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Lucilene Possani
mefibosete a cura emocional na trajetória entre Lo‑Debar (lugar nenhum) e Jerusalém (a cidade santa)
São Paulo, 2017
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Mefibosete: a cura emocional na trajetória entre Lo-Debar (lugar nenhum) e Jerusalém (a cidade santa) Copyright © 2017 by Lucilene Possani Copyright © 2017 by Editora Ágape Ltda. COORDENAÇÃO EDITORIAL
Rebeca Lacerda PREPARAÇÃO
Thiago Fraga REVISÃO
Patrícia Murari Fernanda Guerriero Antunes
CAPA
Dimitry Uziel DIAGRAMAÇÃO
Rebeca Lacerda FOTO DA AUTORA
Tamiris Schmathz
COORDENADOR EDITORIAL
EDITORIAL
Vitor Donofrio
João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda
AQUISIÇÕES
Cleber Vasconcelos
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Possani, Lucilene Mefibosete : a cura emocional na trajetória entre Lo-Debar (lugar nenhum) e Jerusalém (a cidade santa) / Lucilene Possani. -- Barueri, SP : Ágape, 2017. 1. Superação 2. Mefibosete (Personagem bíblico) 3. Sofrimento - Doutrina bíblica 4. Perseverança (Teologia) 5. Deus - Promessas I. Título 17-0484
CDD-248-86
Índice para catálogo sistemático: 1. Vida cristã – Perseverança 248.8
editora ágape ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1112 cep 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323 www.editoraagape.com.br | atendimento@agape.com.br
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Ao meu marido, Atilio, porque me faz ver que sem‑ pre hå mais a ser conquistado.
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Certa ocasião Davi perguntou: “Resta ainda alguém da família de Saul, a quem eu possa mostrar lealdade por causa de mi‑ nha amizade com Jônatas?”. Então chamaram Ziba, um dos servos de Saul, para apresentar‑se a Davi, e o rei lhe pergun‑ tou: “Você é Ziba?”. “Sou teu servo”, respondeu ele. Perguntou‑lhe Davi: “Resta ainda alguém da família de Saul a quem eu possa mostrar a lealdade de Deus?”. Respondeu Ziba: “Ainda há um filho de Jônatas, aleijado dos pés”. “Onde está ele?”, perguntou o rei. Ziba respondeu: “Na casa de Maquir, filho de Amiel, em Lo‑Debar”. Então o rei Davi mandou trazê‑lo de Lo‑Debar. Quando Mefibosete, filho de Jônatas e neto de Saul, compareceu diante de Davi, prostrou‑se, rosto em terra. “Mefibosete?”, perguntou Davi. Ele respondeu: “Sim, sou teu servo”. “Não tenha medo”, disse‑lhe Davi, “pois é certo que eu o tratarei com bondade por causa de minha amizade com Jô‑ natas, seu pai. Vou devolver‑lhe todas as terras que perten‑ ciam a seu avô Saul, e você comerá sempre à minha mesa”. Mefibosete prostrou‑se e disse: “Quem é o teu servo, para que te preocupes com um cão morto como eu?” Então o rei convocou Ziba e disse‑lhe: “Devolvi ao neto de Saul, seu senhor, tudo o que pertence a ele e à família dele. Você, seus filhos e seus servos cultivarão a terra para ele. Você trará a colheita para que haja provisões na casa do neto de seu senhor. Mas Mefibosete comerá sempre à minha mesa”. Ziba tinha quinze filhos e vinte servos. 7
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Então Ziba disse ao rei: “O teu servo fará tudo o que o rei, meu senhor, ordenou”. Assim, Mefibosete passou a co‑ mer à mesa de Davi como se fosse um dos seus filhos. Mefibosete tinha um filho ainda jovem chamado Mica. E todos os que moravam na casa de Ziba tornaram‑se ser‑ vos de Mefibosete. Então Mefibosete, que era aleijado dos pés, foi morar em Jerusalém, pois passou a comer sempre à mesa do rei. (2Sm 9:1‑13)
Há pessoas que nos chamam atenção porque existem alguns aspectos de suas vidas com os quais nos identificamos, e isso também acontece em relação a personagens bíblicos. Inicialmen‑ te, a história de Mefibosete não parece ser atrativa, pois se trata de apenas mais um menino marcado por perdas. Porém, nossa opinião sobre ele pode mudar à medida que investigamos sua história por completo. Não devemos avaliar alguém somente pelo início de sua trajetória, mas considerar também como se desen‑ volveu, sua bagagem e experiência, no que se tornou, e não des‑ perdiçar nenhum detalhe (seja de alegria ou de dor). É por isso que Mefibosete é tão incrível. Meu fascínio por esse personagem deve‑se ao fato de que me vejo muito parecida com ele, tendo que vencer meus fantasmas internos com cautela e coragem ao permanecer firme no pro‑ pósito de crescer. Também entendo a percepção dele sobre algo que Deus tratou profundamente no meu coração em cada fase de meu crescimento espiritual: eu não estou nas mãos de homens, embora as aparências levem a crer que sim… Pode ser que muitos tramem contra nós e que as circunstâncias pareçam desfavorá‑ veis, mas, no final, a vitória é daquele que manteve firme o pro‑ pósito de viver sempre o seu melhor. 8
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Aparentemente a vida de Mefibosete estava lançada como uma folha ao vento. Pessoas e circunstâncias tiravam e davam coisas a ele, mas “para quem sabe ler, um pingo é letra”, e para quem sabe ver a atuação de Deus, Ele estava todo o tempo no con‑ trole, mesmo que parecesse demorado e por linhas tortuosas. Certa vez li o seguinte: “quem confia não trama”. Mefibosete seguiu uma linha reta em direção a Deus, com a pureza de uma criança ingênua e, sem tramar, revelou inteligência. Ele começou como uma criança indefesa, aparentemente víti‑ ma das circunstâncias. Mas seu caráter, aliado aos livramentos de Deus, fez dele um vencedor. Foi capaz de ultrapassar obstáculos que destroem muita gente. Não criou o hábito de ficar paralisado deixando a dor tomar conta do seu cenário mental. Mas teve a ca‑ pacidade de lançar um olhar novo para as velhas pessoas e situa‑ ções, procurando ver sempre pelo melhor ângulo. Seu otimismo e sua vontade de viver o tornaram capaz de manter‑se com o coração aberto para ser abençoado após um longo período de dificuldade. Os versículos que contam a história de Mefibosete fazem parte de um contexto. O rei Saul foi o primeiro rei de Israel, mas logo se revelou pouco inclinado a ouvir a voz de Deus. Por esse motivo, Davi foi ungido pelo profeta Samuel para ser o sucessor no trono, porém Saul continuou exercendo o poder por um tem‑ po. A partir do momento em que o poder de Deus começou a se manifestar na vida de Davi, Saul tornou‑se seu inimigo e procu‑ rava todas as ocasiões para matá‑lo, perseguindo‑o brutalmente. Ele teve de fugir, mas Jônatas (seu melhor amigo e filho de Saul) continuou leal a ele. Ambos fizeram promessas de leal‑ dade um ao outro. Davi prometeu que cuidaria até mesmo da família do amigo, caso ele morresse. E de fato, por Saul desres‑ peitar a soberania de Deus, acabaram morrendo no mesmo dia, Saul e Jônatas. 9
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Esse foi o cenário para Mefibosete, que cresceu em meio a enormes dramas emocionais. Tinha apenas cinco anos de ida‑ de quando perdeu no mesmo dia o pai e o avô em uma guer‑ ra, além de sofrer uma fratura que deixou sequelas físicas por toda a vida. Ficou defeituoso dos dois pés, quando, na tentativa de fuga diante da morte da família real, a ama o derrubou. De uma vez perdeu todo o status adquirido e ainda o que viria a ter, como príncipe. Ao ser alcançado pela desgraça, não faltou um ombro para Mefibosete, pois Maquir o recolheu em sua casa, em Lo‑Debar, ainda que fosse uma estadia temporária. A restituição de Deus já estava sendo preparada, embora só tenha se concretizado quando já era adulto e já tinha um filho chamado Mica. Davi, já no trono, lembrou‑se da promessa feita a Jônatas e convidou o jovem para vi‑ ver no palácio. Além disso, Davi devolveu‑lhe as terras que haviam sido de Saul, seu avô, e pediu para Ziba administrar os bens dele. A lealdade e constância de caráter de Mefibosete, somadas a uma dívida de gratidão que Davi tinha com o pai dele, Jônatas, garan‑ tiram ao jovem uma vida digna e confortável, desfrutar da com‑ panhia do rei e poder criar seu filho, Mica, com toda a segurança. Um revés na vida de Davi fez com que fugisse do próprio filho, Absalão, o qual ameaçava o trono do pai. Davi precisou, então, ausentar‑se do poder durante um período. Ziba, de for‑ ma oportunista, mentiu para o rei e convenceu‑o de que na sua ausência Mefibosete tramava uma traição. Assim, ele conquistou para si os bens de Mefibosete. Mais tarde, desfeito o mal‑entendido, Davi devolveu a Me‑ fibosete metade dos bens, mas aquilo que parecia uma grande injustiça, ou seja, ter apenas metade dos seus bens restituídos, revelou a maior riqueza dele, a qual estava no fato de que des‑ frutava de tudo que era do rei, como um filho. Ele estava curado 10
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emocionalmente tanto para ganhar quanto para perder. Sua fle‑ xibilidade indicava a cura. Essa é a incrível história de alguém que tinha tudo para ser um perdedor, mas foi alcançado pelo poder do Pai, que jamais esquece Seus filhos e que, no tempo certo, mobiliza todos os re‑ cursos para abençoá‑los. Foi uma longa trajetória, de Lo‑Debar, “lugar nenhum”, para a Cidade Santa, lugar de delícias junta‑ mente com o rei.
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Capítulo 1
Esquecido Certa ocasião Davi perguntou: “Resta ainda alguém da família de Saul a quem eu possa mostrar lealdade, por causa de minha amizade com Jônatas?”. (2Sm 9:1)
O primeiro aspecto que me chamou atenção quando comecei a pensar mais profundamente sobre as dores e marcas na alma de Mefi‑ bosete foi o fato de ele ter esperado desde a infância até a idade adulta para que o rei Davi cumprisse uma antiga promessa feita a seu pai, Jônatas. Nada justifica tanto tempo sem desfrutar do que era dele, pois Davi aparentemente se esqueceu de uma promessa feita ao seu amigo mais querido e só foi se lembrar dela muitos anos de‑ pois. Davi era um rei muito atarefado e esse fato mostra que qual‑ quer pessoa pode esquecer‑se de nós, mas no momento oportuno Deus moverá as coisas para que a memória dos homens entre em ação e nos recompense pelo longo tempo de espera. Demorou para Davi restituir a Mefibosete ao menos parte do que ele já havia tido até os cinco anos de idade. Durante todo esse tempo ele teve de amargar a vontade de crescer em companhia da família, com total liberdade e a segurança de um futuro garanti‑ do. Todas essas coisas faltaram a essa grande alma, esse menino que se transformou em homem debaixo de um tempo de escassez emocional e também de muita insegurança financeira, pois não tinha mais nada dele mesmo. Ele é um exemplo de vida porque 13
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sobreviveu, mas não apenas fisicamente. Ele possuía aspectos fun‑ damentais de personalidade e desejo de vida que preservaram in‑ tactas as características essenciais que garantem a um ser humano permanecer em honra e dignidade, apesar de toda a afronta exter‑ na que ameaça roubar a sanidade, a vida, o desejo de prosseguir. Quando penso em Mefibosete vivendo com seu pai, Jônatas, vejo‑o cheio de mimos, sendo tratado de modo realmente espe‑ cial. Todos nós temos um imenso desejo de sermos especiais. É como se um olhar diferente nos tirasse do anonimato do meio da multidão e nos fizesse sentir importantes no mundo. Fazemos diferença, alguém se importa conosco, vale a pena viver, afinal… Mas ele perdeu tantos privilégios que teria motivos para sofrer as perdas pelo resto da vida. Qual é a diferença entre alguém que pode sobreviver a tamanhos solavancos e outros tantos que des‑ falecem sem ao menos ter tentado, abismados que ficam diante da perda, sem coragem para se levantar e prosseguir? Creio que nunca deixou de haver uma íntima confiança, uma centelha que fosse que às vezes enchia o coração dele a pon‑ to de vibrar, embora também por diversas vezes, imagino, a dor tomasse conta de seu coração a ponto de pensar que realmente tudo estava no passado e não voltaria. Eram só lembranças e era melhor esquecer para o sofrimento não ser ainda maior. Por diversas vezes seu coração esperançoso renascia das cin‑ zas com força total e ele pensava: Pode ser hoje o dia da virada! Mas então ele olhava em volta e não via nada diferente e novamente pensava: Estou ficando louco. Como alguma coisa vai mudar se passei a vida me arrastando sobre esses meus pés tortos, sobre minhas dolorosas lembranças e nada de diferente fiz? Todas as minhas realizações não significam nada, sou um imprestável. Não é difícil imaginar que toda essa gama de sentimentos e muitos outros povoavam a mente de Mefibosete. Afinal, ele era 14
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tão humano quanto qualquer um de nós. Não era um herói, mas, valente, lutou contra o pessimismo e o desânimo para sobreviver a ponto de ainda recompor parte de sua história de vitória passa‑ da e acrescentar muitas outras no presente. Quando vemos que a esperança de Mefibosete não tardou e nem falhou, mas veio no momento certo em que Deus sabia que ele estava pronto, reacende também em nós a esperança, afinal pode ser hoje o dia em que Deus chama alguém para se lembrar de nós e nos fazer entender que todo o tempo de espera realmen‑ te valeu a pena. Por quanto tempo nossa esperança pode suportar? Resistir ao ser esquecido exige paciência e fé; caso contrário, seria inevi‑ tável desesperar‑se e desistir da vida. A sensação de ter sido es‑ quecido gera na alma uma enorme sensação de solidão e vazio, como se a vida acontecesse em volta enquanto estamos cercados por todos os lados, ilhados. Em muitos momentos parece que a vida não vale a pena, porque já estamos esgotados dos nossos próprios recursos. Não podemos fazer nada por nós mesmos. As mãos estão atadas e o pensamento confuso. Depois de muitos anos vivendo em uma condição dolorosa e não vendo mudanças, parece impossível ter esperança de que alguma circunstância externa a nós mude e nos ofereça melhores condições de vida. E para Mefibosete houve muitos longos anos de espera. Será que às vezes sua alma de criança não mirava os caminhos desejando que em algum momento seu pai, Jônatas, e seu avô, Saul, chegas‑ sem, majestosos? Mas com o passar do tempo a fisionomia deles foi ficando cada vez mais difícil de ser definida em sua memória. Só restaram algumas lembranças de momentos muito especiais guar‑ dados com afeto. Seu mundo tinha desmoronado e nada faria as coisas voltarem ao normal. Essa era a realidade a ser encarada. 15
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Ao que tudo indicava, de repente Davi quis saber sobre a des‑ cendência de seu amigo Jônatas, ou seja, só muitos anos depois de sua morte. As circunstâncias preparadas por Deus conspira‑ vam por Mefibosete apesar da catástrofe que havia acontecido a ele um dia. Parecia até mesmo que Davi tinha sido desleal ao seu grande amigo, pois prometeu cuidar da família dele caso morresse, no entanto cumpriu a promessa muitos anos depois. Isso mostra que podemos depositar a nossa confiança no ser hu‑ mano, porém ela é limitada em relação às suas falhas de caráter e ele desconhece o tempo da nossa necessidade, mas Deus usa até mesmo esses inconvenientes, transformando‑os também em bênçãos para nós no tempo oportuno. Mas por quanto tempo a esperança poderia durar? Fico ten‑ tando imaginar a triste história de Mefibosete. Ele sofreu um trauma complexo aos cinco anos de idade, perdendo o avô, o pai, o prestígio social e a possibilidade de desenvolver normalmente seu corpo. Parecia que todas as esperanças de sua vida haviam acabado em um único dia e ele esperou até a idade adulta para que a restituição acontecesse. Ele estava totalmente indefeso, não contava com recursos próprios para sobreviver física e emocionalmente e havia pas‑ sado por uma enorme desestabilização diante dos traumas que viveu; dependia totalmente de ser acolhido e de adultos que pos‑ sibilitassem condições de sobrevivência dignas para prosseguir; estava vulnerável por completo, sem proteção mental e emocio‑ nal, pois não tinha ideias, conceitos, formação moral e desejos definidos, além de não compreender a complexidade da vida. Ele precisava de apoio total para desenvolver‑se de forma saudável. Ele estava com cinco anos de idade, época em que crianças querem saber de tudo, perguntam tudo e querem entender as coisas em profundidade. Como teria ficado sua mente depois de 16
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todas as perdas sofridas? Estava em uma idade na qual a fantasia e a realidade se confundem muito. Mas, em dado momento, ele teve de encarar o desmoronamento de seu mundo, pois para não ce‑ der à loucura há dois caminhos prováveis: negar encarar os fatos e viver apenas superficialmente ou encarar a realidade por inteiro. A primeira opção condena a pessoa a uma vida medíocre e super‑ ficial, ao passo que a segunda, apesar de muito difícil, é altamente libertadora. Uma maioria esmagadora tem escolhido a primeira. Com toda essa circunstância envolvida, podemos imaginar como foram os dias de espera de Mefibosete. As circunstâncias não eram as melhores, as perspectivas eram as piores. Não havia nada em que ele pudesse se apoiar e que lhe desse uma direção, embora Maquir o tenha socorrido. Quando as perdas acontecem todas de uma vez, nocauteiam a alma, a qual pode não se recupe‑ rar, devido à perda da noção de segurança, de bases sólidas nas quais se apoiar e também devido à falta quase total de referências. Muitas crianças que sofreram traumas tiveram sua vitalidade ceifada e jamais voltaram a se estabilizar e ter uma vida normal. Afinal, tudo aquilo que lhes dava segurança e esperança se esvaiu. Os dias iam se passando, sem que nada parecesse mudar para Mefibosete. Continuava com suas limitações físicas (era car‑ regado ou arrastava‑se) e precisou se adaptar a elas. Quem sabe houvesse uma vaga lembrança das perdas, momentos em que a imagem de seu pai, Jônatas, desenhava‑se em sua mente, bem como as brincadeiras que tinha com outras crianças e as corre‑ rias pelo quintal do palácio. Anos e anos se passaram até que ele tornou‑se adulto, teve um filho e só então, num dia que parecia um qualquer, como que por acaso, Davi lembrou‑se da casa de Saul e de seu velho amigo Jônatas e quis honrá‑lo, juntamente com Saul, mesmo que esse último tivesse se posicionado como um inimigo. 17
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A pergunta que não quer calar pode acontecer nesse momen‑ to: Mas por que, afinal, ele não pensou em cumprir essa promessa muitos anos atrás? Então Mefibosete poderia ter continuado ao menos com os mesmos requintes na casa do rei, não teria sentido mudanças tão bruscas e perdas de entes queridos e da própria casa. Quantos desses porquês temos também pela vida, sempre pensando que poderia ser diferente, que tudo poderia ter se an‑ tecipado, que um milagre poderia ter acontecido em tempo opor‑ tuno. Se tivéssemos condições de prever que algo daria errado, poderíamos evitar; se soubéssemos que nosso casamento poderia não dar certo, então não casaríamos etc. Se… se… se… Quantas vezes o tempo parece ser nosso maior inimigo, pois por causa da perda dele não podemos mais ser, ter, conquistar, fazer o que gostaríamos. Tanto tempo passou, e agora? Será que Mefibosete podia se expressar normalmente, cho‑ rar, falar da família? Será que havia alguém para ouvi‑lo? Muitas vezes exige‑se de quem está com uma grande dor na alma que o tempo todo demonstre o que normalmente as pes‑ soas chamam de equilíbrio, mas na verdade é um represamen‑ to de sentimentos. A todo tempo é exigido que nossas emoções não sejam manifestadas, que não haja gritos, choros, desespero, mas que o silêncio demonstre que há força e superação, que não estamos nos importando enquanto o tempo passa e nossas vi‑ das parecem escorrer pelo vão dos dedos… Criamos assim uma represa de sentimentos que com o tempo vão se acumulando até terem vazão natural ou explodirem em crises tremendas de ansiedade e pavor. Será que esse era o padrão exigido de Mefibosete? Muitas ve‑ zes os adultos não entendem a dor de uma criança e dizem: “Está com medo por que, se eu estou aqui?”. Esse tipo de questionamen‑ to demonstra que o adulto raramente entende a profundidade da 18
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dor da criança e cobra que ela não se manifeste, pois seria entendi‑ do como sinal de que está insatisfeita com o que estão dando a ela. O silêncio muitas vezes pode ser a maior dor para quem precisa desabafar e não pode. As palavras entaladas na garganta podem asfixiar de sentimentos e até mesmo criar pessoas insen‑ síveis, pois se submeteram a esse padrão e jamais voltam a recon‑ quistar a sensibilidade natural novamente. Usam o silêncio como forma de defesa para não mexer nas grandes dores da alma, enterrando‑as com camadas de superficialidade e vocabulário ‑padrão que é esperado das pessoas aparentemente equilibradas. O longo tempo de espera pode ser um golpe fatal na sanidade mental de um ser humano e, além de toda perda sofrida, esse foi um grande risco para Mefibosete também. Creio que ele foi pre‑ servado ao entender que não era normal tudo que lhe acontecera e não adiantava tentar disfarçar. A situação era de total indigna‑ ção, mas ele podia aguentar, até que Deus interferisse. Há um filme de que gosto muito: Um sonho de liberdade. Dois dos personagens são homens que ficaram por tantos anos na pe‑ nitenciária que se institucionalizaram, ou seja, tomaram forma da instituição, não sabendo mais viver fora dos padrões dela. A prisão havia sido a casa deles durante muito tempo e então já não sabiam mais nada sobre o padrão normal de se comportar. O mais velho deles foi liberado depois de ter cumprido cinquenta anos de prisão e fez de tudo para permanecer na cadeia, atacan‑ do um colega com uma faca, tentando manter a posição mar‑ ginalizada para não sair da prisão, mas não conseguiu êxito e, por fim, foi liberado. Arrumou um emprego de empacotador em um supermercado e um quartinho para morar, mas na primeira oportunidade se enforcou, pois na prisão havia sido o chefe da biblioteca e fora dela não tinha referências de vida. Na prisão sua vida era muito limitada, porém sabia o que fazer, tudo estava no 19
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controle, e fora precisaria começar tudo de novo e não teve estru‑ tura para isso. O outro personagem era um senhor maduro e ainda bem for‑ te fisicamente, também institucionalizado. Havia permanecido por mais de vinte anos na prisão e todos os anos passava pelo exa‑ me de liberação. Uma bancada de profissionais de saúde men‑ tal fazia uma série de perguntas às quais ele respondia passiva e pacificamente. Uma delas era sobre sua capacidade de viver em sociedade e ele sempre respondia que se considerava apto, que já havia se redimido de seu crime. Mas a resposta dos profissionais era um carimbo de: REPROVADO. Todo o ano acontecia o mesmo processo, mas, na época de seu último exame, esse homem havia tido contato com um pre‑ so que jamais experimentara o aprisionamento de alma, embora seu corpo tivesse permanecido preso por muitos anos. Sob essa incrível influência, ele se submeteu a mais um exame e dessa vez comportou ‑se totalmente diferente. Quando os profissionais perguntaram se ele se considerava apto para viver em sociedade ele esbravejou e disse algo mais ou menos assim: “O que esperam que eu responda? Não importa o que eu responda, tem sido assim por muitos anos; não importa o que eu diga, no final vão carim‑ bar REPROVADO. Querem saber se eu me arrependo? Todos os dias eu me arrependo do que fiz, mas não posso voltar atrás…”. Ele falou tudo que estava entalado na garganta para aqueles profissionais e em seguida apareceu o resultado surpreendente: APROVADO. Como profissional de saúde mental, a primeira vez que assis‑ ti a esse filme fiquei encantada com essa cena. Aparentemente ele estava desequilibrado, confuso, agressivo, mas os profissionais entenderam que agora estava saudável, pois conseguia manifes‑ tar sua humanidade, sua indignação e o grande arrependimento 20
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que o consumira durante todos esses anos. Um ser humano que ainda é capaz de manifestar indignação é saudável, pode se recu‑ perar de dores, traumas, pode seguir sua vida. Mas infelizmente o padrão do que chamamos normalmente de equilíbrio tem atra‑ palhado muita gente de seguir em frente. Longo tempo de privação pode adoecer para sempre a alma que não manteve um foco muito claro e os sonhos intactos, ape‑ sar da dor e da ausência de recursos imediatos para viver toda a sua potencialidade de vida. Uma vez li uma história sobre um rei muito curioso que queria saber qual a reação de um ser humano ao ser trancafiado em uma jaula como um animal de circo. Por longo período ele observou do alto de sua janela alguns de seus súditos para saber qual deles seria o alvo de sua experiência. Um homem tinha uma vida tão absolutamente comum que ele decidiu fazer desse o alvo de sua pesquisa. Era um desses tipos que saíam todos os dias no mesmo horário para trabalhar, voltavam sempre no mesmo horário, davam aquele desanimado beijo em sua esposa e filhos, dormiam sempre no mesmo horário, às vezes tinham relações se‑ xuais com sua esposa, enfim… O homem foi pego à força e levado para uma jaula que fi‑ cava no centro do quintal do palácio e que já havia pertencido a um tigre. O homem esbravejou muito, ficou indignado e sacudia freneticamente a jaula, embora em uma tentativa inútil… ele sim‑ plesmente não parava. Jogava para cima o prato e o copo dispos‑ tos no chão da jaula, até esmigalhar cada pedacinho; mostrou‑se revoltado, gritou até perder a voz e então se sentou exausto, até pegar no sono, ali, jogado no chão. Na manhã seguinte, não foi trabalhar, porque estava preso, então alguém lhe serviu um prato de comida e um copo com água. E, como a voz já estivesse par‑ cialmente recuperada, ele se recusou a comer e pôs‑se a gritar, 21
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desesperadamente. À tarde, exausto e com fome, pegou o prato de comida fria e comeu um bocado. A noite chegou e um gran‑ de cansaço, então ele se rendeu ao sono e a uma noite de parcial descanso no chão forrado apenas por um pano macio. No outro dia, vociferou um pouco pela manhã, mas percebeu que não era bom negócio ficar sem comer ou comer a comida fria. Então, logo que foi servido, tratou de esvaziar o prato. Ainda sacudiu o corpo dependurado nas grades, mas não obteve resposta; cansa‑ do de reclamar, começou a observar o cenário em volta. Embora enjaulado, podia observar todas as belezas do palácio, tinha co‑ mida no prato e podia dormir quando quisesse. Muitos curiosos aproximavam‑se para olhá‑lo e, embora nem conversassem com ele, o contato com as pessoas não chegava a ser mais frio do que o que tinha com a esposa e os filhos, era apenas diferente. Em uma semana, ele estava mais tranquilo, habituado à co‑ mida e a condições precárias de higiene. Pensava nas vantagens de estar ali parado sem as rotineiras cobranças da esposa e as obrigações com os filhos. E mais: não precisava trabalhar. Em duas semanas, sentia que aquele era seu lar e não trocava o conforto da comodidade que tinha ali pela selva e luta pela vida representada pela convivência em família e sociedade. Em um primeiro momento, quando as pessoas o viram es‑ bravejando pela vida, acharam a cena horrível e o consideravam anormal, animalesco e desequilibrado. Além de ter de enfrentar a dor da prisão, tinha que ouvir também os comentários mais sór‑ didos sobre sua personalidade indomável e seus berros ensurde‑ cedores. Mas quando parou de se debater, só ouvia elogios, frases fantásticas sobre sua capacidade de adaptação e equilíbrio emo‑ cional ao se aquietar e sossegar. Quem olha de fora jamais sabe por que gritamos, por que nossa alma chora, por que o cansaço nos abate. As pessoas veem 22
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um relance de nossa vida e acreditam que já conhecem tudo, jul‑ gando superficialmente o equilíbrio e o desequilíbrio. Embora possamos silenciar por fora para atender ao apelo social de que mantenhamos as aparências, dentro de nós precisa‑ mos continuar indignados ou não sobreviveremos como pessoas, essa é condição fundamental para manter a saúde mental. Um bebê muito quieto pode ser visto como um modelo de tran‑ quilidade, mas muitas vezes já desistiu e por isso se excluiu do con‑ vívio, parando de se expressar da única maneira que sabe, ou seja, pelo choro. Indignação e inquietação muitas vezes são parecidas. Nunca me esquecerei de um programa de reportagem ao qual assisti, sobre uma região pobre do Brasil onde muitos pais seguem com a tradição de que as filhas devem ter a primeira re‑ lação sexual com o genitor. Um dos pais entrevistados não havia parado por aí e teve vários filhos com a própria filha. Esse pai tinha no rosto um sorriso maroto, de esperteza. Res‑ pondia às perguntas abertamente e de modo malicioso, como se fosse a coisa mais normal do mundo o que ele havia feito e em ne‑ nhum momento demonstrou qualquer arrependimento. Quando a jornalista finalmente perguntou o que a filha dele achava disso, ele respondeu: “Vai perguntar pra ela”. Creio que a maioria das pessoas que estava assistindo não conseguia conter um acesso de raiva diante daquela cena bizarra. A jornalista então foi entrevistar a filha, a qual, também com um sorriso maroto, confirmou o que o pai dizia, garantindo que não era forçada a nada, que era mulher do pai. Meu temperamento tende à ira, no entanto me concentrei naquele ser humano, mesmo sugestionada a sentir raiva por sua resposta. Refleti sobre todas as circunstâncias que cercavam aque‑ la moça e lembrei‑me de uma frase que marcou há muito tempo minha vida: “Quem cala nem sempre consente, mas muitas vezes 23
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se submete”. Deus não leva em conta o que as circunstâncias nos obrigaram a fazer, mas espera que não nos acomodemos. Fiquei imaginando aquela menina sendo abusada des‑ de muito nova, e o pai manteve esse padrão de relacionamento como algo normal, inclusive aprovado pela cultura local. A me‑ nina tinha duas opções: ou aceitava a condição de ter se tornado amante do pai ou ficaria literalmente louca diante do fato de que precisaria conviver com a presença e o toque dele, sistematica‑ mente, de forma indevida. Fiquei pensando que a defesa de mui‑ tas pessoas em um caso semelhante também fosse a de se subme‑ ter para sobreviver, e não de lutar e se indignar. Se a indignação é uma condição saudável da vida, essa moça estava muito longe da sanidade mental, provavelmente. Nossa tendência seria tachá‑la de “sem‑vergonha”, mas, quando olhamos para a situação deses‑ peradora que um ser humano está vivendo, precisamos analisar sob todos os ângulos. Não foi uma escolha dessa menina ter relações com o pai. Po‑ rém, inconscientemente, ela pode ter se submetido a continuar se relacionando com ele pacificamente, pois estaria protegida de ser ferida e de sentir a própria impotência diante de um homem muito mais forte e detentor de um tremendo poder emocional sobre ela. Em muitos casos, submeter‑se pode ser a salvação tem‑ porária, embora o indivíduo seja levado a uma vida superficial e doentia emocionalmente. Há muitos anos ouvi falar de uma mulher cuja filha era abu‑ sada sexualmente pelo pai. Ela parecia ter consciência de que era uma situação completamente errada. Mas quando, em determi‑ nado momento, ela demonstrava indícios de sua indignação e a necessidade de tomar uma providência drástica, pareceu retroce‑ der vertiginosamente ao soltar uma frase contrastante e absurda: “Pelo menos ele não precisa procurar mulher fora”. 24
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Essa frase é um grande disparate para qualquer pessoa que leve uma vida normal e correta. Quando ouvi isso, tive de conter a ira e respirar fundo para conseguir continuar ouvindo o relato. Mas o que me motivou a interpretá‑la dentro de um contexto foi o fato de que havia nela uma total inaptidão para gerir a própria vida. Ela estava completamente impotente. Não sabia se defen‑ der, então como conseguiria preservar a própria filha? O estado emocional dela era o de alguém que já havia “en‑ tregado os pontos”. Ela não dava mais indícios da capacidade de indignar‑se, essa que é natural e saudável a qualquer indivíduo. Ela não possuía mais esse impulso incrível que move as pessoas a entenderem que precisam tomar uma atitude sobre algo fun‑ damental. A primeira coisa a fazer era conseguir ouvi‑la, apesar dos absurdos que dizia, e dar respaldo, até ela se estruturar. À filha, só restava ser tirada daquele convívio doentio até que a mãe conseguisse reagir em defesa própria, para, então, adquirir for‑ ças para defendê‑la. A mãe acreditava que, sozinha, não teria como sustentar os filhos. Então, sem se dar conta, sacrificava uma das filhas para que os outros pudessem permanecer sendo sustentados pelo pai. A mente dela estava tão insana a ponto de ela não conseguir perce‑ ber que, se a família continuasse se sujeitando a tal circunstância, todos iriam ficar extremamente doentes emocionalmente. Não adiantava apenas argumentar com ela, pois não era fruto de uma decisão racional, ela simplesmente não tinha forças para romper com a situação naquele momento e precisava de toda ajuda possí‑ vel. A aparente frieza com que enfrentava aquele cenário não signi‑ ficava nenhum tipo de maldade, mas um profundo desequilíbrio. Em meio a situações de grandes perdas, somente um coração indignado (e não uma mente prestes a perder a sanidade) é capaz de suportar o tempo de espera para corrigir a rota, mantendo a 25
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dignidade de preservar sentimentos humanos normais. Mefi‑ bosete conseguiu tudo isso, pois preservou sentimentos como gratidão (soube reconhecer o gesto de Davi ao dar‑lhe abrigo), dignidade, honra etc. E conseguiu prosseguir a vida dentro de um padrão de normalidade. Teve pelo menos um filho, chamado Mica, o que comprova que se relacionou, prosseguiu com a vida. Sobreviver a tanto tempo de espera, mas não apenas como um corpo vivo, e sim também como uma alma vibrante demons‑ tra sanidade mental e espiritualidade avançada, capaz de superar obstáculos.
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