EDIÇÃO I
VOX IURIS
2021
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1ª edição
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1ª edição
Ficha Técnica Diretor/ Diniz Patrão Subdiretores/ Rúben Azevedo e André Teixeira Coordenadora Editorial/ Ana Margarida Silva Capa e Ilustrações/ Bárbara Fernandes Design, Produção e Matéria/ Patrícia Rodrigues
A revista Vox Iuris é um projeto voluntário sem fins lucrativos. Todos os artigos são da responsabilidade dos respetivos autores, não podendo a revista ou a Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho ser responsabilizada por qualquer imprecisão ou erro. Para qualquer informação poderá contactar-nos através do email geral@aedum.com . A reprodução e/ou difusão desta obra ou de partes integrantes da mesma, por fotocópia ou qualquer outro meio, sem prévia autorização escrita dos respetivos autores ou da Associação, é ilícita e passível de originar processo judicial. 5
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Editorial
Caros Leitores, Nos moldes da sociedade atual, em que a evolução é constante e com contornos variados - nem sempre expectáveis -, denota-se um crescente imediatismo no que toca à informação. A tendência é no sentido da procura de dados já esmiuçados e processados, colocando-se muitas vezes de parte convicções próprias sobre o meio envolvente. Cai-se, então, num ciclo de inércia no que ao espírito crítico diz respeito. Nesse sentido, torna-se necessária a discussão aberta e sem filtros. Em particular no Direito, a área do saber que, salvo melhor opinião, rege o meio que nos envolve e que procura dar respostas aos mais variados dilemas da vida em comunidade. Assim, é nosso dever, enquanto estudantes de Direito, manter um olhar atento e crítico sobre aquilo que nos rodeia. Não cair no conformismo que advém da singela absorção daquilo que nos é fornecido é, de facto, um importante passo no combate ao populismo que tem vindo a ecoar por todo o globo. Tendo como mote estas premissas, a AEDUM fez renascer a Vox Iuris. Sendo apresentada em formato digital - como não podia deixar de ser, numa era marcada pelo desenvolvimento tecnológico - e de modo a facilitar a sua difusão e alcance, esta revista visa cumprir o propósito de incentivar tanto estudantes, como toda a comunidade educativa, a participar ativamente no debate jurídico e na criação de conteúdo prolífero e livre. Posto isto, nesta primeira edição - que muito nos or-
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1ª edição gulhamos de apresentar - pode encontrar-se uma multiplicidade de artigos versando diferentes temáticas e tendo como autores, tanto docentes, como alunos e exalunos da Escola de Direito da Universidade do Minho que, dotados de pensamento crítico e capacidade argumentativa, preencheram as sete partes que dividem a revista. As matérias em causa compreendem artigos jurídicos variados, sob a forma de opiniões, reflexões e entrevistas, todos com um denominador comum, a vontade de aprender, de trabalhar o Direito e de partilhar experiências enriquecedoras para melhor fitar o futuro. Resta-me agradecer a imensa e interessada participação de todos os intervenientes e desejar-vos uma excelente leitura, na esperança de que esta nova edição da Revista Vox Iuris seja a primeira de muitas.
Diniz Patrão Diretor de Publicações da XXIV Direção da AEDUM
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Editorial: O Ensino e a Justiça em Revista Uma frase que a esmagadora maioria dos estudantes de Direito já terá ouvido inúmeras vezes é a clássica “Quem só de Direito sabe, nem de Direito sabe”. Apesar de sobre utilizada e bastante aplicável a qualquer outra área do saber, a mensagem presente é mesmo assim eminentemente valiosa: aqueles que se abstraem em demasia do mundo em nome da especialização numa área específica, acabam por estar demasiado distantes deste para aplicar ativamente o que aprenderam. No Direito em particular observamos uma necessidade premente de cultura geral, conhecimento histórico, cultural, artístico, científico, político, entre muitos outros. Pois se o Direito essencialmente tenta fazer ordem do caos e permitir a vida em sociedade, então para o observar adequadamente um jurista terá de perceber aquilo que as normas que interpreta e aplica estão a regular, e não apenas conhecer a letra da lei e os sistemas que a integram. Assim também num estudante de Direito se quer um cidadão pleno e capaz de ter uma visão completa da sociedade, dos seus pilares, dos seus atores, das suas tradições e hábitos, da sua cultura e dos seus habitantes. Como conseguimos cumprir este objetivo, de formação de juristas que para além de operários da lei sejam parte ativa e consciente da sua construção e aplicação? A via mais óbvia e também a mais realista é sem dúvida a da educação, mais particularmente da adaptação do Ensino Superior às realidades que os jovens juristas encontrarão num mercado de trabalho ultracompetitivo e repleto de desafios. Sendo o Ensino um projeto em eterna construção, sem um ponto final possível ou definido, temos várias opções com que o trabalhar, mesmo enquanto estudantes. Podemos contribuir para a reformulação de currículos, para a adição de componentes mais práticas, para o apoio na entrada no mercado, para a divulgação das diferentes formas como um jurista pode impactar o mundo, e para a criação de oportunidades de os estudantes se expressarem e aprenderem fora do contexto letivo tradicional. É nesse sentido que a AEDUM – Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho vem relançar a nossa antiga revista, Vox Iuris, num novo e renovado formato, que pretendemos que se torne uma presença familiar para a nossa Escola e Universidade. A voz de uma Justiça moderna, onde todos
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1ª edição os membros da comunidade académica podem e devem fazer-se ouvir. Numa reformulação total da revista, optamos por criar áreas dedicadas a diferentes expressões artísticas e jurídicas, onde a investigação pode conviver com a opinião, os docentes com os alunos e as áreas do Direito duro com as do restante mundo profano. Nesta publicação depositamos a nossa esperança de poder contribuir para uma comunidade mais alerta, que ambiciona sempre fazer mais, saber mais e ser mais. Se é através da representação dos estudantes, da reivindicação dos seus direitos, do fornecimento de serviços que necessitam e da realização de atividades e projetos que os entusiasmem que a nossa Associação procura realizar esta contribuição, então esperamos que este seja um projeto que, perdurando mas evoluindo iterativamente, possa contribuir para a realização da nossa visão do Ensino Superior. E o que nos aguarda, portanto, nesta primeira reedição da nossa revista, publicada num período caracterizado pela incerteza, pelo distanciamento social, pelo medo do que o futuro nos guarda, pelo fascínio pela tecnologia e pela vontade de superar a doença que nos deixa em prisão domiciliária? Acima de tudo, uma fascinante compilação de opiniões de vários docentes convidados, de alunos que voluntariamente desejaram contribuir para o debate, e de visões de personalidades da nossa Casa. Foi nosso propósito dar-lhes voz, e esperamos ter cumprido com a missão a que nos propusemos. A palavra falada e escrita tem o poder de mudar opiniões, criar emoções, desenvolver pensamentos anteriormente incompletos, fomentar dúvida e combater o dogma, pelo que queremos encorajar todos os nossos leitores a eles próprios escreverem, contribuindo para este e outros projetos, na procura de partirem numa jornada de autodescoberta apenas possível através da utilização da palavra e da sua partilha com o resto do mundo. Espero apenas que após a leitura total ou parcial destas páginas tenhamos conseguido demonstrar ao leitor o que podemos conseguir quando juntamos o Ensino e a Justiça em Revista: uma comunidade, e um Direito, um pouco melhores hoje do que eram ontem. E se esse não é um propósito honesto, realista e positivo para uma publicação académica, não sei o que será.
André Francisco Soares Carvalho Alves Teixeira Presidente da XXIV Direção da Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho 9
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DE JURE A arbitragem como meio de resolução alternativa de litígios/
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O paciente enquanto consumidor/
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O direito colorless/
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Será o Ministério Público efetivamente titular do direito de ação popular?/
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A alteração das circunstâncias: da resolução dos contratos em razão da pandemia-um standby ou um divórcio da relação contratual?/
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Uma Laranja Mecânica brevíssimo apontamento jurídico-penal/
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A justiça eletrónica europeia na atualidade da União Europeia/
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O Impacto do orçamento de estado 2021 nas empresas/
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OFFICIUM Joana Pereira - EY Portugal /
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Joana Esteves Silva - Advogada Estagiária /
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Nelson Gonçalves - Estagiário Novo Banco /
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Rita Faria Leitão - Auditora de Justiça no Centro de Estudos Judiciários /
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Tiago Monteiro - Adido de Embaixada /
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PERSONA Entrevista Prof. Doutor Marco Gonçalves/ 10
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ERGA OMNES Legislador És Tu! - Um pé no RGPD, outro no Futuro
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Francisca Santos Costa/ Rita Ferraz/
COGITO
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Uma Geração de Crises/ A Colaboração Processual do arguido: O Futuro/ A ambiguidade dos direitos fundamentais/ Eu, Portugal e o rosto que fita o futuro do passado.../ O valor jurídico e ético-social da vida, o significado da dignidade humana e a questão da despenalização da morte assistida/
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RISUS Advogados do diabo/ A luz ao fundo do poço/
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DE JU do latim de direito ou por direito, por oposição a de facto 12
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DE JURE
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A arbitragem como meio de resolução alternativa de litígios Ana Bela Veiga Costa anabelavc16@gmail.com
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1ª edição A arbitragem pode ser definida como uma forma de resolução de litígios em que as partes escolhem árbitros e definem as regras do processo mediante convenção de arbitragem, conforme resulta do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (Lei da Arbitragem Voluntária - LAV) A convenção arbitral é um negócio jurídico bilateral, através da qual as partes acordam que um litígio presente ou futuro, emergente de uma certa relação jurídica, contratual ou extracontratual, será submetido a um tribunal arbitral. Nos termos dos artigos 2º e 3º da LAV, a convenção de arbitragem deve respeitar a forma escrita, sob pena de nulidade (artigo 3º da LAV), sendo que esta exigência de forma decorre quer de se delimitar o conteúdo da convenção, conferindo certeza quanto às questões submetidas à jurisdição arbitral, quer de se garantir que as partes ficam plenamente conscientes dos efeitos que decorrem da sua celebração. As partes podem celebrar livremente a convenção arbitral, bem como, em regra, definir livremente o respetivo âmbito. No que diz respeito ao conteúdo da convenção arbitral, temos elementos necessários e elementos facultativos. Relativamente aos primeiros, deve constar obrigatoriamente da convenção, a expressão da vontade de ambas as partes de que o litígio seja resolvido pela arbitragem, bem como a indicação dos litígios entre as partes que será resolvido pela arbitragem (artigo 3º número 1 da LAV). Além dos elementos necessários ou essenciais, a convenção de arbitragem pode conter outros elementos, considerados facultativos, cuja falta, face à sua natureza facultativa, não prejudica a vinculação das partes à submissão do litígio a um tribunal arbitral. Entre estes elementos encontramos, por exemplo, a escolha do direito aplicável à convenção de arbitragem, a determinação da localização da arbitragem, a designação ou o modo de escolha dos árbitros, a determinação das regras de processo e a possibilidade de recurso da decisão arbitral. Com a celebração da convenção arbitral, resulta um direito potestativo, a favor de qualquer um dos subscritores do acordo, de constituir o tribunal arbitral, bem como uma sujeição, na medida em que a parte fica 15
VOX IURIS vinculada a que o litígio seja resolvido por via da arbitragem. De acordo com o artigo 9º da LAV, os árbitros devem ser pessoas singulares e plenamente capazes1. O árbitro, contrariamente ao que acontece no tribunal, é escolhido pelas partes, podendo o tribunal arbitral ser constituído por um único árbitro, ou por vários, desde que sejam em número ímpar (artigo 8º da LAV). Os árbitros estão subordinados ao dever de diligência e de cuidado, bem como ao dever de confidencialidade, através do qual estes são obrigados a manter o sigilo sobre as informações respeitantes ao caso em concreto (artigo 30º número 5 da LAV). Por outro lado, assiste aos árbitros o direito à imunidade (artigo 9º número 4 da LAV) e a ser remunerados (artigo 17º da LAV). No processo arbitral encontramos alguns princípios comuns ao processo civil, consagrados no artigo 30º da LAV. Desta forma, embora não se encontre mencionado no artigo anteriormente referido, o processo arbitral é dominado pelo princípio da boa fé, consistindo este na exigência às partes de um comportamento tendente a não criar entraves desnecessários ao processo. Decorrente do princípio da igualdade das partes, o árbitro deve tratá-las com absoluta igualdade de meios e de oportunidades de se manifestarem no processo. Por sua vez, no princípio do contraditório do procedimento arbitral, o árbitro não pode decidir sobre uma pretensão sem ouvir a outra parte, dando lugar a uma participação efetiva das partes no decorrer de todo o litígio. Caso ocorra a violação de algum dos princípios mencionados, cuja influência seja decisiva na resolução do litígio, há lugar à nulidade da sentença arbitral (artigo 46º, número 3 alínea a) e b) e artigo 30º da LAV). No que diz respeito às fases do processo arbitral, em primeiro lugar, temos a fase da alegação das partes, destinando-se à alegação dos factos e à dedução dos pedidos. Segue-se a fase intermédia, cujo objetivo se prende com a análise das alegações e preparação da produção de prova. No que diz respeito à prova, os árbitros podem admitir os meios de prova que entenderem necessários, mesmo que estes não se encontrem previstos na lei processual, tendo sempre como limites os princípios do processo equitativo, princípio da licitude da prova e do processo justo. Contrariamente ao que acontece no regime processual civil, onde a apresentação de depoimento por escrito apenas é permitida em casos excecionais (518º e 519º do 16
CPC), no processo arbitral nada há que obste a que o testemunho se faça por escrito. Da leitura do artigo 39º da LAV retiramos que os árbitros julgam segundo o direito constituído, a menos que as partes determinem, por acordo, que julguem segundo a equidade. O julgamento segundo a equidade permite que seja adotada a solução mais adequada ao caso em concreto, tendo sempre em conta as circunstâncias particulares de cada caso. Para que a sentença arbitral proferida através da equidade seja eficaz, torna-se necessário o preenchimento de alguns requisitos. Em primeiro lugar, as partes têm de ter manifestado a sua vontade, autorizando o árbitro a julgar mediante a equidade. Em segundo lugar, apenas é possível decidir com base na equidade se o direito aplicável o permitir. Tal como refere Manuel Pereira Barrocas, a função da equidade é caracterizada como “uma forma de obtenção de soluções não necessariamente jurídicas, através da procura de uma solução equitativa”. Privilegia-se, portanto, a boa fé e a repartição igualitária dos riscos2. Segundo o artigo 19º da LAV, o prazo para o proferimento da decisão é fixado livremente pelas partes sendo de doze meses o limite máximo para a prolação da sentença se outro prazo não resultar do acordo das partes. O prazo conta-se da data da aceitação, salvo acordo em contrário, podendo este ser prorrogado pelas mesmas ou por decisão do tribunal. O número 4 do artigo 43º da LAV menciona que os árbitros que injustificadamente obstarem a que a decisão seja proferida dentro do prazo fixado respondem pelos danos causados, salientando a natureza contratual do vínculo entre as partes e o árbitro. A razão de ser de tal liberdade prende-se com uma das características essenciais da arbitragem: a celeridade. Com esta possibilidade evita-se um dos grandes problemas nos tribunais judiciais, que diz respeito à espera eterna por uma decisão. Comparativamente à jurisdição judicial, na arbitragem encontramos diversas vantagens como a maior celeridade, flexibilidade, na medida em que são as partes quem escolhem os árbitros e decidem o processo a seguir, confidencialidade e especialização. Contudo, também existem certas desvantagens, podendo apontar como uma delas os elevados custos associados ao processo arbitral, excetuando-se a arbitragem nos casos de consumo que é bastante económica.
1ª edição GOUVEIA, Mariana França, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, reimp. da 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2018. P.199 1
BARROCAS, Manuel Pereira, Manual de Arbitragem, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013. P.485 2
Privilegia-se, portanto, a boa fé e a repartição igualitária dos riscos. 17
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O paciente enquanto consumidor Ana Margarida da Silva Ferreira anamsferreiradireito@gmail.com
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1ª edição Aquando da abordagem do contrato de prestação de serviços médicos, uma questão que ainda não é pacífica na doutrina é a caracterização do paciente como consumidor, isto é, a recondução do vínculo que se cria entre as partes do contrato de prestação de serviços médicos (e referimo-nos aqui aos privados) à relação de consumo. A este propósito encontramos, portanto, dois entendimentos distintos na doutrina. Por um lado, entende PAULO DUARTE que os médicos, enquanto profissionais liberais que são, e muito embora se possa considerar que exerçam uma atividade económica, não podem ser abrangidos pela Lei da Defesa do Consumidor1. Na sua ótica, nos termos do artigo 23.º daquele diploma, o legislador pretendeu consagrar um regime diferenciado, ao estabelecer que o “regime de responsabilidade por serviços prestados por profissionais liberais é regulado em leis próprias”, presenteando-os, assim, com o afastamento deste regime2. Por outro lado, ANDRÉ DIAS PEREIRA afirma que se deve olhar para esta questão “com maior atenção”. Em seu entender, o legislador, ao mencionar os profissionais liberais na LDC, quis reconhecer a relação entre o profissional liberal e o seu cliente (que não esteja no exercício da sua atividade profissional) como uma relação de consumo. Segundo o autor, se assim não fosse, não haveria qualquer necessidade de o legislador fazer uma exclusão expressa destes profissionais do âmbito da LDC. Adicionalmente, ANDRÉ DIAS PEREIRA sustenta a sua posição na definição de consumidor que nos é dada pelo artigo 2.º da LDC no seu n.º 13. De facto, se bem atentarmos na relação que se estabelece entre o médico e o paciente em medicina privada, “ao paciente são prestados serviços, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerce com carácter profissional uma atividade económica que visa a obtenção de benefícios”. Conclui o autor, defendendo que se deve fazer uma interpretação restritiva do artigo 23.º da LDC, no sentido de apenas se excluir do âmbito de aplicação deste diploma o relativo ao regime de responsabilidade do profissional liberal, podendo-se no restante recorrer a ele para proteção do paciente enquanto consumidor4. Igualmente, diz-nos JOÃO VAZ RODRIGUES que, ainda que não se en-
Lei n.º 24/96, de 31 de junho, posteriormente designada por LDC 1
DUARTE, Paulo – O conceito jurídico de consumidor. In Boletim da Faculdade de Direito. N.º 75. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1999. P. 667. 2
Nos termos do qual se considera “consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”. 3
PEREIRA, André Gonçalo Dias – O Consentimento Informado na Relação Médico-paciente: estudo de direito civil. Coimbra: Coimbra Editora 2004. ISBN 972-32-1247-1. Pp. 357-360. 4
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RODRIGUES, João Vaz – O consentimento informado para o acto médico no ordenamento jurídico português (elementos para o estudo da manifestação da vontade do paciente). Coimbra: Coimbra Editora, 2001. ISBN 872-32-1013-4. P. 224. 5
tenda o exercício da medicina como uma atividade económica, os pacientes deverão ter “pelo menos, os mesmos direitos nas relações cujo objecto envolva a prática da medicina, em relação aos consumidores que estabeleçam relações de conteúdo económico”. Ao que também este autor defende a aplicação da LDC aos contratos de prestação de serviços médicos. Ainda neste sentido, veja-se CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA que já em 1996 se referia ao contrato de prestação de serviços médicos como sendo um contrato de consumo “e, portanto, merecedor da aplicação das adequadas regras de proteção dos consumidores”6/7. Podemos, deste modo, verificar que no exercício da medicina privada se entende cada vez mais8 que o paciente se posiciona como consumidor em relação ao médico ou clínica privada com quem é celebrado o contrato, por neste âmbito se perceber claramente a atividade médica como uma atividade económica de caráter profissional que visa a obtenção de lucros, diferentemente do que ocorre com a medicina em instituições públicas de saúde9. De facto, a configuração da relação médico-paciente como uma relação de consumo e consequente aplicação da LDC vem trazer ao paciente, “enquanto pessoa institucionalmente débil na sua situação jurídica (…), resultante da experiência e da funcionalidade dos profissionais quando comparadas com a inexperiência e a necessidade dos não-profissionais”10, uma outra camada de proteção. Pelo que, socorrendo-nos dos argumentos de ANDRÉ DIAS PEREIRA, somos em crer de que outra não poderia ser a resposta para esta querela. Tal significa, como de resto é apontado pela doutrina a este respeito, que sendo o paciente um verdadeiro consumidor, pode o mesmo socorrer-se das normas da LDC relativas ao direito (do paciente) à informação, direito que é pela mesma amplamente protegido, nomeadamente através dos seus artigos 3.º, alínea d) e 8.º. Como sabemos, é com base na informação que lhe é prestada pelo profissional da saúde que o paciente toma a decisão de se submeter ou não a determinado procedimento médico, ao que uma falha daquela pode desencadear consequências gravíssimas para o paciente.
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ALMEIDA, Carlos Ferreira de – Os contratos civis de prestação de serviço médico. In Direito da Saúde e Bioética. Lisboa: AAFDUL, 1996. P. 89 6
Corroborando esta mesma afirmação veja-se PEDRO, Rute Teixeira – A responsabilidade civil do médico: reflexões sobre a noção de perda de chance e a tutela do doente lesado. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. ISBN 978-972-32-1636-3. P. 71. 7
Para tal vejam-se os seguintes Acórdãos: do STJ de 5/6/2018, relatado por MARIA DO ROSÁRIO MORGADO, do STJ, de 23/3/2017, relatado por TOMÉ GOMES e do TRL de 27/11/2018, relatado por MICAELA SOUSA. 8
De notar o que diz a Entidade Reguladora da Saúde no seu relatório sobre “A Carta dos Direitos dos Utentes”, de maio de 2011, P. 10, afirmando que: “Embora não seja comum aceitar-se a possibilidade de utilização do termo “consumidores” ou “clientes” como sinónimos de utente ou beneficiário do SNS, não deixa de ser usual a utilização dessa expressão quando se está perante uma relação jurídico-privada de prestação de cuidados de saúde”. 9
ALMEIDA, Carlos Ferreira de – Negócio Jurídico de Consumo. In. Separata do «Boletim do Ministério da Justiça». N.º 347. Lisboa, 1985. P. 11. 10
1ª edição Ora, de acordo com a LDC, o médico deverá, “tanto na fase de negociações como na fase de celebração de um contrato”, informar o paciente “de forma clara, objetiva e adequada”. Sendo que, caso o médico “viole o dever de informar responde pelos danos que causar” (artigo 8.º n.º 1 e 5 da LDC). De tal forma que, a aplicação destas normas à relação médico-paciente, faz nascer na esfera jurídica do paciente um direito a ser indemnizado pelos danos sofridos em consequência de uma falta de informação por parte do profissional médico.
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O Direito colorless Profª Doutora Andreia Barbosa Assistente Convidada na Escola de Direito da Universidade do Minho, Investigadora do JusGov abarbosa@direito.uminho.pt
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1ª edição O Direito caminha atrás da realidade. E à medida que vai andando, vai sendo aprimorado, quanto mais não seja para preservar um (possível) direito das gerações presentes e vindouras a encarar o hoje e o amanhã com segurança e otimismo. Ora, aprimorar o Direito passa, para além do mais, pelo “pensar o Direito”. Pensar o Direito pressupõe encarar um determinado quadro jurídico-normativo numa perspetiva que não seja de mera absorção, de armazenamento e de conformação, convocando antes a respetiva problematização, a inquietude, o afastamento do simples yes man, ou yes woman. Um Direito não problematizado, não estudado, é, nestas brevíssimas notas, tido por um Direito colorless. Não é que não seja Direito mas, na ausência de questionamentos, talvez se fique sem conhecer a efetiva potencialidade prática. Como interpretar e aplicar enunciados normativos, nos termos que mais próximos fiquem da efetiva concretização da justiça, sem se pensar, sem se problematizar, o que às normas subjaz e o que das normas decorrerá? De qualquer forma, parece, em abstrato, ser de equacionar a possibilidade de existir espaço para rejeitar uma conclusão neste sentido: há que apurar se aquele Direito, atento o seu objeto, não será muito bem capaz de viver, sem ver o seu “ego” ferido, como colorless. Aliás, a própria qualificação do Direito como colorless é arriscada e desconhecem-se soluções prontas para o efeito, ainda que seja possível ensaiar uma aproximação a esse status, sobretudo por via de um exercício de comparação com um Direito que já seja reconhecidamente como colorful. São identificáveis aspetos sintomáticos da existência de um Direito que tem vindo a beneficiar de ser pensado e que passam, desde logo, pela existência de construções metodológicas, teóricas, concetuais e principiológicas próprias, propositadamente erguidas para si e devidamente sistematizadas. Claro está que esta individualização, por si só, não significará que outros níveis de color não lhe possam ser acrescentados. Perante a evolução normal, e tendencialmente complexa, da realidade, a textura aberta do cosmo normativo reclamará, constantemente, novos preenchimentos. 23
VOX IURIS Por outro lado, o tipo de cor que pode ser atribuído ao Direito também pode ser questionado: apesar de o papel aceitar tudo, as exigências de juridicidade não são assim tão permissivas. Os termos em que o discurso é colocado com o propósito de contribuir para o afastamento do aspeto “desmaiado” do Direito não se guiam por conceções concordantes com a ideia de que o “céu é o limite”. E neste aspeto, uma abordagem que não deixe de ser normativista assume uma vantagem que decorre do caráter regrado que a caracteriza: o pensar o Direito poderá partir do que os próprios enunciados normativos oferecem e/ou do que o iure constituendo seria capaz de acolher. Com isto não se quer dizer que, afinal, o pensar o Direito pressupõe uma atuação mecânica, perecível, “devota do regulamento”, mas serve para sublinhar que o Direito colorless também não pode ser encaminhado para a desjuridificação. Se o Direito, como “cristal” valioso que é, “no qual se reflete a luz da Justiça”, aceitar o acolhimento de conceções ambíguas, corre-se o risco de confundir o cristal com as pedras semipreciosas2. As presentes notas são então, especialmente dirigidas a quem, por ato de coragem (ou por errada perceção), procura pensar sobre um Direito que parece reclamar e merecer ser tido como um Direito colorful (ou ainda mais colorful – um Direito repensado). A tarefa é desafiante, mas poderá ser compensadora para quem a concretiza, e para a própria ciência jurídica.
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Cf. PAULO FERREIRA DA CUNHA, Justiça & Direito – Viagens à tribo dos juristas, Lisboa, Quid Juris, 2010,P. 13. 1
Cf. MANUEL A. CARNEIRO DA FRADA, Forjar o Direito, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2019, 616 e 617. 2
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A tarefa é desafiante, mas poderá ser compensadora para quem a concretiza 25
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Será o Ministério Público efetivamente titular do direito de ação popular? Gonçalo Martins de Matos1 goncalo_m_matos@hotmail.com
Mestrando em Direito Judiciário pela Escola de Direito da Universidade do Minho. 1
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1ª edição O Ministério Público constitui um órgão estadual de defesa dos interesses a si legalmente atribuídos, conforme a definição prevista no artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa, gozando para isso de estatuto próprio e autonomia, legalmente consagrados. Quanto às atribuições e aos interesses que cumpre ao Ministério Público prosseguir e defender, estes materializam-se, concretamente, no elenco do artigo 4.º do Estatuto do Ministério Público (EMP), consagrando a al. h) do n.º 1 deste artigo a atribuição de “Assumir, nos casos previstos na lei, a defesa de interesses coletivos e difusos”, acrescentando a al. f) do n.º 1 do artigo 9.º do mesmo Estatuto que o Ministério Público intervém a título principal nos processos quando representa interesses coletivos ou difusos. O artigo 2.º da Lei da Ação Popular (LAP) consagra a titularidade do direito de ação popular. Desde logo se repara que o Ministério Público não figura no elenco de titulares deste direito. No entanto, o artigo 16.º da mesma Lei estipula que o Ministério Público é titular de legitimidade ativa e dos poderes de representação e de intervenção processual que lhe são legalmente conferidos, podendo substituir-se ao autor em caso de desistência da lide, de transação ou de comportamentos lesivos dos interesses em causa. Neste âmbito, o Ministério Público desempenha funções de Estado-comunidade ou Estado-coletividade, e não de Estado-Administração, satisfazendo um interesse público supremo que reveste em si todos os interesses de todos os cidadãos. Da leitura do artigo 16.º da LAP podemos também concluir que a atuação do Ministério Público no âmbito da ação popular é aferida à luz do EMP, nomeadamente do seu artigo 9.º, já acima referido, que estabelece a intervenção processual principal deste órgão quando represente interesses difusos ou coletivos. No entanto, a redação atual do artigo em análise, aliada ao preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, leve a que se interprete que a legitimidade ativa conferida ao Ministério Público será efetivada apenas no âmbito da jurisdição administrativa, de acordo com os procedimentos estipulados no Código de Processo nos Tribunais Administrativos. No fundo, o Ministério Público tem uma intervenção oficiosa e 27
VOX IURIS a título principal, na prossecução do interesse do Estado-coletividade, consubstanciada no exercício de um poder de atuação que lhe é direta e autonomamente conferido por lei. No entanto, quando atue em representação do Estado português, o Ministério Público já deve atuar em obediência às instruções específicas do organismo estatal no que concerne aos factos e ao material probatório, estando igualmente sujeito às regras consagradas no EMP relativamente à disponibilidade do objeto do processo. Nestes termos, a atuação do Ministério Público afasta-se da intervenção ex officio resultante de uma legitimidade ativa diretamente atribuída pelos diplomas referentes aos específicos interesses difusos. Poder-se-á então, afirmar efetivamente que o Ministério Público é titular do direito de ação popular? O que parece resultar do que até aqui foi dito é que não o é. A sua intervenção processual a título principal em ações de tutela de interesses difusos apenas pode ser efetivada nos termos das leis específicas que os regulam, sendo que a sua titularidade de direito de ação popular apenas pode ser entendida no contexto da justiça administrativa. Resulta da parte final do artigo 16.º da LAP que o Ministério Público pode substituir-se ao autor em caso de desistência da lide, de transação ou de comportamentos lesivos dos interesses em causa, aqui atuando no âmbito da fiscalização da legalidade, papel que desempenha, naturalmente, por força da Constituição e do seu Estatuto, concretizando-se, efetivamente, no artigo 252.º do Código de Processo Civil. O Estatuto acrescenta ainda, na parte final da al. m) do n.º 1 do artigo 4.º, que o Ministério Público intervém em todos os processos nos quais esteja em causa o interesse público. Tendo em conta esta intervenção e a possibilidade de substituição consagrada no artigo 16.º do Estatuto, pode afirmar-se que o Ministério Público dispõe de um verdadeiro poder discricionário para assumir a lide em defesa de interesses difusos sempre que considere, objetivamente, que a forma como ela está a ser conduzida põe em causa a defesa dos interesses dos indivíduos que, por não terem exercido o direito de autoexclusão, estão representados na lide pelo autor popular e sobre os quais se vão repercutir os efeitos do caso julgado. Ocorrendo esta substituição, naturalmente, o Ministério Público passa a ocupar o lugar do autor popular, no que pode ser apelidado de legitimidade 28
sucessiva. O Ministério Público pode ainda intervir acessoriamente em processo quando, não tendo já intervindo a título principal, a ação vise a realização de interesses coletivos ou difusos (como é o caso da ação popular), nos termos da parte final da al. a) do n.º 1 do artigo 10.º do EMP. Esta intervenção acessória encontra, também, concretização no artigo 325.º do Código de Processo Civil. Este artigo determina a notificação do Ministério Público sobre o início efetivo da ação. De forma a que o Ministério Público possa aferir a existência de comportamentos lesivos dos interesses em causa e atuar quando tal hipótese se verifique, faz sentido que deva acompanhar o processo desde o seu início. Acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo que a atuação do Ministério Público deve ser diligente, cuidada e objetiva na defesa dos interesses que lhe estão confiados, devendo empregar os meios processuais e sustentar as posições jurídicas que, em concreto, melhor salvaguardem a defesa dos interesses em causa. Não dispõe de prazos autónomos para a prática de atos processuais, só os podendo praticar enquanto a parte assistida os puder praticar. De entre outros atos processuais por si praticáveis, destaque seja feito à possibilidade de o Ministério Público poder recorrer das decisões proferidas no processo quando o considere necessário à defesa do interesse público ou dos interesses da parte assistida, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo. Atendendo ao que até aqui foi dito, não é correto que se possa afirmar que o Ministério Público seja titular de legitimidade ativa em sede de ação popular. No entanto, não seria de equacionar que o Ministério Público, no seu papel de representante de interesses coletivos, pudesse ser titular de legitimidade processual ativa neste contexto? Se o propósito da ação popular é o de salvaguarda de interesses coletivos, e a função constitucional do Ministério Público é o da prossecução da defesa dos interesses coletivos, é lógico que possa exercer a sua função ativamente, enquanto autor popular. Trata-se de uma questão que necessita de uma revisão, pois a relevância emergente dos interesses difusos ou individuais coletivos forçam a que se repense o papel que o Ministério Público pode efetivamente ter na defesa deste tipo de interesses em sede processual.
1ª edição
A alteração das circunstâncias: da resolução dos contratos em razão da pandemia-um standby ou um divórcio da relação contratual? Prof. Drª Isa Meireles Assistente Convidada, Advogada, Mestre em Direito, Doutoranda em Direito, Investigadora do JUSGOV isameireles@direito.uminho.pt
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VOX IURIS
Com a situação de pandemia que assola o país e o mundo, e cujas repercussões jurídicas se sentem e vão sentir com a volatilidade associada, temos observado uma utilização recorrente do famigerado artigo 437.º do Código Civil. Sabemos nós que no direito dos contratos, sejam eles regulados na ótica civil, existe a possibilidade de, verificando-se uma alteração das circunstâncias, possibilidade de alteração do contrato no sentido de uma redução das prestações ou, ainda, de uma resolução contratual. O pressuposto desta aplicação vai-se subdividir em dois, designadamente a verificação das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão em contratar tiverem sofrido uma alteração anormal. O conceito alteração anormal, previsto no n.º1 do referido normativo, é um conceito indeterminado e que vem a permitir que a anormalidade das situações que se vivem atualmente possam ser preenchidas no sentido de se enquadrarem neste conceito jurídico ou, melhor, nesta possibilidade de alterações contratuais. Claro que a verificação desta anormalidade de situações vai possibilitar uma resolução contratual ou, ainda, uma modificação do contrato, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. Lança-se, de imediato, a questão de saber se a questão da pandemia não estará afastada deste conceito ou, ante, a vamos inserir na possibilidade de, por causas externas a ambas as partes, causas de saúde pública, vejam os contratos (registos pelo pacta sunt servanda) a possibilidade de serem cessados ou alterados. Claro que a resposta que daremos nunca poderá ser em uníssono para todo e qualquer contrato até porque, desde logo, existe um princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual a que a nossa indagação não poderá, de todo, ficar indiferente. Além de que, naturalmente, que a análise casuística, ponderada, racional e em estudo de caso tem que imperar, no sentido de se saber se a resolução contratual não é, de facto, um ónus que se atribui a uma parte que ficará, natural30
1ª edição mente, numa posição de maior vantagem. Não podemos esquecer, em nenhum momento, que a pandemia COVID-19 plasma não só uma causa de saúde pública, que impossibilita e vai afetar uma série de contratos, nem sempre regulados pela legislação, mas antes, quanto às proibições de laborar e de abertura, impedidos de serem executados. Mas, se o impedimento existe, não significa, desde logo, que seja para sempre. A abertura e o recurso ao artigo 437.º do Código Civil deverá, sim, ser algo ponderada e excepcional, isto porque, caso contrário, também o direito, ainda que alheio à realidade socioeconómica mas, também, com uma preocupação que lhe tem que ser associada, da igualdade entre as partes, da justa repartição do risco, contribuiria para um antagonizar de posições: desvirtuando relações, retirando a segurança e permitindo que, por impedimentos legais, por razões de saúde pública, as partes se decidissem desvincular, não temporariamente, mas definitivamente, como se de um laço que se tratasse. Claro que o artigo 437.º do Código Civil apresenta uma solução jurídica bastante aplaudida para as questões que envolvem os contratos, pensemos, por exemplo, na indústria dos casamentos e todos os serviços associados ou, antes, dos ginásios e health club’s. Mas se por um lado a prestação de serviços em causa não pode ser mesmo realizada, por imposição, não poderia ser unânime não repartir o risco, colocando nos ombros de uma das partes o suportar de uma desvinculação definitiva. Parar no tempo, suster a respiração, suspender os contratos. Felizmente, também no direito, teremos a possibilidade de, à semelhança de um comando televisivo, colocar os contratos em stand by, suspendendo as obrigações, desde que, claramente, elas não se tornem impossíveis para sempre ou apresentem um risco insuportável para ambas as partes. 31
VOX IURIS
Uma Laranja Mecânica brevíssimo apontamento jurídico-penal Prof. Doutor Pedro Jacob Morais Professor Auxiliar na Escola de Direito da Universidade do Minho/ Investigador do JusGov pmorais@direito.uminho.pt
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1ª edição No próximo ano celebrar-se-á o sexagésimo aniversário de “Laranja Mecânica” (“Clockwork Orange”) de Anthony Burgess. Romance mais contingente do que distópico e, neste concreto sentido, profundamente imbricado com a realidade que nos tolhe, a obra de Burgess pretendeu reflectir sobre o livre-arbítrio humano por via da criminalidade juvenil nas grandes metrópoles. Nesse desiderato, misturou referências urbanas londrinas, moscovitas e nova-iorquinas, concentrando-as num grupo de jovens perdido entre diversos consumos aditivos e delitos que se vão agudizando em violência. A própria linguagem escolhida por Burgess para dar forma ao grupo liderado por Alex, o protagonista da obra, ao entrecortar expressões inglesas com termos russos, dificulta a aproximação do leitor. Aliás, mais do que dificultar essa aproximação, cria inicialmente uma distância palpável entre o leitor e as personagens, entre o extraneus avesso ao crime e os intranei criminosos. De facto, a linguagem adoptada por Burgess permite que a obra assinale, num momento inicial, a clara separação entre o cidadão e o criminoso, como se de dois opostos inconciliáveis se tratassem. Contudo, à medida que o leitor vai dominando a curiosa expressão das personagens e, como decorrência, os limites dos seus mundos, a distância que os separa esbate-se e, a páginas tantas, o “eu” e o “outro” deixam de se opor como extremos inconciliáveis em favor de uma dialéctica do encontro possível (circunstância). A profundidade simbólica do romance de Burgess desvela-se logo no título. Bem observado, o estranhamento da expressão “Laranja Mecânica”, ao unir dois elementos antitéticos, revela em profundidade a topografia que Burgess escolheu como transfundo problematizante, senão vejamos. A laranja mecânica revela à contraluz o paradoxo que opõe a natureza ao maquinismo, o elemento biológico à cablagem artificial. Uma laranja, sendo mecânica e sob pena de aderirmos a um nominalismo desarraigado (construtivismo), não é uma laranja. Uma laranja mecânica surge como mera aparência, desprovida que se encontra do seu substrato essencial. A laranja mecânica perfila-se como uma contradição nos termos, uma construção insustentável. 33
VOX IURIS De volta ao enredo da obra de Burgess, Alex é condenado por um crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado morte (“E era isso. Agora, eu já tinha feito de tudo. E com quinze anos apenas”)1. Condenado a catorze anos de prisão, Alex dá entrada no sistema prisional. Os seus quinze anos de existência ficaram para trás, algures entre a decisão criminosa e a subsequente decisão judicativa, bem como seu nome (“[...] daí para a frente fui o 6655321 e já não o vosso drugo Alex”)2. Ora, a substituição do nome pelo número quadra simbolicamente a prisão como um ambiente estigmatizante. Ao entrar no estabelecimento prisional, ao ser rebatizado como o prisioneiro 6655321, o leitor apercebe-se de que a personalidade do protagonista capitulou perante o fordismo da expressão numérica. O modelo prisional descrito por Burgess não promove a ressocialização do agente (prevenção especial positiva). Ao invés, encontra-se profundamente marcado por uma visão ético-retributiva, acompanhada pela ideia da pena privativa da liberdade como instrumento de inocuização (prevenção especial negativa). A entrada no estabelecimento prisional, com a derrogação do nome pelo número, assinala a morte cívica de Alex. Assinala a sua despersonalização por via da separação física e do esquecimento da comunidade, ausente que se encontra de soluções para o problema criminal. Aqui chegados, se num primeiro momento Burgess descrevia o sistema prisional vigente na época, num momento posterior dedica-se à reflexão em torno dos perigos que as abordagens médicas ou clínicas das finalidades das penas convocam. A cumprir a sua pena, Alex recebe a notícia da “Técnica de Ludovico”, destinada à erradicação do impulso criminoso, voluntariando-se imediatamente. Através da Técnica de Ludovico, os reclusos eram submetidos a um conjunto de estímulos sensoriais capazes de despertar aversão física perante a mais exígua manifestação (volição) do comportamento criminoso ou perante estímulos vagamente associados à sua carreira criminosa. No caso do recluso 6655321, outrora conhecido como Alex, terminado o programa Ludovico, desenvolveu uma aversão física não apenas ao impulso criminoso mas também à obra de Beethoven, que ouvia no final de cada uma das suas incursões delinquentes pela cidade. O Método de Ludovico imaginado por Burgess mais 34
não representa do que uma derivação do modelo médico ou clínico que associava à pena simultaneamente uma finalidade terapêutica e profiláctica. Ao configurar o crime como uma patologia, o modelo médico encontra-se fundado numa ontologia causalista, numa perspectiva empírico-causal que associa cada facto criminoso a um determinado distúrbio patológico. Identificada ou, melhor, diagnosticada a origem causal de cada delito, seria possível ao juiz, rectius, ao médico, prescrever a terapêutica adequada ao caso concreto. Assim sendo, o crime deixa de se enquadrar como uma questão jurídico-penal, passando a representar um problema clínico. De onde resulta que o modelo em questão radica numa compreensão mecanicista do mundo e dos indivíduos. Uma compreensão que nega o livre-arbítrio, reduzindo o comportamento humano a um conjunto de reacções empírico-causalmente determinadas. Perante este modelo, a liberdade humana mais não é do que um conceito operatório ausente de significado e toda a normação jurídico-penal, entendida na óptica da exponenciação da esfera de liberdade humana, recua perante o bisturi. Submetido à Técnica de Ludovico, Alex aproxima-se cada vez mais de uma laranja mecânica, no exacto sentido em que surge profundamente mutilado na sua condição humana. Apresenta-se como um sucedâneo de pessoa, abandonado que foi o optimismo antropológico da ressocialização em favor da visão pessimista ínsita no modelo médico e também de um certo moralismo, de uma metanoia atingida à custa do tratamento e vertida na erradicação de alguns hábitos ou gostos considerados nefastos como, no caso concreto, a música de Beethoven (“O nosso paciente, como podem ver, sente-se impelido para o bem ao sentir-se, paradoxalmente, impelido para o mal. A intenção de agir violentamente surge acompanhada por fortes sensações de aflição física. Para as contrariar, o paciente tem de optar por uma atitude diametralmente oposta”)3. Tal como uma laranja mecânica, Alex viu-se despojado da sua essência, do seu substrato pessoal, da dignidade que deve preceder e guiar qualquer intervenção estatal. Nas vésperas do seu sexagésimo aniversário, “Laranja Mecânica” de Anthony Burgess recorda-nos que a pessoa deve ser sempre pressuposto e esteio do direito penal (verdadeiro prius axiomático), e nunca uma construção, produto ou instrumento sistémico.
1ª edição BURGESS, Anthony - A Laranja Mecânica. Lisboa: Alfaguara, 2020 (tra. Vasco Gato), p. 120. 1
BURGESS, Anthony - A Laranja Mecânica, p. 124. 2
BURGESS, Anthony - A Laranja Mecânica, p. 184 3
Nunca uma laranja mecânica.
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VOX IURIS
A justiça eletrónica europeia na atualidade da União Europeia Prof. Doutora Joana Covelo de Abreu Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho e da Universidade Portucalense Infante D. Henrique. Coordenadora do Módulo Jean Monnet eUjust “EU Procedure and credits’ claims: approaching electronic solutions under e-Justice paradigm” http://eujust.direito.uminho.pt/ jabreu@direito.uminho.pt
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1ª edição A colaboração na edição que reativa o Jornal VOX Iuris – de cuja equipa editorial fiz parte, enquanto aluna de licenciatura da Escola de Direito da Universidade do Minho, nos idos anos de 2005 e 2006 – configura-se como um prazer pois a partir deste ímpeto dado pelo passado (qual walk on the memory lane!) me permito falar de desafios (e soluções) que surgem no contexto da União Europeia em matéria de justiça eletrónica. Bem-haja a Direção da AEDUM por esta iniciativa! Desde a adoção do último Plano de Ação e da Estratégia para a justiça eletrónica europeia, pelo Conselho, aplicáveis no período tempo de 2019 a 2023, a União Europeia tem vindo a dedicar-se ao aprofundamento dos instrumentos inerentes a uma justiça eletrónica europeia. A situação pandémica vivida sublinhou a necessidade de adensar os mecanismos e instrumentos tecnológicos e digitais ao serviço de uma boa administração da justiça. O Módulo Jean Monnet eUjust, desenvolvido na Escola de Direito da Universidade do Minho, sob a coordenação científica da autora, e contando, na sua equipa, com os Prof. Doutores Alessandra Silveira e Pedro Madeira Froufe, visa precisamente, numa perspetiva ampla, promover a formação para este paradigma da justiça eletrónica europeia. A 2.º edição da Summer School eUjust decorrerá nos próximos dias 5 a 9 de julho de 2021, em modelo sincrónico, onde algumas das dimensões que hoje se abordam serão tratadas por professores (internos e externos), juízes (dos tribunais nacionais e do Tribunal de Justiça da União Europeia – TJUE), agentes institucionais e advogados, num ambiente salutar de partilha de conhecimentos. Neste contexto, a justiça eletrónica europeia visa i) melhorar o acesso à justiça num contexto pan-europeu e ii) desenvolver e integrar tecnologias de informação e de comunicação (TIC) no acesso à informação jurídica e no funcionamento dos sistemas judiciais dos Estados-Membros. Afinal, a tramitação processual de forma digitalizada e a comunicação eletrónica entre os tribunais e as partes envolvidas em processos judiciais são componentes essenciais a um sistema judiciário eficaz em todos os Estados-Membros e que permita, em tramitação 37
VOX IURIS transfronteiriça, ganhos em termos de celeridade e de efetividade. Por outro lado, atendendo à aplicação de proximidade do direito da União Europeia pelos tribunais nacionais – que, nessa ótica, agem como tribunais comuns ou funcionalmente europeus –, os ímpetos de digitalização também impactaram na tramitação processual perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, permitindo que os reenvios prejudiciais (instrumento jurisdicional à disposição dos tribunais nacionais para dialogarem sobre a interpretação e a validade do direito da União aplicável aos litígios que correm perante si com o Tribunal de Justiça) possam ser submetidos através da plataforma e-Curia. Assim, sob a tónica da “digitalização da justiça na União Europeia”, a Comissão Europeia lançou, a 2 de dezembro de 2020, uma Comunicação [COM(2020) 710 final], onde se sublinha a importância das TIC na promoção de uma tutela jurisdicional efetiva na União Europeia, que nela se reputa como um princípio geral e um direito fundamental. Na mesma data, a Comissão Europeia adotou uma proposta de Regulamento relativo a um sistema informatizado de comunicação em processos cíveis e penais transnacionais (sistema e-CODEX) [COM(2020) 712 final]. Na sua sequência, foi conduzida uma avaliação de impacto sobre a “digitalização na cooperação judiciária transfronteiriça” [Ares(2021)172677, de 8 de janeiro de 2021], de forma a informar os cidadãos e as partes interessadas sobre os interesses públicos a prosseguir no contexto da União de forma a que possam, numa ótica de participação, providenciar sensibilidades sobre tais domínios. Para o efeito, tal iniciativa visa lidar com uma tendência ainda evidente na cooperação judiciária transfronteiriça: as informações ainda continuam a ser, eminentemente, trocadas em papel o que torna os processos mais lentos do que com recurso a meios eletrónicos. Tal impacto na celeridade tornou-se ainda mais evidente perante a pandemia associada à COVID-19 em virtude de muitos processos terem ficado suspensos, privando os particulares de um efetivo acesso à justiça. Este documento sublinha os impactos positivos em termos económicos (pelo aproveitamento do projeto piloto e-CODEX como a nova infraestrutura interoperável que tornará os sistemas digitais dos diversos Estados-Membros comunicáveis entre si, 38
atuando como ponte de comunicação e cuja operacionalização já se encontra vertida em proposta legislativa da Comissão Europeia), sociais (por promover um acesso à justiça mais amplo, promovendo um acréscimo de confiança nos sistemas judiciários e na possibilidade de os particulares poderem fazer valer os seus direitos noutro Estado-Membro, promovendo o exercício mais confiante das liberdades fundamentais de circulação) e ambientais (sobretudo decorrente da diminuição de uso de papel e da diminuição dos custos ambientais associados à deslocação dos particulares e dos seus representantes para intervir em processos judiciais). No mesmo diapasão, e mais recentemente, foi publicado um Roadmap, pela Direção-Geral da Justiça da Comissão Europeia, relativo à “avaliação da justiça na UE” para 2021 [Ares(2021)1779247, de 11 de março de 2021), onde se asseverou que “sistemas de justiça efetivos são essenciais para a implementação do direito da UE e para promover o estado de direito e os valores em que a UE se funda”, na medida em que “os tribunais nacionais atuam como tribunais da UE quando aplicam o direito da UE”. Acresce que são sistemas judiciais efetivos, pautados por uma atuação independente e imparcial, que poderão continuar a promover o adensamento da confiança recíproca, o investimento no espaço da União e um crescimento económico a longo prazo. Posto isto, no vetor “qualidade” da justiça, este instrumento irá analisar também a digitalização demonstrada por cada Estado-Membro, de forma a que a União Europeia consiga apreender os melhores mecanismos a adotar para promover a almejada efetividade. Daqui se depreende o papel de relevo da justiça eletrónica europeia a fim de simultaneamente assegurar a efetividade do direito da União mas, sobretudo, surgindo como um meio de assegurar a independência, imparcialidade e efetividade dos sistemas judiciais dos Estados-Membros, relevantes para que a União possa continuar a promover o valor do estado de direito. Por sua vez, via digitalização, é possível compreender que a cooperação judiciária, na União Europeia, se explica, cada vez mais, como um fenómeno de integração, mais consentâneo com o caminho trilhado até aqui.
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O Impacto do Orçamento de Estado 2021 nas empresas Ana João de Castro Advogada-Estagiária – NOVA Advogados a.castro@novalegal.pt
Maria João Carmo, Aluna do 4º ano da licenciatura em Direito na Escola de Direito da U. Minho maria_ joao_15@live.com.pt
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Breve Resumo
A Lei do Orçamento do Estado para 2021, publicada no dia 31 de dezembro de 2020, surge num contexto de pandemia e de grande incerteza para o país. De uma forma geral, não existe um aumento dos impostos e é eliminado o agravamento das tributações autónomas para as micro, pequenas e médias empresas que não tinham prejuízos e passaram a ter devido à pandemia. Continua em vigor no primeiro semestre de 2021 o Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento, que permite às empresas deduzirem à coleta de IRC o correspondente a 20% das suas despesas de investimento até ao limite de 5 M€. É criado o programa IVAucher para aumentar o consumo nos setores da restauração, alojamento e cultura. Passará a existir um incentivo fiscal às ações de internacionalização por parte de PMEs. O imposto sobre as mais valias pela transferência de um imóvel entre o património pessoal e a afetação a uma atividade comercial é eliminado e são lançadas novas linhas de crédito com garantia pública.
Destaques
Estabelecimento Estável
A Lei do Orçamento do Estado para 2021 introduz alterações relativamente à figura do estabelecimento estável, na medida em que o conceito passa a abranger as atividades de prestação de serviços (incluindo serviços de consultoria), prestados por uma empresa, através dos seus próprios empregados ou de outras pessoas contratadas para exercerem essas atividades em Portugal, desde que tais atividades sejam exercidas durante um período ou períodos que, no total, excedam 183 dias num total de 12 meses, com início ou termo no período de tributação em causa. Assim, o conceito de agente dependente é também alargado, passando a abranger os agentes dependentes que exerçam, em território português, por conta de uma empresa, um papel determinante na conclusão de contratos por conta da empresa de forma rotineira e sem alterações 41
VOX IURIS substanciais (ainda que não tenham poderes para os celebrar) ou que mantenham um depósito de bens ou mercadorias para entrega dos mesmos em nome da empresa, ainda que não celebre os contratos relativos a esses mesmos bens. Para além disto, prevê-se um alargamento do conceito de lucro imputável a um estabelecimento estável, que passa a incluir os rendimentos derivados da venda a pessoas ou entidades com residência, sede ou direção efetiva em Portugal de bens ou mercadorias idênticos ou similares aos vendidos através desse estabelecimento estável. Taxa de IRC: tributação autónoma O agravamento de 10 pontos percentuais das taxas de tributação autónoma aplicável aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal, não se aplica aos períodos de tributação de 2020 e 2021, nos casos em que estejamos perante cooperativas, pequenas, médias e micro empresas que tenham tido lucro tributável nos últimos três anos, apresentem prejuízo atualmente e tenham entregue atempadamente a declaração de rendimentos Modelo 22 e a declaração anual de informação contabilística e fiscal relativas aos dois anos anteriores. Pagamentos por Conta As cooperativas, pequenas, médias e micro empresas estão dispensadas dos pagamentos por conta. Incentivo à Manutenção de Postos de Trabalho As grandes empresas que recebam incentivos fiscais (RFAI, SIFIDE II e CFEI II) e/ou apoios públicos durante o ano de 2021 e que tenham obtido resultados líquidos positivos no ano de 2020 têm de manter o nível de emprego em 2021. Pelo que, consideram-se sujeitas ao presente regime as entidades com sede ou direção efetiva em território português, bem como as entidades que, não tendo sede ou direção efetiva em território português, tenham neste território um estabelecimento estável, que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, e que preencham, cumulativamente, as seguintes condições: a) Não sejam micro, pequenas ou médias empresas, nos termos legais; b) Tenham registado um resultado líquido positivo 42
no período contabilístico respeitante ao ano civil de 2020 ou, caso o ano contabilístico não coincida com o civil, respeitante ao período contabilístico que inicie em ou após 1 de janeiro de 2020, nos termos da legislação aplicável. A manutenção do emprego está verificada quando, no ano de 2021, a entidade tiver um número médio de trabalhadores igual ou superior ao nível observado a 1 de outubro de 2020, de acordo com critérios definidos. Em suma, as empresas que tiverem acesso a estas medidas não podem cessar contratos de trabalho através da modalidade de despedimento coletivo, nem podem despedir um trabalhador com base na extinção do posto de trabalho ou por inadaptação. Sendo que, também não podem iniciar os respetivos procedimentos até ao final do presente ano de 2021. Mais Valias de Imóveis afetos a uma Atividade Comercial Verifica-se a eliminação do imposto sobre as mais valias aplicável pela transferência de um bem imóvel entre os patrimónios pessoal e comercial. Alteração ao Código do Imposto de Selo Relativamente aos factos tributários ocorridos até 31 de dezembro de 2021, no crédito ao consumo, mantém-se o agravamento em 50 % das taxas do Imposto de Selo, excluindo os contratos já celebrados e em execução. Programa IVAucher Com a criação deste programa, pretende-se incentivar o consumo na restauração, na cultura e no alojamento; o consumidor final pode acumular o valor do IVA (constante na fatura) que gastar durante o primeiro trimestre e utilizar esse mesmo valor durante o trimestre seguinte no mesmo setor, sendo esse valor descontado. Benefícios Fiscais Criação de um regime de benefícios fiscais no âmbito do «Programa de Valorização do Interior», que permite uma dedução à coleta de IRC de 20% dos gastos do período incorridos com a criação de postos de trabalho nos territórios do interior que exce-
1ª edição dam o valor da retribuição mínima nacional garantida e é aplicável até ao limite da coleta do período em questão. Em projetos de promoção externa, no âmbito de participação conjunta, as despesas suportadas por sujeitos passivos de IRC concorrem para a determinação do lucro tributável em valor correspondente a 110 % do total de despesas elegíveis incorridas nos períodos de tributação de 2021 e 2022. Alteração ao Código Fiscal do Investimento Considera-se, agora, dedutível, a participação no capital de instituições de investigação e desenvolvimento (I&D) e contribuições para fundos de investimento, públicos ou privados, que realizem investimentos de capital próprio e de quase-capital, em empresas dedicadas sobretudo a investigação e desenvolvimento, cuja idoneidade nessa seja reconhecida pela Agência Nacional de Inovação, S. A., ainda que tenham sido constituídas há mais de seis anos e independentemente de terem obtido ou solicitado tal reconhecimento. São, também, introduzidas algumas limitações no que respeita à dedução à coleta do IRC das despesas relacionadas com as empresas dedicadas sobretudo a I&D. Conclusão Num contexto de pandemia seria expectável que a Lei do Orçamento de Estado viesse contemplar medidas fiscais com mais impacto no nosso tecido empresarial. Acontece que, a Lei do Orçamento de Estado para 2021 não veio introduzir alterações significativas no sistema fiscal, concretizando diversas medidas com maior impacto no setor imobiliário. Ainda assim, destacamos a suspensão dos pagamentos por conta para as PME’s como uma das medidas importantes para apoiar a tesouraria destas empresas que foi fortemente abalada pela crise associada à pandemia que vivemos.
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do latim: dever, serviço, cortesia, favor, ocupação atividade que é exercida por alguém, temporária, que exige algum grau de especialização
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OFFICIUM OFFICIUM OFFICIUM
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O Joana Pereira joanaspereira26@gmail.com
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meu nome é Joana Pereira, tenho 23 anos e sou de Vila do Conde. Quando era criança, a minha profissão de sonho era ser mãe, mas não devo ter demorado muito tempo a perceber que não era bem essa a resposta esperada. Estando envolvida desde cedo no mundo das artes (canto, dança e teatro), pensei que o meu percurso profissional pudesse realmente passar por aí. Contudo, sem grandes expectativas, optei pelo curso de Ciências e Tecnologias no ensino secundário, confiando que ao longo desses três anos iria decidir a que área me queria dedicar. A decisão só surgiu no verão de 2015, aquando das candidaturas para ingressar no ensino superior em que, às cegas, escolhi Direito. Durante a Licenciatura, poucas foram as certezas do caminho que iria seguir, sabia apenas que a advocacia não era um plano que previa para o meu percurso profissional. Infelizmente, o plano de estudos e a postura dos docentes enfoca na advocacia e magistratura, deixando as restantes saídas profissionais por explorar e, desse modo, senti-me um pouco perdida e com dificuldade em perceber o que poderia fazer com o curso de Direito e que outras possibilidades existiriam para além das saídas mais comuns. As unidades curriculares de Direito Fiscal lecionadas no segundo e terceiro anos despertaram em mim algum interesse, mas não perdi muito tempo a explorar as saídas profissionais até ao último ano da licenciatura. Por essa altura, através de um amigo, conheci levemente o trabalho das Big 4 - quatro grandes empresas prestadoras de serviços, inclusive de consultoria fiscal (KPMG, Deloitte, PwC e EY). Então, no início de 2019 iniciei o recrutamento para a KPMG, em que cheguei até à fase final, mas não fui selecionada. Em setembro de 2019, decidi inscrever-me no Mestrado de Direito Tributário na Universidade do Minho, de modo a aprofundar os conhecimentos na área, uma vez que no plano de estudos da licenciatura só estão incluídas duas unidades curriculares em matéria de tributos. Fui dedicando uma especial atenção aos recrutamentos das Big4, bem
1ª edição como a outras oportunidades e em janeiro de 2020 iniciei o recrutamento na EY. Após seis fases de recrutamento, fui selecionada para integrar o departamento People Advisory Services da EY Portugal, no escritório do Porto. Comecei a trabalhar a 16 de março de 2020, em regime de teletrabalho em pleno início de pandemia. Nesta service line, dividimo-nos em Performance (consultoria em gestão de recursos humanos) e em Mobilidade (área focada nas remunerações e mobilidade internacional, com particular enfoque nas matérias fiscais, parafiscais e migratórias). Por fim, deixo um conselho aos alunos que ainda estão a frequentar a licenciatura de Direito ou até já terminaram: encontrem uma área dentro do Direito (ou não) que vos interesse e motive, sem se prenderem à ideia de que o curso vos direciona obrigatoriamente para a advocacia e magistratura. Esses são, sem dúvida, caminhos cativantes, desafiantes e indispensáveis na sociedade, porém considero pertinente manter os horizontes abertos, sem cair numa frustração de não identificação com esses percursos, que por vezes acreditamos serem os únicos.
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(...) manter os horizontes abertos, sem cair numa frustração de não identificação com esses percursos, que por vezes acreditamos serem os únicos.
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(...) independentemente das escolhas de cada um quanto ao caminho que pretende percorrer há duas chaves fundamentais: o trabalho e a disciplina.(...)
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minha jornada pela Universidade do Minho decorreu entre 2015 e 2019. Foram quatro anos que me permitiram vivenciar tudo aquilo que é esperado. De facto, a Universidade do Minho consegue oferecer o espírito académico tão desejado, consegue fazer a experiência universitária corresponder às expectativas e consegue, ainda, proporcionar as ferramentas necessárias para projetar os seus alunos na vida profissional. Foram quatro anos de enorme desenvolvimento e crescimento, não só académico, mas pessoal também. Guardo este percurso com enorme nostalgia pelos dias aqui vividos, pelas incontáveis memórias, pelos amigos. Os sonhos de justiça levam-nos embora, mas fica sempre a vontade de um dia aqui voltar. Ainda antes de concluir a licenciatura foi necessário perspetivar e decidir o passo seguinte. Foi uma decisão ponderada, mas considerei que o melhor seria enveredar pela Ordem dos Advogados exclusivamente e não candidatar-me a um mestrado em simultâneo, como é prática recorrente. E por duas razões: em primeiro lugar, sabia que aquilo que mais me aliciava academicamente poderia não corresponder ao meu interesse prático (o que sucedeu), pelo que optei por experienciar primeiro e decidir uma área de especialização depois; em segundo lugar, porque sabia que, eventualmente, o fim de um mestrado iria corresponder ao fim do estágio na Ordem dos Advogados e, como tal, iria chegar o momento em que teria de suspender uma das duas situações. Atualmente, sinto que foi, com efeito, a melhor decisão tendo em conta a minha realidade e hoje sinto-me mais capaz de decidir a área em que quero investir para ser a minha especialização. É importante que cada um consiga fazer o exercício de se projetar no futuro e, assim, perceber aquilo em que se idealiza. O fim da licenciatura não tem de significar uma decisão precipitada ou pressionada. É necessário entender que o Direito é, efetivamente, uma área vasta e que temos de tomar isso como uma vantagem e não nos deixarmos influenciar pelo caminho que a maioria opta por seguir. Há um tempo para as situações suced48
1ª edição erem e a melhor forma de compreendermos o que faz sentido para a nossa realidade é ir experimentando. Escolher só mestrado, escolher mestrado e um estágio, escolher só estágio, seja qual for a área, escolher iniciar logo a vida profissional, são tudo decisões perfeitamente válidas e que devem ser tomadas consoante aquilo que for o melhor para cada um. Concretamente abordando a Ordem dos Advogados e o seu estágio, cumpre referir que foi uma agradável surpresa, no sentido em que pude compreender o nível de preparação que a Escola de Direito conferia aos seus alunos. Tive a oportunidade de privar com alunos de outras faculdades do país, nas aulas de formação da OA e folguei em saber que, de facto, a nossa Escola nos proporcionava excelentes ferramentas para podermos vingar profissionalmente. O estágio pode decorrer de diversas formas, umas melhores que outras, mas de um modo geral são sensivelmente meses desafiantes. E sendo desde julho de 2019 advogada-estagiária chego à conclusão de que o estágio é muito aquilo que escolhemos que ele seja. Parte muito de cada estagiário querer ou não querer usufruir dos instrumentos ao dispor para com eles aprender. É importante entender que dificilmente se está à vontade em todas as matérias na advocacia e que há muito estudo e muita pesquisa autónoma e que é uma área de aprendizagem constante. Sobretudo para aqueles que estão a iniciar a sua atividade. Posto isto, resta-me concluir que independentemente das escolhas de cada um quanto ao caminho que pretende percorrer há duas chaves fundamentais: o trabalho e a disciplina. E é com grande satisfação que afirmo que a nossa Escola de Direito é o primeiro lugar onde as vamos desenvolver.
Joana Esteves Silva joanaesilva-44536p@adv-est.oa.pt
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O Nelson Gonçalves nelsondag@hotmail.com
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meu percurso académico pautou-se sempre por uma simbiose entre atividades curriculares e atividades extracurriculares, tendo encontrado no associativismo o melhor meio de ligação entre estes dois mundos. Foi essencialmente através da AEDUM e da AAUM que fui descobrindo a vasta diversidade de atividades em que nos podemos envolver e absorver conhecimentos que vão muito para além de uma sala de aula. Estando eu desde novo ligado ao Desporto, comecei por colaborar com os Departamentos Desportivos de ambas as associações e ingressei por diversos anos letivos na equipa de Futebol 11 da AAUM. No 3º e 4º ano da Licenciatura tive a oportunidade de ser Vice-Presidente da AEDUM com uma equipa fantástica, onde pude experienciar o que é a organização e o funcionamento de uma Associação. Nesse mesmo ano acabei por estar num estágio de Verão numa Sociedade de Advogados onde pude experienciar por um breve espaço de tempo o dia a dia de Advogados e Advogados-Estagiários. No final da licenciatura acabei por entrar numa fase de incertezas naturais em relação ao que fazer a seguir, pois, apesar de nutrir muito carinho pelo curso, ainda não sabia se a escolha subsequente passaria pela tendência generalizada de tirar Advocacia ou procurar oportunidades como Jurista. Nessa fase integrei um programa de Trainees do Novo Banco na área comercial tendo feito recentemente um ano de trabalho. Esta primeira experiência fez-me crescer profissionalmente e perceber as dinâmicas do mundo do trabalho. Para além de trabalhar, senti a necessidade de me especializar numa área que me tivesse interessado na licenciatura tendo ingressado no mestrado em Direito Tributário na Universidade do Minho. Não obstante, encontro-me também inscrito na 1ª fase de estágio da Ordem do Advogados. Toda esta caminhada é feita com bastante perseverança e gosto pelo Direito que deve existir em todos aqueles que passam por este muy
1ª edição nobre curso. O meu conselho a todos os estudantes e futuros juristas que possam estar nesta dúvida existencial passa por não terem medo de escolherem o próximo passo, mas que também estejam prontos para serem persistentes e consistentes em tudo aquilo a que se comprometem.
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O meu conselho a todos os estudantes e futuros juristas que possam estar nesta dúvida existencial passa por não terem medo de escolherem o próximo passo, mas que também estejam prontos para serem persistentes e consistentes em tudo aquilo a que se comprometem.
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etembro de 2013. Começa mais um ano letivo, mas já não em Moimenta da Beira. Apreensiva, lá vai a caloira para a porta da Escola de Direito, sem a mínima noção do que a esperava. É que há aquelas pessoas que se informam previamente sobre o programa letivo do curso para o qual concorrem, há aquelas que vão para onde o destino (leiase, notas) as leva, e há aquelas - eu -, que decidem, com 14 ou 15 anos de idade, que querem estudar Direito em Braga e que querem seguir a Magistratura. E lá fui eu, mochila às costas, uma enorme vontade de conhecer novas gentes, viver novas experiências e começar o meu projeto de vida. Confesso que nunca fui aquela aluna que assistia a todas as aulas. E confesso também que, mesmo quando assistia, não tinha ainda a maturidade suficiente para estar a ouvir e a acompanhar o raciocínio dos Docentes. Penso que se fosse hoje seria diferente. Mas tinha, à semelhança da grande maioria dos meus colegas de então, 18 aninhos e, por isso, faltava-me essa capacidade. Problema: começa o mês de novembro, começam os testes e eu levo com um choque de realidade. É que, até então, achava eu que estava numa viagem de finalistas ou coisa que o valha. Acontece que durante aqueles dois meses de início de ano a matéria foi avançando e fiquei meio que em pânico quando vi no grupo do Facebook da turma colegas a dissertar, com grande entusiasmo e conhecimento, sobre palavras que eu não fazia ideia do que significavam, todas elas começadas por “ju” : jusnaturalismo, juspositivismo, jurisprudência? Foi nesta altura que equacionei - mesmo - desistir do curso. Acordava a meio da noite e só queria fazer as malas e voltar para a minha santa terra. Dizia eu que preferia ser caixa de supermercado, que não tinha capacidades para aprender aquilo tudo. Estava francamente assustada com os testes a bater à porta e eu sem sequer saber que matéria é que era relevante ou não. Fun fact: uma das questões que saiu no primeiro teste de História
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1ª edição do Direito foi-me ensinada à porta da sala, imediatamente antes de começar o teste. Quem nunca, não é verdade? Lá acabei por afastar a ideia da caixa de supermercado e comecei a andar mais atenta ao que se passava nas aulas. Portanto, a partir daí, e salvo raras exceções em que até gostava das matérias abordadas, limitava-me a fazer o que todos, ou quase todos fazem: pegar nos apontamentos de um qualquer colega do ano de 1993 e decorar tudo o que lá estava. A partir de certa altura, as unidades curriculares começam a aproximar-se cada vez mais daquilo que um leigo tem ideia quando pensa no curso de Direito. Por isso mesmo, as coisas começam a tornar-se mais aliciantes (pelo menos, para mim) e mais desafiantes. Começam a surgir os civis, os penais, os processos e, para quem gosta, os administrativos e os fiscais. E ao longo dos quatro anos de licenciatura, a menos que passemos o curso todo completamente desfasados da realidade, começamos a perceber quais são as nossas áreas de interesse, o que é que custa horrores estudar e o que é que até é “giro”. Começamos a ver-nos a desempenhar certas funções, mais ou menos tradicionais. Acaba por ser bom o curso ter mais anos do que o normal, por nos permitir fazer essa mesma introspeção. Na verdade, pessoas há que passam mais de metade do curso a dizer que aquilo não é para elas, a pensar no que hão de fazer da vida e, chegando as unidades curriculares mais específicas, acabam por encontrar algo que lhes abre uma porta de esperança e, até, entusiasmo. Não foi tudo um mar de rosas. O 4.º ano foi, para mim, psicológica e emocionalmente muito desgastante. Não nos era permitido parar. Era acabar um teste, arrumar a secretária e começar, no dia seguinte, a estudar para o próximo. Tudo em conciliação com as aulas, às quais convém mesmo assistir para tornar tudo (muito) mais fácil na hora de estudar. A primeira “ronda” é dura. Depois tudo começa a ser rotina
Rita Faria Leitão rita_gfl@hotmail.com
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e, acreditem, nessas alturas a solução passa mesmo por nos rodearmos dos nossos amigos, estudarmos com eles, tornando assim tudo mais leve (este conselho está sujeito a prazo suspensivo, porque COVID-19). Sensivelmente a meio do 2.º semestre do 4.º ano comecei a procurar Mestrados que fizessem sentido para mim. É que, como se sabe, para ingressar no Centro de Estudos Judiciários é necessário ter grau de Mestre (sendo que, pelo menos este ano, esta exigência se estendeu também a quem entra pela via profissional). Escolhi o Mestrado em Direito Forense e Arbitragem, na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Ensinou-me bastante, apercebi-me do meu amadurecimento enquanto jurista e também me apercebi que aqueles preconceitos que nós, juristas formados na Universidade do Minho, sentimos quando saímos de Braga, são completamente infundados. Nunca me senti menos capaz do que os meus colegas que vinham de todas as outras faculdades de Direito do país. Pelo contrário, apercebi-me que na EDUM se abordam e aprofundam determinadas matérias que nas demais Faculdades passam ao lado, sendo, quiçá, mais teóricas do que a nossa. Já com o diploma de Mestre na mão, começou a maior odisseia da minha curta vida de 25 anos: a preparação para os exames de ingresso na Magistratura. Essa sim, meia solitária. Inscrevi-me num curso de preparação que em muito me ajudou. Foi, no fundo, estudar tudo o que se estuda em quatro anos - e ainda mais -, mas num espaço de meses. A vontade tem de ser muita. A determinação, enorme. O espírito de sacrifício, gigante. Poucos entenderão a vida que tem de levar alguém que se propõe a isto. No meu caso, foi um isolamento e uma despessoalização quase totais, talvez em exagero. Sempre quis dar o meu máximo da primeira vez que tentasse, porque sempre disse que nunca teria tantas ferramentas e vontade como aí. E a verdade é que perto das provas orais, se me perguntassem, diria que nunca na vida voltaria a tentar. Mas todo este sacrifício acabou por valer a pena. Ingressei no Centro de Estudos Judiciários e, na hora da escolha da vertente, acabei por escolher a Magistratura do Ministério Público, algo que nunca sequer tinha equacionado. É que descobri, durante o ano de preparação, que afinal eram as suas funções e as suas áreas de intervenção que faziam os meus olhos brilhar. E aqui estou eu, com outro desafio em mãos. A quem ainda se encontra na primeira fase de formação: aproveitem para a viver ao máximo, para com ela crescerem como pessoas e como futuros profissionais. Aproveitem, porque ao ninho não se volta mais e acreditem, no fim, vai ser só saudade.
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A quem ainda se encontra na primeira fase de formação: aproveitem para a viver ao máximo, para com ela crescerem como pessoas e como futuros profissionais. Aproveitem, porque ao ninho não se volta mais e acreditem, no fim, vai ser só
Saudade.
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E Tiago de Paula Fernandes Carvalho Monteiro tiago_monteiro_1@hotmail.com
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ste breve texto visa, antes de mais, desenvolver os principais pontos relativos ao meu percurso, desde minha passagem pela Escola de Direito da Universidade do Minho, aquela que foi a minha casa durante a licenciatura, desde 2014 até 2018 (que ainda hoje o é, pois ainda me encontro ligado a esta Escola através do Mestrado em Direito dos Negócios Europeu e Transnacional, que frequento), até à minha admissão na Carreira Diplomática, na categoria de Adido de Embaixada, sendo que se trata de uma opinião pessoal, fruto da minha experiência e vivência durante estes últimos anos. À Escola de Direito, bem como aos seus alunos, corpo docente e todo o pessoal a ela afeto, tenho muito a agradecer por ter estado presente durante todo o meu percurso académico e por me ter ajudado durante o meu trajeto até chegar ao patamar onde hoje me encontro. Passei momentos inesquecíveis, num ambiente de proximidade e de amizade não só entre alunos, mas também com Professores e todos aqueles que dela fazem parte e que, de algum modo, contribuíram para o meu desenvolvimento enquanto aluno e pessoa também. Porém, certo é que estes anos são viagem, e, no final da licenciatura, deparamo-nos com inúmeros desafios, desde logo um mercado de trabalho volátil e incerto, no qual faltam oportunidades e onde muitas vezes são exigidas aos recém-licenciados qualificações que estes ainda não possuem, e esta é, quiçá, a maior dificuldade que um recém-licenciado em Direito encontra, a integração no mercado de trabalho. A Escola de Direito da Universidade do Minho, juntamente com a Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho, da qual em tempos fiz parte da direção, têm procurado combater esta dificuldade através de importantes iniciativas que dão a conhecer aos alunos todas as possibilidades de carreira que existem, que vão além das mais “tradicionais” como a Advocacia e a Magistratura. Creio que é importante estarmos cientes de todo o leque de oportunidades que se abre após a licenciatura em Direito e não nos cingirmos
1ª edição a procurar um futuro nas profissões ditas “tradicionais”, mas antes abrir os nossos horizontes e explorar possibilidades de carreira pelas quais possamos ter maior interesse. No meu caso, após a conclusão da licenciatura tive uma breve incursão pela advocacia, onde, enquanto advogado estagiário, pude aprender bases jurídicas que hoje me são importantíssimas para o desempenho da minha profissão. Porém, em meados de 2020, na sequência da abertura de Concurso Externo de Ingresso na Carreira Diplomática, decidi arriscar, e candidatei-me tendo sido, após meses de muito trabalho, estudo e preparação, admitido, e hoje encontro-me na categoria de Adido de Embaixada, a primeira categoria da Carreira. Surgiu, desde logo, inevitavelmente, a derradeira questão: O que é, na verdade, a Diplomacia? Na sábia definição do Embaixador Calvet de Magalhães, a diplomacia é “um instrumento da política externa para o estabelecimento e desenvolvimento dos contactos pacíficos entre os governos de diferentes Estados, pelo emprego de intermediários mutuamente reconhecidos pelas respetivas partes.”. Porém, creio que a Diplomacia é, além de uma profissão, uma missão, que, no caso concreto de Portugal, é essencial para garantir que os seus superiores interesses são acautelados, que as nossas relações com o mundo são cada vez mais estreitas e que a nossa política externa seja forte e baseada em princípios e valores fundamentais. Importa mencionar que a nossa política externa assenta em diversos pilares como o Multilateralismo, a Internacionalização de Portugal e da nossa economia, a relação com as Comunidades e a nossa inserção nos Espaços Europeu, Atlântico e de Língua Portuguesa. Sabemos que a realidade contemporânea das relações internacionais nos coloca inúmeros desafios, vivemos hoje numa sociedade em plena transição digital, em constante mutação, e por vezes, por esse mundo fora, surgem momentos de maior volatilidade, pelo que a Diplomacia tem um papel fulcral na prossecução de todas estas prioridades da nossa política externa. Assim, o acesso à Carreira Diplomática não é, de todo, um processo 57
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simples. Exige espírito de sacrifício, dedicação e muito estudo, pois muitas são as provas que tem que se ultrapassar. Numa primeira fase, o Concurso é constituído por um conjunto de provas escritas que incidem sobre a língua portuguesa, inglesa e francesa, e ainda uma prova de conhecimentos que versa sobre três temas principais, são eles as Relações Internacionais, História e História Diplomática; Direito Internacional Público e da União Europeia; e Política Económica e Relações Económicas Internacionais. Ultrapassada com sucesso esta primeira etapa, que exige um mínimo de 14 valores em todas as provas, exceto a de língua francesa, eis que novas provas surgem, nomeadamente, uma prova oral de conhecimentos e uma entrevista final que visam avaliar o perfil do candidato, os seus conhecimentos, a sua postura, forma de estar e de falar em público e o seu percurso. São provas intensas, que exigem uma minuciosa preparação, mas que versam todas elas sobre elementos essenciais e indispensáveis a uma futura carreira na Diplomacia, pelo que é importante que todos os candidatos, desde início, saibam que se trata de uma carreira prestigiada, honrada, que exige uma enorme versatilidade e capacidade de aprender contínua, aliada a uma capacidade de adaptação às diversas culturas e povos com os quais um Diplomata contacta durante a sua vida profissional. Um Diplomata deve manifestar curiosidade, disponibilidade pessoal e profissional, bem como apuradas competências para se relacionar com qualquer cidadão, pois durante a sua vida terá que exercer tarefas de ligação, de procuração, de mediação, facilitando o contacto entre nações, entre Portugal e as suas Comunidades residentes no estrangeiro, promovendo diálogo e cooperação e procurará harmonizar diversas posições, por mais distintas que sejam, de modo a ultrapassar barreiras e impasses e atingindo compromissos que sejam do interesse não só de Portugal, mas de todos. Certo é que ainda sou recém-chegado a esta minha nova casa que é o Ministério dos Negócios Estrangeiros, porém, entendi desde logo que o exercício da Diplomacia transporta consigo extrema responsabilidade, obriga a um empenho e um compromisso constantes, porém, é necessário ter consciência de que a sua missão é a representação de Portugal, é servir o nosso país e elevar o nosso nome além-fronteiras, o que considero ser uma honra, um privilégio e extremamente gratificante. 58
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Estes anos são viagem – Percurso até à Diplomacia Portuguesa
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PERSONA do latim persona, -ae, máscara, personagem, papel, carácter, indivíduo, pessoa
ONA Entrevista Prof. Doutor Marco Gonçalves
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VOX IURIS Prof. Doutor Marco Gonçalves marcofcg@direito.uminho.pt
Nesta primeira Edição da Revista Vox Iuris tivemos o enorme prazer de entrevistar o Prof. Doutor Marco Gonçalves. Apesar de dispensar apresentações, o Prof. Doutor licenciou-se em Direito pela Escola de Direito da Universidade do Minho, onde atualmente é professor auxiliar. A par disso, exerce o cargo de vice-presidente da Escola de Direito da Universidade Do Minho e é presidente do Conselho Pedagógico da mesma. 62
1ª edição Em primeiro lugar, gostávamos de saber o que o levou a ingressar no curso de Direito? O ingresso no curso de Direito foi uma ambição que tive desde muito cedo. Na verdade, quando, ao longo do meu percurso escolar, era questionado pelos meus professores acerca das minhas perspetivas profissionais futuras, a magistratura era a profissão que, invariavelmente, ocupava um dos lugares cimeiros das minhas preferências. Essa ideia viria a ser fortemente impulsionada na sequência de uma atividade realizada no ensino secundário, a qual consistia na simulação de uma audiência, em que os estudantes, divididos em dois grupos, careciam de apresentar argumentos a favor e contra a admissibilidade da eutanásia no nosso ordenamento jurídico. Foi um trabalho que me marcou muito na minha vida de estudante e que revelou, de forma inequívoca, o desejo de seguir uma formação académica e profissional no domínio do Direito. Direito Processual Civil Declaratório e Direito Processual Civil Executivo eram já, nos seus tempos de estudante, as suas unidades curriculares preferidas? Ou a sua paixão pelo Direito Civil surgiu algum tempo depois? Quando era estudante da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, gostei imenso de todas as unidades curriculares do curso, sendo que, para tal, muito contribuiu a excelência dos professores do então Departamento Autónomo de Direito, cujas aulas despertaram o meu interesse pelos diferentes ramos do Direito. Em todo o caso, dado que, desde muito cedo, tinha como aspiração seguir a carreira da magistratura, as unidades curriculares de índole processual – em particular, o direito processual civil – eram, naturalmente, as minhas unidades curriculares preferidas, porquanto permitiam-me compreender de que forma o Direito era concretamente aplicado nos tribunais.
Enquanto estudante, alguma vez pensou que viria a ser docente na Escola que o formou? Para ser totalmente honesto, não. Como referi anteriormente, sempre pensei em seguir a via da magistratura, pelo que, ainda no decurso da Licenciatura em Direito, procurei inteirar-me das condições e dos requisitos de acesso ao Centro de Estudos Judiciários. Tive, no entanto, a felicidade de ser o aluno com a média de conclusão mais elevada (16 valores) do Curso de Licenciatura em Direito da Universidade do Minho (1999-2004), pelo que, pouco tempo após a conclusão da licenciatura, viria a ser convidado para lecionar as aulas teórico-práticas das unidades curriculares de Direito Processual Civil Declaratório e Direito Processual Civil Executivo, de que a Senhora Prof. Doutora Elizabeth Fernandez era regente. Guardo na memória as palavras que me foram dirigidas pelo Senhor Professor Doutor Heinrich Ewald Hörster no dia em que fui convidado para assumir as funções de docente – então, enquanto monitor – na Licenciatura em Direito e da enorme felicidade que vivenciei nesse momento. Certamente ainda se recorda da primeira vez que entrou numa sala de aula enquanto Professor. Que sensação tomou conta de si nesse dia? A primeira aula que tive o privilégio de lecionar enquanto docente da Universidade do Minho foi no dia 3 de março de 2005, no anfiteatro A5 do Complexo Pedagógico I do Campus de Gualtar, em Braga. Tratava-se de uma aula teórico-prática de Direito Processual Civil Declaratório, a qual incidiu sobre a matéria dos prazos processuais. Os minutos que antecederam o início da aula foram marcados por uma enorme ansiedade e nervosismo, próprios de quem iria pisar, pela primeira vez, o espaço reservado ao docente numa sala de aula, com toda a responsabilidade que tal implicava. Surpreendentemente, à medida que as minhas palavras iniciais foram sendo dirigidas aos estudantes que, atentamente, me escutavam, a ansiedade e o nervosismo rapidamente deram lugar a um senti63
VOX IURIS mento de tranquilidade e de segurança. Quando terminei essa aula, percebi claramente que a minha verdadeira vocação era a docência no ensino superior, pelo que a ideia da magistratura foi imediatamente relegada para um segundo plano. O que sente ao saber que teve influência na vida profissional de tantos alunos? Sinto um enorme orgulho, mas também uma grande responsabilidade. Orgulho, porque, invariavelmente, sinto que fiz parte da formação académica dos meus alunos, o que, sem margem para dúvidas, constitui o aspeto mais gratificante da vida de um docente universitário. Foi essa, aliás, a razão pela qual viria a dedicar a todos os meus alunos as minhas Lições de Processo Civil Executivo. De resto, ainda hoje, continuo a receber mensagens de antigos alunos, colocando-me dúvidas de direito processual civil que lhes surgem no contexto das suas atividades profissionais, o que constitui motivo de particular alegria e satisfação. Por outro lado, comungo de um sentimento de enorme responsabilidade. Com efeito, enquanto docente, sou igualmente corresponsável pela adequada formação dos estudantes da Escola de Direito da Universidade do Minho, sendo certo que a elevada competividade do mercado de trabalho, em particular no domínio jurídico, reclama que estes se encontrem bem preparados para se afirmar como profissionais altamente qualificados. Qual foi a parte mais difícil de conjugar a docência com a advocacia? A maior dificuldade na conjugação da docência com a advocacia traduziu-se, indubitavelmente, na falta do tempo necessário para o adequado exercício, em simultâneo, dessas suas atividades profissionais. Na verdade, tanto a advocacia, como a docência universitária, exigem uma enorme disponibilidade de tempo, bem como uma elevada dedicação e responsabilidade, o que, na minha opinião, torna muito difícil – ainda que não impossível – a adequada compatibilização entre essas duas atividades. Foi essa a razão pela qual decidi, em 2017, suspender voluntariamente a minha inscrição, como advogado, na Ordem dos Advogados, por forma a conseguir dedicar-me, em exclusivo, à docência e à investigação. Quatro anos volvidos, não me arrependo minimamente da decisão então tomada. Bem pelo contrário, tenho agora a certeza de que essa foi a opção certa. Em todo o caso, não posso deixar de reconhecer que a passagem pela advocacia, durante onze anos, foi muito importante para complementar a minha formação jurídica e académica, em particular no domínio do Direito Processual Civil, já que a experiência do foro permitiu-me adquirir uma visão prática do processo civil, a qual, por vezes, não tem correspondência efetiva com aquilo que, teoricamente, resulta da legislação processual civil.
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1ª edição A meio de uma pandemia foi eleito vice-presidente da Escola de Direito e, a par disso, é, ainda, presidente do Conselho Pedagógico. Sente uma responsabilidade maior em desempenhar estes cargos tendo em conta o contexto atual? Na minha perspetiva, o exercício de cargos de direção ou de gestão implica, pela sua natureza, uma enorme responsabilidade, independentemente do âmbito ou do contexto em que tal exercício é assumido. No que em particular se refere à presidência do Conselho Pedagógico, que assumi no dia 7 de abril de 2020 – data da tomada de posse da nova Presidência da Escola de Direito da Universidade do Minho – julgo que essa responsabilidade resulta particularmente acrescida, não só pela importância das competências que são atribuídas a este órgão, mas sobretudo pela excelência e pela enorme elevação com que a Senhora Prof. Doutora Cristina Dias conduziu os destinos do Conselho Pedagógico ao longo dos últimos anos. A este respeito – e por uma questão de elementar justiça –, não posso deixar de agradecer o apoio inexcedível e incondicional prestado pela Senhora Prof. Doutora Cristina Dias na adaptação às novas funções que me foram confiadas. Por outro lado, escusado será dizer que a situação pandémica trouxe, por si só, novos desafios a que se tornou necessário dar resposta, tal como sucede, por exemplo, com a organização dos turnos das aulas presenciais, com a gestão dos espaços pedagógicos, com a planificação e gestão das provas de avaliação em regime presencial e não presencial, bem como com a necessidade de se garantir o acompanhado dos estudantes em situação de quarentena ou de isolamento profilático por determinação das Autoridades de Saúde. A adequada resposta a esses desafios só foi e continua a ser possível em virtude do enorme esforço desenvolvido por toda a Escola de Direito, particularmente dos seus docentes, funcionários, estudantes e respetivas associações, pelo que gostaria de aproveitar a oportunidade para deixar uma palavra de agradecimento e de apreço.
Na sua opinião, a reinvenção de que o ensino foi alvo durante a pandemia poderá reinventar o ensino do futuro? Acredita que a tecnologia não tem de ser um inimigo do ensino? A matriz do ensino da Universidade do Minho assenta, fundamentalmente, num modelo presencial. Sob esta perspetiva, entendo, pessoalmente, que o modelo presencial é absolutamente essencial para se garantir uma adequada formação dos nossos estudantes. Com efeito, a presencialidade do modelo de ensino garante a adequada imediação na transmissão e na aquisição dos conhecimentos, bem como uma maior proximidade no acompanhamento dos estudantes, a qual assume particular relevância não só nas aulas teóricas, como, sobretudo, nas aulas teórico-práticas. Paralelamente, julgo que, dependendo da metodologia de avaliação adotada, o regime presencial é importante para garantir a adequada integridade e transparência dos processos de avaliação das aprendizagens. Em todo o caso, é inegável a constatação de que a pandemia, apesar de ter trazido inúmeras dificuldades ao processo de ensino e de aprendizagem, teve a vantagem de permitir demonstrar as potencialidades da tecnologia quando colocada ao serviço do ensino. Registe-se, a este respeito, que a Universidade do Minho cuidou, durante o último ano, de desenvolver dezenas de ações de formação, direcionadas, essencialmente, para os docentes, tendo em vista a implementação de novas tecnologias de informação nas atividades letivas, as quais permitam mitigar as dificuldades e os constrangimentos decorrentes do distanciamento físico entre os docentes e os estudantes. Consequentemente, entendo que, uma vez ultrapassada a atual situação pandémica, será importante fazer uma reflexão sobre os eventuais benefícios decorrentes da implementação da tecnologia ao serviço do processo de ensino e de aprendizagem, particularmente no que diz respeito ao acompanha-
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VOX IURIS mento dos estudantes fora do contexto da sala de aula, à criação e disponibilização de novos materiais de apoio pedagógico, bem como a implementação de cursos em regime de b-learning. Qual é a situação que encara como o seu maior desafio em termos profissionais? Neste momento, o meu maior desafio em termos profissionais traduz-se, inequivocamente, na vice-presidência da Escola de Direito e na presidência do Conselho Pedagógico – desde logo pela enorme responsabilidade que tal representa – sendo que procurarei continuar a servir, da melhor forma possível, os interesses da Escola de Direito da Universidade do Minho, particularmente na sua dimensão pedagógica. Se pudesse mudar alguma coisa no paradigma do ensino superior, o que seria? Se pudesse mudar algo, alteraria o modelo de progressão na carreira docente universitária, já que tal é absolutamente essencial para se garantir uma maior motivação pessoal e profissional no exercício das atividades de ensino e de investigação. De entre as várias escolas de Direito existentes neste país, em que patamar coloca a Escola de Direito da Universidade do Minho? Os dados estatísticos disponíveis – os quais, por si só, permitem afastar quaisquer dúvidas quanto à eventual falta de isenção e de imparcialidade de que poderia ser facilmente acusado – revelam à saciedade que a Escola de Direito da Universidade do Minho ocupa atualmente um lugar cimeiro no panorama da formação jurídica nacional. Com efeito, basta verificar que, nos últimos anos, as Licenciaturas em Direito e em Criminologia e Justiça Criminal têm vindo a registar sucessivamente as classificações mais altas de candidatura ao nível nacional, o que, concomitantemente, se reflete na elevada qualidade dos nossos estudantes. Do mesmo modo, os cursos de mestrado e de doutoramento registam anualmente uma elevada procura de estudantes nacionais e internacionais, o que, associado à implementação de critérios rigorosos de admissão e de seleção, tem vindo a traduzir-se na produção de dissertações de mestrado e de teses de doutoramento de altíssima qualidade. Importa, por outro lado, salientar a existência de um corpo docente altamente qualificado e especializado, o que fica bem demonstrado pelo facto de a Universidade do Minho ter ficado classificada no intervalo [101-150] da lista das melhores universidades mundiais e no 1º lugar no contexto nacional na área (subject) – “Law” – da edição 2020 do Ranking de Shanghai. Ademais, não se pode ignorar que a qualidade do ensino da Escola de Direito tem vindo a ser sucessivamente reconhecida em função dos resultados de acesso dos nossos estudantes às diferentes ordens profissionais e à magistratura. Por último, há a salientar a crescente afirmação nacional e internacional do centro de investigação da Escola de Direito (JusGov), o qual, na última avaliação promovida pela FCT, mereceu a classificação de “Muito bom”.
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1ª edição A entrada no mercado de trabalho é uma etapa cada vez mais difícil. Que competências considera que um aluno de direito deve ter de forma a contrariar esta crescente dificuldade? É um facto que o mercado de trabalho é, cada vez mais, competitivo. Ciente dessa realidade, julgo que a afirmação dos nossos estudantes no mercado de trabalho tem vindo a ser garantida por força da elevada qualidade da formação assegurada pela Escola de Direito. Em concreto, há a assinalar a circunstância de os cursos oferecidos pela Escola de Direito apresentarem uma estrutura curricular bem organizada, o que, associado à elevada qualificação do seu corpo docente, permite que os nossos estudantes adquiram conhecimentos sólidos não são nas áreas tradicionais do Direito, como também em novos domínios jurídicos. Nessa exata medida, julgo que a Escola de Direito tem vindo a dotar os nossos estudantes das competências necessárias para conseguirem uma adequada integração no mercado de trabalho, sendo de salientar as médias elevadas de conclusão dos diferentes ciclos de estudos. Por último, importa realçar o trabalho de excelência que tem vindo a ser desenvolvido pelo Gabinete de Saídas Profissionais no apoio concedido aos nossos estudantes no ingresso no mercado de trabalho, particularmente ao nível da realização de workshops, da divulgação de ofertas de trabalho e da organização de feiras de emprego.
Neste particular, gostaria de salientar a excelente imagem institucional das associações de estudantes da Escola de Direito, a sua estreita colaboração com o corpo docente e com os órgãos de gestão, bem como o seu contributo absolutamente decisivo para o crescimento e a afirmação da nossa Escola.
Na sua opinião, qual é o papel que uma associação de estudantes deve assumir na representação dos alunos? A associação de estudantes desempenha um papel absolutamente essencial na representação dos estudantes, fundamentalmente no que diz respeito à defesa dos seus interesses, à promoção da sua formação académica e pessoal – maxime através da organização de cursos, conferências e ações de formação – bem como à interação com os órgãos de direção e de gestão da Escola de Direito e da Universidade. 67
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RGA do latim expressão usada para designar algo que se aplica a todos. 68
1ª edição
ERGA
OM OMNES
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Legislador És Tu! Um pé no RGPD, outro no Futuro 1. Agradecimentos e âmbito de realização do projeto A ADEUM – Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho – é a estrutura representativa de centenas de estudantes do curso de Direito. Atenta a abrangência da Licenciatura em Direitos e as múltiplas portas que se podem abrir, os desafios que o futuro é capaz de trazer conhecem contornos variados, nem sempre expectáveis ou previsíveis. Na verdade, e convergindo com o objetivo de gerar jovens juristas mais conscientes e capazes de assumir uma posição crítica quanto ao Direito já constituído, considera-se de importante relevo suscitar o pensamento sobre o Direito e debater construções jurídicas, em prol da evolução do quadro normativo. A interpretação e argumentação não existem apenas por si só, mas pelo trabalho que se faz ao desenvolvê-las e praticá-las e, sem dúvida, que foi este o ponto pedagógico sobre o qual a Associação, mais concretamente o Departamento Pedagógico, debruçou. Fruto deste pensamento, surgiu o projeto ‘’O Legislador És Tu!’’, que assumiu como ponto de partida para a discussão o Princípio do Estado de Direito. Mais concretamente, através do projeto, procurou-se pensar sobre as boas práticas de formação das normas jurídicas, que convocam a segurança jurídica na vertente que se reconduz à clareza, percetibilidade e determinabilidade. Deste modo, o projeto foi dividido em três campos de atuação. Primeiramente, promoveu-se o pensamento livre sobre a temática em apreço: proteção de dados e a garantia dos direitos fundamentais. Em seguida, procurou-se analisar as diferentes disposições legais para analisar o impacto sistémico destas normas, desenvolvendo competências de gestão de informação. Por fim, deu-se ênfase ao espírito crítico através de juízos e adaptações normativas a situações que, atualmente e futuramente, poderão colocar em causa a matéria versada. Na verdade, apesar de os presentes escritos não assumirem uma pretensão de exaustividade no que toca ao tratamento da questão relativa à proteção de dados, existiu a intenção de deixar, por escrito, as principais conclusões a que se chegou. Em nome de toda a equipa e da AEDUM, manifesta-se especiais agradecimentos à Professora Doutora Andreia Barbosa, docente na Escola de Direito da Universidade do Minho, pelo apoio, orientação e rigor científico. Ao Doutor Francisco Chilão Rocha, advogado estagiário na PLMJ, agradece-se pelos ensinamentos prestados, tempo e dedicação na formação para uma maior contextualização deste tema geograficamente, temporalmente e juridicamente. À NOVA Advogados, em especial, ao Dr. Rui Neves Ferreira e à Dra. Sofia Mesquita Guimarães, agradece-se pela enorme disponibilidade e atenção dadas na revisão final do artigo promovendo uma melhor e concreta exposição da temática. A AEDUM expressa o maior reconhecimento a todos os colegas de trabalho e participantes que mostraram a maior dedicação neste projeto e sem os quais não seria possível, destacando assim o nome de todos os autores do artigo: Eduarda Peixoto (2º ano), Ana Lomba Correia (3º ano), Ana Rita Guimarães (3º ano), Beatriz Pereira (3º ano), Catarina Lêdo (3º ano), Maria João Alves (3º ano), Tiago Vidal (3º ano), Eduardo Paiva (4º ano). Um obrigado especial ao Presidente da AEDUM, André Teixeira, pela sua contribuição para a realização deste artigo. Departamento Pedagógico, Pasta Participação Estudantil, Catarina Lêdo, XXIV Direção AEDUM
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1ª edição 2. Notas introdutórias O conceito de proteção de dados foi desenvolvido a partir do direito de privacidade introduzido por Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis em “The Right to Privacy” publicada em dezembro de 1890 na Harvard Law Review que, à época, sem grande acolhimento pelos pares, se demarcou da jurisprudência anglo-saxónica, por considerar que a proteção da esfera jurídica do indivíduo não se bastava na proteção da propriedade privada devendo essa proteção ser alargada à reserva da vida pessoal e familiar do indivíduo, à sua privacidade. No século XIX Warren e Brandeis debruçaram-se sobre as ameaças que, por exemplo, a introdução da máquina fotográfica no quotidiano causou aos direitos dos indivíduos e o Direito adaptava-se a uma nova realidade. Ora, o Direito, que não deixou de se manter a par da dinâmica da evolução tecnológica, propõe-se, nos dias de hoje, a regulamentar a atividade comercial digital protegendo a integridade e a privacidade dos indivíduos quando está em causa o tratamento e livre circulação dos seus dados pessoais. Décadas depois da jurisprudência inglesa e norte-americana começar a reconhecer o “right to privacy” que se veio a consolidar como um princípio de common law, emergiram as primeiras leis de proteção de dados. É introduzida no ordenamento jurídico europeu a Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995 que, pese embora, tenha constituído um grande avanço na proteção de dados das pessoas singulares, manifestava uma necessidade de harmonização legislativa no que diz respeito à Proteção de Dados em todos os Estados integrantes da União Europeia e do Reino Unido. Deste facto culminou, em 25 de maio de 2018, a implementação do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) na UE, que revogou a Diretiva 95/46/ CE. O Regulamento 2016/679 redigido pelo Parlamento Europeu estabeleceu as traves mestras no que respeita à proteção, tratamento e livre circulação de dados pessoais das pessoas singulares em todos os Estados-membros da UE. O regime do RGPD aplica-se a todas as pessoas singulares e coletivas residentes na UE (ainda que possam estar sediadas fora dela) que realizem o tratamento de da-
dos pessoais. O diploma encontra o seu fundamento legal para a proteção dos dados (1) no artigo 16.º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, que estipula que ’’Todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pessoal que lhes digam respeito’’; (2) nos artigos 7º e 8º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que dispõe no mesmo sentido e avança ainda, no artigo 8º/2 que “Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações” e que “dados devem ser objeto de um tratamento leal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento legítimo previsto por lei. Todas as pessoas têm o direito de aceder aos dados coligidos que lhes digam respeito e de obter a respetiva retificação”; e (3) no 8º artigo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que estabelece que “Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”. É possível deduzir que o RGPD tem como um dos seus objetivos a proteção do direito fundamental do sujeito à privacidade, tal como consta do artigo 2º/2 “O presente regulamento defende os direitos e as liberdades fundamentais das pessoas singulares (…)”. O tratamento de dados deverá sempre espelhar os princípios consagrados no artigo 5º do RGPD, o princípio da licitude, lealdade e transparência do tratamento de dados. Os direitos dos titulares dos dados estão consagrados entre os artigos 12º e 21º, e incluem o direito à informação, o direito ao acesso aos dados e o direito à portabilidade dos mesmos. O RGPD apresenta-se com uma abrangência mais ampla do que o diploma que revoga, uma vez que, além de afetar os países da UE, afeta empresas com sede e atividade no exterior do território da União, que fornecem bens e serviços a pessoas residentes no seu território. Também o conceito de dados pessoais é agora mais amplo, incluindo os dados de localização e os identificadores por via eletrónica, os dados genéticos, biométricos e dados relativos à saúde do sujeito. Acresce o reconhecimento de novos direitos como o direito ao esquecimento por parte das entidades que efetuam o tratamento de dados pessoais. Introduz, também, a figura do encarregado de proteção de dados que tem como funções infor71
VOX IURIS mar e aconselhar o responsável pelo tratamento dos dados sobre as suas obrigações e, para além disso, aconselhar sobre as políticas da proteção dos dados pessoais sendo o ponto de contacto entre a organização que efetua o tratamento dos dados e a autoridade nacional de controlo. No panorama nacional, já em 1976, Portugal tornava-se o primeiro país do mundo a consagrar o direito à proteção de dados na Constituição, plasmado no artigo 35.º com a epígrafe “Utilização da Informática”, que já estatuía o direito dos cidadãos ao acesso e ao tratamento transparente dos dados informatizados que lhes digam respeito e proibia o tratamento de dados relativos a posições políticas, filosóficas e religiosas sem o consentimento expresso do titular. 3. Big Techs e os desafios da regulamentação Vivemos numa época fortemente marcada pelo digital, em que muito do que fazemos advém de plataformas tecnológicas e das suas funcionalidades, desde obrigações profissionais a entretenimento pessoal, passando pelo estabelecimento de relações interpessoais. No mundo do estímulo imediato, o “hoje” é definido por uma insanável sequência de tarefas, informações e dados que nos permitem um domínio inédito da forma como experimentamos a realidade, em troca de tempo que permita que esta seja apreciada adequadamente. Assim, e estando a atual condição humana dependente destes instrumentos, aparentemente de forma irremediável, como poderemos assegurar a segurança dos nossos dados e dos direitos fundamentais atribuídos pelas nossas democracias? Numa era em que a quantidade de dados pessoais armazenados e transacionados como produtos é todos os dias maior, em que a segurança é sacrificada em nome da comodidade e as soluções legais parecem não conseguir acompanhar a velocidade da rede, temos pela frente um desafio civilizacional considerável. Se a mercantilização de dados poderia ser até agora ignorada por aqueles que não a consideram um problema, cremos poder afirmar que esse momento passou. Conseguiremos introduzir legislação mais rigorosa que consiga vincular o poder político às preocupações democráticas, ou seremos vítimas da lenta mas inevitável marcha da mercantilização das pessoas humanas? Para o sabermos, 72
há que explorar o problema, a origem da situação, quais os principais atores e desafios jurídicos associados, e, finalmente, procurar aspirar atingir um rascunho de solução, uma luz ao fundo de um túnel de dopamina cibernética. A União Europeia, assente nos pilares da união económica no desenvolvimento do mercado livre europeu e no respeito pelos direitos fundamentais, encontra a sua democracia verdadeiramente testada quando confrontada com a inevitabilidade da atividade de determinado tipo de empresas do mercado digital dentro do seu território. É nessa interação - entre os princípios basilares comuns aos Estados-membros e os novos atores do mercado digital - que surgem algumas das problemáticas que serão aprofundadas ao longo deste artigo: deve o Direito Europeu ser reforçado a fim de proteger os bens jurídicos da privacidade, do direito à informação e da segurança? Será que restringir legalmente a atuação destas empresas causa um dano económico capaz de colocar em risco o bom funcionamento do mercado europeu? Ou, pelo contrário, a mera existência destas novas figuras, comummente designadas por big technologies companies, que operam em grande parte através da colecta de Big Data, coloca em risco a capacidade de entrada no mercado por outras entidades e, por conseguinte, a liberdade que deveria ser inerente ao mesmo? Importante será, também, fazer o escrutínio de casos individuais desta matéria que impactaram a sociedade, projetar soluções para o futuro e refletir sobre se esta será uma questão de ocasiões mediáticas que abalaram o mundo, ou sobre a estrutura inerente ao próprio funcionamento destas entidades e do setor do mercado onde atuam. 3.1 O Conceito de Big Data Por Big Data entendemos o grande volume de dados estruturados gerado a cada segundo por todos os dispositivos conectados à rede. Apesar de a criação de grandes quantidades de dados não ser nada de particularmente novo, o que veio revolucionar a área e exigir uma denominação própria foi a normalização de dispositivos móveis e a integração de componentes informáticos em várias ferramentas do dia a dia, no âmbito da Internet of Things, ou a integração de componentes digitais nas ferramentas analógicas
1ª edição tradicionais do dia a dia. É a possibilidade de cruzar esses dados através de algoritmos de análise que permite a obtenção de informações de mercado que provêm diretamente dos consumidores, extraindo o que eles estão a pensar, dizer e sentir. É possível prever e detetar insatisfações, desejos, necessidades e, portanto, oportunidades de negócio. Análise de dados assegura que determinados produtos possam ser criados especificamente para certos setores de mercado que sabemos que existem, evitando apostas em produtos dúbios e maximizando o lucro. Tudo isto funciona com o propósito único de gerar valor para uma empresa, que o possa utilizar para atrair mais clientes, que por sua vez geram mais valor, num ciclo perpétuo em que o utilizador é simultaneamente o cliente e o produto. Big Data torna-se um fim em si mesma, e é o principal fruto das redes sociais que se alimentam desta, crescendo suficientemente para originar um monopólio tecnológico. São várias as grandes multinacionais que possuem um modelo de negócio baseado na comercialização de Big Data. Destas, as Big Techs são o conjunto de empresas que dominam o sector tecnológico na economia norte-americana, tendo um campo de atuação que se estende por todo o Mundo. Estas “big technological companies” são de número limitado, numa lista taxativa que inclui a Apple, Google, Facebook, Amazon e a Microsoft. Operam no mercado das plataformas digitais, onde fornecem serviços que ligam compradores, vendedores, utilizadores, criadores de conteúdo, consumidores e publicitários. Esses serviços vão desde motores de busca e redes sociais, até ao e-commerce, publicidade digital e app stores. As suas funcionalidades melhoradas e a velocidade da Internet fez destas plataformas supereficientes, sendo que o seu lucro incentiva outras a entrar no mercado. No entanto, apenas algumas o dominam. Isto permite-nos apontar um dos problemas associados às Big Techs: os seus programas de aquisição que diluíram o processo natural do mercado competitivo, com casos de empresas a entrar neste, com o mero propósito de serem adquiridas, visto que não existe outro destino plausível para as mesmas. Assim, a expansão sem limites dos últimos anos das Big Techs está intimamente ligada à sua recente onda de compras e à perseguição de pequenas empresas, que configuram potenciais competitivas e que, sendo ou eliminadas ou agregadas ao “peixe grande”, fortalecem um monopólio já anteriormente dominado. Concretamente, sabe-se que a Google adquiriu 270 empresas desde 2001 (incluindo Android e Youtube), a Microsoft registou 100 aquisições (como o Linkedin e Skype) e o Facebook agregou ao seu império 90 empresas, na sua maioria startups (destacando-se, entre elas, o Instagram e o Whatsapp). Ao mesmo tempo que controlam completamente o mercado, – num fenómeno muito bem resumido pelo Tribunal de Contas da União Europeia: – “As big tech competem por um mercado e não num mercado, levando a resultados “winner-takes-all” –, está-lhes associada uma segunda questão relacionada com o respeito da legalidade e dos direitos fundamentais dos utilizadores. Pela reescrita constante dos seus termos e condições associados ao uso do serviço, conseguem fazer uma colheita e venda da informação dos próprios utilizadores dos mesmos. Isto porque operam em dois mercados principais: um virado para o consumidor de serviços online e o outro para a publicidade. A fim de se manterem dominantes em ambos, devem manter a sua plataforma desejável para os utilizadores de modo a gerarem “user traffic”. Ora, o efeito da network e dos dados reforçam o seu poder mesmo com a ascensão de novos produtos no mercado. Assim, os dados ficam a funcionar como poder que torna viável abranger os mercados e a lei. Concomitantemente, a força do músculo legal não tem sido suficiente em matérias de copyright, registo de marca (trademark) e ações “antitrust”. As Big Techs continuam a ganhar no braço de ferro relativo a estes temas dentro da própria 73
VOX IURIS União Europeia. Já fora deste território, conseguem até conquistar o privilégio do não esquecimento dos dados dos utilizadores. Chegados a este ponto, é facilmente constatável que, ao longo dos anos, estas empresas da tecnologia, que contêm os produtos e serviços mais consumidos no Mundo, têm enfrentado inúmeros desafios legais, tanto pela UE, como por outros entes, nomeadamente pelos EUA. Embora muitas destas ações, investigações e multas tenham fundamento na sua estratégia anticompetitiva, outros escândalos foram associados a estas empresas, nomeadamente em matéria de proteção de dados. Neste sentido, é muito interessante referirmos, mesmo que de forma concisa, o mediático escândalo da Cambridge Analytica (CA), tanto pelos interesses em causa, como pelas consequências que arrastou consigo, sejam elas no plano internacional, como também no plano individual de cada uma das mais de 87 milhões de pessoas atingidas. Comecemos por apontar que a CA foi uma empresa privada de consultoria estratégica com fins de exploração e escrutínio da dados, vocacionados para fins eleitorais, tendo participado em várias campanhas políticas, nomeadamente a conhecida e tão noticiada campanha presidencial de 2016 de Donald Trump, nos EUA, assim como a campanha da fação oposta à manutenção do Reino Unido na UE na altura do referendo do Brexit. Chega a ser curioso e assustador a forma como foram recolhidas as informações: num esquema que alegava a colheita de dados, através de um teste de personalidade pago, com fins académicos, foi usado um algoritmo que cruzou os dados dos milhões de utilizadores, pertencentes à rede de amigos dos participantes, criando perfis psicológicos com base na sua personalidade, preferências, contactos, extratos bancários, desejos, anseios. Posteriormente, através dessas informações referentes à identidade dos utilizadores, os mesmos foram agrupados de acordo com as suas personalidades, das quais era possível inferir as suas preferências políticas, não tendo os utilizadores conhecimento do uso dos seus dados pessoais para fins eleitorais, sendo esta uma inegável deturpação do consentimento dos participantes. Através destes dados, foi possível influenciar a opinião de eleitores em variadíssimos momentos eleitorais. Primeiramente, no 74
estudo das suas preferências políticas e da melhor forma de os persuadir; depois, numa estratégia publicitária de micro-targeting, que fazia variar a publicidade de acordo com o perfil psicológico traçado. Este esquema foi operacionalizado através da rede social Facebook que, embora conhecesse a recolha indevida de informações, não foi capaz de proteger os seus utilizadores desta violação da sua segurança permitindo não só que a CA recolhesse informação pessoal dos utilizadores, que tinham dado uma espécie de consentimento desinformado para o “estudo académico”, mas, ao mesmo tempo, da sua rede de amigos, atingindo um número exponencial de utilizadores. Esta atuação tornou claro que tanto o grupo de empresas ligadas ao tratamento de dados, como as que atuam sobre plataformas digitais, podem constituir uma verdadeira ameaça global à democracia, tendo incitado um movimento público que questionou a ética da empresa, as garantias pessoais de milhões de cidadãos, o perigo da desinformação no mundo digital e os direitos dos consumidores nestas plataformas. Não foi só o fecho da CA a única consequência de todo este caso: a constatação de que o mesmo era apenas um num universo infinito de práticas de colheita de dados e violação de confidencialidade realizadas através de plataformas digitais, fez o mundo colocar em questão os limites da ética existentes na mais recente novidade do nosso sistema económico: a monetização de dados pessoais. Para além disso, muitas questões sobre a resolução do problema foram colocadas em cima da mesa, muitos apontando para uma estratégia política de reforço do músculo legal relativamente à matéria que fosse para além da proteção já oferecida pelo direito da União Europeia. 3.2. As introduções que o RGPD trouxe para a realidade tecnológica É neste âmbito que surge o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), tão relevante na caracterização daquilo que tem vindo a ser atualmente a realidade europeia. É de assinalar que este diploma passou a conferir maior amplitude, como já aqui foi referido, ao conceito de dados pessoais, além de consagrar o direito ao esquecimento, reforçar regras especiais para menores, assim como a noção de
1ª edição consentimento e, por consequência, aumentar as obrigações das organizações, nomeadamente, no dever de comunicar quebras de segurança por parte das entidades e na avaliação obrigatória da proteção de dados, no caso de tratamento de dados pessoais suscetíveis de colocar em risco Direitos Fundamentais Esta análise permite-nos entender que o RGPD constitui, na história da proteção de dados, um marco significativo e de rutura entre o outrora período de proteção insuficiente e um presente de reconhecimento da importância da proteção de direitos fundamentais suscetíveis de violação nesta nova era do digital. É principalmente através das exigências de Transparência (art.12º), Informação (arts.13º-14º), Retificação (art.16º), Direito a ser esquecido (art.17º), Oposição (art.21º), constantes no diploma, assim como as coimas avultadas no caso de incumprimento das normas em vigor (matéria que, em todo o caso, será analisada em artigo mais à frente), que o RGPD passou a garantir alguma segurança aos cidadãos europeus. Isto dito, podemos concluir que, no geral, as empresas que tratam dados pessoais tiveram de se adaptar a uma nova realidade emoldurada por um novo paradigma legal. No entanto, não podemos deixar de assinalar que, embora as grandes empresas das plataformas digitais, que subsistem através do tratamento massivo de dados pessoais, tenham igualmente procedido a uma certa adequação ao RGPD, a verdade é que os casos problemáticos nesta matéria continuaram a ser recorrentes, havendo até múltiplos casos de violação do próprio regulamento. Há que notar que o Facebook acabou por fazer uma adoção global de muitas das normas do RGPD, após resistência inicial à iniciativa europeia. A este ponto, é provável que o leitor se depare com as mesmas inquietações que as autoras e os autores do artigo encontraram. Sendo o RGPD crítico no combate a abusos do sistema atual, e sendo os seus impactos verificáveis quando utilizado de modo adequado, porque é a sua eficácia tão reduzida na resposta às iniciativas abusivas por parte de empresas tecnológicas? Uma possível explicação poderá ser a ausência de celeridade na aplicação das normas, algo endémico da burocracia europeia mas que ultrapassa a própria máquina da UE, visto o combate realizado à aplicação destas normas por parte de lobistas e empresários ser feroz e constante. Assim, deverá ser encontrado um ponto médio entre a complexidade e a celeridade que permita uma melhor resolução de conflitos, diminuindo as oportunidades para disrupção externa. Assim sendo, acreditamos que, para o bem de uma Europa onde não reine a impunidade, é necessário apontar a falta de celeridade nos processos, embora que muitas vezes em contrapeso com a complexidade dos casos. Em concreto, podemos constatar que o caso da Amazon relativo ao processo de utilização abusiva de dados no marketplace precisou de mais de dois anos até ser formalizado; ainda não foi fechado este capítulo e outro processo foi já recentemente aberto. Em causa está a utilização dos dados da atividade de vendedores concorrentes para o benefício desta empresa. Para além desta questão, devemos repensar sobre se devem ou não entrar nesta equação outras propostas jurídico-normativas, mais especificamente vocacionadas para a regulação dos serviços digitais. Quanto a este ponto, constatamos, otimisticamente, que recentemente surgem duas propostas no seio da Comissão Europeia, que iremos depois analisar. Adiantamos, desde já, que aplaudimos estas medidas que poderão ter um impacto importantíssimo na vigilância dos mercados e na clareza dos mesmos e, principalmente, a contínua discussão de propostas nesta matéria, que poderão aperfeiçoar os mecanismos já existentes.
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VOX IURIS 3.3. As propostas legislativas atuais No dia 15 de dezembro de 2020, a Comissão Europeia propôs dois pacotes legislativos, um para aumentar a concorrência no digital (Digital Markets Act) e outro para regular a atividade das Big Tech (o Digital Services Act). É a este último que vamos prestar mais atenção, por agora, principalmente no que toca a desafios que a presença das grandes tecnológicas tem trazido, mais concretamente, em relação à grande detenção de dados e o seu consequente papel na venda de produtos, e em relação ao funcionamento quase secreto dos seus algoritmos. Com a manifestação cada vez mais premente das Big Tech no seio da sociedade, vieram com elas o aumento da proliferação do discurso de ódio, pelo que há uma grande necessidade de controlo destes conteúdos nocivos que desrespeitam, regra geral, direitos fundamentais. Existe, ao mesmo tempo, uma desvirtualização da verdade e dos factos, com o aumento das notícias falsas que se espalham nos espaços digitais criados por estas grandes tecnológicas. Face a esta necessidade, a proposta referida vem propor um maior leque de obrigações a empresas, como o Facebook e a Google, com o objetivo de as mesmas serem responsáveis por garantir meios de “policiamento” relativamente a estes tipo de conteúdos. Este “policiamento” concretiza-se na introdução de procedimentos de notificação e ação para conteúdos ilegais e na criação de mecanismos em que o utilizador possa ter um papel neste processo, nomeadamente, através da possibilidade de contestar as decisões de moderação dos mesmos conteúdos. Esta proposta legislativa avança ainda com a implementação de medidas de transparência para as plataformas digitais, quanto ao comércio e à publicidade a que elas estimulam. Assim, esta proposta enquadra a necessidade de as plataformas assegurarem uma maior transparência. Isto concretiza-se a partir da implementação de verificações relativas aos comerciantes que vendem os seus produtos através destas plataformas, para garantir que o consumo é feito dentro das balizas de legalidade. Mas o Digital Services Act não fica por aqui. Também vai exigir às grandes tecnológicas que assegurem, ao mesmo tempo, transparência em relação à forma como estas selecionam os conteúdos que são apre76
sentados aos utilizadores das plataformas digitais. É aqui que se insere uma grande inovação que acabará, se for implementada, por desmistificar o secretismo que rodeia o funcionamento dos algoritmos destas plataformas. No entanto, perguntamo-nos: o que são, concretamente, as grandes plataformas tecnológicas? O Digital Services Act trata de nos responder apresentando como conceito destas plataformas aquelas que são “utilizadas por pelo menos 10 % dos 450 milhões de consumidores europeus”. Tal como aconteceu com a implementação do RGPD, a UE pretende que o Digital Services Act e que o Digital Makerts Act sejam modelos que se traduzam na adoção de atos legislativos equivalentes a um nível doméstico, tanto nos seus Estados-membros, mas também noutros países, como os EUA e o Reino Unido. É desta forma que a UE pretende assumir um papel pioneiro na regulação do digital, mais concretamente na regulação das grandes tecnológicas. Como já analisamos supra, as Big Techs têm vindo, ao longo dos anos, a acumular os dados dos clientes sendo que, mesmo com a entrada do RGPD, já detêm um grande armazenamento de informações pessoais. Assim, o maior desafio e desvantagem acaba por ser, maioritariamente, para quem de novo entra no mercado. Mais concretamente, são empresas que levam anos com uma vantagem competitiva comercial e que, com base em dados anteriormente recolhidos, conseguem facilmente desenvolver produtos manipuladores de vontade e de preferência relativamente a outros. Consequentemente, poder-se-á estar perante uma falsa concorrência em relação ao resto das empresas. Na verdade, esta questão foi abordada pela Comissão Europeia, mais concretamente por Margrethe Vestager, Vice-Presidente executiva da União Europeia, que terá dito que “a Google consolidou o seu domínio em anúncios de busca online e protegeu-se da pressão competitiva ao impor restrições contratuais anticompetitivas em sites de terceiros” [informação disponível no Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões sobre a Política de Concorrência 2019]. Deste modo, estando num mundo em que o RGPD é um novo instrumento, mas certas empresas o conseguem contornar, será ele o único
1ª edição caminho que se poderá adotar para confrontar este monopólio virtual das Big Techs? Como anteriormente referido será, sobretudo, através da figura da proposta legislativa Digital Markets Act (DMA), atualmente em discussão na Comissão Europeia, que podemos encontrar uma resposta à questão supra colocada. Será, então, a partir deste mecanismo legislativo que a União entende que fará frente a um mercado, em que às menores empresas, que se apresentam com uma menor expressão e movimento dentro do mercado, se dará um enquadramento e uma concretização necessária aos princípios e valores presentes no Direito da concorrência europeu: transparência, justiça, competitividade, inovação. Com vista a este propósito, e sendo o RGPD e as normas referentes ao direito da concorrência, por vezes, insuficientes, tem-se procurado novas práticas para a resolução dos problemas de parcialidade, obscuridade e monopolização. Deste modo, será a partir do DMA que se entende conseguir limitar o estatuto dos “gatekeepers” - guardiões das plataformas. Numa perspetiva empresarial, estes guardiões serão os profissionais que, além de limitar, também deterão o poder de decisão no contacto direto entre uma determinada pessoa singular / coletiva e o seu superior numa empresa, tendo a principal função de fiscalizar, arbitrariamente, toda a contratação, escolhendo aquela que lhes parecer mais relevante. Por conseguinte, será numa perspetiva normativa desta proposta que se regulará um conjunto de medidas para estes “gatekeepers”, estabelecendo e garantindo um mercado concorrencial e equitativo no setor digital em toda a União onde estes estejam presentes. Assim, será a partir do DMA que todas as empresas que dependam destes guardiões possam garantir que haja um maior equilíbrio nas relações jurídicas, não permitindo um ambiente negocial indevido, com a presença de cláusulas abusivas e práticas desleais, parciais e manipuladoras dos seus parceiros com menor capacidade de reação. Já numa perspetiva de proteção de direitos fundamentais, mais concretamente, da liberdade de ação e decisão, estas plataformas guardiãs serão proibidas de impedir os consumidores de desistirem dos seus produtos e de proibirem o acesso a serviços de empresas fora do seu âmbito de parcerias. Deste modo, poderão os cidadãos, navegando na rede virtual, fazer uma escolha de serviços como melhor lhes aprouver estando certos de que se irão deparar com uma maior escolha de serviços de qualidade e de preços, não tendo qualquer entrave no momento de mudarem de fornecedores. É essencial referir que, o não cumprimento destas regras de conduta propostas para um mercado de concorrência funcional, gerará coimas até 10% da receita anual global que poderá vir a produzir uma grande empresa, estando estas estipuladas na Diretiva da União Europeia 2019/1. Será a partir do DMA que estaremos a um passo de uma melhor legislação a nível de concorrência de mercado leal, pois este foi pensado numa perspetiva de atualização e revisão frequente, de modo a abordar a direção da economia global e a avaliação das novas empresas em expansão no mercado competitivo. Aqui, poder-se-á ver que o direito não é estanque, que estamos em constante mudança e que é necessário acompanhá-la para nos movimentarmos numa sociedade mais justa e transparente. A serem implementados, estes pacotes legislativos vão, sem sombra de dúvidas, não só alterar a forma como os utilizadores e estas grandes empresas se relacionam, mas também o próprio funcionamento do mercado interno, quanto à concorrência. Se até agora se achava que a exploração da Big Data era feita de uma forma infindável e com poucas ou nenhumas restrições, estes pacotes legislativos vão ser os semáforos do tráfego digital, como já afirmou Margrethe Vestager.
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VOX IURIS 3.4. Há ainda “muito pano para mangas”? Após toda esta jornada, resta-nos ainda concluir as linhas de raciocínio desenvolvidas ao longo da exposição. Começamos por caracterizar a atividade das Big Techs e perceber que os problemas legais inerentes às mesmas ficam muitas vezes por resolver, sendo que mesmo quando o são esta resolução não é imediata ou célere, colocando em causa a prossecução da justiça material. Embora possamos considerar arriscado pedir uma intervenção mais célere de reação a estas atuações, a verdade é que admitimos também que estão outros bens em contrapeso, como o rigor na investigação destes casos tão complexos. Assim, é necessário repensar, com cautela e sempre à luz dos princípios que compõem a justiça europeia, a forma como estão a ser articuladas as investigações e processos. Já em relação a uma possível restruturação legislativa aplicada à regulação dos mercados digitais, esperamos de forma entusiástica e otimista por mais resultados deixando, no entanto, a ressalva de que com a abertura da discussão sobre novas e mais exigentes formas de regulação, comecem a surgir também tensões entre os órgãos de governação europeus e os grandes operadores económicos cujos produtos nos são tão essenciais. Na verdade, estes não deixam de ter uma reação bastante previsível e com a qual é possível traçar uma analogia com o mais recente braço de ferro entre o governo australiano (que trouxe para cima da mesa um pacote legislativo que visa o equilíbrio económico entre tecnologia e jornalismo), e as grandes empresas tecnológicas, inclusive o Facebook que chegou a impedir que a rede social funcionasse na plenitude em território australiano. Assim, a introdução de novas soluções legislativas passa sempre por uma disputa política entre a proteção da esfera individual dos cidadãos europeus e os interesses das grandes empresas digitais que, através de um lobby agressivo na UE, conseguem subverter a vontade dos Estados em favor das corporações. Curiosamente, em anos recentes, tanto a Google, como a Amazon, Facebook e Apple aumentaram as suas despesas com lobby na União Europeia, passando de €2,8 milhões em 2013 para €15,25 milhões em 2018, um aumento de 444% nesse período [segundo a ONG Transparency International]. Este aumento brutal parece estar de acordo com as recentes alegações de auditores externos que afirmam que Bruxelas não domou as Big Techs, não parecendo provável que o consiga fazer num futuro próximo se continuar a mover-se tão lentamente e a apresentar queixas apenas após os momentos críticos em que as Big Techs “engolem” adversários ou fazem crescer as suas plataformas à custa dos utilizadores. Por último, concluímos também que muitas das problemáticas apontadas não são sobre os casos mediáticos pontuais que assolam as capas dos jornais, mas sobre a forma como está estruturado o mercado de dados e as suas regras de funcionamento. Citando o auditor externo da UE que em 2020 fez um relatório sobre a matéria, a natureza sistémica deste processo parece ter demorado demasiado tempo a tornar-se clara, visto ter sido necessário um acordar violento através de escândalos como a Cambridge Analytica. [“It has taken some time because we needed the wake-up call of the Cambridge Analytica scandal, of the different antitrust cases, to see that this is systemic.”] Assim, é importante deixar de condenar especificamente os casos de escrutínio de dados pessoais e perceber, ainda em articulação com o ponto anterior, que o poder financeiro das plataformas digitais está em crescimento exponencial, parecendo muito improvável que os jogadores que atualmente fazem campanha pelo direito à privacidade (em particular no Facebook, após o roubo cometido por Cambridge Analytica), operem mudanças significativas nesta área. Esta é a opinião de Ivan Manokha, Professor do Departamento de Desenvolvi78
1ª edição mento Internacional da Universidade de Oxford, que acredita que a invasão da esfera privada se torna perpétua pela simples forma como está estruturado o mercado de reprodução do “capital de plataforma”. Interromper o funcionamento destas plataformas, que implica sempre, de uma maneira ou outra, uma certa invasão da esfera privada do utilizador, mesmo que no limite da lei, teria inevitavelmente um impacto negativo sobre o crescimento económico - como aliás já tem, afirma Manokha, no seguimento do regime de proteção de dados europeu - sendo portanto de esperar o surgimento de opositores ao fortalecimento das medidas de proteção à privacidade. Acrescenta ainda que “se os cidadãos desejam recuperar o controlo dos dados relativos às suas vidas privadas, devem organizar-se para desafiar o capital de plataforma como um todo e não apenas atores isolados como a Cambridge Analytica”. Resta-nos, assim, esperar que no futuro os decisores políticos da nossa União consigam ultrapassar as barreiras criadas por conjeturas políticas e influências económicas para reforçar os direitos dos indivíduos face aos interesses das grandes empresas, defendendo assim o nosso modelo de democracia e, portanto, a manutenção do próprio sistema europeu que os baseia. Pois como dizia Sydney Harris, “O verdadeiro perigo não surge quando máquinas começam a pensar como pessoas, mas quando pessoas começam a pensar como máquinas.”. Havemos de enfrentar este desafio à nossa civilização e provar que serão os Cidadãos e a Lei a vergar a Tecnologia, e nunca o contrário. 4. O Direito da União Europeia: uma aproximação às principais problemáticas Decorre expressamente do artigo 4º/3 do Tratado da União Europeia (doravante TUE) uma lógica compromissória entre os vários atores, intervenientes, no processo de integração europeia, traduzida no “princípio da cooperação leal” ou da “lealdade europeia”. A ideia de lealdade implica uma “obrigação de fidelidade ao conjunto”, uma “conduta amistosa” entre os vários players políticos, donde se retira um dever de abstenção de condutas lesivas dos interesses do conjunto. Mas o princípio da lealdade deve ser também perspetivado positivamente, impondo verdadeiros deveres de colaboração, assistência
e facilitação recíprocas. A “cooperação leal” pode ser vista como “compromisso cooperativo” e “corresponsabilidade dos intervenientes políticos na sorte do projeto europeu”. Daí que deste princípio basilar se retirem outros (sub)princípios densificadores, igualmente determinantes e indispensáveis à concretização do projeto europeu. De entre esses destacam-se aqueles que, de forma mais evidente, direta e imediata, se encontram implicados quando se discute e confronta o Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016 (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, doravante RGPD) com os múltiplos quadros normativos nacionais dos Estado-Membros que versam sobre a mesma matéria, a saber: a) o princípio do Primado do Direito da União; b) o princípio da Efetividade do Direito da União; c) princípio da Interpretação Conforme. 4.1. O Princípio do Primado do Direito da União O princípio do Primado do Direito da União foi afirmado pela primeira vez no Acórdão Costa/ENEL de 1964 do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Segundo o entendimento do TJUE plasmado neste acórdão, a confirmação de um tal princípio resultaria, desde logo, do [atual] artigo 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), mormente do carácter obrigatório e diretamente aplicável dos “Regulamentos”. A possibilidade de qualquer Estado-Membro mediante uma medida unilateral afastar normas europeias, esvaziaria de sentido aquele preceito e poria em causa a sobrevivência de um sistema assente na aceitação recíproca do Direito da União por parte dos vários Estados-Membros. O princípio do primado do Direito da União pode explicar-se, em termos simplistas e sintéticos, da seguinte forma: o direito da União prevalece sobre o direito nacional dos Estados-Membros nas situações em que este último se revela desconforme com o primeiro. 4.2. O Princípio da Efetividade do Direito da União O princípio da Efetividade do Direito da União está intimamente ligado ao princípio do primado e encontra-se especialmente trabalhado no Acórdão Simmenthal de 1978 do TJUE. As normas europeias constituem fonte de direitos e obrigações para os 79
VOX IURIS Estados-Membros, não podendo estes legislar de modo a diminuir a eficácia do Direito da União. “Com efeito, o reconhecimento de uma qualquer forma de eficácia jurídica atribuída a atos legislativos nacionais que invadem o domínio no qual se exerce o poder legislativo da Comunidade [atualmente, UE], ou que por qualquer forma se mostrem incompatíveis com disposições do direito comunitário [da União], implicaria a negação do carácter efetivo dos compromissos assumidos pelos Estados-membros”. 4.3. O Princípio da Interpretação Conforme com o Direito da União É entendimento pacífico que o método de interpretação em conformidade com o Direito da União tem prioridade sobre os métodos interpretativos da ordem interna – assim o impõe o primado do Direito da União. Desde o Acórdão Marleasing de 1990 do TJUE que é claro que todo o Direito nacional está sujeito à obrigação de interpretação conforme, não se admitindo interpretações da legislação nacional que frustrem ou prejudiquem a letra e espírito das normas europeias. 4.4. Eventuais problemas de normas nacionais à luz do RGPD Como advém dos princípios supra mencionados, mais concretamente do princípio do primado, o RGPD é diretamente aplicável a todos os Estados Membros, não sendo necessário qualquer ato de transposição, tal como decorre expressamente do artigo 288º TFUE. Todavia, apresentou-se como fulcral a emanação, no nosso ordenamento jurídico, de uma lei de execução, tendo em conta que o Regulamento da União Europeia concede “aos Estados-Membros margem de manobra para especificarem as suas regras”, dado que lhes reserva decisões relativas a determinadas matérias, de entre as quais a idade mínima de consentimento para tratamento de dados (artigo 8º RGPD), bem como emerge a necessidade de determinar a autoridade competente para fiscalização da aplicação do regulamento em causa (artigo 51º/1 RGPD). Neste contexto, um ano após a aplicação do RGPD, surge finalmente, a Lei nº 58/2019, que “assegura a execução (...) do Regulamento (EU) 2016/67”. Da lei de execução resultam diversos artigos que correspondem a reproduções de normas previstas no RGPD, alguns conformam decisões que o Regulamento remete para os Estados, e outros acabam mesmo por ir além do configurado no regulamento, tal como o que se encontra previsto no artigo 17º, relativo à proteção de dados de pessoas falecidas. Contudo, o legislador nacional adota soluções jurídicas manifestamente contrárias ao direito da união, sendo exemplo vibrante as diferentes molduras contraordenacionais em função da natureza jurídica e dimensão do agente, previstas nos artigos 37º/2 e 38º/2 da Lei de execução, e que se consubstanciou na fixação de limites máximos inferiores aos limites estipulados no artigo 83º do RGPD. A interpretação de normas jurídicas deverá ser levada a cabo de acordo com os cânones e as regras tradicionais da hermenêutica jurídica, articulando-se os elementos propugnados classicamente (na esteira de SAVIGNY) – o elemento literal, o elemento lógico, o elemento sistemático e o elemento histórico. Isto mesmo decorre do artigo 9º do Código Civil (CC) português. Porém, deve acrescentar-se, hoje, como vimos supra, um outro elemento ou fator interpretativo: “a conformidade com o Direito da União”. A solução interpretativa a que se chega, i.e., a determinação do sentido e alcance de certa norma nacional não pode colidir com o disposto ao nível europeu. Neste sentido, e invocando o próprio artigo 8º/4 da nossa lei fundamental, que estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia (…) são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União”, a Comissão Nacional de Proteção de Dados 80
1ª edição (CNPD) aprova, a 3 de setembro de 2019, a Deliberação 2019/494, da qual decorre o entendimento de que determinadas disposições da Lei nº 58/2019 são violadoras do Direito da União, decidindo desaplicar “em casos futuros que venha a apreciar” determinadas normas da referida lei. Ora, um outro aspeto que se nos afigura mais problemático é a interpretação do artigo 81º/2 do CC à luz do preceituado no artigo 7º/3 do RGPD ao estabelecer que “[o] titular dos dados tem o direito de retirar o seu consentimento a qualquer momento. (…) O consentimento deve ser tão fácil de retirar quanto de dar” e no considerando 42 – “[n]ão se deverá considerar que o consentimento foi dado de livre vontade se o titular dos dados (…) não puder recusar nem retirar o consentimento sem ser prejudicado”. O que significa, a nosso ver, que não devem ser apostos quaisquer entraves, condições ou consequências ao titular dos dados na sequência da sua retirada de consentimento. A retirada do consentimento para o tratamento de dados pessoais deve ser livre, desimpedida, uma vez que o RGPD visa assegurar, acima de tudo, um elevado nível de proteção das pessoas singulares e garantir-lhes o controlo dos seus próprios dados pessoais, não estivéssemos nós diante um direito fundamental à proteção de dados pessoais (vd. artigo 8º/1, da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, o artigo 16º/1 TFUE e o artigo 35º CRP). Com efeito, o artigo 81º/2 do CC não pode ser interpretado ou aplicado de forma a exigir ao titular dos dados o pagamento de uma indemnização ao responsável pelo tratamento, sob pena de se violarem os princípios de Direito da União Europeia acima analisados. 5. A realidade da CNPD A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) é a entidade nacional administrativa independente responsável pelo controlo e fiscalização do RGPD, da Lei n.º 58/2019 e de outras disposições legais que incidam sobre matéria de proteção de dados pessoais, com o objetivo último de salvaguardar o direito constitucionalmente protegido da proteção de dados pessoais. Este organismo atua com total independência no exercício dos seus poderes e na prossecução de todas estas suas competências e atribuições.
Como sabemos, é à CNPD que chegam as queixas relativas à violação da proteção de dados pessoais. Não obstante, ainda que tais queixas constituam um dos principais motivos pelos quais a Comissão é chamada a atuar, este órgão possui outras competências. Nesta senda, a atividade elaborada pela Comissão é também prosseguida no domínio da emissão de respostas a pedidos de informação e de esclarecimento. Para além disso, uma vez que a própria CNPD funciona em rede com os restantes organismos nacionais responsáveis pela proteção de dados pessoais, criados pelos vários Estados-membros, tal representa, naturalmente, um encargo extra neste já vasto âmbito operacional de ação. Segundo o artigo 3.º da Lei de organização e funcionamento da Comissão Nacional de Proteção de Dados, a CNPD é composta por sete membros de “integridade e mérito reconhecidos”. Sem embargo de toda esta atividade ser assegurada por uma equipa um pouco mais provida, composta por cerca de 22 trabalhadores (dados de 2019), tal número ainda se afigura verdadeiramente insuficiente. Na verdade, a entrada em vigor do RGPD, em maio de 2018, colocou em primeiro plano a temática da proteção de dados pessoais e, com isso, emergiram quase de imediato certas fragilidades deste organismo nacional, fragilidades até então ocultas, relacionadas com a escassez de recursos humanos e financeiros. A este propósito, Filipa Calvão, presidente da CNPD, indicou já em numerosas ocasiões que o teor de competências, às quais a Comissão se encontra vinculada, acaba por se demonstrar desproporcional, face aos escassos recursos humanos existentes, repercutindo-se tal situação negativamente numa cabal e efetiva aplicação do RGPD em Portugal. Não obstante, é de mencionar, igualmente, as diligências tomadas pelo Estado Português em face destas vicissitudes. Convenientemente, o Governo Português tem apostado, fundamentalmente, no regime da mobilidade da Função Pública, permitindo que trabalhadores, já inseridos na Administração Pública, possam ser “acolhidos” na CNPD. Existem, todavia, vários entraves que obstam ao êxito desta alternativa apresentada: o elevado grau de conhecimentos e formação exigidos pelo setor da proteção de dados pessoais e, ainda, a precariedade destes 81
VOX IURIS mesmos trabalhadores em mobilidade, que habitualmente optam por sair ao fim de alguns meses destas suas novas funções, assumem-se como uma verdadeira barreira ao desenvolvimento do exigente ofício prosseguido pela Comissão. A própria Presidente da CNPD referiu, em diversas situações, por que pontos poderiam passar a solução do problema. Na sua ótica, tais pontos materializar-se-iam num aumento da dotação orçamental – que, em maio de 2019, se quantificava em aproximadamente 2 milhões de euros –, ou mesmo pela devolução de parte do saldo de gerência dos últimos anos, saldo esse que tem sido cativo pelo Estado. Este era o status quo da CNPD em meados de 2019. Esperemos que, neste ínterim, conclusões tenham sido retiradas e providências tenham sido tomadas para que as condições da CNPD e dos seus trabalhadores, no âmbito da prossecução das suas incumbências, tenham sido reforçadas e aperfeiçoadas. 6. Conclusão Ao longo do tempo, presenciámos muitos avanços que o Direito da União tanto se tem esforçado por acompanhar. Não obstante todo o processo, a proteção de dados terá ainda um longo percurso adiante para resgatar da escuridão temas cada vez mais em voga, como a inteligência artificial, manipulação genética, economia dos dados, lobbying, entre outros, que constituirão, certamente, novos desafios na ótica desta matéria. Por meio de um caminho evolutivo notável, o RGPD preencheu lacunas e ultrapassou problemas modernos de proteção de dados, tentando garantir a maior salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos. Como futuros juristas que almejamos ser, incentivamos a não estagnação daquilo que está em vigor para uma maior resposta aos problemas que emergirão num futuro, esteja ele a um pequeno ou grande passo de nós. “The Revolution will be complete when the language is perfect.” ― George Orwell
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“The Revolution will be complete when the language is perfect.”
George Orwell
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do latim: designação que significa caminho, passagem.
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ITER ITER ITER
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N Francisca Santos Costa franciscamsantoscosta@gmail.com
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o final de agosto de 2018 estava de malas aviadas para ir literalmente para a outra ponta da Europa e ter a minha experiência de mobilidade, promovida pelo Erasmus +, na Universidade de Tartu na Estónia. A Estónia não era, de todo, a minha primeira opção de escolha, nomeadamente por ter poucas referências de quem lá tinha estado a estudar anteriormente, no entanto era um país com uma cultura completamente diferente da portuguesa, tal como eu queria para a minha experiência de Erasmus. Para quem não sabe, Tartu é uma espécie de centro estudantil da Estónia, onde não só a maior parte dos estudantes universitários da Estónia vão para lá estudar, como também imensos estudantes de todo o mundo. Isto deve-se ao facto de a Estónia ser relativamente fácil ao nível da imigração como também pela oferta de cursos lecionados em inglês, russo, alemão e finlandês que a Universidade de Tartu possui. Mais do que isso, a Universidade possui ainda uma série de programas e acordos de mobilidade para além do Erasmus +. Assim, não só pude estar em contacto com uma cultura nórdica muito peculiar e ainda muito marcada pelo domínio soviético, como também pude conhecer pessoas dos cinco continentes que me permitiram ter uma diferente visão sobre o mundo. Ao ficar alojada numa residência universitária, tive que me adaptar a viver com 5 desconhecidas de culturas completamente diferentes da minha e lidar com os choques culturais constantes quer fosse ao nível gastronómico, limpeza ou arrumação. No entanto, nunca me sentia sozinha e bastava encontrar alguém nos corredores e começar a falar sobre a diferença entre os nossos países que já tinha umas boas horas de conversa garantidas, o que acredito que poderia ter sido uma experiência bem diferente caso tivesse arrendado uma casa só para mim. Não era difícil marcar um jantar ou uma festa em que estivessem representados os 5 continentes com pessoas desde o Bangladesh ao México, passando por Marrocos, Estados Unidos, Austrália e, claro, Portugal. Por vezes, as saudades da família e dos nossos amigos apertavam, mas a sensação de que aquela realidade paralela em que estávamos a
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Quando dizemos que as pessoas que vão de Erasmus são pessoas diferentes quando regressam é completamente verdade (...)
viver era efémera fazia com que tentássemos sempre aproveitar ao máximo todos os momentos com aquelas pessoas que conhecíamos, mesmo sabendo que a maior parte delas, provavelmente, nunca mais íamos ver na vida. Dada a proximidade da Estónia com países que dificilmente se viaja por preços acessíveis a partir de Portugal, aproveitei todas as oportunidades que tinha para visitar diferentes países quer fosse de barco, avião ou autocarro. Assim, durante os 4 meses que lá estive pude conhecer a Finlândia, Suécia, Rússia, Letónia, Lituânia e Islândia, tendo ainda feito uma escala na Holanda no regresso a Portugal. Conhecer vários países ainda profundamente marcados pela opressão comunista que terminou apenas em 1992, como foi o caso da Estónia, Letónia e Lituânia, e perceber a maneira como se desenvolveram a partir daí foi absolutamente marcante para mim pois a nossa visão de opressão de um regime fascista é completamente diferente. Estes povos ainda são, na sua generalidade, profundamente desconfiados e com medo do domínio de qualquer outro país sobre eles. Para além de que ainda estão num enorme processo de adaptabilidade às imposições europeias dada a sua tardia entrada na União Europeia, apenas em 2004. Outro dos aspetos positivos que me apaixonou por Tartu e tornou esta experiência absolutamente enriquecedora a nível académico, foi a oportunidade de poder estudar outras disciplinas, dentro do ramo do Direito mas que a licenciatura por si só nunca me conseguiria oferecer, como foi o caso de Direito Penal Internacional, História Contemporânea Económi-
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ca e Social e Processos de Integração da Europa e da Eurásia. Para além disso, os métodos de avaliação eram relativamente diferentes daqueles que temos na Universidade do Minho pois fui avaliada nas diferentes disciplinas não só através de testes, mas também trabalhos, provas orais, quizzes e simulações de parlamento. As disciplinas que frequentei eram lecionadas por professores da Estónia, Argentina e Itália e tinham frequentemente convidados que iam falar sobre diferentes temas, como foi o caso de uma eurodeputada da Estónia. Neste sentido, a minha experiência de mobilidade mudou completamente algumas das conceções que tinha sobre o mundo e sobre as pessoas de alguns países em particular. Quando dizemos que as pessoas que vão de Erasmus são pessoas diferentes quando regressam é completamente verdade devido à necessidade de sairmos constantemente da nossa zona de conforto e ser uma afronta às conceções e dados adquiridos que temos sobre o mundo. Assim sendo, acho que todas as pessoas deviam ter a oportunidade de ter uma experiência como esta durante o seu percurso académico. Por último, acredito que enquanto juristas seja extremamente importante sedimentar o nosso conhecimento acerca do sistema jurídico português, mas não invalida o conhecimento de outros sistemas jurídicos, até porque é através da comparação dos diferentes sistemas que podemos melhorar o nosso e mais tarde tornar-nos melhores profissionais.
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meu nome é Rita Ferraz e, no ano letivo de 2020/2021, realizei o primeiro semestre do meu 4ºano da Licenciatura em Direito na cidade de Tartu, na Estónia ao abrigo do Programa de Mobilidade Erasmus+ durante a pandemia mundial da Covid-19. Ora, realizar um programa de mobilidade internacional sempre foi um objetivo pessoal. A verdade é que numa Europa sem fronteiras e em que esse espírito europeísta está constantemente a ser incutido aquando toda a duração da formação académica, o programa Erasmus+ é a oportunidade perfeita para cada um de nós experienciar tal espírito na pele. Ao contrário do que os meus colegas de anos anteriores vivenciaram, a minha candidatura foi sempre associada à incerteza que a constante abertura e fecho de fronteiras dos Estados-Membros e os frequentes Estados de Emergência traziam. Contudo, acabei por ser aceite e por não ter qualquer tipo de contratempo a nível formal da parte de ambas as universidades. A nível logístico, as coisas já foram diferentes. No que concerne às viagens, estas foram sujeitas a diversos cancelamentos tanto na viagem de ida como de volta. Já o alojamento, que sempre foi idealizado por mim como sendo numa residência universitária, só foi possível assegurar a duas semanas da minha data de chegada. Academicamente, este período foi uma boa surpresa para mim. As Unidades Curriculares que realizei na Estónia fizeram-me debruçar sobre temas importantes do Direito Internacional e as suas interpretações de uma forma mais independente, através de trabalhos de pesquisa e de investigação. A nível social foi um período de descoberta e compreensão de outras culturas, hábitos e vivências. Ainda que muitos dos espaços que normalmente promovem estes convívios tenham sido influenciados pela situação pandémica, a verdade é que me foi possível conviver e criar várias amizades, fora e dentro destes. Este foi um período de crescimento como nenhum outro que tenha vi-
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1ª edição venciado onde, além de ter desenvolvido todas as típicas capacidades de quem vive longe de tudo aquilo que conhece durante um período de vários meses, desenvolvi também a paciência de quem não pode planear as coisas com antecedência neste período tudo menos certo. Em geral a situação pandémica teve, sim, uma influência naquilo que foi a minha experiência Erasmus, mas não o tornou, nunca, menos emocionante.
Rita Ferraz ritaferreiraferraz@hotmail.com
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Este foi um período de crescimento como nenhum outro que tenha vivenciado onde, além de ter desenvolvido todas as típicas capacidades de quem vive longe de tudo aquilo que conhece durante um período de vários meses (...)
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GITO do latim cogito, -are, pensar, meditar, reflectir Pensar com insistência”
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Afonso Maia da Silva afonsomaiasilva1999@gmail.com
Uma Geração de Crises Todo o processo de crescimento da geração que hoje frequenta o Ensino Superior ou ingressa no mercado de trabalho foi passado com a palavra “crise” a ecoar. Aprendemos enquanto crianças e adolescentes a “a apertar o cinto”. O fatalismo da crise económica, da crise financeira, da crise das dívidas soberanas, da crise do défice, da crise bancária, da crise do desemprego tornou-se um dia a dia incómodo, principalmente para quem cresceu em famílias que o sentiram na pele. Enquanto jovens adultos conhecemos agora outros termos – a crise pandémica, a crise climática, a crise habitacional, a crise democrática, etc. – mas a aura austeritária da nossa realidade parece não dissipar na sua inevitabilidade. Somos hoje uma geração de crises, que se lança para a vida adulta após a maioria das nossas famílias ter perdido rendimentos na última década, a meio da maior pandemia do século que nos confina há mais de um ano, que nos assaltou parte da nossa juventude e nos coloca em frente mais anos de uma inevitável e violenta crise económico-social que provavelmente aniquilará postos de trabalho que poderiam ser nossos e que nos fará encontrar no lugar deles o desemprego que muitos dos nossos pais também conheceram na última década, sem perspectivas de conseguir arrendar, quanto mais comprar uma habitação, enquanto nos diz a Ciência que o Planeta está em colapso ambiental e que a nossa velhice será num planeta hostil à vida humana e os últimos anos têm visto o fortalecimento de forças políticas antidemocráticas a um nível que nos faz recuar até à distópica década de 1930. Decerto que temos hoje ferramentas para superar este negro quadro que as gerações anteriores não possuíam – somos a geração com 94
1ª edição mais habilitações académicas de sempre, não conhecemos outra realidade que não a das redes sociais e avanços tecnológicos que nos conectam ao mundo inteiro e nos abrem portas que, de outra forma, estariam encerradas e, apesar de tudo, somos hoje uma geração menos permeável aos vírus do preconceito e discriminação – mas deve fazer-nos refletir o quão avançada será a nossa sociedade hoje para que nos pareça normal uma geração inteira começar a sua vida independente nestas condições. Os mais antigos dirão que somos, no entanto , privilegiados, que o Mundo é hoje um lugar mais fácil em muitos aspetos do que era no século XX onde eles cresceram. Pode não ser totalmente mentira este raciocínio, mas não é isso que nos deve impedir de almejar uma sociedade melhor e mais justa – caminhemos olhando para os problemas do futuro, preparados para os combater e não para os do passado com regozijo, porque não será o tolo contentamento de já não sentirmos os problemas de outrora que nos irá impedir de sofrer com os do futuro. Precisamos de uma geração que seja capaz de refletir sobre este estado da sociedade e não se sentir resignada. Que perceba o que existe de mal e tenha a coragem para exigir mudança. Que nade contra a corrente que parece existir de uma população cada vez mais alheada dos seus próprios problemas, mais desinteressada sobre quase tudo o que diz respeito à sociedade civil, mais afastada do processo político como se ele fosse uma realidade olímpica reservada a uma elite ou a um punhado de loucos e não aquilo que impacta a vida de todos e todas nós. Uma geração que se informe e se saiba informar, capaz de fintar a desinformação que é uma arma poderosa de quem quer minar a democracia. Que não se deixe isolar do resto da sociedade – os problemas de cada um de nós são os problemas de muita gente, gente que unida é mais forte e eficaz no combate a esses mesmos problemas – e que perceba que só organizados podemos controlar o nosso
destino, ao contrário da narrativa geral de que hoje o indivíduo, sozinho, é capaz de tudo e que diaboliza a militância. Que tenha a coragem de exigir ocupar os lugares que são seus por direito, que nunca ache que os direitos políticos são para poucos e nunca para si – cada um e todos nós temos o direito de ter uma voz e de que essa voz seja ouvida por milhões. Que perceba que as crises, como aquelas que fazem a História das nossas vidas não são normais, não são um destino trágico e inevitável, não podem ser cíclicas nem o “fim da História”, mas que têm que ser combatidas com todo o nosso engenho enquanto ainda existir alguém a quem falta algo essencial. Que tenha a coragem de defender o que é nosso. A nossa democracia, a nossa liberdade, os nossos direitos, para que nunca ninguém se atreva a roubá-los ou a tentar dizer-nos o que fazer com eles. Os desafios de hoje e de amanhã são os nossos desafios, a nossa travessia, a nossa Odisseia, os do passado são memória que nos ajudará a combater os do presente e futuro. Que tenhamos em mente valores antigos, desde que ajustáveis ao nosso tempo - o ímpeto de quem lutou apaixonadamente pela Liberdade em tempos antigos, a força de quem resistiu ao ódio, a paixão de ambicionar uma sociedade melhor num futuro livre e radioso – mas que tenhamos também a audácia de pensar novos, porque um século que se estende à nossa frente e a forma como se falará dele daqui a 100 anos depende, pura e exclusivamente, do que fizermos com ele. Saibamos nós, jovens, Estudantes, começar a cada dia esse novo horizonte. Combater a descrença no sistema político, na democracia e na representação, a dilacerante urgência climática e um sistema económico-financeiro cada vez mais desigual e predatório depende da nossa ação diária e da nossa coragem de ser parte ativa da mudança. É necessário que sejamos, então, vistos pelos outros e por nós próprios, como parte da solução.
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André Silva Ferrinha a.silvaferrinha93@gmail.com
A Colaboração Processual do Arguido: O Futuro O artigo 1º da CRP estatui que o nosso País, Portugal, República que é, baseia-se na dignidade da pessoa humana e, é partindo deste corolário, deste véu constitucional, que se assenta e se norteia toda e qualquer construção normativa, mormente, no âmbito processual-penal. Destarte, muitos argumentos têm sido esgrimidos acerca do impacto que a colaboração processual do arguido, que é premiada, tem na esfera e sentido normativo-axiológico da dignidade da pessoa humana. Este argumento parte do pressuposto que a colaboração é entrave ao cumprimento escrupuloso de princípios como o da presunção de inocência ou o da não auto-incriminação esculpido no brocardo latino nemo tenetur se ipsum accusare, princípios que se baseiam, claramente, no princípio mãe, no da dignidade da pessoa humana. Vozes afirmam que colaboração é delação e que, desde logo, nos remete para um passado histórico ligado ao Estado Novo. Nessa altura, aqueles que delatavam eram os traidores da pátria, eram os “bufos”, na voz do Exmo Senhor Professor Germano Marques da Silva. Pese embora, o sentido da palavra, o objectivo da mesma é bem diferente, principalmente nos dias que correm, uma vez que, na sequência desse acto matreiro, egoísta e judas, como querem fazer parecer e o impacto que a mesma produz é incalculável para a investigação, para a descoberta da verdade material e para a sociedade, enquanto um todo. Importa realçar que o próprio direito comparado, mais concretamente no ordenamento jurídico italiano e no brasileiro, tem vindo a demonstrar que este meio de obtenção de prova e as declarações do colaborador, enquanto meio de prova, dele resultante, têm um grau de eficácia e
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1ª edição eficiência de penetração nos meandros criminológicos, que outros, não têm. A colaboração premiada é, nada mais nada menos, que uma atitude colaborativa do arguido que, envolvido que esteja numa rede criminosa, fornece informações robustas que, de outra maneira, dificilmente, se conseguiria ter acesso. Ou seja, aquele indivíduo que de cuja teia criminosa é parte integrante, e sabendo do modus operandi e da hierarquia da rede, faculta ao dominus do processo, o Ministério Público, todos os elementos dessa organização criminosa, sob crivo judicial daquele que é o farol da legalidade, da integridade da justiça, das liberdades, o juiz. E é neste acto digno, louvável e merecedor de respeito pelas entidades competentes que se lançam farpas à sua eficácia e (in)oportunidade. Esse reconhecimento por parte das entidades competentes é, como julgo ser do conhecimento geral, a atribuição de um prémio jurídico. Prémio esse que é, no meu entender, apenas e somente a atenuação especial da pena. É de não olvidar, que esse prémio já consta, aliás, de várias normas jurídicas presentes no nosso ordenamento jurídico-penal, mormente nos artigos 374º-B, 368º-A, entre outros, e também constantes em Leis Extravagantes. É de extrema importância frisar que a colaboração processual do arguido tem de ter, na minha opinião, um carácter de ultima ratio. Essa marca deve ter sempre como princípios delineadores e delimitadores, o da necessidade, da adequação e da proporcionalidade. O mesmo é dizer que, este meio de obtenção de prova só é necessário à prossecução da verdade material, quando outro não for suficiente para atingir esse fim; numa lógica de subsidiariedade. Depois, importa que esse meio seja adequado e proporcional à gravidade criminosa em causa, ou seja, não me parece exequível que se utilize tal instituto para fazer face a crimes de menor gravidade, mas tão só aos crimes mais graves e de alta com-
plexidade, onde imperam os pactos de silêncio, a sofisticação e a audaz tecnologia. Em suma, e em jeito de conclusão, face às dificuldades que se nos afiguram complexas dada a hermética teia criminosa e às consequências para a investigação daí resultantes, o estatuto do arrependido colaborador parece ser e, a mim parece-me, perdoem-me algum exagero, a rainha das provas num futuro não muito longínquo no que ao combate à criminalidade altamente organizada diz respeito. Claro se torna, frisar e salientar que, tal como todos os outros meios de obtenção de provas intrusivos e, de certa maneira, lesivos para os direitos fundamentais dos arguidos, a colaboração processual do arguido, terá de passar necessariamente por um crivo tríplice, como são a necessidade, a proporcionalidade e a adequação.
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Eduarda Fernandes Peixoto eduardapeixoto@live.com.pt
A Ambiguidade dos Direitos Fundamentais
Duarte, Maria Luísa União Europeia E Direitos Fundamentais, AAFDL, Lisboa 1
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Os catálogos dos direitos fundamentais oferecem uma base de dignidade e segurança a todos os seres-humanos. Generalizo quando digo que é confortante a existência de um conjunto de garantias inatas ao Homem que protegem a sua vida, a sua igualdade de oportunidades, a sua liberdade de expressão e a sua qualidade de vida. Mas a verdade é que, um olhar mais atento sobre a cena europeia denota a precariedade da efetivação destes direitos fundamentais. Rapidamente nos conformamos com a segurança, nem nos apercebemos do quão ambígua é. Correndo o risco de ser muito ambiciosa, irei circunscrever-me à realidade europeia. A evolução da positivação e internacionalização dos direitos fundamentais teve como ponto fulcral a adoção, em 1950, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e, mais tarde, ambicionou um mecanismo de controlo dos atos estaduais que permitia aos sujeitos, que vissem os seus direitos violados, recorrerem ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Assim, foi adotada a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em 2009. O âmbito da Carta, ainda que vasto, limita a sua aplicação às instituições e aos órgãos da UE e aos Estados-membros quando estes procedem à aplicação do Direito da UE. O Direito da UE consagra que o respeito pelos direitos fundamentais se impõe à União, a todas as suas instituições e órgãos e aos Estados-membros tendo os seus atos que estar em conformidade com os Direitos Fundamentais. Isto permite-nos concluir que o sistema de proteção destes direitos se inspira numa internormatividade1. Contudo, a maioria dos direitos fundamentais não possuem valor absoluto nem são ilimitados uma vez que, em circunstâncias excecionais,
1ª edição podem ser restringidos. O problema nasce quando estas restrições são fundamentadas em critérios discriminatórios. A verdade é que os textos de onde consta o regime destes direitos falham no cumprimento dos seus objetivos uma vez que os direitos fundamentais nunca foram tão absolutos nem estes diplomas tão vinculativos como se ambicionou. Assim, questiono-me até que medida é que estes diplomas realmente vincularam o comportamento dos Estados. Neste âmbito, posso dar vários exemplos. A lei do aborto que entrou em vigor em outubro do ano passado na Polónia estabelece que o procedimento apenas é permitido em casos de violação, incesto ou perigo de vida para a mãe. Não é este o cenário de uma restrição aos direitos fundamentais das mulheres num país que, mesmo lançando um protocolo sobre a Carta, a esta aderiu. É certo que há reprovação por parte dos instrumentos judiciais da UE mas não é mais gravoso que estes escritos que protegem os direitos fundamentais da pessoa não sejam eficazmente vinculativos, sendo que há a eventualidade de os países aprovarem leis violadoras (não só restritivas) destes direitos. Uma adversidade atual são os atentados aos direitos dos refugiados desvalorizados por alguns países integrantes da União. Estes Estados são acusados de violência, despreocupação no que toca às situações em que os refugiados naufragam e a precária proteção das crianças refugiadas. Casos como o governo italiano, que proibiu que as ONG desembarcassem pessoas resgatadas no Mediterrâneo. A Hungria penaliza a prestação de ajuda a refugiados. A discriminação que este grupo de indivíduos recebe é, em parte, agravada pelos atos dos próprios Estados-Membro que não conseguem aprimorar a prática de eliminação do fosso entre os seus cidadãos e os que chegam em busca de melhores oportunidades de vida. A acrescentar, atualmente, seis dos países integrantes da União ainda não aderiram à Convenção
de Istambul que protege os direitos das mulheres contra a mutilação genital, o casamento forçado, o assédio e o aborto forçado. Portugal é um país exemplar no que toca à adesão a textos que protegem os direitos fundamentais. Contudo, há ainda um longo e laborioso caminho a percorrer. A título de exemplo, a violação e a coação sexual não são ainda crimes públicos o que constitui um impasse no que toca à proteção das vítimas. São estes casos lacunosos que merecem a nossa atenção. Parte do problema reside nas situações de recusa e, ainda, na falta de financiamento público a ONGs que se dedicam a questões relacionadas com a migração, os direitos da comunidade LGBTQI+ com e os direitos das mulheres e crianças. Estas organizações deveriam ser beneficiadoras do apoio público do Estado e de terem direcionados para si os recursos necessários disponibilizados pelos seus governos ou até da UE para levarem a cabo as suas missões. Uma sugestão seria a criação de uma Direção-Geral de apoio à defesa dos direitos fundamentais, dentro da Comissão Europeia, que agiria ao lado do Conselho da UE do Parlamento Europeu para averiguar os principais organismos de proteção de direitos humanos sediados na União Europeia, e as suas necessidades quanto a recursos humanos e financeiros.
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Renato de Mello Gomes dos Santos renatomgsantos@gmail.com
Eu, Portugal e o rosto que fita o futuro do passado... Se o futuro não o conhecemos, o passado já não o temos. As eleições responderam que Portugal vive o presente. Minha família saiu deste solo há muitos anos. Da pequenina Freguesia de São Cosmado, Armamar, Viseu. Não nasci em Portugal. Aqui, escolhi viver meu presente. Pois retornei, como tantos, para o chão dos meus “egrégios avós”. Desde a antiguidade, fala-se no eterno retorno. A natureza se observa, reproduz ciclos infinitamente. Na história, há os que acreditam que tudo tende a se repetir. Será que Portugal estaria fadado a busca pelo eterno retorno? Ao vislumbrar o índice de um manual de história pode-se ler: Reconquista, Restauração, Miguelismo, Integralismo Lusitano, Estado Novo... Cada um dos títulos representa, em algum grau, a ideia de volta às origens. Ou de “um futuro no passado”. E há mais... “Levantai hoje de novo o esplendor de Portugal”, diz A Portuguesa. Naquela altura, o Mapa Cor-de-Rosa havia sido rasgado. O ultimato despertou a fúria de patriotas que ameaçaram marchar contra canhões. Afinal, deveríamos regressar ao esplendor.
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1ª edição Lembremos da expressão “evolução na continuidade”, na tímida primavera marcelista. Revelava a evidente vergonha do futuro. E o que dizer do mito do rei ressurgido entre brumas para nos libertar de Castela? Pode ser um pretexto para rememorar Aljubarrota. Ou, servir de uma justificativa tola para permanecer “orgulhosamente sós”. Portugal foi concebido por ideias de retornos que pareciam intermináveis. Havia no ar o desejo de recuar para um tempo em que esta terra era mais autêntica. Em que viviam os legítimos portugueses. Em que se cultuava a tradição. Em que se respeitava a família. Em que se honrava a religião. Em que não se devia obediência aos estrangeiros. E o Quinto Império transformou-se. De profecia, em um passado imaginado. Ora, não é mau sentir saudade. Esse sentimento também forjou Portugal. A palavra saudade só existe em português e em galego. Não é por acaso. No entanto, o anseio perene pelo retorno podia apagar o presente e afastar o futuro. E veio o 25 de Abril. E “foi bonita a festa”. E o “povo quem mais ordena” escolheu o presente. E propôs o futuro. Pelos perigos e abismos de uma nação que se quer democrática, Portugal caminhou. Partidos. Rivalidades. Alianças. Troika. Geringonça. Depois de tudo isso, Marcelo foi reeleito. Diz-se que os eleitores escolheram a estabilidade no meio da crise pandêmica. Prefiro crer que 9 em cada 10 eleitores apostaram,
cada um a seu modo, no presente. E, numa certa medida, no futuro. Não pode mais haver espaço para aquele miguelismo renitente que foi até combustível para o regime salazarista. Já estamos para além do Bojador. Porém, “de tanto mal, de tanta desventura”, ainda há o “mostrengo que está no fim do mar”. Que “triste ventura”. Aquele a todos ameaça “dizendo nossos fados”, ou o que teima ser nosso destino. Como nesse “caminho e em tanta desventura”, Adamastor está condenado a ficar nas tormentas e Portugal vai sonhar “todos os sonhos do mundo”. Enquanto sonho, lembro quem tombou em Paris e não foi D. Sebastião. Ronaldo foi o abatido e teve que sair do campo de batalha. Nossa gente “valente e imortal” poderia ter enchido o mar com o sal de suas lágrimas. Poderia ter ficado a esperar sua volta. Mas escolheu lutar. O golo do Éder não poderia ser mais simbólico e metafórico de tudo aquilo que desejamos para o presente. Que nossos fados cantem a saudade, mas que nosso fado seja o futuro. [Nota do Autor: O texto é um artigo de opinião repleto de referências e expressões de outros autores. Quando foram parafraseadas, não estão entre aspas.Portanto, se encontrar valor na beleza nas palavras, provavelmente não é meu. O demérito, por ter retirado a força e o encanto de algumas delas, é todo meu]
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Luís Nuno Barbosa e Silva luisnuno.bs@sapo.pt
O Valor Jurídico e Ético-social da Vida, o significado da dignidade humana e a questão da despenalização da morte assistida *
*Este texto está escrito de acordo com o Antigo Acordo Ortográfico, por vontade expressa do Autor.
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O debate sobre um direito à morte assistida é, conforme ambas as intervenientes do passado evento inserido na Semana de Direito (as Professoras Luísa Neto e Mafalda Miranda Barbosa) acabaram por concordar, uma fausse question. Seja porque alguns preferem a utilização da nomenclatura histórica (e o termo mais popularizado) de “eutanásia”, seja porque outros preferem (e bem) alertar para a precisão técnica de que o que está a ser discutido é não a existência de um direito mas antes a despenalização de uma conduta, o que efectivamente está no centro da disputa é saber se um indivíduo em fim de vida, e perante a observância de determinadas condições, deve ou não ser impedido de a terminar com um auxílio de um terceiro (no caso, especificamente de um profissional médico). Primeiramente, importa compreender que o nosso papel enquanto juristas ou aspirantes a juristas nos convoca, como bem lembrou a Professora Luísa Neto, a olhar para esta discussão numa dupla óptica: a de conhecedores do Direito, que adoptam a perspectiva jurídica e nela projectam a sua posição, e a de cidadãos, conscientes da sua inserção colectiva e capazes de discernir a sua ética individual da ética social geral aceite enquanto tal. Naturalmente, é a nossa capacidade de combinarmos estas duas vertentes, não confundindo o ético-social com o jurídico mas também não desligando o Direito e a sua conceptualização do meio que ele pretende ordenar e no qual se insere, que nos permitirá dar um contributo relevante para o debate, quer na Academia quer na sociedade civil. Nesse sentido, devemos, como ponto de partida, tomar como assente, acompanhando a Professora Luísa Neto, que “o Direito é uma
1ª edição ordem de liberdade” e que é o seu papel desenhar um sistema normativo que possibilite ao indivíduo o exercício dessa mesma liberdade, respeitando a sua autonomia. O papel de protecção do Direito, a ser exercido, não se deve confundir com uma intervenção paternalista e enformadora da conduta individual, mas sim como uma ultima ratio imprescindível apenas naqueles casos onde essa liberdade individual ameaça ou coloca em causa a vivência colectiva e os princípios éticos comummente aceites pela sociedade. Muito importante ainda é a noção de que estes princípios éticos e as situações que ameaçam a nossa organização colectiva não são estáticos e o tal “acervo axiológico” que justifica a actuação do Direito e que o auxilia “na mera ordenação de condutas” (nas palavras da Professora Mafalda Miranda Barbosa) está em constante mutação e não pode ser considerado como assente mas antes como um acervo reajustável e adaptável. Assim, levanta alguma estranheza o recurso a determinados argumentos que vão sendo utilizados como reveladores de uma intenção do legislador em “proteger” o indivíduo, extravasando o âmbito da efectiva protecção que naquela situação em concreto se pretendeu conferir e transformando-as numa espécie de cláusula geral de incapacidade autónoma do indivíduo, quando colocado em circunstâncias como as de uma doença terminal e sem possibilidades de tratamento, confrontado com dores de particular gravidade. A título de exemplo, a Professora Mafalda Miranda Barbosa pretendeu demonstrar que, para um indivíduo colocado nestas circunstâncias e sujeito a tratamento médico, o legislador civil entendeu existir uma necessidade especial de protecção face a uma autonomia e a um discernimento livre diminuídos por “especial fragilidade do doente”, tendo instituído uma situação de indisponibilidade relativa na norma do art.º 2194º CC. No entanto, esta norma não proíbe que o doente produza um testamento durante a doença, apenas proíbe cláusulas a favor de
um determinado grupo de pessoas; ou seja, mesmo o próprio legislador, que procurou proteger o doente patrimonialmente, reconhece a sua capacidade de testar naquelas circunstâncias. A ratio legis da norma não é aquela que a Professora apontou, demonstrando este exemplo mesmo um reconhecimento de que aquela fragilidade não impede o doente de se encontrar em condições de um discernimento livre e autónomo. Em termos da conceptualização da liberdade individual e da sua ligação com este tema, acolhemos a acepção da Professora Luísa Neto, a do necessário respeito do Direito pelo “sujeito enquanto centro de imputação autónomo de vontade”, circunstância que se mantém mesmo em final de vida e nas difíceis situações que o doente pode atravessar (aliás, mesmo por isso se estabelecem determinadas condições nos projectos que têm vindo a ser sucessivamente apresentados). Mais ainda, é importante lembrar que a protecção patrimonial dada pelo Direito Civil não se pode confundir com o bem jurídico da dignidade humana constitucionalmente definido. De facto, património enquanto bem jurídico reflecte-se não apenas na esfera de um indivíduo (no caso, do doente) como na esfera de direitos ou expectativas jurídicas de um conjunto de outros indivíduos (como os seus herdeiros). Pelo contrário, a dignidade humana é um bem intrinsecamente pessoal e individual. E esta dignidade não pode ser considerada exclusivamente enquanto conceito justificativo de um dever de viver, mas antes equacionada enquanto uma dignidade correspondente a um mínimo de qualidade de vida extensível a um direito a manter a dignidade no final da vida. E, sem entrar em argumentos ad miserecordiam, não podemos enquanto juristas e cidadãos alhearmo-nos da situação de extremo sofrimento, físico e psicológico, na medida em que a sua manutenção afecta indiscutivelmente (e até pode impedir) a manutenção dessa dignidade na etapa final da vida. 103
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Em jeito de conclusão, num tema que nunca será verdadeiramente conclusivo, podemos afirmar que o problema de saber coordenar os tais dois vectores de que as oradoras falaram no debate, o da liberdade e o da dignidade, não necessita necessariamente de se reconduzir a uma limitação de um em prol do outro. Na verdade, as situações que se pretendem ver despenalizadas nos variados projectos em discussão em Portugal nos últimos anos são situações onde o exercício da liberdade individual tem como objectivo a preservação da dignidade na etapa final de vida do indivíduo. E um debate que reconheça, jurídica e eticamente, a autonomia do sujeito na determinação do modo como quer viver os seus últimos dias e da forma mais ou menos dolorosa como quer acabar por morrer será um debate que vale a pena ter, mas uma discussão que se sirva de falácias enganadoras ou de whataboutisms sem sentido que encontram noutras situações, noutros projectos e noutros ordenamentos jurídicos exemplos desligados do centro da questão em análise não só não servem as pessoas que pessoalmente se vêem afectadas por este problema como levam a sociedade civil a enveredar por debates demagógicos e infrutíferos.
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do latim Ato ou efeito de rir. Zombaria; escárnio.
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Advogados do Diabo A verdade é que o custo de começar este texto é de tal forma elevado que o divagar me fez escrever devagar, enquanto pensava se deveria tomar a liberdade de, à minha maneira, abordar a situação. Alíneas e números de artigos, regulamento após regulamento, vamos bebendo do conhecimento da formação que necessitamos para estar aptos a praticar a profissão que ambicionamos tendo, à partida, apenas uma garantia: o valor do nosso tempo quantifica-se em experiência! Em momento algum nos é incutido que usufruir do trabalho de alguém deveria ser acompanhado de uma retribuição, se calhar porque se assume que somos jurísticas e sabemos que um quando nos prestam um serviço, o mesmo deve ser retribuído com mais do que uma palmada nas costas. Assim nos tornamos mais uma parte desta roda que gira, há muito viciada sem parecer querer mudar em nada, pelo menos no que ao fundo da hierarquia vai dizendo respeito. E o Estagiário continua a ser visto como uma oportunidade de se “contratar” um funcionário que não poderá fazer qualquer tipo de exigência no que diz respeito a remuneração, porque a Ordem não só fecha os olhos a este facto como deixa claro que sem estes 18 meses, para os quais o este funcionário paga, são uma obrigação, para aqueles que pretendem deixar de ter a sua profissão ser composta por justaposição. De momento, os prazos estão suspensos e muitos são os estagiários que, em termos normais teriam as suas intervenções e assistências restantes mapeadas para que fossem capazes de não só cumprir os números que lhes são exigidos, como ainda ir além dos mesmos, para que dentro desses pudessem escolher aqueles que melhor sirvam o propósito. Contudo, a realidade é que com esta suspensão, cada vez mais se vêm estes colegas com as suas contas apertadas, as suas vidas e planos suspensos, stressados, mas, pelo menos, terão nas suas mentes o conforto de saber que têm por detrás de si uma Ordem que fará das tripas coração para que tudo corra pelo melhor, certo? 108
1ª edição André Caetano andrelombacaetano@gmail.com
Em breve, haverá uma assembleia geral da Ordem dos Advogados, cuja ordem de trabalhos passará pela discussão das CPAS, já que muitos são aqueles que, principalmente durante tempos agrestes como os que a SARS-COV2 trouxe, têm dificuldades em cumprir com esta obrigação (para não falar daqueles que têm dificuldades em trazer rendimentos para suportar das despesas das suas famílias que, pelos vistos, são muitos mas são Peanuts). Para além disso, é fundamental que se proteja a profissão e os seus profissionais, que se vêm excluídos de certos apoios, mesmo que sejam apelidados de instrumentos fundamentais para o cumprimento da justiça! Se, no decorrer da história da profissão, haveria uma altura para se dar algum valor prático a esta afirmação, seria agora, e por agora, refiro-me ao período dantesco que vamos vivendo desde Março do ano passado, para aqueles que ainda forem capazes de descobrir as diferenças entre esse, e o que vamos vivendo… Em suma, esta é a profissão das grandes sociedades, do Moet et Chandon, da construção da aparência de grandeza que, muitas vezes se sustenta no sangue, suor e lágrimas daqueles que caminham nas sombras, coadjuvada pela instituição que a regula, em que seja por ação ou omissão, vai ajudando ao perpetuar das convenções injustas e desadequadas a uma sociedade moderna, justa e que se diz ser regida pelos princípios que nos são ensinados na Licenciatura. Destarte, apesar de tudo, continuaremos a ser vistos como os Advogados do Diabo, porque “este mundo sempre foi assim e deverias dar graças a deus por encontrar alguém que te transmita o seu saber, porque sem isso, não serias nada”.
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A Luz ao Fundo do Poço A humanidade acaba por ser em si mesma um antagonismo, capaz de progredir e incapaz de se sustentar. Conseguimos aterrar com uma sonda num cometa (missão Rosetta), contudo ainda não conseguimos fazer um Sugu de morango com RNA que resolva esta questão num golpe só, sem desdenhar dos recursos que foram, para já, alocados. Reduzidos a um plano incerto onde podemos ver os nossos direitos, liberdades e garantias afetados, esta situação só nos faz despertar a ânsia de querer aquilo que é certo, mesmo sem saber o dia de amanhã a priori. (Ainda que com um raciocínio lógico-dedutivo consistente). Para pôr isto num espectro mais inteligível, a questão que aqui se afigura é simples, una e indivisível: Como será o primeiro dia da aguardada “normalidade”? Perante este ponto de partida, devemos distinguir aqui duas doutrinas e descartar, de imediato, os negacionistas em lato e stricto sensu. Uns podem defender que o virar da folha virá paulatinamente e sub-repticiamente, outros defendem que haverá um gatilho puxado por algum canal televisivo a noticiar que a aguardada “imunidade de grupo” fora, finalmente, alcançada. A minha intuição inclina-se para a segunda opção. Pois, vestido da qualidade de expectador dos 4 canais, vi umas boas dezenas pessoas a ser vacinadas em direto, com direito a rescaldo e algumas lágrimas. – Mas, como diz o filósofo e jogador João Pinto: “prognósticos só no fim do jogo”. Aos que não estão tão a par da fragilidade da demografia, em 2016, na Islândia houve um baby boom tudo por causa da vitória contra a Inglaterra, felizmente ficaram pelo caminho... como o português é calculoso e calculista, esse impacto sentiu-se mais no álcool e não num aumento coletivo de cada agregado familiar. A História não se repete, mas rima. Desta premissa podemos consumar a apofenia de que os loucos anos vinte 2.0 estão ao virar da esquina. Ficará pronta para a colheita da ira e êxtase de festejar os aniversários, 110
1ª edição Luís António de Araújo Monteiro luismonteiro28@gmail.com
as noites académicas, o Natal, a Páscoa, o Pentecostes, a vontade de nos dirigirmos a X pessoa que antes não tínhamos coragem e abraçar cada desconhecido como se tivesse sido nosso colega de secretária na primária. Passamos meses a tentar aplanar a curva de saturação do SNS e a bolha irá rebentar pela cura que lhe atribuímos. Veremos vários seres humanos encostados a um qualquer rodapé, de um qualquer corredor, de um qualquer hospital, tudo isto porque vamos dizer “sim” por todas as vezes que nos foi tirada a opção do sim e do não. Mas, nem tudo está perdido...numa vertente voltada para a situação do tráfego jurídico em Portugal, (mais concretamente dos advogados e do seu exercício), devemos considerar que há uma importante fatia de uma pirâmide onde o meio fica ressalvado por andar em contraciclo com as crises: aumentará a criminalidade, divórcios e os conflitos. Aos que não têm uma cara-metade para viver maritalmente, poderemos sentir uma brisa plena daquilo que é andar em contraciclo. Poderá ser desesperante aguardar o futuro que nunca mais chega, sem ver luz ao fundo do túnel. Todavia, devemos encarar esta situação como um poço e não como um túnel, onde a entrada de luz depende da desobstrução de quem está em cima, e do sol que, com o tempo, incidirá na vertical.
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Agradecimentos Profª Doutora Andreia Barbosa Prof Drª. Isa Meireles Profª Doutora Joana Covelo de Abreu Prof. Doutor Marco Gonçalves Prof. Doutor Pedro Jacob Morais Dra. Ana João de Castro Afonso Maia da Silva Ana Bela Veiga Costa Ana Margarida da Silva Ferreira André Caetano André Silva Ferrinha Eduarda Fernandes Peixoto Francisca Santos Costa Gonçalo Martins de Matos Joana Esteves Silva Joana Pereira Luís Monteiro Luís Nuno Barbosa e Silva Maria João Carmo Nelson Gonçalves Renato de Mello Gomes dos Santos Rita Faria Leitão Rita Ferraz Tiago de Paula Fernandes Carvalho Monteiro Autores dos artigos presentes na Revista Vox Iuris Autores do Artigo “Legislador És Tu! - Um Pé no RGPD, Outro no Futuro” Bárbara Fernandes Artista Plástica autora das ilustrações presentes na Revista Vox Iuris IG: @barbaradartes E-mail: barbarafilipa_1999@live.com.pt Patrícia Rodrigues Design de produção e matéria E-mail: patricia.cunha.rodrigues@gmail.com Catarina Sotto Maior Diretora de Identidade Visual do Departamento de Comunicação da AEDUM 113