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Sementes Crioulas

O papel da agrobiodiversidade na construção de saberes Diego Henrique Limberger1

A agricultura convencional, instalada após a Revolução Verde, provocou uma gradativa substituição das sementes tradicionalmente cultivadas pelos agricultores no país, por sementes geneticamente melhoradas, geralmente híbridas, cuja produção está totalmente nas mãos de empresas especializadas. Assim sendo, os agricultores não só deixaram de produzir suas sementes, como também perderam o hábito e o conhecimento necessário para realizar sua seleção. Com isto, evidentemente, ocorreu e continua ocorrendo o desaparecimento de toda uma variabilidade genética, anteriormente disponível nas variedades cultivadas, todas elas selecionadas ao longo de muitos anos, e portanto, altamente adaptadas às condições específicas de clima e solo predominantes em suas condições de cultivo. Este processo é especialmente significativo no caso das plantas hortícolas, em que a grande especialização dos cultivos comerciais e a intensa substituição dos materiais genéticos têm levado a uma erosão drástica das variedades hortícolas antigas, tradicionalmente cultivadas entre os agricultores familiares.

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Atualmente, há um intenso esforço, por parte das megaempresas produtoras de sementes, já associadas com empresas produtoras de insumos agrícolas, para que sejam novamente substituídas as sementes que estão em uso, por sementes que apresentem modificações genéticas produzidas por transgenia, sob a alegação de maior produtividade, menores custos aos produtores, entre outras vantagens. Este é um processo que necessita urgentemente ser revertido, sob pena da humanidade colocar sua segurança alimentar à mercê dos interesses exclusivos de algumas poucas empresas transnacionais.

Vale salientar que a tendência mundial dos consumidores é a busca por alimentos mais saudáveis e com menor risco de contaminação com agrotóxicos, em especial quando se trata de plantas consumidas in natura, como é o caso de grande parte das plantas hortícolas. Porém, as iniciativas na promoção da manutenção e multiplicação da biodiversidade ainda são muito insipientes diante da deterioração da biodiversidade provocada pela pressão comercial/tecnológica para a adoção de produtos transgênicos e dos ditos “geneticamente melhorados”.

1 Monitor da Área de Produção Agropecuária EFASC, Tecnólogo em Horticultura, Especialista em Educação do Campo e Desenvolvimento Regional – UNISC, Mestrando em Ambiente e Sustentabilidade – UERGS.

O processo agrícola e da produção de sementes

O desenvolvimento da agricultura, desde o seu surgimento, tem relação direta no conhecer e melhorar plantas silvestres para que se tornem mais produtivas e atrativas ao consumo dos povos. Este processo gerou uma gradativa seleção de materiais geneticamente mais adaptados ao ambiente, mas também que apresentassem maior vigor e maior produção de suas partes comestíveis.

Esta seleção gradativa foi a que permitiu a geração de espécies vegetais como o milho, por exemplo, o qual, pelo intenso e longo trabalho de cultivo e seleção maçal a ele direcionados (SOARES et al., 1998), modificou-se genética e fenotipicamente de tal forma em relação a seu ancestral selvagem – o Teosinto, a ponto de sua identificação, com precisão, só ser possível pelas modernas técnicas de engenharia genética (VEASEY et al., 2011).

Conforme Gliessmann (2000), o melhoramento genético de plantas foi, aos poucos, sendo aperfeiçoado, vindo a estabelecer-se como ciência. Com isto, foi possível direcionar mais diretamente esta seleção para os interesses humanos. Segundo o mesmo autor, atualmente a biotecnologia e a engenharia genética tornaram possível incorporar traços e características em plantas e animais de forma nunca antes possível para a humanidade.

Todo esse avanço tecnológico e de conhecimento genético foi e é importante para o desenvolvimento da agricultura, mas não há fácil acesso a esses saberes, ficando assim a agricultura familiar camponesa dependente do alto custo de insumos para realizar suas produções. Conforme Altieri (2002), a crescente uniformidade genética dos cultivos é um dos principais motivos da insustentabilidade da agricultura convencional. Segundo Gliessmann (2000), a base genética da agricultura estreitou-se de forma perigosa, pois a humanidade está cada vez mais dependente de poucas espécies cultivadas e de um pequeno número de genes e combinações genéticas disponíveis nestas espécies. Além disso, com a disponibilidade de novos insumos, oferecida por este modelo de agricultura, houve também uma inversão do sentido da seleção, ou seja, ao invés de selecionarem as plantas para que produzam melhor em um determinado ambiente, passou a ser possível (e adotou-se como regra) alterar o ambiente para que as plantas expressem todo o seu novo potencial genético de produtividade.

A Agroecologia, por outro lado, propõe que os recursos genéticos dos diferentes cultivos agrícolas, estejam disponíveis aos agricultores (CANCI, 2002), e que sejam por eles guardados e intercambiados de forma a garantir a agrobiodiversidade e com ela, a adaptabilidade dos cultivos aos diversos ambientes e à sustentabilidade dos agroecossistemas.

Agrobiodiversidade e Segurança Alimentar da Agricultura Familiar

A “diversidade” na agricultura, por parte das famílias, é o que garante o sustento no dia a dia, pois em períodos difíceis, do setor do tabaco, na região do Vale do Rio Pardo, é o que faz as famílias

darem seus “jeitos” para sobreviverem, e a produção de alimentos, aliada aos materiais crioulos existentes na propriedade, são as garantias da segurança alimentar, neste espaço rural invadido pelas monoculturas.

Faz parte da cultura da agricultura familiar a estratégia das trocas de sementes e de materiais de propagação vegetativa de cultivos alimentícios, mas infelizmente, estamos em processo de perda deste costume. Marques et al. (2007) identificaram com clareza esta realidade em sua pesquisa sobre a circulação de alimentos entre os agricultores familiares do Vale do Taquari/RS:

Os sistemas agrícolas tradicionais, desenvolvidos pelos agricultores familiares, apresentam produtividades sustentáveis (NORGAARD, 1979, apud ALTIERI, 2001). Uma característica notável desses sistemas é o grau de diversidade das plantas, geralmente na forma de policultivos e/ou padrões agroflorestais (CLAWSON, 1985, apud ALTIERI, 2001). Essa estratégia de minimizar o risco, através do cultivo de várias espécies e variedades de plantas, estabiliza a produtividade a longo prazo, promove a diversidade do regime alimentar e maximiza os retornos com baixos níveis de tecnologia e recursos limitados (NORGAARD, 1985, apud ALTIERI, 2001).

As técnicas produtivas desenvolvidas, ao longo da vivência dos agricultores familiares, são o que garante o nível de reprodução social das propriedades, a sustentabilidade e a segurança de alimentos para as famílias e animais. O conhecimento popular é, portanto, muito rico, mas, como afirmam Mafra et al. (2007), ele não tem dado conta da recuperação e manutenção sustentável dos recursos naturais já muito degradados.

Primavesi (1992) nos lembra que “plantas adaptadas à sua terra, darão boas colheitas com poucos adubos e poucos agrotóxicos.” Os “poucos” agrotóxicos têm a necessidade de serem “nulos” para garantir a qualidade e a segurança alimentar e a não contaminação das sementes.

As sementes crioulas, que antes eram responsáveis pelo sustento da agricultura familiar camponesa, estão em constante risco

“A troca de sementes e materiais de plantio é prática inscrita em estratégias fundantes da sustentabilidade da agricultura e um dos mecanismos mais difundidos em sistemas agrários tradicionais, pois garante a manutenção do conhecimento associado às diferentes espécies e variedades, bem como à diversidade genética, seguro importante contra riscos de frustração de colheitas e perda de recursos alimentícios importantes.” (p.168).

de desaparecimento. Segundo a Comissão Pastoral da Terra do Rio Grande do Sul (2006), as sementes crioulas são mais difíceis de serem encontradas em diversidade de culturas e também em quantidade dentre os agricultores. Ziembowicz et al. (2007) nos mostra que esse fenômeno vem ocorrendo aos poucos no seio da agricultura familiar camponesa e que as famílias buscam resistir à degradação da agrobiodiversidade e dominação das sementes pelo mercado agrícola.

O Espaço das Sementes Crioulas: Agroecologia e saberes

O trabalho com sementes crioulas acontecia na Escola Família Agrícola - EFASC em espaços informais, eventos, feiras de sementes, no qual os jovens, em formação, compartilhavam e trocavam as suas sementes. No entanto, não era reservado um espaço que mobilizasse esses estudantes a pensarem sobre a origem, técnicas produtivas, materiais tradicionais dessas sementes, sempre foi trabalhado, durante a formação, de forma “genérica”, embora estivesse sempre imbricado, devido ao amplo debate sobre a agroecologia.

Como promotora e problematizadora, a área Produção Agropecuária - PA vem fazendo a discussão com os estudantes de ensino médio e técnico da EFASC sobre processos de transição agroecológica, produção de alimentos, sistemas agroflorestais, manejo e conservação de solo, nutrição orgânica de plantas, dentre tantas outras temáticas advindas da Agroecologia.

Uma dessas temáticas é o eixo formativo de sementes crioulas, na qual se discute toda a importância, conceitos, meio de multiplicação, pureza genética, qualidade de sementes. Além disso, discutimos o uso delas na agricultura e a importância de um banco de sementes comunitário-vivo, que possibilite a apresentação de todas as culturas e cultivares disponíveis, que já ultrapassam 120 tipos de sementes e materiais crioulos. A distribuição dessas sementes é realizada no início da primavera para multiplicação, cujo, cada estudante escolhe a variedade e a quantidade de sementes crioulas que desejam levar para sua propriedade, conforme gostos, vontades e necessidades.

Durante a sessão familiar, o jovem desenvolve experimentos na propriedade, em diversos cultivos/produções com o enfoque na Agroecologia, para aprender com a sua própria práxis. No processo de ação-reflexão-ação, é objetivada a valorização e o resgate dos recursos naturais e genéticos existentes no meio onde vive, com destaque para as sementes crioulas.

A proposta pedagógica da Pedagogia da Alternância é que ao vivenciarem o seu próprio dia a dia, durante o tempo-comunidade, exerçam práticas diferenciadas e diferenciadoras daquela rotina, possibilitando a emergência de uma visão crítica e transformadora do mundo vivido. E que durante a sessão escolar, este estudante possa partilhar a realidade vivida, ora temático, ora institucional, ora geográfico, através de uma apresentação/ instalação pedagógica, que forme recortes ou aproximações à dimensões vivas dos contextos estudados. (BARBOSA, 2010).

A presença das sementes nas propriedades provocou os jovens e as famílias a retomarem costumes perdidos, como a de produzir farinha a partir do milho e/ ou ter independência para realizarem as suas produções de alimentos com práticas agroecológicas, porque as famílias entendem que a produção, a partir de sementes crioulas, não devem ser usados adubos sintéticos e/ou agrotóxicos, porque elas são trocadas com os vizinhos e também são armazenadas para a próxima safra.

As sementes crioulas também propiciaram a juventude construir conhecimentos técnicos e populares sobre as culturas que escolheram para multiplicação em suas propriedades, como por exemplo, aprenderam que as fases da lua, para a semeadura e para a colheita, interferem diretamente na produção e tempo de armazenamento para que não haja ataques de insetos que acometem os grãos. Aprenderam também, o espaçamento das culturas, épocas de semeadura, profundidade, adubação, tratos culturais, tempo para florescimento, ciclos e dentre tantos outros, o que embasa e reforça ainda mais os conhecimentos teóricos discutidos em sala de aula pela PA. A juventude do campo e suas famílias apontam a importância da continuidade deste trabalho com as novas turmas ingressantes na EFASC. Ratificam também, a importância de ter um banco de referência para trocas de materiais genéticos, potencializando a variabilidade genética da agrobiodiversidade, pois uma cultivar, produzida por muito tempo em mesmo local, e sem os devidos cuidados de seleção de plantas, na próxima safra, pode influir na queda de produtividade devido a segregação genética.

A partir deste trabalho, é perceptível a necessidade de avanços em políticas públicas, nos âmbitos municipais e estaduais, para a promoção e uso das sementes

crioulas nos cultivos da agricultura familiar. Sementes estas, crioulas e adaptadas a uma determinada região, como já vivenciamos com o Programa de Aquisição de Alimentos que tinha a modalidade da compra de sementes e materiais crioulos para distribuição a outras famílias agricultoras da região. E para que esses jovens possam ser multiplicadores, juntamente com suas famílias, podendo acessar mercados locais gerando mais uma fonte justa de renda a estas famílias.

Realizar o trabalho com sementes crioulas, por dentro de uma formação de ensino médio e técnico de filhos/as de agricultores familiares, muda completamente o paradigma imposto pela agricultura industrial e produtivista, que todas essas práticas, genéticas crioulas e saberes populares da agricultura familiar são um atraso nos tempos vividos. Este instrumento pedagógico, o Espaço de Sementes Crioulas da EFASC, proporciona essa quebra de paradigma, abrindo portas às práticas agroecológicas no meio sócio-familiar de cada jovem, potencializando o processo de transição produtiva, de melhoria na alimentação de autoconsumo e trocas de saberes populares e científicos entre família e comunidade.

O trabalho com as sementes crioulas e o aumento da diversidade no Espaço das Sementes Crioulas - ESC foi possível também pelo amplo aceite das famílias em formação, pois o acesso às sementes e acompanhamento da multiplicação por seus filhos e filhas possibilitou o resgate de diversos saberes, costumes e práticas na propriedade e que, com o passar do tempo, passarão a ter autonomia produtiva de seus espaços de reprodução social.

REFERÊNCIA: GLIESSMANN, S.R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 653p. 2000. VEASEY, E.A. et al. Processos evolutivos e a origem das plantas cultivadas. Ciência Rural, Santa Maria, v.41, n.7, p.1218-1228, 2011. ALTIERI, M. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. Guaíba: Agropecuária, 592p. 2002. MARQUES, F.C.; MENASCHE, R.; TONEZER, C.; GENESSINI. A. Circulação de alimentos: dádiva, sociabilidade e identidade. In: MENASCHE, R. (Org.) A agricultura familiar à mesa: saberes e práticas da alimentação no vale do Taquari. Porto alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, p.154-176. 2007. MAFRA, M.S.H.; FLORIANI, G.S.; COMUNELLO, F.J.; AMORIM, C.C.; GÚTTLER, G. Desenvolvimento de coleção de cultivares crioulas de hortaliças no planalto catarinense. Rev. Bras. Agroecologia, v.2, n.1, p.1761-1764. 2007. BARBOSA. Willer Araújo. Por uma terra sem males: Um outro mundo é possível. Disponível em <: http://www.ufsm.br/lec/02_02/WillerLC8.htm>. Acessado em 06/01/2017.

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