução para a subsistência da espécie e do planeta. Isto porque existe uma tentativa de usar o “verde” como marketing para alcançar o progresso individual ou estatal. O que nos leva a um dos paradoxos de Paul James: “quanto mais a linguagem sustentável é utilizada, mais ela é usada para a racionalização do desenvolvimento insustentável”. Não se trata de imaginar o apocalipse, mas sim de imaginar uma mudança das interações entre as comunidades. Se Kant defendia que “para atingir um grau legítimo de restringimento social, temos de nos abstrair da noção de felicidade e imaginar uma regra que seja aceite por todos”. Este restringimento social já existe, a comunidade científica já nos alertou para o caso.


PERSONA (099)


PROF.ª DRA. ANA RITA SIMÕES VI   Há que começar pelo início, naturalmente, e por isso, porque decidiu estudar Direito, e porquê na UM?

ARS   Gostaria de poder dizer que o meu ingresso no

curso de Direito na Universidade do Minho foi um passo que dei no sentido de concretizar um sonho antigo, porque assim tornaria esta narrativa mais interessante; mas a realidade foi outra, pois até aos seis meses que precederam a candidatura, nunca tinha ponderado estudar Direito. No Ensino Secundário frequentei o curso científico-humanístico de Ciências e Tecnologias, que concluí com uma média que permitiu que não me sentisse limitada na escolha dos cursos ou das instituições de Ensino Superior a que me poderia candidatar. Chegado o momento de manifestar as minhas preferências, para frustração das expectativas dos meus professores, familiares e amigos (crentes que seguiria a área das ciências da saúde), a minha primeira opção foi Direito. Ainda que sempre tenha revelado grande gosto – que, aliás, se mantém incólume – pelas ciências exatas e naturais, acreditei que encontraria no universo jurídico um espaço de potencialização das minhas capacidades e uma plataforma de lançamento para uma carreira em que me sentisse verdadeiramente realizada.

Entrevista


Para além de ter maior conexão com as disciplinas típicas das ciências sociais e humanas, desde muito cedo manifestei interesse pelo debate de temas políticos e atinentes à Justiça nas diversas esferas da vida social. Portanto, olhando em retrospetiva, outra escolha não teria feito sentido. Não posso deixar de destacar as minhas participações nas atividades Parlamento dos Jovens e Parlamento dos Jovens Europeu,sob orientação do Professor Carlos Justo Machado, por quem nutro imensurável admiração, como importantes catalisadores dessa decisão, bem como no programa O melhor aluno na UM, em 2016, que ajudou a consolidar a convicção de que na Universidade do Minho receberia um ensino de qualidade, sem necessidade de me deslocar para outro ponto do país.

Também já foi uma estudante universitária, e não é uma realidade assim tão distante, pois é uma jovem docente. VI   Quais foram os maiores desafios a superar enquanto estudante universitária e no curso de Direito? Vox Iuris

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Prof.ª Dra. Ana Rita Simões

ARS   Um dos maiores desafios que enfrentei prendeu-se com

a gestão do tempo e do stress, que acabam por ser duas realidades indissociáveis. Sempre estabeleci padrões muito rigorosos no que concerne à minha performance académica, pelo que em certos momentos senti dificuldade em encontrar um equilíbrio entre o tempo dedicado ao estudo e o tempo para descanso/lazer, sendo que, não raro, privilegiava o primeiro. Ademais, reconheço que tenho uma tendência crónica para analisar e cogitar sobre os mínimos detalhes de tudo o que faço, o que gera níveis de pressão autoimposta muito significativos. Estou certa de que se trata de um denominador comum à experiência de uma grande parte dos estudantes, não só de Direito, tendo em conta, entre outros aspetos, as exigências do mercado de trabalho atual, altamente competitivo. Outro fator desafiante, já mais particular da minha experiência, foi a pandemia, que veio exacerbar a tensão que qualquer aluno (finalista) encara, sobretudo na fase das avaliações. Realizei o último semestre da licenciatura em casa, distante dos meus colegas e professores, mas envolta de todas as incertezas que o coronavírus carreou para as nossas vidas.


VI   Quando era aluna, já ponderava vir a ser docente na ED da UM?

ARS   Devo confessar que inicialmente não tinha essa ambi-

ção, até porque quando comecei o meu percurso na licenciatura em Direito tinha como primordial objetivo poder vir a ingressar no Centro de Estudos Judiciários e seguir a via da magistratura. Contudo, a minha experiência na EDUM e com o corpo docente com que tive contacto ao longo dos últimos anos foi bastante positiva e inspiradora, e penso que isso terá despertado em mim o desejo latente de, um dia, estar à frente de uma turma. Essa intenção intensificou-se quando descobri o Direito Penal, no terceiro ano, mas nunca tinha perspetivado a possibilidade de se vir a materializar. Cresci integrada numa família de Professores e por isso valorizo muito o Ensino, em todos os níveis, e encaro a partilha de conhecimento como uma atividade de grande nobreza, que assume uma função vital no tecido social e serve de força motriz para o seu desenvolvimento. Destarte, foi com grande sentido de responsabilidade e gratidão que aceitei o desafio da lecionação.

VI   Aquando do seu mandato enquanto Diretora da AEDUM, porquê a escolha do Departamento de Saídas Profissionais?

ARS   Ao longo dos anos fui tentando ser uma presença

ativa na comunidade académica, pelo que não hesitei em aceitar o convite para integrar a lista candidata à XXIII Direção da AEDUM, encabeçada pelo meu colega André Cardoso – que certamente estaria mais apto a responder a esta questão, uma vez que prontamente indicou que ficaria responsável pelo Departamento de Saídas Profissionais, caso saíssemos vitoriosos das eleições. Suponho que na base da minha ligação a esse departamento tenha estado o facto de, na altura, me encontrar numa fase mais avançada do curso e, por isso, mais preocupada com o “pós-licenciatura” e em aumentar as oportunidades a que tínhamos acesso, fora da sala de aula, para construirmos um edifício sólido de saberes jurídicos e um currículo atrativo. Por se tratar de um departamento largamente direcionado para o terceiro/quarto ano, a minha proximidade com os respetivos estudantes, por ser delegada de turma e conhecer as suas necessidades em primeira mão, conferia-me alguma vantagem no planeamento de iniciativas que fossem ao encontro dos seus interesses. Gosto de pensar que através do meu envolvimento na AEDUM, com o auxílio de toda a equipa e com a valiosa colaboração do Gabinete de Saídas Profissionais da Escola, nasceram pontes de


contacto entre os alunos e o mundo profissional e que foi possível introduzir maior dinamismo e proatividade num departamento que é da maior utilidade.

A professora venceu o Prémio UMinho de Iniciação na Investigação Científica 2020, com um estudo que visou apurar de que modo é interpretado e aplicado o princípio da igualdade à solução de casos concretos que envolvam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas. VI   O que a levou a basear a sua investigação neste tema?

ARS   O tema do meu trabalho já se encontrava selecionado

quando me candidatei, até porque estava integrado no Projeto InclusiveCourts do JusGov. Tive a felicidade de ser selecionada e de o poder desenvolver sob orientação da Professora Doutora Patrícia Jerónimo. Através do acervo de jurisprudência multicultural reunido pela equipa do InclusiveCourts, deparei-me com questões atinentes à interseção entre cultura e Direito, em relação às quais Vox Iuris

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Prof.ª Dra. Ana Rita Simões

nunca tinha refletido, dado, não obstante serem da maior pertinência, não figurarem nos planos de estudos comuns. Digo que é um tema relevante porque, cada vez mais, os tribunais, perante casos que envolvem membros de grupos minoritários, são chamados a encontrar soluções de equilíbrio que garantam concomitantemente a realização da Justiça e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, recorrendo, entre outros, ao princípio da igualdade. Neste particular, este cânone pode ser utilizado quer no sentido, por exemplo, de apoiar a invocação e valoração de argumentos culturais, quer no sentido oposto. Ora, a utilidade de um estudo desta natureza reside na possibilidade de aferir o entendimento que tem sido adotado na jurisprudência portuguesa e, a partir daí, refletir sobre a justiça material das decisões proferidas nos processos, tendo em consideração que a cultura pode efetivamente ocupar uma posição nuclear no plano dos factos sub judice. Mas a aplicação do princípio da igualdade é apenas “a ponta do icebergue” no que toca aos desafios introduzidos na prática judiciária pelo pluralismo cultural. Essa constatação fez-me querer explorar mais este objeto no âmbito da minha dissertação de mestrado, em que me foco precisamente nos crimes culturalmente motivados.


VI   Que conselhos acha pertinentes transmitir aos atuais licenciandos em Direito da EDUM?

ARS   Baseando-me na minha experiência e em ensinamen-

tos que me foram passados, penso que os melhores conselhos que posso dar aos atuais licenciandos são: valorizem as adversidades, isto é, encarem-nas como oportunidades de aprendizagem e crescimento, e dediquem-se verdadeiramente aos vossos estudos, sem cometerem excessos. Definam objetivos e trabalhem para os alcançarem, nunca ultrapassando os vossos limites físicos e mentais. Por vezes basta frequentar as aulas ou ler a bibliografia recomendada, em vez de apontamentos, para se aproximarem das vossas metas académicas. Por fim, acreditem no vosso trabalho e nas vossas capacidades, sem estarem constantemente a fazer juízos comparativos com os vossos colegas, porque todos têm diferentes backgrounds a suportar/ influenciar os resultados que obtêm. Se o fizerem, que seja para se inspirarem, mas jamais de modo a colocarem os vossos esforços em causa ou a semearem dúvidas e inseguranças.

VI   O que diria hoje à Rita Simões, que acabara de ingressar no primeiro ano de licenciatura?

ARS   Na senda do que acabei de referir, se pudesse con-

versar com a Rita Simões que acabara de entrar na licenciatura, dir-lhe-ia para ter mais autoconfiança. Por diversas ocasiões saí de testes sem ter a mínima noção de como me tinham corrido, provavelmente devido à adrenalina, e acabava por me convencer injustificadamente de que teria notas insatisfatórias. Se tivesse confiado mais em mim e adotado uma postura mais positiva, poderia ter evitado muitos momentos de ansiedade.


VI   Acredita que o seu futuro profissional, a médio e longo prazo, poderá prosseguir pela área da docência?

ARS   Só o tempo o dirá, mas acredito que sim. Faço uma

avaliação muito positiva do meu primeiro semestre enquanto assistente convidada. Como referi, reconheço o peso da responsabilidade que representa o exercício de um papel ativo na formação dos estudantes, que simultaneamente se revela muito gratificante, sobretudo quando consigo delinear aulas menos expositivas e mais baseadas no diálogo e no esforço colaborativo de todas as partes. São momentos que aproveito para imprimir o entusiasmo e a curiosidade que têm acompanhado o meu percurso no Direito e, de certa forma, sentir alguma reciprocidade da parte dos alunos, o que me deixa encorajada. Aquela responsabilidade apenas revigora a vontade de fazer um bom trabalho. De qualquer forma, não sei o que o futuro me reserva e não excluo a possibilidade de vir a dedicar-me ao meu objetivo de ingressar na magistratura judicial.

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Prof.ª Dra. Ana Rita Simões

VI   De que forma, na sua ótica, deve a AEDUM trabalhar em prol dos Estudantes de Direito?

ARS   Penso que a AEDUM deve continuar a materializar o

ethos de inovação, ambição e cooperação que matiza o perfil dos estudantes da nossa Escola, não só através da organização de atividades enriquecedoras para todo o meio académico e para a comunidade em geral, mas também intervindo nos momentos em que é necessário fazer-se ouvir uma voz firme quanto aos assuntos que dizem respeito ao futuro daqueles que representa (como vimos acontecer recentemente, quanto às bonificações ou à alteração das condições de acesso à advocacia). É importante que apostem na criação e no estreitamento de ligações sinérgicas com entidades públicas e privadas que se traduzam no fomento da diversidade de chances de formação para os alunos e que expandam a oferta pedagógica a ramos de Direito e a áreas conexas não jurídicas, com que aqueles têm pouco ou nenhum contacto durante a licenciatura.


Por fim, a professora possui experiência na área do voluntariado em diversas instituições. VI   De que forma é que o Voluntariado surgiu na sua vida, e o que a motiva para continuar?

ARS   O voluntariado é uma componente da minha dinâ-

mica familiar há largos anos. Os meus pais são pessoas muito prestativas e, como é óbvio, tendo muito orgulho neles e nos valores que me transmitiram, não podia deixar de seguir o seu exemplo e de envolver-me nos projetos solidários que eles foram integrando. Vivemos num mundo que as sucessivas e aceleradas metamorfoses a que assistimos vão tornando as relações humanas cada vez mais efémeras – líquidas, para usar a expressão de Zygmunt Bauman –, e desencadeando uma certa dose de alheamento em relação aos obstáculos que algumas pessoas enfrentam, mesmo perto de nós. Creio pois que qualquer esforço empregue em prol de outros pode representar um passo na direção oposta a essa aparente tendência de fragmentação. É por isso que tenho uma ligação ao voluntariado e que me regozijo por fazer parte de uma geração que vejo bastante ativa e atenta a essa realidade. Não posso negar que o voluntariado tem uma dimensão egoísta; depois de participar numa iniciativa desse cariz, a minha relação comigo própria melhora e isso dá-me alento. Ainda assim, é no momento em que vejo os frutos das minhas ações a brotarem na vida daqueles que por elas são impactados que vejo confirmado o seu verdadeiro valor e a importância de continuar.


O LEGISLADOR ÉS TU

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O TELETRABALHO: UMA ALTERNATIVA PARA ALGUNS Bruno Vaz Gonçalves Camila Gonçalves Silva Marlene Isabel Marques Beatriz da Silva Pereira Maele Moot de Souza Stefanie Santos Sofia de Castro Mesquita Machado Lucas POR

[artigo sem revisão]

I. Notas Introdutórias

Jack M. Nilles é considerado o pai do teletrabalho, visto que criou a denominação “teleworking”1, que se refere a qualquer forma de substituição de deslocações relacionadas com o trabalho por tecnologias da informação; levar o trabalho para os trabalhadores em vez de levar os trabalhadores para o trabalho. Este termo acaba por ser muito mais abrangente do que a expressão “telecommuting” 2, também criada por Jack M. Nilles. Estas denominações surgiram na primeira metade da década de 70 do século XX, de forma a resolver muitos dos problemas associados às áreas urbanas, nomeadamente: a crescente separação entre zonas empresariais e as zonas residenciais, ao aumento do valor dos combustíveis (que elevou os custos das deslocações dos trabalhadores, em automóvel, de casa para o trabalho e vice-versa), e o crescimento da poluição atmosférica. No entanto, o reconhecimento legal do teletrabalho em Portugal é muito recente. Na verdade, apenas com a codificação da legislação laboral no código do trabalho de 20033 é que apareceu, pela primeira vez, regulamentado o teletrabalho. Ainda assim, o teletrabalho regulado neste código limitava-se apenas àquele prestado no


âmbito de uma relação de subordinação jurídica resultante de um contrato de trabalho e não em qualquer outra relação contratual similar4. A sua especial importância denota-se nos últimos dois anos, uma vez que grande parte da população se viu obrigada a prestar teletrabalho ou uma forma de trabalho semelhante àquela prevista pelo legislador como teletrabalho. Apesar da popularização do teletrabalho com a última pandemia que enfrentamos, este é bem mais antigo do que possamos pensar, remontando ao século passado. Com a entrada em vigor do código do trabalho de 20095, o legislador optou por manter, de uma forma global, o mesmo regime. Contudo, promoveu uma alteração sistemática, uma vez que passou a incluir o teletrabalho na secção IX relativa a modalidades de contrato de trabalho6. Portanto, estamos perante um contrato especial ao lado do contrato a termo resolutivo, trabalho a tempo parcial, trabalho intermitente, comissão de serviço e o trabalho temporário, quando anteriormente era uma secção autónoma do código do trabalho de 2003. Pese embora o teletrabalho esteja expressamente regulado na legislação portuguesa há mais de 13 anos, a sua aplicação prática residual faz com que não exista jurisprudência portuguesa relevante sobre este tema. Deste modo, o Vox Iuris

o legislador és tu

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desenvolvimento prático do teletrabalho em Portugal está ainda numa fase embrionária. Importa agora procurar perceber qual o atual conceito legal de teletrabalho no direito do trabalho português. Para este efeito, o art. 165.º do código do trabalho em vigor procura fazer uma aproximação ao conceito de teletrabalho. Para este efeito, identifica como teletrabalho a prestação laboral realizada em cumprimento dos seguintes três requisitos, aparentemente cumulativos: i) regime de subordinação jurídica; ii) habitualmente fora da empresa; e iii) com recurso a tecnologias de informação e de comunicação. Porém, e tendo em mente o que nos diz o Professor João Leal Amado, podemos afirmar que existem dois elementos fundamentais, sem os quais não podemos falar de teletrabalho, nomeadamente: o elemento geográfico/topográfico (trabalho realizado à distância), e o elemento tecnológico/instrumental (recurso a tecnologias de informação e comunicação). Porém, é de notar que nem todas as atividades são passíveis de serem prestadas à distância, ou passíveis de serem prestadas através do recurso às tecnologias de informação e de telecomunicação, constituindo estas verdadeiras barreiras à sua implementação.


II. O Teletrabalho e a Igualdade de Género

Nesta questão, é de imperativa importância que façamos uma abordagem sociológica e histórica, de modo a afastarmos verdadeiramente as preconcepções que possamos ter e como forma de demonstrar a relevância que esta questão terá atualmente para o Direito e em concreto para o regime de teletrabalho. Deste modo, ao longo desta análise tentaremos responder a três importantes questões: “Será o Direito, enquanto mitigador das desigualdades, um instrumento para o combate às desigualdades no mercado laboral?”, “Em que medida é que o Direito é um instrumento suficiente?”, “Terá o Direito limites?”. O género corresponde a uma construção cultural em torno daquilo que são os papéis determinados culturalmente diferenciados atribuídos aos homens e às mulheres conforme a “realidade” biológica. Assim, de um ponto de vista histórico e geral, todas as sociedades tendem a promover um sentido diferente entre aquilo que é ser homem e ser mulher, mas não se cingem a isso: determinam uma hierarquização diferente destes papéis (segregação horizontal e vertical), onde os papéis tipicamente masculinos sempre foram vistos como mais valiosos. Ora, na nossa sociedade ocidental isto não é exceção. De forma meramente jurídica, até meados do século XX, aquando da primeira afirmação fundamental e plena de igualdade de direitos, as mulheres eram discriminadas, sendo que, embora a emancipação da mulher tenha apenas ocorrido no nos pós-Guerra (formalização do vínculo laboral),a verdade é que a mulher sempre trabalhou, em condições precárias e muitas vezes não remuneradas ou com salários muito baixos (na Idade Média, enquanto amas, ou trabalhando no campo). Atualmente, apesar de tudo, continuou-se a permitir a existência de um modelo social, do qual ainda hoje somos tributários, com mais notoriedade em sociedades orientais, cujas estruturas se encontram muito enraizadas em nós (estereótipos de género) e, considerando o Direito como o reflexo daquilo que é a nossa sociedade, este tem vindo a corroborar com situações de discriminação devido ao género, estando muito aquém como instrumento de combate a desigualdades. De facto, a Constituição da República Portuguesa enquadra o princípio da igualdade (artigo 13.º), onde todos os cidadãos têm a mesma dignidade social, são iguais perante a lei e não podem ser discriminados. O mesmo está previsto nos artigos 47.º e 58.º relativos à liberdade de escolha de profissão e ao direito à igualdade de oportunidades de trabalho. Onde será que o Direito falha e será o teletrabalho uma solução? Segundo o relatório de 2021 do Fórum Económico Mundial (FEM) sobre a igualdade de género, a pandemia agravou as diferenças entre homens e mulheres a nível global. As mulheres foram


mais penalizadas, não só pelo aumento do desemprego, que se agravou face aos homens, como também nas contratações de posições de liderança que sofreram uma queda significativa. Houve um esforço maior por parte das mulheres ao conseguir conciliar a vida profissional com a vida pessoal. O número de mulheres empregadas a partir de casa, pela tendência a trabalhar no 3º e 4º setor, aumentou substancialmente, impulsionado pela COVID19, em contraste com o número de homens, que devido à presença nos 1º e 2º setor, não sofreu uma alteração tão notória (funções estereotipadas)7. No estudo, realizado em 156 países, Portugal aparece no 22º lugar do ranking, com uma pontuação de 0,775, numa escala de 0 a 1, que avalia a paridade de género de cada país. Ainda sobre o relatório, faltam 136 anos para que se atinja a igualdade salarial entre homens e mulheres em Portugal, o que demonstra uma queda brutal após a pandemia, pois antes do COVID-19, admitia-se que faltaria 99,5 anos para corrigir a desigualdade entre os dois sexos. É à luz destes dados que se revela a importância do parecer do Comité Económico e Social Europeu, que surge com base no artigo 304.º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (SOC/662), a pedido da Presidência Portuguesa. Como demonstrado, o teletrabalho transporta inúmeras vantagens para todos os trabalhadores, e, inclusive, cria diversas oportunidades de contribuir para a igualdade de género: “o reforço da participação no mercado de trabalho; o aumento da flexibilidade na organização do tempo de trabalho e na conciliação das responsabilidades de prestação de cuidados não remunerados com o emprego remunerado, que pode reforçar a participação no mercado de trabalho; ganhos de produtividade através da melhoria do desempenho; uma melhor correspondência geográfica entre a oferta e a procura de emprego, sem necessidade de alterar o local de residência; economias de tempo e de custos associadas à eliminação ou redução das deslocações casa-trabalho”8. No entanto, o teletrabalho também comporta riscos: invisibilidade do trabalhador no mundo profissional, devido ao menor contacto, menor acesso à informação, às menores oportunidades de formação e promoção, tal como a evidente internalização no seio da sociedade a ideia de que a mulher deve cumprir as obrigações domésticas, enquanto o homem é o provedor (binómio perceção do trabalhador que exerce responsabilidades parentais), havendo uma falta de partilha das tarefas domésticas, o que dificulta a conciliação entre a vida pessoal e profissional para as mulheres num contexto de teletrabalho, sobrecarregando-as com as diversas tarefas que devem cumprir no seu dia a dia, expondo-as


a riscos para a saúde mental, como níveis altos de stress, ansiedade e depressão, a dificuldade de organização do espaço de trabalho à distância e concentração no trabalho, pois, enquanto “mães”, existe uma maior pressão social para um acompanhamento do estudo dos “filhos”, que estudam a partir de casa, e a exposição a situações de violência doméstica9, quer pela primeira vez, quer na sua totalidade, tendo a pandemia agudizado situações de violência doméstica já existentes10. É de notar que, diante do cenário pandémico, as razões evocadas por mulheres e homens pela “opção” de teletrabalho foram distintas: enquanto elas salientaram a necessidade de flexibilidade na gestão do tempo, de forma a atender às responsabilidades familiares e profissionais — a maioria destacou a maternidade como a principal razão —, eles evocaram a possibilidade de aumentar a concentração, a eficiência e a produtividade. Portanto, demonstra-se a necessidade que, desde jovem, a população tenha consciência sobre a importância da igualdade de géneros: escolas, educadores e pais devem ensinar sobre as divisões de tarefas e estimular, em ambos os géneros, o desenvolvimento de capacidades, que até então são vistas como de um determinado género, desconstruindo o pensamento estereotipado. Não há dúvida que a inclusão de paridade de género deve ser o objetivo central de políticas públicas e práticas profissionais para gerir a recuperação pós pandemia, de modo que a economia e a sociedade se beneficiem como um todo, no curto, médio e longo prazos. Importa também dedicar especial atenção às condições de grupos de mulheres vulneráveis, como as mulheres com deficiência, progenitoras isoladas, idosas, mulheres migrantes e de outras etnias, para que o teletrabalho não seja um mecanismo de exclusão a determinadas classes sociais, através do financiamento de organizações que representam as mulheres e famílias, bem como um investimento em infraestruturas digitais adequadas, assegurando o acesso a ligações digitais estáveis e a hardware e software e disponibilizando uma maior educação tecnológica aquelas que o necessitarão. É crucial desenvolver, financiar e abraçar todos os serviços de apoio em resposta a situações de violência doméstica, e cabe ao Direito auxiliar no alcance a esse fim. Só o Direito, enquanto mecanismo a utilizar pelos nossos decisores políticos, consegue melhorar políticas relacionadas com o trabalho e o emprego, providenciando uma melhor qualidade de vida para toda a população, incluindo as políticas que influenciam o teletrabalho e as suas implicações em matéria de género, bem como uma melhor educação da comunidade civil.


III. Teletrabalho para o Futuro

Num mundo cada vez mais virado para o próprio ser humano e o seu bem-estar, o teletrabalho poderá vir (ou está mesmo) a despoletar uma mudança significativa ao nível do mundo laboral e da relação entre trabalhador e trabalho. Assim, tradicionalmente, vigora uma visão convencional do trabalho. Com âncora na tradição norte-americana, a realização de uma atividade no mundo laboral é vista como um meio de adquirir dignidade e significado. Esta posição central que o trabalho tem vindo a ocupar nas nossas vidas, enquanto atribuidor de significado, faz com que sejam passadas para segundo plano, dimensões como a realização pessoal e a própria procura ou perseguição da felicidade11. Neste contexto, a entrada em cena do teletrabalho como uma verdadeira alternativa ao trabalho presencial permite que possa vir a ocorrer uma desmistificação e mesmo uma transformação desta ideia, e, a par de todos os benefícios inerentes ao trabalho à Vox Iuris

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distância, seja aberto o espaço para que surjam outros ganhos ao nível da mencionada realização pessoal. Com efeito, com a assunção de mais liberdade e independência na execução da atividade profissional, desde logo, pela possibilidade desta ser exercida a partir de casa, ocorrem mudanças nucleares no mundo do trabalho: a diminuição do tempo despendido e dos custos do transporte entre o domicílio e o local de trabalho, a redução da poluição, bem como o descongestionamento do tráfego urbano, a maior facilidade de contratação de trabalhadores qualificados sem as limitações geográficas, o combate à exclusão social através da melhor integração no mercado de trabalho de pessoas com limitações físicas12, fatores estes que proporcionam a criação de uma autêntica bolha na qual o trabalho se torna um meio que viabiliza a prossecução de outras vertentes do quotidiano, paralelamente servindo de ferramenta eficaz para responder a algumas das preocupações do séc. XXI: a integração, respeito e igualdade de oportunidades de todos os trabalhadores, a proteção ambiental, a desconcentração das grandes cidades e a possibilidade de libertar a vida pessoal dos trabalhadores pelos condicionalismos impostos pelo trabalho nomeadamente na escolha do local onde residem.


Nesta senda, num estudo da London School of Economics and Political Science, a investigadora Alexandra Beauregard vem apontar uma clara potenciação de fatores como a produtividade e felicidade dos trabalhadores, motivada por aspetos como a maior flexibilidade no desempenho da atividade laboral, assim como o corte de custos atinentes à manutenção de um espaço de trabalho físico. É, neste momento, por demais evidente que o teletrabalho traz imensos benefícios quando aplicado nas circunstâncias corretas. Posto isto, é de notar que o legislador tem dado passos no sentido de alargar o outrora restrito regime do teletrabalho, viabilizando, dessa forma, a evolução do papel deste regime de trabalho na sociedade. Com a ascensão do cenário pandémico, grande parte da população viu-se confrontada com esta forma inovadora de trabalhar. Contudo, é de relevo apontar as diferenças entre a realidade e o Direito, neste contexto. Desde logo, as circunstâncias pandémicas determinam que o teletrabalho, fosse legalmente imposta aos trabalhadores e às empresas, afastando assim o caráter convencional do teletrabalho, expressamente consagrado no artigo 166.º/2 do Código do Trabalho. Outra grande diferença é que o trabalhador se viu obrigado a prestar teletrabalho a partir da sua casa enquanto a modalidade de teletrabalho prevê a possibilidade de o trabalhador escolher o local a partir do qual quer prestar o seu trabalho, podendo optar, como assinalam Paula Quintas e Hélder Quintas, por prestar trabalho a partir de um centro de trabalho comunitário, uma estrutura comum a várias organizações ou profissionais, dotada de comunicações e instrumentos necessários para o teletrabalho, geralmente situada em zonas de acessibilidade ou na periferia de grandes centros urbanos; a partir de centros satélites, uma unidade física, apartada da sede ou localização central da empresa onde vários trabalhadores (da mesma empresa) partilham o espaço e o equipamento necessário para a sua atividade ou então prestando teletrabalho no domicílio ou ainda teletrabalho móvel nómada ou itinerante mediante o qual o trabalhador trabalha ou a partir de um hotel ou de uma viatura13. Deve-se ainda destacar que a lei estatui a obrigação do empregador disponibilizar ao empregador os equipamentos e sistemas necessários à realização do trabalho, nos termos do artigo 168.º/1, bem como, conforme a mais recente alteração introduzida pela lei 83/2021, de 6 de dezembro, obriga a que o empregador compense o trabalhador pelas despesas que o trabalhador suporte como direta consequência da aquisição dos equipamentos e sistemas informáticos e dos acréscimos de custos de energia, da rede instalada no local de trabalho, e os custos de manutenção dos mesmos equipamentos e sistemas; bem como zelar pela formação adequada


dos teletrabalhadores para prestarem teletrabalho; porém, como sabemos quer pela rapidez com que as empresas e os trabalhadores foram forçados a implementar o teletrabalho, quer pelas carências económicas das empresas, agravadas pela pandemia, esta estatuição já contemplada antes da alteração de 2021 não foi cumprida pela maioria das empresas e os trabalhadores não só pagaram do próprio bolso a conta da luz, da internet necessária ao exercício das suas funções, como disponibilizaram muitas vezes o seu computador pessoal para trabalhar, socorreram-se dos filhos e de tutorias que lhes explicassem como navegar as tecnologias que da noite para o dia passaram a ser as suas ferramentas de trabalho. Tendo em mente os benefícios elencados, assim como a crescente preocupação legislativa, é previsível que o teletrabalho tenha vindo para ficar e venha a ser tão comum quanto o trabalho padrão, o presencial. Se assim é, torna-se ainda mais premente a necessidade de, tal como adverte o Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre «Desafios do teletrabalho: organização do tempo de trabalho, equilíbrio entre vida profissional e pessoal e direito a desligar-se», de 26 de outubro de 2020, se chame à atenção para a necessidade de os Estados assegurarem que existe um enquadramento nacional adequado para o teletrabalho, que defina as regras Vox Iuris

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do jogo para as empresas e os trabalhadores interessados na sua adoção garantindo que o teletrabalho tem natureza voluntária e reversível e que os trabalhadores em teletrabalho têm os mesmos direitos, individuais e coletivos, que os trabalhadores comparáveis das empresas para as quais exercem atividade, incluindo a organização do trabalho de forma a assegurar que a carga de trabalho é comparável e que o regime de teletrabalho tem forma escrita; que sejam estabelecidas medidas específicas, quando necessário, que visem assegurar a efetividade dos direitos dos trabalhadores em teletrabalho, incluindo as condições de saúde e segurança no trabalho. Alertando ainda para a importância de serem definidas claramente todas as questões referentes a equipamentos, responsabilidades e custos antes de se iniciar o teletrabalho. Como regra geral, o CESE entende que as entidades empregadoras são responsáveis pela provisão, instalação e manutenção dos equipamentos necessários ao teletrabalho. O empregador deve cobrir diretamente os custos incorridos com o teletrabalho, nomeadamente os relacionados com a comunicação (consumíveis, telemóveis, Internet). Ora, a mencionada Lei 83/2021 vem louvavelmente introduzir alterações significativas ao regime do teletrabalho, alargando


nomeadamente as circunstâncias em que o empregador é obrigado a aceitar a prestação de teletrabalho, reforçando o alerta para a necessidade de acautelar a prevenção do isolamento social dos trabalhadores e a igualdade de tratamento dos trabalhadores presenciais e a proteção da privacidade dos trabalhadores. Neste sentido, apraz questionar se ainda assim temos uma legislação apta a proteger a parte mais fraca, o trabalhador. Desde logo pela determinação concreta das despesas que o teletrabalho possa acarretar para o trabalhador, despesas como internet, luz, água, material informático e demais material de escritório (no qual se deverá incluir também mobília ergonómica onde o trabalhador passa a grande parte do seu dia, no caso do teletrabalho no domicílio) ou então a eventual renda que possa pagar por um espaço de trabalho. Hoje, esta determinação é feita com o cálculo da diferença entre as despesas que o trabalhador passou a ter com o teletrabalho e as que tinha antes, método que apresenta desvantagens, em particular para o empregador que se pode ver obrigado a pagar não só as despesas do seu trabalhador como também de outras pessoas que com este possam partilhar casa e local de trabalho, no caso mais habitual de teletrabalho no domicílio. Outra solução, talvez mais pertinente seria então fazer uma análise rigorosa das despesas que o teletrabalho implica e passar a somar esse valor ao salário dos trabalhadores. O importante é que nenhum trabalhador seja prejudicado por optar pelo teletrabalho. No que concerne à proteção da privacidade é manifestamente insuficiente remeter a proteção para o Regime Geral da Proteção de Dados. É necessário uma regulação própria que acautele a posição de subordinação do trabalhador e permita ao empregador controlar legitimamente o trabalho dos seus empregados na medida do necessário com recurso a mecanismos e softwares previamente avaliados e aprovados pela ACT que respeitem a privacidade bem como os restantes direitos fundamentais dos trabalhadores.

IV. Teletrabalho e a Saúde Mental: o Direito a Desligar

Conforme refere o autor Jonathan Malesic, “A finalidade da vida é para ser encontrada fora do trabalho e o trabalho nada mais deve fazer do que preencher as lacunas”. Assim, cabe-nos questionar a possibilidade do teletrabalho funcionar como um catalisador da mudança no mundo do trabalho? Em todo caso, o teletrabalho apresenta diversas distinções com relação ao modo convencional de trabalho, o que fez surgir alguns desafios sociojurídicos. Aqui abordaremos alguns desses.


Sabe-se que mudanças extremas de rotina abalam o organismo de um indivíduo. A partir daí, imagine um trabalhador que, outrora habituado a um ritual pré-laboral, no qual veste um fato, caminha sob o sol até o local de trabalho, desfruta de momentos de descontração e convive com colegas de trabalho, se vê agora confrontado com a repentina limitação de liberdade, vivendo trancado em casa, onde tem de dividir a atenção entre sua função e seus filhos e perdendo a separação entre vida pessoal e profissional. Foi o que aconteceu com muitos durante a pandemia do covid-19. No entanto, esta questão não é consensual, uma vez que, para alguns trabalhadores, o teletrabalho é sinônimo de mais conforto e, por isso, não se busca invalidar esse regime de trabalho, mas sim o regular. É fato que a carência de vitamina D é causadora de cansaço e sono exagerado; a rotina aumenta o estresse e a ansiedade, e a falta de socialização para além do ecrã, pode culminar em depressão. Além disso, pesquisas mostram que os casos de burnout aumentaram desde o início da pandemia. A síndrome é caracterizada por um esgotamento físico e emocional, sendo, inclusive, chamada de “síndrome do esgotamento profissional”. Por conta dessa associação do quadro psicológico com a rotina laboral, a Organização Mundial da Saúde (OMS) mudou a classificação Vox Iuris

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da síndrome de “doença ocupacional” para “doença do trabalho”, em janeiro de 2022. Dado o exposto, entendeu-se que o Direito precisava responder de alguma forma. Na perspectiva internacional, o Parlamento Europeu emitiu a Resolução de 21 de janeiro de 2021, que contém recomendações à Comissão sobre o direito a desligar (2019/2181(INL)), na qual “salienta que o direito a desligar é vital para a tarefa de proteção da saúde e bem-estar físicos e mentais dos trabalhadores e para a sua proteção contra situações de risco psicológico; reitera a importância e os benefícios da realização de avaliações dos riscos psicossociais a nível das empresas públicas e privadas, bem como de promover a saúde mental e prevenir as perturbações mentais no local de trabalho, criando melhores condições tanto para os trabalhadores como para os empregadores.” Na perspectiva nacional, tendo o Legislador enxergado algumas lacunas, veio modificar o Código do Trabalho, através da Lei nº 83/2021. Além disso, buscando reforçar a ideia de que um teletrabalhador não está sempre disponível, e levando em conta a Resolução do Parlamento Europeu supracitada, incorporou-se no Código do


Trabalho o chamado “direito a desligar”, ou “direito à desconexão”, que aparece como um dever ao empregador, nos artigos 169º-B e 199º-A, de se abster de contactar o trabalhador em seu período de descanso, de modo a que esse possa exercer atividades da sua vida pessoal, desprendendo-se das atividades laborais, implicando a violação da norma em contraordenação grave. Da forma que os artigos foram redigidos e sua colocação fora da seção do teletrabalho, o legislador dá a entender que esse direito serve para a generalidade dos trabalhadores, extravasando o campo do teletrabalho. Com o advento do chamado “metaverso”, a sociedade como um todo passará mais tempo conectada, o que fará a realidade do teletrabalho ser cada vez mais presente nas mais diversas profissões. Por exemplo, em dezembro de 2021, um escritório de advocacia de Nova Jersey, nos EUA, inaugurou uma sede dentro de uma plataforma de realidade aumentada com a justificativa de que “pretende realizar reuniões virtuais com clientes e estar sempre virtualmente disponível para dúvidas relacionadas a seguros de acidentes pessoais”. Como já analisamos, o “estar sempre virtualmente disponível” é demasiado perigoso, por isso o Estado deve estar preparado para regular as relações laborais cibernéticas, de modo a evitar práticas abusivas, preservando a possibilidade de realização pessoal de cada um para além de seus ofícios. Nesta situação, a figura do teletrabalho parcial surge como um recurso que admite a junção e aproveitamento do melhor dos dois mundos. Esta solução torna exequível uma melhoria ao nível da componente pessoal, sem que a esfera das relações sociais advindas do trabalho presencial seja afetada. Conforme denota um estudo acerca do teletrabalho a título parcial, este aparece como uma alternativa que permite a construção de um verdadeiro equilíbrio no qual é mantido o espaço destinado à interação social, em ambiente presencial, combinado com tempo para posterior gestão pessoal e recuperação, no âmbito do teletrabalho. Afinal, é cada vez mais claro que o teletrabalho deixou de vez o seu papel outrora subsidiário, tomando o papel de solução que impreterivelmente ajudará a descortinar amanhã. Assim, deixamos os seguintes questionamentos: será que o teletrabalho pode facilitar a conciliação trabalho-família e qualidade de vida? Poderá estimular uma maior igualdade entre mulheres e homens na distribuição do trabalho pago (profissional) e o não pago (doméstico e relativo ao cuidar)?


V. Conclusão

No decorrer da história, ficamos sempre com o pré-conceito do Direito como algo que dá sempre uma resposta tardia, tendo grande dificuldade em acompanhar os avanços da sociedade. De facto, numa realidade de alta instabilidade social e de constante evolução tecnológica, a sensação de incerteza é algo comum. Mas tal como a própria sociedade está constantemente a ser reinventada, também o Direito precisa de ser reinventado. Como futuros juristas que almejamos ser, acreditamos na importância da reflexão de todas as questões aqui apresentadas, de forma a que haja uma maior resposta a todos os problemas que surgirão no futuro.

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1 Nilles, Jack M. Managing Telework: Strategies for Managing the Virtual Workforce. Hardcover, 1998. 2 Nilles, Jack M. The TelecommunicationsTransportation Tradeoff. Paperback, 2007.

Por código do trabalho de 2003 define-se a lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, que, pela primeira vez, codificou grande parte da legislação laboral num único diploma legal. 3

4 Conforme sublinha G. DRAY, a regulamentação em causa não abrange a prestação de serviços ou o trabalho no domicílio (cfr. Código do Trabalho Anotado, Almedina, 5.ª Edição, 2007, p. 455). Com efeito, ao contrário do teletrabalho, o trabalho ao domicílio é aplicável a lei n.º 101/2009, de 8 de setembro, e «regula a prestação de atividade, sem subordinação jurídica, no domicílio ou em instalação do trabalhador, bem como a que ocorre para, após comprar a matéria-prima, fornecer o produto acabado por certo preço ao vendedor dela, desde que em qualquer caso o trabalhador esteja na dependência económica do beneficiário da atividade» (cfr. art. 1.º). Por outro lado, também GOMES, J.,

119 aponta para o facto da nova regulamentação apenas estabelecer as regras para o teletrabalho subordinado (cfr. Direito do Trabalho - Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, pp. 736). 5 O código do trabalho de 2009 resultou da publicação da lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro. 6 Como nota M. Palma Ramalho, o teletrabalho está enquadrado na secção dedicada aos contratos de trabalho especiais. de acordo com esta autora, sobressaem necessariamente dois elementos essenciais do teletrabalho que o qualificam como um contrato de trabalho especial: i) necessidade de envolvimento de tecnologias de informação e comunicação e ii) distância do local de trabalho face às instalações da empresa (cfr. Direito do Trabalho - Parte II - Situações Laborais Individuais, Almedina, 3.ª Edição, 2010, pp. 322). 7 Relatório da Eurofound intitulado «Living, working and COVID-19» [Vida, trabalho e a COVID-19]. A comparação diz respeito a 2018, ano em que menos de 5% dos trabalhadores trabalhavam regularmente

à distância e menos de 10% de forma ocasional, como comunicado pela Comissão Europeia em 2020. 8 Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre o Teletrabalho e igualdade de género – Condições para que o teletrabalho não agrave a repartição iníqua da prestação de cuidados e do trabalho doméstico não remunerados entre homens e mulheres e promova a igualdade de género. 9 link, consultado a 26 de fevereiro de 2022. Desde o início da pandemia que há uma diminuição dos pedidos de apoio à APAV, como Daniel Cotrim, psicólogo e responsável pela área de violência doméstica na APAV, explicita “As pessoas estavam obrigadas ao confinamento, havendo uma maior dificuldade por parte das vítimas em pedir ajuda. Verificámos também um novo tipo de situação, com a pandemia a trazer várias dificuldades económicas e sociais e, portanto, um efeito semelhante àquele que aconteceu na altura da crise económica. A pandemia ataca fortemente as mulheres e as que estavam em situação de risco elevado tinham muito medo de sair de casa e procurar abrigo. As mães não costumam sair


de casa no período escolar, porque não querem retirar os filhos da escola. (...) As vítimas de violência doméstica tinham mais dificuldade em pedir ajuda porque estavam controladas pelo agressor 24 horas sobre 24 horas. Para a pessoa agressora, o período de confinamento foi como uma lua de mel, porque a vítima estava com o agressor o tempo todo, tinhaa sempre sob controlo.” 10

link, consultado a 26 de fevereiro de 2022.

No segundo parágrafo da Declaração de Independência Norte-americana, 1776, são consagradas a vida, a liberdade e a procura da felicidade (Life, Liberty and the pursuit of Happiness) enquanto direitos inalienáveis. 12 Código do Trabalho Comentado, Diogo Vaz Marecos, Almedina, 4.º edição, 2020, p. 439 11

Código de Trabalho Anotado, Paula Quintas e Hélder Quintas, Almedina, 5.ª edição, 2020, p.380.

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DIREITO AO CLIMA ESTÁVEL Marina Geada Mendes Outeiro Carlos Eduardo de Araujo Cavalcante Francisca da Silva Marques POR

[artigo revisto pela Prof. Doutora Andreia Barbosa] Vox Iuris

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I. Notas Introdutórias

O Direito do Ambiente nasceu no século XIX com a autolimitação da soberania dos Estados em matéria de Ambiente. O intuito desta restrição voluntária, em plena revolução industrial, era evitar conflitos entre Estados pela utilização dos recursos naturais. Assim, este Direito surge a priori num plano internacional como um ramo do Direito Internacional de caráter antropocêntrico e geopolítico. Com as disrupções da sociedade que se seguiram, nomeadamente com a 2ª Guerra Mundial, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) vem trazer à superfície o escasso Direito do Ambiente, desde logo por via das inúmeras catástrofes naturais que ocorreram na segunda metade do século XX, e pelas consequências que se começavam a fazer notar da sobrexploração dos recursos naturais não renováveis, como o carvão, e do uso desmedido de gases clorofluorcarbonetos (CFCs) destrutivos da camada de ozono. O primeiro grande passo da Organização deu-se em 1972, com a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano (Conferência de Estocolmo) sendo esta a primeira grande


conferência a nível global que assumiu o ambiente como objeto, contando com a participação de 144 Estados, e iniciando uma nova Era no Direito Internacional do Ambiente, a “Era Moderna”. Começa, então, com Estocolmo a construção da base filosófica e jurídica para o direito humano ao ambiente, e surgem os primeiros conceitos e instrumentos próprios do Direito do Ambiente, como o conceito de “dano ecológico”. No entanto, o caminho que se seguiu a esta conferência mostrou-se atribulado por fatores como a globalização, deslocalização da indústria, o caráter não vinculativo dos diplomas e protocolos emanados de cimeiras e acordos subsequentes e ainda a politização do Ambiente nas cimeiras que decorreram. Pari passu de todos estes fatores, a comunidade científica chegou a um consenso quanto à pegada ecológica humana e o que esta representa para o ambiente, acentuando o seu papel nas alterações climáticas. O mundo ocidental apenas despertou com um novo olhar sobre a tensão ambiental no fim da primeira década do século em que vivemos, surgindo a contra-reforma europeia com o Acordo de Paris em 2015 e o Pacto Ecológico Europeu em 2019. O Direito Internacional do Ambiente assenta agora em valores de responsabilidade ambiental, evoluindo de uma questão geopolítica circunscrita, a uma preocupação global humanitária, intergeracional, e até ecocêntrica. O presente artigo debruçar-se-á sobre a caminhada jurídica em Portugal neste sentido.

II. A União Europeia e o Clima

As preocupações da União Europeia em matéria do ambiente têm vindo a aumentar cada vez mais, sendo no plano internacional a força pioneira no impulso de legislação e investimento quanto ao combate às alterações climáticas. A Comissão Europeia adotou, em 2019, um conjunto de medidas, sendo de destacar o Pacto Ecológico Europeu, com o objetivo de tornar as políticas da U.E. em matéria de clima, energia, transportes e fiscalidade aptas para alcançar uma redução das emissões líquidas de gases com efeito de estufa de, pelo menos, 55% até 2030, em comparação com os níveis de 1990, tal como foi estabelecido no Acordo de Paris em 2015. A Comissão Europeia, encarregue de harmonizar o cumprimento do Pacto Ecológico e fazer cumprir os seus objetivos, desenvolveu a Lei Europeia do Clima, Regulamento (UE) 2021/1119


do PE e do C, de 30 de junho de 2021, que é, desde logo, marcada pela separação da lógica causal entre crescimento económico e utilização de recursos, fomentando a economia circular e verde. A Lei do Clima tem por objetivo atingir a neutralidade climática até 2050, e vem consagrar na legislação europeia o vínculo de todos os Estados Membros em alcançar tal objetivo. Tal como está presente no artigo 6º nº 2 da Lei Climática Europeia, as estratégias e planos adotados serão revistos até 2023 e, posteriormente, de 5 em 5 anos para garantir que as medidas continuam compatíveis com os fins que se pretendem alcançar e ainda aferir se todos os países se estão a conseguir adaptar de modo a garantir uma transição justa. Graças a esta legislação, que foi inclusive adotada pela Coreia do Sul como lógica para a construção de políticas ambientais, foi criada em Portugal a Lei de Bases do Clima, Lei n.º 98/2021 de 31 de dezembro, que reitera a emergência climática que vivemos e a urgência em implementar medidas que impulsionam o equilíbrio ecológico. A Lei torna claro o papel relevante do Governo, mas não esquece a participação dos cidadãos, os seus direitos e deveres, seguindo, assim, as direções da Lei Europeia de envolver os cidadãos, os parceiros sociais e as partes interessadas e promover o diálogo e a Vox Iuris

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difusão de informação científica sobre as alterações climáticas e os seus aspetos sociais e em matéria de igualdade de género. Toda esta evolução espelha uma comunidade mais atenta e preocupada com o impacte das alterações climáticas na vida dos cidadãos. A União Europeia mostra-se pioneira no combate às alterações climáticas e aos problemas ambientais, e Portugal, apoiado nestes valores, traça também o seu caminho em matéria de clima.

III. O Direito Constitucional e o Clima

No âmbito da ordem constitucional portuguesa, a CRP prevê a proteção ao meio ambiente no seu artigo 9.˚, alínea e), o qual dispõe nos termos do qual, são tarefas fundamentais do Estado proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correto ordenamento do território.


Ainda na Constituição da República Portuguesa, temos os ditames do artigo 66.˚, 1 e 2, alíneas a) a h), nas quais estão elencadas diversas tarefas assecuratórias para um meio ambiente num contexto de desenvolvimento sustentável, o princípio da sustentabilidade, sendo que estas medidas são atinentes à obrigação do próprio Estado português e de todos os seus cidadãos. O artigo 66.˚no seu número 1, determina que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender. Em termos jurídico-políticos, o princípio da sustentabilidade apresenta três dimensões básicas, quais sejam a sustentabilidade interestatal, a qual impõe a equidade entre países pobres e ricos; a sustentabilidade geracional que aponta para a equidade entre diferentes grupos etários da mesma geração, como jovens e velhos; e a sustentabilidade intergeracional impositiva da equidade entre pessoas vivas no presente e que nascerão no futuro. Da análise dos dispositivos constitucionais que remetem à matéria ambiental, não encontramos menção expressa ao direito ao clima estável, no entanto, quando o artigo 66.˚, 1, se refere ao direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, logicamente podemos concluir que nesta expressão está implícito o direito ao clima, uma vez que este é uma das bases elementares que integram a “macro” a qual nominados meio ambiente ou, simplesmente, ambiente. Da mesma forma, a Magna Carta Portuguesa também nos traz a previsão de proteção da fauna e da flora, implícitas na expressão “defender a natureza e o ambiente” na alínea e), do aludido artigo 9.˚. Em termos de Direito Comparado, podemos citar o exemplo do Brasil, onde a segurança climática (logicamente a categorização/classificação do clima como direito fundamental), é pretendida através de uma PEC - Proposta de Emenda à Constituição, de número 233/2019, e que aguarda a sua finalização no respectivo processo legislativo. A referida proposta tem por escopo alterar o artigo 5.˚ da Constituição da República Federativa do Brasil para nele fazer constar a garantia de não violação dos direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à segurança climática, tornando-os cláusulas pétreas, ou seja, equiparando-os a outros direitos que são tidos como fundamentais pela mesma Constituição, exempli gratia, a liberdade, a propriedade, a igualdade, dentre outros. Cremos que estas mudanças nas ordens jurídicas não só do Brasil, mas também em outras nações, se deve à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, cuja finalidade principal é a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa


na atmosfera a um nível que impeça uma interferência humana perigosa no sistema climático. Neste contexto de reconhecimento do direito ao clima como Património Comum da Humanidade, conforme os ditames da Declaração da ONU, é certo dizer que Portugal é o primeiro país a introduzir no seu ordenamento jurídico tal visão, o que ocorreu através da edição da recente Lei de Bases do Clima, no artigo 15.˚/ 1/ f). No que concerne à litigância climática, mostra-se pertinente a referência a um interessante e recente litígio que envolve seis jovens portugueses, que apresentaram perante o TEDH - Tribunal Europeu de Direitos Humanos, a 3 de setembro de 2020, uma reclamação direcionada a trinta e três Estados industrializados, com a acusação de não tomarem medidas efetivas (políticas) para a redução na emissão dos gases que provocam as mudanças climáticas. No mesmo processo, alega-se a violação do Acordo de Paris no que tange à obrigatoriedade destas mesmas nações em limitar a elevação da temperatura média mundial em 1,5 ̊ Celsius em relação aos níveis pré-industriais. O clima constitui, assim, um bem jurídico absolutamente merecedor de proteção jurídica a todos os níveis (interno, europeu e Vox Iuris

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internacional), de caráter fundamental,convocando, consequentemente, a intervenção protetora a partir do Estado, prossecutor do interesse público, dos cidadãos e da sociedade civil de forma geral. Finalmente, acerca da inter-relação do direito ao clima com o princípio da equidade intergeracional, inexistem dúvidas sobre o estreito elo ou liame entre eles. A sustentabilidade impõe em seu conceito a responsabilidade com as gerações futuras, que pressupõe a obrigatoriedade não apenas de o Estado adotar medidas de proteção adequadas, as quais limitam ou neutralizam a ocorrência de danos ao ambiente, cuja irreversibilidade total ou parcial gera efeitos, danos e desequilíbrios negativos, mas também o dever de observar o princípio do nível de proteção elevado referentes à defesa dos componentes ambientais naturais.


IV. A Lei de Bases do Clima

Tendo-se constatado que a proteção do clima conhece acolhimento jurídico-constitucional, o legislador ordinário, em cumprimento da imposição constitucional e indo ao encontro do quadro jurídico-europeu, emanou, então, a nova Lei de Bases do Clima, Lei n.º 98/2021 de 31 de dezembro. Cumpre, portanto, dedicar-lhe algumas palavras no sentido de se aferir o que este diploma representa, e representará, para o futuro climático em Portugal. A Lei de Bases do Clima foi antecedida pela Lei de Bases do Ambiente, a Lei n.º 19/2014, de 14 de abril. Nos termos do respectivo artigo 5º todos têm direito ao ambiente e à qualidade de vida. Ora, quando se refere ao “direito ao ambiente” está em causa a gestão adequada, particularmente, dos ecossistemas e dos recursos naturais, por forma a assegurar o bem-estar e a melhoria progressiva da qualidade de vida dos cidadãos. Assim, inclui-se no direito ao ambiente o direito ao clima, já que o clima se reconduz a um conjunto de alterações atmosféricas, que se relaciona com o equilíbrio dos ecossistemas e está dependente da melhor, ou pior, gestão de recursos naturais. No entanto, a uma proteção eficaz do ambiente subjaz a proteção do equilíbrio climático, e a Lei de Bases do Ambiente apenas refere uma vez a palavra “clima” em toda a sua redação, o que leva a nova Lei de Bases do Clima a pretender precisamente garantir esta proteção, que se destaca da proteção do ambiente em sentido lato e se afigura necessária dado o que vem declarar no artigo 2º: “É reconhecida a situação de emergência climática.” Esta Lei vem também sedimentar na ordem jurídica portuguesa o direito ao equilíbrio climático, no seu artigo 5º, nos termos do qual todos têm direito ao equilíbrio climático. Trata-se de uma transposição da Lei Climática Europeia cujo conceito até ao momento não existia entre nós, mais uma vez autonomizando-se o clima do ambiente, nomeadamente do conceito de “ambiente ecologicamente equilibrado” constitucionalmente reconhecido. Este novo direito consiste no direito de defesa contra os impactos das alterações climáticas, bem como no poder de exigir de entidades públicas e privadas o cumprimento dos deveres e das obrigações a que se encontram vinculadas em matéria climática (i.e., um direito a uma tutela jurisdicional efetiva em matéria climática), sendo este o corolário de outros direitos, nomeadamente: o direito de ação para defesa de direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos e para o exercício do direito de ação pública e de ação popular (artigo 6º, nº 2, al. a)); o direito a promover a prevenção, a cessação e a reparação de riscos para o equilíbrio climático (artigo 6º, nº 2, al. b)); o direito a pedir a cessação imediata da atividade causadora de ameaça ou dano ao equilíbrio climático (artigo 6º,


nº 2, al. c)); o direito de intervenção e participação nos procedimentos administrativos relativos à política climática, nos termos da lei (artigo 6º, nº 1); e o direito de participar nos processos de elaboração e revisão dos instrumentos da política climática (artigo 9º, nº 1). As inovações da nova Lei de Bases traduzem-se ainda num conjunto de novos conceitos, e na densificação de outros tantos, não se esgotando nos direitos mencionados supra. Destacam-se então, pela relevância jurídica adquirida, as novas conceções de transição energética; neutralidade climática; economia verde e transição justa; economia circular; fiscalidade verde e financiamento sustentável. A transição energética é um conceito que envolve mudanças não só na geração de energia, mas também no consumo e no reaproveitamento desta. Um olhar que se estende ainda para o meio ambiente, gestão de resíduos, eficiência energética, digitalização e outros meios para atingir o mesmo fim: a redução das emissões e a sua consequente influência nas mudanças climáticas. É desde logo indissociável da finalidade de neutralidade climática, a transição para uma economia com impacte neutro no clima, já que a descarbonização do sistema de energia é crítica para atingir os objetivos climáticos definidos pela U.E., que Portugal adotou como seus, Vox Iuris

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pelo que a Lei de Bases do Clima vem reiterar a importância desta transição nos artigos 39º ss do capítulo VI, secção I denominado, precisamente, Transição Energética. O futuro desta transição deverá passar, a nosso ver, e em conformidade com os artigos 39º ss da Lei de Bases, pelo investimento em Hybrydization, a conjunção de duas ou mais energias renováveis no mesmo parque, e no autoconsumo, quer individual quer coletivo, através do investimento em painéis solares fotovoltaicos que permitem não só ao consumidor poupar nos custos de energia e ser locador da UPAC (unidade de produção para autoconsumo), i.e. , a energia excedente é injetada na rede elétrica de serviço público, como ainda se demonstra benéfico para o problema nacional de sobrelotação da rede de distribuição de energia, tendo também um menor impacte territorial face a grandes centrais solares por permitir a reutilização dos telhados. Para além deste investimento, o hidrogénio verde mostra-se muito promissor face às outras energias renováveis para dar resposta a necessidades energéticas superiores, como o setor dos grandes transportes e indústria, no entanto, o custo associado à produção é ainda elevado apesar da possibilidade de rentabilizar as infraestruturas de transporte, armazenamento e


distribuição de gás natural, pelo que é um elemento que carece de ponderação e consideração. O conceito de economia verde é comum a ambas as Leis de Bases mencionadas, mas apenas abordado com a dignidade que merece na nova Lei de Bases nos artigos 67º a 70º, estabelecendo princípios climáticos orientadores das políticas económicas e sociais e medidas de transição justa para o novo paradigma, nomeadamente a obrigação de o Governo elaborar e apresentar na Assembleia da República uma estratégia industrial verde, no prazo de 24 meses, que visa proporcionar um enquadramento estratégico que apoie as empresas no processo de transição climática do setor industrial e no cumprimento dos objetivos fixados na presente Lei, reforçando a sua competitividade sustentável. Tal obrigação poderá vir a introduzir incentivos económico-financeiros para determinados setores da sociedade já no início do próximo ano de 2023. De mãos dadas com este conceito vem a conceção de economia circular, que não existia na Lei de Bases do Ambiente e consiste essencialmente na maximização da utilização dos recursos. Refere o artigo 51º da Lei que já a integra que se trata de um eixo fundamental da descarbonização, servindo de base a alterações à política de materiais e consumo, designadamente no setor da água e resíduos como evidencia o artigo 52º com as medidas de promoção de eficiência nestes setores. No seguimento da Lei de Bases do Ambiente, o legislador apresenta na nova Lei de Bases um conjunto de instrumentos económico-financeiros para regular as preocupações ambientais, no entanto, não se trata de um mero artigo, mas todo um capítulo vocacionado para estes instrumentos, dividido em duas secções desde o artigo 28º ao 38º. Ora, a primeira secção apresenta-nos o conceito de fiscalidade verde, que à falta de desenvolvimento jurídico no diploma, podemos entender como conjunto de incentivos negativos ou positivos para promover comportamentos ambientalmente mais responsáveis, sendo os primeiros impostos e taxas e os segundos benefícios fiscais, respetivamente. A fiscalidade verde é destacada como instrumento de transição para a neutralidade, reforçando a aplicação da taxa de carbono; aplicando uma maior tributação sobre o uso dos recursos, e consignando as receitas da fiscalidade verde para a descarbonização, a transição justa e o aumento da resiliência e capacidade de adaptação às alterações climáticas. É criado o “IRS Verde” no artigo 30º, uma categoria de deduções fiscais que consiste na concessão de benefícios fiscais aos sujeitos passivos que adquiram, consumam ou utilizem bens e serviços ambientalmente sustentáveis.


A segunda secção vem revolucionar com a introdução do financiamento sustentável no nosso ordenamento jurídico, o artigo 34º enuncia os respetivos princípios aos quais devem obedecer as políticas financeiras de gestão financeira, de apoio à capitalização e à contração de empréstimos, do Estado e de entes privados, destacando-se o princípio da priorização, visando que a programação financeira, no setor público e privado, considere e contribua para os objetivos da política climática; o princípio da responsabilização e prudência, visando a incorporação dos riscos climáticos na avaliação dos ativos e passivos; e o princípio do desinvestimento, visando que fundos públicos deixam, progressivamente, de ser aplicados em ativos que não correspondam a atividades ambientalmente sustentáveis, passando a ser aplicados, preferencialmente, em ativos que correspondam a atividades ambientalmente sustentáveis. Em ambas as secções surge a expressão “ambientalmente sustentável”, e não obstante ser uma Lei de Bases, cabe esclarecer ao que se refere o legislador. O artigo 36º da presente Lei afirma que devem ser respeitados os princípios da taxonomia da U.E. quanto à definição dos critérios para determinar as atividades que “contribuem substancialmente” e “não prejudicam significativamente” com base no nível de ambição dos objetivos do Pacto Ecológico Vox Iuris

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Europeu, incluindo o objetivo de alcançar a neutralidade climática da U.E. Assim, a legislação que vier a nascer por forma a concretizar esta Lei de Bases, terá de ser concebida também à luz do Regulamento (UE) 2020/852, do PE e do C, de 18 junho.

V. Os novos conceitos climáticos

O direito ao clima estável ou ao equilíbrio climático, autonomizou-se recentemente do lato direito ao ambiente, em função dos mais elevados valores e preocupações associados às alterações climáticas. No entanto, esta autonomização não ocorreu à mesma velocidade do desenvolvimento das consequências que as alterações acarretam. Só recentemente é que surgiu, em Portugal, e de acordo com o quadro jurídico-europeu, a legislação ordinária específica quanto à matéria climática.


Desta forma, apesar de todo o caminho já percorrido é preciso continuar a desenvolver estratégias e aprofundar a matéria legislativa por forma a complementar a nova Lei de Bases do Clima, e possivelmente uma revisão constitucional para que o direito ao equilíbrio climático seja erigido ao patamar daqueles que são considerados fundamentais. “Qualquer caminho leva a toda a parte.” – Fernando Pessoa

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O princípio da sustentabilidade como princípio estruturante do direito constitucional. Revista de Estudos Politécnicos. Polytechnical Studies Review. Vol VIII, nº 13, 007-018, 2010. Brasil. Ministério do Meio Ambiente. Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC). 2022. Disponível em link, acesso em 23 fev. 2022, às 21:58 (UTC-03). Lei de Bases do Clima: o que traz de novo?. PRA-Raposo, Sá Miranda & Associados, Sociedade de Advogados R.L., 2022.


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