11 minute read

As mulheres na pedagogia da alternância da EFASC

Next Article
Sementes Crioulas

Sementes Crioulas

Quem são as mulheres da pedagogia da alternância da EFASC?

“quando vi que eram só essas meninas, me espantei um pouco, pensei que teria mais meninas, tive um pouco de receio de entrar sozinha e não ter ninguém”.

Advertisement

Onde estão, o que fazem ou não fazem estas mulheres?

“o papel da mulher tá em tudo dentro da EFASC” ... “o que me chama mais atenção é os estereótipos de que pra lidar com a agricultura tem que ser homem e que não é coisa de mulher”.

Quais são suas contribuições na EFASC?

“A escola proporciona a gente mudar o pensamento da gente e a gente vê que trabalho da mulher é trabalho mesmo e não uma ajuda”.

Quais os espaços e tempos que ocupam na pedagogia da alternância e nos trabalhos da agricultura familiar?

“sendo mulher lá dentro da EFASC a gente descobre que tem um valor imenso na agricultura”... “eu mudei meu horizonte, a minha visão, eu entendi que eu posso fazer o que eu quiser, eu sou dona de mim!”.

As mulheres na pedagogia da alternância da EFASC

Cristina Luisa Bencke Vergutz1

É a partir destas inquietações e falas das mulheres da EFASC que nos desafiamos a trazer nesta escrita algumas compreensões da existência delas dentro da escola e também na agricultura. Buscamos reconhecer seus trabalhos na dinâmica da pedagogia da alternância da EFASC e sua importância enquanto ser mulher agricultora.

Quando pesquisamos a história da pedagogia da alternância, junto aos registros literários identificamos a não existência de mulheres enquanto protagonistas deste processo. Entretanto, elas sempre estiveram presentes, como monitoras, agricultoras, dirigentes, esposas, mães, avós, estudantes, egressas e militantes, mas foram e são invisibilizadas pela compreensão patriarcal e machista de que espaços de decisão e de poder, isto é, espaços públicos, não condizem com o ser mulher enquanto que espaços privados, limitados ao familiar e a casa, são adequados as condições tidas como naturais de todas as mulheres.

São registros históricos da pedagogia da alternância em que há a exaltação apenas do protagonismo da igreja e da família. Uma narrativa imersa em uma compreensão de mundo e de relações sociais de sociedade discriminadora e excludente, construída como única e verdadeira e que torna invisível as diversidades de sujeitos que contribuíram e contribuem no dia a dia da pedagogia da alternância como as mulheres, os idosos e a própria juventude.

1Monitora e Coordenadora Pedagógica da EFASC. Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação. Todas as palavras identificadas em itálico são falas de mulheres que estabelecem ou estabeleceram vínculos com a EFASC, ou seja: são estudantes, egressas, mães, avós, monitoras, professoras ou militantes. São falas oriundas de diálogos e entrevistas que emergiram de uma pesquisa que resultou em uma Tese de Doutorado intitulada Pedagogia das Vozes e dos Silêncios: experiências das mulheres na pedagogia da alternância da Escola Família Agrícola de Santa Cruz do Sul – EFASC de autoria de Cristina Luisa Bencke Vergutz e que se teceu junto aos trabalhos do Grupo de Pesquisa Educação Popular, Metodologias Participativas e Estudos Decoloniais da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC com apoio do CAPES.

Ou seja, a história relatada da pedagogia da alternância, tem a ausência do tripé da classe, gênero, raça/etnia que estrutura a sociedade e que, na relação pedagógica trabalho e educação, acaba aprofundando desigualdades.

A rotina da agricultura familiar se faz entrelaçada em trabalhos que, combinados, possibilitam a manutenção da vida das pessoas. Quando trazemos para o debate a questão da agricultura nos deparamos, essencialmente, com as questões produtivas, ou seja, com o que produzimos, quanto, quando, como, porque e quem irá produzir aquilo que nos trará

o sustento familiar. Pensamos a partir de uma racionalidade econômica convencional que nos leva a enxergar como produtivo e com valor apenas os trabalhos que podemos converter em valores monetários e os trabalhos domésticos e de cuidados, da reprodução da vida, entendemos como naturais do sexo feminino e, em razão disso, menosprezados social, econômica e culturalmente.

Ao pensarmos a pedagogia da alternância, numa escola família agrícola, que oferta o ensino profissionalizante em agricultura, abordando em seu currículo escolar a agricultura familiar e seu território, a tendência que se apresenta é a de reprodução desta forma de ser e existir direcionada

apenas ao produtivo. Entretanto, a caminhada histórica da EFASC apresenta sinais de resistência quanto a isso, mesmo imersa em contradições próprias da existência de toda a humanidade.

São vozes e silêncios que foram identificados e analisados numa tese de doutorado em que as mulheres da EFASC falam sobre sua existência, seus trabalhos e suas aprendizagens na rotina dos trabalhos na agricultura, na manutenção da vida de si e dos demais sujeitos a sua volta e da própria pedagogia da alternância. Suas falas trazem à tona o que está oculto na dinâmica inerente ao sistema capitalista, patriarcal, colonial, racista, sexista, lgbtfóbico: a exploração, dominação e submissão das mulheres como estratégia da acumulação do capital através do uso e enquadramento dos trabalhos das mulheres como aptidão natural vinculado ao amor, sentimentalismo e afeição desvinculando, por absoluto, do caráter epistemológico, ou seja, que os trabalhos do cuidado e doméstico também exigem produção de conhecimento e são o alicerce da agricultura familiar: “a gente

As mulheres da pedagogia da alternância da EFASC articulam resistências, lutas, estratégias, reflexões, reproduções e produções de conhecimentos que se materializam em pedagogias das vozes e dos silêncios.

consegue estudar, consegue conciliar o trabalho de casa e trabalhar na agricultura também sabe? (...) eu tenho que me virar em mil pessoas enquanto ele tá ali sabe?”. É a não validação das mulheres como sujeitos epistêmicas, ou seja, como produtoras de conhecimento que faz emergir vozes e silêncios que se traduzem em sentimentos de incapacidade: “muitas vezes me sentia sem capacidade de trabalhar na agricultura”. Isso exige delas um esforço maior nas aulas e nas atividades a fim de terem seu conhecimento reconhecido: “as mulheres têm que estudar muito mais, se desafiar muito mais e fazer coisas muito mais diferentes do que elas faziam” para poder ser vista e legitimada como mulher agricultora com credibilidade epistemológica no contexto político pedagógico da EFASC e na agricultura como um todo.

Isso acontece porque a construção social do ser mulher está direcionada desde a infância às nunca como uma responsabilidade, como preparar a terra”.

aprendizagens dos trabalhos do cuidado e domésticos, isto é, as mulheres filhas das famílias agricultoras aprendem a realizar trabalhos que são tidos historicamente como adequados ao ser mulher além de serem considerados mais “leves” como cozinhar, limpar e produzir alimentos na horta: “em casa, a mãe dizia pra gente - eu vou pra roça, mas quando eu voltar tem que tá pronta a comida do meio dia, lavar roupa, fazer o pão”. Elas são afastadas dos trabalhos mais externos, mais distantes da casa da família e que são tidos como “pesados”:

“eu nunca fui incentivada a aprender a andar de trator e, mesmo que eu fosse, era só pra fazer coisinha leve,

São falas que apontam que trabalhos da agricultura se expressam pela divisão sexual do trabalho e estão associados à inferiorização dos trabalhos das mulheres pelo enquadramento destes como simples “ajuda” justificado pelo viés biológico. Portanto, o trabalho tem gênero, assim como tem raça/etnia e classe social e sua dimensão de valor perpassa por estes pontos. Quando caracterizamos os trabalhos das mulheres na agricultura como “ajuda”, ele perde a dimensão econômica e aumenta a marginalização dos trabalhos executados por elas.

A caracterização de “ajuda” acarreta também a invisibilidade da sobrecarga de trabalho das mulheres agricultoras, pois além dos trabalhos domésticos e cuidados, elas também realizam os trabalhos agrícolas e pecuários, são duplas e triplas jornadas de trabalho que só finalizam quando todos da família foram dormir: “aqui em casa sou a primeira a levantar e a última que vai deitar” (...) “estamos envolvidas em todas as atividades, desde os trabalhos dentro de casa, de ir lá na horta pegar um tempero, pegar uma salada, como também nos trabalhos na lavoura, o tratar os animais (...), ajeitar o filho pra escola, cuidar da vó e do vô”.

Ao olharmos para as mulheres estudantes, egressas da EFASC, elas nos relatam que 97% delas aprenderam os trabalhos de cuidar, limpar, cozinhar, lavar e plantar alimentos e ervas medicinais com outras mulheres, sendo que o cultivar na horta aprendem também na EFASC. Sendo que 95% delas se sentem confiantes, ou seja, sabem que realizam muito bem estes trabalhos e são reconhecidas por isso. Enquanto que em trabalhos agrícolas e pecuários de maior porte como trabalhos com o trator, a junta de bois e os tratos culturais elas se sentem atrapalhadas ao executar, pois são trabalhos que não fazem parte de sua rotina diária na família, sendo que quando aprendem esses trabalhos são com homens ou na própria rotina pedagógica da EFASC.

Portanto a EFASC se apresenta para as mulheres como um espaço de aprendizagem de trabalhos agrícolas, mesmo elas enfrentando a constante necessidade de validar seus conhecimentos perante os demais sujeitos da escola e da família. Também indica que a “arte de cultivar” para as mulheres da pedagogia da alternância da EFASC são aprendidas com os homens tanto em casa como na escola quando se trata de cultivos mais longos e, geralmente, mais distantes da casa, como milho, arroz, feijão, soja, tabaco, amendoim, batata doce, entre outros. Já os trabalhos relacionados com a horta, que envolve a produção de alimentos de ciclo curto e estão mais próximos da casa, como as hortaliças, temperos, ervas medicinais, as mulheres aprendem com outras mulheres e também com a EFASC.

Na dinâmica da rotina da EFASC elas entendem o quanto o trabalho do cuidado e doméstico é essencial, mas principalmente, que estes são conhecimentos e têm importância vital na atividade da agricultura familiar. São estes trabalhos que garantem o alimento e a alimentação, a higiene, a socialização e a segurança das pessoas da família, provendo as necessidades humanas imediatas e básicas para manter a vida. Portanto, é por abordar pedagogicamente o trabalho do cuidado e domésticos como princípio educativo numa educação crítica e problematizadora freiriana do ser e estar no mundo que a EFASC possibilita as mulheres compreenderem-se enquanto mulheres na agricultura, vocacionadas a “ser mais”, cuidando de si e da natureza através dos seus conhecimentos histórica e socialmente construídos.

É pelo entendimento da EFASC, enquanto espaço, em que “as mulheres têm voz e lugar de fala para debater pontos importantes”, que “encoraja a fazer coisas diferentes” através da partilha e do “comunicar com outras mulheres”, entendendo a importância das mulheres se “fortalecer umas com as outras e perceber que somos capazes de fazer as coisas e também qualificadas no que fazemos”, que as mulheres da pedagogia da alternância da EFASC buscam a transformação de si e do mundo, trazendo para a visibilidade as mulheres, os seus trabalhos domésticos, do cuidar e da produção agrícola e pecuária e, principalmente, o quanto são fundamentais para existência da agricultura e, sobretudo, para a mantença da humanidade.

São as mulheres que semeiam a vida. Cultivam nos trabalhos do seu dia a dia a continuação da existência dos homens e das mulheres. Semeiam a esperança de um mundo melhor a cada dia, a cada cuidado que realizam com aqueles e aquelas que as rodeiam. São pelas sementes da vida, do alimento, da luta, da justiça e da transformação que a EFASC se propõe a cotidianamente trazer para visibilidade as mulheres da pedagogia da alternância e seus trabalhos porque, como fala a música1 :

Semeia, Margarida, semeia Margarida é o nome da minha vó Margarida é dona de casa Margarida trabalha no Sol E carrega consigo uma tripla jornada Margarida trabalha onde quer Margarida que é uma mulher Que só vai aonde puder levar Os filhos no colo

1 Música Margarida de autoria de Bruna Richter Eichler que é egressa da EFASC do ano de 2016. Concluiu sua formação técnica na EFASC, portanto, é Técnica em Agricultura, estudante do Bacharelado em Agroecologia da UERGS/AGEFA e atualmente trabalha na EFASC como auxiliar administrativa e na coordenação da Feira Pedagógica da EFASC. Bruna é cantora popular e tem um canal no Youtube chamado “Bruna - Ave Cantadeira”, acesse e conheça o seu canal: https://www.youtube.com/channel/UCt3ts0rCoCpm8qFqhwnpbtQ REFERÊNCIA: VERGÜTZ, Cristina Luisa Bencke. Pedagogia das vozes e dos silêncios: experiências das mulheres na pedagogia da alternância da Escola Família Agrícola de Santa Cruz do Sul - EFASC. Tese (Doutorado) - Universidade de Santa Cruz do Sul, 2021. Disponível em: http://hdl.handle.net/11624/3112. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 50ª ed. 2011.

This article is from: